Quanto Mais Justiça, Mais Direito - Antonio Santos Carvalho
Quanto Mais Justiça, Mais Direito - Antonio Santos Carvalho
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<strong>Quanto</strong> <strong>Quanto</strong> <strong>Mais</strong> <strong>Mais</strong> <strong>Justiça</strong>, <strong>Justiça</strong>, <strong>Mais</strong> <strong>Mais</strong> D<strong>Direito</strong><br />
D <strong>Direito</strong><br />
ireito! ireito<br />
A “crise do juiz” tem a ver com a necessidade política de não se pôr em causa a<br />
<strong>Justiça</strong> apesar da evidência de que não há justiça humana satisfatória, pelo<br />
menos de ponto de vista da totalidade dos que a reclamam.<br />
Ora a questão, posta deste modo, tende a agravar-se nas sociedades<br />
contemporâneas em que o investimento narcísico maximaliza qualquer<br />
gratificação que seja, dissolvendo a solidariedade, cimento do real.<br />
Não admira, pois, que em relação aos juizes, em Portugal, se diga deles anjos e<br />
demónios, simultaneamente, segundo o êxito das causas;<br />
Que eles próprios exprimam as perplexidades de um direito que tarda a ser<br />
entendido como critério de regulação equitativa do caso concreto perante<br />
normas que não têm existência real senão pela obra da interpretação com<br />
referente na Liberdade e Igualdade da pauta constitucional.<br />
Este segundo tom dos efeitos da crise acaba por se a perda de toque do<br />
diagnóstico da actual conjuntura. Na verdade, ainda se disputam duas<br />
concepções do direito, uma que não deixa de remeter para uma racionalidade<br />
jurídica que espera a formalização matemática, tributária de uma lógica<br />
subsuntiva estrita; outra que abre ao plural, ao dissenso, à complexidade,<br />
aceitando que a controvérsia jurídica é o quadro e o fio condutor da decisão<br />
com vista a estabelecer um final acordo de opiniões.<br />
Ao primeiro entendimento pode servir um simples modelo de juiz/funcionário,<br />
já não ao segundo que nos impõe o juiz/activo no sentido de a partir de uma<br />
visão reformadora poder interpretar a realidade da sua época e conferir às<br />
decisões um escopo construtivo e modernizador, orientando-as para a<br />
consumação dos valores essenciais em vigor.<br />
Se no primeiro caso a legitimidade do juiz advém da formal vinculação à lei, no<br />
segundo terá de derivar da fidelidade à tábua dos valores constitucionais e aos<br />
procedimentos que remetem para o público exercício da razão jurídica, em<br />
democracia.<br />
O problema que é lícito enunciar é, então, o seguinte: que modelo de controlo<br />
é viável em contraposição ao modelo tecnocrático (e/ou corporativo) de<br />
efectivação da responsabilidade que quadra à lógica muito poucas vezes<br />
coincidente com os interesses da sociedade civil?<br />
Uns pretendem deixar livre curso à opinião pública ora desinformada, ora<br />
apaixonada; outros criar mecanismos de constrangimento mais ou menos<br />
influenciados pela estratégia política ou sindical e/ou corporativa do momento<br />
mas muito menos são aqueles que reclamam para juiz a liberdade de fazer a<br />
experiência da precaridade dos seus julgamentos numa artesanía do justo que<br />
torna actor responsável nos conflitos, principalmente os mais agudos.<br />
Nada estando decidido, terá a Magistratura judicial dado resposta cabal a esta<br />
crise, sucintamente delineada? Cremos que não.<br />
1
O perfil constitucional do governo da magistratura (que mostrou instabilidade<br />
sintomática na Revisões de 1982 e 89) não basta para uma administração da<br />
justiça democrática ou dito de outro modo: submeterem-se os juizes ao<br />
imperativo dum governo do povo, pelo povo e para o povo implica que o<br />
Conselho Superior da Magistratura dê corpo em si mesmo à realidade desta<br />
directiva.<br />
O que não acontece, com certeza, se se deixa contaminar pelo vírus da autarcia,<br />
da opinião de via única, das lógicas estratégicas da política; se privilegia a defesa<br />
corporativa ou se impões um modelo tecnocrático para o ofício de juiz.<br />
O que não acontece, em suma, se a magistratura se comporta como uma<br />
burocracia relativamente autonomizada, segundo os fins e os apetites de<br />
qualquer tecno-estrutura moderna.<br />
Ora assiste-se, hoje, a uma acentuada rigidez de intervenção no debate público<br />
sobre a <strong>Justiça</strong>, sintoma que pode ser de submissão a um modelo corporativo<br />
ou tecnocrático.<br />
Na vida interna, o debate tem-se eclipsado e os desígnios performativos<br />
instalam-se cada vez mais.<br />
Tende a acentuar-se a suspeita de dirigismo, de hierarquização discreta em<br />
detrimento dum governo transparente da magistratura.<br />
A preocupação pelas concretizações constitucionais mais abrangentes,<br />
nomeadamente com a segunda geração dos direitos humanos, deixou o<br />
discurso dos responsáveis.<br />
De serviço republicano, a Magistratura Judicial metamorfoseou-se em elite<br />
separada, isolando-se do processo de modernização da vida pública.<br />
Pode aceitar-se a metáfora do crepúsculo dos juizes, não obstante certos<br />
protagonismos mediáticos centrados, inevitavelmente, na imagem narcísica.<br />
Não é, portanto, de estranhar que a comunidade dos juristas se fragmente e<br />
dissolva. Irresistivelmente, a obra dos juizes deixa de conformar-se com a<br />
dialogia da justiça e passa a ser produção em série, visando o êxito de um<br />
empreendimento majestático que as profissões jurídicas, se ao serviço do<br />
cidadão, não podem aceitar.<br />
Ora, quanto mais justiça, mais direito, convindo àquela, porém “[um]engenho<br />
que falta mais fecundo de harmonizar as partes dissonantes”.<br />
Por isso mesmo, apelamos à constituição dum forte movimento, entre juizes,<br />
que vise:<br />
Recusar qualquer compromisso de carreira;<br />
Recusar qualquer adesão a tecnicismos de “engenharia social”;<br />
2
Pelo empenhamento numa “justiça de rosto humano”;<br />
Longe de quaisquer “situacionismos” político;<br />
Por uma artesania do justo, na transparência da discussão democrática,<br />
sem limites e condicionamentos;<br />
Que não prescinda da solidariedade militante e primeira com todos os<br />
juristas, sem discriminações;<br />
Que exija, no governo interno, a aproximação dos eleitos aos eleitores, e<br />
às aspirações do povo.<br />
Estamos convencidos que tudo isto tem faltado numa orientação da<br />
Magistratura que tem privilegiado o curto prazo da guerrilha institucional, dos<br />
efeitos demagógicos, do caciquismo interior, sem preocupação verdadeira pela<br />
Liberdade e Igualdade republicanas, abandonando a “Luta pelo <strong>Direito</strong>”.<br />
E que desembocará, sem remissão, na derrota da liberdade do julgamento, da<br />
independência substancial, pela resignação duma carreira técnica de<br />
funcionários mais ou menos bem pagos.<br />
Enquanto todos esquecemos que a “<strong>Justiça</strong> continua a ser uma exigência<br />
espiritual que, tendo sempre de fazer apelo ao poder, está também sempre<br />
contra ele porque é contrário à natureza do poder satisfazê-la”.<br />
Concluindo:<br />
-Tendo-se em consideração que os juizes togados só serão titulares do<br />
órgão de soberania Tribunais enquanto a maioria do povo assim o<br />
decidir;<br />
-E que será fácil a qualquer governo funcionalizar os juizes perante o<br />
desprestígio da magistratura;<br />
-Requer-se uma rigorosa independência do Conselho Superior da<br />
Magistratura quer perante os governos quer perante as tendências<br />
sindicais;<br />
-Que o Conselho Superior da Magistratura actue sempre de forma<br />
institucional não adoptando qualquer modalidade de confrontação<br />
sindical (e/ou corporativa);<br />
-Que recuse dar voz, directa ou indirectamente, a qualquer corrente que<br />
vise a funcionalização dos juízes;<br />
-Que não se deixe avassalar por preconceitos políticos ou sindicais<br />
estreitos e restritos que não representarão nunca a magistratura;<br />
3
-Que saiba distinguir os interesses sindicais dos juizes os quais não<br />
podem influencia-lo, dos interesses de servidores do órgão de soberania<br />
tribunais que lhe cumpre tutelar e defender;<br />
-Para que a magistratura não seja arrastada a uma situação de<br />
subalternidade de patrão/empregado, afastando-se da paridade com os<br />
titulares dos outros órgão de soberania;<br />
-E para que as grandes decisões não venham a passar-lhe ao lado<br />
(ficando o poder judicial de fora delas) enquanto se assista a<br />
afrontamentos, conflitos e perdas de energia e engenho relativas a<br />
pequenas coisas que o futuro se encarregará de demonstrar irrelevantes<br />
ou mesquinhas;<br />
-Tudo isto em ordem ao assumir duma política de Estado virada para a<br />
defesa e concretização dos valores constitucionais.<br />
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