17.04.2013 Views

Gramsci, o neoidealismo de Croce e Gentile e a Escola ... - Unirevista

Gramsci, o neoidealismo de Croce e Gentile e a Escola ... - Unirevista

Gramsci, o neoidealismo de Croce e Gentile e a Escola ... - Unirevista

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

UNIrevista - Vol. 1, n° 2 : (abril 2006) ISSN 1809-4651<br />

Resumo<br />

<strong>Gramsci</strong>, o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong><br />

e a <strong>Escola</strong> Nova<br />

Juliana Cesário Hamdan<br />

Mestre em Educação e Doutoranda no Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Educação<br />

julianach@globo.com<br />

Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação/UFMG, MG<br />

Este trabalho apresenta um esforço inicial no sentido <strong>de</strong> examinar a influência exercida pelas reformas da<br />

educação italiana, através das idéias <strong>de</strong> Giovanni <strong>Gentile</strong> e Bene<strong>de</strong>tto <strong>Croce</strong> sobre o movimento dos “Pioneiros da<br />

Educação Nova” e, mais particularmente, sobre a organização que assumiu a escola no Brasil. <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong><br />

implementaram na Itália uma gran<strong>de</strong> reforma do ensino, introduzindo um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> escola dualista, em<br />

substituição à escola humanista vigente. À semelhança da Itália, o governo brasileiro, nos anos trinta, adotou um<br />

mo<strong>de</strong>lo dual para organizar o sistema educacional brasileiro. Adotando o referencial teórico <strong>de</strong> Antonio <strong>Gramsci</strong>,<br />

crítico das reformas italianas dos anos vinte, este trabalho busca relacionar a noção <strong>de</strong> “escola ativa” que ele<br />

conheceu no cárcere e confrontá-la com a “escola nova" introduzida no Brasil, no final dos anos vinte, a fim <strong>de</strong> que<br />

possamos jogar luz sobre muitos questionamentos que temos a respeito das interpretações predominantes na<br />

historiografia brasileira sobre o referido período. No caso da escola nova no Brasil, projeto que resultou da<br />

submissão da proposta adversária ao domínio político da classe dominante, a falta do conceito <strong>de</strong> hegemonia nas<br />

principais análises, levou ao fortalecimento da tese <strong>de</strong> Nagle, como “cânone <strong>de</strong> interpretação” (do “entusiasmo” ao<br />

“otimismo”).<br />

Palavras-chave: <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong>// escola nova // <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong>// transfomismo.<br />

<strong>Gramsci</strong>, o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong> e a <strong>Escola</strong> Nova<br />

A proposta da <strong>Escola</strong> Nova introduzida no Brasil no final da década <strong>de</strong> vinte, pelos “Pioneiros da Educação<br />

Nova”, trazia como ban<strong>de</strong>ira a luta por uma escola <strong>de</strong>mocrática, gratuita, laica, não diferenciada por sexo e<br />

que unia formação cultural e preparação técnica para o trabalho (Teixeira, 1984, p. 417).<br />

Os intelectuais liberais que apresentaram o novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> escola como um instrumento <strong>de</strong> superação <strong>de</strong><br />

privilégios diferenciados pelas classes menos favorecidas, como Fernando Azevedo e Anísio Teixeira,<br />

almejavam a implantação <strong>de</strong> uma “escola única”, à qual todas as pessoas tivessem acesso. Enfatizavam a<br />

vinculação da educação ao trabalho e a “preparação” das pessoas para a <strong>de</strong>mocracia. Criticavam a divisão<br />

entre a escola <strong>de</strong> formação geral e a <strong>de</strong> educação para o trabalho. Na opinião dos “Pioneiros”, a dicotomia<br />

então existente na organização escolar contribuía para que fossem perpetuadas as diferenças entre classe<br />

dominante e dominada. Entretanto, buscavam, na psicologia experimental, meios para selecionar os<br />

“melhores” que iriam formar a chamada “elite técnica”, reforçando <strong>de</strong>sta maneira, a dualida<strong>de</strong> da escola<br />

(Soares, 1982).<br />

Com a reforma do ensino nos anos trinta, em contradição com a proposta <strong>de</strong> “escola única”, <strong>de</strong>fendida pelos<br />

Pioneiros, foram expandidas as escolas profissionalizantes, sob a li<strong>de</strong>rança do então Ministro da Instrução<br />

1


<strong>Gramsci</strong>, o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong> e a escola nova<br />

Juliana C. Hamdan<br />

Pública, Gustavo Capanema, para aten<strong>de</strong>r exigências da burguesia industrial, o que veio a reforçar ainda<br />

mais a dualida<strong>de</strong> da escola, como explica Soares:<br />

A ampliação das escolas profissionalizantes é acompanhada pela afirmação do dualismo escolar, na<br />

medida em que o ensino profissional é reservado às classes instrumentais. Somente o ensino<br />

secundário, <strong>de</strong> caráter geral, permitiria o acesso aos cursos superiores. Foi concebido como ramo<br />

escolar para a formação das individualida<strong>de</strong>s condutoras. O ensino técnico, <strong>de</strong>stinado às classes<br />

menos favorecidas e com o intuito <strong>de</strong> criar um exército <strong>de</strong> trabalhadores, apenas permitiria o<br />

ingresso em cursos superiores a ele estritamente relacionados (Soares, 1982, p. 147).<br />

Contrariando o discurso <strong>de</strong> uma escola <strong>de</strong>mocrática, que preparava as pessoas para o trabalho e para atuar<br />

politicamente nos rumos da socieda<strong>de</strong> em que estavam inseridas, as escolas profissionalizantes tinham<br />

como objetivo a mera formação técnica e eram <strong>de</strong>stinadas unicamente à formação das classes<br />

instrumentais. Para a classe dominante, fonte supostamente originária dos “melhores”, estavam reservadas<br />

as escolas secundárias e o ensino superior, <strong>de</strong>stinadas à “formação das individualida<strong>de</strong>s condutoras”. Para o<br />

operariado restavam as escolas profissionalizantes.<br />

Mas que tipo <strong>de</strong> cidadania as reformas realizadas no contexto dos anos vinte e trinta buscavam formar? Qual<br />

a influência da filosofia italiana (neoi<strong>de</strong>alista) na fundamentação <strong>de</strong> princípios para a “reconstrução<br />

educacional” no Brasil? Quais foram as conseqüências <strong>de</strong>ssas influências sobre a constituição do ensino<br />

brasileiro?<br />

Para respon<strong>de</strong>r perguntas como estas é que estamos examinando a influência exercida pelas reformas da<br />

educação italiana, através das idéias <strong>de</strong> Giovanni <strong>Gentile</strong> 1 e Bene<strong>de</strong>tto <strong>Croce</strong> 2 , sobre o movimento dos<br />

“Pioneiros da Educação Nova” e, mais particularmente, sobre a organização que assumiu a escola no Brasil.<br />

<strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong> implementaram na Itália uma gran<strong>de</strong> reforma do ensino, introduzindo um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> escola<br />

dualista, em substituição à escola humanista vigente. À semelhança da Itália, o governo brasileiro, nos anos<br />

trinta, adotou um mo<strong>de</strong>lo dual para organizar o sistema educacional brasileiro, através da criação <strong>de</strong> escolas<br />

profissionalizantes para as classes instrumentais e da <strong>de</strong>stinação das escolas secundárias e superiores para<br />

as elites.<br />

Observamos que todas aquelas transformações no ensino e nas diretrizes educacionais dos dois países,<br />

consi<strong>de</strong>rando as peculiarida<strong>de</strong>s dos respectivos contextos, produziram profundas diferenciações sociais na<br />

organização da escola que até hoje se fazem presentes, particularmente <strong>de</strong>pois das reformas dos anos<br />

noventa. Nesse sentido, Soares afirma que:<br />

As recentes políticas do governo para a educação profissional vêm reforçar a dualida<strong>de</strong> da estrutura<br />

educacional brasileira ao reconhecerem duas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ensino: a <strong>de</strong> educação geral, propedêutica,<br />

que supostamente conduz à universida<strong>de</strong>, e outra especificamente para o ensino técnico-<br />

1 Giovanni <strong>Gentile</strong> (Castelvetrano, 1875 – Firenze, 1944). Colaborador da Revista <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> La Critica, formou-se no<br />

estudo do pensamento hegeliano, assumindo uma posição teórica pessoal, centrada no atualismo (Teoria geral do espírito<br />

como ato puro – 1916). Aproximou-se ao movimento nacionalista do pós-guerra e, em 1922, aceitou o encargo da oferta<br />

<strong>de</strong> Mussolini para ocupar o lugar <strong>de</strong> Ministro da Instrução em seu primeiro governo, dando vida a uma reforma da escola<br />

que levou o seu nome (Enciclopédia Storica Zanichelli, p. 182, Bologna, 1975).<br />

2 Bene<strong>de</strong>tto <strong>Croce</strong> (Pescasseroli, 1866 – Napoli, 1952). Filósofo, crítico histórico. Neto <strong>de</strong> Bertrando Spaventa, a<strong>de</strong>re, na<br />

juventu<strong>de</strong>, ao pensamento marxista <strong>de</strong> A. Labriola, porém, afastando-se <strong>de</strong>ste, em seguida, através <strong>de</strong> seus livros e da<br />

revista La Crítica, fundada em 1903, na qual propunha uma renovação da cultura italiana, impressa no historicismo<br />

i<strong>de</strong>alístico (Enciclopédia Storica Zanichelli, p. 149, Bologna, 1975).<br />

UNIrevista - Vol. 1, n° 2 : (abril 2006)<br />

2


<strong>Gramsci</strong>, o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong> e a escola nova<br />

Juliana C. Hamdan<br />

profissional. Nesse sentido, representam um retrocesso em matéria <strong>de</strong> organização da escola média<br />

brasileira (Soares, 1999, p.113).<br />

Adotando o referencial teórico <strong>de</strong> Antonio <strong>Gramsci</strong>, crítico das reformas italianas dos anos vinte, este<br />

trabalho busca relacionar a noção <strong>de</strong> “escola ativa” que ele conheceu no cárcere e confrontá-la com a<br />

“escola nova" introduzida no Brasil, no final dos anos vinte, a fim <strong>de</strong> que possamos jogar luz sobre muitos<br />

questionamentos que temos a respeito das interpretações predominantes na historiografia brasileira sobre o<br />

referido período.<br />

Com o intento <strong>de</strong> superar a dicotomia da organização da escola – dicotomia que é expressão da divisão da<br />

socieda<strong>de</strong> em classes, em governantes e governados –, <strong>Gramsci</strong> apresentou a proposta da “escola unitária”,<br />

que serviria como estratégia para a conquista da hegemonia das classes subalternas (Soares, 2000, p. 437).<br />

Sua proposta buscava, além da formação técnica, a formação <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s que permitissem à classe<br />

dominada atuar ativamente no governo da socieda<strong>de</strong> em que estava inserida.<br />

Assim, concepções sobre os vínculos entre escola e mundo do trabalho, que constituíram os pilares das<br />

propostas dos educadores "escolanovistas" e animavam suas contendas com os católicos, num contexto<br />

marcado por restrições políticas, se inspiraram, fortemente, na filosofia então em voga na Itália, o<br />

<strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> e foram fundantes da organização que assumiu a escola média, no Brasil. Por serem assim<br />

"estruturantes", as concepções <strong>de</strong> origem neoi<strong>de</strong>alista, como a da escola ativa, ainda hoje constituem a<br />

referência teórica com as quais as reformas educacionais atualmente em curso polemizam (Soares, 2000, p.<br />

195-210). Sua compreensão nos permitirá estabelecer relações entre as reformas dos referidos sistemas<br />

educativos – Brasil e Itália – que possibilitem oferecer subsídios à análise das reformas educacionais<br />

atualmente em curso em ambos os países. Embora não seja o nosso objetivo analisar as recentes políticas<br />

educacionais adotadas no Brasil, acreditamos que o nosso estudo po<strong>de</strong>rá oferecer elementos teóricos que<br />

contribuam para a sua análise.<br />

Analisar a influência da filosofia <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong>, bem como das reformas que realizaram na Itália sobre a<br />

organização da escola no Brasil, no momento em que ela passa a se articular ao processo urbano e<br />

industrial – que, como sabemos, assume um feitio dualista, um tipo <strong>de</strong> escola para os trabalhadores, a<br />

profissional, e outro para a classe dirigente, a secundária – requer um estudo do que estamos chamando <strong>de</strong><br />

"entronque" histórico. Trata-se do contexto em que se dá, <strong>de</strong> maneira mais clara, a influência da orientação<br />

filosófica dos citados intelectuais sobre as diretivas formuladas no Brasil no sentido <strong>de</strong> articular a escola ao<br />

mundo do trabalho, nos anos vinte e trinta. A influência da posição filosófica <strong>de</strong> intelectuais como <strong>Croce</strong> 3 e<br />

<strong>Gentile</strong>, sobre propostas <strong>de</strong> "reconstrução" do nosso sistema educacional, não tem sido <strong>de</strong>vidamente<br />

contemplada nos estudos sobre o período. Por outro lado, as tendências <strong>de</strong> interpretação do referido<br />

período, que se encontram na historiografia brasileira não consi<strong>de</strong>ram, em sua gran<strong>de</strong> maioria, a análise <strong>de</strong><br />

<strong>Gramsci</strong> sobre a escola ativa, segundo a qual esta representava uma proposta <strong>de</strong> construção da hegemonia<br />

ética e política da burguesia. Na realização <strong>de</strong>ste projeto, a classe dominante fez concessões aos<br />

movimentos populares, acatando parte <strong>de</strong> suas reivindicações e as subordinando ao seu projeto <strong>de</strong><br />

hegemonia. A escola nova, como resultado <strong>de</strong>ssa elaboração, “representava concessões a reivindicações do<br />

movimento socialista, que precisavam ser i<strong>de</strong>ntificadas e ampliadas: eram os elementos racionais da escola<br />

ativa” (Soares, 2000, p. 439).<br />

3 No documento “Mais uma vez convocados”, <strong>Croce</strong> é citado diversas vezes.<br />

UNIrevista - Vol. 1, n° 2 : (abril 2006)<br />

3


<strong>Gramsci</strong>, o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong> e a escola nova<br />

Juliana C. Hamdan<br />

Uma análise como a que é feita por <strong>Gramsci</strong>, levando em conta as contradições da escola nova, é<br />

praticamente inexistente na historiografia brasileira. A tendência na historiografia educacional brasileira é a<br />

<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar que a escola nova foi expressão <strong>de</strong> um movimento predominantemente reacionário, não<br />

tendo, em si mesmo, nenhuma contradição que pu<strong>de</strong>sse ser explorada no sentido <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver um<br />

projeto para a construção da hegemonia das classes subalternas. A escola no Brasil, ao se articular ao<br />

movimento <strong>de</strong> urbanização e industrialização, foi tomando a forma <strong>de</strong> uma organização dicotômica, não<br />

obstante todo o discurso dos “Pioneiros”, construído em torno <strong>de</strong> uma escola única. Esta organização<br />

assumida, na qual a concepção <strong>de</strong> formação para o mundo do trabalho, como dimensão da cidadania, que<br />

foi formulada nos anos vinte e trinta no Brasil, é um dos eixos que nos permite, ainda que <strong>de</strong> forma bem<br />

tênue ainda, estabelecer alguns vínculos com a influência neoi<strong>de</strong>alista <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong>.<br />

Diferentemente da concepção <strong>de</strong> <strong>Gramsci</strong> sobre as contradições da escola nova, a tendência <strong>de</strong> análise da<br />

escola nova, na historiografia brasileira, é a <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rá-la uma expressão monolítica <strong>de</strong> interesses<br />

dominantes. As raízes da dominância <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> interpretação po<strong>de</strong>m ser estudadas a partir da referência<br />

teórica que foi elaborada como orientação para situar o surgimento do movimento escolanovista no Brasil e<br />

o que ele representou para a educação brasileira.<br />

É largamente conhecida na historiografia brasileira a interpretação segundo a qual, dos anos vinte aos<br />

trinta, houve uma passagem do “entusiasmo pela educação” ao “otimismo pedagógico”. Trata-se <strong>de</strong> uma<br />

categoria formulada por Jorge Nagle (1974) que ganhou inúmeros a<strong>de</strong>ptos entre os historiadores e filósofos<br />

da educação, tornando-se praticamente inquestionável, tal a força que ganhou como “cânone” <strong>de</strong><br />

interpretação do movimento da escola nova no Brasil. De acordo com o referido autor, à época da 1ª<br />

República havia, no Brasil, um conjunto <strong>de</strong> movimentos sociais, envolvendo as massas populares e os<br />

intelectuais, sustentando que a educação era condição para a emancipação das massas populares. Para<br />

Jorge Nagle, o “entusiasmo pela educação” correspon<strong>de</strong>u ao período da realida<strong>de</strong> educacional brasileira em<br />

que a educação era vista, tanto por movimentos políticos e sociais quanto por intelectuais, como uma<br />

gran<strong>de</strong> aliada para a conscientização política e social dos indivíduos. Foi um momento <strong>de</strong> efervescência<br />

política e que foi acompanhado <strong>de</strong> uma supervalorização do processo educacional, como forma <strong>de</strong> enfrentar<br />

os problemas nacionais.<br />

A análise predominante nestas interpretações sobre o movimento social dos anos vinte aos anos trinta está<br />

<strong>de</strong>sprovida do conceito <strong>de</strong> Estado ampliado, <strong>de</strong> hegemonia e <strong>de</strong> revolução passiva e, por isso, vê o Estado<br />

que se organiza a partir <strong>de</strong> então como resultado <strong>de</strong> forças extremamente conservadoras, reacionárias. Daí<br />

a idéia <strong>de</strong> um movimento popular, em <strong>de</strong>fesa da educação, “o entusiasmo”, que teria sido <strong>de</strong>rrotado por um<br />

movimento conservador, o da escola nova, caracterizado como “otimismo pedagógico”.<br />

Embora nossa pesquisa 4 ainda requeira novos aprofundamentos, não i<strong>de</strong>ntificamos, os tais movimentos<br />

populares a favor da educação, que teriam dado o tom reivindicativo do “entusiasmo pela educação”. Ao<br />

contrário, segundo os autores consultados 5 , a socieda<strong>de</strong> civil era fraca, <strong>de</strong>sorganizada e não tinha elaborado<br />

projetos politicamente consistentes, como expressão <strong>de</strong> suas exigências <strong>de</strong> emancipação. Por outro lado, a<br />

<strong>Escola</strong> Nova, mesmo como expressão <strong>de</strong> uma política liberal e burguesa, contribuiu, em alguma medida,<br />

para ampliar oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> educação para as massas populares.<br />

Nessa linha <strong>de</strong> análise, que <strong>de</strong>staca aspectos progressistas e conservadores na proposta da escola nova,<br />

encontra-se a pesquisa <strong>de</strong> Rosemary Dore Soares. No que diz respeito à proposição da escola nova no<br />

4<br />

Em nossa dissertação <strong>de</strong> mestrado analisamos alguns dos movimentos populares que teriam em sua ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> luta, a<br />

educação (Hamdan, p. 45, 2001).<br />

5<br />

Coutinho (1999), Soares (1982, 1992, 2000), Vianna (1999), Nogueira (1998), Aggio (1998), Valle (1997).<br />

UNIrevista - Vol. 1, n° 2 : (abril 2006)<br />

4


<strong>Gramsci</strong>, o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong> e a escola nova<br />

Juliana C. Hamdan<br />

Brasil, a autora não a analisa nos termos do <strong>de</strong>slocamento do “entusiasmo pela educação” ao “otimismo<br />

pedagógico”, tese que situa a escola nova como um fenômeno predominantemente reacionário. Ao<br />

contrário, a autora toma o conceito <strong>de</strong> revolução passiva para analisar a revolução <strong>de</strong> 1930 e mostra que o<br />

programa dos Pioneiros, naquele contexto, tinha aspectos “reacionários” e “progressistas”<br />

Dentre as propostas que se confrontavam no Brasil, na década <strong>de</strong> vinte e trinta, o programa<br />

educacional dos “Pioneiros” era o mais progressista. Foi através <strong>de</strong>le que se criticou o<br />

conservadorismo da escola oligárquica, extremamente elitista, e se divulgou a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>mocratizar a escola, encarregando o Estado <strong>de</strong> subsidiar o seu funcionamento. A classe operária<br />

brasileira, apenas emergente, ainda não tinha um projeto educacional articulado para opor<br />

resistência às idéias avançadas da “escola nova” (Soares, s/d).<br />

O que permite à autora formular uma análise dialética da escola nova, mostrando que ela é resultado da<br />

elaboração <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> hegemonia ética e política da burguesia e, como tal, é contraditório,<br />

apresentando aspectos progressistas e conservadores, é o fato <strong>de</strong> levar em conta a questão do Estado<br />

ampliado e, nesse âmbito, o conceito <strong>de</strong> hegemonia, o qual está praticamente ausente da historiografia que<br />

examina o contexto dos anos vinte e trinta no Brasil.<br />

Para exercer a hegemonia sobre a socieda<strong>de</strong>, os grupos dominantes foram obrigados, no final do século XIX,<br />

a reconhecer a existência da classe trabalhadora como um inimigo que não po<strong>de</strong>riam aniquilar como o<br />

fizeram com a aristocracia feudal no século XVIII. Assim, viram-se obrigados a “conviver” com o inimigo,<br />

abrindo canais para sua participação na socieda<strong>de</strong>, o que levou à socialização da política, à formação do que<br />

<strong>Gramsci</strong> chama <strong>de</strong> “trincheiras” da socieda<strong>de</strong> civil, como o partido político, o sindicato, a escola pública. O<br />

exercício da hegemonia, que sempre implica a disputa entre projetos sociais contraditórios, levou a<br />

burguesia a “apropriar-se” <strong>de</strong> propostas avindas do movimento operário no sentido <strong>de</strong> submetê-las ao seu<br />

domínio cultural e político, ou seja, a sua hegemonia.<br />

Analisando a formulação da escola nova na virada do século XIX para o XX, Soares mostra aspectos<br />

fundamentais dos processos contraditórios que levaram os grupos dominantes a propor a idéia da ativida<strong>de</strong><br />

como princípio <strong>de</strong> seu novo programa escolar. A autora sublinha que a noção <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> representou a<br />

“apropriação” da discussão sobre a escola do trabalho, presente no movimento operário, para garantir sua<br />

hegemonia sobre a política escolar:<br />

O surgimento da noção <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>, como referência pedagógica inovadora, liga-se ao processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>mocratização da socieda<strong>de</strong>, quando, na disputa pela sua condução, a classe trabalhadora impõe<br />

concretamente sua presença (Soares, 2000, p.196).<br />

A via teórica que possibilitou a submissão da idéia <strong>de</strong> escola do trabalho ao projeto <strong>de</strong> hegemonia burguesa,<br />

através do princípio da escola ativa, foi o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong>, do qual <strong>Croce</strong> é um dos principais representantes.<br />

Segundo a autora, a reflexão <strong>de</strong> <strong>Gramsci</strong> sobre o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> mostra como esse movimento “consiste<br />

justamente em assimilar elementos do marxismo, no sentido <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir essa filosofia, ao mesmo tempo em<br />

que os incorpora ao i<strong>de</strong>alismo hegeliano para que esse seja revigorado” (Soares, 2000, p. 67).<br />

A forte influência do pensamento <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> na Reforma <strong>Gentile</strong> dá sustentação às propostas da educação<br />

dualista, anti<strong>de</strong>mocrática e contra a escola do estado. <strong>Gramsci</strong> consi<strong>de</strong>ra-o como uma voz autorizada com<br />

força carregada <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> política e, portanto, nociva aos interesses do povo, e põe-se a rebater ponto<br />

por ponto as teses que fundamentaram tal reforma. Com este objetivo, ressalta o caráter i<strong>de</strong>alista <strong>de</strong>stas,<br />

UNIrevista - Vol. 1, n° 2 : (abril 2006)<br />

5


<strong>Gramsci</strong>, o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong> e a escola nova<br />

Juliana C. Hamdan<br />

formulando uma linha <strong>de</strong> luta cultural, segundo a qual “a noção do intelectual como especialista e político,<br />

organicamente unido à classe operária em sua luta pela hegemonia” se opõe àquela <strong>de</strong> <strong>Croce</strong>, que propõe a<br />

separação entre o intelectual e pensamento teórico, por um lado e a realida<strong>de</strong> cotidiana por outro (Betti, p.<br />

40, 1981).<br />

Para explicarmos, ainda que em breves linhas, alguns aspectos do <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> e <strong>de</strong> sua expressão no<br />

campo educacional, po<strong>de</strong>ríamos dizer que a filosofia neoi<strong>de</strong>alista, como <strong>de</strong>staca Soares, foi analisada por<br />

<strong>Gramsci</strong> quando <strong>de</strong> sua polêmica com as idéias <strong>de</strong> <strong>Croce</strong>. <strong>Gramsci</strong> mostrou que para fortalecer o i<strong>de</strong>alismo,<br />

já em crise, alguns intelectuais procuraram “revitalizá-lo” a partir <strong>de</strong> um “tonificante”: o marxismo. Não para<br />

fortalecer o marxismo, mas justamente o contrário, para enfraquecê-lo. Foi o que fez <strong>Croce</strong>, recuperando o<br />

historicismo. No campo educacional, também ressalta Soares, a filosofia neoi<strong>de</strong>alista foi um dos elementos<br />

chave para a proposição da escola ativa ou escola nova. A idéia <strong>de</strong> “ativida<strong>de</strong>”, explica ainda Soares, é a<br />

apropriação neoi<strong>de</strong>alista da noção <strong>de</strong> trabalho, que vinha sendo discutida no âmbito do movimento operário<br />

(Soares, 2000, 423).<br />

Assim, o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> atua como uma espécie <strong>de</strong> “transformismo”: assimila e incorpora, sob a hegemonia<br />

burguesa, o <strong>de</strong>bate sobre a escola do trabalho que se realizava entre os trabalhadores. Soares argumenta<br />

que:<br />

o resgate da noção <strong>de</strong> trabalho, sob a ótica neoi<strong>de</strong>alista, se realiza através daquela operação<br />

transformista, <strong>de</strong>nunciada por <strong>Gramsci</strong>: ao mesmo tempo em que busca, no marxismo, o conceito<br />

<strong>de</strong> trabalho como elemento historicizante, esvazia o seu conteúdo revolucionário e assim, prepara o<br />

elixir para revitalizar a hegemonia cultural burguesa (Soares, 2000, p. 204).<br />

Quando examina a manifestação do processo “transformista” na proposta da escola que era difundida na<br />

Itália por <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong>, a escola nova, <strong>Gramsci</strong> o vê como algo contraditório. É contraditório, mostra a<br />

professora Soares, porque, para garantir o domínio sobre a socieda<strong>de</strong>, a classe dominante abriu uma<br />

“interlocução” com os trabalhadores, trazendo suas reivindicações para as diretrizes da escola, embora sob o<br />

controle <strong>de</strong> seus interesses <strong>de</strong> classe, ou seja, sob sua hegemonia. A autora sustenta que “resultando <strong>de</strong> um<br />

processo ‘transformista’, a pedagogia neoi<strong>de</strong>alista se inspirou no movimento socialista pela ‘escola do<br />

trabalho’” (Soares, 2000, p. 420).<br />

Assim, a idéia <strong>de</strong> “ativida<strong>de</strong>”, proposta como diretriz da escola nova, não expressa monoliticamente os<br />

interesses das classes dominantes, mas mostra um aspecto da tensão entre interesses antagônicos <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> um projeto para a hegemonia da burguesia. Compreen<strong>de</strong>ndo esse conflito interno ao projeto burguês,<br />

próprio ao momento em que se expan<strong>de</strong> a socieda<strong>de</strong> civil, <strong>Gramsci</strong> dirá que a escola unitária, sua principal<br />

direção pedagógica para o movimento operário, é uma “escola ativa”. Se <strong>Gramsci</strong> toma essa posição, isso<br />

mostra que ele, compreen<strong>de</strong>ndo as contradições do processo <strong>de</strong> ampliação do Estado, vê a proposta<br />

emergente da burguesia – a escola ativa – como uma proposta contraditória, que tem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si<br />

elementos que po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>senvolvidos numa perspectiva <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> hegemonia dos<br />

trabalhadores. Daí sua proposição, assinala Soares, a escola unitária é escola ativa:<br />

Na “escola unitária”, esclarece o autor, “o trabalho e a teoria estão estreitamente ligados”, pois ela<br />

está voltada para educar as classes instrumentais e subordinadas para um papel diretivo na<br />

socieda<strong>de</strong> como conjunto e não como indivíduos singulares (Ibid, p. 149). A “escola unitária” é<br />

UNIrevista - Vol. 1, n° 2 : (abril 2006)<br />

6


<strong>Gramsci</strong>, o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong> e a escola nova<br />

Juliana C. Hamdan<br />

escola “ativa” porque tem como princípio filosófico realizar a igualda<strong>de</strong>, partindo do conceito e do<br />

fato do trabalho, da relação entre teoria e prática na ativida<strong>de</strong> dos homens (Soares, 2000, p. 421).<br />

Um caráter positivo do ativismo, apontado por <strong>Gramsci</strong>, é sua polêmica contra o ensino verbalista, livresco,<br />

que se fossiliza em uma memorização estéril e per<strong>de</strong> <strong>de</strong> vista a realida<strong>de</strong> viva do educando. Também, a<br />

atenção <strong>de</strong>dicada à relação entre escola e socieda<strong>de</strong>, entre indivíduo e comunida<strong>de</strong>, sobre a que tanto<br />

refletiu Dewey, constitui mérito do ativismo. Porém, o pensamento do gran<strong>de</strong> psicólogo e filósofo norte-<br />

americano não podia chegar até o cárcere on<strong>de</strong> estava <strong>Gramsci</strong>. Entretanto, este reconheceu o valor das<br />

novas idéias e apontou também suas limitações, suscetíveis <strong>de</strong> frustrar os objetivos propostos na teoria.<br />

Todavia, advertiu que é preciso que a nova proposta não se apoiasse apenas no espontaneísmo das crianças<br />

e se ativesse <strong>de</strong>mais na preocupação com novos métodos, mas também com os conteúdos pedagógicos,<br />

historicamente relevantes. Ressaltou também a importância do papel do professor, bastante subestimada no<br />

ativismo, como forma <strong>de</strong> estabelecer uma justa relação educativa, na qual haja <strong>de</strong>senvolvimento moral e<br />

cultural.<br />

Ao contrário do que propunha o ativismo, para o pensador sardo, não é possível educar sem que alguma<br />

dose <strong>de</strong> dogmatismo seja necessária, para que as crianças contraiam alguns hábitos e disciplina,<br />

imprescindíveis para a superação <strong>de</strong> concepções, instintos e tendências inferiores e atrasadas, que acabam<br />

por dificultar, senão que impedir, o avanço do processo educacional dos filhos das classes populares.<br />

Observou acertadamente que, já nas classes da elite, é mais comum este tipo <strong>de</strong> comportamento, inclusive<br />

uma maior concentração psicológica. O estudo é uma tarefa que exige algum esforço que não é só<br />

intelectual, mas também nervoso e muscular, e não se consegue espontaneamente, senão com a orientação<br />

do professor.<br />

A liberda<strong>de</strong> não é sinônima <strong>de</strong> espontaneida<strong>de</strong>, como querem os advogados do ativismo pedagógico. Está<br />

relacionada à idéia <strong>de</strong> autonomia, <strong>de</strong> autocontrole e auto<strong>de</strong>terminação, em direção ao todo social. Deve ser<br />

o objetivo final <strong>de</strong> uma proposta educativa, e não o seu ponto <strong>de</strong> partida. A disciplina não é concebida como<br />

uma imposição arbitrária e contrária aos interesses do educando, senão que, na concepção gramsciana, a<br />

liberda<strong>de</strong> vai ao encontro <strong>de</strong>sta, na medida em que significa a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma conquista histórica do<br />

nível mais alto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> todas as forças vitais do sujeito.<br />

Para <strong>Gramsci</strong> o maior atraso da escola é a sua orientação classista, contra a qual empenhou-se em<br />

empreen<strong>de</strong>r sua luta. Mesmo consi<strong>de</strong>rando que a educação não é capaz <strong>de</strong>, sozinha, transformar as relações<br />

sociais, não subestimou seu potencial transformador, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que para isso, seja necessário superar sua<br />

oposição entre a cultura geral e a instrução profissional, como expressão <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> classista, divida<br />

em escolas para trabalhadores e para as elites. Portanto, a escola unitária seria um elemento fundamental<br />

para a luta contra uma cultura subalterna para as classes mais pobres e a <strong>de</strong> cultura humanista,<br />

<strong>de</strong>sinteressada, como privilégio das classes dirigentes; seria “um elemento básico na luta pela hegemonia<br />

das classes populares.” A escola unitária quer que todos os jovens “tenham condições <strong>de</strong> serem<br />

governantes, ainda que seja em um sentido abstrato. Aqui se fun<strong>de</strong>m os i<strong>de</strong>ais humanísticos e<br />

<strong>de</strong>mocráticos, e a tradicional dualida<strong>de</strong> entre homem aristocrático e o homem comum se media, se supera,<br />

no homem mo<strong>de</strong>rno (Betti, p. 86 e 87, 1976).”<br />

Assim, a escola unitária se “re-apropria” daquilo que foi incorporado ao projeto escolar burguês, provindo <strong>de</strong><br />

reivindicações do movimento operário, aguçando suas tensões e “recriando” suas possibilida<strong>de</strong>s.<br />

UNIrevista - Vol. 1, n° 2 : (abril 2006)<br />

7


<strong>Gramsci</strong>, o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong> e a escola nova<br />

Juliana C. Hamdan<br />

No caso da escola nova no Brasil, projeto que resultou da submissão da proposta adversária ao domínio<br />

político da classe dominante, a falta do conceito <strong>de</strong> hegemonia nas principais análises, levou ao<br />

fortalecimento da tese <strong>de</strong> Nagle. Seu “cânone <strong>de</strong> interpretação” (do “entusiasmo” ao “otimismo”) não<br />

forneceu elementos para apreen<strong>de</strong>r a contraditória relação <strong>de</strong> forças no contexto dos anos vinte e trinta no<br />

Brasil, nem o papel que assumiu, nesse quadro, o programa dos Pioneiros, expressão da tensão entre<br />

propostas políticas e sociais contraditórias. Sua conseqüência tem sido uma avaliação fortemente negativa<br />

do programa dos Pioneiros, como algo extremamente conservador. Levou também a questionamentos<br />

intrigantes – já que a escola nova seria conservadora – como os que fazem Luiz Antonio Cunha ao supor que<br />

existe, na elaboração do Manifesto dos Pioneiros, um “interlocutor” oculto, socialista, que teria influenciado a<br />

redação daquele documento. O autor conclui que:<br />

De fato, o Manifesto está cheio <strong>de</strong> trechos on<strong>de</strong> a idéia é a da educação como alavanca para mudar<br />

o mundo, que correspon<strong>de</strong> bem a uma esperança religiosa ou iluminista, mas está bem distante da<br />

utopia socialista, (...) . (...) talvez houvesse co-autores passivos, na medida em que influenciaram o<br />

redator, que se viu motivado a incorporar idéias que não eram bem as suas, mas sim, <strong>de</strong> possíveis<br />

signatários socialistas, quiçá marxistas (Cunha, 1993, p. 145).<br />

Em lugar <strong>de</strong> propor uma rearticulação teórica das análises sobre o contexto <strong>de</strong> produção do Manifesto,<br />

Cunha opta por afirmar como elemento central <strong>de</strong> sua hipótese a similarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> termos adotados pelo<br />

Manifesto, como “primário profissional” e “secundário superior” que, quarenta anos <strong>de</strong>pois, são utilizados<br />

por Bau<strong>de</strong>lot e Establet, no livro “L’école capitalista em France” (1972), para criticar “a imagem da escola<br />

única/unificadora. Dizem que ela não é única, mas, sim, dividida em duas re<strong>de</strong>s, apesar das aparências; e<br />

que não é unificadora, mas, sim, reprodutora das classes sociais (Cunha, 1993, p. 145).” A convergência <strong>de</strong><br />

referências entre o Manifesto e o estudo dos autores franceses reafirma a sua hipótese segundo a qual<br />

existiria um interlocutor socialista oculto no Manifesto (Cunha, 1993, p. 146).<br />

Sua busca no sentido <strong>de</strong> esclarecer a existência <strong>de</strong> um socialista na redação do Manifesto, como ele<br />

assinala, não <strong>de</strong>sembocou, contudo, em resultados positivos. O autor <strong>de</strong>cidiu adotar como estratégia <strong>de</strong><br />

elucidação <strong>de</strong> sua hipótese perguntar aos sociólogos franceses a origem do termo “primário-profissional” e<br />

“secundário-superior”, ao que eles respon<strong>de</strong>ram tê-lo produzido a partir do estudo empírico da própria<br />

organização da escola francesa.<br />

Alguns estudos iniciais sobre a reflexão <strong>de</strong> Fernando Azevedo (1951) a respeito da configuração da escola<br />

como “primário-profissional” e “secundário-superior” nos levam não a um interlocutor socialista do<br />

Manifesto, mas, possivelmente, ao famoso sociólogo francês Émile Durkheim. É o que po<strong>de</strong>mos perceber no<br />

texto Azevedo no qual a autor apresenta as idéias <strong>de</strong> Durkheim, sustentando que a socieda<strong>de</strong> resulta <strong>de</strong><br />

processos <strong>de</strong> integração e diferenciação que se baseiam em semelhanças e diferenças entre os indivíduos.<br />

Por suas relações com tal processo, os sistemas educativos “trazem, na sua estrutura, mais ou menos rica e<br />

complexa, organizações fundamentais <strong>de</strong>stinadas à unificação e à diversificação” (Forachi, 1974, p. 140).<br />

Assim, a convergência do pensamento <strong>de</strong> Azevedo com os pensadores franceses 40 anos <strong>de</strong>pois, como<br />

sugeria Cunha, está mais próxima <strong>de</strong> Durkheim, quando diz:<br />

a divisão social e econômica, <strong>de</strong> sistemas escolares em dois compartimentos quase estanques e<br />

incomunicáveis, como dois sistemas sobrepostos, um para a educação popular constituído <strong>de</strong> ensino<br />

UNIrevista - Vol. 1, n° 2 : (abril 2006)<br />

8


<strong>Gramsci</strong>, o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong> e a escola nova<br />

Juliana C. Hamdan<br />

primário e profissional, <strong>de</strong> artes e ofícios, e outro, o ensino secundário e superior para a formação <strong>de</strong><br />

elites, em correspondência a duas classes sociais (Azevedo in Forachi, 1974, p. 149).<br />

Ocuparia Durkheim, como influência sobre a educação brasileira, um lugar semelhante àquele que <strong>Gramsci</strong><br />

atribuiu a <strong>Croce</strong>, com sua tendência neoi<strong>de</strong>alista, na proposição da escola ativa ou escola nova? Certamente<br />

Durkheim é reconhecido como um dos intelectuais que influenciou a formulação da escola nova. Não como<br />

um i<strong>de</strong>alista, mas <strong>de</strong>claradamente positivista. Outros estudos também mostram a influência <strong>de</strong> Dewey sobre<br />

a escola nova, que é um filósofo e educador pragmatista. Todas são influências importantes e talvez<br />

guar<strong>de</strong>m entre si uma relação muito estreita, que po<strong>de</strong> estar ligada ao fenômeno que <strong>Gramsci</strong> chama <strong>de</strong><br />

“transformismo”.<br />

Referências<br />

AGGIO, A. (org.). 1998. <strong>Gramsci</strong>, a vitalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um pensamento. São Paulo, Editora UNESP, 201 p.<br />

AZEVEDO, F. <strong>de</strong>. 1974. Os sistemas escolares. In: M.A. FORACHI e L. PEREIRA, Educação e socieda<strong>de</strong>:<br />

leituras <strong>de</strong> sociologia da educação. São Paulo, Editora Nacional.<br />

BETTI, G. 1981. Escuela, educación y pedagogia em <strong>Gramsci</strong> (Exposión crítica <strong>de</strong>l pensamiento pedagógico,<br />

documentada con los escritos más significativo <strong>de</strong>l autor). Barcelona, Ediciones Martinez Roca, 191<br />

p.<br />

COUTINHO, C.N. 1999. <strong>Gramsci</strong>, um estudo sobre seu pensamento político. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização<br />

Brasileira, 320 p.<br />

CUNHA, L.A. 1993. Educação e classes sociais no Manifesto <strong>de</strong> 32: perguntas sem respostas. Revista<br />

Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação, 19(2).<br />

CURY, C.R.J. 1978. I<strong>de</strong>ologia e educação brasileira. São Paulo, Cortez & Moraes Ltda.<br />

FAUSTO, B. 1972. A revolução <strong>de</strong> 1930. Historiografia e história. 2ª ed., São Paulo, Editora Brasiliense, 118<br />

p.<br />

FOOT, F. e LEONARDI, V. 1982. História da indústria e do trabalho no Brasil (das origens aos anos vinte).<br />

São Paulo, Global Editora, 415 p.<br />

FURTADO, C. 1969. Formação econômica do Brasil. 9ª ed., São Paulo, 261 p.<br />

GHIRALDELLI JÚNIOR, P. 1991. História da Educação. São Paulo, Cortez. (Coleção Magistério do 2º Grau.<br />

Série Formação do Professor).<br />

GRAMSCI, A. 1974. Teoria. Obras escolhidas. Lisboa, Editorial Estampa.<br />

GRAMSCI, A. 2001. Qua<strong>de</strong>rni <strong>de</strong>l carcere. Torino, Giulio Einaudi Editore. (Prima edizione di<br />

Torino, Nuova Universale Einaudi, 1975, 4 volumi, 3370 p.)<br />

HAMDAN, J.C. 2001. O perfil do docente do ensino Técnico Industrial no Brasil (1930-1945): a formação<br />

“pelo alto”. Belo Horizonte, MG. Dissertação <strong>de</strong> mestrado em Educação. UFMG, 184 p.<br />

MANACORDA, M.A. 1990. O princípio educativo em <strong>Gramsci</strong>. Porto Alegre, Artes Médicas, 288 p.<br />

MONARCHA, C. 1989. A reinvenção da cida<strong>de</strong> e da multidão: Dimensões da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> brasileira: a <strong>Escola</strong><br />

Nova. São Paulo, Cortez: Autores Associados, 151 p.<br />

UNIrevista - Vol. 1, n° 2 : (abril 2006)<br />

9


<strong>Gramsci</strong>, o <strong>neoi<strong>de</strong>alismo</strong> <strong>de</strong> <strong>Croce</strong> e <strong>Gentile</strong> e a escola nova<br />

Juliana C. Hamdan<br />

NAGLE, J. 1974. Educação e socieda<strong>de</strong> na primeira República. São Paulo, EPU/ED. da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />

Paulo, 400 p.<br />

NOGUEIRA, M.A. 1998. As possibilida<strong>de</strong>s da política: Idéias para a reforma <strong>de</strong>mocrática do Estado. São<br />

Paulo, Paz e Terra, 305 p.<br />

SOARES, R.D. 1982. Formação <strong>de</strong> técnicos <strong>de</strong> nível superior no Brasil: do engenheiro <strong>de</strong> operação ao<br />

tecnólogo. Belo Horizonte, MG. Dissertação <strong>de</strong> mestrado em Educação. UFMG, 342 p.<br />

SOARES, R.D. 1992. A concepção gramsciana <strong>de</strong> Estado e o <strong>de</strong>bate sobre a escola. São Paulo, SP. Tese <strong>de</strong><br />

doutorado em Filosofia da Educação. Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> São Paulo, 366 p.<br />

SOARES, R.D. 1999. Ensino Técnico no Brasil: 90 anos das <strong>Escola</strong>s Técnicas Fe<strong>de</strong>rais. Universida<strong>de</strong> e<br />

Socieda<strong>de</strong>, ix(18):108-115.<br />

SOARES, R.D. 2000. <strong>Gramsci</strong>, o Estado e a escola. Ijuí, Editora UNIJUÍ, 488 p.<br />

TEIXEIRA, A.S. 1984. O Manifesto dos Pioneiros da educação nova. Revista Brasileira <strong>de</strong> Estudos<br />

Pedagógicos, 65(150):407-425.<br />

TEIXEIRA, A.S. 1999. Educação no Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editora UFRJ, 467 p.<br />

VALLE, L. do. 1997. A escola e a nação: as origens do projeto pedagógico brasileiro. São Paulo, Editora<br />

Letras & Letras, 144 p.<br />

VIANNA, L.W. 1999. Liberalismo e sindicato no Brasil. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 349 p.<br />

UNIrevista - Vol. 1, n° 2 : (abril 2006)<br />

10

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!