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Tudo isso junto de uma vez só: - teses.musicodobra...

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Lúcia Pompeu <strong>de</strong> Freitas Campos<br />

<strong>Tudo</strong> <strong>isso</strong> <strong>junto</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> <strong>só</strong>:<br />

o choro, o forró e as bandas <strong>de</strong> pífanos na música <strong>de</strong> Hermeto Pascoal<br />

Dissertação apresentada ao Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />

em Música da Escola <strong>de</strong> Música da<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais, como<br />

requisito parcial à obtenção do título <strong>de</strong> Mestre<br />

em Música.<br />

Linha <strong>de</strong> pesquisa: Estudo das Práticas<br />

Musicais<br />

Orientador: Carlos Vicente <strong>de</strong> Lima Palombini<br />

Belo Horizonte<br />

Escola <strong>de</strong> Música da UFMG<br />

2006


C198t Campos, Lúcia Pompeu <strong>de</strong> Freitas<br />

<strong>Tudo</strong> <strong>isso</strong> <strong>junto</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> <strong>só</strong>: o choro, o forró e as<br />

bandas <strong>de</strong> pífanos na música <strong>de</strong> Hermeto Pascoal /<br />

Lúcia Pompeu <strong>de</strong> Freitas Campos. –2006.<br />

143 fls. ; il.<br />

Bibliografia: f.137-141<br />

Dissertação (mestrado) – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />

<strong>de</strong> Minas Gerais, Escola <strong>de</strong> Música.<br />

Orientador: Prof. Dr. Carlos Palombini<br />

1. Música popular - Brasil 2. Música instrumental<br />

3. Pascoal, Hermeto 4. Ritmos brasileiros<br />

2


Aos instrumentistas brasileiros, das festas <strong>de</strong> rua, das bandas às rodas <strong>de</strong> choro.<br />

A Hermeto Pascoal e sua escola <strong>de</strong> músicos.<br />

3


Agra<strong>de</strong>cimentos<br />

Agra<strong>de</strong>ço aos meus pais, Regina e Léo, pelo apoio amoroso e verda<strong>de</strong>iro e pela leitura<br />

cuidadosa dos textos.<br />

Ao Marcelo pelo carinho e bom humor, pelo arranjo do Nazareth e pela ajuda na edição das<br />

partituras.<br />

Ao Prof. Carlos Palombini pela confiança e pela orientação.<br />

Aos professores Carlos Sandroni, Glaura Lucas e Heloísa Feichas, da banca examinadora.<br />

À Edilene, da secretaria da pós-graduação, à Eliana, da seção <strong>de</strong> ensino, pela atenção <strong>de</strong><br />

sempre.<br />

Ao meu irmão Sérgio, à vovó Inah, à Cacau, aos meus amigos e familiares, nessa fase “tudo<br />

<strong>junto</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> <strong>só</strong>”.<br />

À memória da vó Eunice, pelo piano e lembranças da bisavó Aída.<br />

Aos amigos do Corta Jaca, do Cataventoré, do Grupo <strong>de</strong> Percussão e da Orquestra. Em<br />

especial, ao Rafa Martini e ao Marcelo, por terem tocado comigo o “choro em 7”; ao Felipe<br />

José Abreu, pelas informações sobre a Itiberê Orquestra Família.<br />

À Ana Cláudia Assis, ao Rubner <strong>de</strong> Abreu e à Rosângela <strong>de</strong> Tugny, pela indicação <strong>de</strong><br />

bibliografia; ao Fernando Rocha, pelo arranjo <strong>de</strong> vibrafone; ao Marcos Filho, pelo auxílio<br />

com o computador.<br />

Aos entrevistados – Hermeto Pascoal, Marcio Bahia, Seu João do Pife, Nenê, Pernambuco<br />

do Pan<strong>de</strong>iro, Mauro Rodrigues – pela disponibilida<strong>de</strong> e atenção.<br />

A todos, pelas conversas inspiradoras <strong>de</strong> idéias.<br />

4


Resumo<br />

Seguindo a trajetória musical <strong>de</strong> Hermeto Pascoal, os trios <strong>de</strong> forró, os regionais <strong>de</strong> choro e<br />

as bandas <strong>de</strong> pífanos foram aqui relacionados <strong>de</strong> modo a entendê-los como formações<br />

instrumentais tradicionais no Brasil, pelas quais passaram gêneros musicais diversos. Nesse<br />

percurso, <strong>de</strong>scobrimos a orquestra <strong>de</strong> Guerra Peixe, em Recife, e o regional <strong>de</strong> Pernambuco<br />

do Pan<strong>de</strong>iro, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, como escolas <strong>de</strong> Hermeto nos arranjos, no choro e no forró.<br />

O “paradigma do tresillo” foi referência para, num primeiro momento, apreen<strong>de</strong>r a rítmica<br />

tradicional do choro e do forró e, num segundo momento, incorporá-los à multiplicação e<br />

sobreposição <strong>de</strong> pulsações proposta pela rítmica <strong>de</strong> Hermeto, que se baseia em jogos e<br />

brinca<strong>de</strong>iras realizadas tanto em composições como em improvisos. As brinca<strong>de</strong>iras com<br />

sons <strong>de</strong> animais relacionam-se às dramatizações musicais das bandas <strong>de</strong> pífano. Ao moldar<br />

tantas experiências segundo <strong>uma</strong> intenção musical própria, a música <strong>de</strong>senvolvida por<br />

Hermeto permite questionar categorias musicais estabelecidas – música popular, folclórica,<br />

erudita – tanto por apresentar elementos <strong>de</strong> todas essas categorias como também por não se<br />

ater a nenh<strong>uma</strong> <strong>de</strong>las. O que Hermeto propõe é <strong>uma</strong> experiência musical integradora a<br />

partir <strong>de</strong> <strong>uma</strong> escuta ampla e irrestrita que realiza a mistura <strong>de</strong>ntro do “tacho <strong>de</strong> sons”.<br />

5


Abstract<br />

Following Hermeto Pascoal’s musical path, the “forró” trios, the “choro” regional groups<br />

and the “pífano” bands were here related so as to un<strong>de</strong>rstand them as traditional<br />

instrumental formations in Brazil, through which passed diversified musical genres. In this<br />

way, we found Guerra Peixe’s orchestra, in Recife, and Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro’s regional<br />

group, in Rio <strong>de</strong> Janeiro, as Hermeto’s schools for the arrangements in “choro” and in<br />

“forró”. The “tresillo paradigm” was, in the first moment, the reference for capturing the<br />

traditional rhythmics of these genres and, in a second moment, for incorporating them to<br />

the multiplication and superposition of pulses proposed by Hermeto’s rythmics, based on<br />

games and plays present both in his compositions and improvisations. The plays ma<strong>de</strong> with<br />

animal sounds are related to the musical dramatizations of the “pífano” bands. Shaping so<br />

many experiences un<strong>de</strong>r a peculiar musical <strong>de</strong>sign, the music <strong>de</strong>veloped by Hermeto puts<br />

into question established musical categories – popular, traditional, art music – for<br />

presenting features belonging to all these categories and for not relying on any of them.<br />

Hermeto’s proposal is an integrative musical experience drawing on a wi<strong>de</strong> and unrestricted<br />

listening that makes a blend within the “sound mixing pot”.<br />

6


Sumário<br />

Introdução........................................................................................................4<br />

1. Conceitos: se não tê-los, como sabê-los?.............................................7<br />

1.1. Música instrumental?........................................................................7<br />

1.2. Música popular?................................................................................9<br />

1ª parte > O OVO.....................................................................................12<br />

2. Festas e brinca<strong>de</strong>iras..............................................................................13<br />

2.1. Bailes Populares..............................................................................15<br />

2.2. Segura a porca!................................................................................17<br />

2.3. Um pouco <strong>de</strong> rítmica.......................................................................20<br />

3. Forró Brasil...............................................................................................25<br />

3.1. Luiz Gonzaga: do choro ao baião...................................................25<br />

3.2. Forró não é <strong>só</strong> aquilo......................................................................28<br />

3.3. O zabumba do forró........................................................................29<br />

4. Anarriê.......................................................................................................39<br />

4.1. O baile que era choro que hoje é forró... ........................................39<br />

4.2. “As nossas festas”: origens do choro carioca..................................42<br />

5. Da roda aos regionais.............................................................................46<br />

5.1. O choro faz escola...........................................................................46<br />

5.2. Inventando a roda............................................................................47<br />

7


5.3. Oficina <strong>de</strong> composição....................................................................49<br />

5.4. Família choro: gêneros....................................................................52<br />

5.5. Regionais.........................................................................................61<br />

6. Zabumbas ou Bandas <strong>de</strong> Pífanos..........................................................65<br />

6.1. Guerra-Peixe: o “rei da pesquisa”...................................................65<br />

6.2. Repertório <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras..............................................................67<br />

2ª parte > TACHO...................................................................................74<br />

7. Escuta Hermeto........................................................................................75<br />

7.1. Da paisagem sonora à linguagem harmônica..................................75<br />

7.2. Viva o som sempre..........................................................................79<br />

7.3. Teoria musical feita em casa...........................................................85<br />

8. Hermeto do choro ao forró....................................................................89<br />

8.1. Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro................................................................89<br />

8.2. Batucando no morro ou no arraial?.................................................91<br />

9. Choros e arranjos <strong>de</strong> Hermeto..............................................................98<br />

9.1. Salve Copinha, Abel, Pixinguinha..................................................98<br />

9.2. Um chorinho em sete....................................................................101<br />

10. Rítmica brasileira via Hermeto Pascoal.........................................107<br />

10.1. Bateria brasileira?.......................................................................107<br />

10.2. Coalhada <strong>de</strong> ritmos......................................................................110<br />

10.3. Aqui não é baile..........................................................................112<br />

8


10.4. Siga o chefe.................................................................................114<br />

10.5. Mestre Radamés..........................................................................116<br />

11. Escola Jabour.......................................................................................127<br />

11.1. Só não toca quem não quer?.......................................................127<br />

11.2. 21 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1997....................................................................130<br />

Conclusões...................................................................................................133<br />

Referências..................................................................................................137<br />

Repertório do CD (anexo 1)...................................................................142<br />

Créditos do DVD (anexo 2).....................................................................143<br />

9


Introdução<br />

Meu primeiro intuito com este trabalho foi me aproximar da música <strong>de</strong> Hermeto<br />

Pascoal, estabelecer relações para participar <strong>de</strong> sua criativida<strong>de</strong>, afinar minha percepção<br />

para distinguir suas cores e ritmos. No entanto, é preciso palavras, palavras carregadas <strong>de</strong><br />

história. Aliado à percepção da música, foi necessário o entendimento da história.<br />

De on<strong>de</strong> surgiu essa idéia?<br />

Durante os anos 1990, assisti a muitos shows <strong>de</strong> Hermeto Pascoal e seu grupo pelas<br />

redon<strong>de</strong>zas <strong>de</strong> Belo Horizonte: Sabará, Conceição do Mato Dentro, Diamantina, Ouro<br />

Preto... até Friburgo, Niterói e Rio <strong>de</strong> Janeiro. Além <strong>de</strong> ter ficado fascinada pela música <strong>de</strong><br />

Hermeto, ela me abriu novo leque <strong>de</strong> interesses pelos ritmos e gêneros da música brasileira,<br />

que a partir <strong>de</strong> então fui buscando conhecer.<br />

Hermeto abriu minha escuta para <strong>uma</strong> cultura aparentemente <strong>de</strong>sconhecida pela<br />

história da música que estudamos e apenas <strong>de</strong>corativa nos meios <strong>de</strong> comunicação. Foi sua<br />

música que me fez querer conhecer a música das bandas <strong>de</strong> pífanos, os maracatus, os<br />

choros, enfim, a música presente na cultura popular brasileira, primeiramente a nor<strong>de</strong>stina.<br />

E, quanto mais conhecia esses universos, mais gostava <strong>de</strong> seus arranjos <strong>de</strong> flautas, suas<br />

brinca<strong>de</strong>iras com sons <strong>de</strong> animais, suas misturas <strong>de</strong> ritmos.<br />

Atualmente, não por coincidência, participo <strong>de</strong> um grupo musical diretamente<br />

ligado ao tema <strong>de</strong>sta pesquisa: o Corta Jaca, <strong>de</strong>dicado ao choro e outros gêneros afins como<br />

schottisch, samba-choro, valsa, maxixe e polca. Participei também, durante quatro anos, da<br />

Banda <strong>de</strong> Pífanos Cataventoré, on<strong>de</strong> estudamos alguns gêneros próprios das bandas <strong>de</strong><br />

pífanos do nor<strong>de</strong>ste brasileiro, como o caboré, a pipoca, a briga do cachorro com a onça,<br />

<strong>de</strong>ntre outros.<br />

Essa minha experiência pessoal e tantas investigações a serem feitas e registradas<br />

me estimularam a propor este projeto. A investigação da trajetória <strong>de</strong> Hermeto Pascoal,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua infância em Alagoas até sua atuação profissional nos regionais <strong>de</strong> Recife e Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, evi<strong>de</strong>ncia o contato do músico com inúmeros ritmos e gêneros da música popular<br />

brasileira, que ele não <strong>só</strong> incorporou como também foi transformando ao longo <strong>de</strong> sua<br />

carreira.<br />

10


O foco <strong>de</strong>sta pesquisa inci<strong>de</strong> particularmente sobre três formações instrumentais –<br />

os regionais <strong>de</strong> choro, as bandas <strong>de</strong> pífano e os trios <strong>de</strong> forró – cuja importância para a<br />

formação musical <strong>de</strong> Hermeto pretendo <strong>de</strong>monstrar, investigando as relações do músico<br />

com essas tradições musicais e a forma como ele as incorporou em sua obra.<br />

Situando este trabalho em um contexto científico, <strong>de</strong>parei-me com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

interpretar situações, discursos e peças musicais e, como faço agora, escrever sobre eles.<br />

Nesta tarefa, a abordagem semiótica proposta por Clifford Geertz no livro A interpretação<br />

das culturas (Geertz 1989) norteou toda a pesquisa.<br />

Geertz enten<strong>de</strong> cultura como <strong>uma</strong> construção intersubjetiva constante e dinâmica ou<br />

um con<strong>junto</strong> <strong>de</strong> significados permanentemente construídos e reconstruídos. Seu método,<br />

<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>nsa, busca <strong>de</strong>screver o processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> <strong>uma</strong> cultura a partir <strong>de</strong> vários<br />

fios, ou seja, aspectos diversos que se entrelaçam até a construção <strong>de</strong> um significado. Se o<br />

que proponho é um mergulho na música <strong>de</strong> Hermeto Pascoal no que concerne a sua relação<br />

com alg<strong>uma</strong>s tradições musicais brasileiras, estou falando <strong>de</strong> cultura ou, como enten<strong>de</strong><br />

Geertz, estou fazendo cultura. Sobre esse processo, ele diz:<br />

A análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda<br />

menos completa. É <strong>uma</strong> ciência estranha cujas afirmativas mais marcantes são as que têm a<br />

base mais trêmula, na qual chegar a qualquer lugar com um assunto enfocado é intensificar<br />

a suspeita, a sua própria e a dos outros, <strong>de</strong> que você não o está encarando <strong>de</strong> maneira<br />

correta. (Geertz 1989: 39)<br />

Trata-se, portanto, <strong>de</strong> um processo dialético, <strong>uma</strong> tentativa constante <strong>de</strong> interpretar,<br />

contando <strong>uma</strong> história que po<strong>de</strong> sempre ser contestada. Meu objetivo aqui, concordando<br />

com Geertz, é menos <strong>uma</strong> “perfeição <strong>de</strong> consenso” do que um “refinamento do <strong>de</strong>bate” em<br />

torno da cultura brasileira, mais especificamente, da música brasileira. Essa abordagem<br />

interpretativa me interessa porque enfatiza o caráter vulnerável da análise e da história<br />

contada, que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> boa argumentação e imaginação. O <strong>de</strong>safio do pesquisador é<br />

justamente esse: refletir sobre seu contexto <strong>de</strong> observação e assumir sua posição, <strong>de</strong> tal<br />

forma que sua parcialida<strong>de</strong> torne-se não um <strong>de</strong>feito, mas um elemento criativo a mais,<br />

contribuindo para a relevância do estudo.<br />

11


Optei também pela observação-participante na medida em que há <strong>uma</strong> imersão no<br />

universo do choro, das bandas <strong>de</strong> pífano e da música <strong>de</strong> Hermeto. Des<strong>de</strong> 2000, mantive um<br />

contato crescente, sob forma <strong>de</strong> aulas, oficinas e entrevistas, com os músicos que tocam e<br />

tocaram com Hermeto Pascoal. Em 2005, tive a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conversar com o próprio<br />

Hermeto. Em 2006, fiz <strong>uma</strong> entrevista com Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro, diretor do regional<br />

que Hermeto participou nos anos 1950, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Participo atualmente, como<br />

percussionista, <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> choro, rodas <strong>de</strong> choro, <strong>uma</strong> orquestra <strong>de</strong>dicada à música<br />

instrumental brasileira. Além d<strong>isso</strong>, nesse meio tempo, fiz pesquisas <strong>junto</strong> a duas bandas <strong>de</strong><br />

pífano, um grupo <strong>de</strong> maracatu e participei dos festivais <strong>de</strong> choro realizados pela Escola<br />

Portátil <strong>de</strong> Música, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, sob coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Maurício Carrilho e Luciana<br />

Rabello. Nesses festivais, tomei parte nas oficinas <strong>de</strong> percussão, pan<strong>de</strong>iro, composição e<br />

história do choro e dos <strong>de</strong>mais gêneros que compõem este universo, um aprendizado<br />

intenso ao qual farei referências ao longo do texto.<br />

Optei por utilizar o primeiro nome no tratamento da maioria das pessoas envolvidas<br />

na pesquisa, o que se justifica pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> imersão nas observações e entrevistas,<br />

nas quais a formalida<strong>de</strong> seria excessiva. Muitos dos músicos aos quais farei referência se<br />

apresentam e assinam seus trabalhos com o nome artístico, que também será aqui<br />

priorizado. O tom informal do texto <strong>de</strong>ve-se muitas <strong>vez</strong>es à permeabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas<br />

influências. Durante todo o estudo, tive o objetivo <strong>de</strong>: “Tentar manter a análise das formas<br />

simbólicas tão estreitamente ligadas quanto possível aos acontecimentos sociais e ocasiões<br />

concretas” (Geertz 1989: 40).<br />

12


1. Conceitos: se não tê-los, como sabê-los?<br />

Música brasileira, música popular, música erudita, música culta, música <strong>de</strong><br />

concerto, música folclórica, música tradicional, música instrumental, música concreta,<br />

música experimental, música universal: música?<br />

A música existe enquanto som em <strong>de</strong>terminado contexto para <strong>uma</strong> escuta<br />

<strong>de</strong>terminada; existir enquanto “música popular” ou qualquer outra categoria, é outra<br />

história, é outra invenção. Assim como estou aqui inventando o “personagem” Hermeto<br />

Pascoal nesse contexto acadêmico e reinventando tantos outros conceitos relacionados:<br />

choro, forró, etc. Quando vou procurar um CD <strong>de</strong> Hermeto Pascoal (que raramente consigo<br />

achar) n<strong>uma</strong> loja, normalmente procuro n<strong>uma</strong> categoria chamada “instrumental brasileiro”.<br />

No entanto, essa categoria não existe na Enciclopédia da música brasileira: popular,<br />

erudita e folclórica (2003). Parece que “música instrumental” existe enquanto categoria<br />

comercial (nem tão comercial assim), mas não como categoria intelectual.<br />

1.1. Música instrumental?<br />

De fato, muito pouco foi escrito sobre esse “instrumental brasileiro” ou “música<br />

instrumental brasileira”, <strong>de</strong>finições em si bastante problemáticas. Toda música requer<br />

instrumentos, convencionais ou não, po<strong>de</strong>ndo-se enten<strong>de</strong>r a voz e o corpo também como<br />

instrumentos. Em geral, enten<strong>de</strong>-se por instrumental a música cuja elaboração in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um texto verbal escrito, um poema ou letra <strong>de</strong> música; brasileira porque foi feita por um<br />

artista brasileiro. Mas não é tão simples assim.<br />

Outro pesquisador que recentemente <strong>de</strong>bruçou-se sobre a criação musical <strong>de</strong><br />

Hermeto, Luiz da Costa Lima Neto, cujo estudo em muito ajudou minha pesquisa, admite:<br />

“Questionando ao mesmo tempo os rótulos da indústria cultural e os limites do universo<br />

erudito e popular, Hermeto <strong>de</strong>safia aqueles que querem estudá-lo” (Lima Neto 1999: 23).<br />

Fui encontrar <strong>uma</strong> explicação mais <strong>de</strong>talhada do que seria esse “instrumental<br />

brasileiro” no trabalho <strong>de</strong> um pesquisador americano: Andrew Connell, que também se<br />

aventurou a enten<strong>de</strong>r a obra <strong>de</strong> Hermeto Pascoal.<br />

13


No início dos anos 70 várias transformações resultaram no aparecimento <strong>de</strong> um novo tipo<br />

<strong>de</strong> música instrumental no Brasil, que não <strong>de</strong>rivava apenas do choro e da bossa-nova, mas<br />

também <strong>de</strong> <strong>uma</strong> ampla gama <strong>de</strong> gêneros brasileiros e sons internacionais. Aliada aos<br />

<strong>de</strong>senvolvimentos cosmopolitas da MPB (música popular brasileira), a mídia da música<br />

instrumental e sua presença cultural foram sendo construídas ao longo da década,<br />

estimuladas por eventos como o ressurgimento do choro, a renovada popularida<strong>de</strong> da<br />

gafieira, o Movimento Black Rio, festivais tanto <strong>de</strong> choro quanto <strong>de</strong> jazz, além do crescente<br />

apoio do estado e <strong>de</strong> instituições. (Connell 2002: 95, tradução da autora)<br />

Segundo Connell, <strong>de</strong> 1969 a 1975 (época do apogeu dos festivais da canção), a<br />

música instrumental teria sido banida do campo da música popular brasileira. Ressurgiu,<br />

em seguida, a partir <strong>de</strong> iniciativas diversas: matérias <strong>de</strong> jornalistas como Ana Maria<br />

Bahiana, Tárik <strong>de</strong> Souza, Sergio Cabral, Paulo Venâncio Filho, produtores culturais como<br />

Hermínio Bello <strong>de</strong> Carvalho, além <strong>de</strong> ajuda estatal e, é claro, da atuação dos próprios<br />

músicos, <strong>de</strong>ntre os quais ele <strong>de</strong>staca Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Paulo Moura.<br />

O choro também fez parte <strong>de</strong>sse movimento <strong>de</strong>dicado à música instrumental, mas<br />

nessa época ficou restrito ao público nacional. Sobre o choro, entrarei em <strong>de</strong>talhes no<br />

capítulo 5.<br />

Já a “música instrumental” começou a chamar a atenção no exterior, especialmente<br />

por causa <strong>de</strong> Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti, que fizeram várias turnês internacionais<br />

na década <strong>de</strong> 70, levando Connell a afirmar: “Des<strong>de</strong> a bossa nova, a música brasileira não<br />

tinha tido tanta influência no exterior” (Connell 2002: 99, tradução da autora).<br />

Essa nova geração <strong>de</strong> instrumentistas chamava a música que faziam <strong>de</strong> “música<br />

instrumental brasileira contemporânea”. Hermeto prefere chamar sua música <strong>de</strong> “música<br />

universal” ou “música livre”. São <strong>de</strong>finições que buscam outro espaço, tal<strong>vez</strong> <strong>uma</strong><br />

alternativa à dicotomia erudito/popular, que sempre esteve presente na categorização da<br />

música no Brasil, conforme explica Elizabeth Travassos:<br />

Duas linhas <strong>de</strong> força tensionam o entendimento da música no Brasil e projetam-se nos<br />

livros que contam sua história: a alternância entre reprodução dos mo<strong>de</strong>los europeus e<br />

<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> um caminho próprio, <strong>de</strong> um lado, e a dicotomia entre erudito e popular, <strong>de</strong><br />

outro. Como <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> corrente subterrânea que alimenta a consciência dos artistas,<br />

críticos e ouvintes, as linhas <strong>de</strong> força vêm à tona, regularmente, pelo menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século<br />

XIX. [...] Mais recentemente emergem em torno <strong>de</strong> artistas como Egberto Gismonti e<br />

14


Hermeto Pascoal, que problematizam a separação entre erudito e popular. (Travassos 2000:<br />

7, 8)<br />

Ao realizar <strong>uma</strong> música que interessa a públicos tão diversos, criando novas escutas,<br />

e ao mesmo tempo calcada em fontes nitidamente populares, ambos tornam-se músicos <strong>de</strong><br />

difícil <strong>de</strong>finição. Um exemplo <strong>de</strong>sse novo espaço <strong>de</strong> interação é o fato <strong>de</strong> músicas <strong>de</strong><br />

Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti constarem nos programas <strong>de</strong> concertos do Duo Assad<br />

<strong>de</strong> violões, conhecido no circuito internacional da chamada música <strong>de</strong> concerto.<br />

No que diz respeito ao <strong>de</strong>bate acadêmico e terminológico em geral, a música<br />

instrumental popular ou música instrumental brasileira contemporânea, na qual procuro<br />

<strong>de</strong>stacar a música <strong>de</strong> Hermeto Pascoal, não se encaixa em meio às dicotomias conceituais e<br />

entre os campos que geralmente se <strong>de</strong>dicam ao estudo da música no Brasil: a musicologia, a<br />

etnomusicologia, os estudos sociais e literários, <strong>de</strong>ntre outros. A meu ver, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos<br />

1970, ela significou justamente <strong>uma</strong> proposta concreta, ou melhor, sonora, para a diluição<br />

das fronteiras terminológicas.<br />

Há, no entanto, outra fronteira que ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>saparecer na música <strong>de</strong> Hermeto<br />

Pascoal, conforme veremos nos capítulos que se seguem: a distinção entre música<br />

folclórica e música popular. Mas antes precisamos enten<strong>de</strong>r melhor tais <strong>de</strong>finições.<br />

1.2. Música popular?<br />

Carlos Sandroni, no artigo “A<strong>de</strong>us à MPB” (2004), evi<strong>de</strong>ncia o vínculo entre o<br />

popular da <strong>de</strong>finição “música popular brasileira” e <strong>de</strong>terminada concepção <strong>de</strong> povo<br />

brasileiro. A partir <strong>de</strong>sse esclarecimento inicial, ele <strong>de</strong>monstra como o conceito <strong>de</strong> “música<br />

popular brasileira” foi se transformando ao longo do tempo, <strong>junto</strong> com a transformação da<br />

concepção <strong>de</strong> “povo brasileiro”.<br />

Primeiramente, ele coloca a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir o que seja “povo” para se saber o<br />

que vem a ser “popular”. Alguns dilemas emergem <strong>de</strong>ssa questão: a diferença entre música<br />

folclórica e música popular, a mudança <strong>de</strong> sentido <strong>de</strong>sses termos ao longo do tempo, a<br />

separação entre música rural e música urbana.<br />

Segundo Sandroni, até os anos 1940, usava-se “música popular” referindo-se ao<br />

mundo rural, mas a crescente importância das músicas urbanas, associada à produção<br />

15


intelectual <strong>de</strong> personagens como Alexandre Gonçalves Pinto e Vagalume, 1 levou à divisão<br />

entre “folclore” e “popular”, que seria proposta por Oneyda Alvarenga. A partir <strong>de</strong> então,<br />

consagrou-se a diferença que prevaleceu durante a segunda meta<strong>de</strong> do século XX: a música<br />

popular sendo entendida como a música do rádio e do disco, urbana, autoral e mediada; e a<br />

música folclórica como a música rural, anônima e não-mediada. Segundo a concepção <strong>de</strong><br />

Alvarenga, a última seria a mais autêntica e mantenedora do caráter nacional, enquanto a<br />

primeira estaria contaminada pelo comércio e pelo cosmopolitismo (Sandroni 2004: 27,28).<br />

Continuando a cronologia proposta por Sandroni, durante os anos 1960, a música<br />

popular brasileira passa a <strong>de</strong>limitar um campo que excluía músicas não-nacionais,<br />

cumprindo certo papel <strong>de</strong> “<strong>de</strong>fesa nacional”, antes atribuído ao folclore. Transforma-se<br />

então na sigla MPB, num momento em que a idéia <strong>de</strong> “povo brasileiro” foi muito <strong>de</strong>batida.<br />

Em 1968, o tropicalismo questionou a orientação estético-política da MPB, com a qual o<br />

público se i<strong>de</strong>ntificava. Já nos anos 1970, gostar <strong>de</strong> Chico Buarque, Tom Jobim e João<br />

Gilberto significava eleger certo universo <strong>de</strong> valores e referências. A partir <strong>de</strong> 1980, a sigla<br />

passou a ser adotada <strong>de</strong> modo mais amplo, integrando até mesmo o rock nacional (Sandroni<br />

2004: 29, 30).<br />

Como bem observou Sandroni, dos anos 1960 até os anos 1980, MPB foi se<br />

tornando <strong>uma</strong> categoria analítica, <strong>uma</strong> opção i<strong>de</strong>ológica e um perfil <strong>de</strong> consumo, ou seja,<br />

<strong>uma</strong> sigla com caráter aglutinante que i<strong>de</strong>ntificava um gosto musical coerente. O que já não<br />

acontece <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 1990. Assiste-se atualmente a dois movimentos: a fragmentação das<br />

músicas populares e a relativização da dicotomia entre a “música popular” e a “música<br />

folclórica” (Sandroni 2004: 31, 32).<br />

Ora, se tomamos o ponto <strong>de</strong> vista da música instrumental, posso dizer que pelo<br />

menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 1970 ela já contribuiu para a fragmentação da idéia <strong>de</strong> MPB. Falando<br />

particularmente da música <strong>de</strong> Hermeto Pascoal, ele não <strong>só</strong> não se encaixa nessa categoria,<br />

como também problematiza a diferença entre música popular e folclórica.<br />

1<br />

Alexandre Gonçalves Pinto foi um chorão da “velha guarda” que em 1936 publicou o livro Choro:<br />

reminiscências dos chorões antigos (Gonçalves Pinto 1936), no qual retrata inúmeros músicos que atuaram no<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1870, muitos <strong>de</strong>les conhecidos graças aos relatos <strong>de</strong> Alexandre. Francisco Guimarães<br />

Vagalume também foi um personagem atuante na música, como cantor e homem do rádio, que registrou no<br />

livro A roda <strong>de</strong> samba (Vagalume 1978) suas percepções do meio musical na época em que viveu.<br />

16


A primeira música gravada por Hermeto que fez sucesso internacional, “O Gaio da<br />

Roseira” é <strong>uma</strong> composição <strong>de</strong> Divina Eulália <strong>de</strong> Oliveira e Pascoal José da Costa, os pais<br />

<strong>de</strong> Hermeto, que a cantavam quando trabalhavam na roça. Hermeto não <strong>só</strong> gravou a<br />

música, como colocou os próprios Divina Eulália e Seu Pascoal como autores. Se Luiz<br />

Gonzaga também gravou adaptações <strong>de</strong> músicas que tocava com seu pai, como “Asa<br />

Branca”, nunca efetivamente colocou o nome <strong>de</strong> Januário como compositor.<br />

Creio que essa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Hermeto frente às origens <strong>de</strong> sua música revela muito <strong>de</strong><br />

sua concepção integradora, que vai <strong>de</strong> encontro à tese <strong>de</strong> Sandroni:<br />

a distinção entre música popular e música folclórica no Brasil esteve também ligada à idéia<br />

<strong>de</strong> que a primeira estava viva e a segunda morta. A integração <strong>de</strong> aspectos <strong>de</strong> manifestações<br />

folclóricas ao mercado musical mo<strong>de</strong>rno é apenas <strong>uma</strong> das maneiras pelas quais tal<br />

concepção vem sendo posta em xeque nos últimos anos. (Sandroni 2004: 34)<br />

Diante <strong>de</strong> <strong>uma</strong> concepção contemporânea do que seja a música presente na cultura<br />

popular, encontrando-a tanto na música <strong>de</strong> Hermeto como na música <strong>de</strong> Seu João do Pife,<br />

<strong>de</strong> Sebastião Biano, nos choros <strong>de</strong> Pixinguinha e <strong>de</strong> Maurício Carrilho, <strong>de</strong>ntre outros,<br />

procurarei contextualizar cada <strong>uma</strong> das manifestações musicais, comparando-as e<br />

relacionando-as. Para <strong>isso</strong>, esta dissertação foi dividida em duas partes. Na primeira parte,<br />

“O ovo”, 2 busco conhecer o caminho percorrido por Hermeto, em suas andanças do forró<br />

ao choro, tangenciando as bandas <strong>de</strong> pífano. Nesse percurso, ritmos e gêneros musicais<br />

perpassam bailes e festas que recontam caminhos da história da música no Brasil. Na<br />

segunda parte, “Tacho”, 3 a música <strong>de</strong> Hermeto é focalizada e analisada, relacionando sua<br />

concepção sonora e sua escuta às misturas e transformações rítmicas que ele realiza nas<br />

tradições do choro, do forró e das bandas <strong>de</strong> pífano.<br />

2<br />

“O ovo” foi <strong>uma</strong> das primeiras composições <strong>de</strong> Hermeto gravadas, é um choro “bem nor<strong>de</strong>stino” ou um<br />

“forró chorado”, o que sintetiza bem a idéia da primeira parte do estudo, <strong>de</strong> relacionar a história do forró e do<br />

choro, além <strong>de</strong> remeter às origens da música <strong>de</strong> Hermeto.<br />

3<br />

“Tacho” também é o título <strong>de</strong> <strong>uma</strong> composição <strong>de</strong> Hermeto (gravada no CD Missa dos escravos), que<br />

remete à mistura <strong>de</strong> sons, idéia que será <strong>de</strong>senvolvida na segunda parte.<br />

17


1ª parte > O OVO<br />

18


2. Festas e brinca<strong>de</strong>iras<br />

Não existe na música brasileira essa coisa que Olavo Bilac qualificou como resultado <strong>de</strong><br />

“três raças tristes”, pois até a reza-<strong>de</strong>-<strong>de</strong>funto (canto <strong>de</strong> velório, excelências e benditos) na<br />

interpretação do povo é alegre pela sua interpretação expansiva, natural, <strong>de</strong>sinibida.<br />

(Guerra-Peixe e Raposo 1984: 6)<br />

A alegria <strong>de</strong> que fala Guerra-Peixe está presente na música <strong>de</strong> Hermeto Pascoal. O<br />

baterista Nenê, que trabalhou durante <strong>de</strong>z anos com Hermeto, é quem diz: “É <strong>uma</strong> música<br />

impregnada <strong>de</strong> festas populares” (Nenê 2005). Ele cita o exemplo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> faixa do disco<br />

Brazilian Adventure, a música “Velório”, on<strong>de</strong> o compositor procura reproduzir os sons das<br />

festas que ocorriam por ocasião dos velórios em sua terra natal. Para <strong>isso</strong> utilizou matracas<br />

e sussurros, conforme as brinca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> sua infância.<br />

Com quase 70 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, lembranças não faltam a Hermeto, tal<strong>vez</strong> por <strong>isso</strong><br />

mesmo ele <strong>de</strong>fenda <strong>uma</strong> atitu<strong>de</strong> e <strong>uma</strong> música totalmente voltadas para o presente: “nunca<br />

me lembro do passado, ele já existe na gente. É <strong>uma</strong> energia que já vem com a gente, quem<br />

procura se lembrar do passado está per<strong>de</strong>ndo o presente praticamente todo” (Pascoal 2005).<br />

Assim é sua música, presente, atual, impregnada <strong>de</strong> festas e <strong>de</strong> vida, da sua vida e,<br />

por <strong>isso</strong> mesmo, <strong>de</strong> seu passado que se faz presente. Sua recusa do passado não é <strong>uma</strong><br />

recusa da tradição, mas <strong>uma</strong> <strong>de</strong>fesa contra os tradicionalistas. Afinal, sua criativida<strong>de</strong><br />

extrapolou as formações musicais pelas quais passou e, ao lado do aprendizado e da<br />

admiração pela cultura popular, há sempre <strong>uma</strong> recusa da estagnação.<br />

Mas Hermeto viveu sim várias formações musicais, tradicionais ou não. Este é um<br />

passado evi<strong>de</strong>nte em sua música, que se torna presente na criação. São vários fios <strong>de</strong><br />

cultura que vão se entrelaçando em sua obra, revelando <strong>uma</strong> música brasileira e, como ele<br />

quer, universal. Contar essa história é <strong>uma</strong> tentativa constante <strong>de</strong> equilibrar as vertentes <strong>de</strong><br />

arte e tradição.<br />

Começarei pela arte que já é tradição: as festas populares, os bailes chamados <strong>de</strong><br />

choros ou forrós, os gêneros, ritmos e formações musicais aí envolvidos. Tradição como<br />

<strong>uma</strong> manifestação que já é recorrente, envolvendo características que se repetem ao longo<br />

do tempo, que a tornam reconhecida pela comunida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se realiza e passível <strong>de</strong> ser<br />

generalizada como manifestação nacional.<br />

19


Dentre as formações instrumentais tipicamente brasileiras, po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar três<br />

especialmente caras à música instrumental: os trios <strong>de</strong> forró (sanfona, zabumba e triângulo),<br />

as bandas <strong>de</strong> pífanos (dois pífanos, tarol, prato e zabumba) e os con<strong>junto</strong>s regionais (violão,<br />

cavaquinho, pan<strong>de</strong>iro, flauta, <strong>de</strong>ntre outros instrumentos solistas). A experiência musical <strong>de</strong><br />

Hermeto Pascoal é particularmente rica em música brasileira por ele ter vivido, já em sua<br />

infância e adolescência, essas três formações instrumentais.<br />

Nascido em Alagoas em 1936, Hermeto apresenta, em sua trajetória, inúmeras<br />

referências que, como ele diz, vão do forró ao choro.<br />

Minha formação: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança, eu tocava o oito-baixos, que era o instrumento que eu<br />

tocava em bailes, lá no nor<strong>de</strong>ste é pé-<strong>de</strong>-bo<strong>de</strong>. Eu mesmo fazia os meus pifes, no mato, <strong>de</strong><br />

cano <strong>de</strong> mamona, eu já fazia pra tocar, já tinha aquilo na cabeça, mas não saía do lado dos<br />

zabumbeiros, e os zabumbeiros lá em Lagoa da Canoa, em Alagoas, era normal tocar na<br />

porta das igrejas, na feira, em procissão, em bailes também. Então essa era minha infância,<br />

até os 14 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Quando eu saí com 14 anos <strong>de</strong> Alagoas para Recife, aí eu tive<br />

conhecimento do que se chama chorinho. Eu saí direto do forró, das coisas que eu estava<br />

acost<strong>uma</strong>do a tocar, peguei a sanfona e fui tocar chorinho no regional, na Rádio Jornal do<br />

Comércio, em Recife. Com 15, 16 anos, já estava tocando em regional. Quando eu cheguei<br />

no sul, eu fui juntando a música. A gente nunca fica fixo num estilo <strong>só</strong>, é <strong>uma</strong> mistura.<br />

(Pascoal 2005)<br />

Hermeto faz <strong>uma</strong> cronologia dos primeiros instrumentos tocados por ele – a sanfona<br />

<strong>de</strong> oito-baixos e os pifes (ou pífanos, como veremos no capítulo 6) – acrescentando a<br />

presença constante dos zabumbeiros em suas formações musicais. Dessas combinações<br />

surgem justamente as bandas <strong>de</strong> forró e <strong>de</strong> pífanos que, como ele mesmo diz, tocavam “na<br />

porta das igrejas, na feira, em procissão, em bailes...”, sendo responsáveis pelas mais<br />

diversas festivida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s do interior como Lagoa da Canoa. A sanfona foi o<br />

instrumento que possibilitou a ele migrar do forró aos regionais, on<strong>de</strong> passou a tocar choro.<br />

Para participar <strong>de</strong>ssa história contada por Hermeto, precisamos investigar o universo<br />

<strong>de</strong> cada <strong>uma</strong> <strong>de</strong>ssas formações musicais. Inspirada pela música <strong>de</strong> Hermeto, eminentemente<br />

atual, minha abordagem ten<strong>de</strong> a ser calcada no presente, seja em minhas observações e<br />

pesquisas, seja em entrevistas e n<strong>uma</strong> leitura da bibliografia à luz da experiência musical.<br />

20


2.1. Bailes Populares<br />

Ao pesquisar as origens do forró e do choro, passando pela tradição das bandas <strong>de</strong><br />

pífano, fui percebendo como a história <strong>de</strong>sses conceitos se entrelaça constantemente, a<br />

começar pelo significado original <strong>de</strong> ambos como bailes populares, sem esquecer os<br />

inúmeros gêneros musicais que aí se relacionam.<br />

Tinhorão nos lembra que, em suas origens, o termo forró, “baile ou festa <strong>de</strong> gente<br />

humil<strong>de</strong>, sempre foi palavra pouco nobre, mesmo no nor<strong>de</strong>ste, equivalendo ao carioca<br />

forrobodó” (Tinhorão 1976: 188). Por sua <strong>vez</strong> o termo carioca forrobodó, do qual forró<br />

seria <strong>uma</strong> abreviatura, equivaleria a forrobodança, que é comparado ao “Chorão” do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro (um baile, obviamente, animado pelos choros), em citação do verbete forró da<br />

Enciclopédia da música brasileira (2003). A compositora Chiquinha Gonzaga, <strong>uma</strong> das<br />

pioneiras na composição <strong>de</strong> choros, escreveu a música para <strong>uma</strong> peça <strong>de</strong> teatro <strong>de</strong> revista<br />

cujo título era justamente esse: Forrobodó.<br />

Os bailes populares também eram conhecidos como assustados, chamados ainda <strong>de</strong><br />

arrasta-pés, como observa Wisnik ao falar sobre o martírio do compositor Pestana (célebre<br />

personagem <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis): “a polca, que persegue o compositor como a maldição<br />

que o con<strong>de</strong>na à vida rasteira dos bailes e assustados – os tradicionais arrasta-pés” (Wisnik<br />

2004: 19). Atualmente, qualquer um que freqüenta um forró sabe que arrasta-pé é um dos<br />

ritmos aí tocados, como veremos mais adiante.<br />

Voltando à <strong>de</strong>nominação dos bailes, Alexandre Gonçalves Pinto e Vagalume são<br />

testemunhas imprescindíveis. O primeiro chama os bailes on<strong>de</strong> tocavam os antigos chorões<br />

<strong>de</strong> choros ou pago<strong>de</strong>s. O segundo, ao falar das batucadas (encontros <strong>de</strong> samba), diz:<br />

Mas não era <strong>só</strong> na Penha que os encontros se davam. Era também on<strong>de</strong> houvesse um<br />

“Choro”, um “arrastado”, um “vira-vira-mexe”, <strong>uma</strong> festa qualquer e principalmente na<br />

velha Cida<strong>de</strong> Nova, on<strong>de</strong> quase sempre se realizava o baile na sala <strong>de</strong> visitas e um<br />

sambinha mole no quintal. (Vagalume 1978: 36)<br />

Oneyda Alvarenga é quem explica a generalida<strong>de</strong> dos termos, ao falar que o “Samba<br />

viu o seu sentido ainda mais alargado que o <strong>de</strong> Batuque, esten<strong>de</strong>ndo-se a nome <strong>de</strong> qualquer<br />

baile popular, equivalente a ‘função’, ‘pago<strong>de</strong>’, ‘forró’ e outros mais” (Alvarenga s.d: 133).<br />

21


Carlos Sandroni distingue entre samba e choro no começo do século XX, sendo o<br />

primeiro <strong>uma</strong> dança <strong>de</strong> par separado e o segundo <strong>de</strong> par enlaçado. Essa relação permeia<br />

também a distinção entre baile e samba, que aparece num <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Pixinguinha: “Em<br />

casa <strong>de</strong> preto, a festa era na base do choro e do samba. N<strong>uma</strong> festa <strong>de</strong> pretos havia o baile<br />

mais civilizado na sala <strong>de</strong> visitas, o samba na sala do fundo e a batucada no terreiro” (apud<br />

Sandroni 2001: 102, 103). Logo, baile, além <strong>de</strong> ser um sinônimo para forró, é também para<br />

choro, um “baile mais civilizado”, no dizer do próprio Pixinguinha, no qual as danças eram<br />

<strong>de</strong> par enlaçado (Sandroni 2001).<br />

Dominique Dreyfus, biógrafa <strong>de</strong> Luiz Gonzaga, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>:<br />

A palavra “forró”, segundo a época em que é empregada, não tem exatamente o mesmo<br />

significado. Da mesma forma que a palavra “samba”, a palavra “forró” foi evoluindo no<br />

<strong>de</strong>correr do século. Até os anos 50, forró significa baile; <strong>de</strong>pois passa a <strong>de</strong>signar o con<strong>junto</strong><br />

da música do nor<strong>de</strong>ste. Hoje em dia, forró é um gênero musical. Nor<strong>de</strong>stino, claro.<br />

(Dreyfus 1997: 198)<br />

Então, para começo <strong>de</strong> conversa, estamos falando aqui <strong>de</strong> bailes populares<br />

brasileiros, choros e forrós, bailes on<strong>de</strong> passaram vários gêneros que hoje conhecemos<br />

pelas generalizações <strong>de</strong> choro ou forró, e n<strong>isso</strong> ambos se assemelham, mas estamos falando<br />

também <strong>de</strong> formações instrumentais distintas. Em geral, nos estudos sobre a música<br />

brasileira, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se <strong>uma</strong> suposta linearida<strong>de</strong> dos conceitos e dos gêneros musicais, como<br />

se um fosse evoluindo e suplantando o outro. Esta linearida<strong>de</strong> não se sustenta. Seria mais<br />

interessante assumir a coexistência <strong>de</strong> sentidos diferentes n<strong>uma</strong> mesma palavra, <strong>de</strong> aspectos<br />

musicais diversos sob <strong>uma</strong> mesma <strong>de</strong>nominação ou ainda <strong>de</strong> conceitos aparentemente<br />

distintos que acabam por revelar semelhanças.<br />

Por exemplo, agora, em 2006, no Brasil, coexistem rodas <strong>de</strong> choro em Belo<br />

Horizonte, casas <strong>de</strong> forró, <strong>uma</strong> escola <strong>de</strong> choro no Rio <strong>de</strong> Janeiro e bandas <strong>de</strong> pífano no<br />

interior <strong>de</strong> Pernambuco. Ao mesmo tempo em que estão sendo tocados schottischs (um dos<br />

gêneros da família do choro), antigos ou recém-compostos, nas rodas e na escola <strong>de</strong> choro,<br />

também estão sendo tocados xotes nos forrós e pelas bandas <strong>de</strong> pífano. A palavra xote é um<br />

abrasileiramento da palavra schottisch (logo veremos o que acontece com o ritmo). Mas<br />

<strong>uma</strong> coisa é certa, para o xote existir, o schottisch não <strong>de</strong>sapareceu, e, mesmo que tivesse<br />

22


<strong>de</strong>saparecido enquanto manifestação musical espontânea, po<strong>de</strong>ria ser re<strong>de</strong>scoberto a<br />

qualquer momento, a partir dos registros existentes. Outro exemplo: a polca, que é<br />

tradicionalmente associada às origens do choro, continua sendo tocada em rodas <strong>de</strong> choro e,<br />

é claro, na escola <strong>de</strong> choro, além d<strong>isso</strong>, ela não <strong>só</strong> é citada entre os gêneros das bandas <strong>de</strong><br />

pífano, como também do forró...<br />

2.2. Segura a porca!<br />

O sanfoneiro era, portanto, um personagem importante da vida no Sertão. Para Januário,<br />

que era um excelente tocador, não faltava trabalho. Da quinta-feira ao domingo, ele não<br />

parava. Saía <strong>de</strong> casa no final da tar<strong>de</strong>, com o fole a tiracolo e <strong>só</strong> voltava para casa <strong>de</strong><br />

madrugada. Se a festa não era longe <strong>de</strong>mais, a família o acompanhava. Santana ficava<br />

sentada, olhando tudo. A meninada não perdia <strong>uma</strong> dança: mazurcas, valsinhas, emboladas,<br />

polcas interpretadas com maestria pelo pai. “Segura a porca!”, gritavam os matutos do<br />

salão, encorajando o sanfoneiro... (Dreyfus 1997: 38)<br />

É forró, é choro? Por enquanto é a polca, gênero ou pelo menos o nome <strong>de</strong> um<br />

gênero que atravessou a virada do século XX, passando pelos con<strong>junto</strong>s <strong>de</strong> choros, bandas<br />

<strong>de</strong> pífanos, regionais das rádios e trios <strong>de</strong> forró (não necessariamente nessa or<strong>de</strong>m).<br />

A polca, ao chegar perto do lundu, vira a música que vai provocar o aparecimento<br />

do maxixe como dança <strong>de</strong> salão; ao aproximar-se da marcha, vira frevo; mas se é tocada<br />

pelos regionais, vira choro. Alexandre Gonçalves Pinto <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-a com veemência:<br />

A polka é como o samba, <strong>uma</strong> tradição brasileira. [...] A polka ca<strong>de</strong>nciada e chorosa ao som<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> flauta... [...] A polka, com toda a sua belleza, com todos os requisitos <strong>de</strong> elegância e<br />

com todas as tentações que a sua execução provoca, jamais po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>sapparecer dos nossos<br />

salões e das nossas salinhas, como um preito <strong>de</strong> homenagem aos nossos bisavós e como<br />

respeito às nossas tradições. (Gonçalves Pinto 1936: 115, 116)<br />

O chorão Alexandre está falando dos “salões” e “salinhas” do Rio <strong>de</strong> Janeiro na<br />

virada do século XIX para o século XX que, como veremos, não estão tão longe dos bailes<br />

que aconteciam no Nor<strong>de</strong>ste, no que diz respeito não <strong>só</strong> aos gêneros musicais tocados,<br />

como também à existência dos choros como formações musicais.<br />

23


Pelo menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os Turunas da Mauricéa 4 nota-se que os con<strong>junto</strong>s <strong>de</strong> violão,<br />

cavaquinho e flauta, os choros, eram comuns também no Nor<strong>de</strong>ste, no caso, em Recife,<br />

mesmo que a história do choro teime em consagrá-lo ao Rio <strong>de</strong> Janeiro, lembrando que na<br />

época, além <strong>de</strong> “cida<strong>de</strong> maravilhosa”, o Rio era também a capital do país. Mário <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong> já indagava...<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que o populario musical brasileiro é <strong>de</strong>sconhecido até <strong>de</strong> nós mesmos.<br />

Vivemos afirmando que é riquíssimo e bonito. Está certo. Só que me parece mais rico e<br />

bonito do que a gente imagina. E sobretudo mais complexo. Nós conhecemos alg<strong>uma</strong>s<br />

zonas. Sobretudo a carioca por causa do maxixe impresso e por causa da predominância<br />

expansiva da Côrte sobre os Estados. (Andra<strong>de</strong> 1928: 6)<br />

A visão exposta por Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> mantém sua atualida<strong>de</strong> e justifica um<br />

parêntese sobre a questão. Suzel Ana Reily faz <strong>uma</strong> análise da historiografia da música<br />

brasileira, criticando o discurso nacionalista que se pauta por <strong>uma</strong> sucessão cronológica <strong>de</strong><br />

estilos musicais. 5<br />

Reily discute a questão do nacional na historiografia da música brasileira. Segundo<br />

ela, na música popular, o nacional é <strong>de</strong>limitado a partir do gosto da classe média. Na época<br />

da modinha, o nacional era <strong>de</strong>finido pelos gêneros mais tocados no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Todos<br />

os outros estilos que se <strong>de</strong>senvolviam em outros estados eram taxados <strong>de</strong> regionais,<br />

4<br />

Con<strong>junto</strong> vocal e instrumental fundado em 1926 no Recife composto por Luperce Miranda e Augusto<br />

Calheiros, <strong>de</strong>ntre outros. “O Luperce era tio da minha esposa Ilza. Ele foi um dos maiores bandolinistas do<br />

mundo” (Hermeto 2006). Em entrevista, Márcio Bahia me informou que Hermeto compôs <strong>uma</strong> bela valsa em<br />

homenagem a Luperce, que nunca foi gravada.<br />

5<br />

Segundo Reily (2000), a história da música brasileira, tal qual é tipicamente contada, começa com um<br />

período <strong>de</strong> formação, situado na era colonial e caracterizado por <strong>uma</strong> infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas híbridas e difusas.<br />

No século XVII, surgem a modinha e o lundu, primeiros gêneros estáveis. Em seguida a modinha torna-se o<br />

gênero mais abrangente, incorporando o lundu, e interessa aos universos erudito e popular. O choro é citado<br />

em seguida, surgindo por volta <strong>de</strong> 1870, primeiramente como um modo local <strong>de</strong> tocar as danças européias<br />

então em voga, principalmente a polca. No século XX, em geral as histórias da música popular e erudita se<br />

separam. A primeira se volta para o samba, enquanto a segunda se envolve com o movimento mo<strong>de</strong>rnista. As<br />

histórias da música constroem narrativas canônicas, paralelamente, que <strong>de</strong>finem os momentos mais<br />

significativos para o <strong>de</strong>senvolvimento do repertório nacional (Reily 2000).<br />

24


inclusive o baião, que ficou nacionalmente conhecido em 1940. Essa história linear sugere<br />

<strong>uma</strong> narrativa mítica sobre o centro, enquanto a margem permanece invisível (Reily 2000).<br />

No entanto, se aqueles gêneros que contam a “<strong>de</strong>scoberta musical do Brasil” vieram<br />

da Europa, não aportaram somente no Rio. No nor<strong>de</strong>ste, a presença dos gêneros que vão<br />

constituir a família do choro evi<strong>de</strong>ncia-se, por exemplo, no repertório das bandas <strong>de</strong><br />

pífanos, que são verda<strong>de</strong>iros relicários <strong>de</strong> gêneros antigos como polcas, choros, maxixes e<br />

até tangos brasileiros, como veremos no capítulo 6.<br />

Esses gêneros aparecem também nessa passagem sobre o início da carreira <strong>de</strong> Luiz<br />

Gonzaga, que consta na biografia <strong>de</strong> Dreyfus. Ao ser <strong>de</strong>safiado a tocar “<strong>uma</strong> coisinha lá do<br />

Nor<strong>de</strong>ste”, Gonzaga...<br />

pegou a sanfona e começou a pensar nas músicas que tocava com o pai. Polcas, mazurcas,<br />

quadrilhas, valsas, chorinhos, coisas que existiam por todo o Brasil, mas que no Sertão,<br />

eram tocadas com “sotaque” local. Gonzaga foi procurando, <strong>de</strong>dilhando os baixos e as<br />

teclas, revolvendo o passado, reconstituindo a memória musical. (Dreyfus 1997: 82)<br />

Dessa procura teria saído seu primeiro sucesso “Pé <strong>de</strong> serra”, <strong>de</strong>finida por Dreyfus<br />

como “<strong>uma</strong> polca charmosa e alegre”.<br />

25


2.3. Um pouco <strong>de</strong> rítmica<br />

Festas e brinca<strong>de</strong>iras, feiras e procissões, bailes chamados forrós e choros... A<br />

rítmica que permeia a música popular brasileira é a rítmica da cultura popular. É a rítmica<br />

dos passos <strong>de</strong> dança, da marcha das procissões, dos molejos e requebrados da cintura, das<br />

palmas e dos pés. Palmos e pés, que também são usados para medir o espaço, são usados<br />

para medir o tempo. Como também se me<strong>de</strong> um punhado <strong>de</strong> farinha ou <strong>uma</strong> pitada <strong>de</strong> sal. É<br />

o corpo a medida do espaço e do tempo, e a partir <strong>de</strong>sse corpo po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r a rítmica.<br />

O estudo da rítmica brasileira norteia o presente trabalho, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong><br />

padrões rítmicos encontrados no forró e no choro até o <strong>de</strong>senvolvimento e elaboração da<br />

rítmica tradicional na linguagem <strong>de</strong>senvolvida por Hermeto Pascoal. Para <strong>isso</strong>, recorrerei à<br />

pesquisa efetuada por Carlos Sandroni, ao explicar as transformações ocorridas no samba<br />

<strong>de</strong> 1917 a 1933.<br />

Ao estudar o samba, Sandroni observou <strong>uma</strong> mudança rítmica significativa que teria<br />

ocorrido no período em questão, o que o levou à formulação <strong>de</strong> dois paradigmas distintos, o<br />

“paradigma do tresillo” e o “paradigma do Estácio”. O paradigma do tresillo é o que nos<br />

interessa no âmbito <strong>de</strong>sse estudo. Embora ele esteja relacionado às origens do samba,<br />

pretendo estendê-lo aqui também às origens do choro e ao forró, abrangência esta que é<br />

sugerida por Sandroni.<br />

O padrão rítmico 3+3+2 [o tresillo] po<strong>de</strong> ser encontrado hoje na música brasileira <strong>de</strong><br />

tradição oral, por exemplo nas palmas que acompanham o samba-<strong>de</strong>-roda baiano, o coco<br />

nor<strong>de</strong>stino e o partido-alto carioca; e também nos gonguês dos maracatus pernambucanos,<br />

em vários tipos <strong>de</strong> toques para divinda<strong>de</strong>s afro-brasileiras e assim por diante. (Sandroni<br />

2001: 28)<br />

Aliado (ou por <strong>vez</strong>es contraposto) ao estudo <strong>de</strong> Sandroni, o conceito <strong>de</strong> pulsação, tal<br />

qual é formulado por Fabien Lévy (2001), também será um dos pontos <strong>de</strong> partida aqui<br />

<strong>de</strong>senvolvidos. Aceitando a idéia <strong>de</strong> que a percepção do tempo na música clássica oci<strong>de</strong>ntal<br />

26


se baseia sobre <strong>uma</strong> estratificação em diferentes níveis <strong>de</strong> articulação, 6 Lévy propõe<br />

agrupar os diversos estratos em três categorias: a “pulsação métrica” (duração mínima <strong>de</strong><br />

um ciclo completo que envolve tempos fortes e fracos), a “pulsação unitária ou<br />

metronômica” (nível <strong>de</strong> subdivisão intermediário) e a “pulsação mínima” (menor valor<br />

rítmico utilizado ou divisão mínima). Para ilustrar essa idéia, po<strong>de</strong>mos imaginar <strong>uma</strong> régua<br />

elástica, cujas divisões seriam as pulsações e as diferentes pulsações <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>riam da régua<br />

estar esticada ou comprimida. O que as assemelha é a configuração <strong>de</strong> um ciclo constante,<br />

seja qual for a articulação percebida.<br />

Mais do que os tipos <strong>de</strong> pulsação <strong>de</strong>stacados, cuja pertinência à rítmica brasileira<br />

mereceria <strong>uma</strong> investigação mais <strong>de</strong>talhada, a idéia da coexistência <strong>de</strong> diferentes níveis <strong>de</strong><br />

pulsações será aqui <strong>de</strong>senvolvida, propondo inclusive outras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> agrupamento<br />

e articulação. Como afirma Lévy: “os teóricos da psicoacústica estão <strong>de</strong> acordo sobre a<br />

existência <strong>de</strong>sse tecido cognitivo na maior parte das músicas, o que facilita e orienta a<br />

percepção dos ritmos e durações” (Levy 2001: 8, tradução da autora).<br />

Cabe ressaltar que, enquanto os conceitos <strong>de</strong> pulsação expostos por Lévy baseiamse<br />

n<strong>uma</strong> rítmica divisiva, própria da teoria musical clássica européia, o tresillo, ao<br />

contrário, baseia-se n<strong>uma</strong> rítmica aditiva, característica da música africana. 7 No entanto,<br />

para se enten<strong>de</strong>r a rítmica brasileira, é preciso consi<strong>de</strong>rar ambas, a rítmica aditiva e a<br />

divisiva, <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> que em nossa música convivem, <strong>de</strong>ntre vários outros elementos, a<br />

contrametricida<strong>de</strong> e o compasso.<br />

Para explicar o paradigma do tresillo Sandroni recorre, por sua <strong>vez</strong>, aos estudos <strong>de</strong><br />

Kolinski, que propõe dois níveis <strong>de</strong> estruturação do ritmo musical, a métrica e o ritmo:<br />

O caráter variado do ritmo po<strong>de</strong> confirmar ou contradizer o fundo métrico, que é constante.<br />

Kolinski cunhou os termos “cometricida<strong>de</strong>” e “contrametricida<strong>de</strong>” para exprimir essas duas<br />

possibilida<strong>de</strong>s. A “metricida<strong>de</strong>” <strong>de</strong> um ritmo seria pois a medida em que ele se aproxima ou<br />

se afasta da métrica subjacente. (Sandroni 2001: 21)<br />

6 Lévy se refere à teoria <strong>de</strong>senvolvida por Fred Lerdahl e Ray Jackendoff em Théorie Generative <strong>de</strong> la<br />

musique tonale (1985).<br />

7 Sobre a diferenciação entre rítmica aditiva e divisiva (A. M. Jones apud Sandroni 2001: 24).<br />

27


O paradigma do tresillo diz respeito à recorrência do padrão rítmico assimétrico que<br />

comporta três articulações e por <strong>isso</strong> teria sido chamado pelos cubanos <strong>de</strong> tresillo [3+3+2].<br />

Sua característica fundamental é a marca contramétrica recorrente na quarta pulsação (ou,<br />

em notação convencional, na quarta semicolcheia) <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> oito, que assim fica<br />

dividido em duas quase-meta<strong>de</strong>s <strong>de</strong>siguais (3+5). É esta marca que o distingue dos padrões<br />

rítmicos que obe<strong>de</strong>cem à teoria clássica oci<strong>de</strong>ntal, para a qual a marca equivalente estaria<br />

não na quarta mas na quinta pulsação (ou seja,no início do segundo tempo <strong>de</strong> um 2/4<br />

convencional e simétrico). (Sandroni 2001: 30)<br />

Ao dizer “sua característica fundamental é a marca contramétrica recorrente na<br />

quarta pulsação”, Sandroni está se referindo à “pulsação mínima”, ou seja, à menor divisão<br />

rítmica empregada que, <strong>de</strong> acordo com os conceitos <strong>de</strong> Levy, seria a subdivisão da<br />

“pulsação unitária ou metronômica”, ou seja, da pulsação intermediária, que em geral<br />

equivale à semínima na música clássica oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Sandroni procura aplicar o que ele chama <strong>de</strong> lógica da imparida<strong>de</strong> rítmica 8 a figuras<br />

rítmicas que em geral são encaradas pela lógica do compasso. Ao fazer <strong>isso</strong>, naturalmente,<br />

a unida<strong>de</strong> métrica que vem à tona não é mais a pulsação metronômica, própria dos passos<br />

<strong>de</strong> dança, mas as pulsações mínimas, próprias dos molejos e requebrados...<br />

Ou seja, a subdivisão ξξξξ que permeia a música brasileira passa a ser encarada como<br />

a pulsação <strong>de</strong> referência, e não como subdivisões do padrão simétrico do compasso binário,<br />

dividido em duas partes iguais. Essa abordagem permite refinar a percepção dos ritmos <strong>de</strong><br />

forma a enten<strong>de</strong>r a miscigenação <strong>de</strong> padrões distintos, ou seja, a imparida<strong>de</strong> rítmica própria<br />

da música africana existe na música brasileira, mas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um agrupamento <strong>de</strong> pulsações<br />

a que os europeus chamam <strong>de</strong> compasso, referente à “pulsação métrica”.<br />

Segundo Sandroni, no Brasil, o tresillo figura em inúmeras partituras, pelo menos<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1856, quando aparece na introdução do lundu “Beijos <strong>de</strong> Fra<strong>de</strong>”, <strong>de</strong> Henrique Alves<br />

<strong>de</strong> Mesquita. O tresillo também consta como um padrão rítmico <strong>de</strong> acompanhamento em<br />

8<br />

Imparida<strong>de</strong> rítmica é um fenômeno recorrente na música africana, no qual, embora o ciclo <strong>de</strong> pulsações seja<br />

um número par e, portanto divisível em duas partes, a articulação dos tempos fortes e fracos não obe<strong>de</strong>ce a<br />

essa simetria, dividindo o ciclo em partes assimétricas, como é o caso do tresillo: 3+3+2 (Simha Arom apud<br />

Sandroni 2001: 24 e 25).<br />

28


músicas <strong>de</strong> Nazareth e <strong>de</strong> compositores eruditos nacionalistas, <strong>de</strong>ntre outros. No que se<br />

refere à música impressa brasileira do século XIX e início do XX, o tresillo possui alg<strong>uma</strong>s<br />

variantes: a síncope característica , o padrão <strong>de</strong> cavaquinho (e caixeta) nos<br />

choros: e o ritmo <strong>de</strong> habanera ou <strong>de</strong> tango: . Esse con<strong>junto</strong><br />

<strong>de</strong> variantes configura o paradigma do tresillo. 9<br />

Se examinarmos o baião <strong>de</strong> Luiz Gonzaga, por exemplo, à luz do paradigma do<br />

tresillo, veremos que ele está muito mais próximo <strong>de</strong>sse paradigma do que do paradigma do<br />

Estácio, que Sandroni explica como sendo o paradigma do novo estilo <strong>de</strong> samba surgido<br />

nos anos 1930. Aliás, não <strong>só</strong> o baião, mas a maioria dos ritmos que integram o universo do<br />

forró po<strong>de</strong>m ser assim percebidos. Vemos aí mais um aspecto que aproxima o forró dos<br />

primórdios do choro, e tanto o forró quanto o choro da rítmica <strong>de</strong> Hermeto Pascoal, como<br />

veremos em <strong>de</strong>talhes na segunda parte da pesquisa. A “marca contramétrica recorrente na<br />

quarta pulsação” (para usar as palavras <strong>de</strong> Sandroni) é tão recorrente na linguagem musical<br />

<strong>de</strong> Hermeto que tem <strong>uma</strong> <strong>de</strong>nominação própria, chama-se nota “pendurada”: .<br />

A “síncope” é outra figura tão marcante na música <strong>de</strong> Hermeto que é chamada <strong>de</strong><br />

“garfinho”, pela semelhança da figura com um garfo <strong>de</strong> três <strong>de</strong>ntes: . O conceito <strong>de</strong><br />

síncope também permeia nosso trabalho, seja na apreensão da maioria dos ritmos relativos<br />

ao choro e ao forró, seja nas características rítmicas da música <strong>de</strong> Hermeto Pascoal.<br />

Como explica Sandroni, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIX, a síncope aparece como <strong>uma</strong> marca<br />

registrada da música brasileira. Ela aparece também como <strong>uma</strong> característica que <strong>de</strong>fine a<br />

música popular brasileira nos estudos <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Andra<strong>de</strong> Muricy e na “Carta<br />

do samba”. 10 Segundo Sandroni, o caráter culturalmente condicionado do conceito <strong>de</strong><br />

síncope foi evi<strong>de</strong>nciado pelos estudos <strong>de</strong> Kolinski. Originalmente, o conceito <strong>de</strong> síncope<br />

refere-se a <strong>uma</strong> quebra da regularida<strong>de</strong>, provocando <strong>uma</strong> contraposição entre ritmo regular<br />

e ritmo sincopado, mas no Brasil, por exemplo, o irregular é justamente o mais<br />

característico, o que evi<strong>de</strong>ncia o paradoxo e a afirmação <strong>de</strong> que “a síncope não é um<br />

conceito universal da música” (Sandroni 2001: 21).<br />

9<br />

Para informações <strong>de</strong>talhadas sobre o tresillo e suas variantes, ver Sandroni 2001: 19-32.<br />

10<br />

Documento redigido ao final do I Congresso Nacional do Samba, em 1962, com o objetivo <strong>de</strong> “preservar as<br />

características tradicionais do samba” (citado por Sandroni 2001).<br />

29


Além d<strong>isso</strong>, Sandroni nos lembra que o compasso também não é um<br />

conceito universal da música (Sandroni 2001: 22). No entanto, utilizarei as noções<br />

<strong>de</strong> compasso e <strong>de</strong> síncope (ou melhor, “garfinho”) nesse estudo, <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> que<br />

Hermeto as utiliza em sua concepção musical e são noções correntes no Brasil,<br />

utilizadas por músicos das mais variadas vertentes.<br />

O compasso seria o ponto <strong>de</strong> convergência, para on<strong>de</strong> ritmo, melodia e harmonia se<br />

direcionam. As danças <strong>de</strong> origem européia, como a polca, baseiam-se em ciclos repetidos,<br />

que organizam tempos fortes e fracos, ou seja, seus passos coinci<strong>de</strong>m com a pulsação<br />

métrica, o compasso. No entanto, quando as articulações e acentos variam, <strong>de</strong>slocando-se<br />

dos tempos cométricos, como no maxixe, evi<strong>de</strong>ncia-se a pulsação mínima, o que acontece é<br />

que outras partes do corpo também vão se movimentar, como a cintura, as ancas,<br />

provocando os requebrados das danças brasileiras.<br />

A partir <strong>de</strong>ssas constatações, é quase irresistível apontar a evidência <strong>de</strong> que a<br />

contrametricida<strong>de</strong> da rítmica africana continuou a existir na rítmica brasileira <strong>de</strong>ntro dos<br />

limites impostos pela cultura musical européia, ou seja, o compasso. E esse é mais um dos<br />

limites com os quais Hermeto vai brincar, como veremos na segunda parte da pesquisa.<br />

O paradigma do tresillo cria novos pontos <strong>de</strong> vista (ou <strong>de</strong> escuta) sobre os ritmos<br />

brasileiros e suas transformações. Tomando-o como referência, procurarei, num primeiro<br />

momento, enten<strong>de</strong>r os ritmos brasileiros que perpassam a história do choro e do forró a<br />

partir das notações propostas pelos músicos consultados, que vivem e <strong>de</strong>senvolvem essas<br />

tradições. São eles Márcio Bahia, Nenê, Zezinho Pitoco, E<strong>de</strong>r “o” Rocha, no universo do<br />

forró, e Maurício Carrilho, no domínio da linguagem do choro. Cada um <strong>de</strong>les será<br />

oportunamente apresentado. Num segundo momento, meu objetivo nas análises rítmicas<br />

será justamente compreen<strong>de</strong>r a coexistência dos agrupamentos métricos e ritmos brasileiros<br />

na música <strong>de</strong> Hermeto.<br />

30


3. Forró Brasil 11<br />

3.1. Luiz Gonzaga: do choro ao baião<br />

A relação <strong>de</strong> Luiz Gonzaga com os gêneros originários do choro não se resume à<br />

sua infância nor<strong>de</strong>stina, assim como a relação do choro com o forró também vai ser<br />

reformulada em outro contexto: os regionais <strong>de</strong> rádio. No início dos anos 1940, já no Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, época em que era sanfoneiro contratado da Rádio Tamoio e da Gravadora<br />

Victor, mas tentava a sorte como cantor, evi<strong>de</strong>ncia-se a experiência <strong>de</strong> Gonzaga no choro:<br />

Gonzaga fora contratado como sanfoneiro e sanfoneiro seguiria sendo, gravando seus<br />

discos solos, e acompanhando os colegas da Victor: Carmem Costa, Bob Nelson [...],<br />

Marilú, A<strong>de</strong>mil<strong>de</strong> Fonseca... pois ninguém melhor que o homem que colocou a sanfona no<br />

choro, gênero predominante no seu repertório então, podia acompanhar a mulher que<br />

inventou o “choro cantado”. Também acompanhava Benedito Lacerda e seu regional, cujo<br />

guitarrista, um certo Dino (futuramente “Sete Cordas”), divertindo-se com aquela cara<br />

redonda <strong>de</strong> sertanejo, o apelidou <strong>de</strong> “Lua”. (Dreyfus 1997: 98)<br />

É exagerado dizer que Gonzaga foi “o homem que colocou a sanfona no choro”,<br />

assim como é exagero dizer que ele inventou o baião. Tal<strong>vez</strong> ele tenha inventado aquele<br />

baião que passou a ser divulgado nas rádios. Em 1953, Jackson do Pan<strong>de</strong>iro já questiona a<br />

paternida<strong>de</strong> do baião, ao gravar a música “Êta Baião”, <strong>de</strong> Marçal Araújo, que sugere <strong>uma</strong><br />

explicação <strong>de</strong> on<strong>de</strong> viria o termo: “Como é bonito ver no alto do sertão/ Os violeiro<br />

rasqueando/ A queimar com o bordão/ Os cabra fazem o <strong>de</strong>safio/ Rima sem per<strong>de</strong>r o fio/ E<br />

assim nasce o baião” (citado por Moura e Vicente 2001: 168). Ainda sobre a origem do<br />

termo, o que Jackson do Pan<strong>de</strong>iro cantava não era apenas <strong>uma</strong> provocação, como explica<br />

Dominique Dreyfus:<br />

O termo baião, sinônimo <strong>de</strong> rojão, já existia, <strong>de</strong>signando na linguagem dos repentistas<br />

nor<strong>de</strong>stinos, o pequeno trecho musical tocado pela viola, que permite ao violeiro testar a<br />

11 “Forró Brasil” é o nome <strong>de</strong> <strong>uma</strong> música <strong>de</strong> Hermeto, gravada no disco Hermeto Pascoal ao vivo em<br />

Montreux.<br />

31


afinação do instrumento e esperar a inspiração, assim como introduz o verso do cantador ou<br />

pontua o final <strong>de</strong> cada estrofe. No repente ou no <strong>de</strong>safio, cuja forma <strong>de</strong> cantar é recitativa e<br />

monocórdia, o “baião” é a única seqüência rítmica e melódica. (Dreyfus 1997: 110)<br />

“Baião” seria o título do primeiro sucesso da dupla Luiz Gonzaga e Humberto<br />

Teixeira em 1946 e, a partir <strong>de</strong> então, o manifesto <strong>de</strong> um novo ritmo. De sanfoneiro<br />

contratado, tocando em regionais, Gonzaga passa a gravar e fazer apresentações em rádio<br />

acompanhado pelos con<strong>junto</strong>s regionais. 12 Segundo Dreyfus, tais con<strong>junto</strong>s – pan<strong>de</strong>iro,<br />

bandolim, violão, cavaquinho – imprimiam ao baião <strong>de</strong> Luiz Gonzaga “um jeitinho <strong>de</strong><br />

choro estilizado” (Dreyfus 1997: 150), mas não há como negar que foi a partir daí que ele<br />

tomou forma, ou seja, o baião <strong>de</strong> Luiz Gonzaga nasceu dos regionais <strong>de</strong> choro.<br />

Mais <strong>uma</strong> <strong>vez</strong>, o fole da sanfona realiza a aproximação entre o forró e o choro,<br />

como aconteceu com Hermeto, lembrando que o próprio “Gonzaga se divertia dizendo,<br />

com toda razão, que acor<strong>de</strong>om e sanfona eram o mesmo instrumento, mas, quando o artista<br />

tocava música <strong>de</strong> salão, era acor<strong>de</strong>onista e, quando era mais popular, tornava-se<br />

sanfoneiro” (Dreyfus 1997: 79). Trocando em miúdos: quando tocava choro era<br />

acor<strong>de</strong>onista e quando tocava forró era sanfoneiro? Então choro e forró também seriam a<br />

mesma música? Com diferentes sotaques que aos poucos foram <strong>de</strong>finindo os gêneros e os<br />

“regionalizando”?<br />

De fato, o “Xote das Meninas” tocado por Luiz Gonzaga difere em muito dos<br />

schottischs compostos por Irineu <strong>de</strong> Almeida, o professor <strong>de</strong> Pixinguinha, pelo menos<br />

cinqüenta anos antes. A música das quadrilhas das atuais festas <strong>de</strong> São João também quase<br />

não guarda vestígios das quadrilhas compostas por Callado em fins do século XIX.<br />

Nessa época, Alexandre Gonçalves Pinto retrata um chorão chamado Pedro da<br />

Harmônica que, pela <strong>de</strong>scrição, parecia tocar mesmo acor<strong>de</strong>om: “Pedro sabia tirar partido<br />

<strong>de</strong> sua harmônica, solando e acompanhando com facilida<strong>de</strong> músicas difíceis” (Gonçalves<br />

Pinto 1936: 130). Apesar <strong>de</strong> harmônica ser um sinônimo tanto para gaita <strong>de</strong> boca como para<br />

12<br />

Particularmente na Nacional, suas músicas ganham arranjos <strong>de</strong> Radamés Gnatalli. Falaremos dos con<strong>junto</strong>s<br />

regionais no capítulo 5. No que diz respeito à valorização do acor<strong>de</strong>om nesse contexto, Chiquinho do<br />

Acor<strong>de</strong>om se <strong>de</strong>stacou no regional <strong>de</strong> Claudionor Cruz e no Trio Surdina, ao lado <strong>de</strong> Garoto (violão) e Fafá<br />

Lemos (violino). Chiquinho integrou também o Sexteto Radamés Gnatalli, tendo sido o acor<strong>de</strong>onista<br />

preferido do maestro, a quem Radamés <strong>de</strong>dicou alg<strong>uma</strong>s peças <strong>de</strong> concerto.<br />

32


sanfona ou acor<strong>de</strong>om, o fato do músico atuar também como acompanhador sugere que ele<br />

tocava um instrumento harmônico, ou seja, a sanfona ou acor<strong>de</strong>om.<br />

Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, em 1928, nos lembra que “A sanfona que está influindo bem na<br />

melódica da zona mineira, é acompanhada por triângulo nos fuás 13 <strong>de</strong> Pernambuco”<br />

(Andra<strong>de</strong> 1928: 23), um primeiro indício do con<strong>junto</strong> típico nor<strong>de</strong>stino que Luiz Gonzaga<br />

viria a divulgar por todo o Brasil, como ele mesmo explica:<br />

Eu, no início da minha carreira, tocava sozinho... porque não sabia tocar, <strong>só</strong> sabia imitar os<br />

tocadores <strong>de</strong> valsas, <strong>de</strong> tangos. Só <strong>de</strong>pois é que eu precisei <strong>de</strong> <strong>uma</strong> banda. Foi quando me<br />

lembrei das bandas <strong>de</strong> pife que tocavam nas igrejas, na novena lá do Araripe e que tinham<br />

zabumba e às <strong>vez</strong>es também um triângulo. Quando não havia triângulo pra fazer o agudo, o<br />

pessoal tanto podia bater num ferrinho qualquer. Primeiro eu botei a zabumba me<br />

acompanhando. Mais tar<strong>de</strong>, n<strong>uma</strong> feira no Recife, eu vi um menino que vendia biscoitinho,<br />

e o pregão <strong>de</strong>le era tocando triângulo. Eu gostei, achei que daria um contraste bom com o<br />

zabumba, que era grave. Havia os pífanos, que têm o som agudo, mas eu não quis utilizálos<br />

porque a sanfona, com aquele sonzão <strong>de</strong>la, ia cobrir os pífanos todinhos. [...] Agora, o<br />

que eu criei, foi a divisão do triângulo, como ele é tocado no baião. Isso aí não era<br />

conhecido. (Gonzaga apud Dreyfus 1997:151, 152)<br />

Assim como Hermeto, Gonzaga também <strong>de</strong>staca a influência dos pífanos em sua<br />

formação musical. As bandas <strong>de</strong> pife aparecem aqui na origem do trio <strong>de</strong> forró que se<br />

generalizou com a música <strong>de</strong> Luiz Gonzaga. Mais <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> essas formações instrumentais<br />

estão <strong>de</strong> tal forma relacionadas que não há como estancá-las em gêneros musicais e<br />

histórias distintas. Mas, como vimos, os regionais <strong>de</strong> choro também participaram <strong>de</strong>ssa<br />

história que, por enquanto, apresenta dois músicos nor<strong>de</strong>stinos como protagonistas:<br />

Hermeto Pascoal e Luiz Gonzaga, cada qual em sua época com sua respectiva trajetória,<br />

mas ambos abraçados às suas sanfonas.<br />

13 Festa ou brinca<strong>de</strong>ira.<br />

33


3.2. Forró não é <strong>só</strong> aquilo<br />

Márcio Bahia, baterista que toca no grupo <strong>de</strong> Hermeto, enten<strong>de</strong> que o forró não é<br />

um ritmo específico, mas “é o lugar on<strong>de</strong> se toca o baião, o xote, o xaxado” (Bahia 2005).<br />

Hermeto já é mais ousado: “quando eu digo <strong>só</strong> <strong>de</strong> forró, tem frevo, tem maracatu, fiz pra<br />

mostrar que forró não é <strong>só</strong> aquilo, que forró abrange várias tendências musicais” (Pascoal<br />

1999).<br />

Ao dizer “forró não é <strong>só</strong> aquilo” Hermeto tal<strong>vez</strong> esteja se referindo ao conceito <strong>de</strong><br />

forró que generalizou-se com a migração <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>stinos para RJ, SP e Brasília na segunda<br />

meta<strong>de</strong> dos anos 1950. Segundo Tinhorão, houve então um processo <strong>de</strong> fusão <strong>de</strong> práticas<br />

regionais diversas, o que explicava o aparecimento <strong>de</strong> novos ritmos nor<strong>de</strong>stinos e novas<br />

casas <strong>de</strong> dança chamadas forrós. Como conseqüência <strong>de</strong>sse movimento, houve a criação <strong>de</strong><br />

um mercado (e um público) para um novo gênero <strong>de</strong> música urbana – o baião do<br />

pernambucano Luís Gonzaga e do cearense Humberto Teixeira, lançado na segunda meta<strong>de</strong><br />

da década <strong>de</strong> 1940 - e o surgimento <strong>de</strong> pequenas gravadoras “interessadas no lançamento <strong>de</strong><br />

ritmos como o xaxado, o coco, o xote, a polca e a mazurca” (Tinhorão 1976: 187).<br />

Tais produções musicais alcançaram o público primeiramente através <strong>de</strong> altofalantes<br />

públicos, nos circos ou nas praças e, em seguida, em locais apropriados para ouvir<br />

música e dançar: os forrós, chamados pelos cariocas <strong>de</strong> “gafieiras <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>stinos”. Nesses<br />

forrós, trabalhadores vindos dos mais diferentes estados do nor<strong>de</strong>ste reencontravam-se com<br />

sua cultura regional, ao som do trio (já clássico): sanfona, triângulo e zabumba (Tinhorão<br />

1976).<br />

Atualmente, forró parece ser um gênero aberto, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Hermeto, incluindo<br />

todos o gêneros que em <strong>de</strong>terminada época estão sendo dançados nos forrós (aqui<br />

entendidos como bailes), geralmente tocados pelos trios <strong>de</strong> forró, mas que hoje apresentam<br />

inúmeras outras formações. No entanto, alguns ritmos já estão tão associados ao contexto<br />

nor<strong>de</strong>stino que passaram a ser chamados <strong>de</strong> forró in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> on<strong>de</strong> e por qual<br />

formação são tocados. É o caso daqueles consagrados por Luiz Gonzaga: o baião, o xote, o<br />

arrasta-pé, o xaxado, <strong>de</strong>ntre outros, e é o caso também <strong>de</strong> ritmos <strong>de</strong> folguedos e<br />

brinca<strong>de</strong>iras populares nor<strong>de</strong>stinas como o coco, o frevo e até o maracatu. Além d<strong>isso</strong>, as<br />

34


diferentes técnicas instrumentais e as diferentes formações também vão imprimindo<br />

diferenças aos gêneros. Mas a acentuação rítmica não <strong>de</strong>ixa dúvidas.<br />

3.3. O zabumba do forró<br />

Para falar dos ritmos do forró, falaremos primeiramente <strong>de</strong> um instrumento – o<br />

zabumba – que faz a ponte entre os trios <strong>de</strong> forró e as bandas <strong>de</strong> pífano, como mencionado<br />

por Luiz Gonzaga e como veremos também no capítulo 6.<br />

E<strong>de</strong>r “o” Rocha, percussionista que sistematizou vários ritmos tocados pelo<br />

zabumba, 14 explica que o zabumba é um tambor grave <strong>de</strong> bojo largo, tocado em frente ao<br />

corpo, na diagonal, <strong>de</strong> forma que a mão dominante toque a pele mais grossa, <strong>de</strong> som grave,<br />

e a outra mão toque a pele <strong>de</strong> baixo, mais fina e <strong>de</strong> som agudo. Em geral utiliza-se <strong>uma</strong><br />

baqueta <strong>de</strong> ponta grossa e macia na mão dominante e um bacalhau ou vareta na outra mão.<br />

No caso das bandas <strong>de</strong> pífano, o zabumbeiro po<strong>de</strong> também não utilizar o bacalhau,<br />

percutindo e abafando a pele <strong>de</strong> baixo com a própria mão, como é o caso da Banda Dois<br />

Irmãos, <strong>de</strong> Caruaru. A partir <strong>de</strong> Luiz Gonzaga, esse tambor passou a ser conhecido<br />

principalmente como o “zabumba do forró”.<br />

De acordo com Rocha, embora o zabumba do forró ou zabumba do nor<strong>de</strong>ste seja o<br />

mais conhecido, há também o zabumba do maracatu nação <strong>de</strong> baque virado (também<br />

chamado <strong>de</strong> bombo ou alfaia), <strong>de</strong> Recife; do maracatu <strong>de</strong> Fortaleza; e do boi <strong>de</strong> zabumba<br />

do Maranhão, <strong>de</strong>ntre outros. Em todos esses casos, o que <strong>de</strong>fine o zabumba é a função que<br />

ele <strong>de</strong>sempenha, ou seja, é sempre o grave <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada tessitura.<br />

Segundo Rocha, esse tambor teria duas origens: o tambor grave das bandas militares<br />

e o omelê, um instrumento grave que seria o ancestral do zabumba no Nor<strong>de</strong>ste, tocado<br />

freqüentemente com a sanfona pé-<strong>de</strong>-bo<strong>de</strong> (oito-baixos). Assim como esta é <strong>uma</strong> versão<br />

mais simples e menos sonora do acor<strong>de</strong>om, o omelê seria o correspon<strong>de</strong>nte do zabumba.<br />

14<br />

E<strong>de</strong>r “o” Rocha participou do grupo Mestre Ambrósio, on<strong>de</strong> ele <strong>de</strong>senvolveu um set <strong>de</strong> percussão a que <strong>de</strong>u<br />

o nome <strong>de</strong> “zabumbateria”. Usarei seu nome na grafia que ele adota em seu método Zabumba mo<strong>de</strong>rno (s.d.),<br />

ou seja, E<strong>de</strong>r “o” Rocha. Participei <strong>de</strong> seu workshop em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005 na Escola <strong>de</strong> Música da UFMG,<br />

on<strong>de</strong> tive acesso a alg<strong>uma</strong>s das informações aqui registradas.<br />

35


Concordando com a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> forró proposta por Márcio Bahia, Rocha acredita<br />

que forró é a festa on<strong>de</strong> tem coco, ciranda, xaxado, xote, etc. Os ritmos e gêneros musicais<br />

vão se multiplicando, assim como nossa concepção múltipla <strong>de</strong> forró como um gênero<br />

aberto que abarca tantos outros...<br />

É preciso então conhecer isoladamente cada um dos ritmos que integram a<br />

concepção atual e abrangente <strong>de</strong> forró, <strong>de</strong>fendida por Hermeto. O maracatu e o frevo<br />

integram a concepção <strong>de</strong> forró citada, pois po<strong>de</strong>m muito bem ser tocados (e <strong>de</strong> fato o são)<br />

nos forrós pelos trios <strong>de</strong> sanfona, zabumba e triângulo. Quanto aos ritmos e gêneros que<br />

vimos perpassar tanto a história do choro, quanto a história do forró e das bandas <strong>de</strong><br />

pífanos, enfatizaremos aqui aqueles que permaneceram como típicos do forró, conforme a<br />

abordagem atual que me propus adotar.<br />

Os ritmos do zabumba que se seguem são transcritos conforme a notação <strong>de</strong><br />

zabumba proposta por Rocha, no livro Zabumba mo<strong>de</strong>rno. Apresento as versões <strong>de</strong> Rocha e<br />

Pitoco 15 para os ritmos <strong>de</strong>stacados. Para compreen<strong>de</strong>r os ritmos, tal qual são tocados no<br />

zabumba, é preciso seguir a legenda. A membrana superior é a que tem a pele mais grossa e<br />

é tocada com <strong>uma</strong> baqueta grossa e macia, produzindo um som grave que po<strong>de</strong> ser aberto<br />

(solto) ou fechado (abafado). A membrana inferior, mais fina, é tocada com <strong>uma</strong> vareta ou<br />

bacalhau, produzindo um som agudo que também po<strong>de</strong> ser aberto (solto) ou fechado<br />

(abafado).<br />

15<br />

Zezinho Pitoco é percussionista, saxofonista e clarinetista, toca na Orquestra Popular <strong>de</strong> Câmara e no grupo<br />

<strong>de</strong> Antônio Nóbrega, <strong>de</strong>ntre outros. Tive aulas <strong>de</strong> percussão com ele durante o “Encontro com a Dança e a<br />

Música brasileiras” no Teatro-Escola Brincante, em São Paulo, ano <strong>de</strong> 1998.<br />

36


a) Baião<br />

Também chamado <strong>de</strong> baiano, segundo Oneyda Alvarenga, era <strong>uma</strong> dança <strong>de</strong> pares<br />

solistas, com palmas, sapateados, umbigada, estalos <strong>de</strong> <strong>de</strong>dos ou eventualmente<br />

castanholas. Oneyda compara o lundu e o baiano, alegando que o lundu seria a origem do<br />

baiano que, por ser praticado na Bahia, passou a ter esse nome. Suas características<br />

musicais seriam as melodias sincopadas, os refrões semelhantes ao refrão dos lundus e <strong>de</strong><br />

outros gêneros “que revelam no seu corte rítmico que se <strong>de</strong>stinam a danças cheias <strong>de</strong><br />

movimentos <strong>de</strong> ancas” (Alvarenga s.d: 157).<br />

A partir <strong>de</strong> 1950, ficou conhecido em todo o Brasil, como o baião <strong>de</strong> Luiz Gonzaga<br />

(chamado <strong>de</strong> Rei do Baião) e passou a ser o ritmo mais característico do forró. O caráter<br />

modal das melodias, predominantemente em mixolídio, está presente nas toadas dos<br />

violeiros, na sonorida<strong>de</strong> característica dos pifes, 16 sendo retomado pelo baião <strong>de</strong> Gonzaga.<br />

Quanto ao ritmo, o baião apresenta a acentuação do tresillo bem marcada e tem inúmeras<br />

variantes, conforme o andamento e as acentuações.<br />

b) Coco<br />

O coco não tem <strong>uma</strong> formação instrumental específica, os instrumentos variam <strong>de</strong><br />

acordo com a região em que é tocado. Muitas <strong>vez</strong>es utilizam-se os instrumentos <strong>de</strong> outro<br />

folguedo ou brinca<strong>de</strong>ira. A dança (o trupé, passo característico) e o canto são recorrentes<br />

em alg<strong>uma</strong>s regiões, como no Coco <strong>de</strong> Arco Ver<strong>de</strong> (PE). Rocha distingue entre três tipos <strong>de</strong><br />

16 O flautista e “pifeiro” (tocador <strong>de</strong> pífano) Marcelo Chiaretti, explica que a nota do sétimo grau abaixada, do<br />

modo mixolídio, é própria para ser tocada no pífano e caracteriza sua sonorida<strong>de</strong>.<br />

37


coco: o <strong>de</strong>sdobrado (mais lento), o dobrado (mais rápido) e o coco-canção. Apresenta<br />

inúmeras variantes rítmicas, também <strong>de</strong>ntro do paradigma do tresillo.<br />

c) Xaxado<br />

Originalmente, o xaxado era <strong>uma</strong> dança executada apenas por “cabra macho”, no<br />

sertão <strong>de</strong> Pernambuco, sua disseminação por todo o nor<strong>de</strong>ste é atribuída ao bando <strong>de</strong><br />

Lampião, nas palavras <strong>de</strong> Luiz Gonzaga “o rifle é a dama” (EMB 2003). Era dança<br />

individual, em círculos, o arrastado das sandálias (xá-xá) caracterizando o nome xaxado.<br />

Mas, pela voz do próprio Gonzaga, Jackson do Pan<strong>de</strong>iro e outros compositores, o xaxado<br />

também se incorporou ao universo do forró, transformando-se em “xaxado urbano”, dança<br />

<strong>de</strong> salão com presença feminina, <strong>de</strong> par enlaçado. O ritmo assemelha-se ao do baião, mas<br />

apresenta andamento um pouco mais rápido e mais variações rítmicas.<br />

A seguir, apresento um quadro comparativo das marcações graves nos ritmos do<br />

baião, coco, xaxado e variantes:<br />

38


Fontes: Bahia (2005); Nenê<br />

(1999); Rocha (s.d);<br />

Pitoco (1998)<br />

39


Como vimos, o baião, o coco, o xaxado e suas variantes apresentam muitas<br />

semelhanças rítmicas, todos eles são variações <strong>de</strong>ntro do “paradigma do tresillo”, com a<br />

acentuação da “nota pendurada”. 17 As versões <strong>de</strong> Márcio Bahia e Nenê referem-se ao<br />

bumbo da bateria; enquanto Rocha e Pitoco tocam o zabumba. Não há um consenso entre<br />

eles em relação à marcação do grave do baião, do coco e do xaxado. Se compararmos as<br />

marcações graves <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les, a única semelhança que se mantém é o ritmo básico, a<br />

marcação da quarta pulsação mínima (“a pendurada”), que caracteriza o tresillo. Os<br />

zabumbeiros apresentaram mais variantes: Pitoco cita o baião-coco e o rojão (segundo ele,<br />

a junção <strong>de</strong> samba e baião); Rocha apresenta muitas variantes para o baião, o coco e o<br />

xaxado em seu livro. No presente estudo, foi necessário fazer <strong>uma</strong> seleção. Escolhi as<br />

variantes que apresentavam as marcações mais simples ou aquelas mais recorrentes, ou<br />

seja, as marcações graves que se repetiam na maioria <strong>de</strong>las. 18<br />

d) Xote<br />

A schottisch, dança <strong>de</strong> salão muito difundida em meados do século XIX na Europa,<br />

teve gran<strong>de</strong> aceitação ao chegar ao Brasil, sendo primeiramente adaptada pelos con<strong>junto</strong>s<br />

<strong>de</strong> choro. Logo se popularizou pelo Brasil rural como “xote”, tanto no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul,<br />

on<strong>de</strong> se adaptou à gaita, quanto no Nor<strong>de</strong>ste on<strong>de</strong> era executado no fole (Dreyfus 1997:<br />

110). Atualmente, o xote é tocado nos bailes <strong>de</strong> forró <strong>de</strong> todo o Brasil. A dança, a dois, é<br />

ca<strong>de</strong>nciada e sensual, <strong>de</strong> acordo com a música, <strong>de</strong> andamento mo<strong>de</strong>rado. Um exemplo bem<br />

conhecido é o “Xote das Meninas”, <strong>de</strong> Luiz Gonzaga.<br />

17<br />

“Nota pendurada” é um exemplo da linguagem musical praticada na Escola Jabour, como veremos no<br />

capítulo 11.<br />

18<br />

Para notações <strong>de</strong>talhadas dos ritmos no zabumba e suas variantes, ver Rocha (s.d.). Para as adaptações dos<br />

ritmos do forró para a bateria ver Nenê (1999).<br />

40


e) Maracatu<br />

Qual maracatu? Ao falar maracatu, Hermeto se refere ao maracatu nação, ou<br />

maracatu <strong>de</strong> baque virado, pois ele viveu em Recife e teve contato com esse ritmo tanto nas<br />

ruas, durante o carnaval, quanto na rádio on<strong>de</strong> trabalhava, como veremos no capítulo 5. 19<br />

O maracatu <strong>de</strong> baque virado é um cortejo real cuja origem remonta às festas <strong>de</strong><br />

coroação <strong>de</strong> reis negros, durante a instituição do Rei do Congo no Brasil, que data <strong>de</strong> 1662,<br />

segundo Guerra-Peixe (1980). Nessas ocasiões, diversos grupos ou nações concorriam para<br />

celebrar o rei eleito. Se a instituição <strong>de</strong>sapareceu em meados do século XIX, em Recife<br />

permaneceu o auto dos “Congos”, dramatização da antiga coroação. Mas a parte teatral foi<br />

sendo suprimida e o cortejo com as personagens <strong>de</strong>rivou para o maracatu, um folguedo com<br />

música e dança.<br />

No cortejo, <strong>uma</strong> corte é formada: rei, rainha, dama do passo, calunga, catirinas,<br />

brincantes. O baque vai atrás, com suas alfaias, bombos ou zabumbas, xequerês, 20 caixa ou<br />

tarol, gonguê e ganzás. 21 Quem não dança, não toca, quem não toca, não canta, quem não<br />

canta, não brinca... Os movimentos da dança sugerem os movimentos do toque das alfaias.<br />

A polirritmia entre percussão e canto predomina, mas não há que se falar em dificulda<strong>de</strong>s<br />

técnicas. As habilida<strong>de</strong>s se integram na brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> rua.<br />

Baque é o nome dado tanto para a orquestra <strong>de</strong> percussão quanto para os diferentes<br />

padrões rítmicos executados, que são inúmeros, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da loa ou toada cantada e do<br />

19<br />

Além <strong>de</strong>sse, existem pelo menos dois outros tipos <strong>de</strong> maracatu, o maracatu <strong>de</strong> baque solto ou maracatu<br />

rural e o maracatu <strong>de</strong> Fortaleza (ver Rocha s.d.).<br />

20<br />

Xequerê é “um chocalho externo feito com <strong>uma</strong> cabaça envolta n<strong>uma</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> malhas gran<strong>de</strong>s em cujas<br />

interseções e, eventualmente, em todo o fio da malha, são colocadas sementes” (Frungillo 2003: 389).<br />

21<br />

Gonguê “é o nome da campânula <strong>de</strong> metal cônica, simples ou dupla, com cabo, tocada com baqueta <strong>de</strong><br />

metal ou ma<strong>de</strong>ira” (Frungillo 2003: 141); o ganzá ou mineiro utilizado em alguns maracatus é um chocalho<br />

cilíndrico feito <strong>de</strong> metal.<br />

41


grupo que a executa. Os padrões <strong>de</strong>stacados por Rocha referem-se sobretudo à sua vivência<br />

no grupo <strong>de</strong> maracatu Estrela Brilhante, dirigido por Walter França, no Alto Zé do Pinho,<br />

em Recife, adaptados nesta notação para o zabumba do forró.<br />

A variante <strong>de</strong> gonguê que se popularizou no su<strong>de</strong>ste do Brasil, em composições e<br />

arranjos <strong>de</strong> maracatu na música <strong>de</strong> Guerra-Peixe, Hermeto Pascoal, <strong>de</strong>ntre vários outros<br />

compositores, é <strong>uma</strong> das variantes do gonguê recolhidas pelo próprio Guerra-Peixe.<br />

Curiosamente, esta variante foi mais difundida do que o padrão utilizado pelos<br />

grupos tradicionais Estrela Brilhante e Leão Coroado, por exemplo.<br />

42


Uma das explicações possíveis para este fato seria o aprendizado do maracatu por<br />

músicos e compositores através <strong>de</strong> fontes secundárias, no caso o trabalho <strong>de</strong> Guerra-Peixe,<br />

que era a principal referência e, durante os anos 1970, teria sido mais difundido no su<strong>de</strong>ste<br />

do Brasil do que a própria música dos maracatus tradicionais.<br />

f) Frevo<br />

O frevo é <strong>uma</strong> marcha acelerada, originada da “fervura” das marchas militares<br />

misturadas ao ritmo da capoeira. Segundo Tinhorão (1975: 137, 138), essa mistura teria se<br />

dado nos <strong>de</strong>safios entre bandas rivais, nos quais figuravam grupos <strong>de</strong> capoeiras abrindo<br />

caminho e passando rasteiras. No auge do <strong>de</strong>safio, as marchas se aceleravam, juntamente<br />

aos passos, dando origem à dança e música que conhecemos hoje. Música alegre, animada,<br />

<strong>de</strong> andamento rápido, próprio para os passos, rodopios e pulos virtuosísticos dos<br />

dançarinos-equilibristas, com a tradicional sombrinha colorida.<br />

Rocha (s.d.) distingue entre o frevo <strong>de</strong> rua, o frevo <strong>de</strong> bloco e o frevo-canção. As<br />

orquestras <strong>de</strong> frevo atuais guardam resquícios <strong>de</strong> sua origem. Principalmente as orquestras<br />

<strong>de</strong> frevo <strong>de</strong> rua, compostas pelos metais (naipe <strong>de</strong> trompete, trombone, saxofone e tuba)<br />

lado a lado à caixa-clara, ao pan<strong>de</strong>iro e ao surdo. Os frevos <strong>de</strong> rua são os frevos<br />

instrumentais. As orquestras <strong>de</strong> frevo <strong>de</strong> bloco substituem os metais pelas ma<strong>de</strong>iras (flauta,<br />

clarineta e sax), e acrescentam o naipe <strong>de</strong> cordas <strong>de</strong>dilhadas (violão, cavaquinho, banjo e<br />

bandolim) e às <strong>vez</strong>es também um ou dois instrumentos <strong>de</strong> cordas friccionadas (violino e<br />

viola), essas orquestras po<strong>de</strong>m também ser chamadas “orquestras <strong>de</strong> cordas <strong>de</strong>dilhadas”. As<br />

canções são entoadas por várias vozes, formando um coro. São os chamados frevos-canção.<br />

Nas orquestras <strong>de</strong> clubes, os frevos-canção são interpretados por cantores, em coro ou solo,<br />

e, além dos instrumentos tradicionais <strong>de</strong> sopro e percussão, são acrescentados instrumentos<br />

elétricos (guitarra, baixo e teclado).<br />

Atualmente, os trios <strong>de</strong> forró também tocam frevo, à sua maneira. O zabumba se<br />

<strong>de</strong>sdobra entre o ritmo da caixa (no bacalhau) e do surdo (na pele grave), enquanto um<br />

triângulo faz a célula rítmica característica da marcha: .<br />

43


g) Arrasta-pé<br />

Rocha chama esse ritmo <strong>de</strong> marcha junina ou marcha <strong>de</strong> quadrilha, presente na<br />

própria quadrilha, manifestação originada dos bailes franceses, que aqui anima as festas <strong>de</strong><br />

São João, como veremos a seguir.<br />

44


4. Anarriê<br />

4.1. O baile que era choro que hoje é forró...<br />

“Anarriê” vem <strong>de</strong> en arrière (“para trás” em francês) e remete às quadrilhas das<br />

festas <strong>de</strong> São João que atualmente acontecem por todo o Brasil no mês <strong>de</strong> junho. Mas se<br />

voltamos ainda mais “para trás”, <strong>de</strong>scobrimos que quadrilha era também <strong>uma</strong> dança<br />

animada pelos choros no Rio <strong>de</strong> Janeiro, ainda no século XIX. E não <strong>só</strong> no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Segundo Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, “a quadrilha fez furor no Recife por 1840 <strong>de</strong>sbancando tudo<br />

quanto era dança do tempo” (Andra<strong>de</strong> 1999: 414).<br />

A quadrilha torna-se portanto mais um elo <strong>de</strong> ligação entre o choro e o forró que<br />

conhecemos hoje. Apesar <strong>de</strong> atualmente ela estar mais associada ao forró, tanto ela<br />

pertence ao universo do choro que quem vai explicar como ela acontecia é Alexandre<br />

Gonçalves Pinto, o saudoso chorão:<br />

A quadrilha era <strong>uma</strong> dança figurada com cadência <strong>de</strong> seis por oito e dois por quatro no<br />

compasso. [...] Esse estilo <strong>de</strong> dança traz sauda<strong>de</strong>s das marcações: “Travessê!”, “Balancê!”,<br />

“Tour!”, “Anavancatre!”, “Marcantes anavan!”, “Caminhos da roça!”, “Volta gente que está<br />

chovendo!” [...] Para ser marcante era preciso conhecer todas as evoluções da quadrilha, e<br />

estar muito atento ao <strong>de</strong>senrolar da música. (Gonçalves Pinto 1936: 112, 113)<br />

Como bom observador, Alexandre não <strong>só</strong> <strong>de</strong>screve momentos engraçados das<br />

quadrilhas que freqüentava, como também aponta diferenças entre as quadrilhas dançadas<br />

nos salões dos bairros <strong>de</strong> Botafogo e Tijuca (os ricos) e a“que era <strong>de</strong>sengonçada na Cida<strong>de</strong><br />

Nova e Jacarepaguá” (Gonçalves Pinto 1936: 113), a “roda do povo”:<br />

Os ricos [...] observavam rigorosamente a pronúncia francesa e a orquestra <strong>só</strong> parava<br />

quando o “marcante” dava o sinal. Na roda do povo [...] a marcação era gozada porque<br />

sendo feita num “francês-macarrônico”, tinha uns enxertos, conforme a festivida<strong>de</strong> do<br />

marcante. (Gonçalves Pinto 1936: 113)<br />

45


Ele dá um exemplo <strong>de</strong>ssas invenções das quadrilhas do povo:<br />

No “caminho da roça”, por exemplo, davam-se passagens <strong>de</strong> rir a bom rir, porque muitas<br />

<strong>vez</strong>es, percorria-se toda a casa, saindo pela cozinha para entrar novamente pela sala <strong>de</strong><br />

visitas. Aí o marcante bradava: - Aos seus lugares! Era a hora do fuzuê... (Gonçalves Pinto<br />

1936: 114)<br />

Se lembrarmos da famosa disposição da casa da Tia Ciata 22 e dos ritmos que<br />

aconteciam em cada cômodo, po<strong>de</strong>mos imaginar <strong>uma</strong> quadrilha que vai da sala <strong>de</strong> jantar à<br />

cozinha e <strong>de</strong> volta à sala <strong>de</strong> jantar, passando pelo choro, pelo samba, pelo batuque,<br />

terminando em fuzuê, ou quem sabe em forró. Apesar <strong>de</strong> ser apenas <strong>uma</strong> suposição, não<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> simbolizar bem o caminho da quadrilha <strong>de</strong> dança <strong>de</strong> salão a dança do povo, ou dos<br />

bailes animados pelos choros ao bailes chamados forrós.<br />

Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> fala do abrasileiramento da quadrilha, sugerindo ainda o caminho<br />

do salão para o terreiro “ao ar livre”: “Dança <strong>de</strong> salão, aos pares, <strong>de</strong> origem francesa, e que<br />

no Brasil passou a ser dançada também ao ar livre, nas festas do mês <strong>de</strong> junho em Louvor a<br />

São João, Santo Antônio e São Pedro” (Andra<strong>de</strong> 1999: 414).<br />

Sobre a religiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa e <strong>de</strong> outras festas falaremos a seguir. Agora é preciso<br />

atentar para a música das quadrilhas. Nada melhor do que as engraçadas <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong><br />

Alexandre Gonçalves Pinto, ao falar dos <strong>de</strong>sencontros entre o marcante e o “mestre do<br />

choro”, um dos músicos que atuava também como regente dos con<strong>junto</strong>s:<br />

Sucedia muitas <strong>vez</strong>es que o marcante se entusiasmava e se esquecia <strong>de</strong> dar sinal para acabar<br />

<strong>uma</strong> parte, o choro parava <strong>de</strong>ixando em meio <strong>uma</strong> evolução. Era motivo para gargalhadas<br />

gerais... [...] Sucedia ainda que o mestre do choro, por malhas ou por tralhas, não gostasse<br />

do marcante: antipatia, inimiza<strong>de</strong> pessoal, dor <strong>de</strong> cotovelo e então sujeitava-o às mais<br />

<strong>de</strong>sconcertantes borracheiras em pleno salão. On<strong>de</strong> isto não sucedia era nos bailes <strong>de</strong><br />

harmônica; porque o tocador <strong>só</strong> parava quando o marcante dizia: - Pára mano veio!... (<br />

Gonçalves Pinto 1936: 114)<br />

Enquanto as quadrilhas dos salões mais abastados eram animadas por orquestras,<br />

(como se vê na página anterior), as quadrilhas “do povo” eram animadas pelos choros, mas<br />

22 Sobre a disposição da casa da Tia Ciata, ver Moura (1983) e Sandroni (2001: 100, 117).<br />

46


em alguns bailes figurava a harmônica ou sanfona, que sozinha animava o salão, tornando<br />

mais direta a relação do músico com o marcante. Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, já em sua época,<br />

atesta: “o acompanhamento tradicional das quadrilhas é a sanfona” (Andra<strong>de</strong> 1999: 414).<br />

Mas a quadrilha <strong>de</strong> que estamos falando é também um gênero musical pertencente<br />

ao universo do choro. Em geral, é formada por cinco partes: a primeira e a terceira parte são<br />

em 6/8 (seis por oito) e as outras três (segunda, quarta e quinta) em 2/4 (dois por quatro).<br />

Inúmeros chorões compuseram quadrilhas, como Joaquim Callado, Henrique Alves <strong>de</strong><br />

Mesquita e “o inesquecível Barata, o sempre lembrado Silveira, o saudoso Metra, o<br />

inolvidável Anacleto” (Gonçalves Pinto 1936: 112).<br />

Câmara Cascudo diz: “no Brasil, em todo lugar se dançou a quadrilha, em cinco<br />

partes, com introdução vibrante, movimentos vivos em 6/8 e 2/4, terminando sempre em<br />

um galope” (Câmara Cascudo 2001: 548). Mas as quadrilhas <strong>de</strong> que fala Alexandre<br />

terminavam com <strong>uma</strong> polca, após a agitação da quinta parte, como <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> “prêmio<br />

<strong>de</strong> consolação” aos pares <strong>de</strong> namorados: “<strong>uma</strong> polca bem chorosa, bem macia, bem<br />

ca<strong>de</strong>nciada e que compensava perfeitamente os esforços empregados na quadrilha”<br />

(Gonçalves Pinto 1936: 114).<br />

Atualmente, o gênero musical <strong>de</strong>nominado quadrilha, pertencente ao universo do<br />

choro, é praticamente <strong>de</strong>sconhecido.<br />

A quadrilha caiu em completo <strong>de</strong>suso entre os chorões a partir da terceira década do século<br />

XX, tendo sido o único gênero ligado ao choro cuja tradição oral <strong>de</strong>sapareceu<br />

completamente. A partir da década <strong>de</strong> 1990, graças ao violonista Maurício Carrilho, a<br />

quadrilha foi “recriada”, assumindo um caráter mais camerístico, com um andamento mais<br />

lento, que possibilita salientar as belas melodias e o caráter lírico das antigas quadrilhas.<br />

(Paes e Aragão 2005: 19)<br />

Apesar <strong>de</strong>sse ressurgimento da quadrilha enquanto gênero e forma musical, o nome<br />

quadrilha, em nossa época, ainda é predominantemente associado à dança e ao gênero<br />

musical chamado “marcha <strong>de</strong> quadrilha”, tocado nas festas <strong>de</strong> São João por todo o Brasil,<br />

pertencente ao universo do forró e não do choro, como explicado no livro Zabumba<br />

mo<strong>de</strong>rno: “marchas juninas: também chamadas <strong>de</strong> arrasta-pé, marcha <strong>de</strong> quadrilha ou<br />

marchinhas sertanejas [...]. Essa música faz parte do contexto das quadrilhas –<br />

47


manifestações <strong>de</strong>rivadas dos gran<strong>de</strong>s bailes franceses -, que representam um bem humorado<br />

baile <strong>de</strong> casamento” (Rocha s.d: 30).<br />

Nesse contexto, arrasta-pé é sinônimo para marcha <strong>de</strong> quadrilha, tocado pelos trios<br />

<strong>de</strong> forró. Como vimos, arrasta-pé já foi o nome dos bailes animados pelos choros e<br />

quadrilha <strong>uma</strong> das danças que lá aconteciam. Tinhorão aponta o sucesso do maxixe, em fins<br />

do século XIX, como <strong>uma</strong> das possíveis causas para o <strong>de</strong>saparecimento das quadrilhas nos<br />

salões, quando estas “transformaram-se em dança pitoresca, exclusiva das festas <strong>de</strong> São<br />

João” (Tinhorão 1997: 124).<br />

De qualquer forma, a perpetuação da quadrilha como <strong>uma</strong> tradição brasileira não<br />

apenas exemplifica claramente a íntima relação entre a história do forró e do choro, como<br />

também sugere a disseminação da cultura oral e a permanência <strong>de</strong> manifestações antigas<br />

em contextos diversos.<br />

4.2. “As nossas festas”: origens do choro carioca<br />

São João, Santo Antônio, São Pedro, São Sebastião, São Francisco... Santos não<br />

faltam para serem celebrados e assim as festas não param <strong>de</strong> acontecer durante todo o ano<br />

no Brasil. Se no capítulo 6 veremos a função das bandas <strong>de</strong> pífanos em alg<strong>uma</strong>s <strong>de</strong>ssas<br />

celebrações, aqui nos <strong>de</strong>teremos em alg<strong>uma</strong>s funções animadas pelos choros ainda no<br />

século XIX. Em contextos e épocas diversas, essas duas formações instrumentais<br />

apresentam um objetivo comum: a função social <strong>de</strong> celebrar datas importantes em suas<br />

respectivas comunida<strong>de</strong>s. Essa faceta da história dos choros não cost<strong>uma</strong> ser <strong>de</strong>stacada. No<br />

entanto, saber que essa formação instrumental tomou parte em celebrações <strong>de</strong> rua,<br />

religiosas ou não, não <strong>só</strong> a aproxima das bandas <strong>de</strong> pífano como revela inúmeros aspectos<br />

interessantes <strong>de</strong> sua história.<br />

No pequeno capítulo “As nossas festas”, Alexandre Gonçalves Pinto (1936: 64, 65)<br />

narra on<strong>de</strong> e quando os choros tinham oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tocar: nas festas <strong>de</strong> “Ano Bom”,<br />

quando “As famílias se reuniam para festejar [...] organizando boas serenatas, e maviosos<br />

choros em louvor a São Silvestre” (Gonçalves Pinto 1936: 64) e também no...<br />

48


dia do Mártir São Sebastião, padroeiro <strong>de</strong>sta cida<strong>de</strong> maravilhosa, dia este que tinha o<br />

esplendor das festas <strong>de</strong> todos os lares familiares, realizações <strong>de</strong> casamentos e batizados,<br />

bailes cheios <strong>de</strong> alegria organizados por chorões que com suas harmonias <strong>de</strong>liciavam a<br />

gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong>ste dia. Depois o Carnaval com as cinzas precursoras da Semana Santa.<br />

(Gonçalves Pinto 1936: 64)<br />

Havia também um lugar chamado “Ponto dos chorões”, on<strong>de</strong> “imperava o chôro nas<br />

festas <strong>de</strong> Santo Antônio, São João, São Pedro e Sant’Anna” (Gonçalves Pinto 1936: 95).<br />

Ainda sobre as festas <strong>de</strong> São Francisco: “Também eram encontrados muitos músicos<br />

chorões que combinavam boas patuscadas” (Gonçalves Pinto 1936: 95).<br />

Todas as festas, primeiramente animadas pelas bandas <strong>de</strong> escravos e homens livres<br />

<strong>de</strong>pois já pelos choros da cida<strong>de</strong>, eram festas do calendário religioso, com exceção, é claro,<br />

do carnaval. Sobre a relação dos chorões com as festas, Alexandre Gonçalves Pinto<br />

conclui: “festas estas que tinham resplendor e <strong>de</strong>votamento em cada um chorão da velha<br />

guarda, no correr do ano” (Gonçalves Pinto 1936: 65). As funções eram animadas e a<br />

presença dos chorões, ou seja, dos con<strong>junto</strong>s <strong>de</strong> flauta, violão, cavaquinho e oficlei<strong>de</strong>, 23<br />

principalmente, era indispensável. Além das oito festas principais, sete do calendário<br />

religioso e <strong>uma</strong> profana, o carnaval, havia ainda as festas <strong>de</strong> casamento e batizado, e as<br />

serenatas A partir <strong>de</strong>ssas constatações, Tinhorão <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que<br />

o choro é mais <strong>uma</strong> contribuição indireta da Igreja Católica, no Brasil, às alegres<br />

manifestações pagãs das camadas populares. Sob o título “A Alvorada da Música” [...],<br />

Alexandre Gonçalves Pinto dá a enten<strong>de</strong>r – mais do que diz, expressamente – que a origem<br />

do choro por ele <strong>de</strong>cantado em suas memórias dos velhos chorões estaria nas bandas que<br />

saíam a tocar nas festas <strong>de</strong> igreja [...]. (Tinhorão 1997: 112)<br />

Ainda segundo Tinhorão, a origem do choro carioca remonta às bandas <strong>de</strong> músicas<br />

<strong>de</strong> escravos das fazendas fluminenses e da própria corte, na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX.<br />

No início do século XX, os con<strong>junto</strong>s que tocavam nas casas eram tantos que alg<strong>uma</strong>s<br />

passaram a ficar conhecidas pela presença dos melhores músicos. Como exemplo, as festas<br />

<strong>de</strong> Machadinho, que duravam dias seguidos, nas quais os chorões se re<strong>vez</strong>avam para<br />

23 Oficlei<strong>de</strong> é um instrumento <strong>de</strong> sopro grave, muito utilizado nos primórdios do choro para fazer os<br />

contracantos, seria um híbrido <strong>de</strong> fagote e bombardino.<br />

49


mostrar seu talento. Na casa <strong>de</strong> Adauto, as “brinca<strong>de</strong>iras eram realizadas com chorões<br />

escolhidos” (Gonçalves Pinto 1936: 94). Na falta <strong>de</strong> bailes públicos ou rádio, os músicos<br />

ficavam conhecidos nas festas particulares <strong>de</strong> maior fama e seu virtuosismo corria <strong>de</strong> bocaem-boca<br />

(Tinhorão 1997).<br />

O Rio <strong>de</strong> Janeiro posterior a 1870 (que é até quando recuam as memórias <strong>de</strong> Alexandre<br />

Gonçalves Pinto) até cerca <strong>de</strong> 1930 (quando estão morrendo os últimos chorões e com eles o<br />

choro boêmio) era um Rio <strong>de</strong> Janeiro muito provinciano. As diversões públicas – como os<br />

cafés cantantes dos remediados e os chopes-berrantes, mais populares – <strong>só</strong> começaram a<br />

aparecer praticamente no início do século, quando o rápido processo <strong>de</strong> urbanização<br />

conseqüente da abolição da escravatura e da formação das pequenas indústrias [...] provocou<br />

<strong>uma</strong> brusca modificação na fisionomia social da cida<strong>de</strong>. (Tinhorão 1997: 121, 122)<br />

Ao fazer um levantamento das biografias dos músicos, cantores, mestres <strong>de</strong> bandas<br />

e boêmios referidos por Alexandre Gonçalves Pinto, Tinhorão afirma que, <strong>de</strong>ntre estes, há<br />

principalmente tocadores <strong>de</strong> violão, flautistas, 24 cavaquinistas e tocadores <strong>de</strong> oficlei<strong>de</strong>. Mas<br />

também há vários trombonistas, trompetistas, bandolinistas, clarinetistas, tocadores <strong>de</strong><br />

requinta e <strong>de</strong> harmônica, cantores, pianistas, regentes, poetas e também os anfitriões das<br />

casas on<strong>de</strong> se reuniam os choros.<br />

Alexandre cita a profissão <strong>de</strong> muitos chorões: carteiros, soldados, componentes das<br />

bandas <strong>de</strong> corporação, feitores <strong>de</strong> obras, pequenos empregados do comércio e burocratas.<br />

Depois dos correios, a instituição <strong>de</strong> on<strong>de</strong> mais saíam chorões eram as bandas militares.<br />

Tais bandas eram importantes núcleos formadores <strong>de</strong> músicos, e havia várias <strong>de</strong>las, 25 frente<br />

à escassez <strong>de</strong> orquestras (Tinhorão 1997).<br />

Segundo Tinhorão, os con<strong>junto</strong>s <strong>de</strong> choro tiveram seu apogeu até que a atração das<br />

revistas e, <strong>de</strong>pois, do disco e do rádio, vieram diversificar os meios <strong>de</strong> diversão. O maxixe e<br />

o samba, juntamente com a música das jazz-bands, puseram fim à “era sentimental dos<br />

chorões”. Alguns chorões se profissionalizaram para tocar nas orquestras <strong>de</strong> cinema e<br />

24<br />

Alguns ainda tocavam a flauta do sistema antigo, <strong>de</strong> cinco chaves.<br />

25<br />

Alg<strong>uma</strong>s bandas citadas por Alexandre Gonçalves Pinto: a Banda do Corpo <strong>de</strong> Marinheiros, a da Guarda<br />

Nacional, a do Batalhão Municipal e, principalmente, a do Corpo <strong>de</strong> Bombeiros, da qual Anacleto <strong>de</strong><br />

Me<strong>de</strong>iros era regente.<br />

50


teatros <strong>de</strong> revistas, outros a<strong>de</strong>riram às jazz-bands, trocando o oficlei<strong>de</strong> pelo saxofone.<br />

Tinhorão lamenta os tempos idos e a influência crescente da cultura americana,<br />

arrematando: “<strong>de</strong> toda a experiência se salvava, afinal, um gênero novo <strong>de</strong> música popular,<br />

o choro” (Tinhorão 1997: 124).<br />

51


5. Da roda aos regionais<br />

5.1. O choro faz escola<br />

Não compartilho das lembranças e do saudosismo <strong>de</strong> Alexandre Gonçalves Pinto<br />

nem da nostalgia <strong>de</strong> Tinhorão porque, obviamente, não vivi “naquele tempo”. Procuro<br />

conhecer e reconhecer o choro como <strong>uma</strong> tradição viva, tanto em gravações antigas da Casa<br />

Edison, como em rodas <strong>de</strong> choro, shows e gravações recentes <strong>de</strong> Hermeto Pascoal, Moacir<br />

Santos, Maurício Carrilho, Luciana Rabello, <strong>de</strong>ntre outros. E foi a partir <strong>de</strong>ssas escutas e <strong>de</strong><br />

alg<strong>uma</strong> vivência no meio musical que fui percebendo a importância do choro como <strong>uma</strong><br />

escola <strong>de</strong> instrumentistas. Enten<strong>de</strong>ndo “escola” aqui como o lugar on<strong>de</strong> o aprendizado parte<br />

da convivência, sendo espontâneo e praticamente inevitável.<br />

Essa escola teve seu papel naquela época, fins do século XIX e início do século XX,<br />

quando não havia as escolas <strong>de</strong> música propriamente ditas. Supriam essa lacuna as bandas<br />

das corporações e os con<strong>junto</strong>s e rodas <strong>de</strong> choro, como afirma o próprio Alexandre sobre o<br />

choro <strong>de</strong> um certo Ge<strong>de</strong>ão: “Morava n<strong>uma</strong> pequena casa na Rua Machado Coelho, perto do<br />

Estácio, esta casa era a reunião dos chorões, sendo portanto <strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> escola <strong>de</strong><br />

musicistas, on<strong>de</strong> o autor <strong>de</strong>ste livro ia ali beber naquela fonte sua aprendizagem <strong>de</strong> violão e<br />

cavaquinho (Gonçalves Pinto 1936: 17)”<br />

Mais tar<strong>de</strong>, foram os con<strong>junto</strong>s regionais que assumiram o papel <strong>de</strong> formar os<br />

instrumentistas. Nas rádios, os músicos tinham contato com gêneros musicais diversos que<br />

aos poucos iam incorporando ao seu vocabulário musical, com a orientação dos maestros,<br />

compositores e arranjadores ou, como narrado por Hermeto no capítulo 6, apenas assistindo<br />

aos ensaios. Músicos como Jackson do Pan<strong>de</strong>iro, Guerra-Peixe, Radamés Gnatalli, Moacir<br />

Santos, Sivuca, além <strong>de</strong> Luiz Gonzaga e do próprio Hermeto, passaram por essa<br />

experiência, seja como mestres ou pupilos.<br />

Mas as rodas <strong>de</strong> choro não <strong>de</strong>sapareceram, como dá a enten<strong>de</strong>r Tinhorão quando<br />

escreve o capítulo “Como as revistas, o disco e o rádio mataram o choro” (Tinhorão 1997:<br />

121). Um chorão que tocava no regional da rádio ou nas gravações <strong>de</strong> sambas dificilmente<br />

<strong>de</strong>ixa a roda <strong>de</strong> lado. Ainda hoje, a roda é, por excelência, o espaço <strong>de</strong> confraternização dos<br />

52


chorões e não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> manter seu papel <strong>de</strong> escola, ou seja, <strong>de</strong> convivência e trocas<br />

musicais.<br />

5.2. Inventando a roda<br />

Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, no Dicionário musical brasileiro, fala da ambigüida<strong>de</strong> da<br />

palavra choro, que <strong>de</strong>signa um gênero musical e um agrupamento instrumental. Ele sugere<br />

que o termo choro viria da expressão “chorar”, metáfora muito utilizada para <strong>de</strong>signar<br />

<strong>de</strong>terminada maneira <strong>de</strong> tocar, que afinal <strong>de</strong>senvolveu-se como <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> um gênero<br />

musical. Apesar <strong>de</strong> caracterizar o choro primeiramente como música noturna <strong>de</strong> caráter<br />

popular coreográfico, ele procura logo <strong>de</strong>svencilhá-lo <strong>de</strong> qualquer função utilitária,<br />

afirmando seu caráter eminentemente instrumental e até anticoreográfico, sendo portanto<br />

música <strong>de</strong>sinteressada.<br />

Como vimos, o choro “<strong>de</strong>sinteressado” é o choro que conhecemos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />

primeiras gravações até hoje, mas as memórias <strong>de</strong> Alexandre Gonçalves Pinto revelam<br />

justamente a importância dos con<strong>junto</strong>s chamados choros nas festivida<strong>de</strong>s religiosas e<br />

familiares do Rio <strong>de</strong> Janeiro provinciano. Nem sempre os choros tiveram função<br />

“puramente musical” como quer Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Ele tinha como referência as gravações<br />

que ouvia, o “Urubu”, interpretado por Pixinguinha, por exemplo, que ele cita mais <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

<strong>vez</strong> (Andra<strong>de</strong> 1928 e 1999), <strong>de</strong>stacando a rapi<strong>de</strong>z e o virtuosismo do intérprete. A partir da<br />

exuberância instrumental que Mário procura enfatizar, ele aproxima o choro do jazz e do<br />

caráter allegro da música erudita.<br />

Ao falar dos con<strong>junto</strong>s chamados choros, Câmara Cascudo afirma que eles<br />

“tocavam músicas populares comuns, a que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ram um traço próprio e <strong>uma</strong><br />

expressão típica” (Câmara Cascudo 2001: 135). Assim ele explica os dois significados da<br />

palavra choro: um con<strong>junto</strong> instrumental cujo repertório aos poucos adquire <strong>uma</strong><br />

“expressão típica” e passa também a ser chamado <strong>de</strong> choro.<br />

Até agora <strong>uma</strong> característica fundamental é apontada: o caráter instrumental. De<br />

fato, ao sintetizar <strong>uma</strong> formação instrumental e em seguida a música a que essa formação<br />

<strong>de</strong>u origem, o choro continua até hoje equilibrando esses significados e, <strong>de</strong>ssa forma, foi<br />

possível a consolidação <strong>de</strong> um repertório <strong>de</strong> música instrumental ao longo <strong>de</strong> várias<br />

53


gerações <strong>de</strong> músicos. Esse repertório, apesar <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong>s exceções <strong>de</strong> músicas com letras<br />

colocadas posteriormente, consolidou <strong>uma</strong> tradição <strong>de</strong> música instrumental brasileira a que<br />

chamamos hoje <strong>de</strong> choro.<br />

A concepção <strong>de</strong> choro como grupo instrumental não <strong>de</strong>sapareceu, tanto que aos<br />

poucos vão sendo inseridos outros ritmos e outras melodias no repertório dos chorões,<br />

todos eles sendo incorporados ao universo do choro. Por exemplo, <strong>uma</strong> música do próprio<br />

Hermeto Pascoal, “Bebê”, que originalmente, é um baião, mas é tocada em rodas e por<br />

grupos <strong>de</strong> choro.<br />

Participando em rodas <strong>de</strong> choro, como ouvinte e musicista, observei que a palavra<br />

continua sendo usada em diferentes sentidos, referindo-se ora ao grupo que toca, ora às<br />

músicas tocadas. No entanto, prevalece o uso da palavra choro significando o tipo <strong>de</strong><br />

música. Nesse sentido, ainda é interessante notar que, por um lado, trata-se <strong>de</strong> um gênero<br />

que engloba vários outros, tal<strong>vez</strong> como um resquício daquele sentido original <strong>de</strong> “maneira<br />

<strong>de</strong> tocar”, ou seja, praticamente qualquer música sendo tocada <strong>de</strong> tal maneira por um grupo<br />

<strong>de</strong> choro, é choro. Mas, por outro lado, choro <strong>de</strong>signa também um gênero com<br />

características próprias, que o diferem da polca, do maxixe, do tango etc.<br />

Se um brasileiro, acost<strong>uma</strong>do a ouvir <strong>uma</strong> roda <strong>de</strong> choro, escuta “A vida é um<br />

buraco”, “Naquele tempo”, ambas <strong>de</strong> Pixinguinha e “O gaúcho”, <strong>de</strong> Chiquinha Gonzaga<br />

(músicas muito conhecidas e tocadas nas rodas <strong>de</strong> choro <strong>de</strong> Belo Horizonte, por exemplo),<br />

provavelmente ele reconhece todas essas músicas como sendo choros, por estarem sendo<br />

tocadas naquele contexto específico. No entanto, tanto o músico que lê a respectiva<br />

partitura, quanto aquele que já incorporou “<strong>de</strong> ouvido” harmonia, ritmo e melodia,<br />

sabem que as três músicas são bem diferentes, a ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandarem “levadas” 26<br />

distintas: polca, choro, maxixe ou tango brasileiro.<br />

Atualmente, além das rodas <strong>de</strong> choro, há <strong>uma</strong> escola <strong>de</strong> choro propriamente dita em<br />

ativida<strong>de</strong> no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Chama-se Escola Portátil <strong>de</strong> Música porque, assim como as<br />

rodas antigas e atuais, conserva <strong>uma</strong> certa mobilida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>ndo acontecer em locais<br />

diferentes. A escola é coor<strong>de</strong>nada pelo compositor e violonista Maurício Carrilho e pela<br />

26<br />

“Levada” é o mesmo que batida rítmica, ou seja, o padrão rítmico <strong>de</strong> acompanhamento utilizado no choro<br />

(ou em vários outros gêneros musicais brasileiros), sobretudo pelos instrumentos <strong>de</strong> “base”: o violão, o<br />

cavaquinho e o pan<strong>de</strong>iro.<br />

54


cavaquinista Luciana Rabello. Em 2004 e 2006, participei <strong>de</strong> dois festivais organizados por<br />

eles em Men<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> tive acesso a um vasto material sobre a prática dos gêneros musicais<br />

que compõem o universo do choro, como veremos a seguir.<br />

5.3. Oficina <strong>de</strong> composição<br />

No segundo Festival Nacional <strong>de</strong> Choro que aconteceu em janeiro <strong>de</strong> 2006, em<br />

Men<strong>de</strong>s, tive a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar <strong>de</strong> um curso <strong>de</strong> composição <strong>de</strong> choro ministrado<br />

por Maurício Carrilho, músico que reúne qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> compositor, violonista, professor e<br />

pesquisador.<br />

A primeira lição da aula foi a composição <strong>de</strong> <strong>uma</strong> polca. Estavam presentes em<br />

média 20 alunos, <strong>de</strong> todo o Brasil, além <strong>de</strong> um italiano e um argentino, cada qual<br />

matutando e costurando sua respectiva polca. No meu caso, a primeira parte da polca veio<br />

rapidamente, lembrei-me <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong>s polcas que conhecia e fui cantarolando um pequeno<br />

motivo, em seguida aprendi que precisava respon<strong>de</strong>r àquele motivo <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> <strong>de</strong> forma<br />

suspensiva (reticências, interrogação) para em seguida respondê-lo <strong>de</strong> forma conclusiva<br />

(ponto). A primeira parte estava feita, lá fui eu para a segunda. Era preciso modular, por<br />

exemplo para um tom menor. Fui então tocando <strong>uma</strong> harmonia possível e um outro motivo<br />

foi aparecendo. Mostrei para o Maurício e ele foi claro na constatação: “Tem muita<br />

síncope, virou tango ou no máximo <strong>uma</strong> polca-tango.” Resultado, eliminei praticamente<br />

todas as síncopes da partitura, terminei a polca.<br />

Ao final da oficina, tínhamos o privilégio <strong>de</strong> escutar nossas composições sendo<br />

tocadas por um regional formado pelos próprios mestres (os professores <strong>de</strong> cada<br />

instrumento). Qual não foi minha surpresa ao escutar minha “polquinha” e perceber que<br />

mesmo sem síncopes na melodia, havia acentuações rítmicas no acompanhamento, além do<br />

sotaque característico ao tocar, que naturalmente integravam aquela melodia ao universo do<br />

choro.<br />

Não foi por acaso que começamos a oficina <strong>de</strong> composição enten<strong>de</strong>ndo o que seria<br />

<strong>uma</strong> polca. Como veremos em <strong>de</strong>talhes no próximo tópico, a polca foi um dos primeiros<br />

gêneros <strong>de</strong>stinados à dança que chegou da Europa ao Brasil. Mas, afinal, o que faz da<br />

55


polca, um choro, ou do choro, <strong>uma</strong> polca? Enfim, o que faz do choro, um choro e <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

polca, <strong>uma</strong> polca? São inúmeros os <strong>de</strong>talhes que distinguem cada um dos gêneros do<br />

universo do choro, mas há <strong>uma</strong> estrutura básica que permite <strong>uma</strong> primeira i<strong>de</strong>ntificação<br />

formal dos gêneros.<br />

De acordo com Maurício Carrilho, um choro tradicional é geralmente constituído <strong>de</strong><br />

três partes (A, B e C), contendo cada <strong>uma</strong> 16 compassos. Essas três partes são organizadas<br />

da seguinte forma: AA-BB-A-CC-A. Agora estamos utilizando choro em seu sentido<br />

amplo, <strong>de</strong> “maneira <strong>de</strong> tocar” que configura um gênero aberto, que engloba vários outros. O<br />

enfoque se dá na semelhança entre eles, que faz com que todos sejam chamados <strong>de</strong> choros.<br />

A partir <strong>de</strong> análises <strong>de</strong> choros <strong>de</strong> diversas épocas, Maurício propõe um mo<strong>de</strong>lo<br />

freqüentemente utilizado na elaboração <strong>de</strong> cada parte:<br />

Tema ------------------- resposta suspensiva (1º motivo)<br />

(4 compassos) (4 compassos)<br />

Tema ------------------- resposta conclusiva (2º motivo)<br />

(4 compassos) (4 compassos)<br />

(Carrilho 2006: 1)<br />

O mo<strong>de</strong>lo acima representa a quadratura comumente encontrada nos choros<br />

tradicionais. Maurício Carrilho chama <strong>de</strong> motivos as subdivisões <strong>de</strong> cada <strong>uma</strong> das partes do<br />

choro. Se cada parte (A, B e C) apresenta 16 compassos, os motivos respeitam a quadratura<br />

e apresentam 8 compassos cada um.<br />

O tema, além <strong>de</strong> ser a frase melódica apresentada nos primeiros quatro compassos<br />

do choro, reaparece no início do segundo motivo e po<strong>de</strong> ainda reaparecer na segunda e<br />

terceira partes do choro, em outro modo ou tonalida<strong>de</strong>. Por <strong>isso</strong>, segundo Maurício, o tema<br />

<strong>de</strong>ve ter característica marcante em seu conteúdo rítmico, melódico e harmônico.<br />

Para completar o primeiro motivo, logo após o tema a melodia toma um caráter<br />

interrogativo (resposta suspensiva) e a harmonia conduz à dominante da tonalida<strong>de</strong> inicial,<br />

conduzindo em seguida à reexposição do tema, já no segundo motivo. Após essa<br />

reapresentação do tema, a melodia reafirma a idéia temática e expressa “um caráter<br />

inquestionável <strong>de</strong> conclusão” (Carrilho 2006: 8). Há o retorno à tonalida<strong>de</strong> inicial,<br />

lembrando que o final da primeira parte será também o final do choro.<br />

56


Além <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo recorrente <strong>de</strong> pergunta e resposta <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada parte, há<br />

também <strong>uma</strong> relação <strong>de</strong> tonalida<strong>de</strong> entre as partes <strong>de</strong> um choro tradicional. Maurício<br />

esquematiza essa relação da seguinte forma, para a maioria dos choros compostos em<br />

tonalida<strong>de</strong> maior:<br />

ou:<br />

A (primeira parte) -------------- do maior<br />

B (segunda parte)--------------- la menor (relativo menor)<br />

C (terceira parte) --------------- fa maior (IV grau)<br />

A (primeira parte) -------------- do maior<br />

B (segunda parte)--------------- sol maior (V grau)<br />

C (terceira parte) --------------- fa maior (IV grau)<br />

(Carrilho 2006: 10)<br />

Já nos choros compostos em tonalida<strong>de</strong> menor, Maurício verifica com maior<br />

freqüência as seguintes relações <strong>de</strong> tonalida<strong>de</strong>:<br />

ou:<br />

A (primeira parte) -------------- la menor<br />

B (segunda parte)--------------- do maior (relativo maior)<br />

C (terceira parte) --------------- la maior (homônimo maior)<br />

A (primeira parte) -------------- la menor<br />

B (segunda parte)--------------- do maior (relativo maior)<br />

C (terceira parte) --------------- fa maior (bVI do tom <strong>de</strong> A e IV grau <strong>de</strong> B)<br />

(Carrilho 2006: 12)<br />

Como vimos, a linguagem harmônica do choro é essencialmente tonal, o que a<br />

diferencia do modalismo presente no baião, por exemplo. Nos choros tradicionais, os<br />

<strong>de</strong>senhos rítmicos são particularmente <strong>de</strong>terminantes para a caracterização <strong>de</strong> cada gênero,<br />

por <strong>isso</strong> <strong>de</strong>senvolveremos as questões rítmicas ao observar cada gênero em particular. 27<br />

27 As questões rítmicas serão <strong>de</strong>talhadas na segunda parte do trabalho.<br />

57


5.4. Família choro: gêneros<br />

A i<strong>de</strong>ntificação dos gêneros musicais que integram o choro é um assunto repleto <strong>de</strong><br />

questões que mereceriam um <strong>de</strong>talhamento maior ou até outra pesquisa. No entanto, como<br />

falar do choro, do forró e das bandas <strong>de</strong> pífanos sem falar dos gêneros que os integram?<br />

Diante <strong>de</strong>sse dilema e da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitar o estudo aqui realizado, optei por falar<br />

dos gêneros a partir <strong>de</strong> fontes atuais e muitas <strong>vez</strong>es inéditas, que não configuram<br />

propriamente um estudo <strong>de</strong> caso, mas sim a elaboração da experiência <strong>de</strong> músicos que<br />

conhecem e praticam cada <strong>uma</strong> <strong>de</strong>ssas linguagens.<br />

Segundo Maurício Carrilho, os gêneros que compõem o universo do choro e seus<br />

respectivos compassos são: a habanera, o lundú, a polca, o tango brasileiro, o maxixe e o<br />

choro (todos em 2/4), a valsa e a mazurca (ambas em 3/4), o schottisch (em 4/4) e a<br />

quadrilha, composta <strong>de</strong> cinco movimentos: I e III em 6/8 e II, IV e V em 2/4.<br />

Veremos os principais <strong>de</strong>les separadamente, lembrando que a caracterização <strong>de</strong> cada<br />

gênero é a combinação do ritmo melódico com o ritmo <strong>de</strong> acompanhamento. A maioria das<br />

informações sobre os gêneros aqui <strong>de</strong>scritas são interpretações do material recolhido<br />

durante o primeiro e o segundo Festival Nacional <strong>de</strong> Choro, em 2005 e 2006,<br />

principalmente nas oficinas <strong>de</strong> Composição, ministrada por Maurício Carrilho, e História<br />

do Choro, ministrada pelo bandolinista e pesquisador Pedro Aragão e pela violonista e<br />

pesquisadora Anna Paes.<br />

a) A polca<br />

De acordo com Pedro Aragão, a polca foi um gênero musical disseminado<br />

rapidamente por várias partes do mundo no século XIX, com gran<strong>de</strong> sucesso. Segundo ele e<br />

Anna Paes, as primeiras polcas vieram da Tchecoslováquia, sendo que a primeira partitura<br />

impressa em Praga data <strong>de</strong> 1837. Pouco tempo <strong>de</strong>pois, em 1845, a polca teria sido<br />

apresentada pela primeira <strong>vez</strong> no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Como já vimos nas <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong><br />

Alexandre Gonçalves Pinto, a polca foi muito valorizada entre os chorões, além <strong>de</strong> estar na<br />

origem <strong>de</strong> inúmeras combinações que originaram outros ritmos brasileiros, do forró ao<br />

frevo.<br />

58


Há polcas em andamento vivo e outras líricas e nostálgicas, em andamento lento.<br />

Alg<strong>uma</strong>s características estilísticas <strong>de</strong>finem o gênero: melodias graciosas ou jocosas, com a<br />

rara presença <strong>de</strong> síncopes. O tema, em geral, inicia-se na dominante. O acompanhamento<br />

obe<strong>de</strong>ce a dois padrões diferentes, conforme a polca seja mais ou menos abrasileirada. Essa<br />

diferença entre os dois tipos <strong>de</strong> polca foi notada por Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, conforme observa<br />

Sandroni: “existem mesmo dois tipos <strong>de</strong> polca, e um dos critérios principais para<br />

diferenciá-los é o dos padrões rítmicos no acompanhamento” (Sandroni 2001: 71). Vejamos<br />

os acompanhamentos:<br />

Enquanto o primeiro tipo <strong>de</strong> polca apresentado prioriza a terceira pulsação<br />

do tresillo, além da célula rítmica característica das marchas ( ), o segundo<br />

tipo caracteriza-se pelo uso da síncope no acompanhamento, ou seja, é mais<br />

contramétrico.<br />

59


) O lundu<br />

Originalmente <strong>uma</strong> dança <strong>de</strong> roda angolana, caracterizada como <strong>uma</strong> dança <strong>de</strong><br />

umbigada e acompanhada por atabaques, ainda no século XIX. Mais tar<strong>de</strong>, o lundu seria<br />

introduzido nos salões das cortes do Brasil e Portugal, sob a forma <strong>de</strong> canção,<br />

acompanhado ao piano. No século XIX, passou a ser acompanhado ao violão e tornou-se<br />

cantiga <strong>de</strong> escárnio, cultuada por artistas como Xisto Bahia.<br />

A partir da integração do lundu com as danças européias, originaram-se novos<br />

gêneros musicais como a polca-lundu e o tango-lundu, já recheados <strong>de</strong> síncopes. A partir da<br />

afirmação <strong>de</strong> Sandroni: “é por síncopes que a música escrita fez alusões ao que há <strong>de</strong><br />

africano em nossa música <strong>de</strong> tradição oral” (Sandroni 2001: 26), po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r a<br />

60


interpretação <strong>de</strong> que o lundu seria “o principal canal por on<strong>de</strong> a influência africana chegou<br />

ao choro” (Paes e Aragão 2005: 8).<br />

c) O tango brasileiro<br />

Sandroni (2001: 77 e 78) atribui à palavra tango o sentido <strong>de</strong> baile <strong>de</strong> negros, o<br />

lugar on<strong>de</strong> os bailes eram realizados e a música que era tocada. Nesse sentido, o tango<br />

brasileiro refere-se ao universo afro-americano e não à fusão da polca com danças<br />

espanholas, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m Paes e Aragão (2005: 11).<br />

A diferença entre o tango brasileiro e o maxixe também suscita interpretações<br />

diversas ao longo da história. Maurício Carrilho enfatiza a diferença entre os dois gêneros,<br />

observando que o maxixe passou a ser gênero <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ser dança e por <strong>isso</strong>, é mais<br />

extrovertido. Já o tango brasileiro é <strong>uma</strong> música mais séria, mais solene, própria para ser<br />

escutada e não tanto para a dança.<br />

Segundo Paes e Aragão, Henrique Alves <strong>de</strong> Mesquita foi o primeiro a compor<br />

tangos brasileiros. Ernesto Nazareth foi um dos compositores que mais <strong>de</strong>senvolveu esse<br />

gênero, incorporando a ele a rítmica própria da execução dos pequenos con<strong>junto</strong>s <strong>de</strong> choro,<br />

um exemplo da relação direta entre os choros dos con<strong>junto</strong>s aos pianos, e vice-versa.<br />

“Brejeiro”, <strong>de</strong> Ernesto Nazareth, é consi<strong>de</strong>rado o “tango clássico”, hoje constantemente<br />

executado em rodas <strong>de</strong> choro.<br />

d) O maxixe<br />

Como <strong>de</strong>staca Maurício Carrilho, o maxixe é música <strong>de</strong> festa, <strong>de</strong> dança. Ele teria<br />

surgido justamente como <strong>uma</strong> forma abrasileirada <strong>de</strong> dançar a polca, o tango, a habanera e<br />

o lundu nos bailes populares da Cida<strong>de</strong> Nova (RJ). Depois <strong>de</strong> <strong>uma</strong> primeira fase em que foi<br />

consi<strong>de</strong>rado dança in<strong>de</strong>cente e, portanto, proibida nos salões da alta socieda<strong>de</strong>, o maxixe foi<br />

aos poucos sendo incorporado ao repertório dos compositores <strong>de</strong> teatro <strong>de</strong> revista e aos<br />

61


salões das socieda<strong>de</strong>s carnavalescas. Da interação entre dança e música, passou a ser<br />

consi<strong>de</strong>rado um gênero musical, disseminando-se por todas as classes sociais.<br />

No que se refere à música propriamente, além das diferenças já citadas, outro fator<br />

que distingue o maxixe dos tangos brasileiros é a presença das “baixarias sincopadas” feitas<br />

pelas tubas e outros instrumentos <strong>de</strong> sopro graves, nas bandas, ou pelo contracanto dos<br />

baixos dos violões, nos con<strong>junto</strong>s <strong>de</strong> choro.<br />

e) O schottisch<br />

62


Segundo Paes e Aragão (2005), a schottisch, que quer dizer escocesa, seria <strong>uma</strong><br />

dança <strong>de</strong> origem alemã, levada para a Inglaterra e para a França na primeira meta<strong>de</strong> do<br />

século XIX e posteriormente introduzida no Brasil, em 1851, pelo professor <strong>de</strong> dança José<br />

Maria Toussaint. Já sabemos que, no Nor<strong>de</strong>ste, <strong>de</strong>u origem ao xote e no Rio <strong>de</strong> Janeiro, ao<br />

schottisch, gênero <strong>de</strong> compasso quaternário, semelhante a <strong>uma</strong> polca “esticada”, menos<br />

ritmada e <strong>de</strong> andamento mais lento. Iara, <strong>de</strong> Anacleto <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros, cujo tema foi utilizado<br />

por Villa-Lobos no Choros nº 10, é um dos schottischs mais conhecidos.<br />

f) A valsa brasileira<br />

63


De acordo com Paes e Aragão, a valsa foi um dos primeiros gêneros europeus que<br />

aportou no Brasil, ainda na segunda década do século XIX.<br />

A valsa, assim como o schottisch e a polca, <strong>de</strong>ntre outros, assumiu formas diferentes<br />

conforme a região do Brasil ou a formação musical que a incorporou, das bandas <strong>de</strong> pífanos<br />

à música <strong>de</strong> concerto. O que assemelha tantas expressões da valsa brasileira é o compasso<br />

ternário característico.<br />

Apesar <strong>de</strong> originalmente ser <strong>uma</strong> dança <strong>de</strong> salão, <strong>de</strong> par enlaçado, a valsa brasileira<br />

tornou-se música mais para se ouvir do que para se dançar. Tal<strong>vez</strong> por <strong>isso</strong>, a execução <strong>de</strong><br />

muitas valsas pelos chorões prima pela liberda<strong>de</strong> rítmica, o que acentua sua expressivida<strong>de</strong>.<br />

Como em todos esse gêneros, a partitura e a notação das levadas são apenas “mapas”. Nas<br />

valsas, é a melodia que geralmente rege o con<strong>junto</strong>, o solista po<strong>de</strong>ndo se antecipar ou<br />

retardar em <strong>de</strong>terminadas passagens, <strong>de</strong>safiando os acompanhantes.<br />

g) O choro<br />

(padrões rítmicos <strong>de</strong> acompanhamento no violão)<br />

64


Como visto anteriormente, no Rio <strong>de</strong> Janeiro do século XIX, a palavra choro<br />

<strong>de</strong>signava não <strong>só</strong> o grupo instrumental composto por flauta, cavaquinho e violão, mas<br />

também o local on<strong>de</strong> esse grupo tocava para que os pares enlaçados dançassem as danças<br />

européias já abrasileiradas. Joaquim Callado foi um dos primeiros músicos a constituir um<br />

con<strong>junto</strong> com essa formação chamado Choro Carioca, por volta <strong>de</strong> 1870. Em geral, nesses<br />

grupos, os acompanhantes não liam, os copistas eram os flautistas. Daí a importância dos<br />

“ca<strong>de</strong>rnos dos flautistas”, únicos registros escritos <strong>de</strong>ssa cultura até então<br />

predominantemente oral. No final do século XIX os choros já haviam incorporado novos<br />

instrumentos como o clarinete, o oficlei<strong>de</strong>, o trompete, o trombone e o bombardino. Nessa<br />

época, a Banda do Corpo <strong>de</strong> Bombeiros, dirigida e fundada pelo maestro Anacleto <strong>de</strong><br />

Me<strong>de</strong>iros, era formada por muitos músicos vindos dos choros. (Paes e Aragão 2005)<br />

Des<strong>de</strong> o século XIX, já eram editadas partituras para piano e os choros traduziam<br />

para sua formação os ritmos europeus escutados ao piano, transformando-os. A<br />

compositora Chiquinha Gonzaga teve papel primordial nessa passagem dos ritmos do piano<br />

aos con<strong>junto</strong>s <strong>de</strong> choro e também dos choros ao piano, incorporando os “sotaques”<br />

característicos. São esses “sotaques” que, na virada do século XX, vão caracterizar e <strong>de</strong>finir<br />

o estilo interpretativo que passa então a ser consi<strong>de</strong>rado um gênero musical. Esse gênero<br />

vai incorporar elementos <strong>de</strong> todos os gêneros que lhe <strong>de</strong>ram origem, sua rítmica é, portanto,<br />

bastante diversificada, baseia-se em combinações <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> semicolcheias e síncopes.<br />

h) O choro-samba e o samba-choro<br />

65


O samba sempre esteve relacionado historicamente com o choro – a maioria dos músicos<br />

que acompanharam cantores <strong>de</strong> samba era formada pela escola do choro: Pixinguinha,<br />

Benedito Lacerda, Dino, Meira, Canhoto, entre muitos outros. A influência do choro po<strong>de</strong><br />

ser sentida também nas composições <strong>de</strong> muitos sambistas, como Nelson Cavaquinho – cujo<br />

modo <strong>de</strong> tocar violão, repleto <strong>de</strong> baixarias, nos remete aos contrapontos do choro – ou D.<br />

Ivone Lara, afilhada do chorão Candinho do Trombone, autora <strong>de</strong> composições com<br />

sofisticação harmônica e melódica. (Paes e Aragão 2005: 21)<br />

O choro-samba e o samba-choro são gêneros distintos que nasceram <strong>de</strong>sta íntima<br />

relação. Segundo Paes e Aragão, o samba-choro caracteriza-se por composições que<br />

apresentam elementos rítmicos e melódicos próprios ao choro, mas são feitas originalmente<br />

com letra. Não é o caso <strong>de</strong> choros que receberam letra posteriormente, estes são<br />

simplesmente choros. Tal distinção faz lembrar que a palavra choro <strong>de</strong>signava nas capas<br />

dos primeiros discos <strong>de</strong> samba gravados o samba instrumental, do lado oposto aos mesmos<br />

sambas cantados. O choro-samba, também chamado choro-sambado, por sua <strong>vez</strong>, é um<br />

choro que apresenta características rítmicas e melódicas típicas do samba, como o ritmo da<br />

levada <strong>de</strong> um tamborim <strong>de</strong> samba no acompanhamento (o samba <strong>de</strong> teleco-teco, como<br />

veremos com Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro, no capítulo 8).<br />

66


5.5. Regionais<br />

Com o início das gravações (1902) e, posteriormente, o advento do rádio (1922), a<br />

importância do choro extrapolou os domínios da música instrumental. Além da “música<br />

tocada”, 28 os con<strong>junto</strong>s <strong>de</strong> choro passaram a ser a base instrumental que acompanhava<br />

cantores tanto nos discos como nas rádios. “A partir dos anos 20, na maioria das gravações<br />

comerciais <strong>de</strong> samba, foram os músicos <strong>de</strong> choro que se responsabilizaram pelo suporte<br />

harmônico e pela ornamentação melódica <strong>de</strong> flauta, trombone etc” (Sandroni 2001:105). A<br />

formação que se perpetua a partir <strong>de</strong> então é <strong>de</strong>stacada a seguir: “no solo, <strong>uma</strong> flauta,<br />

bandolim ou clarinete dando a introdução para os cantores; na harmonização, um<br />

cavaquinho e dois violões fazendo frases musicais ‘em terças’ alinhavados pelo ritmo <strong>de</strong><br />

um pan<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> atuação discreta” (Prata 2005).<br />

Até agora havíamos falado dos con<strong>junto</strong>s <strong>de</strong> choro tradicionais, também<br />

formados por violão, cavaquinho, flauta e outros instrumentos solistas. Mas o<br />

pan<strong>de</strong>iro <strong>só</strong> aparece em um dos <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> Alexandre Gonçalves Pinto,<br />

quando ele fala <strong>de</strong> João da Baiana. Por volta <strong>de</strong> 1919, com Jacó Palmieri, do grupo<br />

Os Oito Batutas, o pan<strong>de</strong>iro, além <strong>de</strong> outros instrumentos <strong>de</strong> percussão, torna-se<br />

imprescindível à formação.<br />

Pixinguinha e os Oito Batutas é o grupo que estará se apresentando na<br />

ocasião em que o rádio fez sua primeira aparição pública e oficial no Brasil, em<br />

1922, na Exposição Nacional, preparada para os festejos do Centenário da<br />

In<strong>de</strong>pendência. Houve então a transmissão do discurso do Presi<strong>de</strong>nte da República<br />

Epitácio Pessoa e da ópera “O Guarani”, <strong>de</strong> Carlos Gomes, diretamente do Teatro<br />

Municipal. Em meio a tantas comemorações, configura-se o início da parceria entre<br />

o rádio, que dava seus primeiros passos no Brasil, e a formação instrumental que<br />

iria dar o suporte necessário para este novo veículo <strong>de</strong> comunicação: os con<strong>junto</strong>s<br />

regionais.<br />

De acordo com Sérgio Prata, o nome “regionais” teria se generalizado a<br />

partir da caracterização dos pernambucanos Turunas da Mauricéia, dos cariocas<br />

28 Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro é quem vai chamar os choros e sambas instrumentais que gravou <strong>de</strong> “música<br />

tocada”, como veremos no capítulo 8.<br />

67


Bando dos Tangarás, <strong>de</strong> Noel Rosa e Almirante, e do Bando do Caxangá, com<br />

Pixinguinha, <strong>de</strong>ntre outros grupos que na época se apresentavam vestidos com<br />

roupas típicas do sertão (pelo menos 30 anos antes <strong>de</strong> Luiz Gonzaga e seu chapéu<br />

<strong>de</strong> couro).<br />

Em 1923, Roquete Pinto, antropólogo e educador, consi<strong>de</strong>rado o pai do<br />

rádio brasileiro, e Henry Morize, cientista e professor, fundam a primeira rádio<br />

brasileira: a Rádio Socieda<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, criada para atuar sem fins<br />

comerciais. Mas <strong>só</strong> na década <strong>de</strong> 1930 é que o rádio vai realmente se estabelecer<br />

como um veículo popular e, através da publicida<strong>de</strong>, economicamente rentável. A<br />

legislação promulgada em 1932 oferecia soluções para o problema da sobrevivência<br />

financeira das em<strong>isso</strong>ras e garantia ao Estado <strong>uma</strong> hora diária da programação em<br />

todo o território nacional – o Programa Nacional. Em 1939, é criada a Hora do<br />

Brasil. Em 1936, é fundada a Rádio Nacional do Rio <strong>de</strong> Janeiro que, em 1940,<br />

torna-se estatal.<br />

De meados dos anos 30 até o final da década <strong>de</strong> 50, <strong>uma</strong> das marcas registradas <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

em<strong>isso</strong>ra <strong>de</strong> rádio era o seu regional. O Gente do Morro e Jacob e sua Gente eram da Rádio<br />

Ipanema. Os Regionais <strong>de</strong> Benedito Lacerda e Rogério Guimarães atuaram vários anos na<br />

Rádio Tupi. O Regional do Canhoto era exclusivo da Rádio Mayrink Veiga. Os Regionais<br />

<strong>de</strong> César Moreno e Dante Santoro foram da Rádio Nacional. Na Rádio Mauá atuavam Jacob<br />

e seu regional e os Regionais <strong>de</strong> Darly do Pan<strong>de</strong>iro e Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro. (Prata 2005)<br />

Durante esses 20 anos, o rádio esteve diretamente ligado à profissionalização da<br />

música popular no Brasil. De acordo com Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro, <strong>de</strong> quem falaremos no<br />

capítulo 8, os con<strong>junto</strong>s regionais eram os “tapa-buracos” das rádios, e daí sua importância,<br />

<strong>uma</strong> <strong>vez</strong> que os músicos eram mestres no improviso e não necessitavam <strong>de</strong> arranjos e, às<br />

<strong>vez</strong>es, sequer <strong>de</strong> ensaios, como explica Sérgio Prata:<br />

A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se dar qualida<strong>de</strong> ao acompanhamento do samba, principal gênero popular<br />

da época; a versatilida<strong>de</strong> para acompanhar calouros, já que os músicos <strong>de</strong> choro eram<br />

mestres no acompanhamento “<strong>de</strong> ouvido”; <strong>uma</strong> bem-vinda praticida<strong>de</strong>, pois não<br />

necessitavam <strong>de</strong> arranjos escritos, bastando saber o tom da música e acertar a introdução,<br />

além <strong>de</strong> um inegável virtuosismo quando se tratava <strong>de</strong> apresentar o seu repertório <strong>de</strong> choro<br />

68


fizeram dos regionais a instrumentação musical i<strong>de</strong>al para a radiofonia brasileira, ainda em<br />

formação. (Prata 2005)<br />

Mas a profissionalização dos músicos nas rádios não se resumia à atuação nos<br />

regionais, havia também as orquestras, na qual, além <strong>de</strong> músicos dos mais variados<br />

instrumentos, havia trabalho também para os maestros e arranjadores. As primeiras<br />

experiências do maestro Radamés Gnattali como arranjador, ao lado <strong>de</strong> Pixinguinha e<br />

outros, datam <strong>de</strong> 1930, época da inauguração da Rádio Transm<strong>isso</strong>ra, que era da gravadora<br />

Victor.<br />

Pixinguinha trabalhava mais com arranjos carnavalescos, que eram o seu forte, ficando a<br />

parte romântica comigo e outros maestros. Na orquestra Guarda-Velha, eu era o pianista e<br />

Pixinguinha o arranjador. Nas músicas românticas, nos sambas canções, nas gravações <strong>de</strong><br />

Orlando Silva, eu era o arranjador e Pixinguinha o flautista. (Barbosa e Devos 1985: 34)<br />

Enquanto, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, Radamés <strong>de</strong>senvolvia formas <strong>de</strong> transpor a rítmica do<br />

regional para a orquestra, adaptando as “baixarias” e os bordões do sete cordas para os<br />

baixos e cellos, os violinos e violas assumindo as funções do cavaquinho e até dos<br />

tamborins, no Recife, a rádio Jornal do Comércio, em ascensão, abria espaço para as<br />

experimentações <strong>de</strong> outro importante maestro-arranjador: Guerra-Peixe.<br />

Estive observando as Socieda<strong>de</strong>s Carnavalescas. Tomei nota <strong>de</strong> muita coisa do maracatu,<br />

principalmente. É difícil escrever esse negócio. Quase fiquei dôido!!! Mas consegui alg<strong>uma</strong><br />

coisa e até já tive oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> experimentar na orquestra da rádio. A não ser o<br />

Radamés, eu duvido que algum músico que viva pelo sul seja capaz <strong>de</strong> escrever estes<br />

ritmos. (Guerra-Peixe a Curt Lange, 12 <strong>de</strong> março, 1950)<br />

Nesse mesmo ano, 1950, Hermeto Pascoal é convidado por Sivuca a integrar o<br />

regional da rádio Jornal do Comércio, juntamente com seu irmão, José Neto. Já nesse<br />

primeiro emprego formal como músico, o sanfoneiro estava muito atento aos sons e<br />

acontecimentos à sua volta: “em Recife, eu tinha 15 anos. Lá conheci as cirandas, os<br />

maracatus. Nas próprias orquestras das rádios tocava-se muito esses ritmos. Lá trabalhava o<br />

maestro Guerra-Peixe, um excelente arranjador que fazia muita pesquisa folclórica”<br />

(Pascoal 2006).<br />

69


No momento em que abraçava os i<strong>de</strong>ais da música nacionalista, Guerra-Peixe viu<br />

nas então chamadas “pesquisas folclóricas” <strong>uma</strong> via <strong>de</strong> estudo e incorporação dos<br />

elementos nacionais que procurava. O trabalho na rádio foi para ele não <strong>só</strong> meio <strong>de</strong><br />

sobrevivência, como também laboratório para suas experimentações musicais. Guerra-<br />

Peixe foi a primeira referência para Hermeto no que se refere ao trabalho <strong>de</strong> arranjador,<br />

além d<strong>isso</strong>, é preciso salientar a importância <strong>de</strong> suas pesquisas (sobre o maracatu, sobre as<br />

zabumbas, como veremos a seguir) para o jovem músico alagoano.<br />

70


6. Zabumbas ou Bandas <strong>de</strong> Pífanos<br />

6.1. Guerra-Peixe: o “rei da pesquisa”<br />

Para Guerra-Peixe, o zabumba é um tambor grave, a zabumba é o con<strong>junto</strong> musical.<br />

O instrumento zabumba já foi mencionado por Hermeto, ao falar dos zabumbeiros <strong>de</strong><br />

Lagoa da Canoa, por Luiz Gonzaga, ao falar das bandas <strong>de</strong> pife do Araripe e também por<br />

Rocha, ao falar dos ritmos do forró. Agora, falaremos das bandas, a partir <strong>de</strong> relatos do<br />

próprio Hermeto e pesquisas em Caruaru, <strong>junto</strong> à Zabumba Dois Irmãos, <strong>de</strong> Seu João do<br />

Pife.<br />

Quanto à bibliografia consultada, é preciso <strong>de</strong>stacar as pesquisas do compositor e<br />

maestro Guerra-Peixe, que realizou pesquisas sobre o maracatu e as zabumbas no estado <strong>de</strong><br />

Pernambuco, on<strong>de</strong> Hermeto viveu. Guerra-Peixe foi seu contemporâneo na Rádio do Jornal<br />

do Comércio, conforme narrado por Hermeto:<br />

Guerra-Peixe era maestro lá na Jornal do Comércio, nessa época eu tinha 14 pra 15 anos. Eu<br />

ficava no auditório assistindo os ensaios, ficava fascinado. Aquilo pra mim foi muito bom<br />

porque nessa época eu tocava chorinho e forró. Eu via tudo aquilo, eu via que o Guerra-<br />

Peixe tinha algo mais além <strong>de</strong> tocar, <strong>de</strong> fazer arranjos. Ele era também o rei da pesquisa<br />

[grifo meu], ele ia para o interior pra ver os zabumbas, ele ia pessoalmente escutar o som<br />

dos zabumbeiros... Naquele tempo ninguém dava valor, era música <strong>de</strong> cachaceiro... Eu<br />

escutando tudo <strong>isso</strong>, <strong>de</strong> repente via a maneira <strong>de</strong>le fazer, pegar, transformar um arranjo.<br />

(Pascoal 2005)<br />

Guerra-Peixe se interessou justamente por alg<strong>uma</strong>s formações instrumentais que<br />

faziam parte da infância <strong>de</strong> Hermeto em Alagoas, como as Zabumbas ou Bandas <strong>de</strong> Pífano,<br />

e foi estudá-las. Para o jovem músico alagoano, recém-chegado na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Recife, não<br />

passou <strong>de</strong>sapercebido o valor dado àquela música para ele tão cotidiana por um compositor<br />

e maestro admirado por ele.<br />

O pesquisador Guerra-Peixe concorda com o caráter típico da formação<br />

instrumental das zabumbas:<br />

71


Por toda <strong>uma</strong> área que compreen<strong>de</strong> os estados do Piauí, Ceará, Rio Gran<strong>de</strong> do Norte,<br />

Paraíba, Alagoas, Pernambuco e pelo menos o norte baiano atua <strong>uma</strong> “banda” típica, ou<br />

melhor, <strong>uma</strong> orquestra, cuja <strong>de</strong>nominação mais usual é “zabumba”, o mesmo nome do<br />

bombo popular. (Guerra-Peixe 1970: 15)<br />

Em geral, essas bandas são formadas por dois pifes, o próprio zabumba e um tarol<br />

ou caixa. Os nomes dados ao con<strong>junto</strong> variam conforme a região, assim como os<br />

instrumentos tocados, po<strong>de</strong>ndo ser acrescidos pratos, triângulo, pan<strong>de</strong>iro, um surdinho,<br />

ganzá, <strong>de</strong>ntre outros. O zabumba e os pifes parecem ser recorrentes como a base da<br />

formação.<br />

Os pifes, pífanos ou pífaros são flautas feitas artesanalmente <strong>de</strong> bambu (taboca).<br />

Atualmente, <strong>de</strong>vido à falta <strong>de</strong> matéria prima <strong>de</strong>corrente do <strong>de</strong>smatamento, os músicos<br />

artesãos passaram a fazer pifes também <strong>de</strong> pvc. Seja qual for o material empregado, os<br />

pifes apresentam sete orifícios − seis para digitação e um para sopro. Em geral, são flautas<br />

transversais, diferentes das gaitas, que são flautas artesanais tocadas na vertical, como as<br />

gaitas <strong>de</strong> caboclinhos, presentes no carnaval <strong>de</strong> Recife.<br />

A formação instrumental que reúne o som dos pifes (em intervalos paralelos) à<br />

percussão do zabumba, da caixa e dos pratos, <strong>de</strong>ntre outros, possui vários nomes: banda ou<br />

terno cabaçal, terno <strong>de</strong> couro, banda ou terno <strong>de</strong> pífanos, zabumba, terno <strong>de</strong> zabumba e<br />

esquenta-mulher, como era conhecida por Hermeto em Alagoas.<br />

Os relatos sobre as zabumbas ou bandas <strong>de</strong> pífanos indicam que originalmente eram<br />

bandas ligadas às festas religiosas, que cumpriam as mais diversas funções sociais –<br />

novenas, procissões, batizados, casamentos. Mas aos poucos foram tomando parte também<br />

nas festas cívicas e finalmente nas profanas como forrós e carnavais. Tal separação às <strong>vez</strong>es<br />

é problemática porque as próprias festas <strong>de</strong> São João são festas híbridas, religiosas e<br />

profanas, como tantas outras em nossa cultura. Mas o que pretendo salientar é a<br />

versatilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tais con<strong>junto</strong>s, que dialogam tanto com as bandas <strong>de</strong> coreto quanto com as<br />

procissões <strong>de</strong> beatas e os trios <strong>de</strong> forró. Todas essas influências estão presentes nas bandas<br />

<strong>de</strong> pífano, como estão presentes na música <strong>de</strong> Hermeto.<br />

Com o intuito <strong>de</strong> perceber a transposição musical da vida cotidiana feita por<br />

Hermeto, no caso, das festas <strong>de</strong> rua vividas por ele, po<strong>de</strong>mos escutar a composição “Santo<br />

Antônio” (faixa 1, CD em anexo), gravada no disco Zabumbê-bum-á. Essa gravação é <strong>uma</strong><br />

72


procissão <strong>de</strong> Santo Antônio musicada, ao invés do cortejo e das bandas <strong>de</strong> pífano,<br />

escutamos a melodia nas flautas sobrepostas às vozes. É possível escutá-la lado-a-lado a<br />

<strong>uma</strong> gravação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> procissão <strong>de</strong> Santo Antônio em tempo real feita na Al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

Pankararu do Brejo dos Padres (município <strong>de</strong> Tacaratu, em Pernambuco) em 13 <strong>de</strong> junho<br />

<strong>de</strong> 2003 (faixa 2, CD em anexo), presente no disco Respon<strong>de</strong> a roda outra <strong>vez</strong> (2004).<br />

Nesta Festa <strong>de</strong> Santo Antônio, ouve-se a Banda <strong>de</strong> Pífanos <strong>de</strong> Zé Branco, que toca um<br />

bendito, entremeada pelas vozes dos fiéis e os fogos <strong>de</strong> artifícios. Em épocas e contextos<br />

distintos, ambas as gravações apresentam paisagens sonoras que po<strong>de</strong>m ser relacionadas: a<br />

sobreposição <strong>de</strong> vozes e melodias nas flautas, ambas as manifestações são <strong>de</strong>dicadas a<br />

Santo Antônio. Se, da linguagem das bandas <strong>de</strong> pífano, por exemplo, Hermeto utiliza os<br />

blocos paralelos e a polirritmia, ou seja, melodias em notas paralelas sobrepostas a <strong>uma</strong><br />

gran<strong>de</strong> movimentação rítmica na base; a comparação nos permite observar que, para a<br />

escuta <strong>de</strong> Hermeto, todos aqueles sons <strong>junto</strong>s são música, não apenas as melodias e ritmos<br />

da banda <strong>de</strong> pífanos, mas a paisagem sonora inteira.<br />

6.2. Repertório <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras<br />

O repertório variado e eclético das bandinhas segue sua versatilida<strong>de</strong>. Elas tocam<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> músicas próprias, geralmente compostas pelos próprios pifeiros, até músicas<br />

adaptadas <strong>de</strong> outras formações, como as bandas militares, as bandas <strong>de</strong> coreto, os trios <strong>de</strong><br />

forró, além <strong>de</strong> músicas ouvidas no rádio. Alguns ritmos e gêneros são mais comuns no<br />

repertório: dobrados, marchas, valsas, baiões, polcas, xotes, <strong>de</strong>ntre outros.<br />

Várias semelhanças me saltaram aos olhos (e aos ouvidos) ao comparar as primeiras<br />

gravações <strong>de</strong> choro com gravações recentes <strong>de</strong> bandas <strong>de</strong> pífano. De alg<strong>uma</strong> forma, a<br />

música das bandas <strong>de</strong> pífano preserva ares <strong>de</strong> um passado distante, resquícios <strong>de</strong> músicas<br />

ouvidas no rádio misturadas às mais diversas influências. E tudo <strong>isso</strong> n<strong>uma</strong> formação que<br />

reúne os pífanos, flautas não tão diferentes das flautas <strong>de</strong> cinco furos utilizadas nos choros<br />

do século XIX, aliadas à zabumba, ao tarol e aos pratos. Para os ouvidos <strong>de</strong> hoje, <strong>uma</strong><br />

mistura <strong>de</strong> trio <strong>de</strong> forró, banda militar e choros, com a cor inconfundível dos pifes...<br />

73


As bandas <strong>de</strong> pífano parecem ter, <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong> forma, conservado a tradição dos<br />

choros que remonta ao final do século XIX, não <strong>só</strong> pela função semelhante que<br />

<strong>de</strong>sempenham, ao tocar nas celebrações religiosas durante o ano, em casamentos, bailes e<br />

até no carnaval; mas também pelo repertório que reúne tantos gêneros antigos. Veremos<br />

alguns <strong>de</strong>sses gêneros a seguir, lembrando que é quase impossível esgotá-los, tendo em<br />

vista a amplitu<strong>de</strong> geográfica e temporal da tradição das bandas <strong>de</strong> pífano, além <strong>de</strong> não ser<br />

este o principal objetivo <strong>de</strong>ste estudo.<br />

Os gêneros foram agrupados em “gêneros <strong>de</strong> todo dia”, que são os mais comuns,<br />

presentes em qualquer tipo <strong>de</strong> festa; os “gêneros ligados às festas religiosas”, ou seja, que<br />

geralmente dirigem-se a <strong>uma</strong> celebração específica (novenas, por exemplo) ou um santo em<br />

particular (bendito <strong>de</strong> Santo Antônio, bendito <strong>de</strong> São Pedro, etc); por último, os “gêneros<br />

onomatopaicos”, que julguei especialmente característicos <strong>de</strong>ssa formação pelas<br />

brinca<strong>de</strong>iras ou dramatizações que realizam ao imitarem sons da natureza ou do cotidiano à<br />

sua volta. Devido à escassa bibliografia sobre o assunto, as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> cada gênero<br />

baseiam-se sobretudo em minhas audições <strong>de</strong> gravações <strong>de</strong> bandas <strong>de</strong> pífanos, minhas<br />

vivências musicais nessa formação e às pesquisas já citadas.<br />

Gêneros <strong>de</strong> todo dia:<br />

- marchas: são as marchinhas adaptadas das bandas militares; em geral alternam-se<br />

duas partes, <strong>uma</strong> rítmica e animada, a outra mais solene e marcial. A presença dos<br />

pratos <strong>de</strong> choque na banda acentua o caráter marcial. A banda dos irmãos Aniceto,<br />

do Crato, por exemplo apresenta marchas <strong>de</strong> chegada e <strong>de</strong> saída. Há também as<br />

marchas lentas, <strong>de</strong> procissão.<br />

- samba: o samba tocado no zabumba é o “sambinha”, em diminutivo como as<br />

“bandinhas” <strong>de</strong> pífano frente às bandas <strong>de</strong> coreto. A marcação no segundo tempo é<br />

característica, a melodia ten<strong>de</strong> a ser sincopada, com características <strong>de</strong> choro. Muitas<br />

<strong>vez</strong>es a forma é aberta, recheada <strong>de</strong> improvisos e cadências dos pífanos em<br />

ostinatos.<br />

74


- chorinho: o “chorinho <strong>de</strong> pife” como diz Seu João, é um samba abaianado on<strong>de</strong><br />

cabe um surdinho e até um triângulo. Os <strong>de</strong>senhos melódicos rítmicos e arpejados é<br />

que dão o caráter da música.<br />

- lundu: no caso das zabumbas, não estamos falando aqui do lundu-canção, mas <strong>de</strong><br />

um lundu próprio para a dança, primo do baião. A banda <strong>de</strong> Ben<strong>de</strong>gó, por exemplo,<br />

diferencia dois ritmos <strong>de</strong> lundu, um <strong>de</strong>les seria um toque antigo, semelhante ao<br />

maxixe, o outro seria mais recente e assemelha-se ao baião.<br />

- polcas: ritmo <strong>de</strong> origem européia, que no su<strong>de</strong>ste do Brasil <strong>de</strong>u origem ao choro,<br />

mas que, como vimos, está associado aos mais diversos bailes brasileiros. As<br />

bandas <strong>de</strong> pífano também tocam polca, advinda das bandas <strong>de</strong> coreto.<br />

- valsa: ritmo ternário característico que faz parte da tradição mais antiga das bandas<br />

<strong>de</strong> pífano, o que evi<strong>de</strong>ncia a influência européia da formação.<br />

- rancheira: <strong>uma</strong> valsa rápida, mais próxima da mazurca, própria para a dança<br />

animada.<br />

Gêneros ligados às festas religiosas:<br />

- bendito: ritmo lento e ca<strong>de</strong>nciado utilizado em procissões. O compasso, variado,<br />

acompanha a melodia que, por sua <strong>vez</strong>, parece acompanhar a marcha da procissão.<br />

Po<strong>de</strong> apresentar compassos <strong>de</strong> dois, três, quatro e até cinco tempos. As melodias<br />

lembram lamentações ou ladainhas, em que predominam as notas ligadas. Há<br />

benditos que se apresentam sob forma <strong>de</strong> marchas ou dobrados.<br />

- novena: gênero próprio das novenas, festas religiosas que duram nove dias na<br />

preparação para o Natal. Acompanha procissões e rezas. Po<strong>de</strong> também apresentar-se<br />

como “marcha <strong>de</strong> novena”, “marcha <strong>de</strong> procissão” ou “baião <strong>de</strong> novena”.<br />

75


Gêneros onomatopaicos:<br />

- pipocas: gênero próprio das bandas <strong>de</strong> pífano, o que o caracteriza é <strong>uma</strong> das partes<br />

da música, que é tocada nos aros dos instrumentos <strong>de</strong> percussão, imitando o som <strong>de</strong><br />

pipocas estalando.<br />

- caborés: melodias repetitivas que imitam o som das corujinhas chamadas caborés.<br />

Paralelamente, há gran<strong>de</strong> movimentação rítmica nas percussões, em andamento<br />

animado.<br />

- briga do cachorro com a onça: <strong>uma</strong> dramatização musical, será explicada em<br />

<strong>de</strong>talhes no final <strong>de</strong>ste capítulo.<br />

As bandas <strong>de</strong> pífano tocam também xote, xaxado, coco, frevo, maracatu, ciranda,<br />

etc. No entanto, esses ritmos já fazem parte do repertório mo<strong>de</strong>rno das bandinhas, resultado<br />

da interação <strong>de</strong>ssas com outras formações como os trios <strong>de</strong> forró ou simplesmente com<br />

músicas ouvidas no rádio.<br />

O repertório ligado às festas religiosas em geral não se mistura ao repertório <strong>de</strong><br />

bailes e divertimentos. As bandas <strong>de</strong> Caruaru mais conhecidas e divulgadas pela mídia – a<br />

Banda <strong>de</strong> Caruaru (cujos integrantes atualmente moram em São Paulo) e a Banda Dois<br />

Irmãos – praticamente não tocam mais novenas e benditos, por exemplo. João do Pife, da<br />

Banda Dois Irmãos, explica:<br />

Nosso primeiro repertório, que não posso esquecer, vem do meu pai, ele me <strong>de</strong>u um bom<br />

presente que foi o pífano e me ensinou a tradição tocando novena, nas festas <strong>de</strong> interior, eu e<br />

meu irmão. Ele dizia: “João, não acabe não, que <strong>isso</strong> é bom, é a tradição...”. É <strong>uma</strong> raiz que<br />

vem do meu pai e está mantida a palavra <strong>de</strong>le... Depois passei a morar em Caruaru, fazer o<br />

pife, ven<strong>de</strong>r na feira... As gerações vão passando e essas gerações mais novas não sabem o<br />

que é novena, então a gente tem outro tipo <strong>de</strong> repertório pra acompanhar o tempo: xote, pra<br />

dançar, o baião, o forró que está na mídia...É <strong>uma</strong> mistura, a gente sempre coloca um<br />

chorinho lá no meio, o chorinho <strong>de</strong> pife. Os tradicionais são a novena, rancheira, valsas, os<br />

benditos <strong>de</strong> São Sebastião, Santa Luzia, Santo Antônio... Pra dançar, tem o xaxado, o xote, o<br />

76


aião, o forró... Estamos trabalhando em cima do maracatu que tem <strong>uma</strong> raiz forte na<br />

capital... Tem vários ritmos porque nós precisamos variar. (João do Pife 2005)<br />

João do Pife salienta a presença <strong>de</strong> choros compostos por ele e do maracatu, ritmo<br />

que vem sendo cada <strong>vez</strong> mais difundido pela mídia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Chico Science. Diante <strong>de</strong>ssa<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> renovação, ele critica as bandas que, segundo ele, tocam sempre o mesmo<br />

repertório, há décadas: “eu conheço muitas bandinhas em Caruaru, esses senhores lá nos<br />

pés-<strong>de</strong>-serra... que ficaram naquele estilo <strong>de</strong> tocar novena, não procuraram, não se<br />

interessaram em ensaiar outro repertório” (João do Pife 2005).<br />

Hermeto acha o pife um “instrumento lindo” e as bandas “maravilhosas” mas, assim<br />

como seu João do Pife critica as bandinhas do sertão, ele também reclama: “Des<strong>de</strong> que eu<br />

nasci o repertório não mudou nada, está igual música erudita. Des<strong>de</strong> que eu me entendo por<br />

gente essa música do cachorro e da onça está a mesma coisa” (Pascoal 2005).<br />

A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> renovação aparece na fala do músico, artista atuante no mercado<br />

musical. Mas, por outro lado, será essa <strong>uma</strong> tradição musical preservada no Brasil? A<br />

reclamação <strong>de</strong> Hermeto aponta a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> existirem no Brasil formações populares<br />

tradicionais sujeitas a se transformarem em música erudita ou culta porque fazem parte da<br />

cultura há séculos. Por outro lado, tanto a fala <strong>de</strong> seu João quanto a <strong>de</strong> Hermeto nos<br />

remetem à suposta fronteira entre “música folclórica” e “música popular” (que discutimos<br />

no capítulo 1), evi<strong>de</strong>nciando a diferença entre o contexto das festas e dos rituais e o<br />

contexto do rádio, dos shows e do disco. Enquanto, no primeiro, o valor principal seria a<br />

continuida<strong>de</strong>, a manutenção da tradição, no segundo, o valor seria a novida<strong>de</strong>, a<br />

transformação. A meu ver, não há que separar os dois contextos, mas sim mostrar que, na<br />

música <strong>de</strong> Hermeto, eles são complementares: é ele que transforma o palco em <strong>uma</strong> festa <strong>de</strong><br />

rua, da mesma forma que transforma a feira <strong>de</strong> Caruaru em um palco, conforme narrado por<br />

Ana Maria Bahiana (1980). Muitas bandas <strong>de</strong> pífanos também colocam em cheque essa<br />

distinção, ao se apropriarem do espaço do palco para a realização <strong>de</strong> suas brinca<strong>de</strong>iras e<br />

improvisações, em si bastante dinâmicas e criativas, contradizendo qualquer idéia <strong>de</strong><br />

tradição estática.<br />

Além <strong>de</strong> ter tocado pife em sua infância, Hermeto teve contatos recentes com duas<br />

bandas <strong>de</strong> pífanos bem conhecidas. Sobre a participação no show da Banda <strong>de</strong> Pífanos <strong>de</strong><br />

Caruaru, ele conta:<br />

77


Lá em São Paulo tem a Banda <strong>de</strong> Caruaru, <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> fui a <strong>uma</strong> festa que eles estavam<br />

tocando, foi no Brás, chegou lá, tinha falecido o pai <strong>de</strong>les e o cara chegou disse que estava<br />

com o pife do pai <strong>de</strong>le e me pediu pra dar <strong>uma</strong> canja, tocou a que eu conhecia mais que era a<br />

do cachorro com a onça, foi bonito, eu toquei, parecia que tinha ensaiado com eles...<br />

(Pascoal 2005)<br />

Em outra ocasião, chamou os irmãos Aniceto, do Ceará, para <strong>uma</strong> participação em<br />

seu show, sobre esse epi<strong>só</strong>dio, ele diz:<br />

Eu chamei o grupo pra dar <strong>uma</strong> canja, e disse: “vocês tocam o que quiserem”, eu tava com o<br />

DX7 (teclado) e disse pro meu grupo: “eu vou harmonizar mo<strong>de</strong>rno em cima do zabumbeiro<br />

e o velhinho vai olhar pra trás feliz, achando que coisa bonita, que coisa linda”. Aí tocaram<br />

justamente essa “A briga do cachorro com a onça” que é o hino nacional do zabumbeiro...<br />

Aí tocaram e quando eu fui entrar, o cara olhou pra trás... Eu toquei como se tivesse tocando<br />

com o [meu] grupo, foi um sucesso tão gran<strong>de</strong>... (Pascoal 2005)<br />

Nessas apresentações, a improvisação é um elemento criativo compartilhado pelas<br />

bandas <strong>de</strong> pífanos e por Hermeto. Juntos, eles transformam o palco em um espaço <strong>de</strong><br />

interação espontânea, semelhante à que ocorre nas festas <strong>de</strong> rua.<br />

Além da improvisação constante, outra faceta criativa das bandas <strong>de</strong> pífano são as<br />

brinca<strong>de</strong>iras. É comum as músicas imitarem sons da natureza, sons <strong>de</strong> animais ou mesmo<br />

da cida<strong>de</strong>. Há um caso interessante narrado por Sebastião Biano, pifeiro e compositor da<br />

Banda <strong>de</strong> Pífanos <strong>de</strong> Caruaru, em conversa informal com a autora. Ao falar da pipoca,<br />

gênero musical próprio das bandas <strong>de</strong> pífano, Biano diz que criou músicas chamadas<br />

pipocas escutando o estalar do milho quando sua mãe fazia pipocas. Mais tar<strong>de</strong>, ficou<br />

curioso ao ver um tipo <strong>de</strong> pipoca industrializado e foi até a fábrica conferir como era feita.<br />

A partir <strong>de</strong>ssa escuta, teria inventado a “Pipoca Mo<strong>de</strong>rna” (célebre música gravada pela<br />

Banda <strong>de</strong> Pífanos <strong>de</strong> Caruaru no disco Expresso 2222 <strong>de</strong> Gilberto Gil). Pelo menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

essa composição, Sebastião Biano já problematizou a diferença entre música popular e<br />

folclórica.<br />

Assim como as pipocas, em que os percussionistas tocam um ritmo nos aros dos<br />

instrumentos imitando as pipocas estalando, há também os caborés, em que os pifes imitam<br />

o som das corujinhas chamadas caborés. Mas a brinca<strong>de</strong>ira mais difundida é sem dúvida a<br />

78


“Briga do cachorro com a onça”, citada acima, que é aqui <strong>de</strong>scrita por Guerra-Peixe, com o<br />

título <strong>de</strong> um dueto, “A onça e o cachorro”:<br />

(1) toque <strong>de</strong> percussão por tempo in<strong>de</strong>terminado; (2) entram os pifes, “imitando os passos<br />

do cachorro”, muda o toque da percussão, a melodia do cachorro se <strong>de</strong>senvolve em forma <strong>de</strong><br />

interlúdio; (3) a “luta”. A onça ataca o cachorro; (4) abatido “o cachorro geme”<br />

(portamentos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes); daqui há volta ao começo, várias <strong>vez</strong>es; (5) final, reunindo<br />

elementos melódicos diversos. (Guerra-Peixe 1970: 35)<br />

Não por acaso a música <strong>de</strong> Hermeto está repleta <strong>de</strong> sons cotidianos, seja da<br />

natureza, dos bichos ou <strong>de</strong> sons <strong>de</strong> casa. Essa prática <strong>de</strong> Hermeto é constantemente<br />

relacionada à música <strong>de</strong> vanguarda do século XX – música concreta <strong>de</strong> Pierre Schaeffer,<br />

ruidismo futurista <strong>de</strong> Luigi Russolo, uso <strong>de</strong> sons cotidianos por Jonh Cage – ou ao free jazz,<br />

como veremos no próximo capítulo, no entanto, consi<strong>de</strong>ro pertinente relacioná-la<br />

primeiramente às bandas <strong>de</strong> pífano, como o próprio Hermeto reconhece:<br />

Tem aquela coisa que eles gostam muito, <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira, tem a “Briga do cachorro com a<br />

onça”. Eu vivi <strong>isso</strong>, é por <strong>isso</strong> que eu imito as coisas com meus instrumentos, por<br />

exemplo eu pego minha flauta transversa e imito um cachorro, é influência d<strong>isso</strong>.<br />

(Pascoal 2005)<br />

79


2ª parte > TACHO<br />

80


7. Escuta Hermeto<br />

Esta música é <strong>uma</strong> mistura <strong>de</strong> chorinho com baião, samba e com tudo. Assim como o<br />

tempo muda, tudo tem que evoluir sempre. [...] Esta música é <strong>uma</strong> mistura <strong>de</strong> mato com<br />

asfalto... [...] Esta música é <strong>uma</strong> mistura <strong>de</strong> mambo em dois, com chorinho e feijão com<br />

farinha e arroz, o resto é <strong>só</strong> tocar. Viva a inspiração! (Pascoal 2000: 147, 227, 253)<br />

Até aqui, buscamos reconhecer a música presente em três formações instrumentais<br />

das quais Hermeto participou: os trios <strong>de</strong> forró, os con<strong>junto</strong>s regionais e as bandas <strong>de</strong><br />

pífanos, com o intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver <strong>uma</strong> trajetória <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a paisagem sonora vivenciada<br />

por ele, repleta <strong>de</strong> festas e brinca<strong>de</strong>iras, até sua linguagem musical contemporânea.<br />

Deste ponto em diante, o foco inci<strong>de</strong> sobre a música <strong>de</strong> Hermeto e as<br />

transformações rítmicas aí elaboradas, seguindo seu próprio relato: “Quando eu<br />

cheguei no sul, eu fui juntando a música. A gente nunca fica fixo num estilo <strong>só</strong>, é<br />

<strong>uma</strong> mistura” (Pascoal 2005). Para <strong>isso</strong> recorrerei às suas primeiras gravações ainda<br />

com o regional <strong>de</strong> Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro e, em seguida, a composições escritas<br />

por ele em partituras, além <strong>de</strong> gravações <strong>de</strong> suas composições. Antes das análises,<br />

merecem atenção alg<strong>uma</strong>s consi<strong>de</strong>rações sobre a biografia <strong>de</strong> Hermeto e o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sua escuta.<br />

7.1. Da paisagem sonora à linguagem harmônica<br />

A partir <strong>de</strong> <strong>uma</strong> entrevista feita com Jovino Santos, músico que integrou o grupo <strong>de</strong><br />

Hermeto Pascoal, o pesquisador Costa Lima Neto, em sua dissertação “A música<br />

experimental <strong>de</strong> Hermeto Paschoal e grupo (1981-1993): concepção e linguagem”,<br />

<strong>de</strong>senvolve <strong>uma</strong> hipótese sobre a gênese da linguagem musical <strong>de</strong> Hermeto, sobretudo sua<br />

concepção harmônica. O estudo <strong>de</strong> Lima Neto é muito interessante e relevante também<br />

pelas análises musicais feitas e pela biografia <strong>de</strong> Hermeto. Neste tópico, busco dialogar<br />

com ele, questionando alg<strong>uma</strong>s idéias levantadas e incorporando aquelas que consi<strong>de</strong>ro<br />

pertinentes ao meu próprio estudo.<br />

81


Segundo Jovino, a linguagem harmônica <strong>de</strong> Hermeto não se resume, mas se baseia quase<br />

totalmente, em estruturas triádicas superpostas <strong>de</strong> maneira não funcional. Jovino levanta a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste procedimento harmônico ter se originado da sanfona <strong>de</strong> oito baixos<br />

(também chamada no nor<strong>de</strong>ste <strong>de</strong> pé <strong>de</strong> bo<strong>de</strong>), que foi o primeiro instrumento do<br />

compositor alagoano <strong>de</strong>pois das flautas <strong>de</strong> galho <strong>de</strong> mamona e dos pedaços <strong>de</strong> ferro<br />

percutido. A pé-<strong>de</strong>-bo<strong>de</strong> possui dois sistemas <strong>de</strong> botões. O primeiro sistema produz notas e<br />

serve para o instrumentista executar melodias. O segundo sistema <strong>de</strong> botões produz acor<strong>de</strong>s<br />

maiores, menores e dominantes, que servem para o acompanhamento. Por não ser<br />

cromática, a sanfona <strong>de</strong> oito baixos não possui todos os tons, sendo por <strong>isso</strong> um<br />

instrumento bastante limitado. Jovino nos relata que, na infância <strong>de</strong> Hermeto, este ia para o<br />

“monturo” (o ferro-velho) <strong>de</strong> seu avô ferreiro e, batendo nos diferentes pedaços <strong>de</strong> ferro,<br />

procurava suas notas fundamentais na sanfona, bem como os harmônicos que estas<br />

produziam. (Lima Neto 1999: 6 e 7)<br />

A partir <strong>de</strong>ssas experiências Hermeto elabora “<strong>uma</strong> linguagem harmônica<br />

parcialmente baseada em tría<strong>de</strong>s, as quais ele superpõe <strong>uma</strong>s às outras, gerando<br />

agrupamentos verticais <strong>de</strong> maior ou menor complexida<strong>de</strong> e tensão intervalar” (Lima Neto<br />

1999: 9). Segundo Jovino, ele teria <strong>de</strong>senvolvido esse sistema a partir da exploração <strong>de</strong><br />

sons do cotidiano (principalmente os ferros percutidos) e a tentativa <strong>de</strong> adaptar esses sons a<br />

seu primeiro instrumento “convencional”, <strong>uma</strong> sanfona <strong>de</strong> oito baixos. Explorando o<br />

instrumento, Hermeto acaba por <strong>de</strong>senvolver um jogo <strong>de</strong> superposições <strong>de</strong> tría<strong>de</strong>s.<br />

Simultaneamente, ele tenta reproduzir na sanfona as sonorida<strong>de</strong>s inarmônicas dos<br />

sons cotidianos, <strong>de</strong>senvolvendo também <strong>uma</strong> escuta ampliada. Dessa forma, ele teria<br />

iniciado seu idioma harmônico. Mais tar<strong>de</strong>, Hermeto continua <strong>de</strong>senvolvendo esse processo<br />

ao longo <strong>de</strong> sua carreira, seja na utilização recorrente <strong>de</strong> objetos e instrumentos não<br />

convencionais em shows e gravações, seja na busca <strong>de</strong> sons e harmonias não convencionais<br />

nos instrumentos utilizados em seu grupo: flauta, sax, teclados, baixo, bateria, percussão.<br />

A escuta <strong>de</strong> Hermeto <strong>de</strong>senvolve-se <strong>de</strong> tal forma que sua linguagem harmônica cria<br />

um universo próprio, recriado a partir da paisagem sonora que ele percebe no cotidiano.<br />

Configura-se aí um interessante exemplo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> paisagem sonora particular cujos<br />

elementos acústicos permitem a criação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> linguagem que associa timbre e harmonia.<br />

Investigando as relações entre espectros e escalas, Sethares (1997) dá o exemplo das<br />

orquestras <strong>de</strong> gamelan, da Indonésia, cujas escalas são diretamente correlatas ao espectro<br />

82


dos metalofones em que são tocadas. Segundo ele, também na música oci<strong>de</strong>ntal tonal,<br />

existe <strong>uma</strong> estreita relação entre os tipos <strong>de</strong> sons produzidos pelos instrumentos e os tipos<br />

<strong>de</strong> intervalos e escalas utilizados. Mas ele enfatiza que, apesar da música oci<strong>de</strong>ntal européia<br />

se pautar fortemente em sons harmônicos, estes são apenas um tipo <strong>de</strong>ntre <strong>uma</strong> gama<br />

enorme <strong>de</strong> sons possíveis.<br />

Hermeto, por sua <strong>vez</strong>, também utiliza os sons mais diversos em sua música. Por<br />

exemplo, “Tiruliruli” e “Vai mais garotinho”, presentes no CD Lagoa da Canoa –<br />

município <strong>de</strong> Arapiraca, são narrações <strong>de</strong> futebol que foram musicadas por Hermeto.<br />

Nessas gravações, ele não <strong>só</strong> extrai a melodia da fala dos narradores como também<br />

harmoniza as melodias tocadas, num processo que ele intitulou “Música da aura”. Os<br />

exemplos são muitos, no CD Missa dos escravos, ele utiliza o grunhido <strong>de</strong> um porco, no<br />

CD Hermeto Pascoal e grupo estão presentes cigarras e cachorros. Em seus shows é<br />

recorrente a apresentação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> música feita para canos <strong>de</strong> metal, “Entrando pelo cano”, e<br />

outra feita para tamancos <strong>de</strong> tamanhos diferentes. Mais <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> já ouvi Hermeto<br />

tocando <strong>uma</strong> chaleira com água, um copo d’água ou até mesmo sua própria barba. Qualquer<br />

som para ele é matéria-prima.<br />

As constatações elaboradas por Lima Neto são muito pertinentes no que diz respeito<br />

à concepção harmônica <strong>de</strong>senvolvida por Hermeto e a relação <strong>de</strong>sta com a paisagem sonora<br />

<strong>de</strong> sua infância, mais especificamente os sons dos ferros percutidos, hipótese levantada por<br />

Jovino. Mas a paisagem sonora vivida por Hermeto na infância era também rica em festas,<br />

brinca<strong>de</strong>iras e folguedos populares, como estamos <strong>de</strong>scobrindo. No entanto, logo após<br />

levantar hipótese tão interessante, Lima Neto <strong>de</strong>ixa a paisagem sonora em segundo plano e<br />

passa à relação <strong>de</strong> Hermeto com o free jazz, rotulando suas <strong>de</strong>mais influências <strong>de</strong> “música<br />

brasileira folclórica”.<br />

Ao investigar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> teria surgido o que ele chama “experimentalismo” na música<br />

<strong>de</strong> Hermeto, Lima Neto enfatiza a época em que ele viveu nos EUA, nos anos 1970,<br />

salientando então a influência do jazz, frente à suposta influência da música erudita:<br />

Tal<strong>vez</strong> seja mais pertinente supor o aparecimento na linguagem <strong>de</strong> Hermeto a partir <strong>de</strong><br />

alguns procedimentos composicionais – como a atonalida<strong>de</strong>, o rompimento com a<br />

regularida<strong>de</strong> do andamento, a improvisação extásica, o uso musical <strong>de</strong> ruídos, etc – mais<br />

pela via free jazz do que pela música erudita contemporânea.... (Lima Neto 1999: 46)<br />

83


Ao fazer <strong>isso</strong>, Lima Neto <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra a experiência <strong>de</strong> Hermeto <strong>junto</strong> às bandas <strong>de</strong><br />

pífano, aos trios <strong>de</strong> forró, nos con<strong>junto</strong>s regionais, <strong>de</strong>ntre outros. Quando procura<br />

redimensionar sua tese, a música presente na cultura popular vivida por Hermeto aparece<br />

no discurso <strong>de</strong> Lima Neto como “música brasileira folclórica” em combinação com o free<br />

jazz:<br />

De qualquer forma, o free jazz apresenta apenas <strong>uma</strong> das várias facetas da linguagem <strong>de</strong><br />

Hermeto na década <strong>de</strong> 70 [...] já que a linguagem <strong>de</strong> Hermeto é realmente múltipla,<br />

integrando e ultrapassando o próprio mo<strong>de</strong>lo experimental do free jazz, ao combiná-lo com<br />

a música brasileira folclórica ou, alternando na mesma música trechos improvisados a la<br />

free jazz, com outros totalmente tradicionais e arranjados. (Lima Neto 1999: 47)<br />

O discurso <strong>de</strong> Lima Neto dá a impressão que ele partiu <strong>de</strong> premissas da música<br />

erudita e também do jazz para enten<strong>de</strong>r a concepção musical <strong>de</strong> Hermeto mas, ao se<br />

<strong>de</strong>parar, com a hipótese <strong>de</strong> Jovino (que Neto intitula “surpreen<strong>de</strong>nte versão nativa”), <strong>uma</strong><br />

nova via se abre. Ele constata que Hermeto nunca teve um contato sistemático com a<br />

música erudita contemporânea e sua incorporação <strong>de</strong> elementos comuns a essa linguagem é<br />

fruto <strong>de</strong> sua experiência pessoal. No entanto, a tendência em buscar referências musicais ao<br />

mesmo tempo consagradas e generalizantes (música erudita, jazz) persistiu durante o seu<br />

estudo. O próprio Hermeto vai questionar a idéia, em nota comentada por Lima Neto<br />

referente à última entrevista feita por ele:<br />

Ele [Hermeto] nos disse que o jazz influenciou sua música harmonicamente, mas que do<br />

ponto <strong>de</strong> vista rítmico, se comparado à rítmica brasileira, este estilo é muito pobre. Quanto<br />

à improvisação jazzística, Hermeto lembra que há outros mo<strong>de</strong>los que o influenciaram<br />

igualmente, como por exemplo os cantadores <strong>de</strong> embolada e os repentistas nor<strong>de</strong>stinos.<br />

(Lima Neto 1999: 54)<br />

A meu ver, tal observação mereceria mais do que <strong>uma</strong> nota <strong>de</strong> pé <strong>de</strong> página. Se a<br />

hipótese <strong>de</strong> Jovino evi<strong>de</strong>ncia justamente a importância das experiências sonoras <strong>de</strong><br />

Hermeto na infância, porque dar tanto peso às influências jazzísticas?<br />

84


As influências jazzísticas seriam, a partir dos EUA, mais fortemente assimiladas em sua linguagem,<br />

na forma <strong>de</strong> longas improvisações atonais, d<strong>isso</strong>lução do metro, pesquisa <strong>de</strong> timbres e com ruídos,<br />

etc. Estas características experimentais parecem como já dissemos, ter influenciado Hermeto via free<br />

jazz americano. (Lima Neto 1999: 55)<br />

Ao dizer <strong>isso</strong>, Lima Neto <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra inúmeras referências anteriores <strong>de</strong> Hermeto:<br />

as bandas <strong>de</strong> pífanos, os forrós, os maracatus, os regionais das rádios, <strong>de</strong>ntre outras.<br />

Hermeto passou pelo jazz, e pelo free jazz, como passou por várias outras formações<br />

musicais. Dessa passagem, e da estadia nos EUA, mais do que as influências musicais, o<br />

baterista Nenê <strong>de</strong>staca que Hermeto teria ficado mais corajoso, mais audacioso. Ou seja,<br />

passou a valorizar mais a experimentação que ele já realizava, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os pífanos <strong>de</strong> cano <strong>de</strong><br />

mamona, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sanfona <strong>de</strong> oito baixos...<br />

7.2. Viva o som sempre 29<br />

No fundo, amanhã já é passado. Esse passado nos acompanha muito mais fortemente que<br />

nossa sombra. [...] Ele passa na nossa frente várias <strong>vez</strong>es. Vive em nossa volta. [...] Por <strong>isso</strong><br />

não é preciso pensar no passado. Não precisa ser saudosista. Necessário é ter sauda<strong>de</strong>.<br />

(Hermeto 1998: 47)<br />

Hermeto Pascoal, hoje com 70 anos, viveu gran<strong>de</strong> parte do século XX e participou<br />

ativamente da história da música brasileira. Em 2000, lançou o livro Calendário do som<br />

on<strong>de</strong>, além das 366 partituras compostas por ele (<strong>uma</strong> para cada dia <strong>de</strong> um ano bissexto), há<br />

também um verda<strong>de</strong>iro diário registrado ao pé <strong>de</strong> cada partitura: são comentários,<br />

anotações, lembranças evocadas pelas composições. Nesse diário, Hermeto tece <strong>uma</strong><br />

história não linear que acaba por revelar, em homenagens, muitas <strong>de</strong> suas referências. Farei<br />

aqui, das palavras <strong>de</strong> Hermeto, <strong>uma</strong> breve biografia 30 .<br />

29 Frase que acompanha a assinatura do compositor na maioria das músicas do Calendário do som.<br />

30<br />

As fontes das informações biográficas aqui <strong>de</strong>stacadas são entrevistas com Hermeto (Pascoal 1998, 1999,<br />

2005 e 2006), a entrevista com Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro (2006), o livro Calendário do Som (Pascoal 2000) e<br />

a dissertação “A música experimental <strong>de</strong> Hermeto Paschoal e grupo: concepção e linguagem” (Lima Neto<br />

1999).<br />

85


Compus essa música pensando nas bandinhas <strong>de</strong> música das cida<strong>de</strong>s do interior <strong>de</strong> todas as<br />

partes do mundo, porque elas são gran<strong>de</strong>s fontes cristalinas <strong>de</strong> música. (Pascoal 2000: 403)<br />

Hermeto nasceu no interior <strong>de</strong> Alagoas, no povoado <strong>de</strong> Olho D’àgua, perto da<br />

cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lagoa da Canoa, município <strong>de</strong> Arapiraca, em 22 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1936. Em sua<br />

infância participou das mais diversas brinca<strong>de</strong>iras populares.<br />

Esta música me lembra muito as festas <strong>de</strong> cavalhadas em minha cida<strong>de</strong>, Lagoa da Canoa.<br />

[...] Me lembrei muito <strong>de</strong> Lagoa da Canoa e da banda <strong>de</strong> música Arapiraca tocando nas<br />

praças e nas festas <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> ano. [...] Compondo essa música me lembrei do carnaval <strong>de</strong><br />

Lagoa da Canoa, a mamãe me fantasiava <strong>de</strong> Catarina para brincar, com os meus oito anos.<br />

(Pascoal 2000: 354, 288, 322)<br />

Sua infância também é permeada por referências à natureza, aos animais e ao<br />

trabalho na roça.<br />

Esta música tem muito a ver com burro, jumento, galo, galinha, porco e todos os animais da<br />

terra. Viva as boiadas e seus boia<strong>de</strong>iros. [...] Escrevendo esta composição me lembrei muito<br />

<strong>de</strong> quando eu andava pelas matas à cata <strong>de</strong> som, sempre encontrava. [...] Compus essa<br />

música pensando muito nos aboios dos vaqueiros tangendo o gado pela estrada e às <strong>vez</strong>es<br />

até tendo que atravessar rios e riachos, até chegar lá. Tenho tudo <strong>isso</strong> gravado em minha<br />

mente. Viva o som, as idéias, as nuvens e as estrelas coloridas. (Pascoal 2000: 344, 407,<br />

400)<br />

Com o pai, Seu Pascoal, e o irmão, José Neto, tocou em festas <strong>de</strong> casamento e<br />

forrós em Alagoas.<br />

Viva a música sempre! Me lembrei muito dos arrasta-pés que eu tocava em minha terra<br />

Lagoa da Canoa; começava a tocar na sexta-feira e <strong>só</strong> terminava na segunda à tardinha. [...]<br />

Esta música lembra muito as festas <strong>de</strong> casamento que eu tocava três dias sem parar, até o<br />

sol nascer. (Pascoal 2000: 398, 411)<br />

Em 1950, Hermeto é convidado por Sivuca a integrar o regional da rádio Jornal do<br />

Comércio, em Recife, juntamente com seu irmão, José Neto. Hermeto foi então com toda a<br />

86


família para Recife, on<strong>de</strong> passou a ter contato com as orquestras <strong>de</strong> rádio e com as festas<br />

populares da cida<strong>de</strong>.<br />

Esta música é muito parecida com aquele povo lindo <strong>de</strong> Recife; me lembro quando cheguei<br />

lá com os meus 14 anos, sempre como observador na boa música. Aprendi muito escutando<br />

os ensaios com os gran<strong>de</strong>s maestros Clóvis Pereira, Guerra-Peixe, maestro Duda e muitos<br />

outros. [...] Esta música lembra-me muito as cirandinhas <strong>de</strong> Recife e os frevos das ruas, e<br />

compositores como Capiba, Nelson Ferreira e cantores como Claudionor Germano,<br />

Expedito Baracho, Paulo Tito e tantos outros. (Pascoal 2000: 403, 411)<br />

Em Recife, passou também pelo trio <strong>de</strong> albinos “O mundo pegando fogo”, com<br />

Sivuca e José Neto, o nome do grupo referindo-se à cor avermelhada dos músicos. Além<br />

<strong>de</strong>sse grupo, Hermeto foi convidado por Heraldo do Monte a tocar com ele:<br />

O Heraldo me chamou pra tocar n<strong>uma</strong> boate no lugar <strong>de</strong> um pianista. Eu fui tocar, mas eu<br />

não tocava piano. Ele disse “mas você é muito musical, você toque <strong>só</strong> na mão direita que eu<br />

vou fazer na guitarra e quando o dono da casa passar eu fico na frente pra ele não ver a sua<br />

mão esquerda”. E eu estudando... Quando eu melhorei, eu falei, não precisa mais... (Pascoal<br />

2005)<br />

Ainda na Rádio Jornal do Comércio, não eram <strong>só</strong> os ensaios <strong>de</strong> Guerra-Peixe que<br />

interessavam a Hermeto...<br />

Ia escutar um pianista que chamava-se Alberto Figueiredo, que tocava <strong>só</strong> Chopin, não<br />

tocava mais nenhum compositor. Ele lia a partitura e criava. Aquilo pra mim foi muito bom<br />

porque nessa época eu <strong>só</strong> tocava chorinho e forró. (Pascoal 2005)<br />

Nessa época, Hermeto conhece também Jackson do Pan<strong>de</strong>iro, seu colega na Rádio<br />

Jornal do Comércio.<br />

Esta música lembra o gran<strong>de</strong> e eterno Jackson do Pan<strong>de</strong>iro, pensei nele enquanto estava<br />

compondo, tenho certeza que ele estava perto. É mais um som para a gente curtir. Viva a<br />

luz e o som sempre! (Pascoal 2000: 406)<br />

87


Jackson já começava a ser reconhecido como cantor e Hermeto passou a substituí-lo<br />

no pan<strong>de</strong>iro. No entanto, seria advertido pelo próprio Jackson a não aceitar tal substituição,<br />

<strong>uma</strong> <strong>vez</strong> que havia sido contratado para tocar acor<strong>de</strong>om. Desse impasse resultaria um<br />

<strong>de</strong>sentendimento com seu chefe na rádio que levaria Hermeto a ser transferido para<br />

Caruaru, on<strong>de</strong> passa a estudar teoria musical por conta própria.<br />

Agora a minha memória foi parar em Caruaru, na Rádio Difusora on<strong>de</strong> eu fiquei mais <strong>de</strong><br />

três anos. Foi lá que aprendi a tocar sanfona <strong>junto</strong> com os gran<strong>de</strong>s músicos hoje gran<strong>de</strong>s<br />

maestros, compositores e instrumentistas. Caruaru é José Gomes, o gran<strong>de</strong> Omildo<br />

Almeida, compositor daquela música linda que se chama “Feira <strong>de</strong> Caruaru”, também do<br />

maestro Joaquim Augusto [...] a todos um gran<strong>de</strong> som. (Pascoal 2000: 408)<br />

Volta para Recife e vai para a Rádio Tabajara, em João Pessoa:<br />

Compondo esta música me lembrei muito <strong>de</strong> quando tocava em con<strong>junto</strong> regional em<br />

Recife e João Pessoa [...]. Isso lembra-me muito os encontros dos músicos antes <strong>de</strong><br />

começar os ensaios do regional com os cantores e instrumentistas nas rádios. (Pascoal<br />

2000: 369, 412)<br />

Pouco tempo <strong>de</strong>pois, é convidado a integrar o Regional <strong>de</strong> Pernambuco do<br />

Pan<strong>de</strong>iro, na Rádio Mauá, Rio <strong>de</strong> Janeiro, ainda tocando acor<strong>de</strong>om. 31 Com esse Regional,<br />

Hermeto participa da gravação <strong>de</strong> três discos (conforme veremos no próximo capítulo).<br />

Compondo essa música lembrei-me muito do gran<strong>de</strong> amigo e incentivador Pernambuco do<br />

pan<strong>de</strong>iro e seu regional; me lembrei também dos violonistas Jorge e Pingüim, Ubiratan e<br />

seu cavaquinho. E um dos melhores flautistas <strong>de</strong> todos os tempos que se chama<br />

Manuelzinho da flauta, e o gran<strong>de</strong> Pernambuco. (Pascoal 2000: 405)<br />

Hermeto participou também do Trio Surdina, formado por Garoto, no violão e pelo<br />

violinista Fafá Lemos. Já no final <strong>de</strong>ste trio, Hermeto entrou no lugar <strong>de</strong> Chiquinho do<br />

acor<strong>de</strong>om. No entanto, no início dos anos 1960, houve <strong>uma</strong> mudança significativa no<br />

31 Quando chega ao Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 1953, Hermeto faz gravações com o irmão José Neto que nessa época<br />

tocava no regional <strong>de</strong> Arlindo Branco, na Rádio Tupi.<br />

88


panorama musical nacional, a transição do rádio para a televisão, a divulgação da estética<br />

da Bossa-Nova, houve então um <strong>de</strong>clínio na carreira <strong>de</strong> Luiz Gonzaga. Dreyfus faz <strong>uma</strong><br />

caricatura da década <strong>de</strong> 60: “na rua, quem andasse com sanfona a tiracolo era motivo <strong>de</strong><br />

gozação. Na época, mais valia trocar o acor<strong>de</strong>om por um órgão” (Dreyfus 1997: 229).<br />

Curiosamente, é mais ou menos o que Hermeto vai fazer, resguardando sua preferência<br />

pelos sons acústicos.<br />

Em 1961, Pernambuco é chamado a organizar seu regional em Brasília, quando<br />

todos os componentes ganhariam do Presi<strong>de</strong>nte Juscelino Kubisctheck um emprego <strong>de</strong><br />

fiscal. Hermeto não pô<strong>de</strong> ir imediatamente porque tinha um contrato <strong>de</strong> ainda três meses no<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, para tocar com a orquestra do maestro Copinha. Mas a proposta do regional<br />

em Brasília não vingou e os músicos se dispersaram, apenas Pernambuco fica em Brasília.<br />

(Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro 2006)<br />

Com o fim do regional, Hermeto <strong>de</strong>dica-se mais ao piano, 32 na orquestra do maestro<br />

Copinha e, em seguida, em boates na noite <strong>de</strong> São Paulo. Apesar das mudanças na<br />

formação instrumental, a mão direita do pianista é a mesma que toca o teclado do<br />

acor<strong>de</strong>om. Nessa época, começa também a praticar flauta e sax e conhece vários músicos.<br />

Me lembrei <strong>de</strong> história que eu já contei para vários amigos, do tempo em que eu morava em<br />

cortiço, tinha briga todos os dias mas eu sempre estudava no banheiro. (Pascoal 2000: 409)<br />

A noite e os regionais das rádios foram as escolas <strong>de</strong> Hermeto, nas quais ele<br />

apren<strong>de</strong>u oralmente um vocabulário musical variado.<br />

Esta música me faz lembrar muito o tempo em que eu tocava na noite para dançar. (Pascoal<br />

2000: 396)<br />

32 Pernambuco conta que, ainda no regional, conseguiu para Hermeto a chave do piano da rádio Mauá, e ele<br />

sempre estudava antes dos ensaios.<br />

89


Em São Paulo, tocou com o Som 4, com o Sambrasa Trio (1965), com o Quarteto<br />

Novo (1967) e com o Brazilian Octopus (1970). Participou <strong>de</strong> gravações com os três<br />

últimos, nas quais já figuram composições <strong>de</strong> Hermeto. 33<br />

Esta música lembra-me muito o Quarteto Novo, quando estava compondo parecia tocando<br />

com ele. Foi a partir do Quarteto Novo que me <strong>de</strong>scobri mais como compositor e<br />

arranjador. Viva o som sempre! (Pascoal 2000: 406)<br />

Com o Quarteto Novo, também acompanha cantores e participa <strong>de</strong> Festivais da<br />

canção, on<strong>de</strong> exercita sua prática <strong>de</strong> arranjos.<br />

Compus esta música pensando muito nas coisas do carnaval: confete, serpentina, apitos e o<br />

povo dançando nas ruas com o Edu Lobo cantando com seu violão diferente. É estilo<br />

pessoal. Viva Edu Lobo! (Pascoal 2000: 403)<br />

Em 1969, a convite <strong>de</strong> Airto Moreira e Flora Purim, vai para os EUA, on<strong>de</strong> conhece<br />

os mais importantes músicos <strong>de</strong> jazz da época. A partir daí, Hermeto começa a ser<br />

reconhecido internacionalmente. Só voltaria <strong>de</strong> <strong>vez</strong> ao Brasil <strong>de</strong>z anos e quatro discos<br />

<strong>de</strong>pois, quando congrega um grupo fixo <strong>de</strong> músicos, gravando mais seis LPs e ampliando<br />

sua carreira internacional.<br />

A casa <strong>de</strong> Hermeto, no bairro Jabour, Rio <strong>de</strong> Janeiro, vira referência para vários<br />

músicos que vão até lá assistir aos ensaios. A cantora Joyce fez a música “Na casa do<br />

campeão” on<strong>de</strong> ensina o caminho para se chegar lá. O grupo <strong>de</strong> Hermeto torna-se então<br />

<strong>uma</strong> verda<strong>de</strong>ira escola, 34 on<strong>de</strong> ele vai aplicar e continuar a <strong>de</strong>senvolver sua concepção<br />

musical. Esse grupo teve várias formações. Inicialmente participaram o baterista Realcino<br />

Lima Junior (o Nenê), o flautista Mazinho, o baixista Anunciação, a cantora Rosemaire<br />

Pidner (Zabelê), o flautista Cacau, <strong>de</strong>ntre outros. Passaram pelo grupo também os bateristas<br />

Paulo Braga e José Eduardo Nazário e o saxofonista e flautista Nivaldo Ornelas. Durante os<br />

33<br />

Apesar <strong>de</strong> “O ovo” ser constantemente apontada como a primeira composição gravada <strong>de</strong> Hermeto, em<br />

1965 ele já havia gravado a música “Coalhada” com o Sambrasa Trio. No entanto, “O ovo” (com o Quarteto<br />

Novo) foi a mais divulgada.<br />

34<br />

Sobre os ensaios na casa <strong>de</strong> Hermeto ver Lima Neto (1999: 60-75)<br />

90


anos 1980 e 1990, os músicos que permaneceram foram o baixista Itiberê Zwarg e o<br />

baterista Márcio Bahia. O percussionista Fábio Pascoal (filho <strong>de</strong> Hermeto), o flautista e<br />

saxofonista Vinícius Dorin e o pianista André Marques se juntaram a eles. O percussionista<br />

Pernambuco 35 , o flautista e pianista Jovino Santos e o flautista e saxofonista Carlos Malta<br />

saíram do grupo nos anos 1990. 36<br />

Obrigado ao Márcio Bahia, Itiberê, André, Vinícius, Fábio, Pernambuco e Manoel. Viva o<br />

som sempre. (Pascoal 2000: 404)<br />

7.3. Teoria musical feita em casa<br />

Porque música não é para enten<strong>de</strong>r, é para sentir. Como é que você vai enten<strong>de</strong>r o vento?<br />

(Hermeto 1998: 51)<br />

De origem humil<strong>de</strong>, albino e com a visão prejudicada, Hermeto era recusado pelos<br />

padrões escolares que não se adaptavam às suas diferenças. Além d<strong>isso</strong>, não podia ajudar<br />

na lavoura por ser albino. Segundo seu próprio relato, seu pai o <strong>de</strong>ixava sozinho <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> árvore quando o sol estava muito forte. Esse isolamento forçado fez com que ele<br />

<strong>de</strong>senvolvesse formas próprias <strong>de</strong> estar no mundo, <strong>de</strong> se comunicar e <strong>de</strong> brincar, o que ele<br />

acabou conseguindo através da música. Em prefácio ao livro Calendário do som, o<br />

jornalista Sergio Cabral assim <strong>de</strong>fine o músico:<br />

é um <strong>de</strong>sses brasileiros que, pela <strong>de</strong>terminação e pelo talento, conseguiram superar as<br />

<strong>de</strong>ficiências do nosso sistema educacional. Nascido e criado n<strong>uma</strong> região <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong><br />

35<br />

O percussionista Pernambuco, aqui citado, que participou do grupo <strong>de</strong> Hermeto nos anos 1980 não é o<br />

Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro, seu homônimo, <strong>de</strong> cujo regional Hermeto participou ainda nos anos 1950, como<br />

veremos no capítulo 8.<br />

36<br />

Des<strong>de</strong> 2003, Hermeto não mora mais no Jabour. Mesmo sem ensaios regulares, o grupo continua atuante.<br />

Recentemente, a escola <strong>de</strong> Hermeto tem dado frutos também através dos músicos que <strong>de</strong>la participam ou<br />

participaram, por exemplo o baixista Itiberê criou a Itiberê Orquestra Família; o flautista e saxofonista Carlos<br />

Malta fundou os grupos Coreto Urbano e Pife Mo<strong>de</strong>rno; o pianista André Marques participa do trio Curupira.<br />

91


escolas <strong>de</strong> música [...] tornou-se um dos nossos gran<strong>de</strong>s instrumentistas, um magnífico<br />

arranjador e um compositor tão maravilhoso quanto original. (Pascoal 2000: 11)<br />

Essa faceta da história <strong>de</strong> Hermeto simboliza a contradição evi<strong>de</strong>nte entre ensino<br />

musical e criação musical no Brasil. Apesar do aprendizado musical espontâneo <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

muito cedo, como já foi dito, explorando sons da natureza, ferros <strong>de</strong> seu avô ferreiro até a<br />

sanfona <strong>de</strong> oito-baixos <strong>de</strong> seu pai, Hermeto teve muita dificulda<strong>de</strong> ao tentar ter acesso a um<br />

aprendizado formal <strong>de</strong> teoria musical, <strong>de</strong>vido à sua visão <strong>de</strong>bilitada. Depois <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong>s<br />

tentativas frustradas, <strong>só</strong> foi apren<strong>de</strong>r um pouco <strong>de</strong> teoria quando já era músico profissional:<br />

A teoria musical eu vim apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> meus 35 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, apren<strong>de</strong>ndo com a<br />

vida, sem escola sem nada. Nunca estu<strong>de</strong>i com nenhum professor. Infelizmente porque<br />

isto me tomou muito tempo. Aprendo as coisas com <strong>de</strong>duções, porque Deus fez o mundo<br />

bem feito, tem <strong>uma</strong> lógica para tudo. Não tem esse papo <strong>de</strong> <strong>isso</strong> não tem lógica. Quando<br />

não tem lógica é porque não existe. Outros confun<strong>de</strong>m lógica com padrão. Tá errado!<br />

Padronizar as coisas não tem nada a ver com lógica. (Pascoal 1999)<br />

Seu aprendizado informal <strong>de</strong>u origem a <strong>uma</strong> concepção <strong>de</strong> música totalmente ligada<br />

à vida cotidiana, inspirada pelos motivos e sons mais diversos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o jogo do Fluminense<br />

até o balançar das cortinas <strong>de</strong> sua casa. A integração entre a linguagem musical e a vida<br />

evi<strong>de</strong>ncia-se também em sua teoria musical: “O ritmo casou com a harmonia. Nasceu o<br />

tema. (...) A menina chama-se melodia” (Pascoal 1998: 51); ou “são tantos os caminhos<br />

harmônicos para a gente percorrer que digo com muita convicção: a harmonia é a mãe, o<br />

ritmo é o pai e o tema é o filho” (Pascoal 2000: 402). Para ele, a música é o casamento da<br />

mãe-harmonia com o pai-ritmo, que dá origem à filha-melodia e ao filho-tema. Muitas<br />

<strong>vez</strong>es, harmonia e ritmo ficam por conta dos filhos mais novos, que fazem muita arte... 37<br />

A teoria em torno da linguagem musical <strong>de</strong> Hermeto envolve também<br />

<strong>de</strong>nominações próprias para os conceitos e elementos musicais mais utilizados. Como<br />

vimos, a síncope é “garfinho”, a marca contramétrica que caracteriza o tresillo é a<br />

“pendurada”; além das expressões correntes utilizadas: o “chão” seria a referência <strong>de</strong><br />

metricida<strong>de</strong>, “quebrar tudo” é priorizar os acentos e ritmos contramétricos, ou seja, “fora do<br />

37 Idéia sugerida por Felipe José Oliveira Abreu, violoncelista mineiro que participou da Itiberê Orquestra<br />

Família.<br />

92


chão”, e assim por diante. São <strong>de</strong>nominações que se referem ao cotidiano, à casa, à família<br />

e às ações corriqueiras: quebrar, pendurar... Ou simplesmente ao <strong>de</strong>senho das figuras<br />

rítmicas recorrentes: as pontuadas, o garfinho.<br />

O aprendizado tardio <strong>de</strong> regras e conceitos da teoria musical tradicional causou um<br />

certo estranhamento no compositor acost<strong>uma</strong>do a compreen<strong>de</strong>r o mundo através <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

reflexão cotidiana e <strong>uma</strong> escuta ampliada:<br />

Foi por volta dos 45 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> que eu <strong>de</strong>scobri que a teoria, não a música, tem doze<br />

notas. [...] Aí eu me <strong>de</strong>cepcionei e por um momento me <strong>de</strong>u um branco na cabeça. Meu<br />

Deus, quer dizer que tudo que eu faço é com essas doze notas? Eu me esqueci <strong>de</strong> pensar<br />

que nas cores você tem o azul claro, o azul escuro, você tem a areia branca, a areia<br />

vermelha e nessa hora não me veio que na música eu tenho as oitavas, tenho as quartas, as<br />

quintas, para me tranqüilizar. [...] Ficou chato naquela noite porque eu queria fazer <strong>uma</strong><br />

composição e na minha cabeça tinha notas que não existiam na notação convencional. É<br />

por <strong>isso</strong> que tem a percussão e os sons dos bichos. (Lima Neto 1999: 193)<br />

Mas tal aprendizado não o limitou, pelo contrário, a liberda<strong>de</strong> e as brinca<strong>de</strong>iras<br />

caracterizam suas composições. Esse viés lúdico da composição <strong>de</strong> Hermeto foi estudado<br />

por Tato Taborda (apud Lima Neto 1999), que fez um paralelo entre Hermeto e Pierre<br />

Schaeffer. Taborda estabelece um território <strong>de</strong> contato entre o universo popular e o erudito<br />

que ele chama “música <strong>de</strong> invenção", nesse ínterim, ele fala sobre as brinca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong><br />

Hermeto com os objetos sonoros, referindo-se à hipotética aproximação entre Hermeto<br />

Pascoal e Luigi Russolo ou Hermeto e Pierre Schaffer, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> aponta o caráter lúdico da<br />

ativida<strong>de</strong> criativa <strong>de</strong> Hermeto.<br />

Como bem assinala Tato, o experimentalismo em Hermeto está bastante relacionado à<br />

espontaneida<strong>de</strong> e ao prazer. A nosso ver, <strong>isso</strong> se <strong>de</strong>ve ao fato da exploração sonora estar<br />

associada fortemente ao brincar. A música, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Lagoa da Canoa, sempre foi para<br />

Hermeto seu maior brinquedo. Privado das brinca<strong>de</strong>iras sob o sol com as outras crianças,<br />

Hermeto parece ter canalizado seu ludismo totalmente para as brinca<strong>de</strong>iras sonoras. Ainda<br />

hoje, a busca <strong>de</strong> Hermeto pelo inusitado é alegre e não tem a serieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong>s<br />

correntes contemporâneas que racionalizam muito o experimento. (Lima Neto 1999: 15)<br />

93


Em sua dissertação, Lima Neto enfatiza alguns princípios relativos à concepção<br />

musical <strong>de</strong> Hermeto:<br />

• a postura criativa do músico, predominantemente voltada para a esfera do sensível,<br />

para a intuição e para a prática;<br />

• a prática musical consistindo em três etapas <strong>de</strong> um “ritornello infinito”: a livre<br />

exploração do som (harmônico ou inarmônico); a representação escrita, que, por sua<br />

<strong>vez</strong>, torna-se <strong>uma</strong> estrutura-base para outras improvisações;<br />

• a busca sistemática do alegre, do inusitado, da surpresa;<br />

• a exploração musical lúdica, diretamente ligada ao cotidiano;<br />

• a percepção ampliada <strong>de</strong> Hermeto, que ele parece ter conservado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua infância.<br />

A concepção da linguagem musical <strong>de</strong> Hermeto está diretamente ligada às suas<br />

reflexões, às suas brinca<strong>de</strong>iras, à sua escuta ampliada. Sua trajetória musical está permeada<br />

por essas relações, é a partir <strong>de</strong>las que ele vai transformar suas inúmeras influências, da<br />

música das bandas <strong>de</strong> pífano do interior <strong>de</strong> Alagoas aos regionais do choro. Apesar <strong>de</strong><br />

Hermeto se consi<strong>de</strong>rar um autodidata, nessa dissertação procuro mostrar justamente como<br />

as bandas <strong>de</strong> música (<strong>de</strong> coreto, <strong>de</strong> forró, <strong>de</strong> pífanos) e os regionais das rádios foram suas<br />

primeiras “escolas” <strong>de</strong> música.<br />

94


8. Hermeto do choro ao forró<br />

8.1. Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro<br />

Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro é um capítulo à parte. Des<strong>de</strong> que comecei a pesquisar a<br />

história <strong>de</strong> Hermeto no choro, aparecia esse nome – Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro – como <strong>uma</strong><br />

referência importante, quase <strong>uma</strong> lenda. No seu rastro, surgiam informações<br />

<strong>de</strong>sencontradas sobre o disco Batucando no morro, <strong>uma</strong> rarida<strong>de</strong>. Até que (surpresa)<br />

<strong>de</strong>scobri que Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro não é apenas <strong>uma</strong> lenda, mas <strong>uma</strong> lenda viva! E que<br />

mora em Uberaba, nem tão longe <strong>de</strong> Belo Horizonte. Fui então procurá-lo.<br />

Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro, hoje com 81 anos, é um senhor cheio <strong>de</strong> carisma e<br />

energia, que toca pan<strong>de</strong>iro com a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem fez história no rádio brasileiro. Sem<br />

querer, <strong>de</strong>scobri, logo ali em Uberaba, um mestre da escola <strong>de</strong> pan<strong>de</strong>iro do choro carioca.<br />

Seu espírito brincalhão, comunicativo lembrou-me logo Hermeto.<br />

Já na sala <strong>de</strong> visitas <strong>de</strong> sua casa, as pare<strong>de</strong>s repletas <strong>de</strong> fotos revelam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

história do rádio brasileiro até a criação do Clube do Choro em Brasília, do qual ele é um<br />

dos fundadores. São fotos e mais fotos, Pernambuco participando <strong>de</strong> várias gerações da<br />

música brasileira: com Waldir Azevedo, Luiz Gonzaga, Carmélia Alves, Carmem Miranda,<br />

Abel Ferreira, Paulo Moura, Claudionor Cruz. Dentre estes e tantos outros, <strong>de</strong>staca-se <strong>uma</strong><br />

gran<strong>de</strong> foto com três barbudos <strong>de</strong> cabelo branco: Pernambuco, Sivuca e Hermeto. A cada<br />

história que ele contava eu não sabia mais se Pernambuco estava me fazendo <strong>de</strong>scobrir<br />

Hermeto Pascoal ou se era o Hermeto que me fazia <strong>de</strong>scobrir esse outro personagem da<br />

música brasileira.<br />

Pernambuco, ou melhor, Inácio Pinheiro Sobrinho, nasceu em Gravatá, interior <strong>de</strong><br />

Pernambuco, mas foi criado na Paraíba, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lagoa da Roça <strong>de</strong> São Sebastião. Em<br />

1936, quando Hermeto ainda estava nascendo lá em Alagoas, Pernambuco, com 12 anos,<br />

mudava-se com a família para o Rio <strong>de</strong> Janeiro. Trabalhava como engraxate, tocava<br />

cavaquinho, mas logo interessou-se pelo pan<strong>de</strong>iro, com o qual, além <strong>de</strong> tocar, fazia<br />

malabares. Morou no morro <strong>de</strong> São Carlos. Na Lapa teve contato constante com a boemia<br />

musical da cida<strong>de</strong>. Conheceu um grupo <strong>de</strong> chorões que tocava na casa do Professor<br />

Wal<strong>de</strong>mar, “<strong>uma</strong> casa da maior freqüência <strong>de</strong> choristas, a casa do compadre <strong>de</strong> Pixinguinha<br />

95


lá no Catumbi” (Pernambuco 2006). Sobre o Pixinguinha, ele conta: “Não era Pixinguinha,<br />

era Bixiguinha que a vó <strong>de</strong>le chamava...” (Pernambuco 2006).<br />

Com 16 anos, Pernambuco tentou a sorte num programa <strong>de</strong> calouros da Rádio<br />

Mayrink Veiga e teve êxito. Logo seria chamado a tocar em regionais e acompanhar<br />

cantores. Arlindo Ferreira foi quem o batizou <strong>de</strong> Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro. Na década <strong>de</strong><br />

1940, acompanhou Araci <strong>de</strong> Almeida, Angela Maria, Francisco Alves, Ari Barroso,<br />

Adoniran Barbosa, participou dos regionais <strong>de</strong> Henrique Xavier Pinheiro, César Faria e<br />

Dona Paula (pais <strong>de</strong> Paulinho da Viola), Jacob do Bandolim, Claudionor Cruz, Benedito<br />

Lacerda, tocou com Pixinguinha, Carlos Poyares, Waldir Azevedo... Nos anos 1950,<br />

Pernambuco cita dois acontecimentos marcantes para sua carreira: a turnê com Carmélia<br />

Alves (a rainha do baião) pela Europa, quando também morou em Portugal, e a “Primeira<br />

Caravana Oficial da Música Popular Brasileira”, da qual faziam parte Pernambuco, Sivuca,<br />

Guio <strong>de</strong> Moraes, Abel Ferreira e o Trio Irakitan, excursionando pela Europa em missão do<br />

governo brasileiro.<br />

No contexto dos regionais das rádios, os percussionistas eram então chamados<br />

ritmistas. Além do pan<strong>de</strong>iro, Pernambuco tocava também caixeta, ganzá 38 e zabumba. No<br />

pan<strong>de</strong>iro, <strong>de</strong>senvolveu muitos toques diferentes. Tocando <strong>só</strong> as platinelas, ele imita um<br />

ganzá, <strong>uma</strong> frigi<strong>de</strong>ira ou castanholas; friccionando o centro da pele, ele faz <strong>uma</strong> cuíca; com<br />

o <strong>de</strong>dão, ele faz um surdo grave e sonoro... Ao tocar cada parte do pan<strong>de</strong>iro separadamente<br />

ele explica porque o pan<strong>de</strong>iro é <strong>uma</strong> pequena escola <strong>de</strong> samba. Além <strong>de</strong>sses, faz também<br />

estripulias <strong>de</strong> malabarista e um rulo perpétuo, <strong>de</strong>senhando um “8” na pele, toque que ele<br />

chama <strong>de</strong> “cascavel”.<br />

Pernambuco cita outros colegas ritmistas que trabalhavam nas rádios como ele:<br />

Risadinha, Pingo, Gilberto (segundo ele, o pan<strong>de</strong>irista preferido <strong>de</strong> Jacob), Catamilho e<br />

também o então jovem Jorginho do Pan<strong>de</strong>iro. Pernambuco e Catamilho tocavam também o<br />

zabumba. Catamilho era o zabumbeiro <strong>de</strong> Luiz Gonzaga e tinha esse nome, segundo<br />

Pernambuco, porque fazia um tal movimento com os <strong>de</strong>dos quando tocava pan<strong>de</strong>iro que<br />

parecia que ele estava catando milho.<br />

38<br />

Caixeta é <strong>uma</strong> caixinha <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, também chamada woodblock, tocada com <strong>uma</strong> baqueta n<strong>uma</strong> das mãos,<br />

tal qual um tamborim, e às <strong>vez</strong>es <strong>uma</strong> moeda fazendo as “respostas” na outra mão. O ganzá <strong>de</strong> que falamos<br />

aqui é um chocalho <strong>de</strong> forma cilíndrica geralmente feito <strong>de</strong> metal.<br />

96


Do mesmo modo que Hermeto e Luiz Gonzaga, como <strong>de</strong>scobrimos na 1ª parte da<br />

pesquisa, Pernambuco também trabalhou na ponte entre o choro e o forró, ou seja, nos<br />

regionais, on<strong>de</strong> tantos ritmos, gêneros e experiências musicais se encontravam e se<br />

misturavam. “Em todos os regionais do Rio <strong>de</strong> Janeiro eu toquei, passei pela peneira <strong>de</strong><br />

todos. Aí fiz o meu” (Pernambuco 2006). Com tanta bagagem e experiência, Pernambuco<br />

funda em meados <strong>de</strong> 1950 seu próprio regional, em cujas gravações vamos encontrar Jorge,<br />

Gaúcho, Pingüim, Ubiratan, Manuelzinho, alguns dos companheiros já citados por Hermeto<br />

e, para nossa surpresa, o próprio Hermeto, com 18 anos, recém-chegado <strong>de</strong> Recife. 39<br />

8.2. Batucando no morro ou no arraial?<br />

Pernambuco falando sobre o Hermeto: “Gran<strong>de</strong> monstro. Maravilhoso. Ele não<br />

apren<strong>de</strong>u comigo. Você precisa ver o que ele e o Escurinho 40 fazem no disco!”<br />

(Pernambuco 2006). Mas a semelhança entre Pernambuco e Hermeto não <strong>de</strong>ixa dúvidas,<br />

existiu ali <strong>uma</strong> forte relação <strong>de</strong> aprendizado e convivência musical.<br />

Em sua casa, Pernambuco apresentou-me não apenas o disco Batucando no morro<br />

(que eu já havia procurado sem sucesso), como também outros dois discos que ele gravou<br />

nos anos 1950 – No meu Brasil é assim e No arraial <strong>de</strong> Santo Antônio. O regional <strong>de</strong>ssa<br />

<strong>vez</strong> foi do morro ao arraial, passando pelo samba, pelo choro, pela valsa, pelo forró... Em<br />

todos os três discos, lá está o balanço do acor<strong>de</strong>om <strong>de</strong> Hermeto. Antes <strong>de</strong>le, haviam<br />

passado pelo regional os acor<strong>de</strong>onistas Toninho, Auro Gaúcho, Reginaldo da Silva<br />

(Caçulinha) e Edinho; Hermeto entrou no lugar <strong>de</strong>sse último.<br />

O Hermeto tinha um irmão que já tocava no Rio, chamava-se Zé Neto. O irmão falava<br />

muito nele; dizia: “Pernambuco, dá <strong>uma</strong> chance para o meu irmão, eu trago ele”. Quando<br />

<strong>de</strong>i cartão vermelho para o Edinho, o Hermeto já não estava na Rádio Jornal do Comércio,<br />

em Recife, ele já estava na Rádio Tabajara, na Paraíba. Man<strong>de</strong>i um telegrama para o<br />

Hermeto “Venha para o meu regional, o seu lugar está garantido”. Um dia, eu estou na<br />

rádio Mauá com o meu regional, aí entra o Zé Neto, aí me lembrei do recado... Então<br />

apareceu lá o ratinho branco [Hermeto] com 80 baixos... (Pernambuco 2006)<br />

39 Depoimento <strong>de</strong> Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro sobre a chegada <strong>de</strong> Hermeto no regional, ver DVD em anexo.<br />

40 Escurinho é Manoel Gomes, o Manezinho da Flauta, que dividia os solos com Hermeto, como veremos a<br />

seguir.<br />

97


a) No meu Brasil é assim<br />

O LP No meu Brasil é assim, da gravadora Copacabana, data <strong>de</strong> 1954. Este disco<br />

começou a ser gravado com oito faixas, que era o padrão da época, mas foi finalizado com<br />

doze faixas. As sete primeiras faixas já estavam prontas quando Hermeto entrou no<br />

regional, por <strong>isso</strong> ele <strong>só</strong> toca nas cinco últimas e seu nome sequer aparece nos créditos do<br />

disco.<br />

A formação do regional que gravou esse disco contava com Manoel Gomes (o<br />

Escurinho da flauta), Gaúcho (acor<strong>de</strong>om), Jorge da Silva e Darli Louzada (violões <strong>de</strong> sete<br />

cordas), José <strong>de</strong> Freitas (violão <strong>de</strong> seis cordas), Vicente <strong>de</strong> Paula, (o Pingüim do<br />

cavaquinho), o mestre da Banda do Corpo <strong>de</strong> Bombeiros Paulo <strong>de</strong> Souza (bombardino),<br />

José Américo (Tuba), além do próprio Pernambuco no pan<strong>de</strong>iro. Juntaram-se a eles Abel<br />

Ferreira (saxofone) na gravação da valsa “Dolorosa Sauda<strong>de</strong>” (Ratinho), Caçulinha<br />

(acor<strong>de</strong>om) em “Casinha Pequenina” e Hermeto Pascoal (acor<strong>de</strong>om) nos choros<br />

“Relembrando os coroas” (Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro e M. Rodrigues) e “Dinorah”<br />

(Benedito Lacerda e José Ferreira Ramos); 41 nas valsas “Maria das Dores” (H. Xavier<br />

Pinheiro), na já citada “Dolorosa Sauda<strong>de</strong>” e “Sulimar” (Manoel Gomes).<br />

41<br />

Pesquisas recentes <strong>de</strong> Maurício Carrilho e Anna Paes para a coleção “Princípios do choro” (Rabello e<br />

Carrilho 2001) <strong>de</strong>scobriram que a música “Dinorah” já existia: chamava-se “Flor <strong>de</strong> Liz”, tendo sido<br />

composta por Cícero Telles <strong>de</strong> Menezes ainda no século XIX. A partitura <strong>de</strong> “Dinorah” em que constam<br />

Benedito Lacerda e José Ferreira Ramos como compositores apresenta pouquíssimas alterações em relação à<br />

original.<br />

98


Os testemunhos <strong>de</strong> Pernambuco sobre as composições e gravações são<br />

particularmente interessantes. Na gravação <strong>de</strong> “Dolorosa Sauda<strong>de</strong>” ele conta que Abel<br />

colocou um lenço <strong>de</strong>ntro do saxofone para abafar um pouco o som do instrumento. Na<br />

música “Casinha Pequenina” ele diz que fez um arranjo “em quatro ritmos” e <strong>de</strong>staca o<br />

“jogo <strong>de</strong> fole <strong>de</strong> Sivuca” que ensinou ao acor<strong>de</strong>onista Caçulinha. “Maria das Dores” ele<br />

classifica como <strong>uma</strong> “valsa para coreto”. O compositor da valsa “Sulimar”, Manoel Gomes,<br />

é o Escurinho da flauta, também chamado <strong>de</strong> Manezinho ou Manuelzinho, companheiro<br />

inseparável <strong>de</strong> Pernambuco e, a partir <strong>de</strong> então, também <strong>de</strong> Hermeto. É <strong>de</strong>le que Hermeto<br />

está falando quando diz: “... e um dos melhores flautistas <strong>de</strong> todos os tempos que se chama<br />

Manuelzinho da flauta” (Pascoal 2000: 405).<br />

Pernambuco conta que Hermeto sempre estudava antes dos ensaios, muitas <strong>vez</strong>es<br />

<strong>junto</strong> com o Escurinho. No choro “Dinorah” (“Flor <strong>de</strong> liz”, para sermos justos), por<br />

exemplo, o entrosamento entre os dois solistas principais é impressionante (faixa 3, CD em<br />

anexo). Na introdução, um pan<strong>de</strong>iro e <strong>uma</strong> caixeta. Escurinho e Hermeto re<strong>vez</strong>am-se entre<br />

as partes do choro; o fraseado <strong>de</strong>les vai muito além da partitura. O pan<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Pernambuco<br />

faz <strong>uma</strong> cadência antes da parte A final, Hermeto entra solando em seguida, <strong>de</strong>sdobrando a<br />

melodia e, no último tema, eles fazem o que Pernambuco chama <strong>de</strong> “zigue-zague”:<br />

Hermeto faz a melodia e Escurinho faz o eco. Escutando a música, Pernambuco conclui:<br />

“nós não fazíamos choro quadrado” (Pernambuco 2006).<br />

b) Batucando no morro<br />

A marca registrada do regional <strong>de</strong> Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />

ser o naipe <strong>de</strong> percussão: “regional <strong>de</strong> pan<strong>de</strong>irista!” (Pernambuco 2006). Os arranjos não<br />

<strong>de</strong>ixam por menos: tem caixeta, surdo, ganzá, reco-reco, tamborim, solo <strong>de</strong> cuíca, <strong>de</strong><br />

pan<strong>de</strong>iro... E no meio da batucada, Hermeto Pascoal e Escurinho fraseando as melodias e<br />

improvisando.<br />

99


Na foto da capa, aparecem Escurinho (flauta), Pernambuco (pan<strong>de</strong>iro), Hermeto<br />

(acor<strong>de</strong>om), Jorge (violão <strong>de</strong> sete), Nilton (violão <strong>de</strong> seis) e Ubiratan (cavaquinho). Além<br />

<strong>de</strong>stes, participaram das gravações Amaro (baixo), Paulinho (bateria) e o con<strong>junto</strong> “Os<br />

Batuqueiros”, formado por Bucy Moreira e Arno Canegal (tamborins), Gilberto (surdo),<br />

Raul Marques (agogô), Boca <strong>de</strong> Ouro (cuíca) e Tufy (afoxé), Pernambuco também fazia<br />

parte <strong>de</strong>sse con<strong>junto</strong>.<br />

Na contracapa do disco, lê-se: “está em suas mãos um LP <strong>de</strong> autêntica música<br />

popular brasileira, do chamado Samba <strong>de</strong> Telecoteco”. A música popular brasileira (da<br />

<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Oneyda Alvarenga) parecia estar então em evidência, buscando a autenticida<strong>de</strong><br />

antes atribuída ao folclore. “Samba <strong>de</strong> Telecoteco” refere-se ao ritmo do tamborim <strong>de</strong><br />

samba, como lembrou Pernambuco: “teco-teco-teleco-teco-teco-teco-teleco”, que pertence<br />

ao “Paradigma do Estácio” (Sandroni 2001).<br />

O repertório do disco intercala samba e choro, mas são todos “música tocada”, ou<br />

seja, instrumental.<br />

Eu aproveitei nesse disco para lembrar dos gran<strong>de</strong>s. Não é que estavam esquecidos, mas é<br />

que não davam chance <strong>de</strong> tocar música “tocada”. Música tocada nunca foi muito aceita,<br />

principalmente esse gênero que eu fiz. Eu fui um que abri caminhos para a música tocada.<br />

(Pernambuco 2006)<br />

100


Muitos dos sambas gravados nesse LP, Pernambuco já os havia gravado<br />

acompanhando cantores e resolveu gravar instrumental, com arranjos criativos, cheios <strong>de</strong><br />

improvisos. Dentre os choros gravados, ele cita “Chorinho em Al<strong>de</strong>ia”...<br />

do gran<strong>de</strong> Severino, gran<strong>de</strong> amigo, companheiro, tirei ele <strong>de</strong> um jogo <strong>de</strong> damas pra ele<br />

escrever a gra<strong>de</strong>, ele escreveu. Você vai ver o que Hermeto vai fazer aí <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>om...<br />

Coisa impressionante... Era <strong>uma</strong> figura, como eu lhe disse, fazia aquilo com alma, com <strong>uma</strong><br />

simplicida<strong>de</strong> tremenda.... (Pernambuco 2006)<br />

“Fracasso” também é um choro, no qual Hermeto faz o solo na região grave do<br />

acor<strong>de</strong>om; a escala utilizada lembra música espanhola (modo frígio), enquanto Escurinho<br />

improvisa. A última música do LP é <strong>uma</strong> composição <strong>de</strong> P. Sobrinho, o próprio<br />

Pernambuco: chama-se “Deixando sauda<strong>de</strong>s” (faixa 4, CD em anexo). Ao escutar esse<br />

choro, Pernambuco lembra que Hermeto pedia o acor<strong>de</strong>om do irmão José Neto emprestado,<br />

porque o <strong>de</strong>le era 80 baixos, enquanto o do irmão tinha 120 baixos.<br />

Pernambuco <strong>de</strong>staca o disco Batucando no morro como o mais importante dos três<br />

que ele gravou com o regional e, segundo ele, teria ganho um gran<strong>de</strong> prêmio, não fosse o<br />

voto contrário <strong>de</strong> um jornalista que não aceitara justamente a presença do acor<strong>de</strong>om no<br />

samba. Coincidência ou não, o próximo disco que ele escolhe gravar é um disco <strong>de</strong> forró...<br />

101


c) No arraial <strong>de</strong> Santo Antônio<br />

O último LP gravado pelo regional <strong>de</strong> Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro foi No arraial <strong>de</strong><br />

Santo Antônio, em 1958. Segundo Pernambuco, nesse disco, ele fez <strong>uma</strong> “bandinha”,<br />

acrescentou ao regional a tuba e o bombardino, instrumentos típicos das bandas. Para <strong>isso</strong>,<br />

chamou o mestre da banda do Corpo <strong>de</strong> Bombeiros na época, que se chamava Agobá, no<br />

bombardino, e José Américo, na tuba. Além <strong>de</strong>les, participam do disco Abel Ferreira no<br />

clarinete, Paulinho na bateria – “para fazer os pratos da banda!” (Pernambuco 2006) – e o<br />

regional: Pernambuco, Hermeto, Jorge, Ubiratan e Darli.<br />

A música que dá nome ao disco, “No arraial <strong>de</strong> Santo Antônio”, é um dobrado: os<br />

metais acentuam o caráter <strong>de</strong> “música <strong>de</strong> banda” e a tuba muitas <strong>vez</strong>es faz também a<br />

melodia. Os compositores são Fre<strong>de</strong>rico Freitas e Júlio Dantas.<br />

Como não po<strong>de</strong>ria faltar no “arraial”, há <strong>uma</strong> polca bem tradicional, com caixa,<br />

bumbo e pratos: a “Polquinha mineira” (faixa 5, CD em anexo) <strong>de</strong> Abel Ferreira, que sola<br />

ao clarinete. Nesse disco, como o próprio nome sugere, predomina o “clima” <strong>de</strong> forró,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o título das músicas - “São João do carneirinho”, “Noites <strong>de</strong> junho”, “Baião da<br />

garoa”, “A dança da moda” - até os instrumentos utilizados na percussão, <strong>de</strong>stacando a<br />

zabumba e o triângulo.<br />

O compositor Luiz Gonzaga é lembrado com três músicas: “A dança da moda”,<br />

“Assum preto” e “Baião da garoa”. Pernambuco (ou P. Sobrinho) também aparece como<br />

compositor <strong>de</strong> forró nas músicas “Quando vovô era menino”, <strong>junto</strong> com Washington<br />

Fernan<strong>de</strong>s, e “Delirando”, com Luiz Gaúcho. Há também um “arranjo circense” <strong>de</strong> “São<br />

102


Paulo quatrocentão” (Garoto/ Chiquinho), que lembra a chegada do circo em cida<strong>de</strong>s do<br />

interior.<br />

Nos arranjos das músicas, além da formação, <strong>de</strong>staca-se o cuidado com a dinâmica,<br />

a alternância entre piano e forte. O grupo estava bem ensaiado e equilibrado, lembrando<br />

que as gravações eram “ao vivo”, ou seja, todos <strong>junto</strong>s, com pouquíssima possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

edição posterior.<br />

Tuba, bombardino, clarineta, acor<strong>de</strong>om, zabumba, triângulo, caixa-clara, bumbo e<br />

pratos... A formação é <strong>uma</strong> mistura <strong>de</strong> banda <strong>de</strong> coreto com trio <strong>de</strong> forró; aliás a primeira<br />

não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser <strong>uma</strong> das origens do segundo. Se Hermeto já convivia com sonorida<strong>de</strong>s<br />

semelhantes em sua terra natal, no regional <strong>de</strong> Pernambuco ele pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvê-las em<br />

arranjos. Os arranjos do disco lembram circo, bandinhas e forrós do interior, ótimos para se<br />

dançar... seria em Lagoa da Canoa?<br />

103


9. Choros e arranjos <strong>de</strong> Hermeto<br />

9.1. Salve Copinha, Abel, Pixinguinha...<br />

Além das referências ao regional <strong>de</strong> Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro, no Calendário do<br />

som, Hermeto faz <strong>uma</strong> genealogia do choro, pontuando <strong>uma</strong> certa relação com o jazz<br />

americano e com o cinema, <strong>de</strong> forma bem humorada:<br />

Esta música se parece muito com as escadas antigas dos sobrados velhos que quando a<br />

gente pisa faz um som alegre e as passadas lembram filmes do cinema mudo e os<br />

músicos tocando chorinho tipo jazz americano, Abel Ferreira, Pixinguinha, Copinha,<br />

Radamés, Altamiro Carrilho, Jacó do Bandolim, Valdir Azevedo e outros. (Pascoal 2000:<br />

304)<br />

Cada um <strong>de</strong>sses personagens listados por Hermeto tem seu respectivo papel no<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da linguagem do choro. Hermeto participou e ainda participa <strong>de</strong>ssa<br />

história. Com Abel Ferreira, como vimos, ele tocou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> choro até forró, ainda no regional<br />

<strong>de</strong> Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro. De Pixinguinha, ele gravou, no disco A música livre <strong>de</strong><br />

Hermeto Pascoal, um dos choros mais conhecidos: o “Carinhoso”, com um arranjo em que<br />

mistura influências do choro, em contracantos elaborados, e do jazz, acrescentando <strong>uma</strong><br />

parte para improvisos <strong>de</strong> saxofone e flautas. De Pixinguinha, ele gravou também a valsa<br />

“Rosa”, n<strong>uma</strong> leitura livre, com improvisos, em piano solo.<br />

Gravei Rosa do Pixinguinha que era <strong>uma</strong> música que eu tocava muito no tempo em que<br />

tinha um regional lá em Caruaru. Sempre achei que era <strong>uma</strong> melodia linda que pedia <strong>uma</strong><br />

nova vestimenta. Agora soltei as pétalas da rosa e na música elas vão voando e se juntam<br />

<strong>de</strong> novo. (Pascoal, Por Diferentes Caminhos 1988)<br />

No Calendário, Hermeto lembra do dia 23 <strong>de</strong> abril: “Hoje o céu está em festa, é<br />

aniversário do gran<strong>de</strong> mestre Pixinguinha [...] Em nome do som e do povo, meus parabéns”<br />

(Pascoal 2000: 347).<br />

A referência ao Maestro Copinha na primeira citação lembra-nos que Hermeto<br />

participou <strong>de</strong> sua orquestra, sendo este outro importante mestre para o músico. No disco<br />

104


Brasil universo, Hermeto gravou o choro “Salve Copinha” (faixa 6, CD em anexo), em<br />

homenagem ao maestro. Esse é um dos choros <strong>de</strong> Hermeto que mais segue a forma<br />

tradicional, pois apresenta três partes distintas: divi<strong>de</strong>-se em introdução, partes A, B e C,<br />

volta para o A e termina com <strong>uma</strong> coda. Ao final da parte B, Hermeto muda a divisão<br />

rítmica, inserindo quiálteras na melodia, recurso que ele utiliza em muitos choros, para<br />

fazer a transição entre as partes.<br />

Radamés Gnattali também é <strong>uma</strong> constante referência <strong>de</strong> Hermeto, por quem ele<br />

nutre gran<strong>de</strong> admiração, segundo Márcio Bahia. O baterista cita a música “Mestre<br />

Radamés”, <strong>de</strong> Hermeto Pascoal, na qual o compositor explora a linguagem da bateria<br />

(veremos essa música em <strong>de</strong>talhes no próximo capítulo).<br />

Márcio Bahia, que toca com ele <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1981, concorda com a importância dada aos<br />

con<strong>junto</strong>s regionais e ao choro na formação musical <strong>de</strong> Hermeto:<br />

No começo do grupo, quando a gente ensaiava todo dia, sempre tinha um choro no<br />

repertório. Ele tem essa linguagem do choro muito bem fundamentada, ele apren<strong>de</strong>u<br />

tocando nos regionais. Ele tocava acor<strong>de</strong>om e pan<strong>de</strong>iro no choro. (Bahia 2005)<br />

“Chorinho pra ele” e “Intocável” são choros bem conhecidos <strong>de</strong> Hermeto Pascoal,<br />

que ele gravou respectivamente nos discos Missa dos escravos e Só não toca quem não<br />

quer. Ambos apresentam alg<strong>uma</strong>s características próprias aos choros tradicionais, o<br />

compasso 2/4, duas partes distintas e bem <strong>de</strong>senvolvidas (embora a maioria dos choros<br />

apresente três partes), melodias em âmbito extenso com <strong>de</strong>senhos que provocam um efeito<br />

<strong>de</strong> falso-contraponto, bordaduras e ornamentos etc. Ritmicamente, há um uso recorrente <strong>de</strong><br />

quiálteras que articulam frases e partes distintas. Particularmente no “Chorinho pra ele”,<br />

acontecem breques em que o solista faz cadências curtas em quiálteras. Ao final, o<br />

andamento é “dobrado”, um recurso recorrente em rodas <strong>de</strong> choro, em gravações <strong>de</strong><br />

músicas nor<strong>de</strong>stinas e choros, como por exemplo “Brasileirinho”, <strong>de</strong> Waldir Azevedo. No<br />

choro “Intocável”, a formação aproxima-se da convencional pela presença da flauta e do<br />

violão <strong>de</strong> sete cordas, tocado por Rafael Rabello.<br />

Além <strong>de</strong>ssas músicas, há outros choros <strong>de</strong> Hermeto gravados: “Sorrindo”, no disco<br />

Hermeto Pascoal e grupo; “Chorinho Mec”, no disco Eu e eles; “Música é que nem filho, a<br />

gente faz e <strong>de</strong>pois dá o nome” e “Vocês me <strong>de</strong>ixam ali e seguem no carro”, gravadas pelo<br />

105


grupo <strong>de</strong> choro Galo Preto. Apesar <strong>de</strong> não ser propriamente um choro, mas um baião,<br />

“Bebê”, como já foi dito, também foi gravada por grupos <strong>de</strong> choro.<br />

Ao falar sobre os choros <strong>de</strong> Hermeto, Bahia <strong>de</strong>staca harmonia e melodia: “No<br />

choro, ele faz <strong>uma</strong> sofisticação em seus elementos, sobretudo harmonia e melodia. O que<br />

eu noto é que ele respeita o idioma do choro, mas ele brinca também com a parte rítmica”<br />

(Bahia 2005). Sobre a parte rítmica, Bahia cita a recorrência <strong>de</strong> quiálteras, elemento que<br />

Hermeto <strong>de</strong>senvolve ao brincar com a divisão rítmica, fazendo as alterações transpassarem<br />

a melodia várias <strong>vez</strong>es, naturalmente. A “sofisticação” parece estar também nas melodias<br />

cheias <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes e cadências que surpreen<strong>de</strong>m.<br />

Uma das características que geralmente surpreen<strong>de</strong> na música <strong>de</strong> Hermeto Pascoal é<br />

a transformação dos ritmos brasileiros tradicionais (baião, maracatu, frevo etc) através da<br />

mistura entre elementos <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les, da mudança <strong>de</strong> compasso ou da adoção<br />

<strong>de</strong>liberada <strong>de</strong> compassos <strong>de</strong> 5 ou 7 tempos, que não são comuns em nossa tradição musical.<br />

Márcio Bahia apren<strong>de</strong>u gran<strong>de</strong> parte dos ritmos brasileiros com Hermeto. Sobre<br />

essa aprendizagem ele diz que Hermeto “sempre mistura com outras coisas, ele muitas<br />

<strong>vez</strong>es mostra o ritmo já híbrido” (Bahia 2005). No Calendário do som, o próprio Hermeto<br />

assume a mistura, ao falar da composição do dia 25 <strong>de</strong> outubro: “Esta música é <strong>uma</strong><br />

mistura <strong>de</strong> chorinho com baião, samba e com tudo. Assim como o tempo muda, tudo tem<br />

que evoluir sempre” (Pascoal 2000: 147).<br />

106


9.2. Um chorinho em sete<br />

107


A música “1º <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1997”, do Calendário do som é, segundo o<br />

compositor, “um chorinho em sete” (Pascoal 2000: 246). Esse foi o único choro encontrado<br />

no repertório <strong>de</strong> Hermeto Pascoal que não apresenta o compasso 2/4 tradicional. Segundo<br />

seu próprio relato, trata-se por <strong>isso</strong> <strong>de</strong> um choro que alu<strong>de</strong> a <strong>uma</strong> transformação: “Vai para<br />

vocês mais <strong>uma</strong> em sete por quatro. Me inspirei num chorinho. Acho que já está na hora <strong>de</strong><br />

tocar chorinho em sete para acost<strong>uma</strong>r. É o barato” (Pascoal 2000: 246).<br />

No Calendário do som, cada partitura é um <strong>de</strong>senho, ocupando o espaço <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

página: acabou o papel em branco, acabou a música... Em meio às notas <strong>de</strong>senhadas, há<br />

comentários, palavras, <strong>de</strong>senhos... A barra <strong>de</strong> compasso vira um passarinho. Na notação do<br />

compositor, os traços entre as hastes das notas parecem indicar também a articulação da<br />

melodia, o próprio <strong>de</strong>senho das notas sugere que elas estejam ligadas ou <strong>de</strong>sligadas. Logo<br />

abaixo da melodia, Hermeto indica o ritmo da base harmônica. Ao ler o <strong>de</strong>senho do<br />

primeiro tema, já po<strong>de</strong>mos imaginar a articulação sugerida:<br />

Da nota sol inicial até a nota sol que inicia o quarto compasso, ele tece <strong>uma</strong> frase<br />

articulada e melodiosa, cujo caráter lembra um choro antigo, dolente. Nem parece que o<br />

compasso não é nada convencional. Ao final do quarto compasso, a melodia faz um “quatro<br />

contra três”, ou seja, divi<strong>de</strong> os três tempos em quatro notas <strong>de</strong> duração semelhante. Esse<br />

recurso <strong>de</strong> polirritmia é bastante usado por Hermeto: são as “pontuadas”: 42<br />

42 Esse recurso é tão característico da linguagem <strong>de</strong> Hermeto que é simplesmente chamado <strong>de</strong> “as pontuadas”<br />

pelos músicos da Itiberê Orquestra Família, segundo informação <strong>de</strong> Felipe José Abreu.<br />

108


Tem-se a impressão que diferentes pulsações rítmicas perpassam suas músicas<br />

causando modulações também nesse parâmetro. Muitas <strong>vez</strong>es, a “frase polirrítmica”<br />

provoca um efeito <strong>de</strong> articulação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> frase ou parte para a outra, como acontece nos<br />

compassos a seguir (4, 8 e 15):<br />

No 13º compasso, ele indica <strong>uma</strong> interpretação, “bem ritmado”, o que sugere que a<br />

base rítmica <strong>de</strong>ve dobrar a pulsação. O caráter contrasta com o do trecho inicial. Aqui o<br />

caráter rítmico da melodia predomina, sugerindo um breve ostinato. A figura que se repete,<br />

<strong>uma</strong> bordadura cromática e um salto, também é característica do choro.<br />

Ao final do compasso 15, surgem novamente as pontuadas, sugerindo mais <strong>uma</strong> <strong>vez</strong><br />

a articulação entre partes distintas. Lembrando que a pulsação mínima aqui é a colcheia,<br />

Hermeto utiliza várias frases rítmicas muito encontradas nos choros, todas elas baseadas em<br />

grupos <strong>de</strong> colcheias, no garfinho (síncope) e outras variantes do tresillo, ou seja, muitas<br />

passagens contramétricas, além das polirritimias já citadas. Em relação à melodia, ele<br />

costura sem hesitar passagens lineares <strong>de</strong>ntro da escala prevista e saltos ou intervalos<br />

inesperados.<br />

109


Ao mesmo tempo em que conhece as características do gênero a ponto <strong>de</strong> chamar a<br />

música <strong>de</strong> choro, Hermeto as extrapola. Nessa música particularmente, ele não utiliza o<br />

compasso convencional <strong>de</strong> 2/4, nem a forma ternária característica. No entanto, ele mesmo<br />

fala que a música é um choro e <strong>de</strong>ve ser tocada como tal. Ao escutarmos a música, notamos<br />

que ela remete ao universo do choro e po<strong>de</strong> muito bem ser tocada por flauta, pan<strong>de</strong>iro,<br />

violão <strong>de</strong> sete cordas e cavaquinho. O compasso em 7/4 provavelmente provocará mais<br />

estranhamento nos músicos <strong>de</strong> choro acost<strong>uma</strong>dos com o compasso binário tradicional do<br />

que no público leigo, a quem <strong>só</strong> interessa a escuta agradável. Mas a análise também<br />

<strong>de</strong>monstra que apesar da mudança do compasso e forma, a música apresenta muitos<br />

elementos do gênero choro na construção e <strong>de</strong>senvolvimento da melodia.<br />

A seguir, faço um <strong>de</strong>talhamento da análise da peça <strong>de</strong> Hermeto a partir dos<br />

parâmetros propostos por Dante Grela, que ajudam a perceber as unida<strong>de</strong>s formais que<br />

compõem a melodia.<br />

Como vimos no capítulo 5, um choro tradicional é geralmente constituído <strong>de</strong> três<br />

partes (A, B e C), contendo cada <strong>uma</strong> 16 compassos. O mo<strong>de</strong>lo freqüentemente utilizado na<br />

elaboração <strong>de</strong> cada parte seria: o tema seguido <strong>de</strong> <strong>uma</strong> resposta suspensiva (1º motivo) e<br />

outra <strong>vez</strong> o tema, seguido <strong>de</strong> <strong>uma</strong> resposta conclusiva (2º motivo). Ao compor <strong>uma</strong> melodia<br />

em 7/4, Hermeto transforma esse mo<strong>de</strong>lo. O tema está presente, representado por a<br />

(exposição), mas sua divisão não obe<strong>de</strong>ce à quadratura normal do choro. Ao invés <strong>de</strong><br />

apresentar dois motivos, divi<strong>de</strong>-se em três sub-partes: a1, a2 e a3. Po<strong>de</strong>mos observar que<br />

a1 e a2 apresentam respostas suspensivas e apenas a3 apresenta <strong>uma</strong> curta resposta<br />

conclusiva, logo quebrada pela polirritmia articulatória, característica <strong>de</strong> Hermeto.<br />

O choro se divi<strong>de</strong> em duas gran<strong>de</strong>s partes (A e B), cada qual apresenta duas subpartes<br />

menores: a e b, c e d. Outra interpretação possível seria i<strong>de</strong>ntificar a sub-parte a<br />

como tema principal, e as <strong>de</strong>mais partes como variações <strong>de</strong>sse tema, <strong>uma</strong> forma livre que<br />

sugere <strong>uma</strong> linguagem <strong>de</strong> improviso. Mas, enten<strong>de</strong>ndo cada variação como <strong>uma</strong> parte<br />

distinta, po<strong>de</strong>mos dizer que, após o tema inicial (a1, a2, a3), há <strong>uma</strong> breve transição que<br />

<strong>de</strong>semboca na parte b, caracterizada por <strong>uma</strong> variação do material exposto em a. Em<br />

seguida, vem a parte c que sugere <strong>uma</strong> transformação e maior <strong>de</strong>senvolvimento do material<br />

harmônico. Segue <strong>uma</strong> passagem que caracteriza <strong>uma</strong> interjeição, ou seja, <strong>uma</strong> função <strong>de</strong><br />

110


tipo exclamativo, <strong>de</strong>sempenhada por unida<strong>de</strong>s que provocam <strong>uma</strong> interrupção do sentido<br />

discursivo. É o que acontece em d1, <strong>uma</strong> passagem essencialmente rítmica, um ostinato.<br />

111


A sub-parte d2 não chega a ser <strong>uma</strong> “resposta conclusiva” porque a harmonia faz a<br />

transição <strong>de</strong> volta ao início da música. Por fim, e representa <strong>uma</strong> co<strong>de</strong>tta final ou extensão<br />

conclusiva.<br />

Quanto à harmonia, a primeira parte começa em tom menor (Cm), passando em b<br />

para o tom da subdominante (Fm). Em seguida, a parte c modula para C maior (homônimo<br />

maior). A instabilida<strong>de</strong> harmônica impera, assim como a melodia raramente conclui,<br />

também a harmonia segue n<strong>uma</strong> progressão movimentada que <strong>só</strong> repousa ao final.<br />

A unida<strong>de</strong> formal dos motivos fica clara se observamos os <strong>de</strong>senhos rítmicos que<br />

Hermeto utiliza. Muitas <strong>vez</strong>es ele utiliza o mesmo <strong>de</strong>senho, mudando apenas as alturas da<br />

notas, às <strong>vez</strong>es utilizando arpejos, outras <strong>vez</strong>es bordaduras ou repetições. A melodia<br />

transcorre lírica e chorosa não <strong>de</strong>ixando dúvida sobre o gênero da música: um choro. Em<br />

7/4.<br />

Tanto no repertório gravado quanto nas partituras editadas, compassos em cinco e<br />

sete são freqüentes. A utilização <strong>de</strong>sses compassos aliada à mistura dos ritmos provoca <strong>uma</strong><br />

linguagem rítmica ao mesmo tempo complexa e assimilável, porque transforma a tradição<br />

sem per<strong>de</strong>r seu élan, sua vitalida<strong>de</strong>, seus princípios, o que Hermeto, afinal, vivenciou: <strong>uma</strong><br />

tradição viva, em constante transformação. No próximo capítulo, vamos investigar mais <strong>de</strong><br />

perto a linguagem rítmica <strong>de</strong> Hermeto.<br />

112


10. Rítmica brasileira via Hermeto Pascoal 43<br />

Se juntamos um bombo, dois pratos <strong>de</strong> choque e <strong>uma</strong> caixa-clara temos a base<br />

percussiva <strong>de</strong> <strong>uma</strong> banda <strong>de</strong> pífanos? Sim, mas se todos esses instrumentos estão sendo<br />

tocados por um <strong>só</strong> músico, aí temos <strong>uma</strong> bateria.<br />

Para investigar a linguagem rítmica da música <strong>de</strong> Hermeto, os bateristas Nenê e<br />

Márcio Bahia são referências fundamentais. Foram eles os bateristas que gravaram em<br />

quase todos os discos do grupo <strong>de</strong> Hermeto e trabalharam mais tempo (contratempo,<br />

tercina, síncope) com ele. Nesse capítulo falaremos da concepção rítmica <strong>de</strong> Hermeto sob o<br />

ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les.<br />

Inicialmente, ambos <strong>de</strong>stacam o aprendizado dos ritmos brasileiros com Hermeto e,<br />

a partir daí, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> <strong>uma</strong> linguagem <strong>de</strong> bateria brasileira. Se, num primeiro<br />

momento, Nenê enfatiza a improvisação e as brinca<strong>de</strong>iras rítmicas, Márcio, por sua <strong>vez</strong>, me<br />

mostrou partituras escritas por Hermeto para bateria, <strong>de</strong>ntre as quais ele <strong>de</strong>staca a partitura<br />

da música “Mestre Radamés”, que analisaremos no tópico 10.5.<br />

10.1. Bateria brasileira?<br />

Antes da bateria, Nenê tocou acor<strong>de</strong>om e nesse instrumento conheceu o choro. Mas,<br />

diferentemente <strong>de</strong> Hermeto, Nenê veio do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e suas referências no<br />

acor<strong>de</strong>om eram bem diferentes das nor<strong>de</strong>stinas. Sua formação na bateria também passava<br />

longe dos ritmos nor<strong>de</strong>stinos, enfatizando a bossa nova e o jazz: “o Hermeto me mostrou<br />

essa parte do Brasil que eu <strong>de</strong>sconhecia, lá no sul ninguém tocava esses ritmos brasileiros<br />

porque achavam que era brega, tocar baião, xote, essas coisas, a moda era tocar jazz” (Nenê<br />

2005).<br />

Ao entrar para o Quarteto Novo, 44 a proposta era radicalmente diferente do que ele<br />

já conhecia, a ponto <strong>de</strong> ser “proibido improvisar como americano” (Nenê 2005). Em 1966,<br />

43<br />

Nome sugerido pelo baterista Márcio Bahia.<br />

44<br />

Antes <strong>de</strong> entrar para o Quarteto Novo, Nenê tocava com José Neto, o irmão <strong>de</strong> Hermeto.<br />

113


faziam parte do Quarteto Novo 45 , além <strong>de</strong> Hermeto (flauta e piano), Heraldo do Monte<br />

(viola caipira e guitarra), Téo <strong>de</strong> Barros (violão e baixo) e Airto Moreira (bateria). Em<br />

1969, o grupo se d<strong>isso</strong>lve. Nenê tocou com eles <strong>só</strong> a partir <strong>de</strong> 1968, quando Airto foi para<br />

os EUA.<br />

Apesar <strong>de</strong> sua meteórica carreira, o Quarteto Novo afetou toda <strong>uma</strong> geração <strong>de</strong> músicos, <strong>de</strong><br />

Edu Lobo a Tom Jobim, ao combinar percussão, viola caipira, violão, flauta, bateria, piano<br />

e guitarra. A proposta original do Quarteto Novo veio <strong>de</strong> Geraldo Vandré. Segundo ela, o<br />

Quarteto <strong>de</strong>veria trabalhar exclusivamente com a música brasileira. Segundo Hermeto, a<br />

proposta nacionalista <strong>de</strong> Vandré foi um dos motivos para que o Quarteto durasse tão pouco<br />

tempo: “Quando eu dava um acor<strong>de</strong> bem mo<strong>de</strong>rno, as pessoas falavam criticando: acor<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> jazz não po<strong>de</strong>. Mas não era acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> jazz, era minha cabeça que estava querendo. A<br />

música é do mundo. Nós não somos donos <strong>de</strong>la. Querer que a música do Brasil seja <strong>só</strong> do<br />

Brasil, é como ensacar o vento e ninguém consegue ensacar o som”. (Lima Neto 1999: 44)<br />

Até então, Nenê vinha da escola da bossa nova, <strong>junto</strong> com Paulo Braga e<br />

Robertinho Silva, segundo ele, todos seguidores do estilo do baterista Edson Machado. A<br />

partir do Quarteto Novo, Nenê foi sendo influenciado pelo estilo <strong>de</strong> Airto Moreira, que<br />

acabara <strong>de</strong> sair do grupo, mas <strong>de</strong>ixava suas composições e idéias. Hermeto também já<br />

atuava como o mestre que ele se tornaria anos mais tar<strong>de</strong>: “ele dizia: Você conhece<br />

maracatu, esses ritmos brasileiros? Então você vai apren<strong>de</strong>r comigo... Agora eu vou te<br />

passar essa batida e você faz a seu modo...” (Nenê 2005).<br />

Maracatu, caboclinhos, baião, xote, coco, xaxado... Nenê nos lembra que “o<br />

Hermeto, além <strong>de</strong> ser pianista, flautista, arranjador, é também um ótimo percussionista”<br />

(Nenê 2005). Ao adaptar os ritmos que aprendia com Hermeto para a bateria, Nenê foi aos<br />

poucos criando um estilo próprio <strong>de</strong> tocar:<br />

Uma bateria brasileira: o estilo que eu criei, que eu toco hoje, veio <strong>de</strong>ssa época porque ali<br />

eu fui obrigado a tocar <strong>de</strong> <strong>uma</strong> maneira que ninguém tocava. Ele [Hermeto] tinha músicas<br />

já, ele tinha a parte composicional toda sofisticada e toda vinda da música <strong>de</strong> base, da<br />

45<br />

Embora Lima Neto (1999) afirme ser no Quarteto Novo a primeira experiência <strong>de</strong> Hermeto como<br />

compositor e arranjador, ele já compunha e arranjava com o Sambrasa Trio, com o qual gravou um disco, em<br />

1965, do qual participaram, além <strong>de</strong> Hermeto, Humberto Clayber (baixo) e Airto Moreira (bateria).<br />

114


música popular, ele precisava também modificar o ritmo, foi o que ele me passou. (Nenê<br />

2005)<br />

“Modificar o ritmo” não era apenas apren<strong>de</strong>r os ritmos brasileiros que Hermeto o<br />

ensinava e adaptá-los para a bateria, era também apren<strong>de</strong>r a tocá-los em compassos os<br />

mais variados...<br />

No Quarteto Novo, tinha um samba em sete. Eles tocavam garota <strong>de</strong> Ipanema em 7/4, na<br />

boate... Pegavam qualquer música e faziam em sete. Eu nunca tinha tocado em 7/4. Eu<br />

sabia que existia, mas não era comum. Era chato <strong>de</strong> tocar. Quando eu entrei no Quarteto<br />

Novo, tinha <strong>uma</strong> música... (era <strong>uma</strong> música do Airto), qualquer coisa que eu fizesse, eu me<br />

perdia. Eles dominavam esse negócio e na hora do improviso era pior... eles não davam<br />

nenhum acento no tempo forte, eu tinha que me concentrar. Tocar com compasso composto<br />

no começo é assim, <strong>de</strong>pois você vai dominando e é igual a um dois. Tocar solto sem ficar<br />

marcando o tempo, porque antes eu tocava compasso composto marcando o tempo. Fica<br />

feio quando você faz os acentos, não po<strong>de</strong> ter o acento pra ficar flutuando... Tocar aberto...<br />

(Nenê 2005)<br />

Nenê chama os compassos <strong>de</strong> cinco e sete tempos <strong>de</strong> compassos compostos. Nesse<br />

caso, o termo não tem o mesmo significado da teoria musical clássica européia, on<strong>de</strong><br />

compasso composto é aquele cuja pulsação mínima (ou subdivisão) é três. Aqui Nenê está<br />

se referindo aos compassos que apresentam um número <strong>de</strong> pulsações (unitárias ou<br />

metronômicas) ímpar maior do que 3, geralmente formado pela soma <strong>de</strong> 3+2 ou 3+2+2, ou<br />

seja, apresentam 5 ou 7 pulsações, <strong>de</strong>ntre outras possibilida<strong>de</strong>s.<br />

Apesar <strong>de</strong>sse procedimento adotado pelo Quarteto Novo não ser tão comum na<br />

época, Nenê cita alguns compositores que se aventuraram a explorar compassos diferentes:<br />

Luiz Eça, Edu Lobo. Segundo ele, na Bossa Nova, o samba em três já foi <strong>uma</strong> inovação.<br />

“Depois, teve <strong>uma</strong> época que o Ciro Pereira tocava tudo em 5/4, samba em cinco” (Nenê:<br />

2005).<br />

115


10.2. Coalhada <strong>de</strong> ritmos<br />

A música <strong>de</strong> Hermeto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira composição gravada, “Coalhada” (em 1965,<br />

no disco Sambrasa Trio em Som Maior), apresenta compassos variados. Particularmente,<br />

sobre os compassos <strong>de</strong> 5 e 7 tempos (que Nenê chama <strong>de</strong> compostos), Hermeto comenta:<br />

Essa idéia eu <strong>só</strong> vim <strong>de</strong>scobrir quando aprendi teoria com 42 para 43 anos. Na verda<strong>de</strong> eu<br />

já fazia <strong>isso</strong>, assim como os africanos, o pessoal do interior, que faz <strong>isso</strong> e nem sabe.(...) E<br />

até hoje eu <strong>só</strong> percebo em que compasso eu compus <strong>uma</strong> música, quando eu escrevo ela. E<br />

tocando, eu nunca quero saber em que compasso está a música. Eu sinto e toco. Isso me dá<br />

mais liberda<strong>de</strong>. (Hermeto 2006)<br />

Como vimos, para Hermeto, o som vem sempre antes da teorização. E, <strong>de</strong> fato,<br />

quando gravou a música “Coalhada” (faixa 7, CD em anexo) pela primeira <strong>vez</strong>, 46 em 1965,<br />

com o Sambrasa Trio, Hermeto ainda não dominava bem a escrita musical. Coincidência ou<br />

não, essa composição já está “coalhada” <strong>de</strong> inúmeras características rítmicas que vão<br />

i<strong>de</strong>ntificar a música <strong>de</strong> Hermeto:<br />

• material rítmico que mistura elementos <strong>de</strong> várias tradições: choro, forró,<br />

samba, bandas <strong>de</strong> pífanos, bandas <strong>de</strong> jazz; convenções rítmicas baseadas no<br />

padrão do tresillo, ou seja, a imparida<strong>de</strong> rítmica impera n<strong>uma</strong> rítmica<br />

predominantemente contramétrica;<br />

• simultaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pulsações diversas, não apenas os níveis já i<strong>de</strong>ntificados<br />

(pulsação métrica, unitária e mínima), mas também a coexistência <strong>de</strong><br />

pulsações que ora subdivi<strong>de</strong>m o pulso intermediário em duas ou quatro<br />

pulsações mínimas, ora em três pulsações mínimas;<br />

• a partir <strong>de</strong>sse tecido <strong>de</strong> pulsações diversas, o “chão” muda constantemente,<br />

conforme o ciclo <strong>de</strong> pulsações que está em evidência, ou seja, a percepção<br />

das acentuações fortes e fracas varia, <strong>de</strong> modo que a percepção da<br />

metricida<strong>de</strong> torna-se relativa. Por exemplo: <strong>uma</strong> mesma pulsação mínima<br />

46 Em 1971, Hermeto gravou novamente a música “Coalhada” no disco Brazilian Adventure, nos EUA.<br />

116


po<strong>de</strong> ser agrupada <strong>de</strong> 3 em 3 ou <strong>de</strong> 4 em 4, o que resultaria em 3 ou 4<br />

pulsações unitárias a cada ciclo <strong>de</strong> 12 pulsações mínimas. Se consi<strong>de</strong>ramos<br />

as pulsações unitárias subdivididas em 4, evi<strong>de</strong>ncia-se um “chão”, mas se<br />

consi<strong>de</strong>ramos aquelas subdividas em 3, temos outro “chão”.<br />

chão 1 • • • (pulsação unitária quaternária)<br />

⏐⏐⏐⏐⏐⏐⏐⏐⏐⏐⏐⏐ (pulsação mínima)<br />

chão 2 • • • • (pulsação unitária ternária)<br />

• a pulsação métrica, por sua <strong>vez</strong>, nem sempre é constante, <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> que o<br />

compasso não precisa se manter como um ciclo estável;<br />

117<br />

• no entanto, em meio à irregularida<strong>de</strong>, há momentos em que <strong>uma</strong> “levada” ou<br />

base rítmica constante é repetida.<br />

N<strong>uma</strong> breve análise rítmica da música “Coalhada”, po<strong>de</strong>mos reconhecer muitas das<br />

características pertinentes para a compreensão da linguagem rítmica <strong>de</strong> Hermeto. A música<br />

começa com convenções quebradas” <strong>de</strong> baixo, piano e bateria, baseadas no padrão do<br />

tresillo e figuras contramétricas, o garfinho (ou síncope). A parte A aparece em seguida,<br />

com um <strong>uma</strong> frase tocada no tempo e <strong>de</strong>pois a mesma frase <strong>de</strong>slocada. Em seguida, o tema<br />

é atravessado em swingue <strong>de</strong> jazz, alterando o fluxo binário que predominava até então e<br />

sugerindo outro “chão”, baseado nas pontuadas (ε. ε. ε. ε. ε. ε. ε. ε. ), que evi<strong>de</strong>nciam a<br />

pulsação ternária. A bateria faz <strong>uma</strong> cadência, trazendo <strong>de</strong> volta o compasso binário. A<br />

parte B surge atravessando a levada, <strong>de</strong>ssa <strong>vez</strong> dando lugar a <strong>uma</strong> melodia em 5/8, ou seja,<br />

<strong>uma</strong> nova pulsação métrica se apresenta. Toda essa estrutura (A e B) é repetida mais <strong>uma</strong><br />

<strong>vez</strong> e, em seguida, volta <strong>uma</strong> levada <strong>de</strong> samba-jazz, em 2/4, base para os improvisos <strong>de</strong><br />

baixo, piano e bateria. Após os improvisos, a estrutura <strong>de</strong>scrita (A e B) é repetida mais <strong>uma</strong><br />

<strong>vez</strong> e o final do último B <strong>de</strong>semboca n<strong>uma</strong> levada <strong>de</strong> samba rápido que é, em seguida,<br />

<strong>de</strong>sdobrada: a pulsação métrica passa a evi<strong>de</strong>nciar um ciclo maior, enquanto os acentos da<br />

pulsação intermediária evi<strong>de</strong>nciam <strong>uma</strong> melodia em ostinato. Coexistem, até o final, a<br />

marcação do samba lento em 2/4, com o surdo no segundo tempo, e as pulsações<br />

intermediárias caracterizando, um “samba <strong>de</strong> teleco-teco” estilizado.<br />

Se um casal se aventurasse a dançar essa música, teria que inventar passos nada<br />

ortodoxos para conseguir seguir as pulsações e os compassos sugeridos. Isso porque a


linguagem rítmica aqui não realiza um discurso linear, mas um caminho quebrado por<br />

convenções e mudanças <strong>de</strong> pulsação, <strong>de</strong> acentuação. Um discurso musical que instiga mais<br />

à audição e à percepção do que ao movimento coor<strong>de</strong>nando e ca<strong>de</strong>nciado <strong>de</strong> <strong>uma</strong> dança a<br />

dois.<br />

10.3. Aqui não é baile<br />

Desenvolvendo a linguagem rítmica iniciada por Airto Moreira, no Quarteto Novo,<br />

além do aprendizado <strong>de</strong> ritmos próprios das tradições populares nor<strong>de</strong>stinas e da adoção <strong>de</strong><br />

compassos os mais variados, Nenê passou também a <strong>de</strong>senvolver um estilo <strong>de</strong> tocar bateria<br />

em contraponto e em diálogo com os outros instrumentos, e não apenas mantendo <strong>uma</strong> base<br />

regular. Sobre esse estilo, agora já no grupo <strong>de</strong> Hermeto, Nenê <strong>de</strong>staca o disco Zabumbêbum-á.<br />

A partir do Zabumbê-bum-á, a bateria passou a ser um instrumento atuante não <strong>só</strong> como<br />

instrumento <strong>de</strong> base, até esse momento acompanhava o pianista e o baixista, mas a partir<br />

daí a bateria tocava com todo mundo, interferindo, sugerindo coisas... (Nenê 2005)<br />

Ora, se estamos falando <strong>de</strong> bateria brasileira e vamos analisar (no tópico 10.5)<br />

justamente <strong>uma</strong> música <strong>de</strong>dicada ao Radamés, a fala <strong>de</strong> Nenê nos remete diretamente a<br />

outro baterista que não po<strong>de</strong>mos esquecer, Luciano Perrone, companheiro inseparável do<br />

maestro. Oscar Bolão 47 é quem o apresenta:<br />

Um dos expoentes da percussão no Brasil, consi<strong>de</strong>rado por muitos o pai da bateria<br />

brasileira. [...] Nascido no Rio <strong>de</strong> Janeiro em 1908, aos 14 anos começou a tocar<br />

profissionalmente no antigo cinema O<strong>de</strong>on. Nessa época, a bateria ainda não era como hoje<br />

a conhecemos: resumia-se a <strong>uma</strong> caixa colocada sobre <strong>uma</strong> ca<strong>de</strong>ira e um prato pendurado<br />

na gra<strong>de</strong> que separava os músicos da platéia. (Bolão 2003: 135)<br />

47<br />

Oscar Bolão é baterista e percussionista, seguidor do estilo <strong>de</strong> Luciano Perrone. Além <strong>de</strong> tocar nos grupos<br />

Pife Mo<strong>de</strong>rno, Coreto Urbano e no Sexteto Maurício Carrilho, Bolão ministra aulas <strong>de</strong> percussão na Escola<br />

Portátil <strong>de</strong> Música. Fiz <strong>uma</strong> oficina <strong>de</strong> percussão com ele no já citado segundo Festival <strong>de</strong> Choro, em Men<strong>de</strong>s.<br />

118


Nem tão rudimentar assim, a bateria não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser hoje um set organizado <strong>de</strong><br />

instrumentos <strong>de</strong> percussão, on<strong>de</strong> constam os instrumentos básicos citados: a caixa, os<br />

pratos, além dos outros instrumentos típicos <strong>de</strong> banda: o bumbo, os pratos <strong>de</strong> choque ou<br />

contratempos, o surdo, os tons. Além <strong>de</strong>sses, o set da bateria admite inúmeras outras<br />

possibilida<strong>de</strong>s, conforme os instrumentos e técnicas utilizadas (com as mãos, com baquetas<br />

diferentes), a criativida<strong>de</strong> do músico e a linguagem musical que ele <strong>de</strong>senvolve.<br />

Como ele [Perrone] disse <strong>uma</strong> <strong>vez</strong>, o baterista tem que contar <strong>uma</strong> história, tem que saber<br />

abrir e fechar na hora certa, tem que participar da melodia, preenchendo os espaços por ela<br />

oferecidos e usando toda a bateria. O Perrone solava acompanhando. Ora tirava a esteira,<br />

ora tocava com a mão, ora fechava nos pratos <strong>de</strong> choque para abrir no prato e voltar <strong>de</strong>pois<br />

tocando os tambores, ora tocava a caixeta, ora o agogô, e assim ele passeava pelo<br />

instrumento (...). Como dizia Radamés Gnattali: “O Luciano toca com a música, não faz<br />

ritmo <strong>de</strong> base simplesmente”. (Bolão 2003)<br />

No livro Batuque é um privilégio, Bolão ensina alg<strong>uma</strong>s técnicas utilizadas por<br />

Perrone, ao tocar samba, por exemplo: abafar com a mão a pele da caixa (sem esteiras)<br />

enquanto percute com a outra baqueta, fazer o mesmo com um prato splash <strong>de</strong> 10<br />

polegadas, tocando ora na borda ora no topo do prato, etc.<br />

Airto Moreira, por sua <strong>vez</strong>, também faz <strong>uma</strong> mistura entre a percussão do choro, do<br />

samba e do forró e a bateria. Nenê, ao entrar no lugar <strong>de</strong> Airto, diz ter aprendido no<br />

Quarteto Novo a “usar a percussão <strong>junto</strong> com a bateria: caxixi, triângulo, pan<strong>de</strong>iro” (Nenê<br />

2005).<br />

No caso <strong>de</strong> Perrone, nas orquestras <strong>de</strong> rádio, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> seu estilo <strong>de</strong><br />

tocar era também <strong>uma</strong> necessida<strong>de</strong> da orquestração, pois na Rádio Nacional não havia<br />

tantos percussionistas como na gravadora RCA, on<strong>de</strong> ele estava acost<strong>uma</strong>do a tocar:<br />

Radamés fazia os arranjos para Orlando Silva, por exemplo, e quando este estava cantando,<br />

a orquestra fazia a harmonia, e o ritmo era todo na percussão. Quando fomos para a Rádio<br />

Nacional, o cantor trouxe da gravadora o mesmo arranjo, mas, como na rádio nessa época<br />

<strong>só</strong> tinha eu na bateria e mais um outro na percussão, ficava um vazio enorme. E eu me<br />

<strong>de</strong>sdobrando na bateria para suprir a falta dos outros instrumentos! (Luciano Perrone apud<br />

Barbosa e Devos 1985: 45)<br />

119


Ao sentir falta dos outros instrumentos <strong>de</strong> percussão, Luciano sugere a Radamés<br />

escrever os arranjos <strong>de</strong> samba com a mesma divisão rítmica dos tamborins. Uma música do<br />

maestro em parceria com Perrone, o “Ritmo do samba na cida<strong>de</strong>”, foi <strong>uma</strong> das primeiras<br />

em que Radamés experimentou o procedimento, que <strong>de</strong>pois passou a ser característico <strong>de</strong><br />

seus arranjos e composições.<br />

Assim como Radamés, Hermeto também valorizava um baterista que “não faz ritmo<br />

<strong>de</strong> base simplesmente”, conforme testemunho <strong>de</strong> Nenê:<br />

Quando a gente fazia ritmo, o Hermeto falava: aqui não é baile. Se você for tocar no baile,<br />

você faz assim na bateria. Mas aqui tem que ser <strong>uma</strong> bateria diferente, participando, tem<br />

que sugerir coisas... (Nenê 2005)<br />

“Aqui não é baile”, ou seja, não é ritmo pra se dançar. O compasso não precisa ser<br />

tradicional (<strong>de</strong> 2,3,4 tempos), o ritmo não precisa estabelecer um padrão, o andamento é<br />

livre. Quem se diverte agora não são os dançarinos, são os músicos!<br />

10.4. Siga o chefe<br />

A alternância <strong>de</strong> compassos diferentes, pulsações diversas e a mudança do chão, ou<br />

seja, da referência <strong>de</strong> metricida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntre outras características que começamos a <strong>de</strong>scobrir,<br />

também são, mais do que procedimentos composicionais, jogos, maneiras <strong>de</strong> brincar com o<br />

ritmo. Nenê explica <strong>uma</strong> <strong>de</strong>ssas brinca<strong>de</strong>iras, que ele chama <strong>de</strong> “Siga o chefe”:<br />

Intuição, você tem que ter <strong>uma</strong> gama <strong>de</strong> ritmos que você conheça, <strong>de</strong> base. Uma “reserva”<br />

<strong>de</strong> ritmos. E trabalhar com a polirritmia, saber como que você vai fazer. Além <strong>de</strong> entrar em<br />

outra divisão, entra já com um ritmo em outra divisão. [Ele canta um samba, que <strong>de</strong>pois<br />

vira <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> frevo atravessado.] É <strong>uma</strong> vertente da música do Hermeto, <strong>isso</strong> precisa<br />

ser intuitivo... Quando você conhece um monte <strong>de</strong> ritmos, você enche aquele acento <strong>de</strong><br />

ritmos... Isso po<strong>de</strong> ser qualquer ritmo... Ele tá tocando, se eu fizer <strong>isso</strong>, ele vai naquele<br />

ritmo, <strong>de</strong>pois ele volta. É <strong>uma</strong> coisa intuitiva. Ou então é você que segue ele. É <strong>uma</strong><br />

brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> “siga o chefe”. (Nenê 2005)<br />

120


A intuição, a comunicação por som, tato e olhar, própria da música, é a que<br />

predomina. A mesma intuição que faz com que um “baque <strong>de</strong> maracatu” não perca o ritmo;<br />

a mesma intuição que move <strong>uma</strong> banda <strong>de</strong> pífanos ao realizar um “trancelim”, um trançado<br />

sem fim, cantando e dançando; a mesma intuição que move um <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> repentistas, o<br />

que importa é o instante, o momento presente.<br />

O Hermeto tem <strong>uma</strong> expressão, quando ele franze aqui a testa, é porque ele tá ficando<br />

enjoado daquela música... Ele vai mudar pra alg<strong>uma</strong> coisa, eu já sabia que ia mudar... vai<br />

rolar um lance esquisito, eu já ficava ligado. E mudava mesmo. E o Arismar, que é muito<br />

intuitivo, também enten<strong>de</strong>u esse lance, então a gente fazia tudo na hora. (Nenê 2005)<br />

Além <strong>de</strong> ter tocado no grupo <strong>de</strong> Hermeto durante <strong>de</strong>z anos, mais recentemente,<br />

Nenê tocou com ele em trio (piano, baixo e bateria), com o Arismar do Espírito Santo no<br />

baixo.<br />

Esse trio era assim, ele levou as partituras pra gente tocar, ficamos três dias ensaiando no<br />

estúdio, uns negócios dificílimos para tocar... no dia da estréia, nós não tocamos nada<br />

daquilo. Tocou <strong>só</strong> música conhecida, ninguém enten<strong>de</strong>u nada. Ele é assim, ele toca essas<br />

músicas mais “batidas” <strong>de</strong> um jeito diferente. Ele faz [cantarola a primeira frase do<br />

“Desafinado”], se eu fizesse “pa tsch bum”, ele esperava. Ele espera você tocar, não precisa<br />

ser na métrica da música também não. Ele vai indo, muda a harmonia daquela parte, vai pra<br />

outro lado, então fica <strong>uma</strong> música estranha. Uma música conhecida vira outra música.<br />

(Nenê 2005)<br />

Hermeto guarda das festas e brinca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> rua o gosto pelo inusitado, pela<br />

surpresa, e por <strong>isso</strong> é avesso a premeditações. Seus shows não são sequer programados, ele<br />

<strong>de</strong>fine as músicas que vai tocar na hora, em cima do palco, e está sempre <strong>de</strong> ouvidos<br />

abertos para as interferências do momento. O inesperado e o erro para ele não são<br />

problemas, são novos motivos para criar.<br />

O Hermeto é um cara corajoso, que não tem medo <strong>de</strong> arriscar. Quando ele errava um<br />

negócio, ele insistia no erro, é o contrário. Se ele esbarra n<strong>uma</strong> nota que não era pra tocar, é<br />

aquela que ele toca mais, vai mudando a harmonia, vai pra outro tom. Ele é muito criativo.<br />

121


[...] Fizemos quarenta e sete concertos na Europa, nunca era igual, a gente não sabia nem o<br />

que ia tocar. Começava num tema <strong>de</strong> jazz e acabava num forró... (Nenê 2005)<br />

10.5. Mestre Radamés<br />

Além das gravações e dos relatos em entrevistas, os procedimentos rítmicos <strong>de</strong><br />

Hermeto po<strong>de</strong>m ser investigados também através <strong>de</strong> partituras, particularmente as partes <strong>de</strong><br />

bateria que ele escreveu para Márcio Bahia. Dentre essas, Márcio consi<strong>de</strong>ra a partitura da<br />

música “Mestre Radamés” 48 <strong>uma</strong> das mais interessantes (faixa 8, CD em anexo). O<br />

baterista chega a tocá-la como um solo <strong>de</strong> bateria quando ministra workshops.<br />

Márcio Bahia entrou no grupo <strong>de</strong> Hermeto em 1981, pouco <strong>de</strong>pois da saída <strong>de</strong><br />

Nenê. 49 Sua formação era bem diferente. Ele havia estudado percussão orquestral na Escola<br />

<strong>de</strong> Música Villa-Lobos, com o mestre Bituca. De 1977 a 1980, tocou na Orquestra do<br />

Teatro Municipal do Rio <strong>de</strong> Janeiro e atuou também no grupo <strong>de</strong> percussão da Escola <strong>de</strong><br />

Música Villa-Lobos em concertos e como solista em concursos.<br />

Quando se <strong>de</strong>sliga da Orquestra do Teatro Municipal, Márcio pretendia justamente<br />

<strong>de</strong>dicar-se mais à bateria e à música popular, cuja linguagem ele ainda não dominava.<br />

Eu tive que, por uns tempos, esquecer muitas daquelas coisas que eu aprendi na orquestra e no Villa-<br />

Lobos pra pegar o sotaque regional <strong>de</strong> se tocar, o tambor regional... mas a orquestra foi o passaporte<br />

que eu tive pra entrar no grupo porque eu tinha <strong>uma</strong> boa leitura. O que ele [Hermeto] escrevia pra<br />

mim eu tocava, até o ponto <strong>de</strong>le não precisar mais escrever. Eu tive que <strong>de</strong>ixar um pouco o<br />

aprendizado da orquestra <strong>de</strong> lado pra entrar nessa onda do Brasil <strong>de</strong> rua, que era o que eu queria,<br />

<strong>de</strong>senvolver não <strong>só</strong> a técnica, mas a intuição, a emoção, a musicalida<strong>de</strong> que eu <strong>de</strong>senvolvo no grupo<br />

a cada dia. (Bahia 2005)<br />

Essa “inexperiência” inicial <strong>de</strong> Márcio incentivou a criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Hermeto num<br />

domínio até então pouco explorado por ele: a escrita. Graças à habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong><br />

48 Embora o título que aparece na partitura seja “Radamés”, no disco Lagoa da Canoa – município <strong>de</strong><br />

Arapiraca, a música foi registrada com o título “Mestre Radamés”.<br />

49 Nesse meio tempo, entre a saída <strong>de</strong> Nenê e a entrada <strong>de</strong> Márcio, o baterista Alfredo Dias Gomes participou<br />

durante cerca <strong>de</strong> onze meses do grupo, chegando a gravar o LP Cérebro magnético.<br />

122


Márcio, Hermeto passou a escrever os ritmos que pensava para a bateria, tomando esta<br />

como o que ela é <strong>de</strong> fato: um set organizado <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong> percussão. O que ele já<br />

havia <strong>de</strong>senvolvido com Nenê, ou seja, <strong>uma</strong> linguagem <strong>de</strong> bateria que extrapola os padrões<br />

<strong>de</strong> base, ele passou a registrar em papel.<br />

A partir <strong>de</strong> então, Hermeto passou também a escrever peças para grupo <strong>de</strong><br />

percussão, como a “Música para caçarolas”, para panelas cheias <strong>de</strong> arroz, sementes e<br />

contas; ou a “Queputamancada”, para tamancos <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> tamanhos diferentes; e a<br />

“Entrando pelo cano”, para tubos <strong>de</strong> metal afinados. Nessa última, os tubos realizam <strong>uma</strong><br />

melodia no modo lídio, com a harmonia sendo tocada em ostinatos nos tubos graves. Quem<br />

toca as peças é o próprio grupo, assumindo a faceta multi-instrumentista do compositor.<br />

De um lado, a experiência <strong>de</strong> Márcio na música <strong>de</strong> concerto, <strong>de</strong> outro, a<br />

inventivida<strong>de</strong> rítmica <strong>de</strong> Hermeto. Essa combinação <strong>de</strong>u origem a partituras para bateria e<br />

percussão que valorizam a sonorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada tambor, <strong>de</strong> cada prato, além <strong>de</strong> incorporar<br />

outros instrumentos, convencionais ou não.<br />

Particularmente na música “Mestre Radamés”, Hermeto registra em partitura muitas<br />

das características rítmicas que vimos permear sua música. Essa “partitura-<strong>de</strong>senho”<br />

merece ser investigada. Aqui a bateria <strong>de</strong> fato não é apenas um instrumento <strong>de</strong> base. Além<br />

<strong>de</strong> realizar frases (melodias <strong>de</strong> timbre) a todo momento, ela conduz a polirritmia entre<br />

baixo e piano. Explicando melhor: enquanto o baixo toca <strong>junto</strong> com os tambores graves da<br />

bateria, o piano segue os tambores agudos. Paralelamente a todo esse movimento,<br />

transcorre <strong>uma</strong> melodia ligada e constante. Nesse caso, a melodia é que dá a referência<br />

rítmica para bateria, baixo e piano “quebrarem tudo”, a melodia <strong>de</strong> pulsação constante<br />

assume o papel <strong>de</strong> base.<br />

Para seguir a partitura e participar da música, é preciso escutar cada pulsação<br />

unitária da melodia em relação ao que acontece na bateria, conforme a legenda dos timbres:<br />

123


Na introdução da música, é tocado o trecho abaixo (que será repetido na terceira folha):<br />

Em seguida, a partitura po<strong>de</strong> ser acompanhada do começo ao fim:<br />

124


125


Alguns procedimentos rítmicos <strong>de</strong> Hermeto po<strong>de</strong>m ser aqui <strong>de</strong>stacados:<br />

• a utilização da bateria como um instrumento rítmico-melódico, que realiza melodias<br />

<strong>de</strong> timbres e variações <strong>de</strong>ssas mesmas melodias;<br />

• a realização <strong>de</strong> frases rítmico-melódicas <strong>de</strong>slocadas, que atravessam a pulsaçãobase;<br />

• a coexistência <strong>de</strong> diferentes pulsações: intermediárias e mínimas, que por sua <strong>vez</strong><br />

po<strong>de</strong>m ser binárias, ternárias ou quaternárias; além d<strong>isso</strong>, as pulsações tornam-se<br />

126


elativas a todo momento, são híbridas, em um momento a pulsação mínima vira a<br />

intermediária e vice-versa;<br />

• não há <strong>uma</strong> pulsação métrica <strong>de</strong>finida, não há sequer barras <strong>de</strong> compasso na<br />

partitura <strong>de</strong> bateria; as poucas barras <strong>de</strong> compasso que às <strong>vez</strong>es se apresentam<br />

servem sobretudo para separar frases distintas ou <strong>de</strong>limitar a repetição <strong>de</strong> frases;<br />

• a fusão e alternância <strong>de</strong> células rítmicas próprias aos ritmos tradicionais brasileiros:<br />

maracatu, maxixe, forró, afoxé, frevo, marcha, <strong>de</strong>ntre outros;<br />

• na concepção da partitura como um <strong>de</strong>senho, muitas <strong>vez</strong>es, ao acabar a linha, acaba<br />

também a frase musical. Em meio às quiálteras <strong>de</strong> seis, surge o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> um<br />

baterista... ou seria um maestro?<br />

Seguindo a concepção <strong>de</strong> bateria que não atua simplesmente na base, eis <strong>uma</strong><br />

bateria-solista que não apenas sugere, mas realiza melodias, n<strong>uma</strong> homenagem indireta a<br />

Luciano Perrone. Em meio a tantas colcheias, semicolcheias, fusas e pontuadas, as frases se<br />

<strong>de</strong>stacam, como procuro <strong>de</strong>monstrar a seguir.<br />

Já na primeira linha, Hermeto sugere <strong>uma</strong> melodia <strong>de</strong> bumbo e caixa em que alterna<br />

as células rítmicas típicas do maracatu e da marcha, mas essas referências se d<strong>isso</strong>lvem nas<br />

mudanças <strong>de</strong> timbres. No maracatu tradicional, a segunda nota é mais grave e mais forte, o<br />

que não acontece aqui. No entanto, esses ritmos já aparecem na primeira frase e vão<br />

aparecer em diversos outros momentos, assim como a alternância entre grave e agudo<br />

(bumbo e caixa), com os pratos dando a “liga”.<br />

De <strong>uma</strong> pulsação arejada, clara, as frases vão ficando mais <strong>de</strong>nsas, evi<strong>de</strong>nciando<br />

cada <strong>vez</strong> mais pulsações internas. As primeiras figuras ainda apresentam apenas colcheias,<br />

colcheias pontuadas e poucas semi-colcheias, mas aos poucos vão surgindo outras<br />

pulsações possíveis, ainda como variações da frase inicial <strong>de</strong> caixa e bumbo.<br />

127


A mesma alternância bumbo-caixa/caixa-bumbo toma várias formas rítmicas nesse<br />

trecho. Logo após a quiáltera <strong>de</strong> seis, surge <strong>uma</strong> levada <strong>de</strong> afoxé, 50 dobrada em relação à<br />

pulsação inicial, um outro tempo que aos poucos se manifesta, em meio à calmaria. Na<br />

segunda linha do trecho acima, a levada aparece maior e <strong>de</strong>slocada, cada levada com a<br />

duração <strong>de</strong> <strong>uma</strong> semínima pontuada. São duas levadas durante o ciclo <strong>de</strong> duas pulsações.<br />

Todas essas variantes estão brincando com a frase inicial grave-agudo/agudo-grave. A<br />

mesma idéia que aparece a seguir e será constantemente retomada, já em outra pulsação:<br />

As idéias vão se somando e a<strong>de</strong>nsando. As melodias incorporam os timbres dos tons<br />

médio e agudo, que preenchem as frases iniciais criando outras figuras rítmicas: os<br />

garfinhos. Ao final do trecho que se segue, surge mais <strong>uma</strong> frase atravessada, que se repete<br />

duas <strong>vez</strong>es e meia, pois a terceira é interrompida por outra idéia.<br />

50 Sobre o ritmo <strong>de</strong> afoxé na bateria, ver Nenê (1999).<br />

128


No próximo trecho, em meio às frases melódicas (bumbo-caixa e vice-versa),<br />

<strong>de</strong>stacam-se os acentos típicos do maracatu – o bumbo na segunda pulsação mínima – e,<br />

logo em seguida, outros acentos típicos que lembram o ritmo <strong>de</strong> afoxé.<br />

No início do trecho a seguir, a melodia (bumbo-caixa/caixa-bumbo) toma a forma<br />

do padrão rítmico do frevo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> forma interessante: meta<strong>de</strong> da melodia está n<strong>uma</strong><br />

pulsação e a outra meta<strong>de</strong> em outra. É como se o frevo, cuja frase dura dois compassos,<br />

ficasse subitamente em “câmera lenta” no segundo compasso. Nessa música, é difícil<br />

<strong>de</strong>finir o que seja <strong>uma</strong> pulsação métrica ou <strong>uma</strong> pulsação unitária e mais difícil ainda o que<br />

seja <strong>uma</strong> pulsação mínima... Isso porque as pulsações são híbridas, relativas ao que<br />

acontece a todo momento. Aqui, por exemplo, até os timbres e o andamento lembram <strong>uma</strong><br />

levada <strong>de</strong> frevo no primeiro <strong>de</strong>senho. Nesse caso seria um compasso da levada, ou seja,<br />

<strong>uma</strong> pulsação métrica. No entanto, o <strong>de</strong>senho seguinte já sugere outra interpretação, seria<br />

<strong>uma</strong> pulsação unitária <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um compasso binário? Não importa, o que interessa é que<br />

o fluxo da melodia continua e dá a direção e a pulsação necessárias.<br />

No trecho a seguir, Hermeto brinca com o <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> <strong>uma</strong> frase e, em<br />

seguida, dobra a mesma frase, ainda <strong>de</strong>slocando-a. Os pratos que estavam sobrepostos aos<br />

tambores, ou seja, em harmonia, passam a fazer parte da melodia dobrada.<br />

129


Esse recurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocar <strong>uma</strong> mesma frase é muito utilizado por ele, em diferentes<br />

andamentos. É que acontece no trecho final, por exemplo, frases em fusas <strong>de</strong>slocadas que<br />

vão se somando criando um a<strong>de</strong>nsamento <strong>de</strong> informações sonoras. Nas duas penúltimas<br />

linhas, o bumbo faz um padrão em 5, completado ora por caixa, ora pelos tons, que<br />

atravessa a pulsação da melodia. Antes da convenção final, a última divisão tem o bumbo<br />

do forró. O último prato (seco) caracteriza um final “pendurado” no linguajar da Orquestra<br />

do Itiberê.<br />

Durante a peça, outro elemento que vai se a<strong>de</strong>nsando são os acentos típicos do<br />

maracatu. Como vimos, eles vão aparecendo aos poucos, tímidos, <strong>de</strong>slocados <strong>de</strong> seu<br />

contexto, mas vão ganhando forma (e cor) e finalmente se afirmam como um maracatu,<br />

que aparece no trecho a seguir, a partir da barra <strong>de</strong> compasso:<br />

130


Em outra passagem, <strong>de</strong>ssa <strong>vez</strong> mais curta e súbita, os acentos graves do bumbo e<br />

agudos da caixa, todos fora do “chão” lembram, num relance, um baque <strong>de</strong> maracatu<br />

frenético a repicar.<br />

No trecho abaixo, acontecem três passagens bem interessantes. Primeiro: <strong>uma</strong><br />

levada <strong>de</strong> forró, bem rápido, po<strong>de</strong> ser um “baião com bumbo diferente” do Márcio<br />

Bahia. Em seguida, outra característica marcante da linguagem rítmica <strong>de</strong> Hermeto: a<br />

acentuação do tresillo que antes estava nos tambores graves vai para a caixa, com rulo.<br />

Enquanto <strong>isso</strong>, bumbo e pratos realizam <strong>uma</strong> quiáltera <strong>de</strong> seis, ou seja, pulsações<br />

binárias e ternárias simultâneas. Por último, <strong>uma</strong> melodia que passa pelo bumbo, pelos<br />

tons, pela caixa e pelos pratos e, ainda por cima, <strong>de</strong>slocada. Ela se organiza em grupos<br />

<strong>de</strong> 4+6 pulsações mínimas (fusas).<br />

E o maestro-baterista, afinal, rege em seis? Em três? Ou seria em quatro? Acho que<br />

o maestro rege em dois, guiado pela melodia, que organiza tamanha fusão rítmica.<br />

131


Sempre <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mesmo chão, dado pela melodia, Hermeto brinca com as<br />

divisões, dobrando e <strong>de</strong>sdobrando as pulsações. Po<strong>de</strong>mos imaginar <strong>uma</strong> cena: o maestro<br />

Radamés está regendo a orquestra – <strong>uma</strong> melodia lenta, toda ligada – mas, enquanto <strong>isso</strong>,<br />

na Rádio, passa um baque <strong>de</strong> maracatu ou atravessa o estúdio <strong>uma</strong> banda <strong>de</strong> frevo que,<br />

repentinamente, se dá conta da algazarra e diminui o andamento. E o maestro continua<br />

regendo e incorporando à sua orquestra todos os sons que escuta, tudo o que passa vira<br />

música. É esse o tacho <strong>de</strong> sons do maestro Hermeto, pelas mãos do baterista Márcio Bahia.<br />

Lá na frente as coisas se juntaram... o Hermeto começou a escrever pra sinfônica e me<br />

levava <strong>junto</strong>, eu tenho essa onda <strong>de</strong> tocar na mão do maestro, eu sei, o maestro ralenta,<br />

corre, então eu ia com o Hermeto, ajudava ele a ensaiar o naipe <strong>de</strong> percussão. Eu sou um<br />

baterista que tem o conhecimento popular e o conhecimento erudito, eu uso as duas<br />

coisas no que eu faço, o conhecimento erudito faz parte da minha formação, da minha<br />

sonorida<strong>de</strong>, do meu toque, da minha maneira <strong>de</strong> encarar o instrumento, tudo é válido e se<br />

completa. As duas coisas se encontraram lá na frente, tudo tem seu tempo e sua hora.<br />

(Bahia 2005)<br />

A sua hora, o seu tempo é o momento presente, é tudo <strong>isso</strong> <strong>junto</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> <strong>só</strong>: a<br />

simultaneida<strong>de</strong> e a integração sonora que caracterizam a “Escola Jabour”. Se os regionais,<br />

as bandas e as festas <strong>de</strong> rua foram alg<strong>uma</strong>s das escolas <strong>de</strong> Hermeto, ele, por sua <strong>vez</strong>, ao<br />

criar o seu grupo, criou sua própria escola, <strong>de</strong>senvolvendo <strong>uma</strong> linguagem musical que se<br />

perpetua no trabalho dos músicos que passaram por lá, como veremos a seguir.<br />

132


11. Escola Jabour<br />

11.1. Só não toca quem não quer?<br />

Durante a gravação do disco Só não toca quem não quer, o flautista Mauro<br />

Rodrigues teve a experiência <strong>de</strong> tocar (e apren<strong>de</strong>r) com Hermeto:<br />

Ele [Hermeto] é muito exigente com ele mesmo. Isso impõe um nível <strong>de</strong> exigência muito<br />

alto pra todo mundo que está com ele. Mas ao mesmo tempo ele é muito amoroso, então<br />

você acaba fazendo coisas que se pensar, por exemplo “eu não dou conta <strong>de</strong> fazer <strong>isso</strong>...” E<br />

acaba fazendo, um pouco empurrado pela exigência <strong>de</strong>le e, ao mesmo tempo, ele é muito<br />

amoroso, muito amigo... (Rodrigues 2006)<br />

O carisma <strong>de</strong> Hermeto e seu talento em compartilhar idéias e conhecimentos<br />

musicais, como relata Mauro Rodrigues (e como vimos no capítulo anterior), fizeram com<br />

que seu grupo passasse a ser consi<strong>de</strong>rado <strong>uma</strong> escola <strong>de</strong> música, chamada Escola Jabour,<br />

visto a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> músicos criativos e competentes que saíram <strong>de</strong> lá. O baixista Itiberê<br />

Zwarg é um <strong>de</strong>sses músicos que, além <strong>de</strong> toda a experiência vivida no grupo, resolveu<br />

efetivamente dar continuida<strong>de</strong> à ação educadora do mestre Hermeto. Para <strong>isso</strong>, Itiberê<br />

começou a ministrar oficinas abertas para músicos jovens, com diferentes graus <strong>de</strong> fluência<br />

em seus instrumentos. A primeira <strong>de</strong>ssas oficinas, realizada em 1999, <strong>de</strong>u origem à Itiberê<br />

Orquestra Família, um grupo <strong>de</strong> jovens instrumentistas que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, apren<strong>de</strong> música<br />

segundo o método <strong>de</strong>senvolvido na “escola Hermeto”. 51<br />

Em um concerto da Itiberê Orquestra Família, apresentam-se aproximadamente 20<br />

músicos <strong>de</strong> 15 a 30 anos, que tocam <strong>junto</strong>s composições cheias <strong>de</strong> harmonias e polirritmias,<br />

com um <strong>de</strong>talhe: não há sequer <strong>uma</strong> partitura no palco. Todos sabem suas partes <strong>de</strong> cor. O<br />

aprendizado da improvisação também é <strong>de</strong>senvolvido no grupo, muitos <strong>de</strong>les fazem solos<br />

criativos durante as músicas. Os instrumentos são os mais variados: sopros (flautas, flautim,<br />

51<br />

Tive a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar <strong>de</strong> <strong>uma</strong> oficina realizada por Jovino Santos Neto no Festival <strong>de</strong> Inverno<br />

da UFMG, em 2000; em seguida participei das duas oficinas realizadas por Itiberê Zwarg durante as Semanas<br />

da Música da Escola <strong>de</strong> Música da UFMG, em 2002 e 2003.<br />

133


clarinetas, clarone, sax, trompete, trombone, gaita), cordas (violino, viola, cello,<br />

contrabaixo, violão, guitarra), percussão, bateria, vozes e piano. Alguns começaram do zero<br />

e outros saíram <strong>de</strong> bandas ou conservatórios. O que mais chama a atenção no con<strong>junto</strong> são<br />

a fluência rítmica dos músicos, a consciência harmônica e, sem dúvida, a aparente<br />

satisfação em tocar em grupo.<br />

Seguindo a genealogia musical <strong>de</strong> Hermeto Pascoal, a música e a educação musical<br />

<strong>de</strong> Itiberê são necessariamente arraigadas na tradição musical brasileira. Desenvolvendo a<br />

pedagogia criada intuitivamente por Hermeto, o método <strong>de</strong> Itiberê valoriza sobretudo <strong>uma</strong><br />

vivência rítmica intensa e a consciência harmônica, tudo <strong>isso</strong> aprendido oralmente. Na<br />

maioria das <strong>vez</strong>es, Itiberê cria músicas e arranjos in loco, no momento, e passa oralmente a<br />

parte <strong>de</strong> cada músico, que <strong>de</strong>ve aprendê-la, tirando-a no instrumento para, em seguida,<br />

registrá-la no ca<strong>de</strong>rno. Esse procedimento não <strong>só</strong> valoriza a expressão do intérprete, como<br />

também aguça sua audição e a atenção na dinâmica <strong>de</strong> trabalhar em grupo. A improvisação<br />

é <strong>de</strong>senvolvida focalizando também a experiência presente, sem a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

parâmetros racionais, o solista <strong>de</strong>ve se guiar pelo som e pela intuição. O método, que ele<br />

chama <strong>de</strong> corpo-presente, <strong>de</strong>senvolve a liberda<strong>de</strong> e a intuição musical com limites bem<br />

<strong>de</strong>finidos, <strong>de</strong> <strong>uma</strong> forma integradora.<br />

A primeira oficina do Itiberê realizada na Escola <strong>de</strong> Música da UFMG, em 2002,<br />

teve duração <strong>de</strong> três dias, <strong>de</strong> manhã e à tar<strong>de</strong>. Durante esses três dias, um grupo <strong>de</strong> músicos<br />

dos mais variados instrumentos (clarinetas, flautas, trombones, trompetes, saxofones, piano,<br />

teclado, percussão, violão, baixo, vozes, viola) se reuniu na sala 3003. Foi <strong>uma</strong> experiência<br />

intensa, Itiberê, atuando ao mesmo tempo como um maestro-educador-compositor, passava<br />

as partes oralmente para cada músico, que <strong>de</strong>veria tirá-la no instrumento. Espontaneamente,<br />

as funções <strong>de</strong> cada um foram surgindo, como em <strong>uma</strong> família. Alguns tomaram a iniciativa<br />

<strong>de</strong> registrar em ca<strong>de</strong>rno as partes, outros ajudavam aqueles que tinham dificulda<strong>de</strong> em tirar<br />

as notas ou memorizá-las. As harmonias e polirritmias realizadas não eram nada fáceis.<br />

Todos vibravam <strong>junto</strong>s ao ver a música sendo criada, cada um como <strong>uma</strong> parte essencial <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> orquestra que estava sendo formada. Foi <strong>uma</strong> experiência singular para muitos,<br />

acost<strong>uma</strong>dos a ler partituras. Nessa oficina, muitos músicos tiveram oportunida<strong>de</strong> não <strong>só</strong> <strong>de</strong><br />

tocar <strong>de</strong> cor, como também <strong>de</strong> tocar ritmos complicados, mas dançantes e animados. Ao<br />

134


final <strong>de</strong> três dias, apresentamos <strong>uma</strong> rap<strong>só</strong>dia elaborada, que surpreen<strong>de</strong>u a todos, público e<br />

intérpretes.<br />

A oficina realizada em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2003, seguiu a mesma linha, com o acréscimo<br />

<strong>de</strong> alguns instrumentos: clarone, trompa, acor<strong>de</strong>om, bateria, flautim, violino, violoncelo.<br />

Mais <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> foi <strong>uma</strong> experiência intensa <strong>de</strong> realização e aprendizagem, direcionada para<br />

músicos <strong>de</strong> diversos níveis. Os mais iniciantes tem a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tocar em grupo, ao<br />

lado <strong>de</strong> outros mais experientes. Os <strong>de</strong> nível intermediário e avançado tem a oportunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver a audição atenta e presente, a intuição e criativida<strong>de</strong> em improvisos e a<br />

percepção e realização <strong>de</strong> ritmos complexos e com swingue. O método corpo-presente<br />

abrange:<br />

• a consciência harmônica, ao trabalhar progressões harmônicas diversas e<br />

enfatizar em cada músico a audição da harmonia ao tocar, improvisando ou<br />

não;<br />

• a sensação rítmica, ao exigir <strong>de</strong> todos a realização <strong>de</strong> ritmos e polirritmias,<br />

baseados nos ritmos brasileiros;<br />

• a ênfase na oralida<strong>de</strong>: os músicos <strong>de</strong>vem tocar efetivamente em grupo se<br />

olhando e se comunicando, a partitura <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser <strong>uma</strong> muleta para assumir<br />

sua principal função – o registro;<br />

• o prazer <strong>de</strong> tocar, <strong>de</strong> corpo-presente, ou seja, consciente do que está tocando<br />

e fruindo cada momento intensamente, nos gestos que estão livres para a<br />

realização musical.<br />

A Escola Jabour, através do trabalho <strong>de</strong> Itiberê, enfatiza os princípios da linguagem<br />

musical <strong>de</strong>senvolvida por Hermeto, ou seja, a criativida<strong>de</strong>, o prazer e a intuição. Além<br />

<strong>de</strong>sses princípios, as características da linguagem rítmica <strong>de</strong> Hermeto aqui enfocadas<br />

também estão presentes, como veremos a seguir.<br />

135


11.2. 21 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1997<br />

Em 2005, a Itiberê Orquestra Família gravou um disco com 27 arranjos <strong>de</strong> músicas<br />

do Calendário do som, sugestão do próprio Hermeto, cada música escolhida correspon<strong>de</strong> ao<br />

dia do aniversário <strong>de</strong> cada integrante da orquestra.<br />

Como vimos, a proposta musical e pedagógica <strong>de</strong> Itiberê é um <strong>de</strong>sdobramento dos<br />

seus 30 anos <strong>de</strong> convivência musical com Hermeto. O mais interessante <strong>de</strong>ssa história é que<br />

todas as características que estamos <strong>de</strong>scobrindo na música <strong>de</strong> Hermeto tanto <strong>de</strong>finem <strong>uma</strong><br />

linguagem musical própria que já configuram <strong>uma</strong> escola. Na Orquestra, a linguagem <strong>de</strong><br />

Hermeto já está <strong>de</strong> tal forma incorporada que alguns <strong>de</strong> seus procedimentos recebem nomes<br />

próprios, como já vimos: a síncope é “garfinho”, a polirritmia “três contra quatro” é<br />

representada pelas “pontuadas”, a última pulsação contramétrica é <strong>uma</strong> nota “pendurada”,<br />

<strong>de</strong>ntre outras expressões que revelam ao mesmo tempo espírito <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira e a<br />

intimida<strong>de</strong> ao lidar com a música, num processo em que prática e teoria não se d<strong>isso</strong>ciam.<br />

Ao conversar com o violoncelista Felipe José Abreu, ex-integrante da Orquestra,<br />

pu<strong>de</strong> confirmar muitas das questões rítmicas aqui elaboradas. A linha <strong>de</strong> triângulo exposta a<br />

seguir, por exemplo, <strong>de</strong>monstra o <strong>de</strong>slocamento da célula rítmica típica do forró e sua<br />

realização em outra pulsação, no caso, dividindo o compasso binário em três pulsações:<br />

Diante das questões rítmicas aqui enfocadas, Felipe José me sugeriu analisar a<br />

música “21 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1997” (faixa 9, CD em anexo), <strong>de</strong> Hermeto, gravada com arranjo<br />

<strong>de</strong> Itiberê no disco Calendário do som, da Orquestra. Nesta gravação, a melodia é a base,<br />

como também acontece na música “Mestre Radamés”. Lembrando as <strong>de</strong>finições propostas<br />

por Hermeto, o pai-ritmo e a mãe-harmonia ficam por conta da filha-melodia. No entanto,<br />

paralela a essa primeira instância, po<strong>de</strong>m surgir outros temas, os filhos-mais-novos, quando<br />

136


pai e mãe precisam se <strong>de</strong>sdobrar para dividir a atenção. As reflexões <strong>de</strong> Hermeto assim<br />

elaboradas interpretam muito bem o que acontece nessa música, <strong>de</strong>finindo também mais<br />

<strong>uma</strong> característica da linguagem <strong>de</strong> Hermeto. Na música “Mestre Radamés”, por exemplo,<br />

a melodia é filha única. Já a concepção <strong>de</strong> Itiberê, frente à multiplicida<strong>de</strong> instrumental <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> orquestra, evi<strong>de</strong>ncia a simultaneida<strong>de</strong> sonora, também característica da Escola Jabour.<br />

137


O arranjo da música “21 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1997” apresenta a melodia três <strong>vez</strong>es. Na<br />

primeira apresentação, o andamento é muito lento, “para trás”; nas duas últimas, o<br />

andamento inicial é dobrado, mas a melodia continua lenta. Nessa melodia, alternam-se<br />

colcheias e tercinas, que sugerem pulsações mínimas binárias e ternárias. No 9º compasso<br />

aparece <strong>uma</strong> figura híbrida, que soma as anteriores, nesse caso dobradas, ou seja, duas<br />

semicolcheias e <strong>uma</strong> tercina <strong>de</strong> semicolcheia.<br />

Apesar <strong>de</strong> apresentar o compasso ¾, a melodia ora segue a divisão ternária, ora<br />

apresenta-se nas pontuadas, ou seja, sugerindo então outra pulsação, outro chão. A<br />

simultaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pulsações binárias e ternárias predomina durante todo o arranjo, sendo<br />

evi<strong>de</strong>nciada ao final. A base ternária proposta pela melodia é atravessada pelas pontuadas<br />

que, aos poucos vão evi<strong>de</strong>nciando esse outro chão. Ao final, o chão <strong>de</strong> fato muda, as<br />

pontuadas transformam-se na pulsação <strong>de</strong> referência, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> emerge <strong>uma</strong> banda <strong>de</strong><br />

pífanos, tocando um xote. Aqui já não é apenas outro chão, é outra casa e outra família<br />

musical com pai-ritmo, mãe-harmonia e filho-tema. A melodia-base escrita por Hermeto e<br />

o tema final dos pífanos, do arranjo <strong>de</strong> Itiberê, sugerem duas famílias musicais, amigas, que<br />

se relacionam.<br />

138


Conclusões<br />

A trajetória <strong>de</strong>sse estudo não esteve <strong>de</strong>lineada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, ela foi sendo criada e<br />

recriada a partir das idéias suscitadas pela leitura da bibliografia, pela escuta da discografia<br />

e, principalmente, a partir dos <strong>de</strong>poimentos dos entrevistados. A metodologia seguiu os<br />

princípios formulados por Geertz (1989), os diferentes “fios” <strong>de</strong> informação e experiência<br />

foram sendo tecidos, equilibrando diferentes processos – a abordagem interpretativa da<br />

bibliografia e dos <strong>de</strong>poimentos, as análises musicais, a observação-participante, tudo <strong>isso</strong> à<br />

luz da experiência musical – <strong>de</strong> modo a encontrar um percurso ao mesmo tempo criativo e<br />

fundamentado.<br />

Seguindo a trajetória musical <strong>de</strong> Hermeto Pascoal, conhecemos o forró, o choro e as<br />

bandas <strong>de</strong> pífanos. Essas três formações instrumentais foram aqui relacionadas <strong>de</strong> modo a<br />

entendê-las como formações musicais tradicionais no Brasil, pelas quais passaram gêneros<br />

musicais diversos. Foi necessário então compreen<strong>de</strong>r o paradigma do tresillo para, num<br />

primeiro momento, apreen<strong>de</strong>r a rítmica tradicional do choro e do forró e, num segundo<br />

momento, incorporá-lo à multiplicação <strong>de</strong> pulsações proposta pela rítmica <strong>de</strong> Hermeto.<br />

As formações instrumentais estudadas foram i<strong>de</strong>ntificadas como bases para o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da música instrumental no Brasil e particularmente da música <strong>de</strong> Hermeto<br />

Pascoal. Nesse percurso, <strong>de</strong>scobrimos a orquestra <strong>de</strong> Guerra-Peixe, em Recife, e o regional<br />

<strong>de</strong> Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, como escolas <strong>de</strong> Hermeto nos arranjos, no<br />

choro e no forró. As bandas <strong>de</strong> pífano foram <strong>de</strong>stacadas como fonte inesgotável <strong>de</strong><br />

brinca<strong>de</strong>iras, a “Briga do cachorro com a onça”, por exemplo, sendo <strong>uma</strong> referência<br />

importante em suas experimentações com sons <strong>de</strong> animais.<br />

Investigando mais <strong>de</strong> perto a música <strong>de</strong> Hermeto, foi possível compreen<strong>de</strong>r alguns<br />

dos jogos e brinca<strong>de</strong>iras rítmicas que ele realiza tanto em composições como em<br />

improvisos. Vimos também que a música <strong>de</strong>senvolvida por ele permite questionar<br />

categorias musicais estabelecidas – música popular, folclórica, erudita – tanto por<br />

apresentar elementos <strong>de</strong> todas essas categorias como também por não se ater a nenh<strong>uma</strong><br />

<strong>de</strong>las. Como <strong>de</strong>finir sua música afinal?<br />

139


N<strong>uma</strong> última entrevista com Hermeto, mergulhada em seus sons e minhas idéias, foi<br />

ele que, mais <strong>uma</strong> <strong>vez</strong>, me <strong>de</strong>u a resposta, ao falar sobre as brinca<strong>de</strong>iras populares <strong>de</strong> que<br />

mais gostava:<br />

A feira lá em Lagoa da Canoa é que era <strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> diversão para mim. Pois haviam os<br />

cantadores <strong>de</strong> embolada,os ven<strong>de</strong>dores anunciando, discos do Luiz Gonzaga tocando no<br />

megafone... e era tudo <strong>isso</strong> <strong>junto</strong>, <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> <strong>só</strong> [grifo meu]. Eu também gostava <strong>de</strong> tocar<br />

no circo e antes d<strong>isso</strong> eu adorava acompanhar os palhaços com perna <strong>de</strong> pau anunciando<br />

o circo. Eu tenho muita influência d<strong>isso</strong>. Naquela época havia muito mais amor em tudo<br />

o que se fazia. (Pascoal 2006)<br />

A paisagem sonora da feira on<strong>de</strong> tudo se mistura nos remete ao tacho <strong>de</strong> sons –<br />

“tudo <strong>junto</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> <strong>só</strong>” – <strong>de</strong>finindo <strong>uma</strong> das características mais marcantes da música<br />

<strong>de</strong> Hermeto, ou seja, a simultaneida<strong>de</strong>, a sobreposição <strong>de</strong> sons diversos. A coexistência <strong>de</strong><br />

sons <strong>de</strong> instrumentos, vozes, objetos e animais em sua música revela a escuta <strong>de</strong> Hermeto:<br />

<strong>uma</strong> escuta musical permanente.<br />

Se em <strong>de</strong>terminado momento, a música <strong>de</strong> Hermeto toca a realida<strong>de</strong> que lhe <strong>de</strong>u<br />

origem, em outros momentos ela parte <strong>de</strong>sse chão para outras experimentações e<br />

brinca<strong>de</strong>iras. Além da simultaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sons da feira e do circo, Hermeto lembra também<br />

das festas:<br />

Gostava também da festa da padroeira, Nossa Senhora da Conceição. Lá eu subia em pau<br />

<strong>de</strong> sebo, melando a mão na areia para escorregar menos. Ficava também esperando o sete<br />

<strong>de</strong> setembro porque eu tocava tambor na bandinha da escola. E tocava atravessado <strong>de</strong><br />

propósito para ver a marcha ficar trocada [grifo meu]. Era <strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> festa! (Pascoal<br />

2006)<br />

O melhor da festa para ele era “tocar atravessado <strong>de</strong> propósito”, <strong>uma</strong> brinca<strong>de</strong>ira<br />

que ele também incorporou a seu discurso musical, como tantas outras que vimos permear<br />

suas músicas. Hermeto passou por várias formações musicais e inúmeras paisagens<br />

sonoras, <strong>de</strong>ntre as quais me propus <strong>de</strong>stacar as bandas <strong>de</strong> pífanos, os trios <strong>de</strong> forró e os<br />

regionais <strong>de</strong> choro. Nessas três formações, Hermeto incorporou as linguagens musicais<br />

tradicionais, mas é preciso dizer que, para além <strong>de</strong> suas escolas, ele passou por todas essas<br />

paisagens com <strong>uma</strong> intenção musical muito própria:<br />

140


O Hermeto não tem som <strong>de</strong> flautista, como não tem som <strong>de</strong> pianista, <strong>de</strong> saxofonista, mas<br />

ele tem som <strong>de</strong> Hermeto em tudo. Qualquer coisa que ele toca, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a flauta até a<br />

chaleira, tem um som hermético, vamos dizer assim,e esse som a gente i<strong>de</strong>ntifica. Ele<br />

molda a música com a intenção <strong>de</strong>le. (Rodrigues 2006)<br />

E a intenção <strong>de</strong>le é sempre criativa, ou seja, misturar, experimentar, transformando<br />

processos <strong>de</strong> composição em jogos e brinca<strong>de</strong>iras, ou vice-versa. Ao focalizar a rítmica<br />

brasileira <strong>de</strong>senvolvida por Hermeto, foi possível i<strong>de</strong>ntificar alguns procedimentos:<br />

• a multiplicação <strong>de</strong> pulsações - binárias, ternárias, quaternárias – que são<br />

constantemente dobradas e <strong>de</strong>sdobradas, ou seja, <strong>uma</strong> mesma levada rítmica po<strong>de</strong><br />

aparecer em diferentes andamentos;<br />

• a sobreposição <strong>de</strong> pulsações pares e ímpares como um recurso <strong>de</strong> polirritmia, 3x2<br />

ou 3x4; a adição <strong>de</strong> pulsações pares e ímpares transformando a métrica tradicional,<br />

3+2, 3+4;<br />

• a mistura <strong>de</strong> células rítmicas dos ritmos tradicionais;<br />

• <strong>de</strong>nominações próprias para as figuras rítmicas mais recorrentes: o “garfinho”, as<br />

“pontuadas” e as “penduradas”;<br />

• a mudança <strong>de</strong> chão, ou seja, a referência métrica torna-se relativa, principalmente<br />

com o recurso das pontuadas, provocando modulações métricas;<br />

• a criação <strong>de</strong> melodias <strong>de</strong> timbre, enten<strong>de</strong>ndo a bateria como um set <strong>de</strong> instrumentos<br />

<strong>de</strong> percussão e esses, por sua <strong>vez</strong>, como instrumentos rítmico-melódicos;<br />

• a criação <strong>de</strong> frases ou ostinatos rítmico-melódicos que atravessam a música,<br />

<strong>de</strong>slocando a pulsação.<br />

Todas as características <strong>de</strong>stacadas po<strong>de</strong>m aparecer tanto em composições escritas,<br />

como vimos na análise da música “Mestre Radamés”, quanto em improvisações livres,<br />

como foi <strong>de</strong>scrito pelo baterista Nenê. Mais do que características da música <strong>de</strong> Hermeto,<br />

esses procedimentos já constituem <strong>uma</strong> linguagem musical <strong>de</strong>senvolvida por ele e praticada<br />

pelos músicos que tocam e tocaram na Escola Jabour. Dentre eles, <strong>de</strong>staca-se o trabalho<br />

educativo <strong>de</strong>senvolvido pelo baixista Itiberê Zwarg.<br />

141


Como já foi dito, a aproximação à música <strong>de</strong> Hermeto aqui <strong>de</strong>senvolvida partiu da<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r <strong>uma</strong> linguagem musical que me cativou ao abrir minha escuta para<br />

sons e experiências musicais diversas. Antes da pesquisa, mesmo sem enten<strong>de</strong>r o que<br />

acontecia, a música <strong>de</strong> Hermeto tinha para mim <strong>uma</strong> presença semelhante a um baque <strong>de</strong><br />

maracatu, <strong>uma</strong> banda <strong>de</strong> pífanos, <strong>uma</strong> roda <strong>de</strong> choro, <strong>uma</strong> guarda <strong>de</strong> congado, possuindo a<br />

mesma energia e vitalida<strong>de</strong> que integram arte e tradição. Nesse processo foi necessário<br />

enten<strong>de</strong>r e explicar em palavras um outro discurso que chega mais ao corpo e à intuição do<br />

que à razão. Para minha surpresa, as questões investigadas passaram a ficar cada <strong>vez</strong> mais<br />

interessantes, enriquecendo também meu discurso musical. Se escutar a música <strong>de</strong> Hermeto<br />

já é <strong>uma</strong> experiência prazerosa e instigante, mergulhar nesse universo, escutando também<br />

suas palavras, conversando e conhecendo o próprio Hermeto e os músicos que trabalharam<br />

com ele, foi <strong>uma</strong> oportunida<strong>de</strong> única.<br />

Aprendi com Hermeto que para a música acontecer o importante é saber escutá-la, e<br />

ela po<strong>de</strong> estar em qualquer lugar. Para ele, não há que se falar em regras, mas em jogos e<br />

brinca<strong>de</strong>iras que fazem da experiência musical “<strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> festa!”.<br />

142


Referências<br />

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Portátil <strong>de</strong> Música, (apostila).<br />

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Escola Portátil <strong>de</strong> Música, (apostila).<br />

PASCOAL, Hermeto. 2006. Curitiba, PR, 01/03/2006. Entrevista concedida a Lúcia<br />

Pompeu <strong>de</strong> Freitas Campos por correio eletrônico.<br />

145


PASCOAL, Hermeto. 1999. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 10/08/1999. Transcrição <strong>de</strong> entrevista<br />

concedida a Rafael Soares, Pablo Pires e Carlos Figueiredo.<br />

PITOCO, José Alves. 1998. Curso <strong>de</strong> Zabumba. São Paulo: Encontro com a Dança e a<br />

Música Brasileira, (apostila).<br />

Entrevistas à autora:<br />

BAHIA, Márcio Villa. 2005. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 25/03/2005.<br />

JOÃO DO PIFE. 2005. Belo Horizonte, MG, 10/06/2005.<br />

NENÊ. 2005. Belo Horizonte, MG, 20/08/2005.<br />

PASCOAL, Hermeto. 2005. Belo Horizonte, MG, 10/09/2005.<br />

PERNAMBUCO DO PANDEIRO. 2006. Uberaba, MG, 10/04/2006.<br />

RODRIGUES, Mauro. 2006. Belo Horizonte, MG, 05/05/2006.<br />

Discografia consultada:<br />

• Discos <strong>de</strong> Hermeto Pascoal:<br />

Hermeto Pascoal: Brazilian Adventure. CD. Muse Records, 1971.<br />

A música livre <strong>de</strong> Hermeto Pascoal. LP. Polygram, 1973.<br />

Slaves Mass (Missa dos Escravos). CD. WEA, 1977.<br />

Zabumbê-bum-á. CD. Warner, 1979.<br />

Hermeto Pascoal ao vivo em Montreux. CD. Warner, 1979.<br />

Cérebro Magnético. CD. Warner, 1980.<br />

Hermeto Pascoal e grupo. CD. Som da gente, 1982.<br />

Lagoa da Canoa – Município <strong>de</strong> Arapiraca. CD. Som da Gente, 1984.<br />

Brasil Universo. CD. Som da gente, 1985.<br />

Só não toca quem não quer. CD. Som da Gente, 1987.<br />

Mundo ver<strong>de</strong> esperança. Som da Gente, não lançado comercialmente, 1989.<br />

Festa dos <strong>de</strong>uses. CD. Polygram, 1992.<br />

Por diferentes caminhos. LP. Som da Gente, 1994.<br />

146


Eu e eles. CD. Rádio Mec, 1999.<br />

Mundo Ver<strong>de</strong> Esperança. CD. Rádio Mec, 2002.<br />

• Hermeto Pascoal com os grupos dos quais participou:<br />

Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro e seu regional. No meu Brasil é Assim. LP. Copacabana, 1954.<br />

Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro e seu regional. Batucando no Morro. LP. Tiger, 1954.<br />

Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro e seu regional. No Arraial <strong>de</strong> Santo Antônio. LP. Tropicana,<br />

1958.<br />

Sambrasa trio. Sambrasa trio em som maior. CD. Som Livre, 1965. (reedição 2006)<br />

Quarteto Novo. Quarteto Novo. CD. EMI, 1967 (reedição 1993).<br />

Brazilian Octopus. Brazilian Octopus. CD. Som Livre, 1970. (reedição 2006)<br />

• Hermeto Pascoal participando <strong>de</strong> discos <strong>de</strong> cantores, instrumentistas e/ou<br />

compositores:<br />

Edu Lobo. Cantiga <strong>de</strong> Longe. LP.<br />

Tom Jobim. Ti<strong>de</strong>. LP. A&M, 1970.<br />

Airto Moreira e Flora Purim. Seeds on the ground. CD. One way records,1971.<br />

Miles Davis. Live Evil. CD. Sony, 1972.<br />

Galo Preto. Galo Preto. LP. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, 1981.<br />

Galo Preto. Bem te vi. CD. Leblon records, 1992.<br />

Joaquim Callado. O pai dos chorões. v.4. CD. Acari records, 2002.<br />

Itiberê Orquestra Família. Calendário do Som. CD. Maritaca, 2005.<br />

• Outros:<br />

Respon<strong>de</strong> a roda outra <strong>vez</strong>, música tradicional <strong>de</strong> Pernambuco e da Paraíba no trajeto da<br />

Missão <strong>de</strong> 1938. CD. UFPE, UFPB, 2004.<br />

147


Repertório do CD (anexo 1)<br />

1. “Santo Antônio” (Hermeto Pascoal)<br />

CD: Zabumbe-bum-á<br />

Hermeto (piano), Zabelê (improviso <strong>de</strong> palavras, chocalhada), Nenê<br />

(bateria, percussão), Itiberê (contrabaixo), Jovino (clavinete), Cacau<br />

(flauta), Pernambuco (palavras improvisadas, triângulo). Convidada<br />

especial: Divina Eulália <strong>de</strong> Oliveira (história, improviso)<br />

2. “Procissão <strong>de</strong> Santo Antônio” (Festa <strong>de</strong> Santo Antônio no Brejo<br />

dos Padres, Tacaratu –PE)<br />

CD: Respon<strong>de</strong> a roda outra <strong>vez</strong>: música tradicional <strong>de</strong> Pernambuco e<br />

da Paraíba no trajeto da missão <strong>de</strong> 1938<br />

Com Quitéria Binga (Maria Quitéria <strong>de</strong> Jesus), voz principal,<br />

penitentes da al<strong>de</strong>ia Pankararu do Brejo dos Padres e a banda <strong>de</strong><br />

pífanos <strong>de</strong> Zé Branco: Ângelo e Zé Roló (pífanos), Antônio José da<br />

Silva (zabumba) e Irami José da Silva (caixa).<br />

3. “Dinorah” (Benedito Lacerda-José Ferreira Ramos) 52<br />

LP: No meu Brasil é Assim<br />

Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro e seu Regional<br />

4. “Deixando Sauda<strong>de</strong>s” (P. Sobrinho e M. Rodrigues)<br />

LP: Batucando no morro<br />

Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro e seu Regional<br />

5. “Polquinha Mineira” (Abel Ferreira)<br />

LP: No arraial <strong>de</strong> Santo Antônio<br />

Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro e seu Regional<br />

52 Coloquei o título e os compositores da música conforme está escrito no encarte do disco.<br />

148


6. “Salve Copinha” (Hermeto Pascoal)<br />

CD: Brasil Universo<br />

Hermeto Pascoal e grupo<br />

7. “Coalhada” (Hermeto Pascoal)<br />

CD: Sambrasa Trio em Som Maior<br />

Sambrasa Trio<br />

8. “Mestre Radamés” (Hermeto Pascoal)<br />

CD: Lagoa da Canoa – Município <strong>de</strong> Arapiraca<br />

Hermeto (bombardino), Heraldo do Monte (guitarra), Jovino Santos<br />

(piano CP-80, harmônio), Carlos Malta (sax soprano), Itiberê Zwarg<br />

(contrabaixo), Márcio Bahia (bateria), Pernambuco (triângulo)<br />

9. “21 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1997” (Hermeto Pascoal)<br />

CD: Calendário do Som<br />

Itiberê Orquestra Família<br />

Créditos do DVD (anexo 2):<br />

Depoimento: Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro<br />

Direção e roteiro <strong>de</strong> entrevista: Lúcia Campos<br />

Imagens: Byron O’Neill<br />

Filmagem realizada no dia 13/04/2006<br />

Local: casa <strong>de</strong> Pernambuco do Pan<strong>de</strong>iro, Uberaba (MG)<br />

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