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O profeta do castigo divino - Pedro Almeida Vieira

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O <strong>profeta</strong><br />

<strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong><br />

<strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong>


O <strong>profeta</strong><br />

<strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong><br />

<strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong><br />

Ilustrações de<br />

Enio Squeff<br />

Da minha língua vê-se o mar.<br />

Vergílio Ferreira<br />

Ficção


O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong><br />

<strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong><br />

Publica<strong>do</strong> em Portugal por:<br />

Sextante Editora<br />

© <strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong>, 2005, 2011<br />

© Sextante Editora, 2011<br />

Design da capa: Atelier Henrique Cayatte<br />

com Susana Cruz<br />

Imagem da capa: S. Jerónimo Penitente (óleo sobre tela), Georges de la Tour (1593-1652).<br />

© Museu Nacional de Estocolmo, Suécia / The Bridgeman Art Library / AIC<br />

3.ª edição (1.ª edição na Sextante): Maio de 2011<br />

Sextante Editora é uma chancela da<br />

Porto Editora, Lda.<br />

Email: editorial@sextanteeditora.pt<br />

Reserva<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem<br />

transmitida, no to<strong>do</strong> ou em parte, por qualquer processo electrónico, mecânico,<br />

fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora.<br />

Distribuição Porto Editora, Lda.<br />

Rua da Restauração, 365<br />

4099-023 Porto | Portugal<br />

www.portoeditora.pt<br />

Execução gráfica Bloco Gráfico, Lda.<br />

Unidade Industrial da Maia.<br />

DEP. LEGAL 326676/11<br />

ISBN 978-972-0-07140-8<br />

A cópia ilegal viola os direitos <strong>do</strong>s autores.<br />

Os prejudica<strong>do</strong>s somos to<strong>do</strong>s nós.


Aos meus pais.<br />

Ao Tiago e ao Miguel, sempre presentes.


A ilustração como cosa mentale<br />

Quan<strong>do</strong> o artista português Francisco de Holanda obteve de<br />

Miguel Ângelo Buonarroti a consideração de que a pintura seria<br />

cosa mentale, numa certa medida a sua reflexão abria, para os<br />

ilustra<strong>do</strong>res, o mote com que pensariam a sua tarefa; ou seja, ela<br />

seria para além da simples reprodução de um texto ou de um<br />

livro. O que se quer dizer é que to<strong>do</strong> o ilustra<strong>do</strong>r seria – ou deveria<br />

ser – pessoanamente, digamos – alguém que fosse ou buscasse<br />

ir além da ilustração.<br />

Talvez tivesse si<strong>do</strong> essa a intenção que buscava quan<strong>do</strong><br />

comecei a desenhar diretamente nas páginas <strong>do</strong> livro O <strong>profeta</strong><br />

<strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong>, <strong>do</strong> meu amigo <strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong>. Guar<strong>do</strong><br />

para mim – leitor compulsivo que sou – que a única maneira de<br />

nos encontrarmos com um livro é no quanto da cosa mentale ele<br />

nos possa suscitar. Compreenda-se: essa matéria de pensação<br />

pode assumir várias formas. Uma gênese possível são as adições<br />

que um ilustra<strong>do</strong>r apõe ao pensamento <strong>do</strong> escritor.<br />

Nada de pretensões, por favor. Avancei sobre o belo<br />

romance <strong>do</strong> <strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong> como uma forma de apreendê-<br />

-lo, por mais improvisa<strong>do</strong>s que sejam os desenhos que fui colocan<strong>do</strong><br />

diretamente entre os interstícios <strong>do</strong> texto – assim como<br />

um estudioso sublinha uma frase, qualquer uma, para interpretá-<br />

-la. Ler com a totalidade que podemos ser, essa a contrapartida<br />

de um leitor atento. E pela lógica de um ilustra<strong>do</strong>r também atila<strong>do</strong>,<br />

ainda que quase compulsivo.<br />

A história contida nesta obra, em que o diabo se faz, afinal,<br />

a mais compreensível das criaturas, um fino analista <strong>do</strong> homem<br />

(à «imagem e semelhança de Deus»), cada vez me animava a


desenhar como quem comenta – admirativamente no meu caso –<br />

os acha<strong>do</strong>s <strong>do</strong> livro.<br />

Jorge Luis Borges, num de seus escritos, referiu-se certa vez<br />

ao «milagre» que são esses pequenos sinais que, ao se moldarem<br />

em letras, em significa<strong>do</strong>s, criam mun<strong>do</strong>s, universos – novos<br />

mun<strong>do</strong>s, na verdade. São esses os mun<strong>do</strong>s pelos quais os artistas<br />

plásticos transitam – mesmo quan<strong>do</strong> não são figurativos. Robert<br />

Schumann, que sabia o que a música incorporava à poesia,<br />

quan<strong>do</strong> a transformava numa canção, repetia, muito a propósito,<br />

que todas as artes têm algo entre si. Digo «repetia», porque a<br />

idéia nunca foi nova: encontramo-la no Pro Archia <strong>do</strong> velho<br />

Cícero. E claramente como uma tentativa – mais uma, já naquele<br />

tempo – de teorizar sobre o assunto.<br />

Mas Schumann não apenas defendia uma tese: escreveu canções<br />

simplesmente maravilhosas a partir <strong>do</strong>s textos tanto de<br />

Heine, quanto de Mörike, de Goethe, de Schiller... Tinha ele, para<br />

si, que a confluência das artes podia ser uma outra coisa – mas<br />

sobretu<strong>do</strong>, também a seu turno, uma cosa mentale.<br />

Não foi somente isso, entretanto, que me animou a desenhar<br />

n’O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong>, pois não o fiz com qualquer intuito<br />

além de satisfazer minhas impressões. Em minha já longa carreira<br />

de ilustra<strong>do</strong>r de livros, não foram poucas as obras – ensaios,<br />

inclusive – em que interferi nas suas páginas com desenhos e, não<br />

raro, até com aquarelas. O que eu quero sublinhar – sinceramente<br />

– é que nunca me ocorreu que meus desenhos viessem parar na<br />

mesa de projetos de uma editora, como a Sextante: e como parte<br />

de um livro, como acabou por acontecer.<br />

A encomenda que fiz para mim mesmo, se é que posso dizê-<br />

-lo desta forma, desenhou-se em minhas ilustrações com uma<br />

espécie de satisfação íntima: queria ver como ficava o livro <strong>do</strong><br />

<strong>Pedro</strong> com as minhas garatujas. Desenhei-as, portanto, sem pretensão<br />

alguma. Digamos que foi a maneira que encontrei de gostar<br />

<strong>do</strong> livro.<br />

Deu-se, porém, que cometi a indiscrição de mostrá-las a<br />

alguns amigos escritores. To<strong>do</strong>s foram unânimes: «Você tem de<br />

enviar o livro ilustra<strong>do</strong> para o <strong>Pedro</strong>. Não tem senti<strong>do</strong> você ficar<br />

com o volume, e querer dizer, com isso, o quanto o livro lhe


agra<strong>do</strong>u». Logo, não seria o caso de guardá-lo numa estante. Ou<br />

no ateliê, entre outros trabalhos.<br />

To<strong>do</strong>s disseram mais ou menos a mesma coisa. Pessoalmente,<br />

porém, tinha as minhas dúvidas: e se o escritor não gostasse<br />

<strong>do</strong> que fiz? Afinal, eu tinha coberto alguns espaços <strong>do</strong> livro<br />

que o <strong>Pedro</strong> me havia da<strong>do</strong>, e com a minha interpretação – o<br />

ponto de vista de quem ilustra. No jeito, um pouco (ou muito), <strong>do</strong><br />

velho adágio que diz que «quem conta um conto, aumenta um<br />

ponto». Minhas dúvidas se resumiam, em síntese, a uma espécie<br />

de expectativa cautelosa: e se acontecesse que o <strong>Pedro</strong> pensasse –<br />

«que acinte...»; ou pior – «que ridículo»? Cheguei a consultar um<br />

amigo comum – o escritor David Oscar Vaz: ele que opinasse se o<br />

<strong>Pedro</strong> poderia não gostar <strong>do</strong> livro ilustra<strong>do</strong>. O David repetiu o<br />

bordão: é claro que eu deveria pô-lo no correio rumo a Portugal.<br />

Talvez, enfim, seja necessário consignar esses fatos. Foi pois<br />

com uma inefável surpresa que ouvi, não muito tempo depois, <strong>do</strong><br />

próprio <strong>Pedro</strong>, que não apenas tinha gosta<strong>do</strong> da minha intrusão,<br />

mas que até iria propor à Sextante incluí-la numa futura nova<br />

edição da obra. Tentei, com franqueza, fazer que o <strong>Pedro</strong> não<br />

considerasse quaisquer possíveis segundas intenções. E mais:<br />

que ele me desculpasse, mas se um de seus outros livros me agradasse,<br />

eu os desenharia da mesma forma, no próprio livro, sem<br />

cogitar que isso pudesse comprometê-lo para qualquer coisa,<br />

além da minha interferência, que é o meu mo<strong>do</strong> de ler. Penso,<br />

assim, que ele me possa desculpar num futuro qualquer, se o correio<br />

lhe trouxer um outro de seus romances, devolvi<strong>do</strong> com, digamos,<br />

«minhas considerações devidamente sublinhadas».<br />

Em suma, para os leitores deste belo livro: se a homenagem<br />

que eu pensava prestar ao <strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong> – autografan<strong>do</strong> à<br />

minha moda, e malcriadamente, quem sabe, o seu romance –,<br />

resultou em algo que lhes possa aprazer, ficam aqui os nossos<br />

agradecimentos – meu e dele, seguramente –, mais que de praxe.<br />

Uma nota final sobre o fato de se estar perante uma edição<br />

ilustrada de um romance. Não me agrada a expressão, o lugar-<br />

-comum muito usa<strong>do</strong> no Brasil, de «valor agrega<strong>do</strong>». Fica a idéia<br />

de que tu<strong>do</strong> é merca<strong>do</strong>ria – e não me parece que os valores espirituais,<br />

por mais que sejam justamente remunera<strong>do</strong>s, se comparem


aos automóveis, aos quais se acrescentam aparelhos de TV ou<br />

computa<strong>do</strong>res. Ao desenhar sobre O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong>,<br />

penso ter aduzi<strong>do</strong> muito mais que qualquer valor mensurável em<br />

moedas: homenagens a riquezas de uma obra de arte se constituem,<br />

para certos artistas, no quanto elas se espraiam para outras<br />

expressões. Pensemos, finalmente, sobre as ilustrações de uma<br />

obra como sen<strong>do</strong> um tema musical para o qual um compositor faz<br />

suas variações; elas desvelam o quanto uma idéia se des<strong>do</strong>bra em<br />

outra, realmente como cosa mentale.<br />

São Paulo, 24 de Março de 2011<br />

Enio Squeff


Este romance é uma ficção! Convém esclarecer, não vá o<br />

diabo tecê -las e a Igreja Católica ficar ofendida. No entanto, o seu<br />

conteú<strong>do</strong>, bem como as personagens, baseiam -se em factos, inúmeros<br />

<strong>do</strong>cumentos (não é imodéstia, mas foram mesmo centenas),<br />

deduções, intuições, procuran<strong>do</strong> -se sempre um rigor cronológico.<br />

Não deixa, porém, de ser uma ficção, embora com uma linha orienta<strong>do</strong>ra:<br />

os acontecimentos relata<strong>do</strong>s estão tão próximos da verdade<br />

e da mentira como muitas das crónicas oficiais, políticas ou teológicas<br />

escritas naquela época. O Santo Ofício, primeiro, e a Real Mesa<br />

Censória, mais tarde – não esquecen<strong>do</strong> a acção <strong>do</strong> pombalismo no<br />

seu auge –, «filtraram» e «reescreveram» parte da História de Portugal<br />

e Brasil <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> e terceiro quartéis <strong>do</strong> século xviii que<br />

chegou até nós.<br />

O autor deste romance desconfia também que jamais teria<br />

coragem para o escrever se vivesse naquela época. Perante a intolerância<br />

religiosa, o melhor que lhe poderia acontecer era que o<br />

livro não fosse impresso. O pior: acenderem -se duas fogueiras;<br />

uma para ele, outra para o livro…<br />

11


«The eighteenth century used the word Lisbon much as we use the<br />

word Auschwitz today.»<br />

Susan Neiman (2002), in Evil in Modern Thought –<br />

An Alternative History of Philosophy<br />

«Movi<strong>do</strong> de um justo temor e compaixão a esta pobre Cidade, fiz<br />

várias diligências, ainda que talvez não todas as que devia, para satis‑<br />

fazer de alguma sorte a Deus, e atalhar <strong>castigo</strong> tão tremen<strong>do</strong>; pois<br />

sabia, e era para mim tão certo, que só uma conversão verdadeira das<br />

nossas almas ao mesmo Senhor, podia atalhar tão horroroso estrago.»<br />

Gabriel Malagrida (1756), in Juízo da Verdadeira Causa <strong>do</strong> Terremoto<br />

que Padeceo a Corte de Lisboa no Primeiro de Novembro de 1755<br />

«Ah Portugal! Ah Lisboa! O que maquinaram os teus peca<strong>do</strong>s; já Deus<br />

tinha revela<strong>do</strong> à sua Serva, a Madre Maria Joana <strong>do</strong> Mosteiro <strong>do</strong><br />

Santíssimo Sacramento <strong>do</strong> Louriçal, que não podia sustentar os peca‑<br />

<strong>do</strong>s deste Reino, e principalmente os de Lisboa.»<br />

D. J. F. M. (1756), in Theatro Lamentável, Scena Funesta: Relaçam<br />

Verdadeira <strong>do</strong> Terremoto <strong>do</strong> Primeiro de Novembro de 1755<br />

«Ô malheureux mortels! ô terre déplorable!<br />

Ô de tous les mortels assemblage effroyable!<br />

D’inutiles <strong>do</strong>uleurs éternel entretien!<br />

Philosophes trompés qui criez: “Tour est bien”;<br />

Accourez, contemplez ces ruines affreuses,<br />

Ces débris, ces lambeaux, ces cendres malheureuses,<br />

Ces femmes, ces enfants l’un sur l’autre entassés,<br />

Sous ces marbres rompus ces membres dispersés;<br />

Cent mille infortunés que la terre dévore,<br />

Qui, sanglants, déchirés, et palpitants encore,<br />

Enterrés sous leurs toits, terminent sans secours<br />

Dans l’horreur des tourments leurs lamentables jours!»<br />

Voltaire (1756), in Poème sur le desastre de Lisbonne<br />

ou Examen de cet axiome «Tout est Bien»<br />

13


Antelóquio<br />

Caro padre Gabriel Malagrida, vou acender esta vela para que<br />

despertes. Dentro de uma hora te chamarão ao claustro da igreja de<br />

São Domingos. A tua Santa Igreja prepara ‑se para te atribuir um<br />

prémio pelos trinta anos de apostola<strong>do</strong> que lhe dedicaste, no âmago<br />

das florestas da Amazónia, entre os gentios selváticos e os colonos<br />

ímpios <strong>do</strong> Maranhão e Brasil, e pela década de vida que consumiste a<br />

pregar a cruz de Jesus Cristo em Portugal. Insiste, a tua Santa<br />

Igreja, que estejas presente no solene acto onde, de ordinário, se per‑<br />

suadem os mais encarniça<strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>res a reconhecerem a misericór‑<br />

dia e o poder <strong>do</strong> Senhor. Sempre de forma pie<strong>do</strong>sa, porque assim o<br />

ensinou e determinou o Filho de Deus.<br />

Aliás, como é apanágio da tua Santa Igreja, que mesmo para as<br />

mais vis transgressões sempre pugnou pelo axioma da compaixão,<br />

jamais sequer atiran<strong>do</strong> pedras, porque afinal to<strong>do</strong>s pecam. A tua<br />

Santa Igreja foi, por isso, previdente e organizada, já fez espalhar um<br />

édito pelas ruas da cidade de Lisboa e às portas <strong>do</strong>s templos para<br />

apartar excessos e apregoar a benignidade. Vou lê ‑lo para que ouças<br />

quão pie<strong>do</strong>sa é a tua Santa Igreja:<br />

– Os Inquisi<strong>do</strong>res Apostólicos contra a herética pravidade e<br />

apostasia nesta cidade de Lisboa e seu distrito, fazemos saber que<br />

<strong>do</strong>mingo que vem, 21 de Setembro de 1761, com o favor Divino se<br />

celebrará Auto público da Fé, no qual há -de haver sermão em louvor<br />

de nossa Santa Fé, para o qual os Sumos Pontífices têm concedi<strong>do</strong><br />

muitas graças e indulgências às pessoas que assistirem em<br />

semelhantes actos. Pelo que mandamos que no dito dia não haja<br />

em Igreja alguma ou convento desta cidade outro sermão. E mandamos<br />

também que todas as pessoas, de qualquer condição e<br />

esta<strong>do</strong> que sejam, não escandalizem nem tratem mal, por obra ou<br />

15


<strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong><br />

palavra, os penitencia<strong>do</strong>s que saírem no dito Auto, nem lhe chamem<br />

sambenita<strong>do</strong>s ou algum outro nome afrontoso; antes os<br />

encomendem a Deus com muita caridade em suas orações, para<br />

que com arrependimento e humildade cumpram suas penitências.<br />

Diz ‑me, padre Malagrida, não é mesmo bon<strong>do</strong>sa e compassiva<br />

esta tua Santa Igreja?! Vê lá que os seus mais insignes membros deci‑<br />

diram que sejas devida e pomposamente acompanha<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is fra‑<br />

des beneditinos e pela mais fina nata da nobreza: o duque de Cadaval<br />

e o conde de Vila Nova te irão escoltar. Terás mesmo o privilégio de<br />

fechar o cortejo forma<strong>do</strong> por uma vasta legião de peca<strong>do</strong>res; tal como<br />

em todas as inúmeras procissões que organizaste no Maranhão, no<br />

Brasil, em Portugal.<br />

Neste préstito, porém, tu<strong>do</strong> será diferente, porquanto, de entre<br />

to<strong>do</strong>s os peca<strong>do</strong>res, há alguns cujas transgressões são tão horríveis<br />

que se ditarão um público. Mais precisamente as de 37 homens e 20<br />

mulheres. A maior parte deles são bígamos masculinos ou pratican‑<br />

tes <strong>do</strong> judaísmo. Quatro homens e nove mulheres, sabe ‑se, fizeram<br />

pactos com o demónio – coisa que, no entanto, não te confirmo;<br />

alguns deram missa não sen<strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>tes; uns quantos homens par‑<br />

<strong>do</strong>s e negros, vin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Brasil, foram apanha<strong>do</strong>s na posse de hóstias<br />

consagradas; um açoriano disse blasfémias; um religioso pôs em<br />

causa os rectos procedimentos da tua Santa Igreja e, pior, <strong>do</strong> Santo<br />

Ofício. Enfim, o rol é longo.<br />

Contu<strong>do</strong>, o maior <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>res serás tu, padre Malagrida! Eu<br />

sei que durante a tua vida sempre foste rigoroso na introspecção: te<br />

identificavas, invariavelmente, nas cartas para os teus colegas da<br />

Companhia de Jesus, como Il più indegno servo di tutti nel Signore<br />

1 . Mas de servo indigno, a tua Santa Igreja te acusa agora de<br />

seres o mais pérfi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s homens. Deixai ‑me ler aquilo que está aqui<br />

escrito no teu processo, feito pelos <strong>do</strong>utos e perfeitos juízes <strong>do</strong> Tribu‑<br />

nal da Inquisição:<br />

– Christi Jesu nomine invocato 2 , declaramos o réu padre<br />

Gabriel Malagrida por convicto no crime de Heresia, por afirmar,<br />

seguir, escrever e defender proposições e <strong>do</strong>utrinas opostas aos<br />

1 O mais indigno servo de to<strong>do</strong>s no Senhor, em tradução <strong>do</strong> italiano.<br />

2 Depois de termos invoca<strong>do</strong> o nome de Jesus Cristo.<br />

16


verdadeiros <strong>do</strong>gmas e <strong>do</strong>utrinas que nos propõem e ensina a<br />

Santa Madre Igreja de Roma; e que foi e é herege de nossa Santa<br />

Fé Católica, e como tal incorreu em sentença de excomunhão<br />

maior e nas mais penas em Direito contra semelhantes estabelecidas.<br />

E como herege e inventor de novos erros heréticos, convicto,<br />

ficto, falso, confitente, revogante, pertinaz e profitente <strong>do</strong>s<br />

mesmos erros: manda este Tribunal que seja deposto e degrada<strong>do</strong><br />

das suas ordens, segun<strong>do</strong> a disposição e forma <strong>do</strong>s Sagra<strong>do</strong>s<br />

Cânones. E assim será entregue à Justiça Secular para que, com<br />

baraço e pregão, seja leva<strong>do</strong> pelas ruas públicas desta cidade até<br />

à praça <strong>do</strong> Rossio, e que nela morra de morte natural de garrote;<br />

e que, depois de morto, seja seu corpo queima<strong>do</strong> e reduzi<strong>do</strong> a pó<br />

e cinza, para que dele e de sua sepultura não haja memória<br />

alguma.<br />

Padre Gabriel Malagrida?!, quantas acusações!!! Como o<br />

mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s humanos é caprichoso e cruel. Eu até já assisti a muitos<br />

homens e mulheres serem considera<strong>do</strong>s heréticos em vida, mas que,<br />

depois de mortos, acabaram santos. Mas eis que contigo sucederá o<br />

oposto: passarás de santo vivo a herético morto. Triste desfecho o teu!<br />

Ficarás na História como o derradeiro condena<strong>do</strong> à fogueira da<br />

Inquisição e a última vítima <strong>do</strong> terramoto de Lisboa <strong>do</strong> ano da graça<br />

de 1755. O mesmo terramoto que anunciaste como Castigo Divino,<br />

que querias evitar, tornan<strong>do</strong> o Reino mais pio. E afinal, falhaste a<br />

tua «missão» e, em troca, recebeste, por via de um homem, o mais<br />

cruel Castigo Humano: o suplício na morte.<br />

Mesmo ten<strong>do</strong> eu si<strong>do</strong> eleito pela tua Santa Igreja como o pior<br />

inimigo <strong>do</strong>s homem – e tu próprio me acusaste disso por inúmeras<br />

vezes –, vou contar a tua história e a de to<strong>do</strong>s os acontecimentos que<br />

te levaram ao patíbulo. Desconfio que não o aproves, mas nada pode‑<br />

rás fazer para me deteres.<br />

Receio, porém, ser o narra<strong>do</strong>r menos ajusta<strong>do</strong>. E se admito esta<br />

incerteza não é por duvidar <strong>do</strong> meu talento, mas sim por temer que os<br />

leitores possam desacreditar da minha isenção. Arriscaria, aliás, esse<br />

agravo, de imediato, se eles me reconhecessem desde já. O meu pas‑<br />

sa<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> assoalha a tua Santa Igreja, está inunda<strong>do</strong> de mácula.<br />

Sou eu acusa<strong>do</strong> há séculos, embora sem provas, de me apresentar sob<br />

várias formas e disfarces, transmutan<strong>do</strong> mesmo de nome; de incitar<br />

PCD_02<br />

17<br />

O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong>


<strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong><br />

os homens à inveja, ao ciúme, à cólera, até à fornicação, e principal‑<br />

mente à i<strong>do</strong>latria.<br />

Alega a tua Santa Igreja que posso ocasionar no corpo humano<br />

todas as enfermidades que procedem de coisas naturais, dan<strong>do</strong> ‑lhe<br />

venenos sem advertir; que altero os humores nocivos; que inclino os<br />

homens a que façam destemperanças nocivas à saúde; que posso<br />

mover um homem de uma parte para a outra, arrebatá ‑lo pelos ares e<br />

conservá ‑lo imóvel no ar; que posso fazer com que desapareçam objec‑<br />

tos ou causar névoas na visão com algum humor; que posso infundir<br />

às pessoas um sono repentino ou mudar ‑lhes os senti<strong>do</strong>s, até levá ‑los<br />

a outras partes.<br />

Diz também a mesma tua Santa Igreja que posso criar fanta‑<br />

sias e ilusões; que posso confundir o entendimento, ensinan<strong>do</strong> muitas<br />

coisas novas, descobrir muitos segre<strong>do</strong>s, levantar muitas dúvidas; e<br />

que ilustro, com muitas inteligências, <strong>do</strong>utrinas erróneas à luz <strong>do</strong>s<br />

ensinamentos canónicos, e outras que, mesmo sen<strong>do</strong> verdadeiras,<br />

sempre têm algum mau fim.<br />

Prevejo, por isso, no decurso deste relato, que os meus leitores<br />

cheguem a desconfiar da veracidade da minha escrita ou da proba‑<br />

bilidade de ter conheci<strong>do</strong> alguns <strong>do</strong>s factos, tanto mais que, admito,<br />

não possuo a capacidade de omnipresença nem de omnipotência. No<br />

entanto, sempre compensei esses estorvos com a potência locomo‑<br />

tiva, por virtude da qual me posso mover de um la<strong>do</strong> para outro de<br />

forma estupenda. Posso, em tempo breve e imperceptível, rodear<br />

to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> com maior presteza e menor dificuldade que o adejo<br />

<strong>do</strong>s pensamentos humanos. No espaço de uma Ave ‑Maria consigo ir<br />

e vir da Índia, duas, três ou mesmo quatro vezes; e posso fazê ‑lo sem<br />

passar pelo mar ou pelo espaço. Não há torre, não há montanha,<br />

não há cidade que seja suficientemente sólida, pesada e firme para<br />

que a tome às costas e a transplante noutra parte remotíssima. Sou<br />

incapaz de produzir fogo, mas posso ir de um sopro ao Monte Etna<br />

ou a outro qualquer vulcão, desenterrar labaredas, trazê ‑las comigo<br />

e lançá ‑las numa nau, queiman<strong>do</strong> ‑a no meio <strong>do</strong> mar. Tenho até a<br />

aptidão para, por alguns instantes, condensar o ar, figurá ‑lo a meu<br />

mo<strong>do</strong> e formar to<strong>do</strong>s os corpos, imagens e aparência que quiser.<br />

18


O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong><br />

Além destas faculdades, conheço por experiência própria todas<br />

as inclinações <strong>do</strong>s homens, sou subtilíssimo em discorrer e conjectu‑<br />

rar as coisas – mesmo as ocultas, como os actos livres e interiores de<br />

cada homem e mulher –, o que faço combinan<strong>do</strong> sagazmente e<br />

pesan<strong>do</strong> com incrível subtileza todas as premissas e meios.<br />

Tenho também a capacidade, aponta a tua Santa Igreja, de ins‑<br />

truir uma pessoa de Oração para que esta pareça não só um mago<br />

mas também vaticina<strong>do</strong>r, revelan<strong>do</strong> ‑lhe coisas que já existem no<br />

Mun<strong>do</strong> ou que venham a surgir, como os cataclismos, os eclipses futu‑<br />

ros, as esterilidades, as fertilidades e mesmo os terramotos. Que<br />

posso, para enganar, causar no coração da criatura dada à Oração<br />

sentimentos espirituais repentinos e veementes que parecem santos e<br />

honestos, não o sen<strong>do</strong>. Que, por minha intervenção, pode um vivente<br />

ter aparentes êxtases, alienações de senti<strong>do</strong>s, suspensões no ar e<br />

outras coisas mais portentosas. E muitos outros prodígios me atribui<br />

a tua Santa Igreja, que aqui omito para evitar aturdimentos.<br />

É certo que usei, padre Malagrida, mas sem abusar, de muitas,<br />

que não de todas, estas minhas habilidades. Mas, em to<strong>do</strong> o caso, te<br />

juro – embora não colocan<strong>do</strong> a mão nas Sagradas Escrituras da tua<br />

Santa Igreja – que serei fiel ao curso <strong>do</strong>s acontecimentos.<br />

Espero, assim, ao longo desta história, ter acerto no começar,<br />

direcção no progredir e perfeição no concluir. Dos meus leitores,<br />

somente anseio que tenham a agudeza para entender, a capacidade<br />

para reter, méto<strong>do</strong> e faculdade para aprender, e subtileza e graça<br />

para interpretar.<br />

19


LIVRO I<br />

o santo vivo


Capítulo I<br />

À entrada da barra de Lisboa, enxergar um navio com casco<br />

despedaça<strong>do</strong>, velas esmolambadas e leme parti<strong>do</strong> deveria significar,<br />

pelas leis da marinhagem, naufrágio à vista. O primeiro dia<br />

de Fevereiro de 1750 deveria ter si<strong>do</strong>, por isso, o último da vida<br />

<strong>do</strong>s marinheiros e passageiros daquela nau que, há <strong>do</strong>is meses,<br />

rumara de Belém <strong>do</strong> Pará.<br />

Perante aquele previsível soçobro, no princípio daquela tarde,<br />

magotes acorreram às praias <strong>do</strong> Tejo. Uns por sentida inquietação,<br />

outros pelo fascínio <strong>do</strong> triste espectáculo, aqueloutros esperançosos<br />

em recolher os despojos da embarcação que derribariam aos<br />

roche<strong>do</strong>s. Para matar o tédio, que o navio an<strong>do</strong>u em rebuliço desgoverna<strong>do</strong>,<br />

surgiram então as apostas sobre o salva -se, não se<br />

salva. Estavam quase equilibradas, mas logo que o navio a<strong>do</strong>rnou<br />

num escolho, ainda por cima haven<strong>do</strong> maré vazante, os palpites<br />

guindaram também. Criou -se então uma nova variante: o acerto no<br />

número de mortes, pois apenas um joga<strong>do</strong>r, com mais fé, insistiu<br />

em manter empenha<strong>do</strong> meia dúzia de réis a favor de um salvatério.<br />

Lance mais arrisca<strong>do</strong> por os aposta<strong>do</strong>res nem sequer saberem ao<br />

certo quantos homens trazia a nau, mas, de qualquer mo<strong>do</strong>, com<br />

direito a um prémio mais apetecível para os sortu<strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res.<br />

Tão animada estava esta jogatina que poucos se aperceberam<br />

<strong>do</strong> instante em que, num repente, a embarcação se soltou <strong>do</strong> roche<strong>do</strong>.<br />

E muitos nem repararam, de início, que derivou contra a maré<br />

vazante – estan<strong>do</strong> ainda por cima o vento a bater de leste – como se<br />

propulsada por mão invisível, começan<strong>do</strong> a entrar barra adentro com<br />

a popa a fazer de proa. O pasmo foi enorme e teria si<strong>do</strong> ainda maior,<br />

não fosse ter -se vislumbra<strong>do</strong>, no cimo <strong>do</strong> convés <strong>do</strong> navio, conduzin<strong>do</strong><br />

aqueles madeiros flutuantes como cavaleiro destro, um homem<br />

23


<strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong><br />

vesti<strong>do</strong> de preto, alouradas barbas ao vento, em bra<strong>do</strong>s para os céus e<br />

de braços estica<strong>do</strong>s suportan<strong>do</strong> a imagem da Virgem Maria.<br />

– Milagre! Milagre! É o Santo <strong>do</strong> Maranhão que ali vem! –<br />

alguém gritou.<br />

Embora discordan<strong>do</strong> desta denominação, aquela voz tinha<br />

razão sobre a fama da pessoa em causa. Era mesmo o padre Gabriel<br />

Malagrida, jesuíta famoso pelos portentosos milagres que operara<br />

nas Américas, que acostava à cidade de Lisboa. O delírio apossou -se<br />

daquelas gentes – tanto assim que to<strong>do</strong>s se esqueceram, ou a confusão<br />

lhes foi proveitosa para tal, de pagar as quantias ajustadas ao<br />

único homem que arriscara dinheiro pela salvação da nau. E, mais<br />

tarde, quan<strong>do</strong> se tomou conhecimento com que artes se evitaram<br />

outras maleitas da jornada, o endeusamento de Malagrida atingiu o<br />

infinito, sobretu<strong>do</strong> porque foram muitas – as artes e as maleitas – e<br />

os marinheiros acrescentaram pontos aos contos para impressionar<br />

os ouvintes com os relatos daquela espinhosa travessia <strong>do</strong> Atlântico.<br />

Confesso -vos que estive tenta<strong>do</strong> a tomar medidas drásticas<br />

para impedir a vinda deste jesuíta ao Reino de Portugal. O fim<br />

justificaria os meios – e haveria mesmo quem me agradecesse o<br />

serviço. Contu<strong>do</strong>, como estou despossuí<strong>do</strong> das maldades que por<br />

regra me atribuem, fui demasia<strong>do</strong> bran<strong>do</strong> nos meus gestos para<br />

evitar a sua chegada a Lisboa. Aliás, pior, mais valia ter esta<strong>do</strong><br />

quieto: acabei, indirectamente, por contribuir com as minhas<br />

obras, adicionadas a prodígios inexplicáveis e a sortes incríveis,<br />

para o oposto às minhas pretensões, que era obrigar a nau a dar<br />

meia volta e regressar ao Maranhão.<br />

Não foi por tardança ou negligência que falhei. Ainda no<br />

porto de Belém, sain<strong>do</strong> o navio numa tarde radiosa, tratei logo de<br />

trazer sobre o mar um vento impetuoso até se formar uma tão<br />

grande tempestade que a embarcação logo ameaçou despedaçar-<br />

-se. Julguei que, com esta borrasca, o capitão decidisse pelo<br />

regresso a terra, mas este, apesar da oposição unânime <strong>do</strong> imediato<br />

e marinheiros, ousou continuar a navegação.<br />

– Este navio está protegi<strong>do</strong> pelo padre Malagrida, o nosso<br />

São Francisco Xavier! – sentenciou.<br />

Por causa destas palavras, ainda desassosseguei mais a tormenta<br />

e com alguns sussurros nos espíritos de alguns temerosos<br />

24


O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong><br />

marinheiros, o padre Malagrida começou a ser aponta<strong>do</strong> como<br />

suspeito daquele iminente suicídio colectivo. A confirmação surgiu<br />

a to<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong>, decidi<strong>do</strong>s a apurar culpas, a marinhagem foi<br />

deitar sortes: os da<strong>do</strong>s apontaram, repetidamente, para o jesuíta<br />

como o causa<strong>do</strong>r da desgraça. Mas, no precedente momento em<br />

que aquela chusma ululante já se aprestava para descer à cata <strong>do</strong><br />

jesuíta, de mo<strong>do</strong> a lançá -lo ao mar, surgiu -lhes a própria vítima<br />

no convés para anunciar uma missa de acção de graças. Como<br />

consta que Jonas, antes de ser arremessa<strong>do</strong> borda fora, não<br />

esteve a organizar orações ao Senhor, os marinheiros recuaram<br />

nas suas intenções. E a missa fez -se.<br />

Infelizmente, os meus poderes não conseguem, por espaço<br />

muito alarga<strong>do</strong>, manter alterações artificiosas nos centros de<br />

altas pressões de onde derivam os ventos. Por isso, para minha<br />

lamentável amofinação, não aguentei sustentar a tempestade por<br />

mais tempo, abalan<strong>do</strong> esta depois <strong>do</strong> jesuíta lançar os braços ao<br />

alto e, com um bastão na mão e voz altiva, ameaçar o vento e intimidar<br />

as águas. Logo que Malagrida terminou a troada, o navio<br />

deu de querena, sem percalços, aumentan<strong>do</strong> -lhe a santimónia<br />

fama de serenar tempestades.<br />

No entanto, e nisto já nada influí, as vociferantes preces <strong>do</strong><br />

jesuíta devem também ter ti<strong>do</strong> o condão de amedrontar tanto o<br />

vento que este, assustadiço, careceu de coragem para rodear a<br />

embarcação durante longos dias – coisa que, naqueles tempos,<br />

significava falta de combustível. Sem vento não há nuvens, sem<br />

nuvens não há chuva, sem chuva não há água, sem água não há<br />

pipas cheias que resistam à sede. Foi decreta<strong>do</strong>, por isso, racionamento.<br />

E tanto assim que, passan<strong>do</strong> os dias, a míngua fez regressar<br />

a angústia a bor<strong>do</strong>. Desta vez, a marinhagem nem precisou<br />

lançar de novo sortes; de suspeito no caso da tempestade, Malagrida<br />

passou a culpa<strong>do</strong> de serenar em excesso o ar à conta de tantas<br />

rezas. Como é curto o caminho da graça até à desgraça. No<br />

entanto, infelizmente, eram já poucas as forças e coragem <strong>do</strong>s<br />

marinheiros para o lançarem ao mar.<br />

O padre Malagrida, homem habitua<strong>do</strong> a maiores agruras,<br />

manteve -se sereno, mas não alheio aos tormentos daqueles<br />

homens. Mas somente reagiu após uma desesperante súplica <strong>do</strong><br />

25


<strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong><br />

capitão, feita com muita fé – que o desespero ajuda a aumentá -la<br />

– para que fizesse chuva. Eu teria motivos, como vos relatarei<br />

mais tarde, para recear que a sorte em questões de meteorologia<br />

o ajudassem de novo. Contu<strong>do</strong>, desta vez, fiquei alivia<strong>do</strong>. Em<br />

re<strong>do</strong>r de milhares de milhas não se vislumbrava qualquer resquício<br />

de nuvens e, perscrutan<strong>do</strong> a localização <strong>do</strong>s centros de altas<br />

pressões, confirmei a ausência de qualquer instabilidade promotora<br />

de precipitação nos dias mais próximos. Apesar disso, o<br />

padre Malagrida não se fez roga<strong>do</strong> ao pedi<strong>do</strong> e assomou ao convés,<br />

com naturalidade, anuncian<strong>do</strong>:<br />

– Se alguém tem sede, venha a mim!<br />

Estas palavras tiveram, por sequiosas razões, o condão de<br />

provocar um célere ajuntamento, tanto mais que aquelas gentes,<br />

padecen<strong>do</strong> já de alucinações sitibundas, julgaram que <strong>do</strong> coração<br />

<strong>do</strong> jesuíta haveriam de brotar rios de água pura. Mas, em vez<br />

disso, ouviram uma estranha solicitação:<br />

– Trazei -me <strong>do</strong>ze pedras, uns pedaços de madeira, uma porção<br />

de um boi esquarteja<strong>do</strong> e quatro canadas de água <strong>do</strong>ce.<br />

Pasmo geral, alguns marinheiros desfaleceram ao ouvir as<br />

duas últimas palavras.<br />

– Pedras não temos, santo padre. E tanta água também não!<br />

– respondeu o atónito capitão.<br />

Malagrida que<strong>do</strong>u -se pensativo, coçou então a barba e olhou<br />

para o céu por breves momentos, como quem pede autorização<br />

superior para trocar lebre por gato.<br />

– Pedras seriam mais adequadas para os meus intentos. Mas<br />

então… cortai um mastaréu e trazei -o em igual número de pedaços.<br />

E se não há quatro canadas, que me tragam quatro quartilhos.<br />

– Um mastaréu?! – admirou -se o capitão, cada vez menos<br />

crédulo. – E como continuaremos viagem? E que ireis fazer com<br />

a água?<br />

– Ah, homem de pouca fé! Faz o que te digo. Não recuses o<br />

que te deman<strong>do</strong> para que aos olhos de Deus não sejas merece<strong>do</strong>r<br />

<strong>do</strong> <strong>castigo</strong> devi<strong>do</strong> aos peca<strong>do</strong>s deste navio.<br />

Malagrida sempre soube usar sábias palavras para convencer<br />

um pertinaz. E estas até foram das mais brandas, que o<br />

Inferno como destino era, de ordinário, menciona<strong>do</strong> se algo lhe<br />

26


O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong><br />

recusavam. Em menos de três tempos, lhe satisfizeram os três<br />

pedi<strong>do</strong>s: foi serrada a gávea <strong>do</strong> velacho, arrumaram -se uns nacos<br />

de carne e levou -se <strong>do</strong> porão a única pipa que ainda continha algo<br />

mais <strong>do</strong> que ar. O jesuíta encheu então quatro talhas com água,<br />

dispôs os madeiros até formarem uma desengonçada árula, em<br />

volta deste arcaico altar raspou um sulco com uma navalha e, por<br />

fim, depositou a carne e uns pedaços de madeira. Termina<strong>do</strong> isto,<br />

pegou -lhes o fogo.<br />

A marinhagem nem quis acreditar nos próprios olhos. E fe charam<br />

-nos, em desespero, quan<strong>do</strong> o jesuíta derramou as talhas de<br />

água sobre aquele holocausto. Mas os seus ouvi<strong>do</strong>s tiveram, logo<br />

de seguida, motivos para também se afligirem.<br />

– Tornai a fazer o mesmo! Enchei e despejai mais quatro<br />

talhas! – ordenou -lhes Malagrida.<br />

O jesuíta viu -se obriga<strong>do</strong> a repetir mais duas vezes esta intimação<br />

perante o burburinho das protestações. E a terceira já foi<br />

com a voz escabreada e as faces ruborescidas, de mo<strong>do</strong> a que lhe<br />

obedecessem sem mais reclamações. Vi então, naquele convés,<br />

muitos pares de olhos de desespero e muitos pares de pernas com<br />

ânsias em se lançarem aos pés daquela ara para sorverem os desperdícios<br />

aquosos que dali tombavam – que punhos fecha<strong>do</strong>s de<br />

fúria, <strong>do</strong>s mais incrédulos, ainda eram poucos, embora em<br />

número crescente. O padre Malagrida parecia, contu<strong>do</strong>, indiferente<br />

aos esgares horroriza<strong>do</strong>s daqueles homens.<br />

– Fazei -o pela terceira vez! – repetiu.<br />

Desta vez, ninguém se mexeu, nem mugiu nem tugiu;<br />

somente se ouviram dentes rangen<strong>do</strong>. Somente após um penetrante<br />

olhar <strong>do</strong> jesuíta sobre o capitão, este se abalançou para,<br />

finalmente, lançar as últimas porções <strong>do</strong> líqui<strong>do</strong> que restava na<br />

pipa. Apesar deste cerimonial, e de se ter passa<strong>do</strong> uma hora a<br />

ouvir as ladainhas <strong>do</strong> padre Malagrida defronte daqueles destroços<br />

lamacentos de carnes e madeiras esturricadas, nem nuvens<br />

no horizonte assomaram, quanto mais água a cair <strong>do</strong> céu. Os mais<br />

afoitos e assanha<strong>do</strong>s de entre a marinhagem estavam já a perder<br />

a encalistração e ameaçavam avançar para junto <strong>do</strong> altar. Suspeitava<br />

eu que, desta vez, falhan<strong>do</strong> Malagrida a promessa de trazer<br />

água à nau, acabaria ele lança<strong>do</strong> da nau para a água.<br />

27


<strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong><br />

Desconheço se foi pela sua experiência em perceber intentos<br />

selvagens, obtida junto <strong>do</strong>s gentios, certo é que o jesuíta pareceu<br />

desconfiar <strong>do</strong>s propósitos de alguns daqueles homens.<br />

Estavam já alguns a quatro ou cinco passos de distância, quan<strong>do</strong><br />

Malagrida os fitou, abriu os braços, olhou os céus e clamou em<br />

vozeirão assusta<strong>do</strong>r:<br />

– Senhor, mostrai hoje que sois o Deus <strong>do</strong>s homens! Que eu<br />

sou o teu servo, e que às tuas ordens eu fiz tu<strong>do</strong> isto. Respondei-<br />

-me Senhor, respondei -me! Fazei com que estas gentes reconheçam<br />

que Tu, Senhor, é que és Deus; Aquele que lhes converte os<br />

corações!<br />

Mais uma vez, à conta de ditos celestiais, se livrou o jesuíta<br />

de dificuldades, porquanto se tornou inoportuno à marinhagem<br />

causar violência a quem proferia rogos em direcção ao Altíssimo.<br />

Em to<strong>do</strong> o caso, se o padre Malagrida esperava, com estas preces,<br />

receber resposta divina similar à obtida pelo <strong>profeta</strong> Elias,<br />

enganou -se. Nem o fogo <strong>do</strong> Senhor caiu sobre aquele holocausto<br />

de lenha, carne e lama; nem o vento soprou; nem o céu se cobriu<br />

de nuvens negras; nem chuva tombou em torrentes. Tu<strong>do</strong> ficou<br />

na mesma, excepção feita ao navio ter fica<strong>do</strong> sem mastaréu e a<br />

marinhagem com menos carne de boi e sem quatro quartilhos de<br />

água <strong>do</strong>ce.<br />

Dois enganos em tão curto espaço de tempo, mesmo em<br />

homens crédulos, são sempre um excesso. Caso aquele jesuíta<br />

não fosse o padre Gabriel Malagrida, o seu destino estaria traça<strong>do</strong>,<br />

mais rogo menos rogo. Contu<strong>do</strong>, como um mágico que falha<br />

um truque e se apresta a tentar outro – ou um político que faz<br />

esquecer uma promessa incumprida, crian<strong>do</strong> outra –, Malagrida<br />

tratou de tirar ideias homicidas aos marinheiros.<br />

– Não olheis, até amanhã, para as águas <strong>do</strong> mar! – apregoou<br />

aos homens, em mo<strong>do</strong>s ameaça<strong>do</strong>res, quan<strong>do</strong> alguns já o rodeavam.<br />

– Pobres <strong>do</strong>s que corromperem este meu aviso, porque a ira<br />

divina vos castigará como à mulher de Lot que olhou a destruição<br />

de So<strong>do</strong>ma.<br />

Embora conhecesse a astúcia <strong>do</strong> jesuíta, somente mais tarde<br />

alcancei os seus propósitos. Aquelas palavras não foram proferidas<br />

apenas para salvar a sua pele. Aquele sacrifício de calcinar<br />

28


O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong><br />

carne e apagar o fogo com água fora parte de uma encenação.<br />

E as ameaças aos marinheiros para não fixarem o líqui<strong>do</strong> salga<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> mar constituía o segun<strong>do</strong> acto – embora também com acção<br />

profiláctica. De facto, sem água <strong>do</strong>ce e sem aquelas advertências,<br />

certo seria alguns desespera<strong>do</strong>s lançarem baldes ao mar para se<br />

saciarem, transforman<strong>do</strong> -se, senão em estátuas salgadas, pelo<br />

menos em rijos cadáveres salmoura<strong>do</strong>s.<br />

A estratégia de Malagrida, disso fiquei depois ciente, já há<br />

muito estaria conjecturada. Como <strong>do</strong>s céus não lhe surgia água<br />

<strong>do</strong>ce, então congeminara que <strong>do</strong> mar viesse, conquanto se lhe<br />

tirasse o sal, por um méto<strong>do</strong> subtilíssimo, para que o paladar não<br />

o sentisse. Mas para que o coração saboreasse como sen<strong>do</strong> uma<br />

dádiva divina – que é deste conduto que se alimenta a fé – ser -lhe-<br />

-ia ponderoso que nenhuns olhos vissem como surgira a manipulação.<br />

Na verdade, na verdade vos digo: o padre Malagrida era um<br />

embusteiro, mas com fidúcia e, em seu abono, letra<strong>do</strong>.<br />

Há alguns anos atrás, lera ele um livro, intitula<strong>do</strong> Silva de<br />

varia lección, escrito por um sevilhano de nome <strong>Pedro</strong> Mexía, cronista<br />

régio de D. Carlos V de Castela, que explicava como se<br />

poderia sacar no mar alguma quantidade de água <strong>do</strong>ce. Esta obra<br />

continha um amontoa<strong>do</strong> de patetices, mas o capítulo sobre a dessalga<br />

<strong>do</strong> mar – que antecedia uma dissertação sobre a razão e<br />

causa de to<strong>do</strong>s os animais locomotores terem pés pares – tinha<br />

algum senti<strong>do</strong>. Através <strong>do</strong> receituário de Gaius Plinius Secundus,<br />

incluí<strong>do</strong> no seu trigésimo primeiro livro da Historia Naturalis,<br />

Mexía sugerira que se usassem filtros de argila. Não os haven<strong>do</strong>,<br />

recomendava um méto<strong>do</strong> semelhante ao proposto por Aristóteles:<br />

umas bolas de cera delgadas, ocas por dentro, sem boca e respira<strong>do</strong>r,<br />

que deveriam ser metidas no mar, dentro de uma rede,<br />

pelo espaço de um dia natural. Abertas, escreveu <strong>Pedro</strong> Mexía,<br />

sairia uma água tão <strong>do</strong>ce e tão boa como a de uma fonte.<br />

Embora Mexía avisasse nunca ter opera<strong>do</strong> aquela experiência,<br />

para o padre Malagrida a receita soava -lhe a mel na sopa.<br />

Cera oca era, por acaso, ingrediente abundante na sua bagagem,<br />

pois trouxera abundantes bolas vazias para, em Lisboa, as inocular<br />

de água benta e as vender como milagrosas. Duzentas e trinta<br />

e oito bolas, contei -as então eu, foram lançadas ao mar pelo padre<br />

29


<strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong><br />

Malagrida, dentro de uma rede, e aí deixadas a marinar durante<br />

toda a noite e manhã <strong>do</strong> dia seguinte.<br />

Que retirar os sais da água <strong>do</strong> mar seja um processo físico-<br />

-químico possível, através da osmose inversa, sei -o bem. No<br />

entanto, aquela tentativa pareceu -me destinada ao insucesso, porquanto<br />

seria preciso alguma pressão forçada, tanto mais que a<br />

cera simples não é uma membrana suficientemente capaz.<br />

Contu<strong>do</strong>, das duas, uma: ou Malagrida obteve essa pressão<br />

forçada por ajuda divina ou, então, as plantas o<strong>do</strong>ríferas usadas<br />

no fabrico da cera possuíam propriedades de fixação <strong>do</strong>s sais por<br />

mim espantosamente ignoradas. Por isso, foi com bastante surpresa<br />

que, arrebentada uma bola de cera, vi o jesuíta meter os<br />

lábios à água que de lá saía sem a cuspir.<br />

Apesar deste insólito evento – prefiro não usar a palavra milagre<br />

–, o jesuíta não foi logo dar sustento às gargantas <strong>do</strong>s marinheiros.<br />

Eles tiveram que a merecer, para glória <strong>do</strong> Senhor. Nova<br />

encenação se fez, portanto, que o padre Malagrida foi um mestre no<br />

teatro, como vereis mais à frente. Desta vez, embora prescindin<strong>do</strong><br />

de repetir o holocausto <strong>do</strong> <strong>profeta</strong> Elias no Monte Carmelo, não foi<br />

nada prosaico. À socapa, no porão, encheu as pipas com o líqui<strong>do</strong><br />

retira<strong>do</strong> das bolas de cera, carregou -as então ele próprio até ao convés,<br />

dissimulan<strong>do</strong> o esforço por serem uma vintena e, sobretu<strong>do</strong>, o<br />

conteú<strong>do</strong> ter fica<strong>do</strong> muito mais pesa<strong>do</strong> – na verdade, exactamente<br />

775 vezes mais. Apenas uma das barricas se manteve vazia.<br />

Com o cenário concluí<strong>do</strong>, Malagrida gritou aos semimortos<br />

marinheiros que Deus lhes iria ofertar a água e que, se assim não<br />

fosse, o lançassem ao mar. Se por acreditarem nele ou com o<br />

intuito de serem os primeiros a agarrá -lo em caso de mais um<br />

malogro, em poucos segun<strong>do</strong>s o ajuntamento estava feito. Malagrida<br />

pediu então ao capitão para lançar um balde ao mar e daí<br />

retirar água suficiente para encher a vasilha que apontou – a<br />

vazia, claro. Termina<strong>do</strong> o enchimento, começou a ouvir -se, pela<br />

voz <strong>do</strong> jesuíta, o versículo 32, <strong>do</strong> capítulo 15 <strong>do</strong> Evangelho<br />

segun<strong>do</strong> São Mateus. Ou seja, o relato <strong>do</strong> milagre da multiplicação<br />

<strong>do</strong>s pães junto ao mar de Galileia.<br />

– Como Jesus Cristo teve compaixão daquelas gentes que o<br />

ouviram junto ao mar da Galileia, porque há três dias que estavam<br />

30


O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong><br />

com ele e não tinham que comer, também Deus, por meu intermédio,<br />

de vós tem piedade por há três semanas quase não beberem –<br />

anunciou, por fim, Malagrida.<br />

E, acto contínuo, abrin<strong>do</strong> uma das pipas, supostamente<br />

vazias para os incrédulos marinheiros, meteu lá dentro um<br />

caneco, dan<strong>do</strong> -o ao capitão.<br />

– Creia que temos, agora, água de sobra! Seja mais generoso<br />

para as suas gentes.<br />

O homem hesitou antes de meter os beiços na água. O seu céptico<br />

cérebro ainda obrigou a língua a tilintar, por momentos, na<br />

superfície daquele líqui<strong>do</strong> e somente quan<strong>do</strong> as suas papilas gustativas<br />

ratificaram o grau de salinidade, se abriram então as goelas de<br />

satisfação. Escusa<strong>do</strong> será relatar pormenores da reacção daquele<br />

convés pelo tão extraordinário surgimento de água <strong>do</strong>ce. Nunca<br />

Deus foi tão glorifica<strong>do</strong> e Malagrida tão abençoa<strong>do</strong>. E como também<br />

no dia seguinte – depois de alguns inchaços aquosos e muitos,<br />

untuosos e babosos beijos na roupeta <strong>do</strong> jesuíta –, o vento também<br />

surgiu, cheguei à conclusão de que seria uma perda de tempo intentar<br />

qualquer nova tentativa para abortar aquela viagem.<br />

Contu<strong>do</strong>, os percalços não terminaram. Aliás, pioraram.<br />

E, por ironia, após eu ter jura<strong>do</strong>, a mim mesmo, que nem por pensamentos<br />

ou desejos meteria mais o bedelho naquela travessia.<br />

Chegada a nau ao mar de Cádis, a leve bafagem passou a uma aragem<br />

mais rija, a seguir o vento mu<strong>do</strong>u para fresco, depois para<br />

forte, mais tarde a muito forte e, daí a nada, a duro e muito duro,<br />

chegan<strong>do</strong> ao esta<strong>do</strong> de tempestuoso, crian<strong>do</strong> vagalhões enormes,<br />

encurtan<strong>do</strong> a visibilidade e, enfim, quase fazen<strong>do</strong> sumir o navio no<br />

cava<strong>do</strong> das ondas. Cabos e velas, tu<strong>do</strong> se despedaçou, <strong>do</strong>is <strong>do</strong>s<br />

três mastaréus ameaçaram desarvorar – o terceiro, se se recordam,<br />

serviu para o holocausto – e o cadaste partiu -se. Ou seja, o<br />

leme foi de vela.<br />

De repente, como é comum em circunstâncias similares,<br />

uma descarga eléctrica de corona – resultante de uma grande<br />

diferença de potencial que se estabelece entre as nuvens e um<br />

objecto condutor – ionizou o ar em torno <strong>do</strong> mastro e surgiu uma<br />

chama cor azul -violeta – o lume vivo que a marítima gente tem<br />

por santo, como escreveu o poeta Camões.<br />

31


<strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong><br />

– Salva, salva, Corpo Santo! – gritou -se no convés.<br />

Sucedeu, contu<strong>do</strong>, um motivo para grande aflição. Horror<br />

mesmo, pois em vez de surgirem <strong>do</strong>is ou três penachos luminosos<br />

deste fogo -de -santelmo, somente apareceu um, e nas partes baixas<br />

<strong>do</strong> mastro. Ora, de acor<strong>do</strong> com o saber daqueles pobres, desconhece<strong>do</strong>res<br />

<strong>do</strong>s fenómenos de electricidade, isto denunciava<br />

naufrágio. Clamaram, por isso, desta vez com fé, ao padre Malagrida<br />

para que substituísse o Santo Elmo. O jesuíta mostrou -se<br />

exigente:<br />

– Façam to<strong>do</strong>s votos em honra da Virgem Maria e jurem que<br />

no salvamento se confessam e comungam no santuário de Nossa<br />

Senhora da Penha, em Lisboa. Se assim for, nenhum de vós perderá<br />

um só cabelo da cabeça.<br />

Santa ignorância, a destas gentes; o fogo -de -santelmo é um<br />

sinal, já de si, de estar a tempestade a ganhar sumiço. Assim, não<br />

só juraram como ainda mais prometeram: esmolas, penitências,<br />

expiações e procissões; a tu<strong>do</strong> estavam prestes e disponíveis<br />

desde que os salvassem da desdita.<br />

De qualquer mo<strong>do</strong>, livraram -se desta tempestade, mas bem<br />

que continuaram a precisar de ajuda, uma vez que, sem o leme<br />

operacional, o navio precisaria de – não gosto desta palavra – um<br />

milagre à chegada a Lisboa. E, de facto, não sei mesmo que fenómeno<br />

houve, porque vos afianço, não houve truque nem passe de<br />

mágica; nem sorte, porque até esta não pode contrariar as leis da<br />

física. Sei apenas que logo depois <strong>do</strong> navio ter bati<strong>do</strong> num escolho<br />

<strong>do</strong> Tejo – e nas praias, como vos relatei, o povoléu apostava já na<br />

dimensão da mortandade –, o padre Malagrida retirou, com uma<br />

calma imperturbável, o véu que cobria a sua imagem de Nossa<br />

Senhora das Missões, subiu à coberta e de braços ao alto e seguran<strong>do</strong><br />

a estátua, de bordão baten<strong>do</strong> nos madeiros, esteve vários<br />

minutos bradan<strong>do</strong> aos céus.<br />

Aliás, eram mais queixas, quase semelhantes à apologia que<br />

São Paulo proclamou perante Deus. Malagrida reclamou que,<br />

para glória <strong>do</strong> Altíssimo, fizera viagens a pé sem conta; que<br />

sofrera perigos nos rios; baldões <strong>do</strong>s saltea<strong>do</strong>res; fráguas <strong>do</strong>s<br />

seus irmãos de raça; adversidades <strong>do</strong>s pagãos; aflições na cidade;<br />

provações no deserto; transtornos no mar; traições de falsos<br />

32


irmãos; que passara trabalhos e duras fadigas; em muitas noites<br />

não <strong>do</strong>rmira; que sofrera de fome e sede; que se atormentara em<br />

frequentes jejuns, frio e nudez. Concluiu o rol de queixumes com<br />

uma reivindicação:<br />

– Salvai este navio, pois a minha obra, para Tua glória, ainda<br />

não está completa.<br />

E foi, de facto, após esta frase que a nau se soltou <strong>do</strong><br />

roche<strong>do</strong> e subiu a vazante <strong>do</strong> Tejo com a popa a servir de proa.<br />

De mo<strong>do</strong> que Malagrida terá obti<strong>do</strong>, provavelmente <strong>do</strong>s céus,<br />

uma maior mercê <strong>do</strong> que a alcançada por São Paulo junto à ilha<br />

de Malta, porquanto o rabino converti<strong>do</strong>, para se salvar de um<br />

naufrágio, viu -se obriga<strong>do</strong> a nadar até à praia, enquanto o jesuíta<br />

nem os pés molhou para chegar a terra.<br />

A propagação de todas estas maravilhas que se operaram<br />

seguiu, assim, <strong>do</strong> porto até às ruas, das ruas até ao Terreiro <strong>do</strong><br />

Paço, <strong>do</strong> Terreiro <strong>do</strong> Paço até aos corre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Paço da Ribeira<br />

e <strong>do</strong>s corre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Paço da Ribeira até ao quarto <strong>do</strong> caquéctico<br />

Rei D. João V. Tu<strong>do</strong> em passo tão célere que a velocidade <strong>do</strong> som<br />

foi, neste século e em Portugal, quase batida pela rapidez na<br />

transmissão da chegada <strong>do</strong> Santo <strong>do</strong> Maranhão.<br />

Veloz foi também a ordem régia para que, em pessoa, Frei<br />

Gaspar da Encarnação – inútil ministro de D. João V – fosse ao<br />

encontro <strong>do</strong> padre Malagrida para o trazer, de imediato, ao Paço<br />

da Ribeira. Contu<strong>do</strong>, por causa da abundância de gentes que confluíram<br />

ao porto e encheram as ruas, aquele e o outro se perderam<br />

no meio da multidão. Somente no colégio de Santo Antão,<br />

noite já bem dentro, chegou à fala com Malagrida um novo mensageiro:<br />

o também jesuíta João Baptista Carbone, secretário particular<br />

<strong>do</strong> Rei – este, por acaso, de alguma utilidade. Após os<br />

cumprimentos da praxe de <strong>do</strong>is irmãos de Loyola, mais umas trocas<br />

de impressões por serem conterrâneos das terras de Itália, o<br />

padre Carbone informou Malagrida da facienda para a manhã<br />

seguinte:<br />

– Sua Majestade vos requisita a presença, logo pela alvorada,<br />

para uma visita de alívio e conforto espiritual. E pede que leveis a<br />

imagem de Nossa Senhora das Missões para a deixar a velar no<br />

seu quarto.<br />

PCD_03<br />

33<br />

O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong>


<strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong><br />

Malagrida surpreendeu -se com este pedi<strong>do</strong> tão urgente.<br />

Embora fosse muito zeloso da sua fama pelas terras de Portugal,<br />

que conhecia pela troca de cartas desde o Maranhão e Brasil 1 ,<br />

sempre julgou serem necessários alguns dias de espera, pelo<br />

menos, até conseguir uma entrevista com o Magnânimo. Mais<br />

ainda porque se sabia estar D. João V quase incontactável, que a<br />

<strong>do</strong>ença o monopolizava.<br />

E, além disso, para a tarefa de alívio e conforto espiritual não<br />

faltavam esculápios. Portugal possuía então uns 407 conventos e<br />

129 mosteiros, além de colegiadas, irmandades e muitos centos de<br />

paróquias com os seus clérigos seculares. Ou seja, qualquer coisa<br />

como duas centenas de milhar de religiosos, que estariam disponíveis<br />

para orar pela saúde de quem, como D. João V, sempre tão<br />

bem tratara os representantes de Deus na Terra. Somente na<br />

região de Lisboa, o Magnânimo, nos intervalos da sua vida de prazenteiro<br />

deboche, ordenou o enriquecimento ou construção de<br />

muitos templos: a Patriarcal, a Real Obra de Nossa Senhora das<br />

Necessidades – quase então pronta a ser benzida – e o convento<br />

de Mafra, além da Igreja <strong>do</strong> Menino Deus, <strong>do</strong>s novos conventos<br />

das Trimas <strong>do</strong> Rato, <strong>do</strong>s Teatinos e de Santa Apolónia, <strong>do</strong> hospício<br />

de São João Nepomuceno, <strong>do</strong> recolhimento de Lázaro Leitão,<br />

da ermida de Nossa Senhora Mãe <strong>do</strong>s Homens, e muitos outros<br />

abençoa<strong>do</strong>s edifícios, que omito para não alongar mais esta frase,<br />

que já bastante dilatada ficou.<br />

O padre Malagrida ficou também admira<strong>do</strong> de lhe requererem<br />

a sua Nossa Senhora das Missões, da<strong>do</strong> que soubera, mesmo<br />

no Maranhão, ser a imagem de Nossa Senhora das Necessidades<br />

que, desde a apoplexia de 1742, ganhara a eleição para a veladura<br />

<strong>do</strong> quarto régio. E não se dissesse que Portugal carecesse de Virgens<br />

Marias. À mãe de Cristo, à falta de lhe reconhecerem a<br />

mesma capacidade de omnipresença de Deus, cuidaram de a<br />

1 Desde 1621, altura em que Portugal consoli<strong>do</strong>u o seu poder naquela região, o Maranhão<br />

estava agrega<strong>do</strong> ao Grão -Pará, sen<strong>do</strong> um Esta<strong>do</strong> separa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil. Em 1772,<br />

ocorreu, por sua vez, a divisão entre o Pará e o Maranhão. Este último Esta<strong>do</strong> haveria<br />

de se fundir ao Brasil apenas em 1823, um ano depois da independência deste país. Na<br />

época em causa, o Maranhão correspondia aos actuais Esta<strong>do</strong>s brasileiros <strong>do</strong> Maranhão,<br />

Pará, Roraima, Amazonas, Acre, Amapá, Piauí e parte de Tocantins.<br />

34


O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong><br />

tornar ubíqua, multiplican<strong>do</strong> -a em dezenas de formas, feitios e<br />

denominações. Por isso, poucas foram as terreolas <strong>do</strong> Reino de<br />

Portugal sem direito a reivindicarem a aparição da sua Nossa<br />

Senhora, embora, desconhecem -se as razões, as mais famosas<br />

fossem então as da Oliveira, da Lapa, da Nazaré, <strong>do</strong> Cabo, da<br />

Conceição e de Faro. E como neste pedaço de Mun<strong>do</strong> se achou<br />

ser insuficiente, uns <strong>do</strong>is séculos depois, fizeram -na aparecer em<br />

cima de uma azinheira de Ourém, para glória de toda a cristandade.<br />

Em to<strong>do</strong> o caso, desde a Restauração, em 1640, decidira -se<br />

entretanto confederar todas estas Nossas Senhoras e proclamar a<br />

Nossa Senhora da Imaculada Conceição como padroeira e protectora<br />

privilegiada <strong>do</strong> Reino.<br />

No entanto, para D. João V, que sempre a<strong>do</strong>rou mulheres,<br />

nunca era demasia mais uma Virgem, ainda mais uma trazida das<br />

Américas que, pensou por certo, teria outros <strong>do</strong>tes que as da<br />

Europa não possuíam. Assim, na manhã seguinte, lá partiu bem<br />

ce<strong>do</strong> a Nossa Senhora das Missões em procissão <strong>do</strong> colégio de<br />

Santo Antão, com o préstito inicia<strong>do</strong> por duas filas de meninos<br />

de coro, cada um com a sua bandeira, depois os seus mestres de<br />

sobrepeliz, e, mais atrás, quatro jesuítas que transportavam a<br />

imagem miraculosa. E com nova vestimenta, pois o padre Carbone<br />

levara, para a a<strong>do</strong>rnar, o vesti<strong>do</strong> <strong>do</strong> casamento da rainha<br />

D. Maria Ana de Áustria, que até então cobria a estátua de Nossa<br />

Senhora das Necessidades. Aliás, se uma e outra não fossem a<br />

mesma pessoa, certamente haveria lugar para invejas e amuos<br />

por parte da preterida. A longa fila deste beatério terminava com<br />

o padre Malagrida, descalço e de crucifixo na mão, corda ao pescoço,<br />

segui<strong>do</strong> pelos afortuna<strong>do</strong>s marinheiros – que gratos sempre<br />

ficaram – e de uma imensa multidão que, incessantemente,<br />

lhe lançava louvores de homem santo.<br />

Mal chega<strong>do</strong> ao quarto régio <strong>do</strong> Paço da Ribeira, uma hora<br />

depois – porquanto muitas foram as paragens, para gáudio da<br />

populaça –, o balbuciante e quebranta<strong>do</strong> D. João V pediu aos seus<br />

camareiros que o ajudassem a ajoelhar aos pés <strong>do</strong> jesuíta, suplican<strong>do</strong><br />

-lhe uma bênção. Pela primeira vez, Malagrida mostrou -se<br />

constrangi<strong>do</strong> e retraiu mesmo a mão quan<strong>do</strong> o Rei, choroso, a<br />

agarrou e levou ao rosto.<br />

35


<strong>Pedro</strong> <strong>Almeida</strong> <strong>Vieira</strong><br />

– Senhor, nós Te pedimos que olheis para o Rei vosso servo –<br />

disse o embaraça<strong>do</strong> jesuíta.<br />

Na verdade, se Deus fizesse julgamentos à vida de D. João V,<br />

talvez fosse preferível para a sentença final que fosse míope, porque<br />

não tinha si<strong>do</strong> muito primorosa. Talvez por ter essa consciência,<br />

bem pesada, o Magnânimo mostrou um rebate de humildade.<br />

– Não, meu padre! – exclamou ele. – Não digais Rei; dizei<br />

peca<strong>do</strong>r!<br />

Lin<strong>do</strong> serviço! Com estas palavras, Malagrida nem precisou<br />

de prédicas. Ven<strong>do</strong> ali tão agraciada recepção, não perdeu tempo,<br />

dizen<strong>do</strong> logo ao que vinha: rogar protecção aos conventos e seminários<br />

que fundara nas Américas, e haveria mais para criar, que<br />

tão necessários que eram para glória de Deus, <strong>do</strong> Reino de Portugal,<br />

das colónias e <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> inteiro e <strong>do</strong> seu Rei, Fidelíssimo e<br />

Magnânimo.<br />

Valerá a pena dizer -vos qual foi a resposta de El -Rei Moribun<strong>do</strong><br />

aos pedi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> jesuíta? Ou será apenas necessário reconhecer,<br />

perante vós, o meu espanto – e muito vira já eu – dever<br />

que o padre Malagrida acabara de conseguir em menos de um dia<br />

aquilo que jamais alguém obtivera numa vida inteira: um Rei a<br />

seus pés.<br />

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