Jean-Louis Besson OS ÚLTIMOS SOBRESSALTOS DA VIDA Em ...
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Se a morte está inscrita no título da peça, os dois últimos actos são dedicados ao<br />
sofrimento de ter que morrer. No início, Danton mostra uma certa indiferença perante a<br />
sua execução e a sua prisão. Contudo, o amor à vida, problemático que seja, prevalece<br />
sobre o desgosto de viver. Se dá mostras de cepticismo em relação às possibilidades de<br />
realização do programa da República epicurista exposto por Camille e Phillipeau no<br />
primeiro acto, não deixa de aplicar a si próprio a moral hedonista de que os seus amigos<br />
são arautos (Büchner mostra-o mais como um debochado do que como um fino<br />
epicurista), e, face a Robespierre, desenvolve argumentos semelhantes aos deles. Dar ao<br />
indivíduo a possibilidade de afirmar a sua natureza parece-lhe ser a tarefa que agora<br />
compete à Revolução. Opõe assim o gosto de viver e o desejo de prazer a essa máquina<br />
de morte que é o Terror.<br />
O diálogo entre Danton e Marion apresenta uma variação sobre o tema do epicurismo, o<br />
que lhe confere indirectamente uma função de comentário. Marion está sentada aos pés<br />
de Danton. Essa situação evoca “Danton sentado num banco ao pé de Julie” na primeira<br />
cena, e cria não tanto uma hierarquia entre as duas mulheres (Danton aos pés da esposa,<br />
a prostituta aos pés de Danton), mas antes um jogo de espelhos: nos dois casos cria-se<br />
uma relação íntima. Essa imagem é relativizada, e até mesmo ridicularizada por Lacroix<br />
que, entrando pouco depois, compara as duas personagens aos dois cães que acaba de<br />
ver na rua e que estavam “um a tentar montar o outro”. A terna harmonia de um instante<br />
reduzida à sua banalidade trivial.<br />
Marion mantém com o mundo uma relação elementar e não oferece nenhuma resistência<br />
aos sentimentos: na Primavera deixa-se invadir por uma “atmosfera que era só minha”,<br />
e considera-se “muito sensível, é só através dos meus sentimentos que estabeleço<br />
contacto com as coisas”. Alheia aos constrangimentos e às obrigações da vida familiar,<br />
que não compreende, apenas escuta a natureza. É sem dúvida também por isso que as<br />
palavras lhe saem naturalmente da boca: não quer provar nada, nem demonstrar nada,<br />
nem impor nada, mas tão-só contactar. A sua vida “não é pautada por conceitos como o<br />
vício ou a virtude, mas antes em função da intensidade com que ela é vivida”, e o seu<br />
discurso é de uma extrema simplicidade, sem floreados, sem pathos, o contrário da<br />
retórica revolucionária. Igual a si mesma, Marion diz que “Sou sempre esta. Uma<br />
ansiedade irreprimível, uma vontade de agarrar as coisas, um ardor, uma torrente. O<br />
crítico Reinhold Grimm saúda nesta personagem o arquétipo da sensualidade pagã, que<br />
ignora o antagonismo cristão entre eros e amor, entre prazer dos sentidos e<br />
espiritualidade que se emancipa tanto da dicotomia tradicional da mulher “enquanto<br />
objecto de adoração divina e enquanto objecto sexual”, como da oposição burguesa<br />
“entre a prostituta e a esposa”.<br />
O discurso de Marion não é apenas um momento de intimidade na peça: dando a<br />
entender a verdade profunda de um ser, contrasta com os discursos revolucionários que<br />
pretendem falar em nome do povo. É essa voz verdadeira que a revolução não é capaz<br />
de ter. Como observou <strong>Jean</strong>-Christophe Bailly, “Marion é uma mulher, e não é por<br />
acaso; ela opõe-se à virtude como qualquer coisa (sim) de mais virtuoso ainda – de<br />
verdadeiro. Talvez pareça incrível que Büchner nos fale já da guerra entre uma ordem<br />
do desejo e uma ordem do dever, que nos fale da ruptura que a incompatibilidade de<br />
espírito entre essas duas ordens provoca. A vida extremamente calorosa por um lado, e<br />
incrivelmente rígida e fria pelo outro.”<br />
Mas em Büchner nenhuma personagem, por muito positiva que possa parecer, é feita de<br />
uma só peça, e a imagem não é idílica. Por um lado, Marion continua a ser, para<br />
Danton, uma cortesã que deve pedir ao seu interlocutor que a escute “por uma vez”; por<br />
outro lado, ela só adquiriu essa liberdade de vida à custa da morte do primeiro amante e<br />
da sua mãe. Também ela deixa cadáveres atrás de si. Mesmo assim, ela é a única