A PROSA POÉTICA NA OBRA DE CLARICE LISPECTOR - Cielli
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Universidade Estadual de Maringá – UEM<br />
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – A<strong>NA</strong>IS - ISSN 2177-6350<br />
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A <strong>PROSA</strong> <strong>POÉTICA</strong> <strong>NA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>DE</strong> <strong>CLARICE</strong> <strong>LISPECTOR</strong><br />
José Eugênio das Neves (PG-UEL)<br />
No ano de 1944, uma jovem autora fez sua estréia na Literatura Brasileira com um<br />
título que lembrava um verso poético: Perto do Coração Selvagem. A autora em<br />
questão, com o passar dos tempos, transformou-se em uma das mais cultuadas escritoras<br />
brasileiras, utilizando-se de seu próprio nome, que aos olhos do crítico Sérgio Milliet<br />
parecia um pseudônimo: Clarice Lispector.<br />
obra.<br />
Logo de início, alguns críticos se aperceberam de uma característica especial de sua<br />
Sérgio Milliet, através da série de volumes de seu Diário Crítico, fornece um dos<br />
primeiros documentos críticos importantes acerca da produção literária de Lispector.<br />
Milliet (apud SÁ, 1979, p. 26-27), escrevendo sobre Perto do Coração Selvagem,<br />
confessa que, inicialmente, não havia dado grande importância à obra e já ia atirá-la de<br />
lado, quando resolveu ler uma página ao acaso. A escolhida foi a de número 160 e<br />
causou tal impressão no crítico que o convenceu a ler a obra inteira. Nessa leitura, ele se<br />
depara com uma linguagem que envereda por atalhos inesperados e atinge o poético.<br />
Clarice possui a capacidade ou dom de associar um conteúdo inesperado às palavras,<br />
dando-lhes vida própria. Para o autor, essa característica é típica da poesia.<br />
Outro crítico, Álvaro Lins (1963, p. 186-193), no artigo “A experiência incompleta:<br />
Clarisse Lispector”, incluído em seu livro Os mortos de sobrecasaca, ainda que<br />
considere os livros já lançados da autora, Perto do Coração Selvagem e O Lustre, como<br />
obras “inacabadas”, reconhece nela a capacidade de mesclar o mundo real com outro da<br />
psicologia, do sonho e da imaginação, eliminando as fronteiras que os dividem. Em<br />
síntese, Clarice realiza uma união entre o realismo e o lirismo. Para realizar essa<br />
ligação, ela, muitas vezes, lança mão dos recursos da poesia, o que é alvo de uma séria<br />
reprimenda do estudioso, que julga que tal escolha faz com que perca seu contato com a<br />
terra, com o gênero humano. É fácil compreender esse juízo de Lins, quando se verifica<br />
que, na época, a tendência dominante estava voltada para um realismo nu e cru, que
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constituía as obras de nosso regionalismo. O estudioso admite certo distanciamento<br />
desse padrão, mas condena o que considera ser um excesso no romance de Clarice.<br />
Juntando as opiniões dos dois estudiosos, constatamos que os escritos literários de<br />
Lispector diferenciam-se dos demais pela mescla de realidade e lirismo, cosidos através<br />
de generosas pitadas de linguagem poética.<br />
Ora, essa definição enquadra-se bem naquilo que, em literatura, convencionamos<br />
chamar de “prosa poética”: uma obra composta em prosa narrativa (conto, novela,<br />
romance, crônica) que, no todo ou em algumas partes (trechos, capítulos), deixa-se<br />
permear por soluções poéticas. (MOISÉS, 2004, p. 373).<br />
É o que reconhece Milliet (apud SÁ, op. cit., p. 31), ao analisar O Lustre, quando, à<br />
parte das censuras que faz à obra, reconhece que Clarice Lispector possui “[...] uma<br />
espontaneidade que a valoriza e faz de sua prosa uma prosa poética cheia de surpresas<br />
(grifo nosso).<br />
O uso da prosa poética não se restringe apenas a seus romances. Moisés (apud SÁ,<br />
op. cit., p. 43), em crítica ao livro de contos Laços de Família, descreve a autora como<br />
portadora de um caráter “surrealista e poético”. Ora, eis aqui uma característica da prosa<br />
poética que se apresenta nos escritos clariceanos: a narrativa transcorre na mente de<br />
quem a vai tecendo, como se esse se abandonasse ao sonho. (MOISÉS, 2005, p. 29) Em<br />
outras palavras, transcorre num clima onírico, daí Moisés ter se apercebido do caráter<br />
surrealista da obra da autora.<br />
Constata-se, assim, que a obra de Clarice está vazada em termos de prosa poética.<br />
Com relação à prosa poética, Moisés (op. cit., p. 26) recorda-nos que esse rótulo<br />
destaca a presença conjunta de duas formas de expressão: a do “eu” (poesia), que se<br />
centra no pensar e sentir do sujeito e a do “não-eu” (prosa), que se volta, obviamente<br />
para os aspectos externos (cenário, personagens, etc.).<br />
Ora, essa é justamente a estrutura sobre a qual se constrói toda a obra de Lispector.<br />
Ao mesmo tempo, em que procura narrar uma história convencional, a autora tenta,<br />
através dos personagens, expressar o seu “eu”.<br />
Esse desejo é expresso já no primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, quando a<br />
escritora revela um costume da personagem principal, Joana, ao brincar:
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Já vestira a boneca, já a despira, imaginara-a indo a uma festa onde<br />
brilhava entre todas as outras filhas. Um carro azul atravessava o<br />
corpo de Arlete, matava-a. Depois vinha a fada e a filha vivia de novo.<br />
A filha, a fada, o carro azul não eram senão Joana, do contrário seria<br />
pau a brincadeira. Sempre arranjava um jeito de se colocar no papel<br />
principal exatamente quando os acontecimentos iluminavam uma ou<br />
outra figura. (<strong>LISPECTOR</strong>, 1992, p. 21)<br />
Já nessa obra, localizam os estudiosos essa simbiose entre personagem e autor.<br />
Manzo (1998, p. 6) destaca que Clarice empresta sua voz a cada um dos personagens.<br />
Ressalta também que não há diferença entre a voz da narradora em terceira pessoa e a<br />
de seus personagens, pondo em relevo o fato de que Clarice e Joana são almas gêmeas,<br />
que partilham a mesma visão de mundo. A partir dessa constatação, a estudiosa levanta<br />
a hipótese de que é possível compreender a vida de Clarice através de seus escritos, que<br />
se constituiriam em uma forma da escritora despir-se de seus segredos, revelando seus<br />
mistérios e dilemas. Outra pesquisadora, Sá (op. cit., p. 219), chama a atenção para o<br />
fato de que o narrador de tal forma se identifica com a protagonista, que o foco<br />
narrativo denuncia a presença de uma primeira pessoa. Isso ocorre devido à utilização<br />
de monólogos diretos, discursos indiretos livres e verbos no presente do indicativo.<br />
Nesse ponto, é interessante destacar que, Moisés (op. cit., p. 361), ao descrever as<br />
características da poesia, chama a atenção para o fato de que ela organiza-se em torno<br />
de uma única personagem, o poeta; o “outro”, quando aparece, resulta de uma<br />
duplicação narcisista do próprio poeta. O “outro” não é um terceiro, mas um “outro-eu”.<br />
Essa confusão pode ser percebida no seguinte trecho que focalizava a personagem<br />
Joana:<br />
Amava sua escolha e a serenidade agora alisava-lhe o rosto, permitir<br />
vir à consciência momentos passados mortos. Ser uma daquelas<br />
pessoas sem orgulho e sem pudor que a qualquer instante se confiam a<br />
estranhos. Assim antes da morte ligar-se-ia à infância, pela nudez.<br />
Humilhar-se afinal. Como pisar-me bastante, como abrir-me para o<br />
mundo e para a morte? (<strong>LISPECTOR</strong>, op. cit., p. 219)
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Até a última frase, o texto apresenta um narrador em terceira pessoa, como<br />
demonstram os pronomes pessoais empregados, que relata fatos acontecidos no<br />
passado. É nesse momento, que ocorre uma reviravolta na narração, os pronomes de<br />
terceira pessoa são bruscamente substituídos por outro de primeira, no caso o “me”,<br />
mudando o foco narrativo de terceira para primeira pessoa.<br />
Na verdade, o que se verifica, nesse trecho, é a ocorrência de dois tipos de monólogo<br />
interior ou fluxo de consciência: o indireto, representado pelas frases em que há o<br />
emprego da terceira pessoa do singular e o tempo verbal no passado, e o direto, que se<br />
encontra na última frase, e em que há a utilização da primeira pessoa e o tempo verbal<br />
no presente.<br />
Eis aqui um típico exemplo de prosa poética, já que, segundo Moisés (op. cit., p. 29)<br />
uma das características da prosa poética é que mesmo quando o foco narrativo encontrase<br />
na terceira pessoa, o tom é de primeira.<br />
Isso pode ser percebido em boa parte do fragmento acima em que predomina a<br />
focalização do tipo onisciência seletiva em que, embora o narrador empregue a terceira<br />
pessoa, os pensamentos, sentimentos e percepções são transmitidos ao leitor<br />
diretamente e sem mediação de espécie alguma. (FRANCO JÚNIOR, 2003, p. 42)<br />
As personagens são, portanto, máscaras, atrás das quais se esconde a voz clariceana.<br />
As faces são múltiplas, mas a voz por detrás delas é única.<br />
Tal disfarce aparece também em seus contos, como se pode perceber em “Felicidade<br />
Clandestina”, “Os Apuros de Sofia” e “Restos de um Carnaval”, dentre outros.<br />
No final de sua carreira, Clarice assume uma máscara mais próxima de seu rosto: a<br />
de personagem-escritor. Isso ocorre em dois romances: A Hora da Estrela e Um Sopro<br />
de Vida.<br />
A Hora da Estrela começa com uma declaração inédita na obra da autora:<br />
<strong>DE</strong>DICATÓRIA DO AUTOR (Na verdade Clarice Lispector). Ou seja, logo de início, a<br />
autora assume abertamente o uso da máscara.<br />
No decorrer do romance, através da personagem do escritor Rodrigo S.M., ela<br />
discute o seu fazer literário, propondo-se a realizar um desafio:
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[...] vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes<br />
deles, é claro. .Eu, Rodrigo S.M. [...] Assim é que experimentarei<br />
contra os meus hábitos uma história com começo, meio e "gran finale"<br />
seguido de silêncio e de chuva caindo. (<strong>LISPECTOR</strong>, 1997, p. 27)<br />
Para alcançar esse objetivo, Rodrigo pretende contar a história de Macabéa, uma<br />
nordestina sem sorte que tem uma existência apagada na cidade do Rio de Janeiro.<br />
O resultado, no entanto, não se afasta das obras anteriores. Manzo (op. cit., p. 210)<br />
destaca como, mais uma vez, Clarice faz de sua existência matéria-prima para esse<br />
romance. Entre as duas histórias, a da nordestina Macabéa e a do escritor Rodrigo S.M.,<br />
predomina a do segundo, que não consegue levar adiante a história que se propõe a<br />
construir. Em outras palavras, trata-se, na verdade, da história de Clarice e sua<br />
inabilidade para escrever romances de forma tradicional.<br />
Mas, a identificação da autora não ocorre apenas com o personagem Rodrigo S.M.,<br />
ela aproxima-se também de Macabéa, conforme atesta o testemunho de Olga Borelli,<br />
amiga de Clarice, acerca da relação escritora/obra:<br />
[...] ela [...] em vida, próxima ao fim, reevoca toda a herança, o<br />
passado dela, nordestino. Ela se coloca na figura da personagem<br />
central, a Macabéa, que morre. Esse livro saiu na véspera da morte da<br />
Clarice. Ela era uma grande profetiza de si mesma. Ela dizia que o<br />
futuro é um passado que ainda não aconteceu no tempo. (BORELLI<br />
apud MANZO, op. cit., p. 204)<br />
Essa proximidade autora/personagem pode ser vislumbrada, além disso, no próprio<br />
nome escolhida para a jovem migrante nordestina que vem para o Rio de Janeiro:<br />
Macabéa. O nome relembra os macabeus, heróis judeus que se bateram pela<br />
independência de seu povo. A ironia salta aos olhos. Macabéa não tem nada de heróico<br />
e é apenas mais uma nordestina anônima e sem importância a se movimentar em meio a<br />
milhões de outros que vivem nas grandes metrópoles. A tragédia da vida e morte de<br />
Macabéa ilustra o drama vivido por Clarice, que assim como a nordestina terá uma<br />
morte trágica depois de uma existência que julga apagada e infeliz.<br />
Por fim, em Sopro de Vida, Clarice coloca um personagem denominado de “Autor”<br />
em conflito com sua criação, “Ângela Pratini”.
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Mais uma vez, porém, os perfis dos personagens conduzem-nos à Clarice. Ou seja,<br />
trata-se como observa sabiamente Manzo (op. cit., p. 220) de Clarice Lispector<br />
escrevendo Clarice Lispector.<br />
Em suma, ainda que a ficção de Clarice oscile entre a primeira e a terceira pessoa, ela<br />
desvenda os segredos interiores das personagens e, assim, soa como se fosse narrada em<br />
primeira. E é através desse recurso, o fluxo de consciência, que Clarice pode revelar<br />
muitos aspectos de sua identidade.<br />
Outro detalhe da obra de Lispector enquadra-se bem em outra característica da prosa<br />
poética mencionada por Moisés (op. cit., p. 29). Trata-se do amortecimento da intriga,<br />
que se transforma, muitas vezes, em um fio débil e subterrâneo, opondo-se, dessa<br />
forma, ao enredo linear e explícito das narrativas realistas ou não poéticas.<br />
O mesmo autor (op. cit., p. 145) destaca que o termo “enredo” pode ser empregado<br />
num sentido próximo ou equivalente a “intriga”, “assunto”, “argumento”, plot, “trama”,<br />
“fábula”. Lembra-nos, porém, que, no caso de obras de caráter psicológico ou<br />
introspectivo, “intriga” deve ser considerada como sinônimo de “história” ou<br />
“episódio”, referindo-se a uma narrativa em que o vínculo causal ou a profundidade<br />
analítica predomina sobre a sucessão de fatos ou acontecimentos.<br />
Sá (op. cit., p. 157) concorda com essa última afirmação de Moisés. Em nota de<br />
rodapé ao capítulo III de sua obra A Escritura de Clarice Lispector, que trata da<br />
linguagem da escritora, a estudiosa destaca que, em sua análise, empregará o termo<br />
“trama”, não utilizando os similares “intriga” ou “enredo” por estarem comprometidos<br />
em demasia com os “romances de intriga” e os lineares em suas sobrevivências<br />
modernas, que colocam em relevo o episódio e a ação, em detrimento da penetração no<br />
“eu” das personagens.<br />
Para a autora já citada (op. cit., p. 131-132), Clarice parece desinteressar-se da<br />
fábula, como material factual em favor da trama, isto é, dos recursos expressivos, das<br />
digressões, dos processos de composição, etc.<br />
No caso das digressões, elas caem como uma luva para o propósito de Lispector de<br />
realizar uma sondagem introspectiva em seus personagens.<br />
Para exemplificar, tomemos como modelo o romance A Paixão Segundo G.H.
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O enredo ou intriga gira em torno de uma mulher identificada apenas como G. H.,<br />
que dirige ao quarto de sua ex-empregada para arrumá-lo. Ali, encontra uma barata, que<br />
esmaga com a porta do guarda-roupa. Em seguida, sente um grande desejo de devorar o<br />
que restou do inseto.<br />
Há uma concordância de alguns analistas quanto à fragilidade dessa intriga. Moisés<br />
(op. cit., p. 48) fala-nos de enredo cifrado e quase imperceptível; Sá (op. cit., p. 257)<br />
descreve o romance como uma longa introspecção, cujo objetivo é tratar de uma<br />
indagação metafísica. Em outras palavras, as digressões predominam sobre os fatos.<br />
Nos escritos clariceanos, no entanto, alguns fatos podem servir como detonadores de<br />
uma descoberta surpreendente do “eu”. Trata-se daquilo que se convencionou<br />
denominar de “epifania”.<br />
James Joyce (apud Moisés, op. cit., p. 156) define “epifania” como uma súbita<br />
manifestação espiritual a qual se chega através de um gesto ou fala comum ou, ainda,<br />
por meio de uma frase memorável da própria mente. Em outras palavras, Joyce admite<br />
duas origens para a epifania, uma externa (fatos e palavras) e outra, interna (frases da<br />
própria mente).<br />
Em sua obra, Clarice recorre ao primeiro tipo, preferindo a utilização de fatos<br />
bastante prosaicos.<br />
Tomemos como exemplo, o conto “Amor”.<br />
Em uma viagem cotidiana de bonde, Ana, uma dona de casa comum, depara-se com<br />
uma visão que lhe causa desconforto:<br />
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo<br />
de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.<br />
A diferença entre ele e os outros é que estava realmente parado. De<br />
pé, suas mãos mantinham-se avançadas. Era um cego.<br />
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança?<br />
Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Um homem cego<br />
mascava chicles.<br />
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam<br />
jantar – o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o<br />
cego profundamente, como se olha o que não se vê. Ele mastigava<br />
goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O<br />
movimento de mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de<br />
sorrir, sorrir e deixar de sorrir – como se ele a tivesse insultado, Ana
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olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio.<br />
Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada – o bonde deu uma<br />
arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de<br />
tricô despencou-se do colo, ruiu no chão – Ana deu um grito, o<br />
condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava – o<br />
bonde estacou, os passageiros olharam assustados. (<strong>LISPECTOR</strong>,<br />
1998, p. 21-22)<br />
Duas características chamam a atenção no personagem que desperta a descoberta de<br />
Ana: é cego e feliz. Ora, se analisarmos a descrição da vida de Ana, podemos identificar<br />
uma existência asséptica, voltada unicamente para a família e cuja marca principal é a<br />
fuga do pensar. Em outras palavras, Ana está desligada do mundo real (uma cegueira<br />
simbólica). A personagem, no entanto, é feliz.<br />
A visão do cego detonará sua descoberta do mundo que a cerca, um mundo perigoso,<br />
mas atraente.<br />
No final, a personagem opta por voltar ao mundo imaginário em que vive. Isso é<br />
simbolizado pelo apagar de uma vela. Em outras palavras, a iluminação é temporária.<br />
Tal qual um cego que recuperasse a visão e, estranhamente, preferisse voltar à cegueira<br />
por se chocar com o mundo que acaba de descobrir, Ana retorna à sua cegueira<br />
simbólica.<br />
Verificamos, então, nesses e outros casos da literatura clariceana, em que a epifania<br />
apresenta-se, que a importância não recai sobre o fato em si mesmo, mas sobre os<br />
efeitos que provoca na personagem, gerando uma descoberta interior, que é o principal<br />
destaque da obra.<br />
Por fim, há a questão da linguagem. Por conta de buscar a melhor descrição para os<br />
sentimentos do “eu”, a prosa poética, assim como a poesia, lançará mão de uma<br />
linguagem carregada de simbolismos.<br />
Descrevendo as características da linguagem poética, Moisés (op.cit., p. 361) alista<br />
como seus atributos: a utilização acentuada de metáforas e o caráter polissêmico das<br />
palavras empregadas.<br />
Assim, a linguagem poética provoca no leitor, a princípio, um “estranhamento”.<br />
Acostumado a desvendar o significado do que lê com facilidade nos textos do dia a dia,<br />
ele depara-se agora com uma linguagem a ser decifrada.
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Muitas dessas características apresentam-se nos textos de Clarice.<br />
Desejosa de representar da melhor forma possível o seu “eu” na escrita, a autora<br />
busca uma linguagem que a auxilie a fazer isso. Antônio Cândido (apud Sá, op. cit., p.<br />
25) percebeu isso e no artigo “No raiar de Clarice Lispector”, em julho de 1944, faz<br />
referência à busca de um vocabulário, imagens e torneios que se amoldassem a uma<br />
expressão sutil e tensa, de tal forma que a língua tivesse o mesmo caráter dramático do<br />
entrecho.<br />
Outro crítico, Sérgio Milliet (apud Sá, p.31) percebe um desses artifícios, uma<br />
estranha técnica de adjetivação. Cita como exemplos as expressões “grito de café<br />
fresco”, em que “grito” significa “cheiro repentino” e “tomava o seu sábado”, na qual<br />
“tomar” adquire o sentido de “viver” e o “sábado” transforma-se em uma “bebida<br />
sorvida lentamente”.<br />
Percebemos nos exemplos levantados pelo estudioso, que Clarice, ao invés, de<br />
trabalhar a polissemia com termos já existentes, cria outros novos, o que empresta um<br />
caráter insólito à sua linguagem. Daí, muitas pessoas encontrarem dificuldades na<br />
leitura de suas obras, já que o significado não está na superfície e é preciso mergulhar<br />
mais fundo no mar das palavras para alcançar sua compreensão.<br />
Além disso, no termo “grito de café fresco”, percebemos a ocorrência da sinestesia,<br />
isto é, da combinação ou fusão de dois sentidos: a audição e o olfato. Trata-se de mais<br />
um recurso poético de que se vale a escritora.<br />
Dois outros críticos, Luís Costa Lima e Benedito Nunes (apud Sá, op. cit., p. 49),<br />
chamam a atenção para outro aspecto interessante da linguagem, que pode ser<br />
percebido, por exemplo, no trecho final de Perto do Coração Selvagem:<br />
o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro<br />
de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões,<br />
não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que<br />
estarei criando instante por instante: sempre fundido, porque então<br />
viverei só então viverei maior do que na infância, serei brutal e mal<br />
feita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se<br />
entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e tudo que venha e caia<br />
sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos<br />
brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho
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até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei<br />
forte e bela como um cavalo novo. (<strong>LISPECTOR</strong>, op. cit., p. 224)<br />
Percebe-se no trecho a repetição persistente de certas expressões. Exemplo<br />
semelhante pode ser verificado no romance A Paixão Segundo G.H. em que a expressão<br />
do final de um capítulo é repetida no início de outro.<br />
Para os dois autores acima citados, essa repetição constitui-se em um aspecto<br />
poético que marca presença no texto.<br />
O que acabamos de ver demonstra claramente que, dentro da Literatura Brasileira,<br />
Clarice Lispector foi um dos autores cuja obra apresenta as características da prosa<br />
poética de forma mais acentuada. Outro autor que pode ser colocado no mesmo patamar<br />
é Guimarães Rosa, que também mereceria uma análise quanto à presença das<br />
características da prosa poética no interior de sua obra.<br />
REFERÊNCIAS<br />
FRANCO JÚNIOR, Arnaldo. Operadores de Leitura da Narrativa. In: Org. BONNICI,<br />
Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria Literaria: abordagens históricas e tendências<br />
contemporâneas. Maringá: EDUEM, 2003.<br />
LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização<br />
Brasileira, 1963.<br />
<strong>LISPECTOR</strong>, Clarice. Perto do Coração Selvagem. 15. ed. Rio de Janeiro: Francisco<br />
Alves, 1990.<br />
_________________ . Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.<br />
MANZO, Lícia. Era uma vez: eu – a não ficção na obra de Clarice Lispector. Curitiba:<br />
Secretaria de Estado da Cultura; The Document Company-Xerox do Brasil, 1997.<br />
MOISÉS, Massaud. A Criação Literária – Prosa II. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2005.<br />
_______________ . Dicionário de Termos Literários. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2009.<br />
SÁ, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. 2. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo:<br />
PUC, 1993.
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