Termo Circunstanciado: atribuição exclusiva das polícias ... - asdep
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<strong>Termo</strong> <strong>Circunstanciado</strong>: <strong>atribuição</strong> <strong>exclusiva</strong> <strong>das</strong> <strong>polícias</strong> judiciárias<br />
Fábio Motta Lopes<br />
Mestre em Direito (Ulbra). Especialista em Direito Penal e Processo Penal<br />
(Ulbra). Professor de Direito Penal da Universidade do Vale do Rio dos Sinos<br />
(UNISINOS). Professor da Academia de Polícia do Rio Grande do Sul.<br />
Delegado de Polícia no Rio Grande do Sul.<br />
RESUMO: À luz da Constituição Federal, somente as <strong>polícias</strong> judiciárias<br />
podem lavrar termos circunstanciados no Brasil, procedimentos destinados à<br />
apuração – e não apenas a mera constatação – <strong>das</strong> infrações penais de menor<br />
potencial ofensivo, previstos na Lei 9.099/95. Dessa forma, como se mostrará<br />
no presente artigo, serão ilegais os termos circunstanciados realizados por<br />
outros órgãos policiais (<strong>polícias</strong> militares ou <strong>polícias</strong> rodoviárias, por exemplo),<br />
conforme decidiu, recentemente, o Supremo Tribunal Federal, em ação direta<br />
de inconstitucionalidade. Como essa decisão foi proferida em controle<br />
concentrado de constitucionalidade, possui efeito vinculante erga omnes. Além<br />
de se abordar o assunto com enfoque jurídico, trazendo-se pesquisa<br />
doutrinária e jurisprudencial, também serão demonstrados os efeitos nocivos<br />
causados no âmbito da segurança pública caso se admita que a confecção de<br />
termos circunstanciados não seja exclusividade <strong>das</strong> <strong>polícias</strong> judiciárias.<br />
SUMÁRIO: Introdução. 1. O leading case no Supremo Tribunal Federal. 2.<br />
Julgamentos em outros tribunais. 3. Os efeitos de uma decisão proferida em<br />
ação direta de inconstitucionalidade. 4. A autoridade policial na Lei 9.099/95. 5.<br />
A análise do tema sob a ótica do Direito Penal. 6. Aspectos práticos e legais.<br />
Considerações finais. Obras consulta<strong>das</strong>.<br />
Palavras-chave: <strong>Termo</strong> circunstanciado. Lavratura. Polícia judiciária. Atribuição<br />
<strong>exclusiva</strong>.<br />
INTRODUÇÃO<br />
Atualmente, muito se tem discutido se a polícia militar pode ou não lavrar<br />
termo circunstanciado (TC), procedimento instituído pela Lei 9.099/95 para<br />
apuração, na fase pré-processual, <strong>das</strong> infrações penais de menor potencial<br />
ofensivo, ou seja, <strong>das</strong> contravenções e dos crimes cuja pena máxima não<br />
ultrapasse 2 (dois) anos de prisão, independentemente de possuírem rito<br />
especial ou pena de multa cumulada. 1<br />
Até então, quando se tentava demonstrar a inconstitucionalidade da<br />
lavratura de termo circunstanciado por policiais militares, sustentavam alguns<br />
1 De acordo com o artigo 61 da Lei 9.099/95, com a redação dada pela Lei 11.313/06, são<br />
infrações penais de menor potencial ofensivo “as contravenções penais e os crimes a que a<br />
lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”.
que isso não passava de uma discussão corporativista, apresentando uma<br />
visão reducionista acerca de um tema que é complexo.<br />
Ocorre que, agora, o Supremo Tribunal Federal (STF), em recente<br />
julgamento, afirmou de forma clara que a lavratura de TC por milicianos é<br />
inconstitucional, como se vinha destacando. Tal decisão dos ministros da mais<br />
elevada Corte do país – que não fazem parte, obviamente, de nenhuma polícia<br />
judiciária – nada tem de corporativista. Nesse julgamento, o STF analisou a<br />
questão de forma técnica, conforme se passa a expor.<br />
1. O LEADING CASE NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL<br />
Em 2003, o governo do Paraná editou decreto estadual, sob n.°<br />
1.557/2003, permitindo à polícia militar daquele Estado, através de subtenentes<br />
e sargentos, nos municípios em que a Polícia Civil não contasse com Delegado<br />
de Polícia de carreira, a realização de atendimentos em Delegacias de Polícia<br />
e, entre outras aberrações jurídicas, a lavratura de TC.<br />
Em virtude disso, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do<br />
Brasil, sob o argumento de que a polícia militar não teria habilitação adequada<br />
para atender em delegacias, investigando crimes ou lavrando termos<br />
circunstanciados, ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3.614/PR)<br />
contra a integralidade do ato legislativo paranaense mencionado, que assim<br />
determinava em seu artigo 5.°:<br />
“Art. 5.º - Os Policiais Militares designados na forma deste Decreto<br />
elaborarão <strong>Termo</strong> <strong>Circunstanciado</strong>, encaminhando os respectivos<br />
documentos à Delegacia de Polícia da sede da Comarca”.<br />
Em 20.09.07, submetida a julgamento a ADI supracitada no órgão Pleno<br />
do STF, decidiram os ministros que tal ato normativo, em sua plenitude, é<br />
inconstitucional, por ofender o artigo 144, caput, incisos IV e V, e parágrafos 4º<br />
e 5º, todos da Constituição Federal, que definem claramente a competência da<br />
Polícia Civil, inclusive para lavratura <strong>exclusiva</strong> de TC, restando vencido apenas<br />
o Min. Gilmar Mendes. 2<br />
Por oportuno, saliente-se que, embora se esteja fazendo alusão à polícia<br />
judiciária estadual, em virtude do que se discutiu na ADI mencionada, a<br />
<strong>atribuição</strong> para a realização de TC no âmbito <strong>das</strong> infrações penais afetas à<br />
Justiça Federal será, com exclusividade, da Polícia Federal, não cabendo tal<br />
missão, por exemplo, à Polícia Rodoviária Federal. Portanto, quer-se deixar<br />
claro, desde já, que a formalização de um termo circunstanciado deve ser feita<br />
pelas <strong>polícias</strong> judiciárias (Polícia Civil, no âmbito dos Estados, e Polícia<br />
Federal, na esfera federal).<br />
Analisando-se o voto do Min. Cezar Peluso na ADI 3.614/PR, verifica-se<br />
com nitidez que cabe ao delegado de polícia, profissional habilitado para as<br />
2 STF, Pleno. ADI 3.614. Relatora para o acórdão: Min. Cármen Lúcia. 20 de setembro de<br />
2007. In: DJU de 23.11.07.
funções de polícia judiciária, antes da lavratura de TC, a realização de “um<br />
juízo jurídico de avaliação dos fatos que são expostos". Assim, por entender o<br />
ministro que essa é uma atividade inerente a delegados de polícia, afirmou que<br />
a polícia militar não teria habilitação adequada para essas funções, o que<br />
comprometeria todo o sistema jurídico se viesse a realizar TC.<br />
É importante destacar ainda, ao contrário do que vem divulgando<br />
equivocadamente algumas entidades de classe <strong>das</strong> <strong>polícias</strong> militares<br />
brasileiras, 3 que o STF, ao analisar a ADI 2.862/SP, não adentrou no mérito da<br />
questão. 4<br />
Tal ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada pelo Partido da<br />
República (PR) contra o Provimento 758/2001, do Conselho Superior da<br />
Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, e a Resolução<br />
SSP 403/2001, prorrogada pela Resolução SSP 517/2002, ambas do<br />
Secretário de Segurança Pública paulista, que facultam aos magistrados dos<br />
Juizados Especiais Criminais aceitarem termos circunstanciados lavrados por<br />
policiais militares. No pedido, o PR sustentava que os atos normativos<br />
impugnados teriam usurpado competência legislativa da União para legislar<br />
sobre direito processual, ofendido o princípio da legalidade, atribuído à polícia<br />
militar competência da polícia judiciária e, por fim, violado o princípio da<br />
separação dos Poderes.<br />
Durante o julgamento, o STF não conheceu da ação direta, por entender<br />
que a questão visava a apenas interpretar legislação infraconstitucional (Lei<br />
9.099/95). Para a Suprema Corte, portanto, não se tratava de atacar um ato<br />
normativo primário (com fundamento na CF), mas um ato secundário (com<br />
fundamento em lei). Dessa forma, o STF, em suma, não considerou legal ou<br />
constitucional o Provimento editado pelo Conselho Superior da Magistratura do<br />
Tribunal de Justiça de São Paulo, mas tão-somente não conheceu da ação por<br />
uma questão preliminar.<br />
2. JULGAMENTOS EM OUTROS TRIBUNAIS<br />
A decisão do STF na ADI 3.614/PR, na realidade, não se trata de um<br />
posicionamento jurisprudencial isolado. Tal tese já vinha sendo adotada por<br />
outros tribunais pátrios.<br />
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), por exemplo, já<br />
tinha afirmado que o termo circunstanciado, que substitui o inquérito policial<br />
nas infrações penais de pequeno potencial ofensivo, é <strong>atribuição</strong> da polícia<br />
3 Vide, por exemplo, os seguintes sites: Acesso em: 13.06.2008; e<br />
Acesso em: 13.06.2008.<br />
4 STF, ADI 2.862/SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 26.03.08, DJU de 09.05.08. A decisão, no<br />
entanto, ainda não transitou em julgado, tendo o PR interposto Embargos de Declaração em<br />
13.05.08.
judiciária e não da polícia com atribuições de polícia ostensiva e de<br />
preservação da ordem pública. 5<br />
Idêntico posicionamento também foi adotado pelo Tribunal de Alçada<br />
Criminal de São Paulo (TACrimSP), que se manifestou na esteira de que se<br />
trata de uma <strong>atribuição</strong> <strong>exclusiva</strong> <strong>das</strong> <strong>polícias</strong> judiciárias. 6<br />
No Rio de Janeiro, o Presidente do Tribunal de Justiça emitiu orientação<br />
aos juízes, no final do ano passado, no sentido de que somente a polícia<br />
judiciária tem a <strong>atribuição</strong> para elaborar TC. 7<br />
De fato, um enquadramento jurídico equivocado por policiais não<br />
habilitados poderá acarretar a liberação de alguém que deveria, a rigor, ser<br />
encaminhado ao presídio. Poderá permitir também, nos crimes em que a ação<br />
penal seja privada ou pública condicionada à representação, que ocorra a<br />
decadência, caso não haja o colhimento da manifestação da vítima ou do<br />
representante legal. Dessa maneira, a tipificação equivocada poderá frustrar a<br />
possibilidade de o Estado vir a responsabilizar os autores de infrações penais<br />
de menor potencial ofensivo. Enfim, existem variáveis que somente serão<br />
percebi<strong>das</strong> por quem possui habilitação jurídica para fazer essas análises<br />
preliminares: o delegado de polícia.<br />
3. OS EFEITOS DE UMA DECISÃO PROFERIDA EM AÇÃO DIRETA DE<br />
INCONSTITUCIONALIDADE<br />
Como visto, a decisão da Suprema Corte que fulminou o decreto<br />
paranaense supracitado é oriunda de uma ação direta de inconstitucionalidade,<br />
cuja competência originária está fixada no art. 102, I, alínea “a”, do texto<br />
constitucional.<br />
No § 2.º do artigo mencionado, a Constituição Federal estabelece, de<br />
forma expressa, que as decisões de mérito do STF, nas ações diretas de<br />
inconstitucionalidade, “produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante,<br />
relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública<br />
direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”.<br />
5 TJRS, AGI 597061829, 1.ª Câmara Cível, Rel. Des. Tupinambá Miguel Castro do Nascimento,<br />
j. 22.10.97; TJRS, Apelação 599249018, 1.ª Câmara Cível, Rel. Des. Pedro Luiz Rodrigues<br />
Bossle, j. 26.06.00. Cabe salientar, no entanto, que o Pleno do TJRS, recentemente, em uma<br />
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 70014426563, Rel. Des. Maria Berenice Dias, j.<br />
12.03.07, DJ de 20.06.07) interposta pela Associação dos Delegados de Polícia do Rio<br />
Grande do Sul (ASDEP/RS), em que se alegava ofensa à Constituição Estadual,<br />
especialmente ao parágrafo único do art. 135 (“São autoridades policiais os Delegados de<br />
Polícia de carreira, cargos privativos de bacharéis em Direito”), decidiu, com votos<br />
divergentes, que a polícia militar poderia lavrar TC, em razão da autorização constante na<br />
Portaria 172, de 16.11.00, da Secretaria da Justiça e da Segurança Pública. A situação,<br />
contudo, ainda não transitou em julgado, tendo a ASDEP/RS recorrido dessa decisão.<br />
6 TACrimSP, RSE 1.333.219/3, Rel. Samuel Júnior, v.u., j. 18.12.02.<br />
7 TJRJ, Aviso n.º 50/2007, Des. José Carlos Schmidt Murta Ribeiro, 26.11.07.
Assim, percebe-se que um dos fatores mais importantes dessa decisão<br />
em ação direta de inconstitucionalidade é que ela faz coisa julgada erga<br />
omnes. Indubitavelmente, deve ser cumprida por to<strong>das</strong> as pessoas e instâncias<br />
democráticas, ainda que não tenham participado da discussão da causa em<br />
juízo. Quando o STF declara a inconstitucionalidade de uma norma através do<br />
controle concentrado, essa decisão possui efeito vinculante perante to<strong>das</strong> as<br />
esferas da Administração Pública (federal, estadual e municipal) e o Poder<br />
Judiciário. 8<br />
Conforme Silva, quando o Supremo decreta a inconstitucionalidade de<br />
um ato normativo ao exercer o controle concentrado da constitucionalidade,<br />
essa decisão “deverá ter eficácia erga omnes (genérica) e obrigatória”. 9<br />
Prossegue o constitucionalista registrando que essa sentença, ademais, “faz<br />
coisa julgada material, que vincula as autoridades aplicadoras da lei, que não<br />
poderão mais dar-lhe execução sob pena de arrostar a eficácia da coisa<br />
julgada”. 10<br />
Além disso, os efeitos de uma decisão em ADI são ex tunc, ou seja, o<br />
julgamento terá efeito retroativo, considerando nulos todos os procedimentos<br />
realizados até então. 11 É bem verdade que o STF, por dois terços dos seus<br />
membros, conforme estabelece o art. 27 da Lei 9.868/99, pode restringir os<br />
efeitos da declaração de inconstitucionalidade, em virtude de interesse público<br />
ou por razões de segurança jurídica. Essa restrição, contudo, não aconteceu<br />
na decisão em comento.<br />
Ensina Morais que as decisões definitivas do STF, quando julga<br />
inconstitucionais leis ou atos normativos, “produzem efeitos ex tunc, erga<br />
omnes e vinculantes a todos os órgãos do Poder Executivo e aos demais<br />
órgãos do Poder Judiciário”. 12<br />
Na mesma linha, Lenza salienta que a decisão da Suprema Corte<br />
proferida através do controle concentrado produz efeitos contra todos e<br />
“também terá efeito retroativo, ex tunc, retirando do ordenamento jurídico ato<br />
normativo ou lei incompatível com a Constituição”, tratando-se, portanto, de ato<br />
nulo. 13<br />
4. A AUTORIDADE POLICIAL NA LEI 9.099/95<br />
Outra discussão que surge acerca do tema é sobre quem seria a<br />
“autoridade policial” prevista na Lei 9.099/95. Embora seja um tema relevante,<br />
tal circunstância, à luz do que delimita a Constituição Federal quando trata <strong>das</strong><br />
8<br />
Nesse sentido: BRUST, Léo. “A Jurisdição Constitucional no Brasil”. Destaque Jurídico:<br />
Revista de Estudos Jurídicos, v. 3, n. 3, Gravataí, Curso de Direito da ULBRA, 2004, p. 24-5.<br />
9<br />
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15.ed. São Paulo: Malheiros,<br />
1998, p. 56.<br />
10<br />
Idem, p. 57.<br />
11<br />
Nessa esteira: BRUST, artigo citado, p. 25.<br />
12<br />
MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 13.ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 640-1.<br />
13<br />
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.<br />
196.
atribuições dos órgãos estatais, passa a ser secundária para a definição de<br />
quem teria o poder de lavrar TC. 14 Entretanto, mesmo que se examine a<br />
questão sob essa ótica, se chegará à conclusão de que cabe às <strong>polícias</strong><br />
judiciárias tal tarefa.<br />
O termo circunstanciado nada mais é do que um substitutivo do inquérito<br />
policial para as infrações penais de menor potencial ofensivo. Portanto, como<br />
procedimento de polícia judiciária, só pode ser presidido por delegado de<br />
polícia. Além do mais, como bem lembrou Nucci, autoridade policial, “na<br />
realidade, é apenas o delegado de polícia, estadual ou federal”, razão por que<br />
sustenta que os demais policiais civis ou militares constituem “agentes” da<br />
autoridade policial. 15<br />
É verdade, ademais, que a Lei 9.099/95 criou uma nova sistemática para<br />
a apuração, o processo e o julgamento <strong>das</strong> infrações penais de menor<br />
ofensivo. Essa situação tem servido para aqueles que acreditam que a polícia<br />
militar pode confeccionar um termo circunstanciado como argumento favorável<br />
à tese que defendem.<br />
Contudo, apesar da simplificação de procedimentos, em instante algum<br />
a Lei dos Juizados Especiais alterou as instituições que devem atuar na<br />
persecução penal e em juízo. Se ainda cabe ao Ministério Público a missão de<br />
oferecer denúncia – ainda que possa ser oral 16 e depois de frustra<strong>das</strong>, quando<br />
cabíveis, a conciliação e a transação – e ao Judiciário as funções de processar<br />
e julgar as infrações penais de menor potencial ofensivo, por qual razão jurídica<br />
que a simplificação apenas permitiria a substituição na fase preliminar da<br />
polícia judiciária pela polícia militar? Nenhuma, até porque cabe à polícia<br />
judiciária a formalização de procedimentos após o cometimento de uma<br />
infração penal, seja ela de maior potencial ofensivo ou não!<br />
5. A ANÁLISE DO TEMA SOB A ÓTICA DO DIREITO PENAL<br />
14 No sentido de que a autoridade policial referida na Lei 9.099/95 é somente o delegado de<br />
polícia: NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Juizados Especiais Cíveis e Criminais. São Paulo: Saraiva,<br />
1996, p. 78; MIRABETE, Júlio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 3.ed. São Paulo:<br />
Atlas, 1997, p. 60-1; RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 8.ed. Rio de Janeiro: Lumen<br />
Juris, 2004, p. 167; DOTTI, René Ariel. A autoridade policial na Lei n.º 9099/95. Boletim do<br />
IBCCRIM, São Paulo, n. 41, p. 5, maio 1996; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa.<br />
Prática de Processo Penal. 18.ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 319-20; BITENCOURT,<br />
Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais Federais. Análise comparativa <strong>das</strong> Leis<br />
9.099/95 e 10.259/2001. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 59-60; BRITO, Cláudio. “Poder de<br />
investigar”. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 19.06.04; NUCCI, Guilherme de Souza. Leis<br />
Penais e Processuais Penais Comenta<strong>das</strong>. São Paulo: RT, 2006, p. 376; SILVA, José<br />
Geraldo. O Inquérito Policial e a Polícia Judiciária. 4.ed. Campinas: Millenium, 2002, p. 103.<br />
15 NUCCI, op. cit., p. 376. No mesmo sentido: SILVA, José Geraldo, op. cit., p. 103. Em São<br />
Paulo, aliás, existe decisão da VEC da Comarca de Rio Claro que afirma que são agentes<br />
da autoridade policial (delegado de polícia) toda a Polícia Militar, desde seu Comandante<br />
Geral até o mais novo praça, e todo o segmento da organização da Polícia Civil (Correg.<br />
253/2002, Juiz Julio Osmany Barbin, j. 14.01.03).<br />
16 Art. 77. Na ação penal de iniciativa pública, quando não houver aplicação de pena, pela<br />
ausência do autor do fato, ou pela não ocorrência da hipótese prevista no art. 76 desta Lei, o<br />
Ministério Público oferecerá ao juiz, de imediato, denúncia oral, se não houver necessidade<br />
de diligências imprescindíveis.
Outro aspecto que merece destaque é a análise do tema sob enfoque do<br />
Direito Penal. Quem defende a lavratura de TC pela polícia militar afirma que<br />
se trata de uma mera constatação de um crime de menor gravidade, que não<br />
chega a caracterizar uma investigação policial.<br />
Suponha-se, então, que um indivíduo registre na polícia militar que<br />
alguém, sabidamente inocente, tenha cometido uma infração penal de menor<br />
potencial ofensivo e que, em decorrência disso, seja lavrado um TC. Nessa<br />
hipótese, seguindo-se a equivocada orientação referida, quem imputou crime a<br />
um inocente não poderá responder por denunciação caluniosa, crime previsto<br />
no art. 339 do CP. 17 Ainda que tenha feito uma imputação falsa, não haveria<br />
adequação típica se fosse seguida a posição incorreta de que o TC é apenas<br />
“uma simples constatação” de uma infração penal de menor potencial ofensivo,<br />
porque um dos elementos da denunciação caluniosa é “dar causa à<br />
instauração de investigação policial”, o que não ocorreria à luz dessa<br />
concepção. Diante do princípio da reserva legal, estar-se-ia diante de um fato<br />
atípico, pois a imputação falsa não deu causa à “instauração de investigação<br />
policial”, mas a uma “simples constatação” do episódio. Dessa forma, pela<br />
estrutura do Código Penal, percebe-se que também não se previu, no âmbito<br />
do direito material, como possível a elaboração de procedimentos de<br />
investigação criminal pela polícia militar, o que é o caso do termo<br />
circunstanciado.<br />
6. ASPECTOS PRÁTICOS E LEGAIS<br />
Pelo que se expôs até aqui, de acordo com o que acaba de decidir o<br />
Pleno do STF, todos os termos circunstanciados elaborados pela polícia (que<br />
deveria ser) ostensiva são nulos.<br />
Mas a questão não se restringe apenas ao aspecto jurídico. No Rio<br />
Grande do Sul, por exemplo, onde se autorizou através de um termo de<br />
cooperação 18 tal circunstância, brigadianos foram retirados <strong>das</strong> ruas para,<br />
aquartelados e em estruturas cartorárias que concorrem com as <strong>das</strong><br />
Delegacias de Polícia, confeccionarem, “revisarem” e ca<strong>das</strong>trarem no sistema<br />
informatizado os procedimentos preenchidos a mão, deixando de lado a sua<br />
principal e relevante <strong>atribuição</strong> constitucional, que seria a realização do<br />
policiamento preventivo. Apenas para ilustrar o que se acaba de afirmar,<br />
existem cidades do Rio Grande do Sul que possuem mais policiais<br />
aquartelados do que nas ruas realizando policiamento. Conforme noticiou a<br />
imprensa, em Passo Fundo, por exemplo, são 154 em funções administrativas<br />
17 Art. 339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração<br />
de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra<br />
alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente. Pena – reclusão, de dois a oito anos,<br />
e multa.<br />
18 <strong>Termo</strong> de Convênio n.º 03/01, de 22.01.01, celebrado entre o Governo do Estado, através da<br />
Secretaria da Justiça e da Segurança, e o Ministério Público, publicado no DOE de<br />
01.02.2001.
e apenas 38 nas ruas; em Santo Ângelo, 97 nos quartéis e somente 20 no<br />
patrulhamento. 19<br />
Os policiais militares também têm propalado que quem ganha com tal<br />
procedimento (lavratura de TC) é a sociedade. No entanto, verifica-se pelos<br />
dados estatísticos que, desde 2001, quando a polícia militar começou a fazer<br />
TC, até os dias atuais, a produção dos brigadianos vem diminuindo, apesar de<br />
os índices de criminalidade terem crescido. Nos meses de janeiro e fevereiro<br />
de 2006, por exemplo, foram elaborados, respectivamente, 4.200 e 3.580; já<br />
nos mesmos meses do ano seguinte, a produção baixou para 4.097 em janeiro<br />
(redução de 14,76%) e 2.407 em fevereiro (redução de 41,25%). Além do mais,<br />
a produção anual da polícia militar, de 2001 até o final de 2007, no âmbito da<br />
Justiça Estadual, foi de apenas 13,78% do total de termos circunstanciados<br />
remetidos aos Juizados Especiais Criminais, sendo os demais procedimentos<br />
(86,22%) enviados pela Polícia Civil. 20<br />
Igualmente se verifica que a confecção de termos circunstanciados pelos<br />
militares gaúchos tem sido feita de forma seletiva. Hoje, ao bel-prazer, os<br />
policiais militares escolhem, por critérios aleatórios, quais os procedimentos<br />
que irão realizar. Em 2007, de janeiro até novembro, <strong>das</strong> 209.423 ocorrências<br />
registra<strong>das</strong> pela Brigada Militar no Rio Grande do Sul, foram elaborados<br />
somente 37.281 termos circunstanciados, o que corresponde a 17,8% dos<br />
casos. 21 As demais ocorrências foram envia<strong>das</strong> para a polícia judiciária.<br />
Assim, está evidente que a intenção dos milicianos não é, de fato,<br />
apenas a lavratura de TC, mas conquistarem, mesmo com afronta à<br />
Constituição Federal, espaços que lhes possibilitem chegar até a realização de<br />
investigações criminais de uma maneira geral. Afinal, se a sociedade gaúcha<br />
“ganha” com a elaboração de TC pela polícia militar e os índices de<br />
criminalidade crescem a cada dia, a produção deveria aumentar (e não<br />
diminuir!) e não ser seletiva.<br />
Além disso, se a vítima precisar de uma cópia da ocorrência registrada,<br />
o que acontece na maioria dos casos, deverá dirigir-se, no dia seguinte (ou,<br />
melhor dizendo, nos dias seguintes), a um quartel para retirar uma via. Se<br />
registrar o fato em uma Delegacia de Polícia, já sai com a via da ocorrência na<br />
hora. Se for mal registrada a ocorrência, circunstância que não tem ocorrido<br />
com raridade, deverá comparecer também em uma Delegacia de Polícia para<br />
esclarecer o episódio. Assim, sinceramente, não se consegue vislumbrar o<br />
ganho da sociedade com tais procedimentos.<br />
Também não se pode argumentar que os policiais militares são<br />
preparados para tal função, o que seria um absurdo à luz da Constituição<br />
Federal. A questão é de legalidade.<br />
19<br />
Jornal Zero Hora de 13.03.08, p. 43.<br />
20<br />
Fonte: SIP (Sistema de Informações Policiais do Rio Grande do Sul). Pesquisa realizada em<br />
26.12.07.<br />
21<br />
Dados fornecidos pela PROCERGS, companhia de processamento de dados do Rio Grande<br />
do Sul.
Não se tem dúvi<strong>das</strong> de que juízes de direito são preparados, intelectual<br />
e juridicamente, para elaboração de denúncias; promotores de justiça, da<br />
mesma forma, possuem capacidade para elaboração de sentenças; delegados<br />
de polícia também teriam potencial para elaboração de acusações em juízo.<br />
Mas a questão de fundo não é essa.<br />
O texto constitucional – e não poderia ser diferente – delimita com<br />
clareza as atribuições de cada uma <strong>das</strong> instituições públicas, uma <strong>das</strong> grandes<br />
vantagens de uma democracia. E entre tais limitações se encontra a vedação<br />
no sentido de que às <strong>polícias</strong> militares não compete a função de polícia<br />
judiciária com relação a infrações penais comuns.<br />
Como se não bastasse, civis, em pleno Estado Democrático de Direito,<br />
estão sendo conduzidos a unidades militares para a lavratura desses<br />
famigerados termos circunstanciados. Isso que não se vive, felizmente, em um<br />
regime ditatorial!<br />
Além do mais, apenas um escrivão de polícia por Delegacia de Polícia,<br />
sob supervisão do respectivo delegado de polícia a que está subordinado,<br />
atenderia a demanda referente a infrações penais de menor potencial ofensivo<br />
ocorri<strong>das</strong> nas respectivas circunscrições policiais. Quer-se deixar claro, com<br />
isso, que os procedimentos (nulos, de acordo com o STF) elaborados pela<br />
polícia militar podem (e devem) ser absorvidos, tranqüilamente, pela polícia<br />
judiciária, sem qualquer prejuízo à sociedade e com observância aos critérios<br />
da celeridade e da economia processual.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
De acordo com as razões expostas na decisão do Supremo Tribunal<br />
Federal e ao longo do texto, não restam dúvi<strong>das</strong> no sentido de que a lavratura<br />
de termos circunstanciados é uma <strong>atribuição</strong> <strong>exclusiva</strong> <strong>das</strong> <strong>polícias</strong> judiciárias,<br />
sendo nulos, portanto, aqueles confeccionados por outros órgãos policiais.<br />
Dessa maneira, cabe aos governos do Rio Grande do Sul e dos demais<br />
Estados da Federação que estiverem na mesma situação a revogação, de<br />
pronto, de todos os atos normativos inconstitucionais que permitem a lavratura<br />
de TC pela polícia militar. Essa postura respeitaria a Constituição Federal e<br />
seria um grande passo para se tentar a necessária integração entre os órgãos<br />
de segurança pública, que somente ocorrerá quando os limites constitucionais<br />
forem observados.<br />
Enquanto isso não ocorre, caberá aos advogados, na defesa dos direitos<br />
fundamentais dos seus clientes – se os magistrados não se manifestarem, de<br />
ofício, no sentido de que esses procedimentos são nulos –, buscarem em juízo<br />
a declaração de nulidade desses atos. Em última análise, ou se acata a<br />
decisão do STF, guardião da Constituição, ou o texto constitucional não vale<br />
mais para nada!
OBRAS CONSULTADAS<br />
BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais Federais. Análise<br />
comparativa <strong>das</strong> Leis 9.099/95 e 10.259/2001. São Paulo: Saraiva, 2003.<br />
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19.06.04.<br />
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2004, p. 9-32.<br />
DOTTI, René Ariel. A autoridade policial na Lei n.º 9099/95. Boletim do<br />
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LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12.ed. São Paulo:<br />
Saraiva, 2008.<br />
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 3.ed. São Paulo:<br />
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NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Juizados Especiais Cíveis e Criminais. São Paulo:<br />
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NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comenta<strong>das</strong>.<br />
São Paulo: RT, 2006.<br />
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 8.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,<br />
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15.ed. São<br />
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SILVA, José Geraldo. O Inquérito Policial e a Polícia Judiciária. 4.ed.<br />
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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de Processo Penal. 18.ed. São<br />
Paulo: Saraiva, 1996.<br />
Artigo publicado na “Revista Criminal – Ensaios sobre a atividade<br />
policial”, São Paulo, Editora Fiuza, ano 02, vol. 3, abr./jun. 2008, p.<br />
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