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Jean-Louis Besson OS ÚLTIMOS SOBRESSALTOS DA VIDA Em ...

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está a construir “frases para a posteridade”, frases que pouco interessam àqueles que vão<br />

morrer.<br />

No momento em que a carroça vem buscar os condenados para os conduzir à guilhotina,<br />

estes evocam de forma coral um mundo abandonado pelo divino. A noite que cai<br />

adquire o valor de crepúsculo dos deuses: “As nuvens cobrem o crepúsculo, é como um<br />

Olimpo que se extingue e onde aparecem, uma a uma, as figuras dos deuses pálidos,<br />

atónitos”. Só o amor entre Lucile e Camille, entre Danton e Julie, ou a amizade entre<br />

Camille e Danton – o calor humano, a compreensão da dor do outro nas cenas de prisão<br />

– parecem poder dar ainda um sentido à existência. “Poderás tu impedir que as nossas<br />

cabeças se beijem no fundo do cesto?” diz Danton ao carrasco. Resta também, última<br />

escapatória, a loucura de Lucile no final: último refúgio, paradoxal, contra um mundo<br />

insensato.<br />

Esta concepção de um universo de onde os valores desertaram, e sentido como um caos<br />

medonho, levou a crítica a ver em A Morte de Danton uma peça que advoga o niilismo.<br />

Todavia, convém notar que o mundo aqui posto em causa não tem um carácter absoluto.<br />

Não é o mundo em si que desaba, mas uma certa concepção que até aí se faz dele: um<br />

universo ordenado, concebido para os homens e regido por um princípio supremo. É ao<br />

desabar desse universo que os revolucionários de 1794 assistem, submetidos que estão<br />

ainda ao “ter que”. Surge então neles uma sensação de vazio, exacerbada pela<br />

proximidade da morte: já que não se sabe por que se morre, mais vale convencer-se de<br />

que o mundo que se deixa não tem sentido, mais vale desvalorizar o que se perde para<br />

assim diminuir a perda.<br />

Mas o desaparecimento dos valores aviva o sofrimento que, no último instante,<br />

permanece a única realidade tangível. De modo absolutamente voluntário, Büchner<br />

substitui a morte carregada de sentido e de futuro para a humanidade por uma<br />

representação concreta da dor física no momento da decapitação. Não é por acaso que,<br />

contrariamente a todas as regras da arte dramática em vigor na época, ele imagina a<br />

guilhotina erguida no palco. Ela é a figuração concreta dessa morte mecânica, inventada<br />

para tornar a execução “humana”, mas que não suprime a dor moral e física. Num artigo<br />

publicado em 1992, Ingrid Oesterle destacou os sinais, em A Morte de Danton, das<br />

leituras de Büchner sobre os efeitos físicos da lâmina da guilhotina sobre os<br />

condenados. O mais marcante é esta observação de Laflotte: “Pode doer, quem é que diz<br />

que não? Dizem que é um segundo, mas a dor tem uma medida de tempo mais apurada:<br />

distingue décimos de segundo”.<br />

Mercier, em Le Nouveau Paris, dedicara um artigo aos debates da época sobre a<br />

decapitação na guilhotina, a crença numa morte instantânea e sem dor fora posta em<br />

causa perante observações feitas sobre os condenados. Mercier relata que testemunhas<br />

julgaram ter visto “nos movimentos convulsivos dos músculos do rosto, imediatamente<br />

após a execução, os sinais de uma dor aguda e um vestígio de sensibilidade que ainda<br />

não se extinguiu.” Uma sobrevivência de alguns instantes, acompanhada de sofrimento<br />

horrível após a decapitação, era, pois, verosímil. É a essa eventualidade que Laflotte se<br />

refere aqui. Morrer continua a ser um tormento, só a morte, com a rigidez do corpo, dá o<br />

repouso. É por isso que Danton diz que “a guilhotina é o melhor médico”: uma vez<br />

passados os últimos instantes, ela, ao tirar a vida, proporciona a única cura absoluta, na<br />

inconsciência e no esquecimento.<br />

Estes detalhes mórbidos dão uma imagem da morte totalmente diferente daquela que até<br />

então se conhecia no teatro. Não que o sofrimento de morrer nunca tivesse sido descrito,<br />

mas ele não constituía a realidade última. Büchner rompe com toda a estetização da<br />

morte. Lança sobre o indivíduo que sofre um olhar quase médico, que não é alheio aos<br />

seus estudos de biologia (não esqueçamos que mais tarde ele irá estudar precisamente os

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