Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Barbara Erskine<br />
A <strong>Princesa</strong> <strong>Guerreira</strong><br />
Tradução<br />
Catarina F. Almeida
PLANETA MANUSCRITO<br />
Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito<br />
1200-242 Lisboa • Portugal<br />
Reservados todos os direitos<br />
de acordo com a legislação em vigor<br />
© 2008, Barbara Erskine<br />
© 2009, <strong>Planeta</strong> Manuscrito<br />
Título original: The Warrior’s Princess<br />
Revisão: Eulália Pyrrait<br />
Paginação: Tiago Ferreira<br />
1.ª edição: Setembro de 2010<br />
Depósito legal n.º 315 803/10<br />
Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráficas<br />
ISBN: 978-989-657-113-9<br />
www. planeta.pt
Para Liz Graham e Brian Taylor<br />
Em memória de conversas felizes cuja falta é muito sentida
Prólogo<br />
No seu sonho, Jess estava de pé no caminho à beira da floresta. À sua<br />
frente, os carvalhos antigos e nodosos e os freixos mais altos e imponentes<br />
recortavam-se, maciças silhuetas, na noite de luar. Atrás, a quinta<br />
da irmã, em pedra caiada de branco, jazia adormecida no silêncio cálido<br />
da noite de Verão, banhada pela luz da Lua, a fragrância doce dos vasos<br />
de lavanda e alecrim fundindo-se no ar parado com a do tomilho bravo<br />
da montanha.<br />
– Onde estás? – A voz da criança, nítida no silêncio, vinha do fundo<br />
do arvoredo. – Ainda estamos a jogar?<br />
Em resposta, as folhas das árvores suspiraram na brisa delicada.<br />
– Quem está aí?<br />
Jess deu um passo na direcção da floresta. Do lugar onde se encontrava,<br />
não conseguia ver o trilho que conduzia às suas profundezas.<br />
Ninguém respondeu.<br />
Aproximou-se das árvores.<br />
– Estás aí?<br />
Uma súbita corrente de ar frio beliscou-lhe a pele e ela sentiu o<br />
corpo estremecer.<br />
Atrás de si, a casa permanecia em silêncio. As janelas, sem luz.<br />
Segundos antes, tivera consciência da presença de pessoas ali, a dormir.<br />
A irmã. Os amigos da irmã. Os seus próprios amigos. Agora, na lógica<br />
serena do sonho, sabia que a casa estava deserta. As janelas sem cortinas<br />
eram olhos esbugalhados e vazios, a lareira um fogo extinto.<br />
11
Barbara Erskine<br />
– Onde estás? – A voz parecia mais próxima. Nela, Jess pressentiu<br />
o medo da criança.<br />
– Aqui. – Correu mais uns passos na direcção da floresta. – Segue<br />
a minha voz. Estou aqui. No trilho!<br />
Agora, ouvia o vento a ressoar no vale, o seu murmúrio subtil<br />
ganhando força ao mesmo tempo que os ramos das árvores começavam<br />
a balouçar. O som aproximava-se, o sussurro convertia-se em rugido.<br />
Sentiu o ar frio no rosto. Depois, no cabelo. Do outro lado do amplo<br />
vale, as sombras do luar corriam pela ondulação nocturna das colinas.<br />
– Vem ter comigo, minha querida. Não queiras ser colhida pela<br />
tempestade. Aqui, a meu lado, ficarás a salvo. Vamos esconder-nos dentro<br />
de casa!<br />
Jess chamava-a o mais alto que podia, gritando as palavras contra<br />
o estridor da ramagem fustigada pelo vento.<br />
Foi então que a viu, à luz da Lua, nuvens negras varrendo o vale na<br />
sua direcção. Uma rapariguinha com cabelos de um louro-pálido, vestido<br />
comprido, sem cor no turbilhão de sombras, pés nus, braços estendidos<br />
em desespero e dois olhos gigantes no rosto assustado.<br />
– Vem, minha querida! Estou aqui!<br />
Jess já corria ao seu encontro. Estava a passos de distância. Num<br />
segundo, alcançaria a criança, puxá-la-ia para a segurança dos seus braços.<br />
A Lua desapareceu por um instante. Quando voltou, a tempestade<br />
cessara. A noite mergulhara no seu silêncio. A rapariguinha já não<br />
estava ali.<br />
– Jess? – Era a voz da irmã, atrás dela. – Jess! Vem para dentro. Não<br />
devias estar aí fora sozinha, no escuro.<br />
No seu sono, Jess virou-se para o outro lado e procurou a almofada.<br />
Lágrimas caíam-lhe sobre as faces. O sonho terminara.<br />
12
Capítulo 1<br />
As cortinas estavam abertas. Vozes enchiam-lhe o pensamento.<br />
Uma criança perdida, a chorar; duas crianças. Três…<br />
e<br />
Durante algum tempo, Jess permaneceu absolutamente imóvel,<br />
fitando, perplexa, um esguio raio de Sol que percorria devagar o quadro<br />
pendurado na parede. Um quadro pintado por ela. O seu retrato da<br />
floresta que existia atrás da casa da irmã, com as folhas tocadas de fogo<br />
pelas primeiras geadas de Outono. Havia nele magentas e carmesins<br />
que não se recordava de ter visto antes, embora ela mesma o tivesse pintado.<br />
Pormenores de uma beleza extraordinária; matizes de sombra<br />
que, sem aquele foco de luz, nunca teria apreciado com atenção. Porquê?<br />
Por que razão não o contemplara devidamente, como agora? Por<br />
que nunca o vira em toda a sua glória?<br />
E onde estavam as crianças?<br />
Ao virar a cabeça para espreitar pela janela, sentiu uma vertigem<br />
de náuseas. Gemeu, o quadro e o sonho varrendo-se-lhe do pensamento.<br />
De fora, chegava-lhe o ruído do trânsito, à distância, afluindo<br />
aos semáforos do cruzamento da High Street, parando por momentos<br />
e tornando a fluir. Quando se atreveu a abrir os olhos de novo, o raio<br />
de Sol seguira caminho e o quadro regressara à sua sombra habitual.<br />
13
Barbara Erskine<br />
Soerguendo-se com dificuldade, olhou de relance para o relógio na<br />
cabeceira da cama.<br />
– Merda!<br />
Meio-dia. Não admirava que tudo no quarto lhe parecesse diferente.<br />
Com um suspiro, lançou as pernas para fora da cama, a cabeça a<br />
andar à roda. Teria bebido muito na noite anterior? Levantando-se com<br />
esforço, entreviu o seu reflexo no espelho e parou, horrorizada. O cabelo<br />
louro, pelos ombros, estava num desalinho; os olhos, normalmente de<br />
um azul-pálido-acinzentado, raiados de sangue e um pouco inchados.<br />
Quando o seu olhar se desviou para a parte de baixo do corpo, gelou,<br />
em estado de choque. A camisa nova, bonita, que usara na festa rasgara-<br />
-se praticamente ao meio; o soutien fora puxado para baixo dos seios; a<br />
saia arrepanhada até à cintura. Olhando-se de cima a baixo, incrédula,<br />
passou um dedo pela nódoa negra azulada que lhe aparecera na coxa,<br />
pelo arranhão ensanguentado na barriga. Descobriu mais nódoas negras<br />
nos braços.<br />
– Céus! O que me aconteceu?<br />
As palavras pairaram, mudas, no interior do quarto, enquanto Jess<br />
observava atentamente o seu reflexo, devolvendo-lhe o olhar. Com um<br />
ligeiro cambaleio, dirigiu-se à porta e, segurando-se ao caixilho, espreitou<br />
lá para fora. Sobre a mesa de centro, na sala de estar, viu dois copos<br />
manchados de vinho tinto. Uma garrafa vazia jazia, deitada, por debaixo<br />
da mesa. Quem quer que tivesse estado com ela no apartamento, na<br />
noite anterior, já não estava ali; nem na cozinha ou na casa de banho.<br />
A porta da frente encontrava-se fechada. Com mãos trémulas, examinou<br />
as fechaduras. Ninguém as arrombara. Quem quer que tivesse<br />
estado ali dentro com ela não forçara a entrada. Fora certamente convidado<br />
a entrar.<br />
Jess tinha ido à festa de fim de trimestre do colégio, disso recordava-se<br />
vagamente. Nada mais. O que bebera na festa? Onde fora depois<br />
da noite de discoteca? Com quem? Não conseguia lembrar-se de nada.<br />
e<br />
14
A <strong>Princesa</strong> <strong>Guerreira</strong><br />
À hora a que chegara, a festa de fim de trimestre estava ao rubro.<br />
O átrio de desporto do Sixth Form College 1 convertera-se num turbilhão<br />
de luzes giratórias. O barulho era ensurdecedor. Jess tinha parado<br />
diante das portas duplas, abertas ao ar húmido daquela noite de Verão,<br />
relutante em entrar. Queria colar as mãos aos ouvidos, queria virar costas<br />
e correr para longe, qualquer coisa que não fosse mergulhar na<br />
massa densa de corpos transpirados onde pairava o odor opressivo a<br />
perfume barato, água-de-colónia, beatas, erva, suor e álcool. Ainda não<br />
tinham conseguido revistar todos os miúdos. E de que serviria? Vendiam-se<br />
bebidas dentro do átrio e, por lei, metade deles já podia beber.<br />
– Olá, Jess! – Uma figura emergiu da escuridão fervilhante. Dan<br />
Nicolson, o chefe do departamento dela, saiu para a zona de estacionamento<br />
em macadame asfáltico, à porta do átrio, com um sorriso cansado.<br />
– Estou a ficar velho para isto!<br />
A T-shirt demasiado garrida desmentia as suas palavras; aquela era<br />
a única noite do ano em que Dan permitia que o vissem no colégio com<br />
um traje menos formal.<br />
Ela riu-se.<br />
– Eu sempre fui demasiado velha para isto, Dan. Desde o dia em<br />
que nasci. Estás cheio de estilo. – Dan trazia o cabelo curto, cinzento-<br />
-rato, espetado para cima, e os olhos castanhos escondidos atrás de um<br />
par de óculos escuros de marca. – Ouvi dizer que tiraste a palha mais<br />
curta. Tens de ficar até ao fim?<br />
– E separar os miúdos em plena cópula! – Olhou para o céu, simulando<br />
exaspero. – A menos que consiga convencer alguém a fazê-lo por<br />
mim. Queres que vá buscar-te uma bebida? – perguntou, puxando os<br />
óculos para cima da cabeça.<br />
Jess aquiesceu. Não havia como oferecer resistência à tempestade<br />
de ruído que saía por aquela porta. Ela sabia muito bem qual seria a<br />
sensação no interior, mas tinha dito que vinha e prometera uma dança<br />
a uma pessoa. Ashley. Ash era o seu aluno mais promissor. O mais promissor<br />
em muitos anos. Destinado a ter nota máxima em todas as<br />
cadeiras que frequentava, o jovem jamaicano era alguém em quem ela<br />
1 Escola para alunos com mais de dezasseis anos e que pretendem obter certifi cados<br />
avançados em cursos académicos. (N. da T.)<br />
15
Barbara Erskine<br />
investira muito tempo e energia, e já o via ao longe, com as suas mesas<br />
de mistura em cima do palco, a partir o recinto. Só teria de assegurar-<br />
-se de que ele também a via, acenar, levantar o polegar em jeito de reconhecimento,<br />
encolher os ombros para lhe mostrar que não era preciso<br />
dançar, coisa que de qualquer modo lhe parecia quase impossível no<br />
meio daquela multidão compactada, e depois sairia discretamente.<br />
Quando Dan desapareceu na direcção do bar, algures nos confins<br />
do átrio, um outro colega apareceu ao seu lado.<br />
– Olá, Jess! – Will Matthews fez uma careta ao ouvir o barulho.<br />
– Vamos ter problemas com os vizinhos. – Apontou para as portas do<br />
átrio com uma garrafa de cerveja loura meio vazia.<br />
Jess e aquele homem alto, louro e atraente tinham sido tema de<br />
mexericos durante a maior parte dos três anos em que ela dera a cadeira<br />
de Literatura Inglesa no Sixth Form College de North Woodley, no sul<br />
de Londres. A maior parte desses anos, mas não agora. Will era professor<br />
efectivo no departamento de História. Também treinava as equipas<br />
de basquetebol, squash e atletismo. De camisa azul, colarinho aberto,<br />
calças de ganga e cinto de rebite em couro amplamente trabalhado, ele<br />
atraía, reparou, vários pares de olhos lúbricos entre as suas alunas adolescentes.<br />
Jess e Will tinham sido um casal perfeito em muitos sentidos, mas<br />
sempre houvera algo entre os dois que não corria exactamente bem.<br />
A ambição de Will, talvez; a sua certeza – cortesia engendrada por uma<br />
mãe extremosa e duas irmãs mais novas – de que era irresistível; a tendência<br />
para presumir que o seu trabalho, a sua carreira, a sua visão do<br />
mundo tinham precedência sobre os dela; o paternalismo, talvez involuntário,<br />
com que via uma carreira no ensino da Literatura e o incontestável<br />
talento de Jess como aguarelista. Tudo isto lhe causara ressentimentos.<br />
Quando Will a convidara para ir viver com ele, ela descobrira<br />
que, acima de todas as arrelias, e por muito que gostassem um do outro,<br />
não suportava perder a sua independência. E nisto começara a descida<br />
escorregadia até à ruptura.<br />
Não existia outra mulher, pelo menos Jess nunca ouvira dizer que<br />
houvesse alguém. Fora simplesmente a recusa de Will em aceitar uma solução<br />
de compromisso e reconhecer a autonomia dela que se metera, por<br />
fim, entre os dois e destruíra a relação em duas ou três breves semanas,<br />
16
A <strong>Princesa</strong> <strong>Guerreira</strong><br />
deixando-a zangada e confusa e, a Will, infeliz e amargo. Depois desta<br />
azeda separação, tinham-se evitado em absoluto, o que era difícil no<br />
interior do colégio, mas ainda assim perfeitamente exequível, se ambos<br />
se empenhassem. Coisa que tinham feito. Até àquele momento.<br />
– Vá lá, Jess. Uma dança, pelos bons velhos tempos? – Sorriu-lhe,<br />
insinuante.<br />
Jess franziu o sobrolho.<br />
– Não me parece, Will.<br />
– Oh, vá lá. Para mostrar que não há rancores? Fim de trimestre.<br />
Bons resultados, pelo amor de Deus! Nem precisas de voltar a ver-me!<br />
Ela arqueou uma sobrancelha.<br />
– Porquê? Vais-te embora?<br />
Ele deu uma gargalhada.<br />
– Isso querias tu! Não. Mas, no próximo trimestre, prometo evitar-te<br />
como à própria peste.<br />
Jess resistiu ao impulso de devolver o sorriso. Aquele sorriso sempre<br />
fora a sua perdição. Era demasiado charmoso; demasiado persuasivo;<br />
de longe, demasiado atraente. Tinha de ser forte.<br />
– Vamos continuar a evitar-nos um ao outro, certo, Will? Dá-me<br />
licença. Tenho de ir cumprimentar Ash.<br />
Ocultando o desejo que sentia, a tentação ainda tão viva, dirigiu-<br />
-lhe um encolher de ombros tenso e apologético e virou-lhe as costas.<br />
Depois, inspirou a última golfada de ar fresco e mergulhou na massa<br />
palpitante de corpos que dançavam, deixando-o parado a olhar para<br />
ela.<br />
Assim que a viu, Ashley afastou-se da sua mesa de mistura, fez<br />
sinal a Max para que o irmão mais novo, que estava no palco ao lado<br />
dele, o substituísse e saltou para o chão.<br />
– Venha dançar, Jess!<br />
Ash aproximou-se com um sorriso nos lábios, o rosto atraente<br />
coberto de gotas de suor, a camisa de cores vivas ensopada, e as suas<br />
mãos pegaram nas mãos dela, levantando-lhe os pulsos e largando-a em<br />
seguida, pronta e em posição para começar a dançar, enquanto ele<br />
rodopiava, meneando as ancas à sua frente. Ela não devia rir-se. Devia<br />
repreendê-lo por tratá-la por Jess, mas para quê? As aulas tinham acabado<br />
em todos os sentidos. A época de exames terminara. A noite estava<br />
17
Barbara Erskine<br />
quente e convidativa, e todos aqueles jovens se divertiam. Talvez pu -<br />
desse mesmo soltar o cabelo. Dançou com Ashley, dançou com vários<br />
outros alunos e dançou com Brian Barker, o director do colégio. Por<br />
fim, já muito descontraída, dançou com Will – parecera-lhe um esforço<br />
demasiado grande rejeitá-lo. Bebeu o ponche de frutas de Dan. Depois,<br />
mais um pouco, com um shot extrapicante reservado ao pessoal! Tornou<br />
a dançar com Dan e, em seguida, com Ashley, uma última vez.<br />
Já era de madrugada quando a festa finalmente acabou, após a segunda<br />
visita da polícia.<br />
Ashley tinha ficado à espera dela à saída do átrio.<br />
Depois disso, Jess não se lembrava de nada. Preparando com mãos<br />
trémulas uma chávena de café, bebeu-o em pequenos goles, devagar.<br />
Quem teria convidado, já tão tarde, para um copo de vinho? Não tivera<br />
mais nenhuma relação depois de Will. Não se sentia atraída por ninguém,<br />
muito menos por algum dos seus colegas do colégio. Não agora.<br />
Não era o tipo de pessoa que levava um encontro casual para casa e acabava<br />
na cama com ele. E ninguém, absolutamente ninguém que ela<br />
conhecia, a teria ferido e deixado naquele estado.<br />
Puxando pela cabeça enquanto beberricava o resto do café, lembrou-se<br />
de ter visto Ash saltar do capô de um carro para o tejadilho e<br />
pôr-se a declamar, de punhos erguidos na direcção das estrelas. Shakespeare.<br />
Citara Shakespeare, esse rapaz que ela protegera e estimulara<br />
com tanto cuidado na sua sala de aula, que dirigia a sua própria trupe<br />
de actores de rua e que acalentava o sonho secreto de entrar na RADA 1 ,<br />
o sonho de ser actor num palco do West End, de desafiar as suas origens,<br />
o pai ausente, os irmãos drogados, assim confirmando a fé determinada<br />
e silenciosa que a mãe tinha nele. Ash gritara o discurso para o<br />
mundo ouvir e, no fim, rindo-se, saltara para o chão e fizera-lhe uma<br />
vénia cortês.<br />
– Deixe-me acompanhá-la a casa, Jess! – Parecia que estava a ouvir<br />
a voz dele, ressoando-lhe nos ouvidos.<br />
Depois, nada.<br />
A partir dali, as suas memórias tinham-se evaporado. O apartamento<br />
onde vivia ficava a meia hora a pé do colégio, mas ela não se lembrava de<br />
1 Academia Real de Artes Dramáticas. (N. da T.)<br />
18
A <strong>Princesa</strong> <strong>Guerreira</strong><br />
ter atravessado a estrada principal, com o trânsito ainda abundante<br />
muito depois da meia-noite; nem de ter descido a rua agitada, onde<br />
metade das lojas continuava de portas abertas às noites quentes de<br />
Julho. Não se lembrava de ter virado para baixo na praça em socalcos,<br />
com os seus minúsculos e preciosos oásis de árvores e arbustos poeirentos,<br />
ao centro, cercados de grades com pontas de ferro e montes de lixo<br />
no interior. Nem tão-pouco se lembrava de ter aberto a porta do prédio,<br />
ou de ter subido as escadas, destrancado a fechadura da porta do<br />
apartamento, entrado e, tudo indicava, oferecido ao seu acompanhante<br />
mais uma bebida.<br />
Não, Ashley não. Por favor, que não fosse Ashley.<br />
Só podia ter sido Ashley. As pessoas tinham-na avisado. Tinham-lhe<br />
dito que ele era violento. Que se tornara demasiado íntimo, demasiado<br />
físico ao pé dela. Mas Jess ignorara-as. Ela é que sabia. Ela vira o potencial<br />
de Ashley e nada se atravessaria no caminho da sua ambição por ele.<br />
Se fora Ashley, seria ela a culpada? Tê-lo-ia motivado a fazer amor<br />
com ela?<br />
– Não! – A palavra saiu-lhe como um suspiro de agonia. – Não,<br />
não o teria feito. Não podia tê-lo feito.<br />
Com cuidado, apalpou as nódoas negras que lhe marcavam os braços.<br />
A pessoa que lhe fizera aquilo obrigara-a e dominara-a. Não fora<br />
amor, mas violação.<br />
Ficou muito tempo no duche, sabendo que não deveria fazê-lo;<br />
sabendo que, se fora violada, deveria chamar a polícia, preservar alguma<br />
prova escondida no interior do corpo, mas consciente, ao mesmo<br />
tempo, enquanto se esfregava até ficar em carne viva, de que nunca teria<br />
coragem de enfrentar o horror do processo judiciário. Uma das suas<br />
alunas vira-se obrigada a fazê-lo, ela acompanhara a rapariga à sala fria<br />
e impessoal onde a adolescente fora interrogada, examinada e, por fim,<br />
desacreditada. A memória fê-la estremecer. Nunca se submeteria a uma<br />
coisa daquelas. Nunca. Devagar, começara a senti-la, uma fúria ardendo<br />
a fogo lento. Por muito álcool que tivesse sido forçada a beber, mesmo<br />
que a tivessem drogado para ceder e esquecer, descobriria o responsável<br />
e fá-lo-ia pagar.<br />
Sentada à beira do sofá, encolhida no roupão de banho, voltou a<br />
sentir-se trémula ao percorrer mentalmente, uma e outra vez, os factos<br />
19
Barbara Erskine<br />
de que conseguia lembrar-se. Teria convidado Ash a entrar? Era verdade<br />
que dançara com ele várias vezes. Tomara mais uma bebida. E, depois,<br />
outra. Quem lhas teria dado? Não conseguia lembrar-se. Era óbvio que<br />
bebera de mais, mas ter-lhe-iam acrescentado alguma coisa a essas bebidas?<br />
Teria ela, no estado em que se encontrava, aceitado fazer sexo? Teria<br />
gostado? Sentia as mãos húmidas e frias. Uma vertigem de náusea crescia-<br />
-lhe, algures, abaixo das costelas. A sala começara, de novo, a andar à roda.<br />
De súbito, deu-se conta do som de passos subindo as escadas para<br />
o seu patamar. Levantando-se com esforço, correu para a porta da<br />
frente, fechou o ferrolho com violência e enfiou a corrente na ranhura.<br />
Depois, devagar, tremendo com um terror que nunca experimentara<br />
antes, deixou-se escorregar para o chão, lágrimas correndo-lhe pelas<br />
faces ao encostar-se à parede, apertando o roupão branco à volta do<br />
corpo. Lá fora, os passos subiram a escada num ápice, passando pela sua<br />
porta sem parar, e o som esmoreceu algures nos andares de cima.<br />
Jess adormeceu ali mesmo, no chão, de costas apoiadas na parede.<br />
Quando acordou, foi ao som de alguém a bater à porta. A maçaneta<br />
rodou. Sustendo a respiração, olhou para cima, para esta, com um<br />
nó no estômago.<br />
– Jess, estás aí? – Era a voz de Will. – Jess, estás bem? Escuta, queria<br />
pedir-te desculpa pelo que aconteceu ontem à noite. Comportei-me como<br />
um idiota. Perdoa-me. – Seguiu-se uma longa pausa. Depois, um profundo<br />
suspiro. – Jess, estás aí? O que se passa? – Mais uma pausa. Seguida<br />
de uma exclamação zangada. – Vejo-te na segunda, para esclarecermos<br />
isto, está bem, Jess?<br />
Ouviu-o, então, afastar-se da porta, ouviu os passos dele a correr<br />
pela escada abaixo e a porta da rua a fechar-se com estrondo. Por fim,<br />
silêncio.<br />
«Tinha-se comportado como um idiota.»<br />
Em que sentido?<br />
Não fora Will, seguramente. Tinham discutido no passado, mesmo<br />
antes daquela última ruptura. Fizeram mais do que discutir – lutaram<br />
um com o outro. Mas ele não seria capaz de obrigá-la a fazer algo contra<br />
a sua vontade. Ou seria?<br />
Teria sido capaz de segui-la e a Ash até casa dela? Se o fizera, poderia<br />
ter entrado à socapa. Jess sabia que ele ficara com uma chave, apesar<br />
20
A <strong>Princesa</strong> <strong>Guerreira</strong><br />
de insistir que lha devolvera. Tinham dançado juntos, no fim da noite.<br />
Mais do que uma vez. Ela lembrava-se disso. Por momentos, sentira os<br />
braços dele à sua volta, com uma familiaridade tão terna, e abandonara-<br />
-se àquele abraço. Fora Will quem, minutos depois, se afastara, moven -<br />
do-se solitário ao som da música, deixando-a a dançar sozinha.<br />
Com um suspiro de exaustão, Jess fechou os olhos.<br />
Muito mais tarde, ouviu a senhora Lal, do apartamento do rés-do-<br />
-chão, abrir a porta e sair, o som dos chinelos a martelar nos degraus.<br />
Ia à loja de esquina; não precisava de levar os sapatos finos. No seu tormento,<br />
Jess sorriu afectuosamente. Às vezes, a velha senhora chamava-<br />
-a para lhe perguntar se queria que ela lhe trouxesse o jornal de do -<br />
mingo, ou um pouco de leite. Mas não nesse dia. Nesse dia, havia<br />
silêncio; talvez a senhora Lal tivesse ouvido Will a bater à porta com<br />
estridor e pensado que Jess tinha saído.<br />
Levantando-se, dorida, foi até à janela e olhou para baixo. A senho -<br />
ra Lal descia a rua devagar, com um casaco de malha azul sobre o sari e<br />
o cabelo grisalho preso num rolo desmazelado. Seguindo-a, viu-a hesitar<br />
e abrandar de repente, atravessando a rua para o outro lado. Foi então<br />
que reparou neles. Dois rapazes negros a rondarem o portão que dava<br />
para a praça. Fitou-os por momentos, de súbito com a garganta seca. Um<br />
deles era Ash. O outro o seu irmão mais velho, Zac. Não tiravam os olhos<br />
da pobre senhora Lal, apreciando claramente o seu desconforto. Zac chamou-a<br />
e a mulher idosa acelerou o passo, afastando-se deles o mais<br />
depressa que podia, na direcção da loja. Talvez devesse ir lá abaixo enxotá-<br />
-los. Que faziam ali, afinal? Os rapazes viviam em Constable Estate, na<br />
outra ponta do colégio. Então, quase como se soubesse que ela estava a<br />
olhar para ele, Jess viu Ash mover-se de repente. Saltou para a estrada,<br />
onde ela o veria melhor – e de onde ele talvez conseguisse vê-la – e esboçou<br />
de novo aquela vénia cortês, elaborada e teatral, dirigida à sua janela.<br />
Zac ria às gargalhadas. Jess viu-o apontar um pontapé pouco convicto à<br />
cabeça do irmão, antes de Ash soprar um beijo na direcção da casa dela<br />
e os dois rapazes se virarem para o outro lado, caminhando num passo<br />
estugado e casual até à estação de metro e à buliçosa High Street.<br />
Jess afastou-se da janela. Ash não a poderia ter visto. Estava demasiado<br />
longe. E não sabia onde ela morava. Correcção: não devia saber<br />
onde ela morava. Sentiu-se gelar. Tinha sido ele. Tinha sido Ash e agora<br />
21
Barbara Erskine<br />
estava a gozar com ela. Deus, que fazer? Ele acabara de confessar-lhe o<br />
que fizera. Radiante. Ciente de que ela nunca conseguiria apanhá-lo.<br />
Desafiando-a a tentar. Daí a vénia. O seu melhor estudante. Ela julgara<br />
que tinha conquistado a confiança e o respeito do rapaz, e era assim que<br />
ele lhe retribuía.<br />
e<br />
Jess telefonou a Brian Parker para lhe apresentar a sua demissão na<br />
segunda-feira de manhã. Disse-lhe que estava doente; demasiado esgotada<br />
para continuar a dar aulas. E interrompeu os protestos de Brian<br />
desligando o telefone. Depois, foi ao médico, que confirmou que a<br />
perda de memória podia muito bem ser o efeito de alguma droga. Tinha<br />
optado pela pílula do dia seguinte. Não lhe ocorrera fazer o teste do<br />
VIH, ou os outros testes que a médica insistiu que fizesse; não reparou<br />
no seu olhar preocupado enquanto a examinava.<br />
– Se não sabes quem foi, Jess – disse-lhe, com delicadeza –, não<br />
podes correr riscos. As nódoas negras, a rigidez muscular. É óbvio que<br />
não participaste nisto de livre vontade. Tens razão, foste violada e devias<br />
ir à polícia.<br />
Neste ponto, Jess não mudara de opinião. O resto do dia passou-o<br />
num miasma de angústia e de autocomiseração.<br />
A campainha da porta soou pouco depois das cinco. Desta vez,<br />
abriu-a. Era Dan. Depois de hesitar um momento, ao vê-la tão pálida,<br />
Dan avançou num passo enérgico direito à sala de estar, instalando-se<br />
na poltrona perto da janela.<br />
– Que conversa é essa de te demitires? Não podes! O colégio precisa<br />
de ti. Eu preciso de ti no meu departamento. Além disso, tens de<br />
dar um trimestre à casa.<br />
– Eu expliquei a Brian que estava doente – retorquiu ela, após um<br />
breve silêncio.<br />
– E estás? – Dan escrutinou-lhe o rosto.<br />
Jess encolheu os ombros.<br />
– Não. Sim. Tenho os meus motivos, Dan. Lamento desiludir-te.<br />
– Olhou-o nos olhos, enfrentando-o, e por fim desviou o olhar. Sentara-<br />
-se na beira da cadeira, à frente dele, numa posição desconfortável.<br />
22
A <strong>Princesa</strong> <strong>Guerreira</strong><br />
– Tu és a minha melhor professora de Literatura. Fizeste maravilhas.<br />
Já és parte da equipa, Jess – disse-lhe ele, com cuidado. – Não<br />
podes dizer-me por que te queres ir embora? – Semicerrou os olhos,<br />
ainda a estudá-la.<br />
Jess abanou a cabeça.<br />
– Lamento – disse, com um arrepio de frio, apesar de o calor da tarde<br />
lhe entrar pela janela, com o estridor distante do trânsito na High Street.<br />
– Vá lá. Eu preciso de uma razão. O que pode ter acontecido de tão<br />
terrível? Will? Vi-o atazanar-te enquanto dançavam.<br />
Ela encolheu os ombros.<br />
– Jess? – Inclinando-se para a frente, Dan estendeu o braço e pousou-lhe<br />
a mão no joelho.<br />
Jess retraiu-se ao toque, e ele franziu o sobrolho, recostando-se na<br />
poltrona.<br />
– O que se passa?<br />
Ela abanou a cabeça.<br />
– Foi Will, não foi? Fez alguma coisa que te transtornou. – Levantando-se,<br />
deu alguns passos de um lado para o outro. – Ele magoou-te?<br />
Jess abanou a cabeça. Não podia contar-lhe. Não podia contar a<br />
ninguém o que tinha acontecido.<br />
– Foi Will, não foi? – repetiu Dan. – Nunca confiei naquele saca na<br />
arrogante!<br />
– O Will não tem nada a ver com isto, Dan – respondeu, retalhando<br />
com as mãos um lenço de papel.<br />
– Tu discutiste com ele na discoteca. Eu vi-vos.<br />
– Não foi uma coisa séria.<br />
– A mim, pareceu-me bastante sério. – Dan semicerrou os olhos.<br />
Fez-se silêncio. – Por que se separaram tu e Will ?<br />
– Isso não é da tua conta, Dan. Não quero falar sobre isso.<br />
– Ele estava bem furioso quando tu saíste, depois da festa. Pode ter-<br />
-vos seguido, a ti e a Ashley, até aqui a casa. – Seguiu-se mais um longo<br />
silêncio. – Foi Ashley! Ashley fez alguma coisa! – murmurou Dan, por<br />
fim. – O sacaninha! O que aconteceu, Jess?<br />
– Nada. – Cerrou os punhos. – Esquece, Dan.<br />
De novo, uma pausa. Jess recordou a imagem de Ash, ao pé das<br />
grades, perto do portão da praça. A vénia. O ar altivo com que olhara<br />
23
Barbara Erskine<br />
para cima, para a janela do seu apartamento. O beijo soprado. Tentou<br />
tirar a imagem da cabeça, mas ela recusava-se a sair. É verdade que tinha<br />
dançado com ele. Gostava dele; encorajara-o. Quem sabe se não o induzira<br />
em erro. Suspirou, numa profunda lástima. Era um rapaz com<br />
tanto potencial, talhado para as notas mais altas. Se o acusasse, e estivesse<br />
enganada, se não tivesse sido ele, o inquérito da polícia destruí-lo-<br />
-ia por si só. Ash nunca mais se veria livre desse estigma.<br />
– Então, já tomaste a tua decisão. – Dan desistira de fazer perguntas.<br />
– Vais mesmo partir. – Observava-a tão atentamente que ela receou<br />
que lhe estivesse a ler o pensamento.<br />
Jess aquiesceu.<br />
Ele continuou a observá-la ainda alguns segundos, em silêncio.<br />
– Muito bem. Ajudarei a resolver as coisas com Brian. – Parecia<br />
ter resolvido não discutir mais. – Não te preocupes. Vais ter uma excelente<br />
carta de referências, eu próprio me encarregarei de a escrever, se é<br />
isso que queres. Vendo o lado positivo da questão, talvez arranjes um<br />
lugar formidável em algum colégio privado feminino. Mesmo à tua<br />
medida. – Dan deu uma gargalhada curta e crua, e ela franziu o sobrolho<br />
ao súbito rancor daquele tom de voz. – Tira o Verão, Jess – prosseguiu.<br />
– Esquece o que te perturbou tanto, seja lá o que for, e recomeça<br />
no Outono! – Inclinando-se para a frente, tornou a dar-lhe uma palmada<br />
amigável no joelho. – Seja o que for, Jess, ultrapassa isso. Não<br />
penses no assunto. Põe tudo para trás das costas.<br />
24