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FARPADO - Pedro Almeida Vieira

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ARAME<br />

<strong>FARPADO</strong><br />

AS PERIPÉCIAS DE UM SOLDADO REPUBLICANO


NUNO GOMES GARCIA<br />

ARAME<br />

<strong>FARPADO</strong><br />

AS PERIPÉCIAS DE UM SOLDADO REPUBLICANO


Título:<br />

Arame Farpado<br />

– as peripécias de um soldado republicano<br />

Autor:<br />

Nuno Gomes Garcia<br />

Copyright © Edi9, 2011<br />

Direitos exclusivos reservados por:<br />

Distribuidores:<br />

Proibida a reprodução, no todo ou<br />

em parte, por qualquer meio,<br />

sem autorização do Editor.<br />

Paginação: Artur Cunha<br />

Impressão e acabamento:<br />

ISBN: 978-989<br />

Depósito Legal n.º


^ .<br />

Virginijai, mano uzuovejai.


1. Gás:<br />

ÍNDICE<br />

cinco de dezembro de mil, novecentos e dezassete .............................................11<br />

2. O começo:<br />

primeiro de fevereiro de mil, novecentos e oito .....................................................27<br />

3. Tas-de-Fumier:<br />

oito de dezembro de mil, novecentos e dezassete ................................................39<br />

4. A morgue:<br />

vinte e nove de fevereiro de mil, novecentos e oito.............................................49<br />

5. A língua:<br />

nove de dezembro de mil, novecentos e dezassete ..............................................59<br />

6. As eleições:<br />

cinco de abril de mil, novecentos e oito ........................................................................71<br />

7. A véspera:<br />

vinte e quatro de dezembro de mil, novecentos e dezassete ........................81<br />

8. A Rotunda:<br />

quatro de outubro de mil, novecentos e dez, noite e madrugada ............97<br />

9. O football:<br />

três de janeiro de mil, novecentos e dezoito ...........................................................111<br />

10. A república:<br />

quatro e cinco de outubro de mil, novecentos e dez ........................................127


8 A R A M E FA R PA D O<br />

11. O abrigo:<br />

vinte e dois de janeiro de mil, novecentos e dezoito .......................................137<br />

12. Amostra número um:<br />

cinco de outubro de mil, novecentos e onze ..........................................................151<br />

13. Aba oir-sur-Lys, a revolta no front:<br />

seis de abril de mil, novecentos e dezoito ................................................................163<br />

14. O norte, de novo:<br />

sete e oito de julho de mil, novecentos e doze ......................................................175<br />

15. A mãe de todas as batalhas:<br />

nove de abril de mil, novecentos e dezoito .............................................................189<br />

16. O posto da Maziúa:<br />

vinte e cinco de agosto de mil, novecentos e catoze ........................................203<br />

17. A Normandia:<br />

treze de abril de mil, novecentos e dezoito .............................................................221<br />

18. O desembarque:<br />

doze de fevereiro de mil, novecentos e dezassete..............................................237<br />

19. Cochonnerie-en-Auge:<br />

treze de abril de mil, novecentos e dezoito............................................................251<br />

20. Epílogo a leste:<br />

vinte e quatro de agosto de mil, novecentos e dezoito ..................................259


A ciência consiste na investigação metódica<br />

das causas e consequências de certos fenómenos.<br />

Diário de José Lopes, ano de 1815


1. GÁS:<br />

CINCO DE DEZEMBRO DE MIL, NOVECENTOS E DEZASSETE<br />

O bombardeamento estendeu-se por três dias consecutivos.<br />

Seja como for, a madame morte mantivera-se ausente da trincheira<br />

ao longo de todo esse tempo, tranquila e dócil como uma<br />

hiena empalhada. Talvez esteja demasiado frio para bater a bota,<br />

pensei, enquanto escutava a surpreendida soldadesca comentar<br />

essa signifi cativa, embora bizarra, estatística. As setenta e<br />

duas horas de ataque ininterrupto por parte da artilharia alemã<br />

apresentaram o mais ridículo dos resultados: um inexpressivo<br />

e muito redondo zero.<br />

Tanta feuerwalze e nem sequer um único morto. Tanto estardalhaço<br />

e fumarada para conseguirem apenas um enorme nada<br />

de coisíssima nenhuma.<br />

Camelos.<br />

Ao mesmo tempo que a ofensiva se desenvolvia, os trinchas<br />

elaboravam sofi sticadas teorias acerca dos porquês de a morte<br />

ter decidido aderir a uma das tradicionais greves republicanas,<br />

deixando a zona do nosso batalhão ao abandono. Entre outras<br />

especulações, uns responsabilizavam deus por semelhante e<br />

benfazejo acontecimento; alguns mencionavam o lixo e o fedor<br />

das latrinas lusitanas como motivos mais do que sufi cientes<br />

para afugentar a própria ceifeira de traje negro, não fossem as<br />

trincheiras portuguesas as mais imundas da Flandres; outros,<br />

ainda, apontavam o dedo à mais do que certa bebedeira coletiva<br />

que afetaria as linhas alemãs. Bem, fossem quais fossem os<br />

motivos, era por demais evidente o extraordinário desperdício<br />

de munições alemãs.


12 A R A M E FA R PA D O<br />

As granadas voavam sobre as nossas cabeças tal qual um<br />

bando de estorninhos histéricos. Numerosas e barulhentas,<br />

contudo inócuas, perturbadoramente inofensivas. Os soldados,<br />

familiarizados com a forma como os estridentes assobios<br />

das bombas se propagavam pelo ar pesado do front, adivinhavam<br />

sem difi culdade o local da respetiva queda e consequente<br />

explosão, evitando assim a foice da madame morte de uma<br />

maneira quase sobrenatural. Os homens consideravam-se inatingíveis,<br />

protegidos por prodigiosas rabanadas de vento que<br />

desviavam as bombas dos seus caminhos. Mas, como se sabe,<br />

o paraíso é efémero e tende, tal como aconteceu na génese da<br />

humanidade, a terminar abruptamente.<br />

*<br />

Pouco passava da meia-noite quando as campainhas e os sininhos<br />

e as latinhas chocalharam ao longo da trincheira, anunciando<br />

o fi m da insólita proteção divina acima enunciada.<br />

— Gás — gritaram os homens do sétimo de infantaria, cujas<br />

línguas, desentorpecidas pelo rum, ganharam a rigidez cortante<br />

de baionetas.<br />

O cheiro a mostarda empestou a trincheira. Os boches deveriam<br />

ter em sua posse diferentes tipos de substâncias, pois o<br />

cheiro do gás alemão era rico e variado. O odor oscilava entre<br />

o repolho cozido e a maçã assada, passando pelo alho e, claro,<br />

pela já mencionada mostarda. Aqueles ataques faziam lembrar<br />

a cozinha da avó em plena efervescência, repleta de caldos e<br />

molhos exalando aromas exóticos.<br />

— Gás, gás, gás.<br />

Mas por que raio guincham estes badamecos? Qualquer idiota lamacento<br />

presente neste buraco imundo sabe o que se passa no momento<br />

em que as campainhas, sininhos e latinhas chinfrinam.<br />

— Olhem as máscaras, pelo amor de deus — ganiu o Piedade,<br />

puxando os cabelos sebosos, ainda meio atordoado pelo banzé.


G Á S 13<br />

Eu detesto quando este nabo se amarica, continuei a pensar.<br />

Sempre fui muito pensador.<br />

— Realmente és um génio. — Pus-lhe a mão no ombro estreito<br />

e revirei os olhos. — Obrigado pelo aviso, ó Bigodes.<br />

Logo de seguida, matutei nos porquês de chamarmos Bigodes<br />

ao Piedade. Um dos raros soldados com direito a duplo<br />

cognome. Os soldados chamavam-no ora por uma alcunha, ora<br />

por outra, mas nunca pelo seu verdadeiro nome. Não há muito<br />

a explicar sobre a origem de tais epítetos, pois o Piedade era de<br />

facto um sujeito excessivamente pio e compassivo que tinha um<br />

bigode à la mode estampado numa cara descorada de criança.<br />

Na realidade, essa omnipresente pilosidade, o bigode, cobria<br />

os beiços de toda a massa militar aliada. E, pelo que vi,<br />

também os boches do outro lado da terra de ninguém alcatifavam<br />

o focinho com os tais apêndices farfalhudos.<br />

O bigode era uma espécie de sucedâneo menor da cabeleira<br />

de Sansão.<br />

Já agora, e falando com franqueza, dado que debatemos um<br />

assunto relacionado com o visual bélico, devo dizer o seguinte:<br />

ainda bem que, em pouco tempo, os tudescos reformularam a<br />

estética dos capacetes, cortando o pickel ao haube, o espeto ao<br />

elmo, ainda bem, reafi rmo, pois os pickelhauben a emoldurarem<br />

aqueles bigodes… Bem, vou ali e já venho. Com sinceridade,<br />

os hunos, ao acabar com o chamativo estilo unicórnio dos<br />

elmos, melhoraram bastante a imagem global da tríplice aliança,<br />

a Dreibund. Tudo graças à sábia decisão de amputarem o<br />

falo ao casco. Um bem-haja aos raros boches com bom gosto.<br />

Quanto à razão que nos levava a chamar Bigodes a um homem<br />

cercado de outros homens ostentando o mesmíssimo<br />

item… Pois, muito honestamente, não sei como explicar os<br />

porquês de tal facto. Os franciús chamam a isso lapalissade.<br />

Mas talvez não devamos fiar-nos numa nação que em menos<br />

de cinquenta anos se deixou invadir duas vezes pelas mesmas


14 A R A M E FA R PA D O<br />

hordas bárbaras vindas do outro lado do Reno. Os germanos<br />

sempre tiveram o extravagante hábito de saltar a vedação,<br />

pilhando o lado pertencente a um dos desprevenidos vizinhos.<br />

Não fossem os boches mais traiçoeiros que raposas. Esse costume<br />

alemão não passava de um milenar transtorno obsessivo-<br />

-compulsivo que rotineiramente deixava a Europa de pantanas<br />

e os pomposos franceses de cabelos em pé.<br />

Primeiro, a simpática invasão do herr Bismarck, também<br />

dono de um mui viril bigode. Mais tarde, a passeata do Guilherme,<br />

o segundo, Wilhelm no original, cujo sonho, aparentemente,<br />

seria fi car para a história como o último kaiser. Já não<br />

sei se haverá alguma pertinência em referir que o Guilherme<br />

também usava bigode. Talvez não, por isso, e doravante, partamos<br />

sempre do princípio que todos os homens e velhinhas<br />

deste enredo possuem a peluda excrescência a cobrir-lhes o<br />

lábio superior. Encerraremos, assim, em defi nitivo este tópico<br />

capilar.<br />

Enfi m, em relação à problemática do bigode e do La Palisse,<br />

aconselho a que usemos a palavra truísmo. Sim, chamar Bigodes<br />

ao Bigodes era um mero truísmo, uma enorme redundância,<br />

uma excessiva reiteração.<br />

Deixemo-nos, porém, de preliminares e avancemos na minha<br />

história.<br />

Ainda antes de pegar na máscara, tirei uma tira de carne<br />

seca do bornal e quebrei-a, dividindo-a em duas partes idênticas.<br />

Meti o primeiro pedaço na boca. Ainda o mastigava e já<br />

experimentava o típico calor da bravura a aquecer-me o peito,<br />

como se um naco de cartilagem ressequida e mirrada me permitisse<br />

assimilar e utilizar, como se fosse minha propriedade,<br />

um pedaço de coragem que existira outrora num corpo entretanto<br />

desaparecido.<br />

Apenas a carne seca que ingeria nesses momentos de terror<br />

me garantia a emancipação face ao medo e, simultaneamente,

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