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Jean-Louis Besson OS ÚLTIMOS SOBRESSALTOS DA VIDA Em ...

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<strong>Jean</strong>-<strong>Louis</strong> <strong>Besson</strong> <strong>OS</strong> ÚLTIM<strong>OS</strong> SOBRESSALT<strong>OS</strong> <strong>DA</strong> VI<strong>DA</strong><br />

<strong>Em</strong> 1835, Karl Kutzov notava já que Büchner tinha escrito “em vez de um drama, em<br />

vez de uma acção que se desenrola, se intensifica e enfraquece, os últimos sobressaltos e<br />

os últimos estertores que precedem a morte”.<br />

O sofrimento e a morte ocupam um lugar preponderante no drama, e são evocados<br />

através das mais diversas expressões e metáforas: a morte seria uma “doença que faz<br />

perder a memória”, ela é chamada “a dona Putrefacção”, “o grande manto debaixo do<br />

qual se apagam todos os corações e todos os olhos se fecham”. “A melhor morte é um<br />

ataque de apoplexia, ou preferias adoecer primeiro?”, diz Danton a Lacroix. Sofrer é um<br />

pensamento insuportável: “Não tenho medo da morte, da dor sim”, diz Laflotte, ela “é o<br />

único pecado e o sofrimento o único vício”. Esta presença constante da morte encontra<br />

um eco na correspondência de Büchner quando tem de sair de Estrasburgo e regressar a<br />

Hesse: é assaltado por interrogações sobre o sentido da vida, a ponto de se ter falado de<br />

uma profunda depressão. O que o rodeia em Darmstadt parece-lhe “medonho,<br />

esmagador, fastidioso (…), o deserto em todas as cabeças e em todos os corações”.<br />

Tudo é “pequeno e acanhado. A natureza e os homens, os ambientes mais mesquinhos,<br />

pelos quais não consigo sentir o menor interesse”, e sente-se “completamente só”;<br />

refugia-se no trabalho e “lança-se com todas as forças na filosofia”. <strong>Em</strong> Fevereiro de<br />

1834 acrescenta numa carta à noiva: “Estou só como se estivesse no túmulo (…), os<br />

meus amigos abandonam-me, gritamos uns com os outros como se fôssemos surdos;<br />

gostaria que fôssemos mudos, assim só poderíamos olhar-nos, e nestes últimos tempos<br />

mal posso olhar para alguém sem que me venham as lágrimas aos olhos (…). A<br />

neurastenia tenta ocupar o teu lugar, entrego-me a ela o dia inteiro”. Passado um mês,<br />

quando a crise atinge o paroxismo, afirma ainda:<br />

“A sensação de estar morto não me largava. Todos os seres me revelavam um<br />

rosto doentio, olhos vítreos, faces macilentas, e quando depois todo esse<br />

mecanismo começava a exprimir-se, quando as articulações estalavam, a voz<br />

saía aos guinchos e eu ouvia a eterna cantilena do realejo, cuja caixa deixava à<br />

mostra os pequenos rolos a girar e as pequenas agulhas a saltitar… eu maldizia<br />

esse concerto, a caixa, a melodia, e… ah! pobres músicos esganiçados que nós<br />

somos, será possível que os nossos gemidos no cadafalso estejam lá apenas para<br />

passar através das nuvens e, ressoando ao longe, irem morrer como um sopro<br />

melodioso em ouvidos celestes? Seríamos nós, no ventre ardente do touro de<br />

Perillos, a vítima cujo grito de morte soa como a explosão de alegria do deus<br />

touro a arder nas chamas?”<br />

Não é difícil detectar aqui certos motivos de A Morte de Danton, mesmo que a peça<br />

tenha sido escrita mais tarde. Büchner recordou-se ou inspirou-se nos seus negros<br />

pensamentos, retomando mesmo as imagens do pobre músico e do touro, e atribuiu às<br />

suas personagens angústias e pensamentos profundos que se assemelham aos seus. Ora<br />

ele coloca-os indiferentemente em qualquer campo: Danton, Lacroix, Camille,<br />

Robespierre, e até o traidor Laflotte são afectados, como se se tratasse de um sentimento<br />

geral e não apenas de características individuais. Existe na peça um desfasamento entre<br />

a distância que Büchner toma em relação às suas personagens no campo da acção<br />

política e a empatia que sente quando se trata do fundo íntimo do ser. Isto explica em<br />

parte as dificuldades de interpretação quando misturamos os dois níveis e pensamos que<br />

Büchner estaria politicamente próximo deste ou daquele porque lhe coloca na boca um<br />

discurso que poderia fazer ele próprio. O facto de esse discurso estar repartido entre os


dois campos tende a provar que as coisas não são bem assim, mesmo que estas<br />

meditações sejam mais frequentes entre os partidários de Danton. A questão das<br />

orientações políticas e a da experiência existencial cruzam-se, influenciando-se<br />

mutuamente, mas estão longe de se misturar totalmente. Como se Büchner tivesse<br />

querido mostrar que o sofrimento profundo do ser era exacerbado pela sua acção na<br />

História, mas em muitos pontos separado das apostas desta última. O mundo das<br />

experiências privadas das personagens em A Morte de Danton ultrapassa o espaço<br />

espiritual e afectivo da acção, e daí o grande desfasamento entre esfera pública e esfera<br />

privada.<br />

Na peça, a questão do sofrimento é debatida sob a forma de uma discussão filosófica<br />

entre diferentes presos. Liderados por Payne, os detidos trocam opiniões sobre a nãoexistência<br />

de Deus. Depois de ter tentado demonstrar que Deus não pode existir, pois a<br />

sua essência eterna é contrária à ideia de Criação, depois de se ter lançado numa<br />

refutação vulgar do panteísmo de Spinoza, e depois de ter perguntado se uma causa<br />

perfeita podia criar algo de imperfeito, Payne faz um desmentido da Teodiceia, tendo<br />

em conta a presença do mal na terra:<br />

“Acabai com a imperfeição, só assim se poderá provar a existência de Deus.<br />

Espinosa tentou-o. Podemos negar o mal, mas não a dor. Só a razão pode provar<br />

a existência de Deus, o sentimento revolta-se contra isso. Repara, Anaxágoras,<br />

porque é que eu sofro? Aqui nasce o rochedo do ateísmo. O mais leve<br />

estremecimento da dor, mesmo que seja num átomo, destrói de alto abaixo a<br />

criação.”<br />

A argumentação prossegue, desenvolvendo o que Büchner aborda nas suas notas sobre<br />

Espinosa. Ao comentar a afirmação XI da Ética, reconhece que somos forçados a<br />

“chegar a qualquer coisa que só pode ser pensada como sendo”, mas objecta: “O que é<br />

que nos dá o direito de, por essa razão, fazer dessa essência o absolutamente perfeito,<br />

Deus?: O entendimento? Ele conhece o imperfeito; o sentimento? Ele conhece a dor.”<br />

Para Espinosa, nem o entendimento nem o sentimento podem demonstrar a existência<br />

de Deus. Só o facto de Deus ser pensado permite pressupor que ele existe. Payne inverte<br />

o argumento: segundo ele, o entendimento permitiria demonstrar a existência de Deus.<br />

Mas como o entendimento não pode demonstrar tudo, Deus e as outras coisas, isso<br />

significa que aquilo que ele pode demonstrar não poderia chamar-se Deus. O<br />

entendimento pode tudo afirmar e tudo negar, incluindo o bem e o mal. Só a dor seria<br />

então a prova da não-existência de Deus. Porque, se o mal é um conceito abstracto que<br />

pode ser negado, a dor é sentida fisicamente, o que a torna incontestável. Büchner tinha<br />

já encontrado este argumento em Epicuro. Como é que um Deus perfeitamente bom e<br />

todo-poderoso poderia tolerar o sofrimento? Se não pode impedi-lo, é porque não é<br />

todo-poderoso; e, se não quer impedi-lo, é porque não é perfeitamente bom, deleitandose<br />

mesmo com ela, como os romanos se divertem com o flamejar das cores dos peixes<br />

agonizantes. Esta questão do sofrimento, apresentada aqui como “o rochedo do<br />

ateísmo”, não deixará de preocupar Büchner. Encontramos ainda vestígios em Lenz<br />

onde o poeta declara ao pastor Oberlin: “Mas eu, se fosse todo-poderoso, se fosse assim<br />

e não pudesse suportar o sofrimento, eu salvaria, pois só desejo a calma, a calma…”<br />

Apesar da importância da “conversa dos filósofos”, em vão procuramos em A Morte de<br />

Danton ou na obra de Büchner uma ilustração das teses de Espinosa ou de Epicuro.<br />

Contudo, o tema da criatura sofredora num mundo abandonado pelos deuses é retomado<br />

na peça sob inúmeras variações.


Robespierre, que fica só após a discussão com Danton, mergulha na incerteza “não sei<br />

qual dos dois dentro de mim mente”, constata ele, como as palavras de Danton na noite<br />

que precede a sua prisão. Até aqui, o Incorruptível identificara-se com a Revolução: no<br />

seu discurso no Clube dos Jacobinos, utilizava a primeira pessoa do plural para falar da<br />

sua acção. Agora, é como se tirasse a máscara. Pensamentos e desejos “insuspeitáveis”<br />

que o homem público refreia “ganham forma e relevo e deslizam na silenciosa morada<br />

do sonho”. Como observa Gérard Raulet: “O republicano clássico, estóico, torna-se um<br />

„romântico‟, para o qual a vida é um sonho e o homem uma marioneta”. Este aspecto da<br />

personagem não está nas fontes, é uma criação de Büchner.<br />

Esta passagem cria um jogo de espelhos entre Danton e Robespierre. Os adversários<br />

políticos revelam-se semelhantes na sua identidade profunda. Ambos têm a sensação de<br />

que algo lhes escapa, que não dominam os seus actos, ou que se criou um fosso entre o<br />

pensamento e o acto: “não seremos nós sonâmbulos, não serão as nossa acções como as<br />

do sonho, só que mais nítidas, mais exactas, mais completas?”. A diferença entre<br />

Danton e Robespierre é que este último prossegue o combate. A chegada de Saint-Just<br />

vem arrancá-lo aos seus pensamentos sombrios, relançando-o no coração da acção<br />

política. Mas aquele que até aqui parecia decidido a ir até ao fim do terror surge<br />

irresoluto, como Danton. “Queres hesitar ainda mais tempo?”, censura-o Saint-Just,<br />

“agiremos sem ti, já decidimos”. A resposta de Robespierre “Que tencionais fazer?”, na<br />

qual o “vocês” se opõe ao “nós” do discurso aos jacobinos, é a prova da sua hesitação<br />

em se identificar com uma República terrorista, e sem dúvida revela também o seu<br />

medo de lhe ser sacrificado, por seu turno. Essa hesitação transparece ainda quando<br />

Saint-Just cita o nome de Camille entre as futuras vítimas. Apenas a leitura do Vieux<br />

Cordelier (o jornal de Camille Desmoulins) põe fim aos escrúpulos de Robespierre, não<br />

pelos argumentos políticos expostos, mas porque se sente pessoalmente atacado quando<br />

é tratado por “Messias sanguinário, Robespierre, entre os dois ladrões Couthon e Collot<br />

no seu Gólgota onde sacrifica e não é sacrificado”, isto é, quando tocam no seu ponto<br />

fraco.<br />

Todavia, a decisão de Robespierre de condenar à guilhotina os partidários de Danton<br />

não o acalma. A frase de Camille ficou-lhe na memória, e leva-o a comparar-se a Cristo:<br />

imagina-se a resgatar a humanidade e a assumir os pecados do mundo. Mas a<br />

comparação é insustentável, pois Cristo “tinha a volúpia da dor”. Esta declaração é<br />

como que um eco das palavras de Danton, que pouco antes afirmara que Cristo era o<br />

mais requintado dos epicuristas: o filho de Deus conseguira transcender a sua dor e<br />

transformá-la em volúpia oferecendo-a para a salvação dos homens. Robespierre, que<br />

não redime a humanidade com o seu próprio sangue mas com o sangue dos outros, tem<br />

apenas “o tormento do carrasco”. Depois de ter decidido sacrificar Danton e os seus<br />

partidários, continua consumido pela dúvida: “nós todos suamos sangue no jardim das<br />

Oliveiras, mas não há quem redima o outro com as suas chagas”. O sacrifício de<br />

Robespierre não redimirá a humanidade, tal como a morte de Camille não redimirá<br />

Robespierre. Deixá-lo-á apenas numa solidão terrível: “Todos se afastam de mim - está<br />

tudo vazio e deserto - e eu estou só.”<br />

O sofrimento do ser humano, as suas angústias e dúvidas ganham corpo quando as<br />

construções abstractas se esboroam e o indivíduo se encontra face a si próprio. Esta<br />

passagem humaniza a personagem do Incorruptível, considerado frio e intratável,<br />

mostrando-o capaz de pensamentos íntimos e de interrogações sobre si mesmo.<br />

Paralelamente, antecipa as queixas dos detidos na prisão, nos dois últimos actos. É<br />

como que o eco da cena que precede a execução.


Se a morte está inscrita no título da peça, os dois últimos actos são dedicados ao<br />

sofrimento de ter que morrer. No início, Danton mostra uma certa indiferença perante a<br />

sua execução e a sua prisão. Contudo, o amor à vida, problemático que seja, prevalece<br />

sobre o desgosto de viver. Se dá mostras de cepticismo em relação às possibilidades de<br />

realização do programa da República epicurista exposto por Camille e Phillipeau no<br />

primeiro acto, não deixa de aplicar a si próprio a moral hedonista de que os seus amigos<br />

são arautos (Büchner mostra-o mais como um debochado do que como um fino<br />

epicurista), e, face a Robespierre, desenvolve argumentos semelhantes aos deles. Dar ao<br />

indivíduo a possibilidade de afirmar a sua natureza parece-lhe ser a tarefa que agora<br />

compete à Revolução. Opõe assim o gosto de viver e o desejo de prazer a essa máquina<br />

de morte que é o Terror.<br />

O diálogo entre Danton e Marion apresenta uma variação sobre o tema do epicurismo, o<br />

que lhe confere indirectamente uma função de comentário. Marion está sentada aos pés<br />

de Danton. Essa situação evoca “Danton sentado num banco ao pé de Julie” na primeira<br />

cena, e cria não tanto uma hierarquia entre as duas mulheres (Danton aos pés da esposa,<br />

a prostituta aos pés de Danton), mas antes um jogo de espelhos: nos dois casos cria-se<br />

uma relação íntima. Essa imagem é relativizada, e até mesmo ridicularizada por Lacroix<br />

que, entrando pouco depois, compara as duas personagens aos dois cães que acaba de<br />

ver na rua e que estavam “um a tentar montar o outro”. A terna harmonia de um instante<br />

reduzida à sua banalidade trivial.<br />

Marion mantém com o mundo uma relação elementar e não oferece nenhuma resistência<br />

aos sentimentos: na Primavera deixa-se invadir por uma “atmosfera que era só minha”,<br />

e considera-se “muito sensível, é só através dos meus sentimentos que estabeleço<br />

contacto com as coisas”. Alheia aos constrangimentos e às obrigações da vida familiar,<br />

que não compreende, apenas escuta a natureza. É sem dúvida também por isso que as<br />

palavras lhe saem naturalmente da boca: não quer provar nada, nem demonstrar nada,<br />

nem impor nada, mas tão-só contactar. A sua vida “não é pautada por conceitos como o<br />

vício ou a virtude, mas antes em função da intensidade com que ela é vivida”, e o seu<br />

discurso é de uma extrema simplicidade, sem floreados, sem pathos, o contrário da<br />

retórica revolucionária. Igual a si mesma, Marion diz que “Sou sempre esta. Uma<br />

ansiedade irreprimível, uma vontade de agarrar as coisas, um ardor, uma torrente. O<br />

crítico Reinhold Grimm saúda nesta personagem o arquétipo da sensualidade pagã, que<br />

ignora o antagonismo cristão entre eros e amor, entre prazer dos sentidos e<br />

espiritualidade que se emancipa tanto da dicotomia tradicional da mulher “enquanto<br />

objecto de adoração divina e enquanto objecto sexual”, como da oposição burguesa<br />

“entre a prostituta e a esposa”.<br />

O discurso de Marion não é apenas um momento de intimidade na peça: dando a<br />

entender a verdade profunda de um ser, contrasta com os discursos revolucionários que<br />

pretendem falar em nome do povo. É essa voz verdadeira que a revolução não é capaz<br />

de ter. Como observou <strong>Jean</strong>-Christophe Bailly, “Marion é uma mulher, e não é por<br />

acaso; ela opõe-se à virtude como qualquer coisa (sim) de mais virtuoso ainda – de<br />

verdadeiro. Talvez pareça incrível que Büchner nos fale já da guerra entre uma ordem<br />

do desejo e uma ordem do dever, que nos fale da ruptura que a incompatibilidade de<br />

espírito entre essas duas ordens provoca. A vida extremamente calorosa por um lado, e<br />

incrivelmente rígida e fria pelo outro.”<br />

Mas em Büchner nenhuma personagem, por muito positiva que possa parecer, é feita de<br />

uma só peça, e a imagem não é idílica. Por um lado, Marion continua a ser, para<br />

Danton, uma cortesã que deve pedir ao seu interlocutor que a escute “por uma vez”; por<br />

outro lado, ela só adquiriu essa liberdade de vida à custa da morte do primeiro amante e<br />

da sua mãe. Também ela deixa cadáveres atrás de si. Mesmo assim, ela é a única


personagem na peça que mantém uma relação com o mundo de acordo com a percepção<br />

que tem dele, e que ignora o sofrimento. Surge apenas numa cena, como um meteoro<br />

num universo que não parece feito para ela.<br />

No segundo acto, a consciência do inimigo, primeiro, e depois o sentimento de culpa,<br />

apresentam a Danton a morte já não como um sofrimento, mas, pelo contrário, como<br />

uma libertação. Ela parece mais suportável do que a vida, que “não vale o trabalho que<br />

temos para a manter. A transição é brutal, e não é motivada pela psicologia nem pela<br />

acção. Enquanto no primeiro acto Danton se declarava pronto a agir – Não podemos<br />

perder nem um instante. Temos de nos mostrar ao povo!” – parece agora apático, como<br />

se o discurso de Marion tivesse abalado as suas últimas veleidades, fazendo-lhe entrever<br />

uma outra verdade, e Lacroix censura-lhe as suas hesitações, que o condenam, bem<br />

como aos companheiros. A partir desse momento, o drama da Revolução transforma-se<br />

num questionamento metafísico sobre o lugar e o papel do homem no universo:<br />

“Houve um erro quando fomos criados, há qualquer coisa errada, nem sei dizer o quê.<br />

Mas não vamos encontrar isso que nos falta remexendo nas entranhas uns dos outros.<br />

Porque havemos de rasgar os corpos uns dos outros? À procura de quê?”. Aqui já não é<br />

o homem político que fala, é o ser humano confrontado com as falhas da Criação.<br />

A curta intervenção de Danton na cena “uma digressão” inscreve-se na continuidade<br />

dessa reflexão. O mundo e os humanos que o habitam são de tal forma imperfeitos que<br />

não merecem ser levados a sério: “Deviam rir bem alto à janela e no túmulo, e o céu<br />

torcia-se todo, e a terra morria de tanto se rir.”<br />

O mundo torna-se uma farsa e não vale a pena ninguém dar-se ao trabalho de o<br />

melhorar. As pessoas deviam deter-se na rua “para rirem na cara umas das outras”.<br />

Mas a partir do terceiro acto, quando a morte se torna mais presente e parece evidente<br />

que o julgamento perante o tribunal revolucionário não passa de um simulacro, o tom<br />

volta a mudar. Quanto mais o tempo urge, mais se tornam caducas as tentativas de dar<br />

um sentido a essa morte, ou para a esconjurar; resta o indivíduo consumido pela<br />

angústia, o contrário de uma figura heróica: a presença da guilhotina, a sensação da<br />

lâmina a cair, o medo de sofrer e a imagem da putrefacção apoderam-se dos espíritos.<br />

“Gritaste bem alto, Danton. Se te tivesses preocupado mais cedo com a tua vida seria<br />

agora diferente. Quando a morte se aproxima, assim, insolente, e se sente o fedor que<br />

lhe sai da boca, cada vez com mais insistência, é horrível, não é?”. As cenas da prisão<br />

giram em torno deste mesmo tema, apresentando múltiplas variações.<br />

Büchner abandona aqui o terreno político, mesmo que por vezes regresse a ele para se<br />

interessar pela criatura que sofre, para tentar compreender o que pode passar-se no mais<br />

profundo do ser nos últimos instantes. A imagem é desprovida de complacência, é<br />

progressivamente eliminado tudo o que possa desviar da realidade concreta da execução<br />

iminente, quer se trate do sentimento de morrer por uma causa justa, da crença num<br />

Além, do desprezo pela morte por uma questão de bravata, ou da convicção de estar a<br />

agir no sentido da História. Assim, quando os prisioneiros querem ver-se como vítimas<br />

da sua tentativa de salvar inocentes, não conseguem convencer-se disso, e o argumento<br />

cai por si. Quando Phillipeau evoca a possibilidade de encontrar a paz em Deus, os<br />

outros permanecem surdos aos seus argumentos, pois só concebem a divindade como<br />

insensível ao sofrimento terrestre. Quando Danton quer ironizar, Camille logo lhe<br />

responde que nem por isso conseguirá “por mais que deites a língua de fora, não<br />

consegues lamber o suor da morte do teu rosto”. Finalmente, quando Danton tenta<br />

colocar o curso da História do seu lado “Quando, um dia, a história abrir as catacumbas,<br />

o despotismo sufocará com o fedor dos nossos cadáveres”. Hérault responde-lhe que ele


está a construir “frases para a posteridade”, frases que pouco interessam àqueles que vão<br />

morrer.<br />

No momento em que a carroça vem buscar os condenados para os conduzir à guilhotina,<br />

estes evocam de forma coral um mundo abandonado pelo divino. A noite que cai<br />

adquire o valor de crepúsculo dos deuses: “As nuvens cobrem o crepúsculo, é como um<br />

Olimpo que se extingue e onde aparecem, uma a uma, as figuras dos deuses pálidos,<br />

atónitos”. Só o amor entre Lucile e Camille, entre Danton e Julie, ou a amizade entre<br />

Camille e Danton – o calor humano, a compreensão da dor do outro nas cenas de prisão<br />

– parecem poder dar ainda um sentido à existência. “Poderás tu impedir que as nossas<br />

cabeças se beijem no fundo do cesto?” diz Danton ao carrasco. Resta também, última<br />

escapatória, a loucura de Lucile no final: último refúgio, paradoxal, contra um mundo<br />

insensato.<br />

Esta concepção de um universo de onde os valores desertaram, e sentido como um caos<br />

medonho, levou a crítica a ver em A Morte de Danton uma peça que advoga o niilismo.<br />

Todavia, convém notar que o mundo aqui posto em causa não tem um carácter absoluto.<br />

Não é o mundo em si que desaba, mas uma certa concepção que até aí se faz dele: um<br />

universo ordenado, concebido para os homens e regido por um princípio supremo. É ao<br />

desabar desse universo que os revolucionários de 1794 assistem, submetidos que estão<br />

ainda ao “ter que”. Surge então neles uma sensação de vazio, exacerbada pela<br />

proximidade da morte: já que não se sabe por que se morre, mais vale convencer-se de<br />

que o mundo que se deixa não tem sentido, mais vale desvalorizar o que se perde para<br />

assim diminuir a perda.<br />

Mas o desaparecimento dos valores aviva o sofrimento que, no último instante,<br />

permanece a única realidade tangível. De modo absolutamente voluntário, Büchner<br />

substitui a morte carregada de sentido e de futuro para a humanidade por uma<br />

representação concreta da dor física no momento da decapitação. Não é por acaso que,<br />

contrariamente a todas as regras da arte dramática em vigor na época, ele imagina a<br />

guilhotina erguida no palco. Ela é a figuração concreta dessa morte mecânica, inventada<br />

para tornar a execução “humana”, mas que não suprime a dor moral e física. Num artigo<br />

publicado em 1992, Ingrid Oesterle destacou os sinais, em A Morte de Danton, das<br />

leituras de Büchner sobre os efeitos físicos da lâmina da guilhotina sobre os<br />

condenados. O mais marcante é esta observação de Laflotte: “Pode doer, quem é que diz<br />

que não? Dizem que é um segundo, mas a dor tem uma medida de tempo mais apurada:<br />

distingue décimos de segundo”.<br />

Mercier, em Le Nouveau Paris, dedicara um artigo aos debates da época sobre a<br />

decapitação na guilhotina, a crença numa morte instantânea e sem dor fora posta em<br />

causa perante observações feitas sobre os condenados. Mercier relata que testemunhas<br />

julgaram ter visto “nos movimentos convulsivos dos músculos do rosto, imediatamente<br />

após a execução, os sinais de uma dor aguda e um vestígio de sensibilidade que ainda<br />

não se extinguiu.” Uma sobrevivência de alguns instantes, acompanhada de sofrimento<br />

horrível após a decapitação, era, pois, verosímil. É a essa eventualidade que Laflotte se<br />

refere aqui. Morrer continua a ser um tormento, só a morte, com a rigidez do corpo, dá o<br />

repouso. É por isso que Danton diz que “a guilhotina é o melhor médico”: uma vez<br />

passados os últimos instantes, ela, ao tirar a vida, proporciona a única cura absoluta, na<br />

inconsciência e no esquecimento.<br />

Estes detalhes mórbidos dão uma imagem da morte totalmente diferente daquela que até<br />

então se conhecia no teatro. Não que o sofrimento de morrer nunca tivesse sido descrito,<br />

mas ele não constituía a realidade última. Büchner rompe com toda a estetização da<br />

morte. Lança sobre o indivíduo que sofre um olhar quase médico, que não é alheio aos<br />

seus estudos de biologia (não esqueçamos que mais tarde ele irá estudar precisamente os


nervos do crânio!), e que, no teatro, transforma radicalmente a imagem do homem. O<br />

ser moral e consciente dos seus actos dá lugar à criatura que sofre na carne, presa numa<br />

tormenta que a arrasta e contra a qual luta em vão. O fim de A Morte de Danton anuncia<br />

Woyzeck. O autor já não é um juiz no tribunal das instituições políticas e morais, mas<br />

um clínico no seu laboratório, lançando um olhar compassivo sobre o sujeito de análise.<br />

<strong>Jean</strong>-<strong>Louis</strong> <strong>Besson</strong> – Le Théâtre de Georg Büchner: un Jeu de Masques, Belfort,<br />

Éditions Circé, 2001. (trad. Manuela Torres)

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