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A MORTE DE SÓCRATES: O ETHOS COMO CARÁTER

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A <strong>MORTE</strong> <strong>DE</strong> <strong>SÓCRATES</strong>: O <strong>ETHOS</strong><br />

<strong>COMO</strong> <strong>CARÁTER</strong><br />

I. O fundo histórico<br />

A Grécia viveu nos séculos VII e VI a.C. uma época de vigor histórico extraordinário.<br />

O século VII é marcado pelo surgimento dos primeiros filósofos: Tales, Anaximandro,<br />

Anaxágoras, Anaxímenes, Heráclito, filósofos da Jônia, colônia grega na Ásia Menor;<br />

Parmênides e Zenon, filósofos da colônia grega itálica de Eléia; e Pitágoras de Samos.<br />

Também nesse século surgem os Jogos Olímpicos e a poesia lírica, tendo Safo e Alceu<br />

como principais nomes. No século seguinte, Píndaro irá se destacar nesse gênero de<br />

poesia.<br />

No século VI, Sólon, o primeiro poeta ático, tornando-se arconte de Atenas (594 a.C.),<br />

promulga uma constituição, cujas leis inauguram a democracia.<br />

O século V é, porém, uma época de decadência. A poesia trágica, que tinha sido<br />

inventada no século anterior, por ocasião do festival de Dionísio (534 a.C), toma o<br />

primeiro plano, na obra de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Irrompem guerras que irão<br />

assolar o mundo grego. Primeiramente, vieram as Guerras Médicas ou Greco-Pérsicas,<br />

ou seja, os conflitos bélicos entre os gregos e os persas pelo domínio da Jônia e do Mar<br />

Egeu. Após diversas batalhas, cujas vitórias se alternavam, finalmente, os gregos<br />

conseguiram banir a ameaça persa, liderados por Atenas e Esparta. Em meio às<br />

guerras médicas, Atenas foi liderada por Péricles. Este discípulo de Anaxágoras tentou<br />

retomar e consolidar a experiência da democracia ateniense. Com ele, a cidade de<br />

Atenas ganha um esplendor até então desconhecido, sendo embelezada pela<br />

arquitetura de Ictinos e Calícrates e pela escultura de Fídias. As ruínas da Acrópole são,<br />

ainda, testemunhas do esplendor desse mundo que logo se retraiu e caiu em<br />

decadência.<br />

Com efeito, após afastar o perigo persa, os gregos se dividem e entram em conflito,<br />

articulando-se em torno dessas duas cidades-potências, Atenas e Esparta. Irrompe,<br />

assim, a Guerra do Peloponeso, que durou de 431 a 404 a.C e que terminou com a<br />

derrota de Atenas. No ano de 406, após uma vitória, os comandantes Atenienses,<br />

coagidos por uma borrasca, deixa insepultos os corpos dos soldados atenienses mortos<br />

na batalha. Este fato provoca a ira do povo. E o tribunal ateniense condena à morte os<br />

comandantes mais valorosos do exército daquela cidade. Como se não bastasse, a<br />

cidade fica dividida por facções, que lutam entre si.<br />

1


Nessa época, o mito perde o poder de conduzir os homens em sua relação com o<br />

Todo. A religiosidade, privada de espírito, se dissolve e decai em meras práticas<br />

exteriores e em crenças supersticiosas.<br />

Em meio a tudo isso, soa a hora dos Sofistas, cujos nomes mais célebres foram<br />

Protágoras e Górgias. O sofista era um homem “sabido”, isto é, um hábil discutidor e<br />

sagaz orador, um homem pragmático, preocupado em instruir para aquilo que é<br />

considerado imediatamente útil para a vida política. Conhecedores do poder da<br />

linguagem na vida social grega (política) o seu empenho de educadores estava<br />

centrado na oratória (arte da persuasão). Eles procuravam, através da educação<br />

oratória, tornar o jovem hábil para a vida política. Para eles, a educação deveria<br />

perseguir o que era imediatamente útil para a vida política. Entretanto, esse<br />

pragmatismo, acabou se mostrando promovedor do individualismo. A educação<br />

acabou sendo instrumentalizada em favor de interesses particulares e não em vista do<br />

bem comum da Pólis.<br />

O domínio da sofística significou uma ameaça radical à filosofia. Radical porque<br />

ameaçava neutralizar aquilo que fora a raiz, o princípio, do surgimento da filosofia: a<br />

admiração com o ser.<br />

“Precisamente isto, que o ente permaneça recolhido no ser, que no<br />

fenômeno do ser se manifesta o ente; isto jogava os gregos, e a eles<br />

primeiro unicamente, no espanto. Ente no ser: isto se tornou para os gregos<br />

o mais espantoso. Entretanto, mesmo os gregos tiveram que salvar e<br />

proteger o poder do espanto deste mais espantoso – contra o ataque do<br />

entendimento sofista, que dispunha logo de uma explicação, compreensível<br />

para qualquer um, para tudo e a difundia” 1 .<br />

Sócrates, Platão e Aristóteles são aqueles que procuraram salvar a admiração<br />

filosófica, isto é, o espanto com o mistério do ser, da trivialidade do ensino sofístico.<br />

Admirar-se é ter “o pasmo essencial” de sentir-se “nascido a cada momento para a<br />

eterna novidade do mundo”, como dizia Fernando Pessoa. Tanto Platão quanto<br />

Aristóteles nos recordam que este pasmo, este espanto da admiração, é o princípio da<br />

filosofia.<br />

“É verdadeiramente de um filósofo este pathos – o espanto; pois não há<br />

outra origem imperante da filosofia do que este” 2 .<br />

1<br />

Heidegger, Martin. O que é isto – a filosofia? In: Conferências e escritos filosóficos (Coleção “Os<br />

Pensadores”). São Paulo-SP: Nova Cultural, 1999, p. 32.<br />

2<br />

Platão, Teeteto, 155 d:<br />

μαλα γαρ φιλοσοφου τουτο το παθος, το θαυμαζειν: ου γαρ αλλη αρχη φιλοσοφιας η αυτη −<br />

Mala gar philosophou touto to pathos, to thaumazein: ou gar alle arché philosophias e aúte.<br />

2


“Pelo espanto os homens chegaram agora e chegaram antigamente à<br />

origem imperante do filosofar” 3 .<br />

Nós, humanos, só a muito custo e a duras penas é que chegamos ao princípio. Começo<br />

e princípio são diversos. O começo é o arranque de um percurso. O que faz começar é<br />

o princípio. Mas o princípio (αρχη − arché) não somente faz começar, ele faz e deixa<br />

também o percurso deslanchar, ele o sustenta, o domina (αρχειν − archeín), o<br />

governa, do começo ao fim. Daí o nome: origem imperante, para evocar o princípio.<br />

Princípio, nesse sentido, tem muito mais a ver com fim, do que com começo. É que o<br />

princípio só principia pra valer quando um processo chega a seu fim. Não o fim como<br />

mero término, mas sim o fim como consumação e plenitude de uma realização. Do<br />

vigor de instituir e de deixar e fazer vigorar, próprio do princípio, falou-nos Platão, no<br />

livro das Leis, quando disse que<br />

“princípio é também mistério (αρχη και θεος − arché kai theós), que,<br />

irrompendo repentinamente entre os homens, salva tudo, desde que receba<br />

dos que têm em mãos o cuidado de vida”.<br />

Este princípio da vida filosófica grega foi defendido sobremaneira pela vida e morte de<br />

Sócrates. É como homem que não se considera sábio, mas alguém que tende, sempre<br />

de novo, no seu não-saber, à sabedoria, que aparece a figura de Sócrates na cidade de<br />

Atenas. Trata-se, no entanto, de um aparecimento trágico, como veremos.<br />

Para fazer ver o modo do confronto de Sócrates com os sofistas convém recordar uma<br />

anedota:<br />

“Diz-se que, de certa feita, um sofista famoso, que percorria toda a Grécia,<br />

e mesmo outras terras, dando brilhantes conferências para empresários e<br />

políticos profissionais, voltou a Atenas e, na ágora, viu o feio e pobre<br />

Sócrates, que nunca saíra de sua cidade, em seu ofício político de fazer aos<br />

seus interlocutores a mesma pergunta de sempre – τι εστιν; , ou seja, “o<br />

que é isto?”. (De fato, Sócrates perguntava a um sapateiro: o que é isto – o<br />

sapato?) Então o sofista quis tirar um sarro de Sócrates e lhe disse: “como é<br />

Sócrates, você ainda está aí, no mesmo lugar, dizendo o mesmo a respeito<br />

do mesmo?”. Sócrates, de bom humor e com cordialidade, respondera<br />

então à gozação do sofista, com outra provocação: “Sim, meu caro, aqui<br />

estou eu, no mesmo lugar, dizendo o mesmo a respeito do mesmo. E você:<br />

continua em giro pelo mundo nunca dizendo o mesmo a respeito do<br />

mesmo?”.<br />

3 Aristóteles, Metafísica, A 2, 982b 12ss:<br />

δια γαρ το θαυμαζειν οι ανθρωποι και νυν και το πρωτον ηρξαντο φιλοσοφειν −<br />

diá gar to thaumázein hoi anthrwpoi kai nyn kai tó prwton erxanto philosophein.<br />

3


Em toda a parte e em cada momento o empenho de Sócrates foi somente este: dizer o<br />

mesmo, ou seja, trazer à fala o mistério do ser, atuante em tudo quanto, de alguma<br />

maneira, é. Por isso, a pergunta que Sócrates fazia sempre de novo a cada um de seus<br />

interlocutores, nos ginásios ou na ágora, era: τι εστιν; - “o que é isto?”. Seu ofício foi<br />

perguntar pelo óbvio. Isso, no entanto, tornou-o uma “mosca da feira” na cidade de<br />

Atenas, um personagem não agradável, que, colocando-se como um ignorante,<br />

sempre de novo desmascarava a pseudo-sabedoria dos cidadãos.<br />

II. Atenas e Sócrates<br />

Para Sócrates, nada serviu mais para despertar o pathos, isto é, a disposição e o<br />

sentimento, da admiração com o ser (o thaumádzein), do que a própria Pólis. A cidade,<br />

com seus acontecimentos históricos, lhe ensinava muito mais do que a “natureza”.<br />

Para ele, tudo, na cidade, era ensino. Mesmo a Tirania dos Trinta. Sim, mesmo o<br />

julgamento injusto da pseudo-democracia, que o condenou à morte.<br />

Ao olhar de Sócrates, a Pólis ensinava por si mesma, simplesmente por ser Pólis. A<br />

cidade era a dimensão em que acontecia a história. Ela era a terra natal e o mundo<br />

histórico mais próximo. Tudo, nela, se recolhia numa unidade de sentido: deuses,<br />

templos, sacerdotes, festas, jogos, poetas, pensadores, governantes, o conselho dos<br />

anciãos, a assembléia do povo, o exército dos guerreiros, etc. A Pólis era uma<br />

instituição fundada e sustentada no poder instaurador de história destes homens<br />

criadores. A cidade (Pólis), com efeito, era sustentada em sua raiz, pelo trabalho<br />

criador desses homens, que se fizeram solitários (ápolis), justamente por serem<br />

criadores. Todos eles tinham a ousadia de ir além dos limites do seu oikos, isto é, da<br />

sua casa, para fazer da cidade a sua verdadeira morada (ethos). Nessa concepção,<br />

políticos eram todos quantos, naquilo a que dedicavam suas vidas, cuidavam do todo<br />

da Pólis. Não somente os governantes. Por isso, Sócrates nunca quis exercer o papel de<br />

governante. Era como pensador, que ele era político. O pensamento era seu modo de<br />

se responsabilizar pela Pólis.<br />

A Pólis era uma comunidade humana (koinonia), que participava da soberania, isto é,<br />

da liberdade heroicamente conquistada por um povo lutador. O espírito desse povo<br />

emerge, sobretudo, na figura de seus heróis, cuja glória era cantada pelos poetas. Nos<br />

gregos era nativo o ardor, o amor apaixonado, pela liberdade. Este amor apaixonado<br />

aparecia como ternura sóbria e sobriedade terna.<br />

A Pólis era o espaço da liberdade. A liberdade, porém, não era um fato consumado.<br />

Era, antes, um princípio e uma idéia: um feito sempre por se fazer, uma tarefa<br />

histórica que, a cada novo momento oportuno (kairós), se configurava de maneira<br />

nova.<br />

4


A memória da essência do espaço de liberdade, que era a Pólis, era resguardada no<br />

alto: na akrópolis. Ali, no alto da terra, se erguia, sob o fundo da imensidão azul e<br />

diáfana do céu, o templo do deus ou da deusa, cujo espírito era inspirador para a<br />

tarefa histórica daquela cidade.<br />

Para os gregos, o templo era a morada do divino. Em torno dessa morada é que se<br />

recolhe a morada dos mortais: as casas e ruas, a praça pública (ágora), os palácios, o<br />

areópago. A Pólis era, cada vez, o domínio de um deus. Cada uma era vivificada pelo<br />

sopro de uma figura divina, que a enviava e acompanhava em suas vias históricas.<br />

Cada cidade tinha o seu deus e cada deus a sua cidade.<br />

A cidade de Atenas era alentada pela figura da deusa Atena. A deusa Atena não tem<br />

mãe, apenas pai. Nasce pronta e armada da cabeça de Zeus, o deus supremo do céu, o<br />

deus do raio. Aparece belicosa, com seu escudo coriscante. Deusa virgem, figura de<br />

mulher varonil. Homero a evocou como polymetis, glaukopis, skeptomene.<br />

Polymetis – a que muito aconselha. Ela possui a mirada clara do instante, o saber exato<br />

da ação no momento oportuno. Ela faz ver a possibilidade da ação em meio ao<br />

movimento da vida. Revela os seus limites, isto é, as suas condições de plena<br />

realização. Ela possui, portanto, um saber raro que diz respeito à poíesis da práxis: o<br />

pôr em obra a ação que instaura liberdade. Heraclés (Hércules), o herói pan-helênico<br />

por excelência, só conquista a sua liberdade através dos socorros de Atena. É<br />

sustentando-se em seus conselhos que ele consegue realizar os seus doze trabalhos<br />

(erga). Graças a ela, ele se torna o herói infatigável, protetor dos fracos, o homem<br />

sobrecarregado de trabalhos e dores, metido numa incessante luta por amor à<br />

humanidade. Atena era também a protetora dos artistas, os technítai: todos aqueles<br />

que, através da póiesis da téchne, traziam à obra (ergon) algum tipo de artefato. Obra<br />

de arte era qualquer artefato do artesanato cotidiano, como também qualquer<br />

artefato da criação artística: uma pintura, uma escultura, uma música, um poema, um<br />

discurso, uma ação, um conhecimento, um pensamento.<br />

Glaukopis – a de olhar claro, de mirada brilhante. Ela traz o glaukós: a claridade.<br />

Aquela claridade que reluzia no brilho irradiante do mar, da terra e do céu gregos. Era<br />

o brilho argênteo da lua e da oliveira. Seu olhar é o da coruja (Glaux). Com seus olhos<br />

de fogo, ela penetra mesmo na escuridão da noite. Ela propicia a visão operativa da<br />

arte (téchne) e a visão criadora da ação (práxis), que se antecipa, à medida que é capaz<br />

de intuir possibilidades. Nesse sentido, sua visão é pre-visão, circun-visão, pro-visão.<br />

Skeptomene – a que delimita pelo seu olhar. Em toda a produção (póiesis), faz<br />

necessário um olhar. Nenhuma produção é cega: nem a da natureza (physis), nem a da<br />

arte (téchne), nem a da ação (práxis) segue um processo sem evidência, sem<br />

compreensão, destituído de saber. O olhar de Atena é a visão que tudo supervisiona,<br />

para que a obra chegue a seu fim (télos). Aqui, porém, a palavra fim não significa a<br />

5


destruição, pela qual a coisa é aniquilada. Fim significa, antes, a plenitude do limite, da<br />

perfeição de uma coisa. O limite da coisa, pensado de maneira grega, não é sua<br />

carência e deficiência. É sua plenitude e perfeição. Quando uma obra alcança o seu<br />

limite, encontra a sua perfeição, ela se recolhe no vigor de seu ser e repousa<br />

silenciosamente na vigência de sua presença.<br />

A cidade de Atenas estava, pois, por vocação, colocada debaixo da inspiração de<br />

Atena. Isso era prerrogativa e dom. Era, no entanto, também incumbência e tarefa. Os<br />

atenienses estavam, pois, colocados diante da missão de conduzir a sua história,<br />

guiados pelo saber de Atena: o saber que vem do olhar oportuno, claro e nítido, que<br />

guia a póiesis: o pôr em obra da liberdade.<br />

Acontece, porém, que uma cidade pode trair sua vocação primordial. Foi o que<br />

aconteceu à Atenas do tempo de Sócrates. Na ágora, na planura da praça pública, os<br />

cidadãos acabam se esquecendo da incumbência e tarefa histórica de seu povo, que<br />

lhe advém da akrópolis. O espaço público acaba pervertendo a tarefa política da<br />

comunidade. Olhando apenas para os seus interesses privativos, os cidadãos se<br />

esquecem do politheúesthai: o cuidado com a Pólis.<br />

A ágora é a praça pública, o fórum. A cidade é a articulação de espaços de convivência.<br />

O ponto de convergência desses espaços é a praça. Ela é o lugar central da vida<br />

urbana, melhor, da vida pública. Ela invoca uma verdade que vale para todos, que é<br />

universal. Nada deveria ser mais bem partilhado entre os cidadãos do que o acesso a<br />

essa verdade, a verdade de seu mundo comum. Entretanto, como ensina a tragédia de<br />

Édipo, a verdade não é dada de imediato ao homem. Ela só é dada através da sua<br />

procura, do seu perguntar, da sua investigação. O grande perigo da cidade é ela<br />

confundir a aparência e a opinião (dóxa) com a verdade, isto é, a revelação da<br />

realidade (alétheia). O mundo comum da convivência cotidiana é dominado pela força<br />

mediana da dóxa. É nesse domínio que os cidadãos falam uns com os outros, e, sendo<br />

interpelados uns pelos outros, decidem sobre os destinos da vida em comum (Pólis).<br />

Assim, na praça pública, reina a relatividade e a pluralidade das opiniões. Entretanto,<br />

caso a dóxa (opinião) não for confrontada com a pergunta e a investigação da alétheia<br />

(verdade), a cidade sucumbe a um dogmatismo, que é a ditadura da opinião pública.<br />

Por isso, o ser do homem enquanto dedicado à vida em comum (zõon politikón), só<br />

acontece satisfatoriamente se ele, de fato, fazer uso de sua capacidade de<br />

compreensão, ou seja, da razão (zõon logon echon).<br />

Ora, a dóxa costuma estar satisfeita consigo mesma, com suas compreensões<br />

medianas e suas visões unilaterais. Contra a sua indolência, na cidade, surge o filósofo.<br />

Sócrates, em meio à indolência dos cidadãos, à decadência da cidade e ao<br />

esvaziamento do sentido da política, se tornou, assim, aquele que incomoda com o<br />

aguilhão da pergunta e do pensamento. Na ágora de Atenas, Sócrates não quis ensinar<br />

aos homens nenhuma verdade. Quis apenas ajudá-los a se tornarem mais verdadeiros.<br />

6


O que lhe valeu um processo e a condenação à morte – acontecidos no ano de 399 a.C.<br />

Para ele a filosofia era política na sua essência. Não porque fosse aplicada a funções de<br />

governo e nem por ser sustentáculo de qualquer ideologia. Não. Para ele a filosofia era<br />

um politheuesthai, um cuidar da Pólis, justamente por recordar aos cidadãos, sempre<br />

de novo, que a liberdade só acontece ali onde o homem não cessa de se libertar para a<br />

autoridade da verdade.<br />

III. Apolo e Sócrates: o julgamento e o canto do cisne.<br />

Quatro diálogos de Platão nos apresentam os últimos dias de Sócrates: Eutifron,<br />

Apologia, Criton e Fedon.<br />

Eutifron é o nome de um sacerdote com quem Sócrates conversa, a caminho do<br />

escritório do segundo arconte, chamado de Basileús, o qual era responsável por<br />

acolher as acusações de crime contra a Pólis. O sacerdote tinha ido acusar o seu<br />

próprio pai, pela morte de um escravo. Sócrates ali recorre para se informar da<br />

acusação que fora movida contra ele. Um jovem desconhecido, um poeta mesquinho e<br />

insignificante, de nome Meleto, tinha apresentado a acusação contra Sócrates.<br />

Eutifron pergunta a Sócrates de que ele era acusado. Sócrates responde: ele era<br />

acusado de corromper os jovens e de criar novos deuses, deixando de crer aos antigos,<br />

que conduziam a vida das cidades gregas. Com outras palavras, Sócrates era acusado<br />

de minar a religiosidade tradicional e de criar uma nova religiosidade, que não<br />

correspondia à velha ordem política.<br />

Na obra de Platão, este diálogo era uma espécie de comédia satiresca, colocada como<br />

introdução à tragédia da morte de Sócrates. Ironicamente, Sócrates discute com um<br />

sacerdote, justamente a respeito do conceito de “santo” e de “santidade”. A ironia de<br />

Sócrates colocava o seu interlocutor numa luz cômica. Sócrates se colocava como<br />

ignorante e se punha a perguntar a seu interlocutor as razões daquilo que ele<br />

pretendia saber. Aos poucos, porém, no diálogo, ia se evidenciando que o interlocutor<br />

na verdade não sabia propriamente o que dizia, que sua opinião mediana não era<br />

fundada em evidência. O tom dessa ironia era, porém, espirituosa. Sócrates não visava<br />

desmascarar o seu interlocutor, mas torná-lo mais livre para a busca da verdade. Nesse<br />

caso, o sacerdote Eutifron acaba mostrando que não sabe conceituar o que é,<br />

propriamente, o santo e a santidade. Eutifron reclama de Sócrates, que era<br />

semelhante a Dédalo, o escultor que fazia mover as suas estátuas. Mas Sócrates<br />

mostra que não era ele quem movia os conceitos de modo a ficar confuso o que seria a<br />

essência da religiosidade, mas era Eutifron mesmo que não conseguia se ater<br />

firmemente a nenhuma opinião. Ironicamente, o sacerdote não conseguia captar a<br />

essência da religião. E era Sócrates, acusado de ser ímpio, quem lhe fazia perceber a<br />

7


sua própria cegueira de compreensão. Sócrates, que nada sabia, não dá nenhuma<br />

resposta a Eutifron sobre a questão levantada e discutida por ambos. Apenas tenta<br />

movê-lo para a investigação. Mas, inutilmente. O diálogo roda, roda e termina no<br />

mesmo nível em que tinha começado, sem progredir de forma alguma.<br />

A Apologia contém, como o nome diz, o relato do julgamento e da defesa de Sócrates<br />

diante do tribunal que o acusava. Três cidadãos de Atenas subscrevem a acusação:<br />

Méleto, um poeta sem expressão; Ânito, um rico curtidor, democrata conservador; e<br />

Licão, um orator, representante da classe dos políticos profissionais. Pelas suas classes,<br />

representavam, portanto, toda a cidade. Sócrates se encontra diante do grande<br />

tribunal, composto de 500 juízes, sorteados a partir dos membros da assembléia<br />

popular. Três são os discursos que Sócrates pronuncia por ocasião de seu julgamento,<br />

conforme a forma do processo acontecer, naquela época, na cidade de Atenas.<br />

A Apologia é uma espécie de drama, pois a defesa de Sócrates acontece de modo<br />

estranho, como se Sócrates próprio não favorecesse a possibilidade de escapar à<br />

morte, melhor, como se ele até mesmo forçasse a sua condenação.<br />

A acusação levantada contra Sócrates no processo dizia:<br />

“Sócrates é culpado. Ele indaga com ânimo ímpio (asébeia) as coisas do céu<br />

e da terra, faz prevalecer a causa ruim sobre a boa e ensina aos outros a<br />

fazer o mesmo”.<br />

Sócrates, então, responde dizendo que não tinha nenhuma ciência e que a sua fama de<br />

sabedoria não era bem fundada. Conta que, certa vez, um seu amigo foi até Delfos e<br />

perguntou quem era o homem mais sábio. O oráculo de Apolo teria respondido que<br />

era Sócrates. Entretanto, Sócrates nunca se sentia um homem sábio. Então acabou<br />

compreendendo que sua sabedoria consistia, justamente, no fato de saber unicamente<br />

que nada sabia. Desde então começou a conversar com todos os homens, tentando<br />

provar a si mesmo que qualquer um era mais sábio que ele. No entanto, mesmo<br />

aqueles que pareciam mais sábios e justamente estes eram os que, no decorrer da<br />

conversa, se mostravam mais distantes da sabedoria. A única superioridade que ele<br />

parecia mostrar em relação aos outros homens vinha do fato de ele estar ciente de sua<br />

ignorância, enquanto os outros não.<br />

Com essa história, Sócrates dá a entender que ele não era um homem irreligioso,<br />

ímpio. Antes, mostra que ele, através de sua vida de filósofo, estava a serviço do deus<br />

Apolo, deus da claridade meridiana. Era a claridade da verdade que ele buscava em<br />

toda a conversa, qualquer que fosse o seu interlocutor. O destino de Sócrates será<br />

trágico, porque ele morrerá acusado de ímpio, justamente por permanecer fiel à<br />

missão que lhe fora dada pelo deus Apolo: a incumbência de buscar em todas as<br />

questões a claridade da verdade. Graças a essa atitude, Sócrates agia com total<br />

8


liberdade na cidade e buscava trazer os homens para a mesma liberdade. Entretanto,<br />

era justamente essa liberdade que lhe custaria a condenação à prisão e à morte.<br />

No seu primeiro discurso, Sócrates procura mostrar que faz a sua defesa não por medo<br />

da morte e sim para poupar os seus juízes de um erro histórico. Entretanto, ele não<br />

convence. Dos 500 juízes, 280 o condenam à morte. Era pouca a diferença entre os<br />

que o condenavam e os que o absolviam. Conforme as regras do processo, Sócrates<br />

podia, então, responder aos seus juízes e apresentar uma contraproposta à pena<br />

recebida. O seu segundo discurso, no entanto, só faz as coisas se agravarem ainda mais<br />

para ele.<br />

Sócrates, de fato, responde que não merecia nenhuma pena e sim um prêmio: de<br />

poder comer de graça, no Pritâneo, às custas do Estado. O Pritâneo era um prédio<br />

público, onde podiam comer às custas da Pólis os governantes, os hóspedes de honra,<br />

os cidadãos distintos e os vencedores dos jogos olímpicos. A resposta de Sócrates era,<br />

claramente, uma provocação aos seus juízes. Certamente, dada tal ousadia, nenhuma<br />

mitigação de sua pena deveria ser esperada desde então. A postura de Sócrates soa<br />

como uma presunção, uma hybris, aos olhos dos juízes. Era come se ele quisesse selar<br />

a sua vida dedicada à filosofia e à cidade através de tal condenação à morte.<br />

Sócrates bem poderia propor-se o exílio em lugar da pena capital. Entretanto, diz ele,<br />

seria insensato propor essa troca. A morte, diz ele, ninguém sabe se ela é boa ou se é<br />

má. Quanto ao exílio é, manifestamente, um grande mal. Pelo sim, pelo não, ele<br />

preferia ser condenado à morte. De fato, ao sair a sentença definitiva, Sócrates é<br />

condenado a morrer através da cicuta.<br />

No seu terceiro discurso, Sócrates se volta para os juízes que tinham sido benévolos a<br />

ele, votando pela sua absolvição. Ele se empenha em interpretar aquele instante, que<br />

tinha um peso histórico muito grande, sim, tinha peso eterno.<br />

Sócrates fala, então, do seu daimonion. Diz ele que o sinal divino se lhe manifestava<br />

todas as vezes que ele iria cometer um erro: dizendo ou fazendo algo de errado. Ora,<br />

tal sinal não se lhe manifestara durante a sua defesa; o que lhe dava a tranqüilidade de<br />

ter agido corretamente.<br />

Em seguida, Sócrates se posiciona em relação ao caráter da morte. Duas possibilidades<br />

se lhe afiguram à mente. A primeira, que a morte seja uma aniquilação. A segunda,<br />

que a morte seja uma passagem, uma transmigração da alma para o mundo do além.<br />

Ele então afirma que, se a morte fosse uma aniquilação, isso lhe significaria um<br />

descanso de toda a canseira da vida. Se, ao contrário, fosse uma passagem para o<br />

além, então ele só deveria se alegrar, pois lá no Hades ele poderia finalmente<br />

conversar com os grandes heróis e os grandes sábios da história e interrogá-los a<br />

respeito da verdade. Assim, a vida que levara aqui terra chegaria à plenitude e<br />

9


eceberia uma validade eterna. Nesse caso, Sócrates está confiante num destino feliz,<br />

pois ele crê que<br />

“àquele que é bom não pode acontecer nada de mal, nem vivo nem morto e<br />

que os deuses cuidam do seu destino”.<br />

Por fim, num estranho testamento, Sócrates pede que, quando os seus filhos ficassem<br />

grandes, que eles fossem atormentados pelas perguntas que ele costumava fazer aos<br />

cidadãos, a fim de que eles preferissem mais a virtude do que o dinheiro, na condução<br />

de suas vidas.<br />

A sessão do tribunal tinha ocorrido no dia seguinte da partida da nave oficial para<br />

Delos, ilha natal do deus Apolo. Segundo uma antiga tradição, os atenienses<br />

mandavam todo ano essa nave cheia de dons, para agradecer a vitória de Teseu sobre<br />

o Minotauro, o qual exigia o sacrifício de jovens atenienses. Segundo o mito, o<br />

ateniense Teseu teria vencido a luta com o Minotauro, graças ao apoio de Apolo. Ora,<br />

durante o tempo em que a nave se encontrava nessa viagem, nenhuma pena de morte<br />

podia ser executada. Isso fez que se adiasse a morte de Sócrates por vários dias.<br />

O diálogo Criton acontece na prisão. Seu amigo de longa data, que leva esse nome, lhe<br />

vem visitar de madrugadinha e lhe propor para fugir da prisão. As condições eram<br />

favoráveis. Criton já tinha, inclusive, subornado o guarda da prisão e buscado apoio em<br />

outras cidades, junto a amigos, para receber o fugitivo. Sócrates recusa essa<br />

alternativa. Prefere morrer a viver de modo tão vergonhoso, indo contra suas<br />

convicções. Para ele, o importante não era simplesmente viver, mas viver bem. E o que<br />

era, para ele, viver bem? Resposta: viver segundo a virtude e a justiça. É preferível<br />

sofrer injustiça que cometer injustiça, diz ele. Mesmo se os homens o julgaram<br />

injustamente, ele não deveria, por isso, ir contra as leis da cidade, que ele sempre<br />

respeitou e até mesmo amou, levando em consideração que foram elas que o<br />

acolheram na cidade, quando ele nasceu, que foram elas que o educaram quando<br />

crescia e que foram elas que lhe deram cidadania na idade adulta. Para Sócrates, as<br />

leis representam potências divinas, que guiam a cidade no caminho da justiça. É como<br />

se ele visse, por trás das leis humanas, as “leis não-escritas e intangíveis dos deuses”<br />

(Antígona).<br />

Por fim, no diálogo Fedon, Sócrates dialoga, no último dia, com seus discípulos, sobre a<br />

morte e a imortalidade da alma. Primeiramente, Sócrates levanta a tese de que a<br />

morte não deveria assustar o filósofo, pois o filosofar é uma continua preparação para<br />

a morte. Em que sentido? No sentido de que o filósofo é aquele que, continuamente,<br />

não cessa de se desprender das coisas sensíveis para contemplar as inteligíveis (as<br />

idéias ou essências das coisas, enquanto o real realíssimo).<br />

Segue, então, um diálogo com dois de seus discípulos, que eram de formação<br />

pitagórica, a respeito da espiritualidade e da imortalidade da alma. Partindo da tese de<br />

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que aprender é recordar, Sócrates procura mostrar que é verossímil que a alma préexista<br />

ao nascimento na forma da existência humana, isto é, terrena. Lança, então, a<br />

hipótese de que ela possa sobreviver também à morte. Sócrates procura, além disso,<br />

demonstrar que a alma é simples. Ora, só pode se decompor o que é composto. Só o<br />

corpo pode ser destruído na morte. Enquanto a alma, parte imortal do homem,<br />

permanece intocável. A alma é a parte mais verdadeira e real do homem. O corpo só é<br />

vivo à medida que é participante da vitalidade que lhe é comunicada pela alma<br />

espiritual. Aliás, para Sócrates, a idéia ou essência da alma está intrinsecamente ligada<br />

com a idéia ou essência da vida. Ora, partindo do princípio de identidade e de não<br />

contradição, pode-se dizer que a idéia da vida repugna a idéia da morte. Vida e morte<br />

pertencem à realidade do homem. Da morte pode vir a vida e da vida vem a morte.<br />

Entretanto, vida é sempre vida e nunca morte. A vida no seu sentido verdadeiro só<br />

pode ser mesmo vida eterna, isto é, imortal, conclui Sócrates, após diversas tentativas<br />

de mostrar a razoabilidade de sua convicção e espantar as sombras da morte que<br />

enfeitiçavam o coração de seus discípulos. A vida da alma, porém, consiste em<br />

contemplar as essências, as idéias, em sua, a realidade realíssima do ser, na sua<br />

transparência e claridade celeste e, para além de tudo, em contemplar o Bem, que é a<br />

fonte da capacidade de ser, de viver e de conhecer a verdade.<br />

De todos os arrazoados, porém, Sócrates tira uma conclusão prática:<br />

“Mas, oh amigos”, disse, “sobre isso convém refletir: se a alma é imortal, é<br />

preciso cuidar dela, não só por este tempo da nossa vida, mas também pela<br />

totalidade do tempo, e considerar que o perigo, agora, resulta terrível, se<br />

não existe o cuidado por ela”.<br />

Enfim, Sócrates deixa claro que nessas últimas conversas ele entoava o seu “canto do<br />

cisne”, na verdade, um hino a Apolo, de quem ele, como os cisnes, era servidor,<br />

sacerdote e profeta. Os cisnes que, segundo o mito, antes de morrer, cantam o seu<br />

mais belo canto, na alegria de poderem, na morte, mergulhar no abismo de luz do<br />

deus a quem servem.<br />

Depois de se despedir da sua mulher e de seus três filhos, Sócrates pede para ficar a<br />

sós com seus discípulos. Recomenda, então, que se oferecesse um sacrifício a<br />

Esculápio, deus da medicina, agradecendo pela sua “cura”, isto é, por retornar à saúde<br />

plena, justamente através da morte. Esse gesto testemunha que Sócrates, no limiar da<br />

morte, trazia o sentimento de salvação dentro de si.<br />

Então, serenamente, ele bebe a cicuta e morre.<br />

Assim foi o fim de Sócrates, um homem que,<br />

“podemos bem dizer, entre tantos que então conhecíamos, foi o melhor e<br />

também o mais sábio e o mais justo”.<br />

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Com essas palavras termina o diálogo platônico Fedon, que é, no dizer de um<br />

comentador,<br />

“um daqueles poucos livros que convidam sempre de novo os homens a<br />

indagar se são dignos desse nome” (Guardini).<br />

O Fédon é, de fato, o diálogo que testemunha a jovial coragem de Sócrates em face da<br />

vida e da morte. Coragem que ecoou, séculos mais tarde, na fala de um filósofo<br />

moderno, Schelling:<br />

“Pois aquele que se quer colocar no ponto instaurador da filosofia<br />

verdadeiramente livre deve abandonar até mesmo Deus. Isso aqui significa:<br />

aquele que quer conservá-lo deve perdê-lo e quem se despojar haverá de<br />

encontrá-lo. Somente aquele que chegou ao fundo de si mesmo e conheceu<br />

toda a profundidade da vida, que já tudo abandonou e foi ele mesmo por<br />

todos abandonado, para quem tudo naufragou e que se viu sozinho com o<br />

infinito, foi capaz do grande passo, que Platão já comparou com a morte”.<br />

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