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CENTRO UNIVERSITÁRIO DA CIDADE DO RIO DE ... - UniverCidade

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<strong>CENTRO</strong> <strong>UNIVERSITÁ<strong>RIO</strong></strong> <strong>DA</strong> CI<strong>DA</strong><strong>DE</strong> <strong>DO</strong> <strong>RIO</strong> <strong>DE</strong> JANEIRO<br />

<strong>UniverCidade</strong><br />

Curso de Bacharelado em Teatro<br />

Da técnica à vivência x Da vivência à técnica:<br />

O processo criativo do ator na busca da presença potente e disponível<br />

para o desenvolvimento do estudo da circunstância<br />

Rio de Janeiro<br />

Novembro/2010<br />

1<br />

Por Alexandre Paz e Michele Cosendey


<strong>CENTRO</strong> UNIVERISTÁ<strong>RIO</strong> <strong>DA</strong> CI<strong>DA</strong><strong>DE</strong> <strong>DO</strong> <strong>RIO</strong> <strong>DE</strong> JANEIRO<br />

<strong>UniverCidade</strong><br />

Curso de Bacharelado em Teatro<br />

Da técnica à vivência x Da vivência à técnica:<br />

O processo criativo do ator na busca da presença potente e disponível<br />

para o desenvolvimento do estudo da circunstância<br />

Trabalho apresentado como Projeto Experimental para conclusão do<br />

Curso de Bacharelado em Artes Dramáticas<br />

do Centro Universitário do Rio de Janeiro - <strong>UniverCidade</strong><br />

Orientadora: Profª Ms. Thereza Cristina da Rocha Cardoso<br />

Rio de Janeiro<br />

Novembro/2010<br />

2


<strong>DE</strong>DICATÓRIA<br />

Dedicamos nossa pesquisa ao nosso Grupo Limiar de Teatro para que esta<br />

nos seja útil e que nos sirva como alimento para nossos futuros trabalhos.<br />

Eu Alexandre Paz, dedico também em partiular, a minha irmã Adriana Fontes<br />

da Paz, que não esteve presente em minha vida durante essa trajetória nesta<br />

universidade mas que sempre serviu de inspiração para todas as minhas<br />

conquistas. Que mesmo que a vida tenha nos separado, as lembranças e a<br />

saudade que fica, me faz tê-la presente em todas as barreiras e dificuldades<br />

que a vida nos apresenta. Assim como, nos momentos de alegria como esse:<br />

Saudade é amor que fica. Amor mais que eterno.<br />

3


AGRA<strong>DE</strong>CIMENTOS<br />

Primeiramente queremos agradecer a Deus. Independente de todas as confusões e<br />

reflexões geradas durante nossa trajetória nesta universidade, sabemos que sem ele<br />

nada teria acontecido.<br />

Aos nossos pais, por compreenderem nossa ausência e sempre nos incentivarem, de<br />

alguma forma, na busca por essa nossa realização.<br />

Aos nossos irmãos, por nos servirem como exemplo de garra e dedicação e por nos<br />

apoiarmos, sempre, por mais que tivéssemos mais distantes.<br />

Aos nossos amigos de longa data, que de alguma maneira, nós sabemos que nos<br />

distanciaciamos por uma necessidade em prol do nosso crescimento artístico durante<br />

esses estudos.<br />

Aos nossos familiares, TO<strong>DO</strong>S, por tudo.<br />

Aos amigos feitos durante esta trajetória na faculdade, muitos, e que muitos levaremos<br />

pra sempre em nossas vidas, em especial a Chico Monjellos, Alessandra Gelio, Natalie<br />

Rodrigues, Daniela Rougemont e Ana Pas, porque esses são PESSOAS E PONTO.<br />

Aos nossos mestres queridos: Fred Tolipan e Kadu Garcia, que parafraseando<br />

Caetano Veloso, podemos afirmar que foram eles que nos fizeram perder o medo da<br />

arte.<br />

Bem como, aos professores que compartilharam conosco desse aprendizado e que<br />

influenciaram muito na pessoa que hoje somos: Maria Assunção, Monica Emilio,<br />

Danuzza Sartori, Vitor Lemos, Andrea Maciel, Marli Santoro, Esther Weitzman e Ana<br />

Luiza Cardoso. E Também aos professores Alex Mello, Helena Varvaki e Oscar<br />

Saraiva, mesmo sem ter tido o prazer de sermos seus alunos.<br />

E obviamente a nossa querida orientadora, Thereza Rocha, por toda disponibilidade<br />

em nos acolher e nos guiar nesta difícil trajetória, e ainda, servindo de alimento para<br />

nosso desejo como artistas.<br />

A vocês, o nosso muitíssimo obrigado.<br />

4


SUMÁ<strong>RIO</strong><br />

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................. 7<br />

2. APRESENTAÇÃO ........................................................................................10<br />

2.1 <strong>DA</strong> TÉCNICA À VIVÊNCIA..............................................................11<br />

2.2 <strong>DA</strong> VIVÊNCIA Á TÉCNICA..............................................................13<br />

3. MEMORIAL <strong>DE</strong> PESQUISA ........................................................................17<br />

4. CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES FINAIS: O DIÁLOGO ENTRE ESSAS DUAS<br />

VERTENTES: O ENCONTRO <strong>DO</strong>S <strong>RIO</strong>S........................................................23<br />

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................26<br />

6. ANEXOS .......................................................................................................29<br />

5


Pesquisa é qualquer coisa que você quiser. É como lembrar de algo<br />

que você já sabe e acabar encontrando algo que você não sabe...<br />

pesquisa é útil enquanto eu sei que é pesquisa e<br />

não começo a pensar que é um trabalho finalizado.<br />

6<br />

Jonathan Burrows


1. INTRODUÇÃO<br />

Nossa inquietação surgiu na disciplina de pré-projeto ministrada pela<br />

Professora Doutora Maria Assunção no final do primeiro semestre do ano de<br />

2010. A problemática colocada em questão abordava um olhar técnico sobre a<br />

atuação: perceber quais pontos específicos no corpo do ator devem ser<br />

acionados para o encontro dos estados necessários do personagem no<br />

momento da cena.<br />

Ao iniciar a pesquisa relativa a esse projeto, já sob a orientação da<br />

Professora Mestra Thereza Rocha, o pesquisador Alexandre Paz percebeu<br />

uma incoerência e um desconforto ao olhar para a criação artística com foco<br />

somente na técnica, sem buscar qualquer apoio na vivência cênica. O<br />

comentário reverberou no mesmo desconforto na pesquisadora Michele<br />

Cosendey e gerou assim a inquietação que acabou se tornando a mais urgente<br />

nos envolvidos nesta pesquisa: Técnica x Vivência.<br />

Este embate entre técnica e vivência passou a ser então o ponto de<br />

interesse desse trabalho de conclusão de curso que ora apresentamos. O tema<br />

trouxe questionamentos do tipo: qual seria o papel da técnica e da vivência no<br />

processo de criação do ator? Devemos optar entre um e outro como ponto de<br />

partida de nossa investigação? Não estariam estas duas dimensões unificadas<br />

em uma só?<br />

Nossa pesquisa consiste em investigar o processo criativo do ator partindo<br />

de dois pontos distintos. Trata-se de dois rios diferentes que escoam no<br />

mesmo lugar: da técnica à vivência/da vivência à técnica. Pretendemos<br />

promover um diálogo entre essas duas vertentes na busca por uma presença<br />

potente e disponível para o desenvolvimento do estudo da circunstância pelo<br />

ator. Quando falamos em ator estamos pensando em corpo e, portanto,<br />

investigando seu aparato físico e psíquico.<br />

Ao longo da leitura do trabalho que se segue, iremos discutir a função da<br />

técnica - a faculdade operativa do ator de articular sua arte de maneira<br />

7


concreta – e a vivência – a faculdade criadora do ator, geradora da vida na<br />

atuação.<br />

Pesquisamos alguns autores e mestres em teatro e dentre eles estarão<br />

presentes nesta pesquisa, os estudos de Constantin Stanislavski 1 e Jerzy<br />

Grotowski 2 . Por percebermos que os questionamentos acerca da vivência e da<br />

técnica eram também uma inquietação de Eugenio Kusnet 3 e Luis Otávio<br />

Burnier 4 , que também fundamentaram suas pesquisas a partir dos trabalhos<br />

dos estudiosos já citados, os dois foram consultados e aparecem como<br />

fundamentação de nossa escrita.<br />

Ao entrarmos no universo da nossa pesquisa, lemos uma citação do Mestre<br />

Stanislavski que nos chamou a atenção. Partindo do princípio de que o ator<br />

deve estar física e psiquicamente disponível, Staniskavski diz que o processo<br />

criador do ator tem um caminho de mão dupla, isto é, de dentro para fora e de<br />

fora para dentro. O teatrólogo russo diz ainda que o ator deve acreditar<br />

sinceramente em cada uma das suas ações físicas para criar a vida física do<br />

seu papel, pois, se o papel não consegue formar-se espontaneamente (de<br />

dentro para fora), este não tem outro recurso senão abordá-lo de maneira<br />

inversa, partindo dos aspectos exteriores para dentro (de fora para dentro).<br />

Para ele, é necessário saber quando, como e porque escolher um ou outro dos<br />

caminhos como ponto de partida.<br />

O papel de Stanislavski nesta pesquisa é o de confirmar e instigar o<br />

seguinte questionamento: conseguiríamos chegar ao nosso objetivo comum –<br />

1 Constantin Siergueieivitch Alexeiev, em russo Константин Сергеевич Станиславский, (Moscou, 5 de<br />

Janeiro de 1863 — Moscou, 7 de Agosto de 1938), mais conhecido por Constantin Stanislavski, foi um<br />

ator, diretor, pedagogo e escritor russo de grande destaque entre os séculos XIX e XX .<br />

2 Jerzy Grotowski (Rzeszów, 11 de agosto de 1933 — Pontedera, 14 de janeiro de 1999) foi um diretor de<br />

teatro polonês e figura central no teatro do século XX, principalmente no teatro experimental ou de<br />

vanguarda.<br />

3 Eugênio Chamanski Kuznetsov (Rússia 1898 - São Paulo SP 1975). Mais destacado ator de formação<br />

stanislavskiana no teatro brasileiro, criador de papéis marcantes e emérito professor de uma geração de<br />

atores nos anos 1960 e 1970.<br />

4 Luís Otávio Sartori Burnier Pessôa de Mello (São Paulo SP 1956 - Campinas SP 1995). Diretor e ator.<br />

Intérprete e performer de largos recursos, ligado à antropologia teatral, um dos fundadores e líder do<br />

grupo LUME.<br />

8


uma completa disponibilidade e despojamento em cena –, usando, cada um<br />

dos envolvidos nesse trabalho, caminhos distintos no processo criativo do ator?<br />

Acreditamos que em ambos os percursos devemos ter extrema sinceridade<br />

e sensibilidade para perceber quais mecanismos estão sendo utilizados, se<br />

estamos sendo fiéis aos processos propostos sem, no entanto, nos limitarmos<br />

a eles. Pois ao mesmo tempo em que escolhemos cada um embarcar em sua<br />

canoa e navegar em rios diferentes, não negamos qualquer caminho que seja<br />

investigado, apenas queremos perceber se é possível fazermos esse diálogo e<br />

em que momento esses dois rios irão se cruzar, se é que eles de fato estão<br />

separados.<br />

Não temos a menor pretensão de competir nessa busca ou de descrever o<br />

método adequado para a vivência cênica. Queremos apenas investigar, refletir,<br />

perceber, questionar e dividir essa experiência com todas as dúvidas e<br />

incertezas que permearam nossa pesquisa.<br />

9


2. APRESENTAÇÃO<br />

Essa pesquisa discute o papel da técnica e da vivência no processo de<br />

criação do ator na busca de uma presença viva e potente para o momento da<br />

cena. Ao realizarmos esta pesquisa, percebemos que a dualidade entre<br />

vivência e técnica já vem sendo discutida por alguns estudiosos ao longo do<br />

tempo.<br />

“(...) dois aspectos tão importantes para o processo criativo em teatro, os<br />

dois pólos que dão a um espetáculo o seu equilíbrio e a sua plenitude: a<br />

forma de um lado e o fluxo da vida de outro, as duas margens que<br />

permitem o rio fluir velozmente, sem as quais haveria só um pântano.”<br />

(RICHARDS, 1993: p. 32)<br />

Com o objetivo de perceber o papel dessas dimensões no trabalho do<br />

ator, mergulhamos em autores que nos deram material para aprofundamento<br />

da nossa pesquisa.<br />

Em seus estudos, Luis Otávio Burnier, ressalta que tanto a técnica, que<br />

é denominada por ele de dimensão mecânica, quanto à vivência, denominada<br />

como dimensão interior, possuem naturezas distintas e podem ser trabalhadas<br />

separadamente e de diferentes maneiras. A experiência do encontro dessas<br />

dimensões não constitui um ponto de partida, mas sim o ponto de chegada do<br />

ator. Para ele, se por um lado o ator necessita de técnica, sem o quê não há<br />

arte, por outro, durante o fazer teatral, não pode fazê-lo sem vida.<br />

Acreditamos também que não haja um lugar exato e correto onde o ator<br />

deve partir na criação de seu trabalho, não há uma fórmula que sirva para<br />

todos em qualquer situação, não há uma única regra, portanto, o caminho da<br />

criação torna-se uma escolha do criador em busca do encontro dessas<br />

dimensões.<br />

Em nossa perspectiva, buscamos tratar esse ponto de chegada do ator,<br />

conforme denominado por Burnier, como um estado de presença vivo e<br />

potente, que lhe permita buscar uma qualidade verdadeira e sincera para a<br />

vivência cênica no momento do estudo da circunstância. Entendemos como<br />

estudo da circunstância o momento que se dá durante uma cena, o jogo de<br />

relação entre atores num determinado espaço e tempo. A circunstância é a<br />

10


verdade, isto é, a realidade da vida do personagem dentro de uma situação<br />

específica. Este termo utilizado nos conduz a entender que durante uma cena,<br />

os atores buscam estudar a trajetória a ser percorrida e, assim, nunca há um<br />

trabalho pronto e finalizado, mas sempre uma descoberta no momento em que<br />

ele acontece.<br />

O trabalho que aqui se apresenta investiga dois caminhos escolhidos<br />

pelos pesquisadores na busca desse ponto de chegada.<br />

2.1 <strong>DA</strong> TÉCNICA À VIVÊNCIA<br />

Antes de iniciar este tópico, é necessário esclarecer que esta pesquisa<br />

não visa à elaboração de uma técnica para o ator, muito longe disso. O que<br />

queremos é perceber os mecanismos corpóreos que poderão ser acionados<br />

através de exercícios de treinamento aprendidos e estudados durante nosso<br />

percurso na faculdade 5 , que nos levem a uma possível consciência corporal,<br />

aplicados na busca pela vivência cênica.<br />

A partir disto, entramos em alguns questionamentos: Como falar de<br />

técnica sem ter domínio especificamente sobre alguma? O que seria então<br />

essa técnica que estamos mencionando? Será que podemos definir alguma<br />

neste trabalho? Claro que não, respondemos com muita sinceridade. Não<br />

temos domínio sobre nenhuma técnica específica do ator e também<br />

acreditamos que não existe uma fórmula correta a ser descrita. Acreditamos<br />

sim que o corpo precisa ser muito bem treinado até estar disponível para o jogo<br />

cênico. Talvez seja essa nossa definição de técnica aqui nesta pesquisa e que<br />

tentaremos, ao longo do texto, explicar de maneira mais clara.<br />

5 Desde o início do nosso percurso nesta universidade, trabalhamos com o treinamento<br />

energético¹ na dilatação do corpo para o alcance do estado de presença necessário para se<br />

estar em cena. Percebíamos que quando estávamos realizando este treinamento que<br />

denominamos, por aproximação com a perspectiva de Jerzy Grotowski, também de ―exercício<br />

de exaustão‖, o corpo se tornava mais vivo e dilatado para o jogo cênico, proporcionando desta<br />

forma uma maior percepção e sensibilidade para o alcance de uma presença cênica. Este<br />

exercício tem como objetivo fazer com que o ator atinja o estado de esgotamento conseguindo<br />

assim ―limpar‖ o corpo de energias ―parasitas‖ (sem energia), ocasionando seu encontro com<br />

novas fontes de energias, mais profundas e orgânicas, afastando-o possivelmente do ambiente<br />

mecânico e dos clichês pessoais do corpo cotidiano.<br />

11


No livro A Arte de Ator (ANO: 2009), o pesquisador Luis Otávio Burnier,<br />

fundador do Grupo Lume 6 , diz que o instrumento de trabalho do ator não é<br />

simplesmente seu corpo. Sendo assim, usa uma definição que nos chamou<br />

muito a atenção, que é o corpo-em-vida. Para ele a técnica, então, para ser<br />

trabalhada deverá ser definida como uma técnica-em-vida, pois de nada serve<br />

o ator trabalhar seu corpo se não constituir um meio pelo qual entrar em<br />

contato consigo mesmo. A atriz pesquisadora Raquel Scotti 7 assim define:<br />

―Técnica, para mim, é saber compreender e manipular a energia de maneira<br />

mais apropriada para cada situação.‖ (RAQUEL SCOTTI APU RENATO<br />

FERRACINI, ANO: 2006, p. 113)<br />

Para nós, este processo num primeiro momento visa à importância do<br />

treinamento, ou seja, a prática que trabalha o ator através de exercícios8 que<br />

preparem seu instrumento de trabalho. Este exercício nos possibilita trabalhar<br />

nosso instrumento de trabalho com tempo, ritmo, qualidades de movimentos<br />

(leve, pesado, denso, suave etc.) e manipulação de energias, fazendo com que<br />

no momento do estudo da circunstância, possamos trabalhar essas variações a<br />

partir das ações físicas escolhidas e das que serão descobertas. Essas ações<br />

vem sendo estudadas por grandes Mestres de Teatro.<br />

Para Grotowski, o Método das Ações Físicas foi a maior descoberta feita<br />

por Stanislavski. Para ele, cada ação pode ser colocada em forma, em ritmo,<br />

podendo vir a ser, mesmo a mais simples, uma estrutura, uma partícula de<br />

interpretação perfeitamente estruturada, organizada, ritmada. A arte do ator<br />

não está em o que ele faz, mas em como ele faz.<br />

6 Idealizado por Luís Otávio Burnier e fundado por ele junto do ator Carlos Simioni e da musicista Denise<br />

Garcia, o LUME é reconhecido como um dos mais importantes centros de pesquisa teatral do Brasil e do<br />

mundo. Como núcleo artístico e pedagógico vinculado à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),<br />

trabalha na elaboração de novas possibilidades expressivas corpóreas e vocais de atuação,<br />

redimensionando o teatro enquanto ofício e poética.<br />

7 Nascida em Brasília (DF), trabalha desde 1993 como atriz-pesquisadora do LUME, onde desenvolve<br />

pesquisas na codificação, sistematização e teatralização de técnicas corpóreas e vocais não-interpretativas<br />

do ator.<br />

8 Mesmo exercício descrito na nota n o 5 desse texto.<br />

12


Segundo o Dicionário Aurélio (ANO: 1987), do ponto de vista<br />

psicológico, a palavra ação significa ―processo que decorre da natureza ou da<br />

vontade de um ser, o agente, e de que resulta criação ou modificação da<br />

realidade‖. Essa noção nos ajuda a compreender melhor o seu sentido no<br />

contexto teatral.<br />

Para nós pesquisadores, acreditamos que a ação física seja o elemento<br />

essencial para o ator. A ação física pode ser definida como qualquer atividade<br />

preenchida de alguma intenção, vontade, desejo, anseio, determinação –<br />

objetivo – que seja essencial para o desenrolar do percurso da personagem no<br />

drama. Caso contrário, esta deixará de ser ação física, pois não terá a menor<br />

funcionalidade.<br />

muscular:<br />

O teatrólogo polonês confirma que essa ação é como um estado<br />

Normalmente quando o ator pensa nas intenções, pensa que se trata<br />

simplesmente de bombear (romper) em si um estado emocional. Não é isso<br />

(...) Não é um estado psicológico, é algo que se passa a um nível muscular<br />

no corpo, e que sempre está conectado a algum objetivo fora de si.<br />

(GROTOWSKI APU RENATO FERRACINI, ANO: 2006, p. 95)<br />

Para ele o corpo possui uma memória muscular que deve ser ativada<br />

para fixar a organicidade da ação.<br />

Acreditamos, então, que o objetivo da técnica que aqui mencionamos é<br />

desenhar o corpo e modelar, lapidar, direcionar e ―domar‖ suas energias,<br />

tornando-o disponível e maleável para o trabalho cênico. Mas para isto, afirma<br />

Burnier, a repetição do trabalho do ator é a palavra-chave. Conseguindo a<br />

repetição das ações de maneira exaustiva, conseguirá fazê-las corporalmente<br />

com a mesma sinceridade. E caso elas se percam durante o processo, será<br />

necessário descartá-las, pois se tornarão ações mecânicas.<br />

Não importa o caminho a ser trilhado, ou melhor, a técnica que seja mais<br />

estimulante para o ator no encontro dessa vivência cênica. O fato é que o ator<br />

precisa se preocupar em estar disponível para que no momento do jogo cênico,<br />

ele possa a partir das ações físicas perceber como ele faz, modela, articula, dá<br />

forma as suas intenções, a seus impulsos interiores, ou melhor, em como isso<br />

pode tomar corpo e forma, articulando e transformando essas ações em<br />

orgânicas, isto é, encontrando e dinamizando essas ações em um fluxo de<br />

vida.<br />

13


2.2 <strong>DA</strong> VIVÊNCIA Á TÉCNICA<br />

No livro Ator e Método (ANO: 1997), quando Eugenio Kusnet aprofunda<br />

seus estudos no Método de Stanislavski, evidencia uma dualidade do ator na<br />

experiência de vivenciar um personagem. Em cena, o ator nunca poderá deixar<br />

de ser ele mesmo para ser integralmente outro. Ou seja, ele aceita e assume<br />

os problemas do personagem e age com sinceridade na busca de se<br />

comunicar com o público revelando sua existência, vivenciando ali sua<br />

problemática.<br />

Fora da literatura dramática, o personagem só existe na dramaturgia<br />

cênica se comunicando com os outros personagens. Cabe ao ator, portanto,<br />

entender de que forma se apropriar com sinceridade da circunstância que se<br />

propõe a viver, construindo uma lógica de ação para a vivência cênica,<br />

acreditando legitimamente no drama que será vivenciado. Assim, ele servirá de<br />

meio para o contato do personagem com a platéia.<br />

Segundo Kusnet, o bom ator é aquele que nos convence da realidade<br />

que propõe apresentar. O que não significa convencer o espectador da<br />

realidade material da vida, ou seja, mostrar como dorme, anda, come, ama,<br />

chora etc., mas sim, apresentar o que o personagem quer, pensa e para que<br />

vive. Para convencer alguém de alguma coisa é necessário que antes nós<br />

mesmos acreditemos naquilo que queremos convencer. Para isso, entramos<br />

em contato com um dos elementos fundamentais do trabalho do ator<br />

apresentando por Stanislavski: Fé cênica.<br />

Em seus escritos, Kusnet, esclarece uma possível confusão em torno<br />

desse termo. Fé cênica não significa perder o senso da realidade, não se trata<br />

de uma fé tão real ao ponto de perder o contato com a realidade do mundo<br />

objetivo que o cerca no palco: ―Não quer dizer que o ator deve entregar-se no<br />

palco a uma espécie de alucinação, e que ao representar o seu papel ele deve<br />

perder a noção da realidade, tomando, por exemplo, peças do cenário por<br />

árvores verdadeiras etc.‖ (STANISLAVSKI APU KUSNET, ANO: 1997 P. 09).<br />

Fé cênica é o estado psicofísico que nos possibilita a aceitação espontânea de<br />

uma situação a partir da apropriação de objetivos alheios como se fossem<br />

nossos: ―Chamamos de verdade cênica aquilo que não existe, mas que poderia<br />

14


existir.‖ (Op. cit: p. 09). É a partir da aceitação de uma determinada situação do<br />

drama como se fosse sua que o ator agirá em favor do personagem.<br />

Assim, partimos para outro principio fundamental no trabalho do ator, o<br />

qual, Kusnet, afirma ser o fator mais importante do trabalho do ator: a ação.<br />

Segundo o dicionário, a palavra ator tem como significado: agente do ato,<br />

aquele que age. Seguindo a perspectiva, o verbo do ator é portanto ação.<br />

Tornando necessário para o trabalho do ator a construção de uma lógica da<br />

ação.<br />

Lógica da ação, conforme o próprio Kusnet apresenta em seu livro,<br />

também é outro fator fundamental na construção da vivência cênica. É através<br />

desta lógica que o ator consegue construir e entender: Qual é a situação? Qual<br />

o objetivo? Qual é a atitude que pode ser tomada diante da situação e dos<br />

objetivos da personagem? Essas perguntas formam o princípio do trabalho do<br />

ator, permitindo que ele possa iniciar um aprofundamento no seu trabalho de<br />

criação na busca de uma apropriação dos estudos das circunstâncias.<br />

É importante entender que a ação sempre é contínua e nunca é<br />

interrompida, ou seja, nunca deixamos de agir: “O nosso hoje é apenas o<br />

resultado do movimento do nosso ontem em direção ao nosso amanha.” (Op.<br />

cit: p. 22). O que podemos perceber através desta citação do mestre russo em<br />

relação ao fato da ação ser sempre contínua é que o ator, durante os estudos<br />

das circunstâncias, não deve se preocupar tanto com a ação do presente, mas<br />

sim em se preocupar em preencher a ação anterior (antecedente) e a ação<br />

posterior (objetivo). Se o que fazemos hoje é resultado do ontem em direção ao<br />

amanhã, a ação do presente, o hoje, irá fluir automaticamente preenchida por<br />

essas informações. Essa ação contínua é que permite dar espessura à<br />

personagem, de maneira que não se apresente de forma simplificada a<br />

problemática do mesmo no momento da cena.<br />

Outro fator importante para a apropriação da circunstância da<br />

personagem em confronto com os elementos fundamentais já citados é o<br />

objetivo. Não há ação sem objetivo. Quando agimos é sempre pra conseguir<br />

alguma coisa, sempre desejamos algo. Ou queremos alguma coisa ou<br />

queremos não querer alguma coisa, mas sempre queremos, portanto, no palco<br />

como na vida, sempre há um objetivo. É o objetivo da personagem que<br />

estimula o ator a agir dentro das circunstâncias propostas.<br />

15


Entendendo a circunstância proposta preenchida com a construção<br />

desses fatores principais para elaboração da vivência cênica, o ator precisa<br />

tomar para si esta criação para mergulhar no universo que será estudado.<br />

Conforme dito no inicio desse tópico, o ator serve de meio para comunicação<br />

da personagem com o espectador, cabendo a ele, se colocar no papel do<br />

personagem agindo com sinceridade para vivenciar o que é proposto.<br />

Essa pesquisa, não tem o intuito de descrever detalhadamente o método<br />

desenvolvido por Stanislavski, que de alguma forma aqui se apresenta através<br />

de estudos de Kusnet. O que é valioso de ser tratado aqui são os fundamentos<br />

básicos que permitem que o ator esteja disponível para vivenciar numa<br />

experiência teatral, em diálogo com uma inteligência externa, a do autor, para<br />

encontrar uma qualidade cênica que se deseja atingir em uma construção<br />

artística.<br />

Neste sentido, quando o ator consegue se apropriar desses elementos<br />

fundamentais que o possibilitam agir dentro de uma vivência cênica, o trabalho<br />

avança desse universo interno e vai de encontro ao universo externo, ou seja,<br />

sendo necessário ir de encontro à técnica. Isso permite-lhe entender e ajustar o<br />

que pode se tornar relevante e mais interessante a uma determinada criação<br />

artística.<br />

Uma sensação produzida espontaneamente, através da vivência, pode<br />

também ser encontrada através de um raciocínio lógico para provocar uma<br />

determinada sensação. O ator, nunca poderá perder de vista a coexistência<br />

natural desses dois aspectos (a vivência e a técnica), pois só assim é possível<br />

tornar a criação realmente interessante, bem como, validando o que<br />

Stanislavski apresenta como o maior objetivo do teatro: ―A arte dramática é a<br />

capacidade de representar a vida do espírito humano, em público e em forma<br />

estética.‖ (Op. cit: p. 06)<br />

16


O início<br />

3. MEMORIAL <strong>DE</strong> PESQUISA<br />

No nosso 1º encontro com a orientadora Thereza Rocha falamos sobre<br />

nosso pré-projeto que consistia até então em pesquisar quais os mecanismos<br />

corpóreos que o ator deve acionar no momento da cena para o alcance o<br />

estado necessário para a vivência cênica: muitas dúvidas e inquietações. Não<br />

sabíamos, por exemplo, o texto com o qual gostaríamos de trabalhar. Nossa<br />

Orientadora sugeriu o texto ―Mão na luva‖ de Oduvaldo Viana Filho que poderia<br />

nos ajudar, pois os personagens ora estavam no presente, ora estavam no<br />

passado, o que se encaixava com nossa problemática de pesquisa até esse<br />

momento. Lemos o texto no mesmo dia, porém continuávamos na dúvida se<br />

iríamos fazê-lo. Mesmo com a dúvida, resolvemos partir para a parte da criação<br />

e escolhemos algumas partes do texto e os momentos de cena que<br />

gostaríamos de trabalhar.<br />

Começamos escolhendo, cada um, cinco estados diferentes, com foco<br />

nos movimentos: leve, forte, pesado, rápido em diferentes ritmos, e fomos para<br />

sala de ensaio trabalhar a partir da exaustão. A proposta era trabalhar<br />

separadamente, para que pudéssemos perceber individualmente as sensações<br />

que eram geradas a partir dos estados em confronto com os movimentos, para<br />

que, assim, pudéssemos registrar no corpo as sensações produzidas pelo<br />

exercício e acessá-las na hora da cena.<br />

Percebemos que mesmo trabalhando separadamente, uma vez que<br />

dividíamos o mesmo espaço de trabalho, éramos atingidos pelo estado do<br />

outro em alguns momentos. De alguma forma, isso foi interessante de<br />

perceber, pois estávamos disponíveis ao jogo com o outro, mesmo que não<br />

fosse essa a proposta de trabalho naquele momento. Mesmo a proposta sendo<br />

trabalhar individualmente, havia uma troca que favorecia a relação para<br />

vivência cênica, no entanto, sabíamos que o que queríamos trabalhar era a<br />

transição rápida dos estados, de forma que essa transição acontecesse ao<br />

mesmo tempo em ambos os atores que praticavam o exercício.<br />

17


Ao final, nos questionamos se conseguimos transitar rapidamente de um<br />

estado de vivência para o outro ou se era necessário haver uma transição<br />

natural para essa mudança. Chegamos à conclusão que de fato existia essa<br />

transição natural, ou seja, conforme a necessidade do momento. Nos<br />

questionamos se era isso o que de fato queríamos. Pensamos em nossa<br />

proposta e percebemos que o nosso desafio era fazer uma transição rápida,<br />

brusca, de um estado de vivência para outro estado oposto. A cena escolhida<br />

pra ser trabalhada também contribuía para essa necessidade de uma transição<br />

rápida e instantânea para nossa pesquisa, tendo em vista que a cena<br />

contemplava momentos em que os personagens estavam em tempos<br />

diferentes de sua relação, ora no passado, ora no presente.<br />

Propusemos então um jogo de improvisação onde tínhamos como objeto<br />

uma garrafa e dois copos e, assim, tínhamos uma regra que seria de transitar<br />

rapidamente nos estados de vivência a partir da proposta que um jogador<br />

propusesse ao outro.<br />

O jogo de improviso foi difícil de acontecer porque de certa forma não<br />

acreditávamos nas transições rápidas e instantâneas de mudanças de estados<br />

de vivência que eram propostas. Mal começávamos a experimentar um estado,<br />

da cena e do tempo presente, já quebrávamos para outro estado. Essa quebra<br />

imediata que se dava de forma surpreendente nos desconcentrava e<br />

percebíamos que não havia verdade no que fazíamos. Quando começamos a<br />

perceber a mecânica, o jogo passou a ser diferente por conta da nossa<br />

generosidade em não deixar o jogo acabar. Por mais que oscilássemos entre<br />

os estados de vivência no momento do jogo, e no tempo da ação da cena<br />

(presente e passado), de forma ágil, tentávamos buscar uma coerência dentro<br />

da proposta do jogo.<br />

Fizemos a cena contendo três momentos do casal da peça<br />

repetidamente e encontramos alguns momentos cênicos bem interessantes.<br />

Apesar disso, acreditamos que esse foi o início do nosso primeiro equívoco na<br />

pesquisa. Nossa preocupação estava em fazer uma cena para apresentar para<br />

nossa Orientadora e não de aprofundar nossa pesquisa a partir do seu objeto.<br />

18


1º equívoco<br />

Quando fizemos nossa apresentação na aula de orientação,<br />

percebemos que não era esse o foco da nossa pesquisa. Apresentamos uma<br />

cena bastante realista e sabíamos que não era essa nossa vontade; queríamos<br />

trabalhar algo que pudesse ter uma teatralidade mais revelada, onde<br />

pudéssemos trabalhar construindo nossos discursos em composições a partir<br />

da utilização de todos os elementos possíveis da cena. Não era essa<br />

linguagem que de fato gostaríamos de trabalhar nessa pesquisa. Mas, como<br />

não sabíamos o que de fato queríamos, nossa preocupação recaiu no<br />

equivocado bom resultado como cena em detrimento do processo. Nossa<br />

orientadora, então, com seu olhar sutil e experiente, nos alertou de nosso<br />

equívoco.<br />

A crise<br />

Nos questionamos muito a respeito de qual era de fato nossa<br />

inquietação, duvidando inclusive se deveríamos continuar juntos nessa<br />

pesquisa, pois o que aconteceu na cena provocava um certo desconforto em<br />

ambos os pesquisadores. Afinal, não sabíamos como seria o início da criação<br />

do trabalho e nos perguntávamos acerca de qual deveria ser o ponto de<br />

partida. Percebemos então que, na pesquisa, um de nós gostaria de investigar<br />

uma questão técnica a fim de encontrar a vivência e o outro, uma questão que<br />

parte da vivência para encontrar a técnica. Percebemos assim que nossas<br />

inquietações não eram as mesmas, o que tornava necessário, embora difícil de<br />

aceitar, que nos separássemos. Acreditávamos que era melhor cada um seguir<br />

separadamente na sua pesquisa.<br />

A volta<br />

No encontro seguinte com Thereza, informamos a ela a decisão de<br />

seguirmos cada um com sua pesquisa, ou seja, estaríamos encerrando este<br />

projeto e começando os dois separadamente dois projetos diferentes, uma vez<br />

19


que um queria pesquisar a técnica para chegar à vivência e o outro a vivência<br />

para chegar à técnica. Quando apresentamos para nossa orientadora nosso<br />

dilema, ela, com sua bela sutileza, nos apontou um possível exagero de<br />

avaliação de nossa parte e disse: ―Acho que vocês estão sendo muito<br />

precipitados!‖. Tentamos convencê-la de que não queríamos a mesma coisa,<br />

explicando as dúvidas que permeavam nossa inquietação. Ela sorriu e nos<br />

disse que talvez essa fosse de fato a nossa questão, o embate<br />

vivência/técnica, e nos fez refletir sobre nossa decisão.<br />

Conversamos por mais de meia hora e decidimos reatar nossa parceria<br />

neste trabalho porém com uma nova proposta: cada um iria aprofundar no que<br />

queria e iríamos perceber se de fato conseguiríamos chegar num objetivo<br />

comum que era uma presença potente e viva em cena, fazendo dialogar então<br />

essas duas vertentes possíveis da criação: da técnica à vivência e da vivência<br />

à técnica.<br />

O encontro com Caio<br />

Caio Fernando Abreu sempre foi um autor de muita admiração por nós.<br />

Havíamos conhecido sua escrita durante nossa trajetória nesta instituição e nos<br />

apaixonamos por ela. Reconhecemos nos textos desse autor uma beleza ímpar<br />

ao tratar do ser humano. Nesta nossa volta como pesquisadores de uma só e<br />

mesma monografia, relembramos de um conto que já havíamos lido e que<br />

também já havia despertado nossa curiosidade no sentido de se trabalhar e<br />

aprofundar seu universo na criação teatral. Relemos então o conto Linda, uma<br />

história horrível, de sua autoria. Foi impactante reler esse conto após a crise<br />

porque passamos em decidir se iríamos ou não permanecermos juntos. Trata-<br />

se de uma história de um filho que vai reencontrar uma mãe que não vê há<br />

muito tempo. De certa forma, o conto fala de separação e de reencontro, o que<br />

poderia vir a somar e contribuir vivencialmente de modo rico como reflexo<br />

desse nosso processo.<br />

20


Da prática<br />

Nossa pesquisa de criação começou a partir do momento em que<br />

decidimos aplicar nossa pesquisa no conto de Caio Fernando Abreu: Linda,<br />

uma história horrível. Trata-se de uma narrativa em terceira pessoa de um<br />

drama de dois personagens, uma narrativa feita por um personagem não<br />

existente fisicamente no drama.<br />

Em um primeiro momento fizemos uma divisão do texto escolhido em<br />

pequenos fragmentos. Após essas divisões fragmentárias, fizemos uma<br />

adaptação da narrativa para a construção de uma estrutura dramática com<br />

diálogos, onde a narrativa passava a ser uma rubrica, uma indicação ou<br />

mesmo um monólogo interior das personagens que eram apresentados.<br />

Neste momento, percebemos que os personagens que se apresentavam<br />

no conto, uma mãe e um filho, não nos favoreciam nesta pesquisa, pois<br />

sabiamos que a possibilidade de acreditarmos em uma relação maternal era<br />

inviável no meio dos nossos estudos. Resolvemos então adaptar este conto<br />

para relação de um homem e mulher, marido e mulher separados que se<br />

reencontram depois de um longo tempo afastados.<br />

Feita esta adaptação o nosso processo de criação se deu de duas<br />

maneiras: a pesquisadora Michele Cosendey buscando um olhar externo, vindo<br />

da técnica, enquanto que o pesquisador Alexandre Paz buscava uma criação a<br />

partir da vivencia, uma visão interna, conforme referência teórica apresentada<br />

nesta pesquisa nos itens 2.1 e 2.2, respectivamente.<br />

Neste momento o trabalho se dava da seguinte forma para cada um dos<br />

envolvidos nesta pesquisa:<br />

Alexandre Paz (seu ponto de vista)<br />

O processo de criação deste trabalho percorria o caminho da<br />

apropriação da circunstância da personagem através de uma construção<br />

baseada nos estudos de Kusnet. Foi preciso construir e entender dentro da<br />

situação proposta, as perguntas fundamentais para a aproximação e o<br />

entendimento do personagem em questão.<br />

Quando entrávamos na sala de ensaio, a minha preocupação primordial<br />

era voltar minha concentração para a circunstância da personagem. Entender o<br />

21


drama que ali se apresentava para me permitir inserir-me dentro daquela<br />

circunstância. Assim, começar a desenvolver e escolher o que seria mais rico<br />

para a criação, experimentando dentro da circunstância, vivenciando naquela<br />

problemática, todos os elementos possíveis que o meu olhar de fora pode<br />

gerar.<br />

Falamos de solidão, mas saber somente desta informação não era o<br />

suficiente. Era necessário que eu construísse uma linha lógica de antecedente<br />

para experimentar a circunstância da personagem: O que levou esse<br />

personagem à solidão? O que de mim, Alexandre, há em torno desse tema? O<br />

que de mim, eu descubro dentro desta circunstancia? O que promove uma<br />

busca de acolhimento no meio dessa solidão? O que aconteceu antes dessa<br />

circunstância? O que o personagem quer e conseqüentemente o que eu<br />

quero? Ter a resposta para essas perguntas me disponibilizava a vivenciar o<br />

que era proposto de forma sincera dentro do estudo das circunstância cênicas<br />

propostas.<br />

A partir do momento em que estas informações estavam preenchidas, o<br />

próximo passo era fazer um bom aquecimento, através de alongamento e de<br />

exercícios de exaustão 9 , e experimentar possibilidades de vivência dos estados<br />

possíveis à cena.<br />

Nosso intuito era trabalhar composições. Composições de elementos<br />

que pudessem dialogar em prol do nosso discurso, ou seja, aquilo que<br />

queríamos levantar como inquietação dentro da cena. Cumprido a etapa<br />

anteriormente descrita, eu confrontava o que havia trabalhado com o fragmento<br />

do texto e buscava escolher as ações que seriam interessantes valorizar, o que<br />

eu achava valioso de discutir dentro da cena. Bem como, escolhia: ritmos,<br />

qualidades de movimentos e estados que me motivavam a agir dentro da<br />

vivência.<br />

Eis o momento em que dentro do meu processo eu vou ao encontro da<br />

técnica, quando eu busco olhar de fora, com um raciocínio lógico, e escolher<br />

como eu vou vivenciar o que é proposto.<br />

9 Para descrição mais detalhada desses exercícios, observar nota n o 1 desse estudo.<br />

22


Michele Cosendey (seu ponto de vista)<br />

O processo de criação seu deu a partir de algumas leituras do conto<br />

para aproximação do contexto que era proposto. Assim, entendendo um pouco<br />

o universo da personagem, construí uma composição na qual os únicos<br />

elementos concretos eram um aparelho de som, duas xícaras e um banco. As<br />

janelas e a mesa cenográficas, bem como o cachorro presente na<br />

circunstância, eram desenhados no espaço de cena. Nessa construção percebi<br />

o vazio dessa mulher na espera de anos pelo filho e resignifiquei esse vazio<br />

com a ausência também de elementos concretos e sua substituição pela<br />

sugestão dos desenhos.<br />

Quando resolvemos adaptar o conto para o encontro de uma mulher<br />

com seu ex-marido, decidi então a partir desse vazio que estava pesquisando<br />

resignificar outros elementos que fariam mais sentido no contexto agora<br />

escolhido. Foi então que escolhi apenas uma mala e algumas rosas para<br />

compor este universo.<br />

Conforme apresentado anteriormente, nessa pesquisa eu gostaria de<br />

partir da técnica, não de uma técnica propriamente dita, mas de exercícios que<br />

poderiam me ajudar antes e durante o percurso do personagem no drama.<br />

Comecei então trabalhando com o exercício de exaustão 10 e, a partir disto,<br />

trabalhei também as qualidades de movimentos (leve, pesado, denso, suave...)<br />

possibilitando a manipulação de energias, fazendo com que, no momento do<br />

estudo da circunstância, eu pudesse trabalhar essas variações a partir das<br />

ações físicas escolhidas e descobertas por mim.<br />

Logo no inicio da cena, após o preparo do meu aparato físico e psíquico<br />

a partir do treinamento, escolhi a primeira ação física desta mulher que era<br />

lembrar desse abandono. Assim escolhi as qualidades de movimento leve e<br />

fluido aumentando o ritmo até chegar num estado bem mais denso. Durante<br />

sua execução, eu ia percebendo quais as sensações que (me) aconteciam.<br />

Variei com a escolha das qualidades dos movimentos para que eu pudesse<br />

optar por qual seria mais apropriada para cada momento. E assim foi durante<br />

toda a construção da cena: escolher as qualidades dos movimentos a serem<br />

trabalhadas, variá-las e, a partir da ação física, encontrar o fluxo de vida da<br />

10 Mesmo exercício descrito na nota n o 5 desse texto.<br />

23


minha personagem, tendo a generosidade de como atriz criadora de perceber<br />

durante a vivência o que era encontrado e o que poderia ser modificado. Foi<br />

então que me peguei por diversas vezes fazendo os dois caminhos aqui<br />

pesquisados.<br />

Construímos, assim, nosso trabalho prático com muito diálogo e troca<br />

durante o tempo inteiro. Percebendo o que acrescentava e o que não era<br />

necessário, e entendendo que era preciso muita generosidade um com o outro<br />

para juntos construirmos nossa pesquisa que pretendemos continuar a<br />

descobrir e aprofundar em todas as vertentes que permearam este trabalho.<br />

24


4. CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES FINAIS<br />

O DIÁLOGO ENTRE ESSAS DUAS VERTENTES:<br />

O ENCONTRO <strong>DO</strong>S <strong>RIO</strong>S<br />

Conforme já foi apresentado anteriormente, nessa pesquisa o que mais<br />

nos inquietava era descobrir um melhor caminho para atingirmos um ponto de<br />

chegada comum entre dois atores que participam de uma mesma criação<br />

partindo entretanto de pontos de partida distintos. Desta forma, construímos<br />

como imagem para nosso trabalho o percurso de dois rios diferentes que irão<br />

escoar num mesmo lugar. Assim, seguimos nossa viagem em meio a estudos<br />

teóricos e experiências de criação, tentando buscar auxílio em pensadores que<br />

pudessem nos guiar nessa navegação.<br />

Durante nossa pesquisa, dialogamos muito sobre o que era lido em<br />

relação à técnica e o que era lido em relação à vivência. O que muitas vezes<br />

podíamos perceber era o fato dessas duas vertentes dependerem uma da<br />

outra, ou seja, de imediato pudemos perceber a necessidade de ambas dentro<br />

de uma criação artística. Chegamos então à conclusão de que para nós não há<br />

teatro sem vivência e sem técnica.<br />

Stanislavski diz que: ―a arte dramática é a capacidade de representar a<br />

vida do espírito humano, em público e em forma estética.‖ (ANO: p. 1997)<br />

Desta forma, não estaríamos fazendo teatro se não tivéssemos total controle<br />

sobre o que estamos fazendo. A técnica permite fazer com que saibamos<br />

utilizar nosso material psicofísico de forma consciente no fazer teatral. Caso<br />

contrário não estaríamos ali vivenciando um ato teatral, mas sim, apenas<br />

experimentando qualquer coisa que podemos tratar na vida, perdendo qualquer<br />

função estética e comunicação atrelada ao objetivo do teatro.<br />

Percebemos então que não há um rio que seja diferenciado do outro em<br />

relação à qualidade, não há um caminho melhor a se percorrer. Pudemos<br />

perceber entretanto que existe um caminho melhor para cada indivíduo, e<br />

portanto, é necessário cada ator descobrir o ponto de partida mais adequado<br />

para a sua criação; saber qual o rio que o fará embarcar na navegação. Quer<br />

estejamos construindo nossa criação partindo da vivência cênica, quer partindo<br />

25


de uma técnica especifica, em um determinado momento será necessário<br />

encontrar a outra vertente desse embate. E muitas das vezes nessa pesquisa<br />

nos percebemos navegando de um rio para o outro e percebemos que é<br />

preciso ter muita generosidade como atores-criadores para se permitir criar por<br />

ambos caminhos.<br />

Durante nosso processo de trabalho, percebemos que por mais que<br />

estivéssemos nos propondo iniciar nosso trabalho por caminhos diferentes na<br />

criação, esbarramos em um ponto essencial para o encontro dessas duas<br />

vertentes: a ação física.<br />

Como citado nos itens anteriores, a ação física é o elemento primordial<br />

para o ator, pois é por meio dela que ele comunica sua vida. Então<br />

percebemos que não importa o caminho que seja mais estimulante de criação<br />

para o ator. O fato é que para a vivência e a técnica dialogarem, o ator precisa<br />

se preocupar em como ele faz, modela, articula, dá forma às suas intenções, a<br />

seus impulsos interiores, ou ainda, em como essas intenções tomam forma,<br />

podendo assim encontrar sua organicidade. Percebemos então que esse era o<br />

ponto em comum nessa pesquisa. Não poderíamos alcançar o ponto de<br />

chegada, ou melhor, o estado de presença vivo e potente com qualidade<br />

verdadeira e sincera durante a vivência cênica no momento do estudo da<br />

circunstância, sem este elemento que para nós é o elo que irá fazer com que o<br />

ator, com seu aparato físico e psicológico preparado e disponível, encontre o<br />

fluxo de vida do personagem em seu drama.<br />

De alguma forma, percebemos também que a própria construção da<br />

nossa cena, a partir do conto Linda, uma história horrível de Caio Fernando<br />

Abreu, refletia essa diferença pela própria linguagem com que era apresentada.<br />

O início da cena traz à tona duas circunstâncias separadas das personagens<br />

do conto, o que nos fez investir em trabalhar separada e individualmente,<br />

resultando em uma interpretação mais realista por parte de um dos<br />

pesquisadores, Alexandre Paz, e em outra com uma linguagem mais<br />

teatralizada, por parte de Michele Cosendey. Isso nos chamou a atenção, pois<br />

não foi algo pensado pelos pesquisadores propositalmente pelo fato de<br />

estarmos partindo de pontos de partida diferentes para a criação, mas algo que<br />

aconteceu naturalmente dentro do processo. A partir do momento em que<br />

percebemos que as diferenças no processo de criação refletiam também na<br />

26


estética da cena, nos questionamos como iríamos dialogar a partir do encontro<br />

dessas personagens.<br />

Depois de longas discussões, acreditamos que no encontro dessas duas<br />

criações, desses dois rios, dessas duas personagens dentro de uma estrutura<br />

cênica construída a partir do estudo das circunstâncias com uma qualidade<br />

potente e viva artisticamente, seria interessante também provocar esse<br />

enfrentamento de diferentes linguagens estéticas do teatro. Isso se justifica<br />

pelo viés dos dramas dos personagens ali envolvidos, mas sobretudo como<br />

fruto conseqüente desta pesquisa. O que nos conduz a experimentar uma<br />

composição cênica de linguagem híbrida tecida a partir do encontro e da<br />

parceria específicas dessa pesquisa.<br />

Em um determinado momento do percurso, os pesquisadores aqui<br />

envolvidos, por mais determinante que fosse a escolha de seguirem juntos na<br />

pesquisa 11 , puderam perceber e dividir a experiência de uma formação de um<br />

coletivo com pensamentos diferentes e que, ainda assim, possibilitam uma boa<br />

qualidade ao fim de uma criação. A diferença do pensamento do outro não é<br />

um fator limitador ao processo de cada um. Ambos os caminhos aqui<br />

escolhidos permitem esse encontro, de forma rica e construtiva em benefício<br />

da arte.<br />

11 Conforme descrito no tópico A Crise contido no Memorial de Pesquisa.<br />

27


5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator.<br />

Editora da Unicamp, 2001.<br />

BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator - Da técnica a representação. Editora da<br />

Unicamp, 2001<br />

GROTOWSKI, Jerzy. Em Busca de um teatro pobre. Civilização Brasileira,<br />

1987.<br />

KUSNET, Eugênio. Ator e Método. Funarte, 1997.<br />

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução para a língua portuguesa sob a<br />

direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo. Ed: Perspectiva,<br />

2005.<br />

28


ANEXO I<br />

Conto trabalho na composição da cena:<br />

Linda, uma história horrível<br />

29<br />

Caio Fernando Abreu<br />

Para Sergio Keuchguerian<br />

"Você nunca ouviu falar em maldição<br />

nunca viu um milagre<br />

nunca chorou sozinha num banheiro sujo<br />

nem nunca quis ver a face de Deus."<br />

(Cazuza: "Só as mães são felizes")<br />

Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos<br />

descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas<br />

vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido<br />

desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do<br />

interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias.<br />

Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os<br />

dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta.<br />

Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor.<br />

Mediram-se um pouco assim — de fora, de dentro da casa —, até ela afastar o rosto,<br />

sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu<br />

depois.<br />

— Tu não avisou que vinha — ela resmungou no seu velho jeito azedo, que<br />

antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a<br />

traduzir como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa<br />

assim. Mais carinhosa, embora inábil.<br />

Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido,<br />

naquele cheiro conhecido — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e<br />

carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela<br />

o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro.<br />

— A senhora não tem telefone — explicou. — Resolvi fazer uma surpresa.<br />

Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez mais para dentro. Mal podia<br />

rever a escada, a estante, a cristaleira, os porta-retratos empoeirados. A cadela se<br />

enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho.<br />

— Sai, Linda — ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. —<br />

Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir,<br />

comer e cagar, esperando a morte.<br />

— Que idade ela tem? — ele perguntou. Que esse era o melhor jeito de chegar ao<br />

fundo: pelos caminhos transversos, pelas perguntas banais. Por trás do jeito azedo,<br />

das flores roxas do robe.


— Sei lá, uns quinze. — A voz tão rouca. — Diz—que idade de cachorro a gente<br />

multiplica por sete.<br />

Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o jeito:<br />

— Uns noventa e cinco, então.<br />

Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da sala. Depois apertou novamente<br />

os olhos. E espiou em volta, como se acabasse de acordar:<br />

— O quê?<br />

— A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e cinco anos.<br />

Ela riu:<br />

— Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo. — Fechou o robe sobre o peito,<br />

apertou a gola com as mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (cera-to-se,<br />

repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos<br />

de cigarros. — Quer um café?<br />

— Se não der trabalho — ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto<br />

ela adentrava soberana pela cozinha, seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta,<br />

encostado na porta.<br />

As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito<br />

antigo de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres,<br />

guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar — enquanto ele via.<br />

Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro<br />

quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos,<br />

na doença e na miséria — ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.<br />

— Tá fresquinho — ela serviu o café. — Agora só consigo dormir depois de tomar<br />

café.<br />

—A senhora não devia. Café tira o sono.<br />

Ela sacudiu os ombros:<br />

— Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário.<br />

A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o<br />

café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis<br />

fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a<br />

sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair<br />

novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o<br />

aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde<br />

vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte<br />

de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.<br />

— Vá dormir — pediu. — É muito tarde. Eu não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas<br />

a senhora não tem telefone.<br />

Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras<br />

linhas da pele, papel de seda amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele<br />

30


enquanto tomava um gole de café.<br />

— Que que foi? — perguntou, lenta. E esse era o tom que indicava a abertura para um<br />

novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia de losangos da toalha.<br />

Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos.<br />

— Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta<br />

saudade. Da senhora, de tudo.<br />

Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe:<br />

— Me dá o fogo.<br />

Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de<br />

ceratose nas mãos muito brancas dele. Carícia torta:<br />

— Bonito, o isqueiro.<br />

— É francês.<br />

— Que é isso que tem dentro?<br />

— Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só que este é transparente, nos<br />

outros a gente não vê.<br />

Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro, o líquido verde brilhou. A cadela<br />

entrou por baixo da mesa, ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantada com o<br />

por trás do verde, líquido dourado.<br />

— Parece o mar — sorriu. Bateu o cigarro na borda da xícara, estendeu o isqueiro de<br />

volta para ele. — Então quer dizer que o senhor veio me visitar? Muito bem.<br />

Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela.<br />

— Vim, mãe. Deu saudade.<br />

Riso rouco:<br />

— Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer<br />

aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal.<br />

Se desse no jornal. Quem se importa com um caco velho?<br />

Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada:<br />

— Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar sabendo. E não ia dar no<br />

jornal.<br />

Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na<br />

ponta da unha, tirava uma lasca da borda da xícara.<br />

— É sina — disse. — Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai morreu só,<br />

lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar. Uma<br />

coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. Jogou longe a bolinha com a<br />

pintura da xícara. — E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele<br />

queria.<br />

31


— Já faz tempo, mãe. Esquece — ele endireitou as costas, doíam. Não, decidiu:<br />

naquele poço, não. O cheiro, uma semana, vizinhos telefonando. Passou as pontas<br />

dos dedos pelos losangos desbotados da toalha. — Não sei como a senhora<br />

consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma<br />

pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha?<br />

Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava<br />

com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de<br />

manchas marrons segurando o cigarro quase no fim.<br />

— E agüentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu<br />

fosse sei lá. Iam ter que me esconder no dia das visitas, Deus me livre. A velha, a<br />

louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. —<br />

Bateu o cigarro. — E como se não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda<br />

junto?<br />

Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela ganiu mais forte.<br />

— Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem a faculdade. E o Pedro no fundo<br />

é boa gente. Só que.<br />

Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de hastes remendadas com<br />

esparadrapo, lente rachada.<br />

— Deixa eu te ver melhor — pediu.<br />

Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da<br />

sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás dela.<br />

— Tu estás mais magro — ela observou. Parecia preocupada. — Muito mais magro.<br />

— É o cabelo — ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. E a barba, três<br />

dias.<br />

— Perdeu cabelo, meu filho.<br />

— É a idade. Quase quarenta anos. — Apagou o cigarro. Tossiu. — E essa tosse de<br />

cachorro?<br />

— Cigarro, mãe. Poluição.<br />

Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava<br />

direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente<br />

muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão(*). Quase falou. Mas ela piscou<br />

primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela<br />

sarnenta e a trouxe até o colo.<br />

— Mas vai tudo bem?<br />

— Tudo, mãe.<br />

— Trabalho?<br />

Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da cadela. Depois olhou outra vez<br />

32


direto para ele:<br />

— Saúde? Diz que tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes.<br />

— Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco.<br />

— E a dona Alzira, firme?<br />

A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos, ela estava recostada na cadeira.<br />

Olhos apertados, como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela<br />

apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os<br />

ombros:<br />

— Coitada. Mais esclerosada do que eu.<br />

— A senhora não está esclerosada.<br />

— Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro dia,<br />

sabe quem eu chamava o dia inteiro? — Esperou um pouco, ele não disse nada. — A<br />

Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando,<br />

chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me<br />

dei conta.<br />

— A Cândida morreu, mãe.<br />

Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os<br />

olhos, como se as duas dormissem.<br />

— Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? — Abriu os olhos. — Quer comer<br />

alguma coisa, meu filho?<br />

— Comi no avião.<br />

Ela fingiu cuspir de lado, outra vez.<br />

— Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra daquela<br />

vez que eu fui? — Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a<br />

fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de<br />

solidão. — Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame.<br />

Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. — Molhou um pedaço de pão no café<br />

frio, colocou-o na boca quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. — Sabe<br />

que eu gostei mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira.<br />

Nem parece coisa de gente, como é que tu agüenta?<br />

— A gente acostuma, mãe. Acaba gostando.<br />

— E o Beto? — ela perguntou de repente. E foi baixando os olhos até encaixarem,<br />

outra vez, direto nos olhos dele.<br />

Se eu me debruçasse? — ele pensou. Se, então, assim. Mas olhou para os azulejos<br />

na parede atrás dela. A barata tinha desaparecido.<br />

— Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele.<br />

Ela voltou a olhar o teto:<br />

33


— Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia<br />

coisa de cinema. Puxou a cadeira do restaurante pra eu sentar. Nunca ninguém tinha<br />

feito isso. — Apertou os olhos. — Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome<br />

de gringo.<br />

— Casserole, mãe. La Casserole. — Quase sorriu, ele tinha uns olhos de menino,<br />

lembrou. — Foi boa aquela noite, não foi?<br />

— Foi — ela concordou. — Tão boa, parecia filme. — Estendeu a mão por sobre a<br />

mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade.<br />

Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela.<br />

— O Beto gostou da senhora. Gostou tanto — ele fechou os dedos. Assim fechados,<br />

passou—os pelos pêlos do próprio braço. Umas memórias, distância. — Ele disse que<br />

a senhora era muito chique.<br />

— Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada. — Ela riu, vaidosa, mão manchada no<br />

cabelo branco. Suspirou. — Tão bonito. Um moço tão fino, aquilo é que é moço fino.<br />

Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu<br />

disse bem alto, bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não<br />

adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela calça rasgadinha. Quem ia dizer<br />

que era um moço assim tão fino, de tênis? — Voltou a olhar dentro dos olhos dele. —<br />

Isso é que é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando.<br />

Parecem irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo.<br />

— A gente não se vê faz algum tempo, mãe.<br />

Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os<br />

olhos esbranquiçados. Embora cega, também parecia olhar para ele. Ficaram se<br />

olhando assim. Um tempo quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros<br />

cheios, xícaras vazias — os três, ele, a mãe e Linda.<br />

— E por quê?<br />

— Mãe — ele começou. A voz tremia. — Mãe, é tão difícil — repetiu. E não disse mais<br />

nada.<br />

Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo.<br />

Começou a recolher xícaras, colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois<br />

de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado<br />

para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais<br />

velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez<br />

mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou<br />

para ele e — como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para<br />

um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo — disse:<br />

— Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem<br />

lençol limpo no armário do banheiro.<br />

Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para<br />

beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro — cigarro,<br />

cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia<br />

piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor.<br />

— Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo, dorme bem. Debruçado na mesa,<br />

34


acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela<br />

escada até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da<br />

cozinha.<br />

Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares,<br />

todos vazios. Parou em frente ao retrato do avô — rosto levemente inclinado, olhos<br />

verdes aguados que eram os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio<br />

do campo, pensou, morreu só com um revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso<br />

interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou,<br />

gotas de uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela<br />

lambeu o tapete gasto, olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido.<br />

Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para<br />

o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga,<br />

numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos<br />

quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a<br />

mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E<br />

começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque.<br />

Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse<br />

mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor<br />

antiga do tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do<br />

peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça,<br />

como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o<br />

chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela<br />

quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais<br />

às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios.<br />

— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda.<br />

35


Mulher: Você não avisou que vinha.<br />

ANEXO II<br />

Cena adaptada a partir do conto<br />

Homem: Você não tem telefone. Resolvi fazer uma surpresa.<br />

Mulher: Entra.<br />

Homem: E a linda? Cadê ela?<br />

Mulher: Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar,<br />

esperando a morte.<br />

Homem: Quantos anos ela tem?<br />

Mulher: Sei lá. Uns quinze. Dizem que idade de cachorro a gente multiplica por sete.<br />

Homem: Uns noventa e cinco então.<br />

Mulher: O quê?<br />

Homem: A linda. Se fosse gente estaria com uns noventa e cinco anos.<br />

Mulher: Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo. Quer um café?<br />

Homem: Bom, se não for te dar trabalho.<br />

Mulher. Acabei de fazer. Tá fresquinho. Agora só consigo dormir depois que tomo<br />

café.<br />

Homem: Você não devia. Café tira o sono.<br />

Mulher. Não tem problema. Eu sempre tive insônia.<br />

36


Homem: E deixa a gente ansioso também.<br />

Mulher: E quem não é hoje em dia?<br />

Homem: Faz muito mal para o estômago.<br />

Mulher: Muita coisa faz mal na vida.<br />

Homem: Eu só estou falando porque eu acho que vc devia cuidar melhor de você.<br />

Mulher: Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário.<br />

Homem: Vá dormir. Eu não devia vir assim tão tarde.<br />

Mulher: Por que você voltou?<br />

Homem: Nada. Não foi nada. Deu saudade. Só isso. De repente me deu tanta<br />

saudade. Dessa casa. De você. De tudo.<br />

Mulher. Você tem um cigarro? Bonito esse isqueiro.<br />

Homem: É Francês.<br />

Mulher: O que tem aqui dentro?<br />

Homem: Sei lá. Fluído. Só que esse é transparente. Dá pra ver o que tem dentro.<br />

Mulher: Parece o mar. Quer dizer entãoq eu vc veio me visitar. Muito bem!<br />

Homem: Vim. Deu saudade.<br />

Mulher: Saudade. Sabe que a Elzinha não vem aqui faz mais de mês. Eu podia morrer<br />

aqui dentro sozinha. Ninguém ia ficar sabendo. Só se desse no jornal. Mas também<br />

quem se importa.<br />

Homem: Também não é assim. Eu também moro só. Se eu morresse também<br />

ninguém ia ficar sabendo. Nem ia dar no jornal.<br />

37


Mulher: — É sina — disse. — Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai morreu<br />

só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar. Uma<br />

coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. Jogou longe a bolinha com a<br />

pintura da xícara. — E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele<br />

queria.<br />

Homem: Esquece. Isso já faz tempo. Não sei como você consegue morar aqui<br />

sozinha. Por que você não foi morar com sua irmã?<br />

Mulher: E agüentar o Pedro com aquela mania de grandeza? Deus me livre. E ainda<br />

por cima não iam me deixar leva a Linda Junto Comigo.<br />

Homem: Também não é assim. Sua irmã tem o trabalho dela e o Pedro no fundo ele é<br />

gente boa. Ele só tem essas manias de querer...<br />

Mulher: Você está mais magro! Muito mais magro.<br />

Homem: Deve ser o cabelo. E a barba que está pra fazer a três dias.<br />

Mulher. Perdeu cabelo. É a idade. E essa tosse de cachorro?<br />

Homem: Cigarro, poluição...<br />

Mulher: mas vai tudo bem?<br />

Homem: Tudo.<br />

Mulher: Trabalho? Saúde? Coração? Dizem que tem umas doenças novas aí, vi na<br />

tevê. Umas pestes.<br />

Homem: E Dona Alzira, firme?<br />

Mulher: Coitada. Mais esclerosada que eu.<br />

Homem: Você não está esclerosada.<br />

38


Mulher: Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro<br />

dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro? — Esperou um pouco, ele não disse nada.<br />

— A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei<br />

chamando, chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu,<br />

criatura? Aí me dei conta.<br />

Homem: A Cândida morreu..<br />

Mulher: Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? Quer comer alguma coisa?<br />

Homem: Comi no avião.<br />

Mulher: Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra<br />

daquela vez que viajamosi? Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo,<br />

uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. Sabe que eu gostei<br />

mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa<br />

de gente, como é que tu agüenta?<br />

Homem: A gente acostuma. Acaba gostando.<br />

Mulher: Mas está tudo bem mesmo?<br />

Homem: Então. Eu voltei porque depois desse tempo eu percebi que eu tava confuso<br />

e precisava voltar aqui.<br />

Mulher: Eu preciso dormir. Amanhã tem feira. Vou arrumar seu quarto. Se precisar de<br />

lençol tem no armário.<br />

Homem: Amanhã a gente fala melhor. Tem tempo, dorme bem.<br />

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