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os herdeiros do milenarismo do Contestado Celso Vianna ... - USP

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como uma honra devida a sua condição”<br />

(Pereira de Queiroz, 1957, p. 187).<br />

Para<strong>do</strong>xalmente, se a igualdade era uma<br />

ideia essencial n<strong>os</strong> redut<strong>os</strong>, a autoridade es-<br />

piritual primava sobre a autoridade material:<br />

<strong>os</strong> chefes “sagrad<strong>os</strong>” eram absolut<strong>os</strong>, suas<br />

ordens cegamente obedecidas. Os “chefes<br />

sagrad<strong>os</strong>” e as “virgens” tinham sua au-<br />

toridade vinda <strong>do</strong> monge J<strong>os</strong>é Maria, que<br />

continuava a comandar a irmandade. Eles<br />

eram <strong>os</strong> intermediári<strong>os</strong> entre a irmandade<br />

e o sagra<strong>do</strong> representa<strong>do</strong> pelo monge. A<br />

organização das vilas santas define-se<br />

por uma hierarquia tornada legítima pel<strong>os</strong><br />

poderes sobrenaturais d<strong>os</strong> chefes, pela<br />

bravura demonstrada n<strong>os</strong> combates e pelo<br />

desempenho organizatório. Compreende-se<br />

“como a fraternidade básica, apregoada e<br />

praticada, podia coexistir com uma diferen-<br />

ciação interna”. Desse mo<strong>do</strong>, a fé comum,<br />

a caridade e a esperança eram <strong>os</strong> mesm<strong>os</strong><br />

valores que davam fundamento a uma orde-<br />

nação hierárquica: “Por isso, pode-se dizer<br />

que o igualitarismo significou a supressão<br />

d<strong>os</strong> critéri<strong>os</strong> pretérit<strong>os</strong> cujo lugar foi toma<strong>do</strong><br />

pelo carisma religi<strong>os</strong>o – a fonte de força e,<br />

pela força, sinal de escolha divina. Anulam-<br />

se, ou, pelo men<strong>os</strong>, passam para segun<strong>do</strong><br />

plano, as diferenças sociais e econômicas”<br />

(Monteiro, 1974, p. 131).<br />

A prática das chamadas formas se rea-<br />

lizava duas vezes por dia, pela manhã e ao<br />

final <strong>do</strong> dia: tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> fiéis se reuniam no<br />

quadro santo, uma grande praça, em frente<br />

à capela de cada um d<strong>os</strong> redut<strong>os</strong>. Em cada<br />

um d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> dessa praça, um cruzeiro:<br />

após as preces, as ordens d<strong>os</strong> comandan-<br />

tes e, quan<strong>do</strong> f<strong>os</strong>se o caso, <strong>os</strong> castig<strong>os</strong> a<strong>os</strong><br />

infratores, tod<strong>os</strong> percorriam em procissão<br />

<strong>os</strong> limites <strong>do</strong> quadro, beijan<strong>do</strong> <strong>os</strong> quatro<br />

cruzeir<strong>os</strong>, delimitan<strong>do</strong> o perímetro de um<br />

espaço sagra<strong>do</strong>. O comandante da forma,<br />

agitan<strong>do</strong> a bandeira branca, anunciava o<br />

fim da cerimônia. As duas formas somadas<br />

tomavam um significativo tempo <strong>do</strong> dia d<strong>os</strong><br />

fiéis n<strong>os</strong> redut<strong>os</strong>.<br />

“A forma foi uma prática usual em to-<br />

d<strong>os</strong> <strong>os</strong> redut<strong>os</strong>, e nas diferentes fases <strong>do</strong><br />

movimento. Pon<strong>do</strong> de la<strong>do</strong> seu significa<strong>do</strong><br />

instrumental, bastante evidente, é-se leva<strong>do</strong><br />

a pensar que, de mo<strong>do</strong> ritualiza<strong>do</strong> e dramá-<br />

tico, exprimia a necessidade premente de<br />

definir limites, de dar unidade à experiência<br />

através da objetivação concreta de uma<br />

Ordem que, através dela, pen<strong>os</strong>amente,<br />

afirmava-se e reafirmava-se. Nesses mo-<br />

ment<strong>os</strong> a unidade espiritual da irmandade<br />

era reforçada. Ingressan<strong>do</strong> numa esfera onde<br />

a proximidade com relação ao sagra<strong>do</strong> era<br />

máxima, reconstituía-se para a dispersão<br />

p<strong>os</strong>terior nas atividades ligadas ao quo-<br />

tidiano ou nas missões da Guerra Santa.<br />

Na forma reuniam-se expiação, exclusão,<br />

orientação e reorientação. Não se tratava,<br />

porém, da afirmação de uma Ordem con-<br />

quistada: antes, da reiteração diária de sua<br />

própria constituição. Se em Taquaruçu ela<br />

havia si<strong>do</strong> refundada, exprimia-se agora o<br />

drama renova<strong>do</strong> de sua edificação. Era desse<br />

mo<strong>do</strong> que, no plano ritual, a busca da Or-<br />

dem encontrava sua expressão” (Monteiro,<br />

1974, p. 129).<br />

Acreditam<strong>os</strong>, portanto, que a ciência<br />

antropológica tem uma importante contri-<br />

buição a dar na compreensão d<strong>os</strong> fenôme-<br />

n<strong>os</strong> religi<strong>os</strong><strong>os</strong> chamad<strong>os</strong> de “rústic<strong>os</strong>”. O<br />

deslocamento <strong>do</strong> olhar preconiza<strong>do</strong> por essa<br />

ciência permite perceber que a racionalidade<br />

esclarecida e o utilitarismo são maneiras<br />

pelas quais a sociedade ocidental interpreta<br />

o mun<strong>do</strong>; são, portanto, explicações de uma<br />

determinada forma cultural. O processo<br />

histórico é, assim, culturalmente significa-<br />

<strong>do</strong>. Marshall Sahlins (1995, p. 11) afirma<br />

que ordens culturais diversas têm mod<strong>os</strong><br />

própri<strong>os</strong> de produção histórica: culturas<br />

diferentes, historicidades diferentes. Cul-<br />

turas diferentes reagem de forma diferente<br />

a um evento e fazem dialogar o contexto<br />

imediato com estruturas culturais anterio-<br />

res, ou seja, repõem estruturas passadas na<br />

orquestração <strong>do</strong> presente. Romper, portanto,<br />

com a visão dicotômica que opõe história e<br />

estrutura permitirá restituir a<strong>os</strong> sertanej<strong>os</strong><br />

da Guerra <strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong> a condição de<br />

legítim<strong>os</strong> agentes históric<strong>os</strong>.<br />

Enfim, não se trata de procurar, nesse<br />

movimento, por detrás das construções<br />

imaginárias, uma realidade despojada das<br />

REVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.82, p. 88-103, junho/ag<strong>os</strong>to 2009 101

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