Fonte: O Globo Somos o que somos Cacá Diegues Marcelo Ontem ...
Fonte: O Globo Somos o que somos Cacá Diegues Marcelo Ontem ...
Fonte: O Globo Somos o que somos Cacá Diegues Marcelo Ontem ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
<strong>Fonte</strong>: O <strong>Globo</strong><br />
<strong>Somos</strong> o <strong>que</strong> <strong>somos</strong><br />
<strong>Cacá</strong> <strong>Diegues</strong><br />
<strong>Marcelo</strong><br />
<strong>Ontem</strong> de manhãzinha, numa calçada de Ipanema, passei por um morador de rua <strong>que</strong> dormia à porta de uma<br />
sofisticada filial da Aliança Francesa, coberto por uma bandeira do Brasil velha, suja e rota.<br />
Lembrei-me de outra cena em <strong>que</strong>, anos atrás, eu, Renata e uma multidão voltávamos de trem de um show<br />
ines<strong>que</strong>cível dos Rolling Stones, no Shea Stadium, na periferia de Nova York.<br />
Ao chegar na Grand Central Station, no coração de Manhattan, para alcançar o ponto de taxi e voltar ao hotel<br />
tivemos <strong>que</strong> pular por cima de corpos de homeless (sem teto) <strong>que</strong> dormiam protegidos do frio, por<br />
cobertores rasgados, e da chuva, por imensa marquise enfeitada de bandeiras americanas.<br />
Pensei em como seria fácil desmoralizar qual<strong>que</strong>r uma das duas nações, apenas tirando fotos dessas cenas.<br />
A de Ipanema, então, seria um enorme sucesso na desconstrução do esforço <strong>que</strong> possamos fazer para nos<br />
tornarmos um país decente.<br />
Não <strong>que</strong>ro <strong>que</strong> em meu país existam pessoas <strong>que</strong>, não tendo onde se abrigar, vivam pelos meio-fios, a céu<br />
aberto. Tenho a obrigação de saber <strong>que</strong> isso não é humano, <strong>que</strong> é preciso sempre fazer alguma coisa para<br />
corrigir o <strong>que</strong> é ruim. Mas não tenho o direito de ignorar ou subestimar o esforço <strong>que</strong> muitos brasileiros fazem<br />
para <strong>que</strong> isso não aconteça mais.<br />
Na última semana, passou despercebida importante notícia vinda de Florianópolis, Santa Catarina. Isadora<br />
Faber, de 12 anos, montou uma página na internet para criticar sua escola, revelando fatos e fotos <strong>que</strong><br />
comprovam erros, equívocos e fragilidades da instituição de ensino. Sua página hoje tem mais de 60 mil<br />
seguidores, provocando a ira dos responsáveis pela escola, <strong>que</strong> a ameaçam com represálias. Mas os pais da<br />
menina deram-lhe todo apoio, assim como grande parte das famílias de seus colegas. Isadora persevera em<br />
sua campanha.<br />
Todos os debates e disputas são saudáveis, a unanimidade é sempre conservadora e nada criativa. A<br />
harmonia absoluta é um sonho dos homens <strong>que</strong> não conhecem sua própria natureza (nem a própria<br />
Natureza), não sabem <strong>que</strong> só avançamos na crise. Nenhum leitor da página de Isadora na web continuará<br />
sendo o mesmo <strong>que</strong> era antes de descobri-la.
Todos os debates e disputas são saudáveis, a unanimidade é sempre conservadora e nada criativa. A<br />
harmonia absoluta é um sonho dos homens <strong>que</strong> não conhecem sua própria natureza (nem a própria<br />
Natureza), não sabem <strong>que</strong> só avançamos na crise. Nenhum leitor da página de Isadora na web continuará<br />
sendo o mesmo <strong>que</strong> era antes de descobri-la.<br />
No julgamento do mensalão, o Supremo Tribunal Federal também nos mostra <strong>que</strong> a crise pode nos fazer<br />
descobrir a Justiça. Não interessa aqui de <strong>que</strong> lado político estamos; mas sim de saber <strong>que</strong> o STF está<br />
reconstruindo a independência entre os poderes, quando seus juizes não se submetem a <strong>que</strong>m os nomeou.<br />
Desde a intensa disputa entre Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski ficamos sabendo também <strong>que</strong> é<br />
indispensável uma democracia corporativa <strong>que</strong> evite a complacência ou o linchamento, duas formas<br />
inadmissíveis de comportamento nada civilizado.<br />
Do mesmo modo, sempre <strong>que</strong> temos eleições no país, começam as lamentações dos finos e altivos, a<br />
tentativa (às vezes involuntária e ingênua) de desmoralizar o método democrático em <strong>que</strong> todos têm o direito<br />
e a oportunidade de se expor ao eleitor. Enquanto nos Estados Unidos, o berço moderno da democracia, o<br />
único e exclusivo combustível da campanha eleitoral é o dinheiro, aqui todos os candidatos têm as mesmas<br />
chances.<br />
Em vez de discutirmos o aperfeiçoamento do método, como por exemplo propondo tempo igual para todos os<br />
candidatos e partidos, eliminando as agremiações insignificantes (muitas vezes de aluguel), preferimos<br />
desmoralizá-lo, desmoralizando <strong>que</strong>m se utiliza dele.<br />
Que é <strong>que</strong> tem se um é banguela e o outro zarolho? "Batzefa" aparece na televisão vestida numa fantasia de<br />
Batman, com enorme margarida na cabeça. "Tio Peter Pan" evoca o herói infanto-juvenil. "Eno" diz <strong>que</strong> "faz<br />
bem", como o sal de fruta. "Bodão" berra como um cabrito. "Tyeta do Forró" carrega flores e um sorriso<br />
permissivo. "Charles Henri<strong>que</strong>pídia" deve saber de tudo ("Ah, mole<strong>que</strong>!", ele proclama). Pastores, apóstolos e<br />
ministros prometem salvar o Brasil do demônio.<br />
Filhos levam ao programa seus pais e mães como cabos eleitorais - lá estão Jimmy Pereira e mãezinha, o<br />
Junior da Lucinha, os Bolsonaro, o de Cidinha Campos diz <strong>que</strong> é tão bom quanto ela, Wagner Montes pede<br />
voto para o seu rebento ("Escracha!").<br />
Esses candidatos correspondem ao <strong>que</strong> <strong>somos</strong>. Vá na arquibancada do Engenhão, na Feira de São<br />
Cristóvão, no novo Par<strong>que</strong> de Madureira, no calçadão de Copacabana em dia de domingo - eles estão lá, em<br />
pessoa ou representados por seus iguais. E muitas vezes dão certo, como deram certo Romário, o cra<strong>que</strong> da<br />
seleção, e Jean Wyllys, a estrela do BBB, votados como caricaturas e hoje reconhecidos como excelentes<br />
congressistas.<br />
Esses candidatos <strong>que</strong> estão aí são o <strong>que</strong> fizemos do país, com todos os seus formatos e cores.<br />
A eleição é no Brasil e vocês <strong>que</strong>rem candidatos suíços?<br />
Não vamos resolver os problemas do país com preconceito diante de seus sintomas. Ao longo de nossos<br />
quatro séculos de existência, sempre tivemos um estado sufocante e autoritário, e uma sociedade frágil e<br />
submissa. Mais <strong>que</strong> frágil e submissa, uma sociedade com grande maioria de famintos. Eleições regulares e
A eleição é no Brasil e vocês <strong>que</strong>rem candidatos suíços?<br />
Não vamos resolver os problemas do país com preconceito diante de seus sintomas. Ao longo de nossos<br />
quatro séculos de existência, sempre tivemos um estado sufocante e autoritário, e uma sociedade frágil e<br />
submissa. Mais <strong>que</strong> frágil e submissa, uma sociedade com grande maioria de famintos. Eleições regulares e<br />
periódicas serão sempre uma esperança de <strong>que</strong> ela se expresse.<br />
<strong>Fonte</strong>: O <strong>Globo</strong>