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MISTÉRIOS DA FLANDRES - Pedro Almeida Vieira

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4. a edição<br />

Ana Maria Magalhães Isabel Alçada<br />

ilustrações de Arlindo Fagundes<br />

<strong>MISTÉRIOS</strong><br />

<strong>DA</strong> <strong>FLANDRES</strong>


Ao queridíssimo Emílio Rui,<br />

nosso companheiro<br />

de viagens na Flandres


Para fazer este livro<br />

tivemos a colaboração<br />

de Madine Lievens<br />

e Lucette de Waegh-Theys,<br />

a quem queríamos agradecer.


I capítulo<br />

Um estranho visitante<br />

O velho cientista olhou-se no espelho e sorriu. Raramente<br />

se preocupava com a indumentária mas desta vez<br />

era diferente. Preparava-se com mil cuidados para gozar<br />

uma esplendorosa semana de férias. Há quanto tempo<br />

não tinha férias! Desde que fora admitido na Associação<br />

Internacional das Viagens no Espaço e no Tempo, a sua<br />

vida transformara-se adquirindo um ritmo perfeitamente<br />

alucinante. «Estarei cansado?», perguntou a si próprio.<br />

E a pergunta trouxe-lhe um delicioso sabor a novidade.<br />

De facto, quem trabalha por gosto não se cansa. Mas<br />

lá chega o dia em que é preciso parar. Satisfeito, respirou<br />

fundo e lançou uma mirada rápida ao autocolante<br />

pregado no espelho.<br />

Não havia outra associação no mundo com actividades<br />

tão fantásticas!<br />

«Só é pena que tenha de permanecer secreta. Pelo<br />

menos por enquanto.»<br />

9


Todos os cientistas que pertenciam à AIVET continham<br />

uma certa impaciência, pois ansiavam divulgar<br />

a sua incrível descoberta. Mas não podiam fazê-lo. Se<br />

as pessoas soubessem que havia brechas no tempo e<br />

que era possível viajar de uma época para outra, seria<br />

o caos. O mais certo era que os «corredores do tempo»<br />

se enchessem de gente decidida a mergulhar no passado<br />

para torcer a História a seu bel-prazer. Uns, com o coração<br />

transbordando de altruísmo, tentariam eliminar os<br />

males e erros da Humanidade. Quanto aos outros, era<br />

melhor nem pensar. Movidos pela cobiça, pela ambição<br />

ou por interesses de toda a ordem acabariam por provocar<br />

autênticas catástrofes.<br />

Que bom fazer parte de um grupo que tinha um<br />

segredo fabuloso e sabia guardá-lo!<br />

As regras de admissão também eram rigorosíssimas.<br />

No entanto, já faziam parte da AIVET homens e<br />

mulheres de todo o mundo. E duas crianças!<br />

«Fui eu que os descobri», pensou com um sorriso.<br />

«O João e a Ana. Gosto tanto deles como se fossem<br />

meus netos!»<br />

Tinha sido precisamente em sua honra que se vestira<br />

a rigor. Calças de ganga. Ténis de marca. Camisolão<br />

largo e comprido com emblema nas costas. Até as meias<br />

eram a condizer. Sentia-se tão bem assim! O espelho<br />

devolvia-lhe a imagem de um homem feliz. Brilhantes,<br />

como sempre, os olhos azuis cintilavam. E ele, que nunca<br />

perdia tempo a observar-se, achou-se bonito. A careca<br />

dava-lhe um ar respeitável, e o bigode branco um certo<br />

tom atrevido e simpático.<br />

«Estava mesmo a precisar de uma mudança radical!»<br />

10


Abençoando a hora em que decidira fechar as máquinas,<br />

encerrar o laboratório, esquecer todas as fórmulas<br />

e hipóteses que lhe fervilhavam na cabeça, esfregou as<br />

mãos de contente.<br />

«Durante uma semana inteirinha vou viver como<br />

uma pessoa normal. Dormir até tarde, passear a pé, fazer<br />

petiscos e saboreá-los ao ar livre.»<br />

Um assobio prolongado veio interromper-lhe os pensamentos.<br />

— Orlando! Orlando!<br />

— Está alguém em casa?<br />

Eram eles! Radiante, correu a abrir a porta e caíram<br />

nos braços uns dos outros.<br />

— Que bom! Chegaram mais cedo do que eu pensava!<br />

João, impulsivo como de costume, recuou três passos<br />

e mirou-o de alto a baixo.<br />

— Ena! Que elegante!<br />

O velho cientista não disfarçou o seu contentamento.<br />

— Gostam? Foi para vos agradar que me vesti desta<br />

maneira.<br />

— Fez muito bem — disse a Ana. — Está impecável.<br />

Até parece mais novo.<br />

— Mas eu estou mais novo! Estou em férias! Sinto-<br />

-me leve, leve como uma pena.<br />

Dito isto, pôs-se a saltitar à roda da sala, fazendo<br />

movimentos rítmicos com os braços e as pernas.<br />

— Que tal?<br />

— Perfeito! — exclamou o João. — Quando compro<br />

ténis novos, também fico assim.<br />

11


— Vocês nem imaginam os planos que fiz para esta<br />

semana.<br />

Escusado será dizer que os dois irmãos ficaram num<br />

alvoroço.<br />

— Planos? Que planos?<br />

— Calma. Não é nada do que vocês estão a pensar.<br />

— Hum... Se é uma surpresa para nós, já sei qual é.<br />

Orlando olhou o seu pequeno amigo, e num relance<br />

percebeu tudo. João esperava ansiosamente que lhe anunciasse<br />

uma viagem ao futuro, cheia de mistério, acção,<br />

naves espaciais de outras galáxias, planetas extravagantes,<br />

homens verdes, forças desconhecidas.<br />

Uma onda de ternura impediu-o de dizer a verdade.<br />

E ficou calado a olhá-los, consciente de que se lhes<br />

contasse o que planeara, o encontro começaria por ser<br />

uma tremenda desilusão. Eram muito novos. Tinham<br />

tanta necessidade de movimento, peripécias e novidades<br />

como ele de paz e sossego. Que fazer então?<br />

Não lhe ocorria resposta nenhuma! O silêncio ameaçava<br />

prolongar-se quando, de súbito, um clarão roxo<br />

inundou o aposento logo seguido de estrondos aterradores!<br />

— Que é isto? Que é isto?<br />

Orlando, assustado, puxou-os para si e ordenou:<br />

— Deitem-se! Deitem-se no chão! Cubram a cabeça!<br />

As paredes vibravam, os vidros tilintavam, o candeeiro<br />

balançava cada vez mais depressa, cada vez mais<br />

depressa, e um silvo agudo disparou a crescer de tom,<br />

tão alto e tão intenso que... «Crash! Plash! Springt!»<br />

O espelho rebentou em mil estilhaços. Assombrados,<br />

olharam para a moldura, que continuava a vibrar como<br />

12


se fosse eléctrica enquanto na parede surgia primeiro o<br />

recorte, e depois a figura completa de um homem!<br />

— Meu Deus! O que é isto? — balbuciou Orlando,<br />

atónito.<br />

O estranho visitante, com os olhos esbugalhados de<br />

pavor, estremeceu, abriu e fechou a boca várias vezes,<br />

antes de cair redondo no chão murmurando «Help! Ik<br />

zit vast!».<br />

Rodearam-no, mudos de espanto. Quem era aquele<br />

homem? Que poder, que magia o tinha feito aparecer ali?<br />

Ana foi a primeira a ajoelhar-se. Tocou-lhe na testa<br />

e na cara com a ponta dos dedos.<br />

— Está a arder em febre!<br />

Orlando aproximou-se também e pegou-lhe no pulso<br />

como fazem os médicos.<br />

— As pulsações estão normais. Para quem atravessou<br />

quatro séculos, diria que até estão muito bem.<br />

— Como é que sabe que ele atravessou quatro<br />

séculos? — perguntou o João, pasmado.<br />

— Por causa da roupa.<br />

De facto, o homem vestia roupa de outros tempos.<br />

Calças de lã muito justas, de um verde-acinzentado.<br />

Camisa branca de tecido grosso e uma capa larga bastante<br />

velha. Não havia botões. Todas as peças eram presas<br />

por atilhos. Calçava uma espécie de botinhas feitas<br />

em cabedal tão fino como o que se usa para as luvas. Na<br />

cabeça, uma touca igual à camisa cobria-lhe parcialmente<br />

os cabelos ralos de um louro desbotado pelos anos. Já<br />

não era novo. Duas rugas profundas vincavam-lhe a cara<br />

de alto a baixo e as mãos, enrugadas também, tinham<br />

um estranho tom amarelo.<br />

14


— Não percebo como é que este indivíduo viajou<br />

pelo tempo sem máquina! — disse Orlando, intrigadíssimo.<br />

— Que eu saiba é o primeiro que consegue semelhante<br />

proeza sem ficar pelo caminho.<br />

— Quem será?<br />

Como se desejasse responder ao João, o homem<br />

abriu os olhos e pestanejou repetidamente, emitindo<br />

sons arranhados e guturais. Não compreenderam nada<br />

do que dizia, mas uma coisa era certa e segura, estava<br />

apavorado. A sua expressão transmitia um verdadeiro<br />

terror. Condoídos, tentaram ajudá-lo a levantar-se, mas<br />

quando lhe tocaram ele estremeceu como se tivesse<br />

apanhado um choque eléctrico, espalhando à sua volta<br />

uma nuvem de cristais brilhantes que se desfizeram<br />

no ar.<br />

— O que é isto? — berraram os dois irmãos.<br />

No entanto, referiam-se a coisas diferentes. João,<br />

ao surpreendente pó luminoso. Ana, a um fenómeno<br />

estranhíssimo que fazia os pés do homem aparecerem e<br />

desaparecerem como se ele fosse um desenho e alguém<br />

apagasse as extremidades com uma borracha.<br />

— Coitado! — exclamou Orlando. — Ainda não<br />

estabilizou na nossa época! Tenho que o ajudar depressa<br />

senão morre. — Virando-se para a Ana, ordenou:<br />

— Abana-o com força, para ver se ele acorda definitivamente<br />

e toma consciência do que lhe aconteceu. Sem<br />

isso nada feito! Enquanto andar a vogar entre o cá e o<br />

lá, o problema não se resolve.<br />

Ela apressou-se a cumprir a ordem, mas ao primeiro<br />

safanão retirou as mãos.<br />

— Dá choque!<br />

15


— Não faz mal. É uma questão magnética. Continua,<br />

vá!<br />

— Deixa que eu trato disto!<br />

Arregaçando as mangas, João puxou-o pelos ombros<br />

e sacudiu-o com quanta força tinha.<br />

Entretanto Orlando correu ao laboratório. Quando<br />

voltou trazia um estojo de couro vermelho de onde<br />

retirou quatro alfinetes mínimos. Sem se dar ao trabalho<br />

de explicar o motivo, espetou um na sua própria<br />

orelha e depois fez-lhes o mesmo. Não sentiram qualquer<br />

picada, mas apenas um estalido como quando se<br />

acende um aparelho de rádio para sintonizar novas<br />

ondas de som.<br />

O homem respirou fundo, olhou-os um por um, esgazeado,<br />

e começou a falar. Espantoso! Agora percebiam-<br />

-no perfeitamente apesar de se exprimir numa língua<br />

estrangeira. O significado de cada palavra surgia naturalmente,<br />

como se os termos não interessassem e fosse<br />

uma transmissão de pensamentos e ideias.<br />

— Fiz experiências fantásticas. Fui sugado por um<br />

vento frio e não sei onde estou. Ajudem-me.<br />

Uns ruidozinhos perturbavam a comunicação. Para<br />

os eliminar, bastou taparem a orelha que não tinha alfinete<br />

e tudo se tornou claro e nítido. Ana arriscou-se a<br />

perguntar:<br />

— Como se chama?<br />

— Chamo-me Nicolas Van der Epst. Sou de Antuérpia...<br />

Antuérpia... Tuérpia... Érpia... pia... ia... aaaa...<br />

— Parece um disco estragado!<br />

— Não brinques! — ordenou Orlando, ríspido.<br />

— O homem está em perigo de vida.<br />

16


Com a língua de fora e os olhos arregalados, o pobre<br />

continuava emitindo o mesmo e único som:<br />

— Aaaa...<br />

Mas ia perdendo forças e os pés voltaram a apagar-<br />

-se. Depois as mãos.<br />

— Está a desaparecer!<br />

Com um movimento rápido, Orlando arrancou-lhe a<br />

touca. Mesmo a tempo! O corpo sumia-se progressivamente,<br />

mas a um ritmo acelerado. Em poucos segundos<br />

desvaneceu-se, deixando como único vestígio da sua<br />

passagem a touca branca, um cheiro vago a enxofre e<br />

fumos coloridos.<br />

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