O andar na corda bamba.
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O <strong>andar</strong> <strong>na</strong> <strong>corda</strong> <strong>bamba</strong>.<br />
Fabiano Ramos Torres. 1<br />
“O palhaço não se conforma com a realidade como<br />
ela é. Ele fala coisas que estão <strong>na</strong>s entrelinhas, que as<br />
pessoas pensam e não têm coragem de dizer, às vezes<br />
nem percebem que estão pensando. O que me fasci<strong>na</strong><br />
no palhaço é esse jogo de cintura”,<br />
Ângelo Brandini (o Dr. Zorinho).<br />
A senda dos educadores errantes – o estar em vários lugares sem ter moradia fixa. O<br />
nomadismo incomoda os intentos de uma educação sedentária, estag<strong>na</strong>da <strong>na</strong> atualidade de<br />
cinqüenta anos atrás.<br />
O circo – onde se busca a segurança do enraizamento e do território, o circo espalha seus<br />
rizomas. Desterritorialização.<br />
Todo aquele que erra faz temer e tremer, traz junto a si a sensação explosiva, o<br />
sentimento ao mesmo tempo alegre e trágico de não se ter onde morar: “minha casa não é<br />
minha, nem é meu este lugar.” Os professores errantes – mas também os filósofos, os<br />
médicos, os engenheiros, os flanelinhas, os feirantes, os arquitetos, os economistas, os<br />
psicólogos, os caixas de banco, – enfim, todo aquele que faz rizoma é capaz de estender suas<br />
raízes além da ilusão de uma pátria, do solo como terra-mãe, ele sabe que a terra que<br />
pretendemos como moradia fixa, a ela nos prendemos como ao solo desgastado de uma<br />
educação sedentária, ele sabe que ali só pode haver estag<strong>na</strong>ção, a terra se tor<strong>na</strong> pobre, perde<br />
seus nutrientes, a terra capturada pelos estratos burocráticos de uma vida que perdeu toda a<br />
graça, toda a leveza dos bandos migratórios...<br />
1 Professor de Filosofia no Ensino Médio. Mestrando em Filosofia e Educação pela USP vem desenvolvendo<br />
um trabalho que busca articular arte e educação tendo realizado diversas performances, instalações e ofici<strong>na</strong>is<br />
envolvendo alunos, professores e comunidade.<br />
e-mail: framostorres@uol.com.br<br />
ALEGRAR nº05 - 2008 - ISSN 18085148<br />
www.alegrar.com.br<br />
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O circo é do mundo. A quem nós educamos? Ao menino, mas também ao velho. A moça<br />
em ple<strong>na</strong> idade, as raparigas em flor, envergonhadas dos coloridos que se abatem sobre a vida<br />
cinzenta. A criança atrás das grades. A criança atrás do portão. A criança atrás da carteira. A<br />
criança <strong>na</strong> porta da escola, em dia de greve, a criança com a cara <strong>na</strong> porta. O circo é de quem?<br />
É o suspiro dos desalojados, dos desabrigados, dos infames, dos pulhas, dos biltres, dos<br />
ca<strong>na</strong>lhas. Os palhaços deveriam ser compreendidos como um ensaio para o Além-homem de<br />
Nietzsche. Mas também como bichos, se fundem ao macaco, ele é macaco, chimpanzé. O<br />
domador submete os animais do circo, forçam que se tornem gente, que façam como a gente.<br />
O palhaço, pelo contrário, não obriga aos bichos a falarem língua de gente: é ele que devémmacaco.<br />
Devém-Urso. Cão. Foca. Tigre. Ou, simplesmente, burro. A sabedoria do palhaço<br />
em relação ao domador está em que o palhaço faz um cão pensar que os homens são como<br />
cães. O palhaço jamais imita um animal. Sob o signo do palhaço, as metamorfoses acometem<br />
a cada dia mais jovens: a blata miserabilis foi a primeira, com suas per<strong>na</strong>s asquerosas, toda<br />
cheia de pelo-grudagem, aquela coisa sansaria<strong>na</strong> jogada sobre uma cama. Abominável Gregor<br />
Samsa.<br />
Licanos e Lupércios também foram vistos sobre a cidade, <strong>na</strong>s periferias da cidade,<br />
sempre que a lua surgisse, eles se encontram <strong>na</strong>s lajes e, com violões desafi<strong>na</strong>dos, choram<br />
suas canções lupi<strong>na</strong>s.<br />
Ou como a pulex saltitans: praga dos inferno! Praga interminável. Os homens passarão<br />
mas a pulex não passará, ela não pode ser destruída, a pulga é a diferença, a pulga é a<br />
resistência. Estão em todos os lugares, preferem as frestas e o quente dos tapetes coloridos,<br />
indetermináveis, escondidas que estão no meio daquela raça de bicho que se sente sobera<strong>na</strong>.<br />
Pulga, acrobata, professor e palhaço.<br />
Os palhaços são como máqui<strong>na</strong>s. Máqui<strong>na</strong>s de riso, máqui<strong>na</strong>s de fracasso, máqui<strong>na</strong>s de<br />
errância, máqui<strong>na</strong>s de incompreensão, falta de senso, inocência, começar de novo, porque<br />
sim, porque não, cala boca já morreu, máqui<strong>na</strong> que chora, máqui<strong>na</strong> de flor, cujas lágrimas<br />
fabricadas, nos fazem ver que não existem fronteiras: lá onde existe a lágrima que chora, nós<br />
descobrimos o riso. Máqui<strong>na</strong> sobre a máqui<strong>na</strong>-animal do cavalo: a queda que certamente seria<br />
fatal para o especialista é o ofício do palhaço. O sentimento trágico.<br />
Os palhaços são máqui<strong>na</strong>s que voam: no trapézio, além de fazer aquilo que o trapezista<br />
faz, o palhaço faz mais: brinca com a seriedade da coisa. Toda a solenidade do trapezista<br />
serve para esconder a tensão por trás dos gestos previamente calculados. O palhaço é duas<br />
vezes trapezista porque voa sobre o vôo. O gesto do palhaço no trapézio é a verdadeira arte do<br />
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trapézio: diferentemente do trapezista, o palhaço deve inventar estripulias ali onde elas são<br />
por demais perigosas, todo o vigor do palhaço reside no caráter arriscado de sua empreitada<br />
imprevisível e incalculável. Pode parecer paradoxal, arriscar <strong>na</strong> <strong>corda</strong> <strong>bamba</strong>: para poder<br />
brincar <strong>na</strong> <strong>corda</strong> é preciso antes saber as regras de toda a retidão, as regras da destreza,<br />
daquilo sobre o que não se pode brincar.<br />
O palhaço: sobre aquilo que não se pode <strong>andar</strong> deve-se dançar.<br />
Uma revolta contra o corpo. O <strong>na</strong>riz do palhaço que se deforma. Os sapatos que se<br />
convertem em máqui<strong>na</strong> e que se convertem em pés: ninguém imagi<strong>na</strong> que dentro exista um pé<br />
humano. As roupas folgadas, as roupas apertadas, roupas que não combi<strong>na</strong>m, roupas que não<br />
são roupas. Quase sempre, acontece de o corpo - ou partes do corpo – se revoltar contra o<br />
homem ao que, então, estas partes insurretas fogem – ou, antes, mudam o sentido do corpo,<br />
daquilo que deveria ser, daquilo que acreditamos já pronto. Pequenos pedaços e, no entanto,<br />
com a força de cem <strong>na</strong>rizes! Uma revolta contra o corpo para o qual nos obrigaram. Então a<br />
revolta, a insurreição de um pequeno <strong>na</strong>riz vermelho percorre todo o corpo, abrindo caminhos<br />
no meio, rasgando o conforto de um dentro e fora – a maquiagem de todas as cores oferece o<br />
horror do avesso, uma carne por de trás da pele, uma carne por dentro. Quando enfim,<br />
parecem ter encontrado a terra prometida no corpo que não é mais, então elas lançam suas<br />
fundações. Se instalam, mas sua instalação felizmente nos causa insuportáveis pruridos que<br />
nos obrigam a trocar incessantemente de lugar as peças de nossa fantasia: e <strong>na</strong>s escolas as<br />
crianças aprendem a ouvir: para quieto menino!<br />
Mas nós somos professores errantes, professores-palhaços: se alguém tenta nos privar de<br />
nossas porções desgarradas, somos obrigados a defender o que é nosso: latimos, mordemos,<br />
soltamos pum...<br />
Por isso o palhaço não dá trégua. Ele zomba da mentira. “Não concede qualquer trégua ao<br />
humanismo, ao antropocentrismo. O corpo do Homem: mutável, intensificável, desmontávelmontável,<br />
desmembrável-remembrável.” ( Sandra Corazza e Tomaz Tadeu. Manifesto por um<br />
pensamento da Diferença em Educação. )<br />
O palhaço sem qualidades, o palhaço sem caráter. Professor Macu<strong>na</strong>íma.<br />
E a chegada dos professores errantes? Ato, difícil de ser contida, assim como a alegre e<br />
prazerosa transformação da cidade.<br />
Ameaça de desterritorialização. Os professores errantes são perigosos porque domi<strong>na</strong>m a<br />
arma do riso, a arma da pulga, a estratégia do carrapato. Eles são perigosos, pois a alegria<br />
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assim como o prazer e a tragédia são difíceis de ser contidos, por isso os proíbem <strong>na</strong>s escolas.<br />
Nós não temos mais escolas: somos ciganos; o céu é nosso teto, o chão é nossa cama.<br />
O prazer e a alegria são perigosos para uma escola defensora de uma moral austera,<br />
mantenedora de uma sociedade grotesca onde a feiúra de suas injustiças é o câncer de nossos<br />
brotos ( já <strong>na</strong>scem doentes ) – Jeune Fille tem que ter direito à saúde do riso.<br />
Os professores errantes são hospitaleiros, justamente porque perderam o direito ao chão:<br />
“Para ser hospitaleiro, deve-se partir de uma existência de uma morada assegurada ou seria<br />
tão somente a partir do deslocamento daquele desprovido de abrigo, de morada que pode-se<br />
abrir a autenticidade da hospitalidade? Talvez só aquele que sofre da experiência da privação<br />
de uma casa pode oferecer hospitalidade.” ( Derrida, L’hospitalité.)<br />
São hospitaleiros porque concebem o aluno não como um estrangeiro que devesse se<br />
submeter à norma da casa, mas, justamente porque ele, o professor-palhaço não tem casa, ele<br />
não pode querer submeter ninguém à norma. Pelo contrário, todos os lugares são lugares de<br />
acontecimento e encontro. Privados de uma casa, eles podem acolher a qualquer hora, em<br />
qualquer lugar. Justamente porque não têm moradia fixa, eles podem se abrir à experiência do<br />
outro, <strong>na</strong> aceitação da diferença, podem aprender com o desconhecido. O Palhaço está sempre<br />
a inventar uma língua: próxima do grunhido, balbucia como criança, gagueja como bobo. É de<br />
sua língua, de sua veste, de todo o seu ser, de todo o seu lugar, de seu corpo-casa, de seu<br />
corpo nômade que as pessoas riem: “Deve-se dar ao outro a permissão de fazer a revolução<br />
em nossa casa.” ( Derrida.) O palhaço é a revolução.<br />
O palhaço sempre riu da seriedade dos domadores, porque sempre soube que eles tinham<br />
a intenção de melhorar a animalidade ( o palhaço, não obstante, sabe que é o contrário: é o seu<br />
devir-bicho que talvez melhore a humanidade daquilo de que ela mais padece, a saber, de si<br />
mesma.) “ Denomi<strong>na</strong>r o amansamento de um animal sua ‘melhoria’ é, aos nossos ouvidos,<br />
quase uma piada.” Nietzsche era um bufão e faz questão de nos lembrar da inscrição à entrada<br />
de sua casa:<br />
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“ Moro em minha própria casa.<br />
Nada imitei de ninguém.<br />
E ainda ri de todo mestre<br />
Que não riu de si também.”<br />
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Que se tenha em conta, contudo, o seguinte: sabemos da visão trágica do palhaço. E ele<br />
mais do que ninguém sabe que os domadores – a despeito de todo o respeito que causam no<br />
grande público do circo – os domadores prestam um grande desfavor à bestas sob seu jugo:<br />
“ Ela é enfraquecida, tor<strong>na</strong>da menos danosa, tor<strong>na</strong>-se, pelo sentimento depressivo de medo,<br />
pelas feridas, pela fome, uma besta doentia.” ( Nietzsche. Crepúsculo do ídolos. )<br />
Quem é este homem centrado que se julga no direito de amansar a besta? Ele próprio uma<br />
piada de mal gosto que o palhaço há de desnudar. “O rei está nu!”.<br />
Contra “a caricatura de homem, como um aborto: ...ele já estava <strong>na</strong> jaula, haviam-no<br />
trancado entre puros conceitos apavorantes ( e por isso esqueceu a vida!) ...Ali jazia ele,<br />
doente, enfezado, malévolo contra si mesmo: cheio de ódio contra os impulsos da vida, cheio<br />
de suspeita contra tudo o que era ainda forte e feliz.” ( Nietzsche. O crepúsculo dos Ídolos”)<br />
A questão da palhaçada incide sobre o corpo: pois para os domadores, “no combate com<br />
a besta o tor<strong>na</strong>r-doente pode ser o único remédio pra enfraquecê-la.” ( Nietzsche.<br />
Idem)<br />
Isso a escola entendeu, sob o pretexto de ter “melhorado” a besta. Por isso que ser<br />
palhaço é uma insurreição no corpo. A favor da besta que – porque será!? – não aprende. O<br />
palhaço é bobo, devém-burro e é aqui que ele subverte, enlouquece ao desafiar as feras que<br />
em vão tentam devorá-lo. Trickster, demônio, riabo, diacho. Exu.<br />
O palhaço sou eu. O palhaço como sátira do próprio circo. O professor errante como<br />
sátira da própria instituição escolar sedentária. O palhaço, o insolente. Zombaria das<br />
instituições dentro das instituições. Como uma forma de fazer pensar e pensar com, junto a -<br />
e ao lado de - todo aquele disposto à criação/invenção, oráculo que faz fazer visagens. Nós, os<br />
integrantes deste circo somos os palhaços e tudo o que fazemos não é senão tolerar o sentido<br />
pejorativo que, jocosamente, insistem em nos chamar. Temos um duplo desafio: somos<br />
professores e palhaços!<br />
E por tudo isso nossos corpos são máqui<strong>na</strong>s de guerra.<br />
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