QUE CORPO É ESTE QUE DANÇA A IMAGEM DO ... - Revista Alegrar
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<strong>QUE</strong> <strong>CORPO</strong> <strong>É</strong> <strong>ESTE</strong> <strong>QUE</strong> <strong>DANÇA</strong> A <strong>IMAGEM</strong> <strong>DO</strong> PENSAMENTO?<br />
ALEGRAR nº07 - set/2011 - ISSN 18085148<br />
www.alegrar.com.br<br />
1<br />
Letícia Testa 1<br />
RESUMO: Este texto pretende dar continuidade às questões apontadas por Alain Badiou, em<br />
seu artigo A dança como metáfora do pensamento, buscando expor a partir de tais<br />
apontamentos as implicações de base essencialista da qual parte, ou sustenta-se a reflexão do<br />
autor. Deste modo, tentaremos indicar que os desdobramentos apontados por Badiou a<br />
respeito da dança, e, por conseqüência, do corpo que a ela se vincula, enquanto imagem do<br />
pensamento, não se sustentam a partir da tese essencialista.<br />
PALAVRAS-CHAVE: dança, pensamento, corpo, contemporaneidade.<br />
WHAT BODY IS THIS THAT DANCES THE IMAGE OF THOUGHT?<br />
ABSTRACT: This text intends to give continuity to questions noted by Alain Badiou in his<br />
article Dance as a Metaphor for Thought, trying to expose from his notes the implications of<br />
the essencialist basis in which the author‟s reflexion is started or found. Thus, this paper tries<br />
to indicate that the unfolding noted by Badiou concerning dance, and consequently<br />
concerning the body in which dance is bound while image of thought, is not sustained from<br />
the essencialist thesis.<br />
KEY-WORDS: dance, thought, body, contemporariness<br />
A despeito de interessantes e acertados, ou, até mesmo, reconhecidamente vivíveis<br />
“princípios” da dança expostos por Alain Badiou, a partir de remissões ao pensamento<br />
nietzscheano e também às reflexões mallarmaicas sobre a dança, o autor peca em unificá-los<br />
em uma universalidade capaz de dar conta de um suposto ser da dança. Por outras palavras, a<br />
indicação dos diversos aspectos de uma dimensão dançante pretende, de certa maneira, por<br />
implicação, a totalidade subsidiária de uma ontologia unificada (sendo, logicamente,<br />
excludente ou não implicativa do nosso modo segmentarizado e acentrado de ser (DELEUZE,<br />
1996)). Contudo, a questão ou a dificuldade que se nos apresenta diante de tal posição é a de<br />
como é possível, lançando mão das categorias nietzscheanas que resultam nas filosofias pós-<br />
moderna e, conseqüentemente, pós-estruturalista, requerer ainda uma ontologia que não seja<br />
fragmentada em multiplicidades a cada vez e sempre mais expansíveis em suas mutáveis<br />
conexões e associações? Ou melhor, como, depois de Nietzsche, tomar a dança e,<br />
1 Mestre em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Contato: lettesta@gmail.com
conseguintemente, suas relações intrínsecas de corpo e de subjetividade, por uma ontologia<br />
em detrimento de narrativas genealógicas? À vista disso, como não fazer referência a um<br />
sujeito não essencializado e não estabilizado em seu centro, pela reivindicação de uma<br />
primazia do ser? A dança desse sujeito pode ceder a sua imagem ao pensamento, tal como o<br />
compreendia Nietzsche?<br />
O PERCURSO DE BADIOU A RESPEITO DA <strong>DANÇA</strong> E SEUS ASPECTOS<br />
IRRECONCILIÁVEIS<br />
Badiou traça um percurso que reúne uma totalidade de aspectos que caracterizariam a<br />
essência da dança, justificando-a, assim, como imagem para o pensamento, segundo a<br />
compreensão nietzscheana. “Na realidade, o que fundamenta que a dança metaforize o<br />
pensamento é a convicção de Nietzsche de que o pensamento é uma intensificação”<br />
(BADIOU, 2002 p. 81). Porém, uma ontologia da dança ou um privilégio de quaisquer<br />
propriedades que se queiram designativas e doadoras de um ser são irreconciliáveis com o<br />
horizonte por meio do qual Nietzsche afirma o pensamento. Pois, adversamente a isso,<br />
Nietzsche inaugura:<br />
(...) uma perspectiva antiepistemológica ou pós-epistemológica; um anti-essencialismo; um<br />
anti-realismo em termos de significado e de referência; um antifundacionalismo; uma suspeita<br />
relativamente a argumentos e pontos de vista transcendentais; a rejeição de uma descrição do<br />
conhecimento como uma representação exata da “realidade”; a rejeição de uma concepção de<br />
verdade que a julga pelo critério de uma suposta correspondência com a “realidade”; a rejeição<br />
de descrições canônicas e de vocabulários finais; e, finalmente, uma suspeita relativamente às<br />
metanarrativas (PETERS, 2000, p. 51).<br />
Nesse sentido, toda petição ou todo apelo à universalidade e à totalidade não pode ser<br />
assumido sem que se cometa alguma violência, “[...] a qual, ao afirmar certas “verdades”, a<br />
partir da perspectiva de um determinado discurso, o faz apenas por meio do silenciamento ou<br />
da exclusão das proposições de um outro discurso” (LYOTARD, 1984 apud PETERS, 2000,<br />
p. 53). Com isso, um entrelaçamento entre a dança e o pensamento, de acordo com o que<br />
afirma Badiou, apenas se sustentaria não através de preceitos anteriores ou independentes do<br />
próprio acontecer dançante (já que eleger um dizer específico estaria mais próximo da<br />
imposição de um critério estético – a priori -, do que, de fato, de um evento “inestético” como<br />
o que “[...] não se efetua em outra parte além daquela onde se dá [...]” (BADIOU, 2002, p.<br />
81)), mas sempre conforme o uso que a própria dança instaura e exige.<br />
A esse respeito é possível fazer uma comparação da dança com a fala de Deleuze<br />
acerca da literatura, quando ele esclarece que a escrita (pois assim também é a dança) é<br />
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inseparável do devir, em que há uma coexistência de vários níveis sem que nenhum deles se<br />
imponha em uma formalização dominante. Sendo que:<br />
Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar a zona de<br />
vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já não seja possível distinguirse<br />
de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas<br />
imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam<br />
numa população (DELEUZE, 1997, p. 11).<br />
Logo, quando Badiou afirma a dança como imagem do pensamento, também ela, tal<br />
como o pensamento, deve ser tomada como o que “[...] não se efetua em outra parte além<br />
daquela onde se dá [...]”; sendo sempre imprevista sem ser imprecisa ou geral a dança assim<br />
como o pensamento é efetiva “no lugar”, é o que se intensifica, se assim se pode dizer, sobre<br />
si mesma, ou ainda o movimento de sua própria intensidade (BADIOU, 2002, p. 81). Isso<br />
denota, justamente, o atravessamento transitivo (e aqui, entre pensamento e dança ou<br />
pensamento-dança) que se estabelece na imanência (no plano de imanência para o qual<br />
convergem todos os planos – em que o pensamento é vivido e o conceito de imanência não se<br />
dá em relação a algo, sendo “imanente „a‟” qualquer coisa, e sim como ação do próprio<br />
pensamento), pois, “Não mais se fará a vida [a dança] comparecer perante as categorias do<br />
pensamento, lograr-se-á o pensamento nas categorias da vida [da dança]” (DELEUZE, 2005,<br />
p. 227). De acordo com isso também são as palavras de José Gil referentes à reviravolta no<br />
pensamento de Deleuze (precisamente pela instauração desse plano de imanência no qual o<br />
sujeito crítico se encontra também implicado) quando diz que:<br />
[...] o movimento da crítica será doravante um movimento de criação de conceitos. Com efeito,<br />
o movimento que traça o plano não segue uma lógica discursiva (de conceito a conceito,<br />
formalmente), mas uma lógica das potências. A imanência traz necessariamente a criação de<br />
conceitos, porque a crítica já não possui referentes transcendentes (essências, valores), não<br />
avaliando senão pelas intensidades que a levam e que ela cria. Está pois condenada à criação<br />
de conceitos, segundo uma lógica das intensidades ( GIL, 2000, p. 79).<br />
Portanto, como é possível que Badiou concilie uma lógica das intensidades com uma<br />
convocação dos fins atinentes à ordem metafísica das prioridades e dos princípios (pela qual a<br />
dança deva ser subsumida)?<br />
Gil reafirma nessa reviravolta deleuzeana a mudança da própria noção de conceito e<br />
de imagem do pensamento. “Doravante o conceito não se definirá pelo seu regime discursivo,<br />
mas por seu poder de criação-ação” (GIL, 2000, p. 79). Mas, então, como compreender a<br />
efetivação dessa lógica das potências ou das intensidades que definem uma nova imagem para<br />
pensamento pelo poder (ou força) do conceito como criação-ação?<br />
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Para Jean-Luc Nancy, no pensamento deleuzeano, isso se faz possível através da<br />
nomeação, que não é uma doação de sentido (como o que se vincula à interpretação ou à<br />
explicação que atribui significação a algo). Diversamente disso, a nomeação é uma outra<br />
forma de indexação de “um universo da efetividade-imagem” (2000, p. 114) em um gesto<br />
material, ou seja, a nomeação é o gesto ou o movimento que promove o deslocamento de um<br />
peso, de uma carga ou de um traçado à linguagem. Todavia, não para fazer do deslocado<br />
linguagem (por meio de uma tradução que convertesse, assim, a coisa traduzida de uma outra<br />
natureza em linguagem), mas, como fala Nancy, apenas para descrevê-la como a um quadro.<br />
Nesse sentido, nomear “[...] significa fazer com que a linguagem carregue o peso do que não é<br />
ela” (NANCY, 2000, p. 115). Portanto, efetivar essa lógica, segundo o fluxo e o movimento<br />
das intensidades, é fazer com que o pensamento não se dê em uma instância própria ou<br />
isolada que posteriormente entra em relação – o que pressupõe o seu acabamento -, mas porte<br />
e, ao mesmo tempo, torne-se um fluxo-vida, um fluxo-dança pelo entrelaçamento que desposa<br />
os seus circulantes/circulados. Desse modo, o pensamento se dá em um plano de consistência,<br />
como um gesto material ou mesmo uma “operação física”. E isso:<br />
<strong>É</strong> uma filosofia da nomeação, não do discurso. Trata-se de nomear as forças, os momentos, as<br />
configurações, não de desenrolar ou de enrolar sentido. A própria nomeação não é uma<br />
operação semântica: não se trata de significar as coisas; trata-se, antes, de indexar com nomes<br />
próprios os elementos do universo virtual (NANCY, 2000, p. 115).<br />
Esse é, pois, um outro modo de mostrar e de efetuar as coisas, sem nunca ter a<br />
pretensão de dar-lhes um sentido - já que elas são o seu próprio sentido, diversamente de ter<br />
ou receber algum. Ater-se aos nomes (que difere do desenrolar de um movimento frasal) é<br />
não se separar do devir que está no meio das coisas, e não em sua origem ou em seu fim<br />
(NANCY, 2000, p. 112). Para assim, “Desposar o movimento, prolongá-lo ao extremo,<br />
descrever sua trajetória, adivinhar o que supõe, experimentar devires (- mulher, - animal, -<br />
mineral) [...] eis o novo movimento de pensamento” (GIL, 2000, p. 79).<br />
Logo, ao nomearmos o acontecimento dançante somos levados por ele, pertencemos a<br />
ele e nele produzimos ao mesmo tempo em que também somos produzidos imanentemente.<br />
Pois, quando nomeamos efetivamos o “devir-conceito” (ao seu modo de criação-ação relativa<br />
à lógica das intensidades) como o que não é mais separável à maneira do regime discursivo.<br />
Isso é o pensamento comparecendo às categorias da vida ou da dança, o pensamento se<br />
tornando ação e criação, não por uma convocação dos fins que impõe às coisas que<br />
compareçam a ele, mas pela convocação consistente das intensidades. Desse modo, o<br />
pensamento não é apartado da dança que pensa, sendo, portanto, um fluxo que nela circula ao<br />
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mesmo tempo em que é circulado por ela, mostrando-a sem dizer o que ela é. E aqui, mais<br />
uma vez, a fala de Gil sobre o pensamente deleuzeano é fundamental:<br />
Eis como seu pensamento se torna ação: não porque apelaria à ação que viria em seguida como<br />
seu prolongamento direto, mas porque convoca uma lógica das potências. Pensar é uma<br />
potência: pensar-se-á pois no movimento e ao engendrar esse mesmo movimento que leva o<br />
pensamento – sempre na imanência. De tal maneira que pensar se torna um movimento de<br />
vida. O pensamento da intensidade torna-se potência e intensidade do pensamento (GIL, 2000,<br />
p. 80).<br />
Contudo, para Badiou, isso ainda parece não ser o suficiente para afiançar a<br />
contiguidade entre a dança e o pensamento. E é essa insuficiência que, justamente, encerra<br />
uma contradição na posição do autor e um consequente prejuízo para a própria dança, já que<br />
por essa concepção acaba por afastá-la do pensamento e não o contrário.<br />
Ele procura então reforçar essa ligação não através de uma exploração de termos<br />
comuns e coexistentes em vários níveis, de “vizinhanças” e de “aparentamentos” à imagem<br />
produzida pela dança e à compreensão nietzscheana de pensamento, tais como: a efemeridade<br />
vertiginosa e ainda a não-preexistência, que são alguns de seus pontos de mobilidade<br />
convergentes e, simultaneamente, índices desestabilizadores da relação sujeito-objeto ou da<br />
imagem convencional de subjetividade, mas escolhe assumir uma definição da dança a partir<br />
dos seis princípios expostos primeiramente por Mallarmé, e que são os seguintes: 1) a<br />
obrigação do espaço; 2) o anonimato do corpo; 3) a onipresença apagada dos sexos; 4) a<br />
subtração a si mesmo; 5) a nudez; 6) o olhar absoluto.<br />
Todavia, essa circunscrição de princípios, mesmo que incorpore certa transitoriedade,<br />
parece recorrer ainda a uma identidade (essencialista) por meio da qual a dança deva ser<br />
reconhecida enquanto tal. Pois, para que assim não o fosse seria necessária uma abordagem<br />
sempre circunstancial, que a tornasse algo afetável e que, a cada vez, remetesse-nos para: “em<br />
que caso?, onde e quando?, como?, e nunca para essências ( SANTAELLA, 2004, p. 21). Isso<br />
sim seria, comparando ao que diz Santaella sobre o pensamento e subjetividade em Deleuze, o<br />
que comporta uma análise “inestética” contemporânea da dança de maneira a respeitar o seu<br />
desenho e movimento continuamente produzidos. Com isso, fica claro que recorrer a qualquer<br />
tipo de postulação a priori ao próprio acontecimento dançante é impor uma identificação que<br />
se quer como a melhor ou a verdadeira e, portanto, é ainda se valer da primazia de um critério<br />
essencial sob o qual toda dança deva estar submetida. Será que isso é, realmente, compatível<br />
com o tempo “inestético” no qual vivemos? E também, cabe, ainda, recorrermos à primazia<br />
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do verbo ser, pelo qual elegemos e identificamos o melhor em detrimento do diferente em sua<br />
constante diferenciação?<br />
A favor de certo conforto para a elaboração de juízos (através de um conjunto de<br />
princípios) e de uma nobreza moral (que julga e identifica, por meio de sua tabulação, o<br />
essencial, o verdadeiro e, por conseguinte, o melhor), negligenciamos a multiplicidade que<br />
está fora desse conjunto de preceitos. Logo, pensar as intensidades da dança, ao contrário de<br />
erigir suas supostas qualidades ou propriedades, é sempre diluir valores, preceitos, princípios<br />
ou soberanias a favor de seu movimento. Trata-se então de despojar a dança de toda<br />
identificação essencialista ou de todo recurso a uma absolutidade de princípios que se<br />
convertam em lei, para coincidir o pensamento com o uso que a dança exige e faz dele. Ou<br />
seja, a dança é imagem para o pensamento porque exige e faz uso da permanente<br />
transformação e criação, nela não há propriedades ou essência, mas a variabilidade e a<br />
afetação por uma cadeia infinita de conexões.<br />
Nesse sentido, também vem ao encontro o pensamento de Wittgenstein,<br />
principalmente, em sua obra Investigações filosóficas, em que tomado no sentido da dança,<br />
não pressupõe a existência (por meio de princípios ou códigos separados) de uma dança pura,<br />
distinta de sua própria “aplicação” em seus infinitos “lances” ou operações possíveis. A<br />
dança, assim como o termo “jogo de linguagem”, da filosofia wittgensteineana, não se<br />
desvincula de seu uso. Isto é, que seu sentido está nela mesma (ou melhor, ela é o seu próprio<br />
sentido, sendo autônoma), e só pode ser nomeado por meio de sua própria atividade, sendo<br />
este nomear o que se dá carregando ou deslocando tal efetividade-imagem no ou pelo<br />
movimento de cada situação, estando sempre em meio a cada lance de seu devir. Essa seria,<br />
portanto, a imagem do pensamento-dança que não oculta nada por debaixo de seus<br />
heterogêneos “modos de usar”. A “multiplicidade de jogos de linguagem” da dança é, pois,<br />
irredutível a uma determinada forma geral, não havendo um traço único entre as danças<br />
possíveis em seus lances e operações, mas apenas uma “semelhança de família” ou uma<br />
“vizinhança” que mobiliza e efetiva tanto as possibilidades dançantes assim como aos<br />
pensamentos-ações que as acompanham (em recíprocas virtualidades efetivadas). Assim,<br />
explicita Wittgenstein acerca da linguagem (e que se estende para a dança):<br />
- Em vez de indicar algo que é comum a tudo aquilo que chamamos de linguagem, digo que<br />
não há uma coisa comum a esses fenômenos, em virtude da qual empregamos a mesma<br />
palavra, - mas sim que estão aparentados uns com os outros de muitos modos diferentes. E por<br />
causa desse parentesco ou desses parentescos, chamamo-los todos de “linguagens”<br />
(WITTGENSTEIN, 1991, p. 38).<br />
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Dessa maneira, a dança possui o sentido que advém por meio de seu próprio fluxo, em<br />
que o pensamento comparece, efetivando-se através dela e sendo também efetivado por ela. O<br />
pensamento, pois, faz parte da dança na qual imerge, não sendo uma tabulação impositiva de<br />
códigos e categorias estéticas a priori, e muito menos uma justificação de seu acontecimento<br />
a posteriori, ele é sim um transito no próprio meio da dança, que descreve ou nomeia seu uso.<br />
Logo, uma explanação do pensamento-dança de maneira alguma pode requerer causas ou fins,<br />
mas apenas constituir-se imanentemente a partir dos ilimitados usos instaurados pela dança<br />
dançada (sendo tais usos os próprios constituintes de sua razão). Consequentemente, aquilo<br />
que Badiou afirma como sendo os princípios da dança só ganham sentido por uma outra<br />
ordem ou lógica não hierárquica e se fazem relevantes se se encontrarem em meio ao<br />
acontecer dançante enquanto aspectos possíveis dentre os seus modos de uso.<br />
Essa é, então, a possibilidade não totalizante da produção de conhecimento sobre e<br />
com a dança ou a arte contemporânea como um todo que fazem do pensamento-ação ou do<br />
“devir-conceito” uma coexistência e uma indissociável criação.<br />
Todavia, faz-se importante que também levantemos a questão da especificidade do<br />
corpo como um índice concreto para a dança que dança tal imagem do pensamento, contra um<br />
corpo que tem por extensão ou implicação uma dança essencializada. Sendo que se pode<br />
constatar no corpo a asserção ou a marca de um determinado tipo de subjetividade da qual é<br />
sintoma. Em função disso, “[...] a discussão em torno da arte, cultura e tecnologia parece<br />
encontrar hoje no corpo e suas imagens um núcleo para debater o tempo e o espaço<br />
contemporâneos” (VILLAÇA e GÓES, 1998 apud SANTAELLA, 2004, p. 28).<br />
O corpo como resultante da cultura, da ciência e da tecnologia ganha prolongamentos<br />
que põem em questão as suas propriedades materiais e naturais, convertendo-as em conquistas<br />
históricas. Com efeito: “Mesmo o caráter aparentemente natural dos limites e das fronteiras<br />
do corpo, que parece definir como que inevitavelmente a coerência de uma unidade orgânica,<br />
é um fato recente e pertence a uma cultura específica” (ROSE, 2001 apud SANTAELLA,<br />
2004, p. 24). Assim sendo, o corpo como também a sua subjetividade são transpassados por<br />
multiplicidades virtuais que os constituem em mútua variabilidade e instabilidade, afetando-<br />
os em um transmutar constante. O corpo irrompe como um artefato de cultura e como um<br />
sintoma da subjetividade desestabilizada e acentrada reprimida pela lógica da modernidade.<br />
Por esse motivo, o corpo-sintoma contemporâneo é a insurgência contra qualquer exigência à<br />
universalidade unificadora, acontecendo, diferentemente, segundo as suas múltiplas<br />
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virtualidades e intensidades. Dá-se, então, um corpo que prolonga suas possibilidades e<br />
desdobra seus limites ilimitadamente. E assim:<br />
Espraiado e multiplicado em experiências divergentes e até mesmo incompatíveis e<br />
incongruentes, o corpo revela que nunca foi, na realidade, puramente natural ou estável,<br />
colocando a nu a pretensa ilusão de sua unificação, ao intercambiar e confundir de modo<br />
surpreendente as dicotomias entre interioridade e exterioridade, eu e outro, passado e futuro<br />
(SANTAELLA, 2004, p. 28).<br />
Destarte, tanto a definição de “corpo-próprio”, da fenomenologia de Merleau-Ponty,<br />
que desempenha o papel de garantir uma unidade dada da experiência e do mundo, como<br />
também a correspondência de um ego a um único “corpo-próprio” (enquanto condição de<br />
unidade desse mesmo ego), em Husserl, são abaladas junto com as noções de identidade, não<br />
resistindo “[...] à violação de sua integridade pressuposta” (SANTAELLA, 2004, 31). Por<br />
conseguinte, Santaella (2004, p. 32) indica a reconfiguração do estatuto do corpo que,<br />
desvinculado da unidade do “eu”, acontece enquanto singularidade como fluxo e<br />
multiplicidade, através da filosofia de Deleuze e de Guattari. Tal singularidade deve ser<br />
entendida “[...] no limiar da heteronímia e do devir-outro e é, em seu vetor centrífugo, na<br />
dissolução do „eu‟ e de suas figuras (psicológicas, sociais, morais, filosóficas) que ela se<br />
constitui” (SANTAELLA, 2004, p. 32).<br />
Depois da dissolução da ilusão que pressupõe uma forma humana unificada e<br />
coerente, da noção convencional, o corpo emerge como “[...] um volume em desintegração”<br />
(FOUCAULT, 1977 apud SANTAELLA, 2004, p. 20). E é, justamente, esse corpo dissociado<br />
de si, despedaçado em múltiplos segmentos enquanto sintoma de uma subjetividade não<br />
convencional, que dança a imagem do pensamento.<br />
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