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Miguel Ângelo - Jaba

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Índice<br />

<strong>Miguel</strong> <strong>Ângelo</strong><br />

A agonia de um filho e o sofrimento<br />

silencioso de uma mãe<br />

Adriaen Brouwer<br />

Momentos vívidos e fugazes do desagrado físico<br />

na vida quotidiana<br />

Géricault<br />

Um grupo de homens à deriva que reflectem os<br />

infinitos males da dor<br />

Mathis Grünewald<br />

Cena bíblica clássica onde o sofrimento adquire<br />

um tom hiper-realista<br />

026_ARTE_DOR_F4_PT_v3<br />

© Europa Press Ltda.<br />

Direitos reservados em tudo o mundo<br />

Editor:<br />

Edmundo Tapia<br />

5<br />

8<br />

11<br />

14<br />

Desenho Editorial:<br />

Erika Ruz e Rodrigo Barrera


A Piedade de<br />

<strong>Miguel</strong> <strong>Ângelo</strong><br />

A agonia de um filho e o sofrimento<br />

silencioso de uma mãe<br />

A dor escondida<br />

Logo após a morte do seu principal mecenas,<br />

Lourenço o Magnífico, <strong>Miguel</strong> <strong>Ângelo</strong> deixou<br />

a sua terra natal, Florença, para se estabelecer<br />

em Roma onde recebeu uma encomenda<br />

feita por Jean Bilhères de Lagraulas de um<br />

importante trabalho: uma escultura em<br />

mármore da Virgem Maria segurando o<br />

seu filho Jesus morto nos braços.<br />

Aos 23 anos, com um talento artístico<br />

amplamente demonstrado na refinada<br />

corte dos Médicis, e um extremo sentido<br />

de autocrítica, começou a trabalhar<br />

na escultura de 1.80 metros de altura<br />

destinada a embelezar a Basílica de<br />

São Pedro. O resultado final do seu<br />

trabalho marcou um dos pontos<br />

culminantes da arte renascentista,<br />

sendo também a única obra em que<br />

aparece a assinatura do autor.<br />

Admirada através dos tempos pelo seu<br />

comovedor realismo, Piedade mostra uma<br />

virgem que, contendo a intensa dor que<br />

a oprime, conserva ainda assim uma<br />

expressão de serenidade enquanto<br />

segura nos braços o corpo do seu<br />

filho morto. Apesar de parecer resignada<br />

ao penoso desígnio divino, o seu rosto<br />

transparece a mais profunda das tristezas.<br />

Sobre o colo de sua mãe e embalado por seus<br />

braços, o corpo lânguido de Jesus com o<br />

aspecto de um herói clássico, apresenta sinais<br />

mínimos da tortura e crucificação que sofreu.<br />

“As mãos da morte são<br />

eternas e sinto que já me<br />

puxam pelo manto”<br />

<strong>Miguel</strong> <strong>Ângelo</strong><br />

5


Sofrimento sem tragédia<br />

A Virgem mostra uma<br />

expressão serena,<br />

que restringe<br />

a terrível dor<br />

interna que a<br />

oprime.<br />

Mesmo trabalhando com todo o vigor<br />

e ousadia da juventude, o génio<br />

renascentista demorou dois anos a terminar<br />

a escultura. Sendo profundamente cristão,<br />

teve o cuidado de que Maria brilhasse<br />

eternamente jovem e cândida para destacar<br />

a sua “virgindade e pureza perpétuas”.<br />

Ao contrário de representações anteriores,<br />

em que Jesus Cristo parece oprimir<br />

ligeiramente o corpo de sua mãe, A Piedade<br />

de Michel <strong>Ângelo</strong>, mostra um equilíbrio<br />

perfeito entre as duas figuras, embutido<br />

numa estrutura piramidal definida pelo<br />

corpo e pelas dobras do manto de Maria.<br />

O objectivo do artista era reforçar o<br />

envolvimento psicológico do espectador com<br />

uma cena emocionante, mas não trágica.<br />

Com os olhos semicerrados, a Virgem desvia<br />

o olhar do corpo prostrado de seu filho para<br />

orientá-lo para si mesma mostrando assim,<br />

aos olhos do observador, os seus sentimentos<br />

de compaixão de mãe que humildemente se<br />

submete à vontade de Deus.<br />

Em carne e osso<br />

O espírito renascentista do escultor<br />

manifesta-se na forma como mostra duas<br />

pessoas reais, de carne e osso, próximas<br />

e tangíveis. Na busca do volume ideal,<br />

<strong>Miguel</strong> <strong>Ângelo</strong> deu rédea solta à atitude<br />

interior que os críticos chamaram de “La<br />

terribilitá” do artista: uma expressão<br />

avassaladora de sentimentos.<br />

Dono de um génio temperamental, poucos<br />

dias depois de A Piedade ter sido colocada<br />

num local público, o artista ouviu um<br />

peregrino comentar que a obra havia<br />

sido criada por um certo Cristoforo Solari<br />

de Lombardia. A sua ira foi tão grande<br />

que, nessa mesma noite ele esculpiu<br />

com o cinzel nas vestes da Virgem, uma<br />

expressão latina que dissiparia para<br />

sempre qualquer dúvida: “Michelangelo<br />

Buonarroti, de Florença, fez isto”.<br />

Colocava essa mesma paixão na sua obra,<br />

exigindo-lhe perfeição e vitalidade. Queria<br />

com cada golpe titânico do cinzel e do<br />

martelo fazer emergir “o ser escultórico”<br />

oculto entre as veias do mármore.<br />

Procurava um resultado perfeito com uma<br />

energia que às vezes derivava em fúria, não<br />

tendo qualquer receio de destruí-lo. Não<br />

suportava os trabalhos medíocres que não<br />

expressassem com absoluta veracidade o<br />

seu estado de ânimo. Na obra A Piedade,<br />

criada num período de calma e estabilidade<br />

na vida do artista, o dramatismo da cena<br />

é contrastado pela atitude controlada e<br />

serena de Maria.


Da anatomia à perfeição<br />

Através da perfeição física, o artista dotou<br />

as suas obras de grande espiritualidade.<br />

Esculturas como Moisés, Baco e David,<br />

transmitem poderosos sentimentos e paixões<br />

humanas. <strong>Miguel</strong> <strong>Ângelo</strong> sacrificou a harmonia<br />

do classicismo a favor de um expressionismo<br />

pessoal com um selo único de estilo. Tanto a<br />

sua forma de esculpir, como o produto final do<br />

seu trabalho, reflectiam o seu temperamento<br />

incontrolável, e não a influência de uma escola<br />

formal ou teoria erudita.<br />

Esta característica autodidacta, marca da sua<br />

obra, levou-o a mergulhar no terreno das<br />

emoções através da anatomia. Com o seu vasto<br />

conhecimento do movimento dos músculos,<br />

da estrutura óssea e da pele, conseguiu<br />

representar fielmente as mais variadas e subtis<br />

emoções nas suas estátuas sacras e profanas.<br />

A Piedade, uma amostra emblemática dessa<br />

característica, reflecte o sofrimento interno de<br />

uma mãe, sintetizado na expressão do rosto,<br />

cabisbaixo mas estóico da Virgem Maria.<br />

A Piedade inacabada<br />

Criada no período final da trajectória<br />

artística de <strong>Miguel</strong> <strong>Ângelo</strong>, e também no<br />

final da sua vida, A Piedade Rondanini<br />

evoca sentimentos opostos ao seu primeiro<br />

trabalho sobre o mesmo tema. Esta obra<br />

inacabada reflecte o pessimismo e a revolta<br />

contra o mundo e contra si mesmo que<br />

invadiram o artista na velhice, somada<br />

a uma sensação de fracasso por não ter<br />

conseguido alcançar a perfeição suprema<br />

que ansiava. Realizado à luz das velas<br />

durante várias noites de inquietação<br />

e insónia, deixa a descoberto a sua<br />

inconstância emocional e intelectual no<br />

processo de criação.<br />

A figura de Cristo, praticamente fundida<br />

com a de sua mãe numa imponente massa<br />

pétrea, parece querer libertar-se de toda<br />

a concepção estética, e inclusivamente,<br />

da realidade objectiva. A protagonista<br />

da obra é a dor, agora evidente, da mãe<br />

que com escassas forças tenta suster<br />

o cadáver do seu filho que abraça por<br />

trás para evitar que caia, utilizandoo<br />

no entanto, no seu desespero e<br />

debilidade, como suporte físico e<br />

moral. Inacabadas, com a expressão dos<br />

seus rostos amorfos e o movimento<br />

dos seus corpos, ambas as figuras<br />

transmitem desolação, impotência<br />

e desamparo, sentimentos com os quais o<br />

artista se identificava plenamente.


8<br />

Adriaen Brouwer<br />

e O Sabor Amargo<br />

Momentos vívidos e fugazes do desagrado físico<br />

na vida quotidiana<br />

Problemas do quotidiano dos<br />

camponeses<br />

Herdeiro da tradição pictórica de Jerónimo<br />

Bosch e Pieter Bruegel, Brouwer registou<br />

os costumes, dicas e sabores quotidianos<br />

dos camponeses e do povo holandês de<br />

classe baixa. O Sabor Amargo faz parte de<br />

uma série intitulada “Os Cinco Sentidos”.<br />

Pintada sobre uma mesa de carvalho,<br />

capta o momento em que um camponês<br />

toma uma amarga mistura medicinal. O<br />

seu rosto, deformado por uma expressão<br />

de repugnância, reflecte o desagrado físico<br />

pelo sabor do medicamento que segura na<br />

mão. Os lábios semiabertos insinuam um<br />

grito surdo ou, pelo menos, uma expressão<br />

de protesto. Correspondente à última fase<br />

pictórica do artista, o quadro é composto<br />

por pinceladas enérgicas e desenvoltas,<br />

numa clara influência estilística do seu<br />

compatriota Peter Paul Rubens e emblema<br />

do barroco flamengo.


Desagrado pelo paladar<br />

Atento observador do comportamento<br />

das pessoas ao seu redor, Brouwer foi<br />

reconhecido no seu tempo como um<br />

maestro da emoção, inigualável na<br />

sua capacidade de imprimir nas suas<br />

personagens expressões faciais e corporais<br />

realistas e convincentes. Sem desperdiçar<br />

recursos, nem tinta, captou o amplo<br />

espectro de percepções sensoriais em cada<br />

Verdade difícil de engolir<br />

Considerado pelos seus contemporâneos<br />

como um artista genial, a sua obra foi<br />

venerada por Rubens e Rembrandt,<br />

que disputaram a posse dos seus<br />

quadros. No entanto, a sua inclinação<br />

para cenas vulgares não deixou os seus<br />

contemporâneos mais refinados indiferentes,<br />

que não partilharam o entusiasmo de<br />

Brouwer pelas personagens populares nem<br />

o seu profundo conhecimento das verdades<br />

momento da vida, revelando através das<br />

sensações físicas a essência da condição<br />

humana. Sem dificuldade, transitou entre<br />

o prazer alegre, a calma, o desagrado e a<br />

dor, centrando a atenção do espectador<br />

em gestos e atitudes reveladoras. O Sabor<br />

Amargo é um exemplo magistral deste<br />

talento do artista: cada um dos músculos<br />

do rosto da personagem principal faz<br />

parte do desgosto que acaba de sofrer<br />

com o paladar.<br />

Registou os costumes, dicas<br />

e sabores quotidianos dos<br />

camponeses e do povo<br />

holandês de classe baixa.<br />

humanas ocultas em tabernas sombrias e<br />

em sujeitos desgrenhados, de indumentária<br />

simples e reputação duvidosa. Esse foi o<br />

caso do protagonista de O Sabor Amargo.<br />

Retratado sem sentimentalismos, de nariz<br />

largo e grosso, cabelo desalinhado, barba por<br />

fazer e poucos dentes, que não reprime um<br />

gesto grotesco depois de cuspir a mistura<br />

que esteve a ponto de engolir. Despojada de<br />

todo o romantismo, a cena é convincente e<br />

atractiva para qualquer pessoa que a olhe<br />

por um prisma meramente humano.


10<br />

Foi reconhecido pelos seus<br />

contemporâneos como um maestro<br />

inigualável na sua capacidade para<br />

imprimir às suas personagens expressões<br />

faciais e corporais realistas e convincentes.<br />

Cirurgia dolorosa<br />

Na mesma linha estética e temática de O Sabor Amargo,<br />

enquadra-se a sua pintura O Doutor do Povo. Valendose<br />

dos acentuados contrastes de luzes e sombras, bem<br />

como da nitidez do rosto do paciente que contrasta<br />

com as feições pouco nítidas do cirurgião e da sua<br />

ajudante, Brouwer delimitou diferentes planos<br />

espaciais e de acção. Mais uma vez, a expressão<br />

do rosto e a posição do corpo do protagonista<br />

reflectem com vivacidade e realismo um transe<br />

doloroso, ainda que se trate apenas de uma<br />

pequena cirurgia. O cirurgião, de aspecto tão<br />

tosco quanto as suas ferramentas, concentrase<br />

em fazer bem o seu trabalho e causar os<br />

menores danos possíveis ao paciente. O frasco<br />

que a mulher ao seu lado segura sugere que<br />

foi administrado álcool previamente à<br />

operação, o anestésico mais popular e<br />

mais usado nessa época.


Géricault<br />

e A Balsa da Medusa<br />

Um grupo de homens à deriva que reflectem os<br />

infinitos males da dor<br />

Sobreviventes no mar<br />

Líder dos pintores românticos do século XIX,<br />

influenciado pela paleta de <strong>Miguel</strong> <strong>Ângelo</strong> e<br />

Rubens, Géricault destacou-se dos artistas<br />

neoclássicos franceses ao modelar no linho cenas<br />

de acção, com desenhos atrevidos e tonalidades<br />

dramáticas. O poder emotivo da sua obra<br />

alcançou o ponto culminante em A Balsa<br />

da Medusa, uma tela de grandes dimensões e<br />

de expressão esmagadora. O quadro retrata o<br />

naufrágio do navio francês Medusa em 1816,<br />

provocado por uma tempestade da qual só foram<br />

resgatados alguns tripulantes a bordo de uma<br />

balsa improvisada. No quadro, o artista retrata o<br />

momento mais emocionante do episódio, quando<br />

os navegadores desesperados avistam o barco de<br />

resgate, depois de dias à deriva no mar. Rodeados<br />

de cadáveres moribundos, os sobreviventes<br />

abraçam-se na proa da balsa, agitando as suas<br />

roupas no ar para chamar a atenção da fragata que<br />

apareceu no horizonte.<br />

“ Os obstáculos e dificuldades que os homens medíocres repelem,<br />

nutrem os génios; fazem-nos amadurecer e elevam-nos.”<br />

Théodore Géricault<br />

11


12<br />

Uma cena comovente<br />

A existência do pintor, tão intensa como<br />

a sua obra, terminou precocemente aos<br />

33 anos, devido a um acidente equestre.<br />

Fruto da sua complexa personalidade e da<br />

sua apaixonada busca pela justiça, bem<br />

como do seu sentido humanitário, a sua<br />

arte combinou o realismo e o romantismo<br />

com um resultado monumental. O<br />

naufrágio do navio francês, provocado<br />

pela negligência, ignorância e cobardia<br />

dos oficiais, que preferiram salvar as suas<br />

vidas antes que a do resto dos tripulantes<br />

e passageiros, tornou-se uma verdadeira<br />

obsessão para o pintor. Dia após dia seguiu<br />

os acontecimentos através dos jornais e<br />

manteve-se informado até aos mais ínfimos<br />

detalhes. Para reproduzir a tragédia<br />

do Medusa com absoluta veracidade,<br />

interrogou os sobreviventes, construiu na<br />

sua oficina uma cópia da balsa em tamanho<br />

real e inclusivamente examinou cadáveres<br />

na morgue para evitar erros anatómicos.<br />

Com essa sólida documentação, elaborou<br />

uma cena sombria e esmagadora que seria<br />

a sua forma de protesto artístico contra a<br />

crueldade humana.<br />

Entre a esperança e o desalento<br />

A descrição detalhada que o artista faz<br />

do estado dos cadáveres e da agonia dos<br />

sobreviventes, é forçada por uma paleta de<br />

tons escuros e uma composição baseada em<br />

duas pirâmides que se tocam. A pirâmide da<br />

esquerda é formada pela vela ao vento, pelos<br />

moribundos e pelos que perderam toda a<br />

esperança de viver, como o homem que<br />

tem o rosto apoiado sobre uma mão e olha<br />

em sentido contrário à restante tripulação,<br />

enquanto com a outra segura um cadáver. A<br />

pirâmide da direita, coroada por um homem<br />

de pele escura que agita um pano vermelho<br />

ao vento para chamar a atenção da fragata<br />

salvadora, é integrada por todos os que<br />

ainda acreditam na salvação e se balançam<br />

sobre a proa desesperados, ansiosos e,<br />

ao mesmo tempo, aterrorizados com a<br />

possibilidade de que o barco que se avista<br />

no horizonte os perca de vista.


O pintor da loucura<br />

Nos últimos anos da sua vida, especialmente depois de voltar de Inglaterra, o pintor<br />

seguiu uma temática mais introspectiva, trabalhando uma série de litografias, desenhos<br />

e esboços acerca de doenças mentais. Tal como a maioria dos artistas românticos,<br />

estava obcecado com as perturbações da psique, especialmente a neurose e a psicose,<br />

transtornos que em momentos críticos atribuía a si mesmo. A intensidade emocional<br />

e a exacerbada paixão que empreendia nos seus afazeres fizeram-nos duvidar da sua<br />

sensatez e procurar ajuda psiquiátrica. Assim conheceu directamente o angustiante<br />

e obscuro mundo da loucura. Através das suas pinturas, quis redimir a esses homens<br />

e mulheres rejeitados pelos suas famílias, condenados a uma vida de dor e solidão<br />

nos asilos mentais do século XIX. Com máximo respeito, e sem jamais abdicar da<br />

objectividade que caracteriza a sua arte, produziu retratos eloquentes como o intituladose<br />

simplesmente A Louca.<br />

A morte está presente<br />

A luta do homem pela sobrevivência num<br />

meio adverso, um tema recorrente em<br />

Géricault, é possível de ser apreciado em<br />

cada detalhe do quadro. O sujeito que<br />

está no ponto mais alto da proa, agitando<br />

freneticamente a sua simples roupa<br />

representa a esperança da salvação, ainda<br />

que no meio da tormenta e na presença da<br />

morte. A sua energia parece animar o resto<br />

dos náufragos, que estendem as suas mãos<br />

para o horizonte, claro e luminoso que<br />

contrasta com a escuridão das nuvens da<br />

tormenta que ainda paira sobre a balsa. Mais<br />

concentrado na realidade que no ideal, sem<br />

no entanto descurar o poder emotivo da<br />

arte, o quadro transmite inúmeras emoções<br />

vinculadas com a dor, a morte, o medo e<br />

o desamparo, inevitáveis companheiros<br />

da existência humana e elementos<br />

fundamentais na obra do artista.<br />

13


14<br />

Mathis Grünewald<br />

e A Crucificação<br />

Cena bíblica clássica onde o sofrimento<br />

adquire um tom hiper-realista<br />

Entre o humano e o divino<br />

A crucificação, o painel central do retábulo<br />

de Isenheim, denuncia o tormento na<br />

cruz com um realismo sem precedentes. O<br />

corpo retorcido de Jesus Cristo, a expressão<br />

do seu rosto e das suas mãos crispadas,<br />

desproporcionadamente grandes em<br />

relação ao seu corpo, evidenciam um transe<br />

doloroso e violento. O sangue que visível<br />

nas suas costas e o que corre por debaixo<br />

dos seus pés contrasta com o tom mordaz do<br />

seu corpo moribundo. No seu flanco direito,<br />

Maria Madalena levanta as mãos em sinal de<br />

oração, enquanto a Virgem Maria, pálida e<br />

prestes a desfalecer é apoiada pelo Apóstolo<br />

João. À sua esquerda, João Baptista e o<br />

cordeiro de Deus fazem frente ao drama<br />

humano da cena, ressalvando a natureza<br />

divina do crucificado. A sua serenidade<br />

alenta a esperança da salvação da alma e<br />

segue a doutrina da igreja, representada<br />

pelas palavras do Evangelho de São João:<br />

“Ele deve crescer, mas eu devo diminuir”.


Cristo leproso<br />

Ainda que o seu verdadeiro nome fosse<br />

Mathis Gothart Niethart, o artista passou<br />

para a história como Grünewald. Da sua<br />

vida não se sabe muito, excepto que foi<br />

colaborador directo do bispo de Mainz e<br />

pintor da corte do Príncipe Albrecht de<br />

Brandenburgo. A sua especialidade, pela<br />

qual ficou especialmente conhecido nos<br />

círculos da nobreza e da alta burguesia,<br />

foram os retratos e especialmente os<br />

retábulos religiosos. O retábulo de<br />

Isenheim, considerado a sua obra-prima<br />

que demorou cerca de quatro anos a<br />

terminar, foi pintado para ornamentar o<br />

hospital do mosteiro de Santo António,<br />

em Alsácia. O seu propósito era confortar<br />

os doentes de lepra que ocupavam o<br />

estabelecimento, pressagiando uma cura<br />

milagrosa. Dos onze corpos que compõem<br />

o retábulo, A crucificação é o mais cru,<br />

realista e, por vezes, o que mais identifica<br />

os pacientes com Jesus. O Crucificado de<br />

Grünewald não só está a padecer de uma<br />

cruel e prolongada agonia, como também<br />

sofre de lepra: a evidência médica está nas<br />

pústulas verdes que cobrem toda a sua pele.<br />

Demonstração de dor<br />

Ainda que a sua arte tenha nascido em<br />

pleno Renascimento alemão, ao mesmo<br />

tempo que Alberto Durero e Lucas<br />

Cranach, entre a sua obra e a dos seus<br />

contemporâneos há uma diferença<br />

abismal. Alheio à visão antropocêntrica<br />

e idealista do Renascimento, bem<br />

como à sua paleta luminosa e aos seus<br />

rostos plácidos, optou por uma arte<br />

que demonstra dor física e espiritual.<br />

Fervorosamente religioso, Grünewald<br />

viu na arte um meio para evangelizar<br />

e proclamar as verdades da Igreja,<br />

muitos mais do que uma forma de busca<br />

dos segredos ocultos da beleza. A sua<br />

identificação com os estilos da arte<br />

medieval, especialmente o gótico, reflectese<br />

claramente na obra A Crucificação. O<br />

fundo escuro em contraste com as cores<br />

fortes do primeiro plano, assim como o<br />

tamanho exagerado da figura de Jesus<br />

em comparação com as personagens à sua<br />

volta dão um tom angustiante à cena e<br />

sugerem que o mundo é um imenso espaço<br />

de dor e desolação, onde não existe outro<br />

consolo para além da fé.<br />

A sua obra sugere que o mundo<br />

é um imenso espaço de dor e<br />

desolação, onde não existe outro<br />

consolo para além da fé.<br />

15

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