Fonte: O Globo A antena Ecos de Keith Jarrett no Municipal ... - aarffsa
Fonte: O Globo A antena Ecos de Keith Jarrett no Municipal ... - aarffsa
Fonte: O Globo A antena Ecos de Keith Jarrett no Municipal ... - aarffsa
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>Fonte</strong>: O <strong>Globo</strong><br />
A <strong>antena</strong><br />
<strong>Ecos</strong> <strong>de</strong> <strong>Keith</strong> <strong>Jarrett</strong> <strong>no</strong> <strong>Municipal</strong><br />
Cruz<br />
galpão <strong>no</strong> Rocha estava cheio <strong>de</strong> gente esperançosa. Na entrada, a maior parte das pessoas <strong>de</strong>ixava os<br />
<strong>no</strong>mes <strong>de</strong> seus entes queridos escritos em bilhetes que, se sorteados <strong>no</strong> palco, serviriam para conectar os<br />
vivos e os mortos. O elo era uma médium tão respeitada quanto discreta, dona Célia, e eu estava lá a convite<br />
<strong>de</strong> um amigo comum.<br />
Sou ateu e materialista, filho da família <strong>de</strong> meu pai, italiana do <strong>no</strong>rte. Porém, a família <strong>de</strong> minha mãe era<br />
portuguesa e praticava o sincretismo brasileiro: catolicismo mais umbanda mais espiritismo. Criança, eu vi e<br />
ouvi (ou julguei ter visto e ouvido, sei lá) coisas para as quais a ciência não me oferece explicação. Não ainda.<br />
Nunca perdi a confiança na razão, que, claro, também gera os seus próprios monstros.<br />
Por via das dúvidas, não a<strong>no</strong>tei nenhum <strong>no</strong>me num papel. Depois <strong>de</strong> alguma espera, uma senhora <strong>de</strong><br />
aparência frágil subiu ao palco e começou a perguntar por fulana e beltra<strong>no</strong>. Então, dona Célia lhes transmitia<br />
o que seriam recados dos mortos, recados com riqueza <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes. As pessoas saíam aos prantos, <strong>de</strong><br />
alegria, <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>.<br />
Fiquei impressionado, conjecturando se aquilo um dia viria a ser consi<strong>de</strong>rado pela ciência uma forma <strong>de</strong><br />
telepatia, na qual a médium entrava na mente <strong>de</strong> quem requisitava o contato e, dada a boa vonta<strong>de</strong>, recolhia<br />
as informações que formariam o recado e apaziguariam o coração. Alguma explicação racional haveria <strong>de</strong><br />
haver.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, conversando com o amigo que me convidara para assistir à sessão, o escritor e astrólogo<br />
Wal<strong>de</strong>mar Falcão, gentil-homem <strong>de</strong> todas as boas-fés, soube da explicação da médium e gostei. Dona Célia<br />
não tinha religião, não acreditava nem em Deus nem que ela própria fizesse algo <strong>de</strong> extraordinário. Segundo<br />
ela, apenas captaria ondas que estão <strong>no</strong> ar e que a ciência ainda não é capaz <strong>de</strong> captar e <strong>de</strong>cifrar. “Eu sou só<br />
uma <strong>antena</strong>”, dizia a senhora frágil, que viria a morrer não muito tempo <strong>de</strong>pois.<br />
Na <strong>no</strong>ite do último 9 <strong>de</strong> abril, sentado <strong>no</strong> balcão <strong>no</strong>bre do <strong>Municipal</strong>, eu olhava para <strong>Keith</strong> <strong>Jarrett</strong> <strong>no</strong> palco e<br />
me lembrava <strong>de</strong>ssa história. Às vezes, ele dava a impressão <strong>de</strong> também ser só uma <strong>antena</strong>, embora uma<br />
<strong>antena</strong> voltada para <strong>de</strong>ntro. Seus improvisos vinham do nada — dias antes, numa entrevista por telefone, aqui<br />
para O GLOBO, ele me reiterara que tocava com a cabeça limpa <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias preconcebidas e que até evitava
Na <strong>no</strong>ite do último 9 <strong>de</strong> abril, sentado <strong>no</strong> balcão <strong>no</strong>bre do <strong>Municipal</strong>, eu olhava para <strong>Keith</strong> <strong>Jarrett</strong> <strong>no</strong> palco e<br />
me lembrava <strong>de</strong>ssa história. Às vezes, ele dava a impressão <strong>de</strong> também ser só uma <strong>antena</strong>, embora uma<br />
<strong>antena</strong> voltada para <strong>de</strong>ntro. Seus improvisos vinham do nada — dias antes, numa entrevista por telefone, aqui<br />
para O GLOBO, ele me reiterara que tocava com a cabeça limpa <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias preconcebidas e que até evitava<br />
ouvir música às vésperas <strong>de</strong> cada apresentação — e voltavam para o nada. Muitas peças eram subitamente<br />
interrompidas. Como se a conexão tivesse caído.<br />
No que muitos veriam a prova da existência <strong>de</strong> um <strong>de</strong>us, eu via mais um triunfo do gênio huma<strong>no</strong>. Um homem<br />
sozinho com o pia<strong>no</strong>, tirando melodias <strong>de</strong>slumbrantes sabe-se lá <strong>de</strong> on<strong>de</strong> e compartilhando-as com os seus<br />
semelhantes. O fato <strong>de</strong> esse momento ser bastante efêmero (<strong>no</strong> Rio, uma hora e meia) aumentava a<br />
sensação <strong>de</strong> que estávamos, crentes e <strong>de</strong>screntes, diante <strong>de</strong> algo muito, muito especial.<br />
Nem a presença <strong>de</strong> microfones estrategicamente colocados em tor<strong>no</strong> do pia<strong>no</strong> alimentava a esperança <strong>de</strong><br />
que, um dia, ecos daquele momento po<strong>de</strong>riam ser ouvidos <strong>de</strong> <strong>no</strong>vo. Eu sabia que <strong>Jarrett</strong> costuma gravar<br />
todas as suas apresentações para estudá-las em casa. De vez em quando, uma passa <strong>no</strong> seu rigorosíssimo<br />
crivo e aparece em disco. Por que haveria <strong>de</strong> ser aquela do dia 9 <strong>de</strong> abril? Já disse que sou um <strong>de</strong>scrente,<br />
não?<br />
Contudo, logo se soube que o concerto <strong>no</strong> <strong>Municipal</strong> superara o teste e sairia em CD antes do final do a<strong>no</strong>,<br />
uma rapi<strong>de</strong>z incomum em se tratando do meticuloso <strong>Jarrett</strong>. E assim, contra todas as minhas expectativas,<br />
aqui estou eu, ouvindo o álbum duplo “Rio” (na edição importada, do selo alemão ECM, que sairá aqui pela<br />
Borandá), rememorando a apresentação do pianista e lembrando <strong>de</strong> dona Célia, a médium-<strong>antena</strong>.<br />
Em meio século <strong>de</strong> carreira, poucas cida<strong>de</strong>s tiveram o privilégio <strong>de</strong> assistir a <strong>Jarrett</strong> num <strong>de</strong>sses concertos<br />
solo inteiramente improvisados e, tempos <strong>de</strong>pois, escutar o resultado. Salvo lacuna na minha estante, apenas<br />
Bremen, Lausanne, Colônia, Kioto, Osaka, Nagoya, Tóquio, Sapporo, Bregenz, Paris (duas vezes), Viena,<br />
Milão, Nova York, Londres e agora o Rio <strong>de</strong> Janeiro. Em 1987, <strong>no</strong>ssa cida<strong>de</strong> não tinha passado na prova em<br />
outros dois concertos <strong>de</strong>sse tipo <strong>no</strong> mesmo <strong>Municipal</strong>.<br />
Ao escutar “Rio”, confirmo a impressão <strong>de</strong> que o concerto foi se suavizando, conforme <strong>Jarrett</strong> percebeu que a<br />
plateia se comportaria com a <strong>de</strong>vida atenção. A dissonância ce<strong>de</strong> lugar à consonância, a tristeza, à alegria.<br />
Gosto particularmente do <strong>no</strong><strong>no</strong> tema (o terceiro do CD 2), que, na minha cabeça, traz a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e o senso<br />
<strong>de</strong> fatalismo nipônicos. <strong>Jarrett</strong> namora uma japonesa. Se da última vez em que escrevi sobre ele, na coluna<br />
do dia 15 <strong>de</strong> abril, eu recordava outra história, na qual seu modo <strong>de</strong> tocar era comparado a sexo explícito,<br />
agora aproveito “Rio” <strong>de</strong> modo mais espiritual.<br />
Na próxima terça-feira, dia 20, o programa “roNca roNca” comemora 300 edições na Oi FM com um especial<br />
ao vivo <strong>de</strong> três horas, das 22h à 1h. Seu piloto, Maurício Valladares, é um herói. Des<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1980, em<br />
várias emissoras, ele <strong>no</strong>s abastece com sua “<strong>de</strong>sorientação” musical, capaz <strong>de</strong> misturar Paulo Silvi<strong>no</strong> e John<br />
Coltrane. E na quinta, <strong>no</strong> Rival, rola a festa que marca a estreia da banda Os Roncatripas (Dado Villa-Lobos,<br />
Toni Platão, Carlos Laufer, Caio Fonseca e Lourenço Monteiro) tocando parte da trilha do programa: Van<br />
Morrison, Legião, Smiths, The Clash...
Morrison, Legião, Smiths, The Clash...<br />
<strong>Fonte</strong>: O <strong>Globo</strong>