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Paisagens sonoras: quando a escuta recorta o invisível [divagações ...

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ALEGRAR nº08 - dez/2011 - ISSN 18085148<br />

www.alegrar.com.br<br />

<strong>Paisagens</strong> <strong>sonoras</strong>: <strong>quando</strong> a <strong>escuta</strong> <strong>recorta</strong> o <strong>invisível</strong><br />

[<strong>divagações</strong> a propósito de algumas experimentações]<br />

1<br />

Ana Godoy 1<br />

Resumo: Como ultrapassar os tempos psico-físicos da audição? Por que fazê-lo? São essas as<br />

duas questões que vêm mobilizando desde 2003 meu trabalho com paisagens <strong>sonoras</strong> e que<br />

pretendo desdobrar aqui a partir de alguns aspectos de três experimentações, realizadas entre<br />

2003 e 2008, com crianças, jovens e adultos em ambiente escolar. A partir de materiais<br />

diversos, cada uma destas experimentações explorou a ideia de uma <strong>escuta</strong> sem apoio, uma<br />

<strong>escuta</strong> nômade, uma <strong>escuta</strong> da diferença, problematizando a redução dos territórios sonoros ao<br />

estupidificante receber, classificar e interpretar, pondo em jogo a potência de uma <strong>escuta</strong><br />

liberada da capacidade ou competência auditiva, das qualidades de uma fonte sonora e do<br />

unicentramento na cultura.<br />

Abstract: How to overcome the psycho-physical tempos of hearing? Why do it? Those are the<br />

two issues that since 2003 have mobilized my work with sound landscapes and that I intend to<br />

unfold here from three experiments, held between 2003 and 2008, with children, adolescents<br />

and adults in the school environment. Using several materials each of these experiments<br />

explored the idea of hearing without support, nomadic hearing, hearing of difference,<br />

questioning the reduction of sound territories to the stupidifying receipt, classification and<br />

interpretation, bringing to light the potency of a hearing liberated from audio capacity or<br />

competency, of qualities of a hearing source and of uni-centered culture.<br />

1 Ana Godoy é doutora em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo vem desenvolvendo desde 2000 oficinas na<br />

interface entre ciências sociais, ecologia e arte problematizando os modos de subjetivação contemporâneos, bem como<br />

os processos educacionais aí implicados e tendo como perspectiva a contemporaneidade das sociedades de controle.<br />

Atualmente desenvolve seu segundo pós-doutorado na Faculdade de Educação da UNICAMP/Grupo OLHO. É autora<br />

do livro A menor das ecologias. São Paulo: EDUSP, 2008 e colaboradora do blog Carta Potiguar<br />

www.cartapotiguar.com.br


[1] Pedras, nomes e conceitos<br />

ALEGRAR nº08 - dez/2011 - ISSN 18085148<br />

www.alegrar.com.br<br />

2<br />

(...) But the silence remains.<br />

The more I think about it,<br />

the stronger it is.<br />

The piano loses its sound;<br />

the painter no longer paints;<br />

the musician ceases to make music.<br />

They lose their function,<br />

but not their beauty - they become even more beautiful. 2<br />

Heráclito disse certa vez que “o mundo mais belo é como um monte de pedras lançado em<br />

confusão” (2006: 184) 3 . Na expectativa desta beleza, o resumo que apresentei poderia ser bem visto<br />

como esse monte pedras. Há ali conceitos potentes criados por Nietzsche, Deleuze e Guattari e<br />

aqueles criados por John Cage e por Silvio Ferraz, há um termo criado pelo compositor e<br />

ambientalista Murray Schafer, e há também a imagem do trabalho de Chiharu Shiota, há<br />

concepções de ecologia e há abordagens composicionais, há um projeto educacional, um programa<br />

político e há, sobretudo, os modos de existência que eles implicam. As pedras de Heráclito, assim<br />

como os nomes e conceitos aqui lançados, extraem sua beleza de um mesmo começo abissal de<br />

fissuras. Ambos seguem “uma sintaxe de fendas e rupturas” (SMITHSON, 2006: 184) e o princípio<br />

poético que os anima é o da erosão de qualquer discurso didático. Este texto, tal como cada<br />

experimentação realizada, pontos de vista que são, toma-os – pedras, nomes e conceitos - desde<br />

uma certa relação com a Terra, um modo de caminhar sobre a Terra; desde um modo de viver e<br />

pensar, um modo de habitar.<br />

2 Tradução livre: Mas o silêncio permanece./Quanto mais eu penso sobre isso,/tanto mais forte ele é./O piano perde seu<br />

som;/o pintor não pinta;/o músico deixa de fazer música./Eles perdem a sua função,/mas não sua beleza - que se torna<br />

ainda mais bela. Chiharu Shiota. Disponível em: http://www.detached.com.au/exhibition.html Acesso: 19.01.11<br />

3 Heráclito, Fragmento 124 apud SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra [1968]. In:<br />

FERREIRA, G.; COTRIM, C. (Orgs.). Escritos de artistas: anos 60/70. (Trad. Pedro Süssekind et al). Rio de janeiro:<br />

Jorge Zaar, 2006.


Vocês hão de notar que “o mundo mais belo” é aquele dos problemas que inventamos e que<br />

as pedras lançadas não o foram absolutamente por Deus e arrancadas do nada. Assim é que os<br />

conceitos e termos, formulados em função de um problema musical/composicional e filosófico<br />

contemporâneo, se avizinham com os problemas de uma política e de uma educação na<br />

contemporaneidade não pelo que têm em comum e nunca pelo que poderiam fazer uns pelos outros,<br />

mas por uma linha de fissura que os percorre.<br />

[2] Como ultrapassar os tempos psico-físicos da audição? Por que fazê-lo?<br />

Estas duas questões presentes na abertura deste resumo formulam hoje, com clareza, a<br />

inquietação que acompanhou minha pesquisa de doutorado; inquietação cuja culminância se deu lá<br />

pelo meio dela, no ano de 2002. Às vezes é preciso esperar um outro pesquisador (no caso o<br />

Rodrigo[Fonseca e Rodrigues]) encontrar um orientador (no caso o Silvio[Ferraz]) para que certas<br />

formulações possam se dar. Todavia, naquela época em que estava às voltas com os caminhos, e às<br />

vezes obscuros de minha pesquisa, o que ali se esboçava era não só um certo modo de me conduzir<br />

em relação a ecologia, em relação a educação e a pesquisa, mas um modo de me conduzir na vida.<br />

A especificidade dessas questões não deve, portanto, nos enganar; trata-se de questões políticas ou,<br />

ainda, de questões que perfazem certa política; aquela que foge à política da audição ocupada com<br />

determinar e regular a capacidade de reconhecer, quantificar e qualificar “o som emitido por um<br />

ambiente” que está ali ou acolá, em volta de cada um ou holisticamente em volta de todo mundo,<br />

incluindo e excluindo segundo a sorte mais ou menos democrática das políticas liberais de<br />

comunicação.<br />

Uma política da audição é bem aquela “que vai da boca ao ouvido”, como diz Nietzsche, e<br />

que a máquina da cultura movimenta aparelhando a escola e a universidade tendo por fim último o<br />

Estado (2003: 126). Uma política da audição só é possível desde que exista uma orelha, – imensa,<br />

diria Nietzsche -, plantada sobre um indivíduo eminentemente passivo, a quem caberia receber sons<br />

e distribuí-los segundo sistemas classificatórios em que se combinam arranjos culturais,<br />

mnemônicos e orgânicos. Se sua utilidade é inegável da perspectiva da sobrevivência - e sem<br />

dúvida alguma imprescindível para produzir as ficções de que o Estado necessita -, não quererá<br />

dizer que a vida se reduz ao mero exercício didático-burocrático da audição. Exercício em que o<br />

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3


silêncio, o som e o ruído formam uma espécie de santíssima trindade para uma <strong>escuta</strong> devota das<br />

imagens que a inteligência provê.<br />

Esta <strong>escuta</strong> devota é inseparável de uma certa compreensão da cultura. Como sugere<br />

Viveiros de Castro (2002), digamos que, desde o Sermão do Espírito Santo proferido por Padre<br />

Vieira aos gentios destes brasis, a cultura tenha sido tomada como uma paisagem povoada de<br />

estátuas de mármore e não de murta 4 ; de maneira que é preciso um mestre que cerceie o que viceja<br />

as orelhas vindo de toda parte, para que se dê ouvidos à boa nova: a de que um museu clássico –<br />

esse espaço idílico, freqüentado por corpos submetidos à abstração subjacente a sua organização –<br />

deveria ultrapassar o jardim barroco e seus traçados complicados e proliferantes em que a sensação<br />

suplanta a ordem, e a intensidade a eternidade. Vale dizer que esta <strong>escuta</strong> (tanto quanto esta<br />

concepção de cultura) é devota das formas organizadas a priori.<br />

Assim, guardamos aqui neste texto o mesmo apreço pela música e pelos músicos que os<br />

gentios daqueles brasis guardavam, a nos lembrar que a inconstância da alma selvagem (em nada<br />

exclusiva aos selvagens) era e permanece sendo inseparável de uma <strong>escuta</strong> cujos desdobramentos<br />

não eram e não são exclusivamente musicais e não se sujeitavam então, como não se sujeitam<br />

agora, à lei auditiva ou a fé na audição.<br />

[3] Fazer uma ideia simples proliferar...<br />

Estas questões-problema mobilizaram as oficinas experimentais intituladas “<strong>Paisagens</strong><br />

Sonoras”, desenvolvidas com diferentes grupos e sob diferentes regimes entre 2003 e 2008.<br />

Um modo bastante simples, mas muito eficaz de descrever estas oficinas é apresentando-as<br />

sob a forma de uma pergunta: o que aconteceria se John Cage, Edgar Varèse, Iannis Xenakis,<br />

Debussy, Beethoven, Gyorgy Ligeti, Vivaldi, Aphex Twin, Pierre Boulez, Denise Garcia, entre<br />

outros muitos, se encontrassem com Murray Schaffer? Ou ainda: o que aconteceria se as paisagens<br />

4 “(...) A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas depois de feita uma vez, não<br />

é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de<br />

formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela,<br />

para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias um ramo se lhe atravessa os olhos, sai outro que<br />

lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma confusão<br />

verde de murtas. (...)”. Sermão do Espírito Santo apud VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem.<br />

São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 183-184.<br />

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<strong>sonoras</strong> fossem uma questão de <strong>escuta</strong>? E se a <strong>escuta</strong> dissesse respeito à vida, a uma mobilidade<br />

vital e fosse, por isso mesmo, uma questão política? A grande viagem (que de saída poderia parecer<br />

uma viagem na batatinha) era descobrir como passar de uma política da audição (que mais<br />

amplamente poderia ser chamada de política da percepção) que investe numa <strong>escuta</strong> apoiada, para<br />

uma <strong>escuta</strong> sem apoio cuja potência seria, sobretudo, política.<br />

Vejam que não se trata de montar oficinas para ensinar aos meninos e meninas, aos jovens e<br />

adultos, o que é uma paisagem sonora ou o que é música contemporânea ou como fazê-las. Aí me<br />

restaria somente falar desde um conjunto de proposições e cânones na expectativa, como coloca tão<br />

bem Silvio Ferraz, de que “do discurso sobre a música saia alguma música” (2005: 15) o mesmo<br />

valendo para qualquer outra coisa.<br />

Não se propondo a ensinar alguma coisa, a oficina também não se destinava a formar<br />

alguém (um cidadão, ou quem sabe – que terror! – um cidadão compositor), pois tais finalidades são<br />

aquelas da escola (atentem aqui para o sentido amplo do termo) e do Estado, e objetivam tão-<br />

somente fazer do experimentador um trabalhador, seja ele um aluno, um professor, um músico, um<br />

bailarino, um escritor ou um mecânico de automóveis. Estas figuras, estes pequenos segmentos – e<br />

outros tantos que poderíamos enumerar – já são um modo de organizar a percepção e implicam num<br />

esquema perceptivo posto em jogo cotidianamente nas relações, fazendo com que qualquer coisa<br />

funcione segundo um modelo normativo, condicionando a apreensão tanto na dimensão visual,<br />

quanto na dimensão tátil, sonora etc. servindo, desta forma, para prevenir qualquer alteração.<br />

Assim, as experimentações com paisagens <strong>sonoras</strong> nas oficinas eram, antes de qualquer<br />

outra coisa, experimentações políticas que punham em jogo as armadilhas da cultura, cujo valor<br />

geral seria: adorar estátuas de murta desde que preservado o mármore identitário... A oficina, as<br />

peças musicais, os compositores escolhidos, os gravadores, a interface de edição de sons eram<br />

somente pequenos dispositivos para desarmar armadilhas, no entanto sua potência disruptiva, sua<br />

potência como arma não estava dada de antemão.<br />

Exaustivo e impossível aqui descrever o processo de cada oficina, mas, preservado o início<br />

deste texto, cada uma começou como um monte de pedras lançadas em confusão e que bem<br />

poderiam permanecer assim caso os participantes se contentassem somente com classificá-las... Era<br />

preciso, para que a experimentação começasse, que aquelas pedras fizessem problema e fazer<br />

problema é bem mais do que atestar a efetividade dos sistemas classificatórios, mas perceber que<br />

eles são subsidiários de maquinações que os precedem, sempre em relação com o não classificável,<br />

com aquilo que não cessa de fugir à classificação.<br />

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Paisagem I<br />

Para todo o grupo de jovens do ensino médio que participou desta oficina a questão era a<br />

impossibilidade de se movimentarem na grade escolar, invocada nas recursivas chamadas por<br />

atenção e nos igualmente recursivos deméritos da distração; a experimentação começou com o<br />

esforço honroso de buscar uma definição de silêncio, som e ruído. Assim, o primeiro (o silêncio) foi<br />

lançado às praias paradisíacas da natureza; o segundo (o som) e o terceiro (o ruído), por sua vez,<br />

restaram participantes do jogo do inferno civilizacional cujo movimento a sala de aula retomava.<br />

Desencadeou-se, a partir daí, um exaustivo processo de identificação e classificação de sons<br />

segundo fontes <strong>sonoras</strong> e pontos de emissão, bem como a devida relativização do ruído numa<br />

espécie de “cada qual com seu cada qual” (cada cultura com seu ruído e cada ruído com sua<br />

cultura). Os clichês que a ideia de separação entre cultura e natureza carrega permanecem sendo os<br />

mais difíceis de “abrir” ou “raspar”, porque a ideia de união ou totalidade cultura/natureza não é um<br />

modo de enfrentá-los, mas um modo de assegurar sua permanência já que todo discurso sobre o<br />

Todo ou sobre a Unidade supõem, de saída, que as partes lhes são destinadas ou derivadas...<br />

Paisagem II<br />

Fui chamada pela coordenação do Ensino Fundamental II a pedido da professora de<br />

geografia. Ela queria que eu desenvolvesse – em mais ou menos cinco horas distribuídas em oito<br />

encontros de cinquenta minutos – um trabalho com <strong>Paisagens</strong> Sonoras junto a três turmas da antiga<br />

sétima série. A ideia dela era experimentar com os alunos “um outro modo de „ler‟ a paisagem<br />

urbana”. Sem aqui me prender às venturas e desventuras da paisagem total identificada ao meio<br />

inerte e vivo, e ao meio cultural, o que me chamou a atenção era um certo desvio documental: a<br />

paisagem como documento sócio-cultural. A paisagem não só precisava ser vista, mas agora se<br />

exigia uma visão habilitada que inclui a leitura convencional e a decodificação visual das relações<br />

das formas entre si e da carga de informações culturais potencialmente envolvidas. Esse processo de<br />

integração entre visão e leitura punha a mostra uma sede de narrativa, e supunha uma paisagem<br />

tagarela, cabendo a nós compreender e reconhecer os sinais sonoros como caracteres mais ou menos<br />

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ordenados. A dificuldade maior aqui era desfazer a articulação entre capacidade auditiva e<br />

competência lingüística que, na esfera da decodificação visual, se opera com um ouvido que lê e<br />

com olhos que ouvem, é somente em relação aquilo que já foi dito e escrito, isto é, aquilo que<br />

perfaz a moldura cultural.<br />

Paisagem III<br />

Era um programa de extensão da PUC no qual se trabalhava a formação de professores,<br />

através de um projeto voltado para jovens e adultos que desejavam ingressar em universidades.<br />

Tínhamos, eu e a bailarina e performer Joana Ferraz, sete horas para, junto com o grupo de vinte<br />

participantes (professores e alunos 5 ), por em movimento uma experimentação com paisagens<br />

<strong>sonoras</strong> usando o romance de Clarice Lispector, A hora da estrela (1982). Começamos com os doze<br />

títulos 6 dados ao livro pela autora, trabalhando a partir daquilo que Clarice Lispector designara<br />

como um sentido secreto do mundo que ultrapassa o sentido das palavras e das frases, desviando-<br />

nos, desta maneira, de tudo quanto “é definível” para vermos, como diz ela, “estritamente no<br />

momento em que vemos – e não através da memória de ter visto num instante passado” (1982: 96-<br />

97). Abria-se aqui uma passagem, um tipo de desvio em relação ao desvio documental, uma<br />

distância entre ler e ver: sim, ler, mas, sobretudo ver aquilo que as palavras arrastam, que está entre<br />

elas e que não coincide com elas. Tentava-se, com uma certa elegância, declinar da ideia de que não<br />

podemos descrever uma paisagem que nunca tenhamos visto, e ainda de que a socialidade apoia-se<br />

exclusivamente na herança cultural e que, portanto só existe contida numa moldura.<br />

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***<br />

Retomando uma colocação anterior é importante ressaltar que não devemos desprezar a<br />

potência do museu clássico, mas como disse Paul Valéry, ainda que muitos sejam admiráveis,<br />

poucos são deliciosos... sugestivamente, e os Tupinambas já o sabiam, as coisas talvez não queiram<br />

ser simplesmente vistas, que dirá lidas como contrapartida de uma escrita normativa, ou meramente<br />

ouvidas, mas sim devoradas (!). Daí, quem sabe, a tagarelice da paisagem pudesse ser tomada como<br />

5 Os professores eram alunos do curso de licenciatura da PUCSP que atuavam neste programa de extensão na categoria<br />

estágio docente; os alunos eram jovens e adultos que, através desse programa, se preparavam para prestar vestibular.<br />

6 Seguem-se os títulos: A culpa é minha ou Ela que se arranje ou O direito ao grito ou Quanto ao futuro ou Lamento de<br />

um blue ou Ela não sabe gritar ou Uma sensação de perda ou Assovio no vento escuro ou Eu não posso fazer nada ou<br />

Registro dos fatos antecedentes ou História lacrimogênica de cordel ou Saída discreta pela porta dos fundos.<br />

7


aquela arenga que precedia e presidia o banquete canibal, inseparável “do sentimento da vida<br />

voluptuosa e fecunda”, como diria Humboldt, que atravessa as coisas. Fora disso, em qualquer das<br />

paisagens, temos de nos haver com a transferência de informação ordenada a alguém que lê, que vê<br />

e que ouve; pois o colonizador, o civilizador por excelência, é como um satélite de sensoriamento<br />

remoto: ele reúne informações e controla seu mundo cartográfico…<br />

Paisagem I: 7 gravadores analógicos, 7 fitas de 60’ e 54 horas de experimentações<br />

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***<br />

Havia como que um luta a cada encontro. A pergunta pelo silêncio esbarrava em todas as<br />

obviedades do som e do ruído que facilmente podiam ser absorvidas pelo sistema classificatório<br />

proposto por Schafer, mas não resistiam às experimentações dos compositores que nos<br />

acompanhavam desde o início e cujas peças ocupavam cada vez mais nossos encontros. Depois de<br />

mapear, sonoramente a escola alguns meninos colocam claramente o paralelo com o mapeamento<br />

da sala de aula: saber onde alguma coisa está, como ela funciona, como ela se relaciona com o que<br />

está próximo dela e como obter alguma coisa que se quer. Para isso serve o mapeamento. A<br />

exaustividade do jogo classificatório fazia-se acompanhar de experiências de saturação (<strong>escuta</strong>r<br />

todas as fitas ao mesmo tempo), de reiteração (um grito era selecionado numa fita e repetido<br />

“tortamente” por outros gritos presentes nas outras fitas) e assim por diante... Fugir do mapa exigia<br />

que se criasse um “por onde” e isso era bem mais do que permanecer nele.<br />

GODOY, Ana. Paisagem Sonora 1: Selva Alienígena. Alunos do Ensino Médio, 2003 (.mp3)<br />

GODOY, Ana. Paisagem Sonora 2: Riscos. Alunos do Ensino Médio, 2003 (.mp3)<br />

Paisagem II: 1 gravador analógico, 26 i-pods, 5 horas de experimentação<br />

Lá fomos nós caminhar pela rua 7 e mais uma vez nos reunimos em volta dos equipamentos.<br />

A conversa corria tranqüila, aquela: identificar sons, pontos de emissão... De repente, notaram que<br />

7 A experiência de caminhar pela rua foi realizada por todos os grupos com os quais trabalhei.<br />

8


havia uma coisa estranha: a gravação feita com o equipamento analógico tinha um ruído constante,<br />

ausente naquela feita com equipamento digital (i-pod). Numa conversa enlouquecida estabeleceram<br />

que ruído era „tudo aquilo que a gente não sabe o que é‟, que „tira a clareza atrapalhando a<br />

identificação‟. No jogo das preferências a gravação do i-pod (digital) foi escolhida por alguns,<br />

porque era „limpa‟, já outro grupo dizia que „ela é igual o tempo inteiro‟. Restava descobrir que<br />

ruído era aquele, mas também que canto de passarinho era aquele que ninguém tinha ouvido ao<br />

longo do caminho. Vitor, nos seus 13 anos, foi tachativo: „os equipamentos não gravam o que a<br />

gente ouve, a gente é que ouve o que o equipamento grava‟. O ruído, bem..., o ruído insistiu como<br />

uma charada que um dos meninos decifrou ao final do dia: era o mecanismo do gravador que soava<br />

junto com tudo o mais. É desse grupo a ideia de que a poluição sonora hoje não é feita só de ruído,<br />

mas de um monte de sons iguais...<br />

GODOY, Ana. Paisagem Sonora 3. Alunos de 7º série, 2006 (.mp3)<br />

GODOY, Ana. Paisagem Sonora 4. Alunos de 7º série, 2006 (.mp3)<br />

Paisagem III: nenhum equipamento de gravação, 7 horas de experimentação<br />

A proposta era caminhar pela rua como Macabéa. (A) Como assim? (B) Caminhar como<br />

nordestina? Como pobre? Como excluída? (C) Não, não é assim que ela aparece! – interrompeu um<br />

menino. (D) Mas ninguém vê ela... . (C) Então… é assim que ela desaparece. Ela é pobre, feia,<br />

excluída e daí? A autora não ia ter escrito um livro esquisito desse, desse jeito estranho se fosse pra<br />

dizer isso. (E) Uma moça… . (F) Fala, cutucou a menina ao lado, fala alto! (E) É uma moça, uma<br />

moça que vivia e respirava... e achava a girafa elegante. Caminhar como Macabéa é assim. É desse<br />

grupo a ideia de que Macabéa é a variação de uma sonoridade, de uma tonalidade. Os títulos,<br />

aqueles doze enumerados, dizem como Macabéa soa, e soar é o que acontece <strong>quando</strong> cada paisagem<br />

é percorrida, é desdobrada pela <strong>escuta</strong>. Um dos meninos lembrou que <strong>quando</strong> Macabéa morreu os<br />

sinos badalavam, mas não saia som. Por que os sinos não soavam? – perguntei. Ele respondeu<br />

dizendo: porque a autora diz que estória da Macabéa é antes então, se ela é antes, é silêncio... como<br />

a gente pensou, cheio. É como cada um faz soar, colocou outro, ela diz lá no fim do livro: a<br />

grandeza de cada um.<br />

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***<br />

9


De todas as oficinas-paisagem aqui referidas, trouxe a vocês somente um começo dentre os<br />

muitos possíveis. Que possamos nos abrir aos começos, que possamos inventá-los quantos, e<br />

quantas vezes for preciso é o que interessa; e que saibamos nos servir de tudo quanto nos afronta,<br />

nos limita e nos impede de fazê-lo. Por essa razão faço abertamente uma aposta em que o<br />

nomadismo da <strong>escuta</strong>, sobre o qual Ferraz tanto insiste, não é indiferente ao afeto político que<br />

Deleuze torna possível. Começar aqui é liberar o sonoro do domínio do audível, liberar a <strong>escuta</strong> do<br />

domínio exclusivo do sonoro e do musical. Talvez este seja o tipo de ato que, não só testemunha a<br />

mobilidade vital que atravessa todas as coisas – cuja atividade eminentemente criadora a <strong>escuta</strong><br />

prolonga –, mas aquele que desfaz em nós a ideia de que o mundo informa, desfaz em nós<br />

precisamente aquilo em nome do que vivemos sob controle. Talvez para essa <strong>escuta</strong>, como para o<br />

pensamento, o que irá contar “não é mais o enunciado do vento, é o vento” (BATAILLE, 1992: 21).<br />

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***<br />

Gostaria, para encerrar minha fala, de ler pra vocês uma transcrição que fiz de uma conversa<br />

que se deu entre alguns alunos que participaram da oficina na qual trabalhamos com as paisagens<br />

<strong>sonoras</strong>. Ela é apenas uma de muitas a nos reenviar para o título que decidi dar a este texto. Uma a<br />

nos mostrar como se percorre uma paisagem e, nesse percurso, como a <strong>escuta</strong> se torna canibal e o<br />

canibal um artista, como um artista se torna um açougueiro para que o açougueiro se torne um<br />

compositor…<br />

Uma homenagem a Pierre Boulez: o açougueiro<br />

Pierre Boulez Répons (1981-84) (.mp3)<br />

Enquanto a gente <strong>escuta</strong>va aquela música (a música era “Répons” de Pierre Boulez)..., senti<br />

de repente o cheiro da rua onde cresci. ... a rua era de terra... no final do dia todo mundo molhava a<br />

frente das casas... e vinha aquele cheiro.... e depois já era só aquele cheiro de terra molhada no fim<br />

do dia... daí tudo ficava uma mistura de amarelo e marrom e laranja... é isso pra mim, essa é a<br />

sensação... o amarelo e o marrom e o laranja molhados. (A) isso que ele falou, é uma paisagem não<br />

é?... mas não foi o compositor quem fez, mas tinha uma paisagem lá também, dele, não tinha?...<br />

quer dizer, aquele francês, era um francês, né? tinha aquela força ... uma música é uma paisagem ou<br />

10


é ao contrário, tipo a paisagem até pode ser uma música...? (B) acho mais isso, mas também, não<br />

sei... pode ser as duas coisas, mas... se a gente anda na cidade, a cidade..., uma paisagem, prédios,<br />

casas, as pessoas..., as pessoas não é musica mas até pode ser se... só um lugar é uma paisagem? (C)<br />

não. se uma música é uma paisagem, qualquer coisa é uma paisagem. mas é uma paisagem ou tem<br />

uma paisagem nela? (A) é diferente... dizer que é uma paisagem e que tem uma paisagem..., porque<br />

ele ali sentiu o cheiro das cores, aquela história de marron, amarelo molhado e eu não senti não...,<br />

acho... quer dizer, uma música tem mais de uma paisagem ou <strong>quando</strong> escuto..., porque ela vai<br />

aparecendo, né? é como um caminho e aí outras pessoas fazem outro caminho e ele, o caminho dele<br />

tem a terra molhada e coisa e tal e naquela música, acho que foi naquela, sei lá,... meu caminho era<br />

só esquisito e a sensação que eu tinha era, não sei dizer..., eu só tava lá, quer dizer... se a gente tocar<br />

o cd de novo o caminho não vai tá lá… a gente tem que fazer... (Eu) com o que? (A) sei lá..,<br />

<strong>escuta</strong>ndo, do jeito que a gente abre caminho com um facão, porque a coisa não é fácil, hein!? (B)<br />

com você tudo é mato ou é açougue. (A) é disso que eu sei e dá no mesmo „ce abrir caminho no<br />

mato, na carne... a coisa toda é essa, vai abrindo, tirando o que tá na frente, o que ta nos lados, vai<br />

cortando e coisa e tal. (Eu) como assim? (C) cortar a música? (A) ah meu…!, deu de explicar, não é<br />

a música mano, como no açougue não é a carne, é antes. o que vem primeiro, a gente balança a faca<br />

assim (e fez uma série de movimentos com a mão no ar) e a coisa toda acontece e só depois a faca<br />

na carne. pergunta pro francês... nossa..., gostei daquele francês...! o cara é bom de corte: um<br />

açougueiro.<br />

Bibliografia:<br />

BATAILLE, G.[1943]. A experiência interior. (Trad. Celso L. Coutinho; Magali Montagné;<br />

Antonio Ceschin). São Paulo: Editora Ática, 1992.<br />

COTRIM, C. (Orgs.). Escritos de artistas: anos 60/70. (Trad. Pedro Süssekind et al). Rio de<br />

janeiro: Jorge Zaar, 2006.<br />

FERRAZ, S. O livro das sonoridades [notas dispersas sobre composição]. Rio de Janeiro:<br />

FAPESP/4 Letras, 2005.<br />

LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O Livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Nova<br />

Fronteira, 1982.<br />

SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra [1968]. In: FERREIRA, G.;<br />

NIETZSCHE, F. “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”. In: ____. Escritos sobre<br />

educação. (Trad. Nóeli C. de Melo Sobrinho). Rio de Janeiro/São Paulo: PUC-RIO/Loyola,<br />

2003.<br />

ALEGRAR nº08 - dez/2011 - ISSN 18085148<br />

www.alegrar.com.br<br />

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