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Paisagens corporais na cultura brasileira - Revista de Ciências ...

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PAISAGENS CORPORAIS NA CULTURA BRASILEIRA<br />

<strong>brasileira</strong> para em seguida voltar os olhos para representações<br />

da “corporalida<strong>de</strong> <strong>brasileira</strong>” produzidas<br />

no campo da <strong>cultura</strong> popular, no contexto urbano do<br />

Brasil da primeira meta<strong>de</strong> do século 20.<br />

O mundo <strong>de</strong> ponta-cabeça<br />

Po<strong>de</strong>-se começar evocando a música Não existe<br />

pecado ao sul do Equador, <strong>de</strong> Chico Buarque & Ruy<br />

Guerra, carro-chefe da peça teatral Calabar: o elogio<br />

da traição, publicada em 1973. Para os propósitos<br />

<strong>de</strong>ste artigo, a referida música <strong>de</strong>sempenha valor<br />

semelhante ao que Roberto DaMatta (1993) <strong>de</strong>fi ne<br />

como “letra <strong>de</strong> referência”, ou seja, ela serve <strong>de</strong> introdução<br />

a um imaginário capaz <strong>de</strong> revelar como os homens<br />

signifi cam através das imagens e das representações<br />

a realida<strong>de</strong> social e suas variações ao longo do<br />

tempo e do espaço como nos mitos. O que signifi ca<br />

dizer que o exercício da imagi<strong>na</strong>ção se mostra em relativa<br />

sintonia com a realida<strong>de</strong> dos fatos etnográfi cos.<br />

Assim, Não existe pecado ao sul do Equador po<strong>de</strong> ser<br />

compreendida como espécie <strong>de</strong> etnografi a, <strong>de</strong> acordo<br />

com a qual, a <strong>de</strong>speito da autoria e do estilo literário,<br />

quem fala é a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> si para si mesma.<br />

Sem per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista o fato <strong>de</strong> Calabar estar associada<br />

alegoricamente a uma situação política no período<br />

da ditadura militar no Brasil, especifi camente, a<br />

música remete a uma tradição que remonta ao “mundo<br />

sem culpa” <strong>de</strong> Memórias <strong>de</strong> um sargento <strong>de</strong> milícias,<br />

segundo a caracterização <strong>de</strong> Antonio Candido 5 .<br />

Como no romance <strong>de</strong> Manuel Antônio <strong>de</strong> Almeida,<br />

também o mundo <strong>de</strong>scrito <strong>na</strong> música se apresenta<br />

“<strong>na</strong> limpi<strong>de</strong>z transparente do seu universo sem culpa,<br />

82<br />

(...) o contorno <strong>de</strong> uma terra sem males<br />

<strong>de</strong>fi nitivos ou irremediáveis, regida por<br />

uma encantadora neutralida<strong>de</strong> moral”,<br />

observa o sociólogo (1988, p. 217).<br />

Ratifi cando o juízo <strong>de</strong> que <strong>na</strong> terra brasilis<br />

a moral é relativa, Gilberto Freyre observa<br />

em sua obra clássica Casa-Gran<strong>de</strong> &<br />

Senzala que “a maior <strong>de</strong>lícia do brasileiro é<br />

conversar safa<strong>de</strong>za” (1987, p. 251). Assim,<br />

Não existe pecado ao sul do Equador é, <strong>na</strong><br />

verda<strong>de</strong>, her<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> uma tradição popular<br />

REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS, FORTALEZA, v. 43, n. 1, jan/jun, 2012, p. 80-93<br />

em que o “baixo corporal” antes <strong>de</strong> ser<br />

si<strong>na</strong>l <strong>de</strong> in<strong>de</strong>cência, imoralida<strong>de</strong>, expressa<br />

uma concepção cosmológica do mundo<br />

profundamente marcada pela experiência<br />

da car<strong>na</strong>valização. Isso fi ca claro com a<br />

análise empreendida por Soihet (1998),<br />

sobre o sentido “subversivo” (ao mesmo<br />

tempo expressão <strong>de</strong> resistência e <strong>de</strong><br />

renovação <strong>cultura</strong>l) do riso, da festa, do<br />

corpo, enfi m, do car<strong>na</strong>val, no universo<br />

das classes populares da socieda<strong>de</strong><br />

carioca, da primeira meta<strong>de</strong> do século<br />

20. Mais do que uma manifestação ritual,<br />

o car<strong>na</strong>val, no sentido amplo do termo,<br />

revela uma cosmovisão que se po<strong>de</strong> dizer<br />

é a expressão do “po<strong>de</strong>r dos fracos”. Nos<br />

termos <strong>de</strong> Bakhtin, já no imaginário<br />

popular medieval e re<strong>na</strong>scentista,<br />

O car<strong>na</strong>val (repetimos, <strong>na</strong> sua acepção<br />

mais ampla) liberava a consciência do<br />

domínio da concepção ofi cial, permitia<br />

lançar um olhar novo sobre o mundo;<br />

um olhar <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> medo, <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong>,<br />

perfeitamente crítico, mas ao mesmo<br />

tempo positivo e não niilista, pois <strong>de</strong>scobria<br />

o princípio material e generoso do mundo,<br />

o <strong>de</strong>vir e a mudança, a força invencível e<br />

o triunfo eterno do novo, a imortalida<strong>de</strong><br />

do povo. Tal era o po<strong>de</strong>roso apoio que<br />

permitia atacar o século gótico e colocar<br />

os fundamentos da nova concepção do<br />

mundo. É isso que nós enten<strong>de</strong>mos<br />

como car<strong>na</strong>valização do mundo, isto é, a<br />

libertação total da serieda<strong>de</strong> gótica, a fi m<br />

<strong>de</strong> abrir o caminho a uma serieda<strong>de</strong> nova,<br />

livre e lúcida (BAKHTIN, 1987, p. 239) 6 .<br />

Des<strong>de</strong> fi ns dos anos 1960, o mundo oci<strong>de</strong>ntal viu<br />

surgir um conjunto <strong>de</strong> experiências “revolucionárias”<br />

sobre as representações e práticas <strong>corporais</strong> que mudariam<br />

o seu signifi cado e o seu entendimento atual.<br />

A começar pelo próprio “objeto” corpo que, adverte<br />

Le Breton, passou a ser visto como uma “linha <strong>de</strong><br />

pesquisa e não uma realida<strong>de</strong> em si” (2007, p. 33).<br />

Em outras palavras, é quando então se <strong>de</strong>senvolve<br />

uma sociologia e/ou antropologia do corpo <strong>de</strong> maneira<br />

sistemática, explícita e profunda. Paralelamente<br />

a isso, também os estudos sobre a <strong>cultura</strong> (em

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