Edição (PDF) - CÂNDIDO - Estado do Paraná
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36 Cândi<strong>do</strong> | jornal da biblioteca pública <strong>do</strong> paraná<br />
conto | tércia montenegro<br />
uM GESTO RARO<br />
Ilustração:<br />
José Aguiar<br />
Minha mãe chegou bem ce<strong>do</strong>, para colocar as flores diante<br />
<strong>do</strong> retrato <strong>do</strong> tio Álvaro. Quan<strong>do</strong> ela passou lá em<br />
casa, estava ruborizada de pressa, seguran<strong>do</strong> o vaso com<br />
umas das mãos, enquanto sustentava o volante <strong>do</strong> carro<br />
com a outra: “Pegue logo isso, para não derramar!”, ela disse,<br />
assim que eu me sentei. Partimos em disparada, acho que eram<br />
umas seis da manhã, e o cemitério ficava distante. Durante to<strong>do</strong><br />
o trajeto, ela ficou falan<strong>do</strong> sobre as pessoas que deviam estar no<br />
funeral, e sempre completava: “Acho que você não lembra, era<br />
muito pequena da última vez em que nos vimos”. Eu realmente<br />
não conhecia ninguém, porque minha mãe brigara com quase<br />
toda a família quan<strong>do</strong> eu tinha uns quatro ou cinco anos. Sobrara<br />
apenas uma irmã concilia<strong>do</strong>ra, a única que nos visitava. Tia<br />
Maura era uma espécie de porta-voz, trazen<strong>do</strong> notícias de uns e<br />
de outros. A simples presença dela já indicava conspiração: sempre<br />
aos cochichos na sala, ela respondia às perguntas de minha<br />
mãe, que invariavelmente encerrava a conversa dizen<strong>do</strong>: “Afinal,<br />
não mu<strong>do</strong>u nada!”<br />
Agora, alguma coisa mudaria, porque tio Álvaro estava<br />
morto. Ele era o caçula, um tio que jamais vi, porque a sua briga<br />
aconteceu antes mesmo que eu nascesse. Minha mãe costumava<br />
contar que os <strong>do</strong>is se trancaram num banheiro, ele aos gritos de<br />
que iria matá-la, ela sem se amedrontar em nenhum momento,<br />
queren<strong>do</strong> entregar uma faca para ele, gritan<strong>do</strong>: “Mate agora!<br />
Mate!” Do la<strong>do</strong> de fora, meu pai batia na porta, recém-casa<strong>do</strong><br />
e tão inexperiente em confusões daquela estirpe. Devia estar assustadíssimo<br />
quan<strong>do</strong> tio Álvaro saiu <strong>do</strong> banheiro, choran<strong>do</strong> de<br />
impotência, com a irmã a chamá-lo de covarde. Eu nunca soube<br />
o verdadeiro motivo para aquela cena; ficava impressionada o<br />
suficiente com a imagem <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is aos tapas, minha mãe empurran<strong>do</strong>-lhe<br />
uma faca para que ele a matasse. Sempre me esquecia<br />
de perguntar a razão para tu<strong>do</strong> aquilo; acho que, na minha<br />
cabeça, as pessoas tinham o hábito de se trancar num banheiro,<br />
ameaçan<strong>do</strong>-se como loucas.