12.05.2013 Views

Chaves para ler as Memórias inventadas, de Manoel de Barros

Chaves para ler as Memórias inventadas, de Manoel de Barros

Chaves para ler as Memórias inventadas, de Manoel de Barros

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>Chaves</strong> <strong>para</strong> <strong>ler</strong> <strong>as</strong> Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong><br />

<strong>Chaves</strong> <strong>para</strong> <strong>ler</strong> <strong>as</strong> Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>,<br />

<strong>de</strong> <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong><br />

Raquel R. Souza 1<br />

Já faz algum tempo, propus uma arquitetura essencial, que a meu ver<br />

está contida em toda a palavra autobiográfi ca, mesmo aquela que se mostra<br />

avessa às “etiquet<strong>as</strong>” ou às cl<strong>as</strong>sifi cações teorétic<strong>as</strong> como “autobiografi<br />

a” (Souza, 2002). Na oc<strong>as</strong>ião, trabalhava com a poesia <strong>de</strong> Drummond,<br />

especialmente a série Boitempo, constituída <strong>de</strong> três volumes nos quais o<br />

poeta mineiro “narra” sua própria vida. Defendi a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a organização<br />

da palavra autobiográfi ca é feita na construção <strong>de</strong> um triângulo<br />

cuj<strong>as</strong> pare<strong>de</strong>s são formad<strong>as</strong> pelo Tempo, pela História e pela Memória.<br />

Os lados <strong>de</strong>sse triângulo não estão em subserviência entre si; estão, sim,<br />

imbricados uns com os outros, m<strong>as</strong>, por necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sistematização,<br />

trabalhei em se<strong>para</strong>do cada uma <strong>de</strong>ss<strong>as</strong> categori<strong>as</strong>. Refi ro esse trabalho<br />

porque é a partir <strong>de</strong>ssa arquitetura triangular que retomo meu olhar sobre<br />

a memória. No entanto, preciso isolá-la relativamente dos outros componentes<br />

da fi gura.<br />

Por outro lado, como estou pinçando o tema da memória a partir <strong>de</strong><br />

uma visada teórica sobre <strong>as</strong> escrit<strong>as</strong> autobiográfi c<strong>as</strong> – e hoje já é consenso<br />

vislumbrá-l<strong>as</strong> como construções fi ccionais <strong>de</strong> si mesmo –, <strong>de</strong> minha parte,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> o autor buscar um jogo <strong>de</strong> fi ccionalida<strong>de</strong>s <strong>para</strong> aquilo<br />

que narra como autobiografi a e congêneres, julgo que ess<strong>as</strong> estratégi<strong>as</strong><br />

narrativ<strong>as</strong> nada mais são do que jogos divertidamente sérios. Reafi rmo<br />

que o alicerce <strong>para</strong> esse tipo <strong>de</strong> narrativa (o gênero autobiográfi co) é o<br />

mesmo: a história, o tempo, a memória. O jogo, a brinca<strong>de</strong>ira, <strong>as</strong> dissimulações,<br />

os pactos <strong>de</strong> leitura são <strong>as</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> estratégi<strong>as</strong> narrativ<strong>as</strong><br />

que são reinventad<strong>as</strong> c<strong>as</strong>o a c<strong>as</strong>o. À primeira vista, são esses jogos que<br />

chamam a atenção do leitor e do crítico <strong>para</strong> a construção autobiográfi ca<br />

<strong>de</strong> <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong>, <strong>de</strong> cuja obra elejo Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>: a infância 2 ,<br />

que, ao lado <strong>de</strong> mais dois volumes, compõe sua autobiografi a.<br />

1 Doutora em letr<strong>as</strong>. Professora <strong>as</strong>sociada <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira no Instituto <strong>de</strong> Letr<strong>as</strong> e Artes e no<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Letr<strong>as</strong> da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> (FURG), Rio Gran<strong>de</strong>,<br />

Br<strong>as</strong>il. E-mail: raquelrolandos@hotmail.com.<br />

2 Estou usando precisamente a primeira edição <strong>de</strong> 2003. No entanto, como a apresentação em forma<br />

<strong>de</strong> livro foi alterada pelo poeta, não há numeração d<strong>as</strong> págin<strong>as</strong>; apen<strong>as</strong> os números romanos enumerando<br />

os episódios rememorados. Dessa maneira, forçosamente usarei como indicação d<strong>as</strong> citações os<br />

respectivos títulos que encabeçam os episódios.<br />

estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112 99


Raquel R. Souza<br />

M<strong>as</strong>, <strong>para</strong> melhor expor, quero ressaltar que a profusão <strong>de</strong> tipologi<strong>as</strong><br />

<strong>para</strong> <strong>as</strong> mais divers<strong>as</strong> linhagens da palavra autobiográfi ca tem sido a tônica<br />

nos últimos anos, tanto aqui no Br<strong>as</strong>il quanto em outros países na<br />

América e da Europa. O interessante é que esse fenômeno teórico-críticoeditorial<br />

se esten<strong>de</strong> igualmente a outr<strong>as</strong> áre<strong>as</strong> do conhecimento. M<strong>as</strong> essa<br />

seria uma discussão muito longa e que, no momento, não faz parte <strong>de</strong> minh<strong>as</strong><br />

preocupações. Explico-me um pouco melhor: não pretendo dar ênf<strong>as</strong>e<br />

às tipologi<strong>as</strong>, tais como <strong>as</strong> angústi<strong>as</strong> cl<strong>as</strong>sifi catóri<strong>as</strong> <strong>de</strong> “autobiografi a<br />

versus autofi cção” ou, ainda, os traços distintivos entre <strong>as</strong> mais divers<strong>as</strong><br />

form<strong>as</strong> autobiográfi c<strong>as</strong> <strong>para</strong> <strong>as</strong> escrit<strong>as</strong> do eu.<br />

B<strong>as</strong>ta-me a perspectiva <strong>de</strong> estar trabalhando com um texto reconhecidamente<br />

afeito à palavra autobiográfi ca, e como tal o leio. Meu <strong>de</strong>sejo<br />

é tão somente usufruir da narrativa lírica do poeta goiano e <strong>de</strong> su<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong><br />

advertidamente inventad<strong>as</strong>. Como tenho trabalhado com algum<strong>as</strong><br />

perspectiv<strong>as</strong> da Filosofi a do Imaginário e, sobretudo, com a fenomenologia<br />

<strong>de</strong> Bachelard, pergunto-me: afi nal, o que busco? A possível resposta<br />

é: recompor na memória <strong>de</strong> <strong>Manoel</strong> <strong>as</strong> minh<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong> da<br />

infância. Isso será possível porque o próprio poeta indica o caminho, pois<br />

chama su<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong> <strong>de</strong> memóri<strong>as</strong> “inventad<strong>as</strong>”. E, se são “inventad<strong>as</strong>”,<br />

o leitor também po<strong>de</strong>rá inventá-l<strong>as</strong>. Eu também.<br />

A<strong>de</strong>mais, como esboçarei adiante, me interesso por uma imagem que<br />

me acorre, a <strong>de</strong> uma chave que se encontra timidamente escondida nos capítulos<br />

<strong>de</strong>ss<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong>. Uma chave que possa abrir outra possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> leitura. Tento explicar: o subtítulo – a infância – traz um apelo muito<br />

forte, que circunscreve a memória a um tempo qu<strong>as</strong>e idílico do poeta, e<br />

que é referendado por sua poética, notadamente alicerçada em uma linguagem<br />

“primitiva” que faz referência à infância. Isso, <strong>de</strong> certo modo,<br />

direciona previamente a leitura <strong>de</strong>ss<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong>. Na contramão, busco<br />

outra perspectiva, aquela que abra <strong>para</strong> confi ssões íntim<strong>as</strong> do poeta e <strong>de</strong><br />

sua poesia, na qual a infância é apen<strong>as</strong> a referência temporal, e não seu<br />

centro irradiador. Essa imagem, a da chave, como é <strong>de</strong> se esperar <strong>de</strong>sse<br />

elemento simbólico, tanto abre quanto fecha, e também provoca questões<br />

relativ<strong>as</strong> ao pacto <strong>de</strong> leitura, tema muito afeito a ess<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong> como<br />

também a todo trabalho investigativo sobre <strong>as</strong> produções autobiográfi c<strong>as</strong>.<br />

Entretanto, penso não em um contexto <strong>de</strong> pacto <strong>de</strong> leitura propriamente<br />

dito, m<strong>as</strong> sim em uma <strong>de</strong> su<strong>as</strong> múltipl<strong>as</strong> leitur<strong>as</strong> <strong>para</strong> o verda<strong>de</strong>iramente<br />

inventado conteúdo <strong>de</strong>ss<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong>.<br />

Como uma narrativa <strong>de</strong> n<strong>as</strong>cimento, trata-se d<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong> da poesia,<br />

e não propriamente do homem, pois é na confl uência (ou será confusão?)<br />

<strong>de</strong>ste com aquela que se dão <strong>as</strong> pequen<strong>as</strong> narrativ<strong>as</strong> que compõem<br />

100 estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112


<strong>Chaves</strong> <strong>para</strong> <strong>ler</strong> <strong>as</strong> Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong><br />

o volume. A infância aparece como espaço da memória on<strong>de</strong> se fi zeram os<br />

primeiros registros do sentimento da palavra poética.<br />

A memória que se imagina<br />

É preciso escolher. Quero dizer, a categoria da memória abre seu leque<br />

e <strong>as</strong> inúmer<strong>as</strong> alternativ<strong>as</strong> exegétic<strong>as</strong> saltam com tamanha força que po<strong>de</strong>m<br />

baquear minha intenção <strong>de</strong> pensar a memória no livro <strong>de</strong> memóri<strong>as</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong>, o qual, a rigor, se sabe ter escrito (e ainda escreve)<br />

uma poesia mergulhada no memorialismo. As cl<strong>as</strong>sifi cações são variad<strong>as</strong>.<br />

Há <strong>as</strong> preocupações teóric<strong>as</strong> da memória coletiva em su<strong>as</strong> divers<strong>as</strong> acepções,<br />

<strong>as</strong>sim como os estudos relativos à memória individual em variados<br />

matizes; há igualmente trabalhos <strong>de</strong> intensa busca arqueológica <strong>para</strong> a<br />

compreensão dos processos mnemônicos; e há também aqueles em que<br />

fulguram os aportes d<strong>as</strong> ciênci<strong>as</strong> biomédic<strong>as</strong>. De minha parte, em artigo<br />

recente (2010), optei por enfrentar os <strong>de</strong>safi os da memória enten<strong>de</strong>ndo-a<br />

na sua intrínseca relação com o movimento.<br />

Memória é movimento, afi rmei anteriormente, m<strong>as</strong> um movimento<br />

que transcen<strong>de</strong> <strong>as</strong> localizações físic<strong>as</strong> do espaço e do tempo. E, por ser<br />

movimento, é também imaginação. A memória vive d<strong>as</strong> imagens que<br />

transitam do canto escuro do p<strong>as</strong>sado <strong>para</strong> <strong>as</strong> iluminações do presente.<br />

Diz o poeta-autobiógrafo: “Eu ia dizer sem pudor que o escuro me ilumina.<br />

É um <strong>para</strong>doxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor” (“<strong>Manoel</strong><br />

por <strong>Manoel</strong>”). A iluminação do presente é argumento <strong>para</strong> a “teoria dos<br />

achadouros”. Folheando <strong>as</strong> partes do livro-caixinha <strong>de</strong> <strong>Manoel</strong>, cuja composição<br />

gráfi ca mencionarei mais adiante, <strong>de</strong>paro-me com “Achadouros”,<br />

e o poeta diz:<br />

M<strong>as</strong> eu estava a pensar em achadouros <strong>de</strong> infânci<strong>as</strong>. Se a gente<br />

cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri<br />

ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do<br />

galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo <strong>de</strong> uma lagartixa.<br />

Sou hoje um caçador <strong>de</strong> achadouros <strong>de</strong> infância. Vou meio<br />

<strong>de</strong>mentado e enxada às cost<strong>as</strong> a cavar no meu quintal vestígios dos<br />

meninos que fomos (“Achadouros”).<br />

Há, por certo, uma “teoria dos achadouros”, que é atravessada pela<br />

cosmovisão do elemento terrunho. Os valores simbólicos contidos nesse<br />

fragmento são muitos, m<strong>as</strong> fi co, por enquanto, com o verbo “cavar”,<br />

que aparece du<strong>as</strong> vezes atrelado ao “buraco”: cavar um buraco no pé da<br />

goiabeira e cavar um buraco no pé do galinheiro, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> brota a criança<br />

estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112 101


Raquel R. Souza<br />

(guri) em peraltagens. É a essa memória que me refi ro. A escavação do buraco<br />

na terra, indiciando um poço, é uma linda metáfora <strong>para</strong> a memória;<br />

do escuro no fundo do poço, o adulto resgata o menino (o guri) e o traz à<br />

luz. Da memória, isto é, do poço, como uma gruta verticalizada no centro<br />

da Terra, brotam <strong>as</strong> imagens animad<strong>as</strong> pelos valores emocionais que <strong>as</strong><br />

<strong>de</strong>spertaram 3 . Bachelard (1988) dizia que a infância é o poço do ser. O<br />

adulto, que escreve su<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong> “inventad<strong>as</strong>”, tornou-se o caçador <strong>de</strong><br />

achadouros <strong>de</strong> infância 4 .<br />

Por outro lado, o poeta também abre uma interessante perspectiva<br />

acerca da memória. Ao aliá-la à terra, notadamente visível n<strong>as</strong> signifi cações<br />

do verbo “cavar” e dos substantivos “goiabeira”, “galinheiro” e “enxada”,<br />

<strong>de</strong>fi ne que os resultados <strong>de</strong> su<strong>as</strong> escavações serão “vestígios dos<br />

meninos que fomos” (“Achadouros”). Ora, tal acepção remete à forma<br />

fragmentada e imprecisa da memória, porque ela não acorre <strong>de</strong> forma<br />

inteiriça, m<strong>as</strong> sim por vestígios, isto é, r<strong>as</strong>tro, pegada, pista, como também<br />

estigma, sombra, restos. O “vestígio”, palavra altamente signifi cativa<br />

<strong>para</strong> o contexto <strong>de</strong> qualquer obra do gênero autobiográfi co, <strong>de</strong>svela, por<br />

meio do episódio “Achadouros”, o procedimento estético-emocional com<br />

o qual <strong>Manoel</strong> compôs Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>.<br />

Corroborando essa mesma linha <strong>de</strong> proposta <strong>para</strong> pensar a Memória,<br />

que na <strong>de</strong> <strong>Manoel</strong> tem o adjetivo “inventada” a lhe caracterizar, quero<br />

trazer uma linda metáfora que me dá sustentação teórica <strong>de</strong> outro ponto<br />

<strong>de</strong> vista, <strong>para</strong> ver a fi cção como íntima aliada na confecção d<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong>.<br />

Refi ro-me à imagem <strong>de</strong> afresco, como ocorreu a Stendhal; a citação é um<br />

pouco longa, m<strong>as</strong> elucidativa:<br />

Ao escrever minha vida, em 1835, fi z muit<strong>as</strong> <strong>de</strong>scobert<strong>as</strong>, <strong>de</strong> dois<br />

tipos: antes <strong>de</strong> mais nada, primeiro estão os gran<strong>de</strong>s pedaços <strong>de</strong><br />

afrescos sobre uma pare<strong>de</strong>, que costumam permanecer muito tempo<br />

esquecidos, e <strong>de</strong> repente reaparecem, e com estes pedaços bem<br />

conservados existem, como já disse vári<strong>as</strong> vezes, gran<strong>de</strong>s espaços<br />

on<strong>de</strong> não se vêem mais do que os tijolos da pare<strong>de</strong>. O revestimento,<br />

o reboco sobre o qual o afresco havia sido pintado, se <strong>de</strong>spreen<strong>de</strong><br />

3 A gruta po<strong>de</strong>, em muitos c<strong>as</strong>os, <strong>as</strong>sumir esta imagem verticalizada; <strong>para</strong> maiores observações, ver<br />

Bachelard (2003).<br />

4 Curiosamente reparo que o fragmento acima, pelo verbo cavar, remete ao capítulo “Escova”, o<br />

primeiro na sequência dos treze <strong>de</strong> que são compost<strong>as</strong> ess<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong> da infância, porque, como<br />

mencionarei adiante, o ato <strong>de</strong> cavar é aliado ao <strong>de</strong> escovar osso dos arqueólogos aos quais o poeta<br />

queria se aparentar, com “escovar palavr<strong>as</strong>”, numa alusão à metapoesia.<br />

102 estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112


<strong>Chaves</strong> <strong>para</strong> <strong>ler</strong> <strong>as</strong> Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong><br />

e cai, e o afresco se per<strong>de</strong> <strong>para</strong> sempre. Nos pedaços conservados<br />

não há dat<strong>as</strong> (Stendhal apud Miraux, 2005, p. 69, tradução minha) 5 .<br />

Na sequência da narração <strong>de</strong> Stendhal se percebe sua intenção <strong>de</strong> justamente<br />

explicar e argumentar a favor da fi ccionalida<strong>de</strong> inerente à obra<br />

autobiográfi ca. Para o escritor francês, ainda que um autor se predisponha<br />

a contar sua própria vida, forçando, <strong>as</strong>sim, uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> total fi <strong>de</strong>dignida<strong>de</strong><br />

ao p<strong>as</strong>sado, isso não é possível. Stendhal diz que não po<strong>de</strong> entregar ao<br />

leitor a realida<strong>de</strong> dos feitos, dos acontecimentos, m<strong>as</strong> sim oferecer a sombra<br />

6 <strong>de</strong>sses fatos, <strong>de</strong>sses acontecimentos. Ora, a escritura autobiográfi ca é<br />

a presença <strong>de</strong> simulacros.<br />

Miraux (2005), pensando a memória n<strong>as</strong> autobiografi <strong>as</strong>, sintetiza muito<br />

bem: diz que o esquecimento impe<strong>de</strong> a pessoa <strong>de</strong> contar a história <strong>de</strong><br />

sua vida, m<strong>as</strong> trata-se <strong>de</strong> um esquecimento fecundo, porque seleciona o<br />

essencial e apaga o episódico. E mais: é na escritura o lugar on<strong>de</strong> se produz<br />

a recordação signifi cativa da vida; o esquecimento suscita a imaginação;<br />

expõe <strong>de</strong> maneira aguda a relação entre o referencial e o poético. “Não é<br />

a exatidão dos fatos o que importa, m<strong>as</strong> o encontro do fato relatado e do<br />

imaginário, que o reproduz” (Miraux, 2005, p. 70, tradução nossa) 7 . Claro<br />

está que ess<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> nos conduzem à evi<strong>de</strong>nte fi ccionalização inerente<br />

à palavra autobiográfi ca.<br />

E volto a afi rmar: não à toa, <strong>Manoel</strong> explicita a relação da memória<br />

com a fi ccionalida<strong>de</strong>, porque intitula seu texto <strong>de</strong> “memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>”;<br />

e mais, a epígrafe <strong>de</strong> su<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong> diz: “Tudo o que não invento é falso”.<br />

Ele inverte, pelo uso da negativa como premissa básica, o que se chama <strong>de</strong><br />

“verda<strong>de</strong>”, porque o “falso” é o antônimo do “verda<strong>de</strong>iro”. Nesse jogo <strong>de</strong><br />

negativ<strong>as</strong>, o poeta reafi rma seu credo na imaginação.<br />

Eu tenho um ermo enorme <strong>de</strong>ntro do olho. Por motivo do ermo não<br />

fui um menino peralta. Agora tenho sauda<strong>de</strong> do que não fui. Acho<br />

5 “Al escribir mi vida en 1835, hice muchos <strong>de</strong>scubrimientos, <strong>de</strong> dos espécies: ante todo, primero<br />

estan los gran<strong>de</strong>s trozos <strong>de</strong> frescos sobre uma pared, los que tr<strong>as</strong> permanecer largamente olvidados,<br />

<strong>de</strong> pronto reaparecen y junto a estos trozos bien conservados hay, como lo he dicho vari<strong>as</strong> veces,<br />

gran<strong>de</strong>s espacios don<strong>de</strong> no se ven más que los ladrillos <strong>de</strong> la pared. El revestimiento, el revoque sobre<br />

el que había sido pintado el fresco se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> y cae, y el fresco se pier<strong>de</strong> <strong>para</strong> siempre. En los trozos<br />

conservados no hay fecha.”<br />

6 Ressalto que o termo, além <strong>de</strong> perigoso, admite perspectiv<strong>as</strong> teóric<strong>as</strong> distint<strong>as</strong>. Não pretendo, no<br />

momento, avançar nesse problema teórico sobre os termos “sombr<strong>as</strong>”, “simulacros”, “<strong>de</strong>vaneios”,<br />

e outros afi ns. Demarco, isso sim, que “sombra” está em referência à “imagem” do objeto, e não ao<br />

próprio, daí a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “simulacro” <strong>para</strong> <strong>as</strong> autobiografi <strong>as</strong>, i<strong>de</strong>ia esta que não carrega o sentido negativo<br />

do termo.<br />

7 “No es la exactitud <strong>de</strong> los hechos lo que importa, sino el encuentro <strong>de</strong>l hecho relatado y <strong>de</strong>l imaginario,<br />

que lo reproduce.”<br />

estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112 103


Raquel R. Souza<br />

que o que faço agora é o que não pu<strong>de</strong> fazer na infância. Faço outro<br />

tipo <strong>de</strong> peraltagem (“<strong>Manoel</strong> por <strong>Manoel</strong>”).<br />

Esse tipo <strong>de</strong> revelação está disseminado em todo o volume <strong>de</strong> su<strong>as</strong><br />

Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>. Isto é, a relação entre aquilo que não é com aquilo<br />

que ele <strong>de</strong>seja que seja: “Em vez <strong>de</strong> peraltagem eu fazia solidão. Brincava<br />

<strong>de</strong> fi ngir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um<br />

serzinho mal resolvido e igual a um fi lhote <strong>de</strong> gafanhoto” (“<strong>Manoel</strong> por<br />

<strong>Manoel</strong>”). O poeta guarda no adulto a mesma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> brincar da<br />

criança que já foi.<br />

O tempo e o não tempo<br />

Gostaria <strong>de</strong> observar que os episódios que compõem essa autobiografi<br />

a, ou “memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>”, não têm data e tampouco vêm organizados<br />

por uma linha sequencial <strong>de</strong> tempo. São, isso sim, dispostos na confecção<br />

<strong>de</strong> uma narrativa autobiográfi ca sob outro regime, o dos valores<br />

afetivo-emocionais d<strong>as</strong> <strong>de</strong>scobert<strong>as</strong> do menino e do adulto, e d<strong>as</strong> cois<strong>as</strong><br />

que vivem a poesia. E mais uma vez retorno a Bachelard: “A história <strong>de</strong><br />

nossa infância não é psiquicamente datada. As dat<strong>as</strong> são respost<strong>as</strong> a posteriori;<br />

vêm dos outros, <strong>de</strong> outro lugar, <strong>de</strong> um tempo diverso daquele que<br />

se viveu” (Bachelard, 1988, p. 100). Ess<strong>as</strong> “memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>” se realizam<br />

no <strong>de</strong>vaneio, que não tem dat<strong>as</strong>.<br />

Ele, o <strong>de</strong>vaneio, é o caminho profícuo <strong>para</strong> a realização literária, tal<br />

como foi explicitado por Bachelard. Penso, particularmente, nos conceitos<br />

“sonho <strong>de</strong>sperto” e “<strong>de</strong>vaneio” 8 . Neles, a memória é essencial. Agripina<br />

Ferreira, que dicionarizou termos do fi lósofo francês, <strong>as</strong>sim <strong>de</strong>fi ne o<br />

<strong>de</strong>vaneio:<br />

O produto do cogito <strong>de</strong> um sonhador e tem como ponto <strong>de</strong> partida<br />

alguma coisa do presente ou do p<strong>as</strong>sado (... ). As barreir<strong>as</strong> impost<strong>as</strong><br />

pelo tempo linear são superad<strong>as</strong>. As reminiscênci<strong>as</strong> <strong>de</strong> um longínquo<br />

p<strong>as</strong>sado retornam ao presente, alojando-se, abrigando-se na<br />

alma do sonhador (Ferreira, 2008, p. 57).<br />

Interessante na autobiografi a do poeta goiano é re<strong>para</strong>r que <strong>as</strong> marcações<br />

verbo-temporais vêm <strong>de</strong>clinad<strong>as</strong> no pretérito, o que <strong>de</strong> certa maneira<br />

<strong>as</strong>severa o postulado aristotélico <strong>de</strong> que “a memória é do p<strong>as</strong>sado”, como<br />

8 É preciso opor o sonho <strong>de</strong>sperto ao sonho noturno: “O sonhador do sonho noturno é uma sombra que<br />

per<strong>de</strong>u seu eu, o sonhador <strong>de</strong> <strong>de</strong>vaneio, se for um pouco fi lósofo, po<strong>de</strong>, no centro do seu eu sonhador,<br />

formular um cogito. Dito <strong>de</strong> outro modo, o <strong>de</strong>vaneio é uma ativida<strong>de</strong> onírica na qual subsiste uma clareza<br />

<strong>de</strong> consciência. O sonhador <strong>de</strong> <strong>de</strong>vaneio está presente em seu <strong>de</strong>vaneio” (Bachelard, 1988, p.13).<br />

104 estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112


<strong>Chaves</strong> <strong>para</strong> <strong>ler</strong> <strong>as</strong> Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong><br />

insistiu Ricoeur (2007, p. 35). M<strong>as</strong> o narrador que <strong>de</strong>clina no p<strong>as</strong>sado <strong>as</strong>sume<br />

também uma postura do ser <strong>de</strong>vaneante que se mantém como animus,<br />

porque <strong>de</strong>ixa bem <strong>de</strong>fi nid<strong>as</strong> <strong>as</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s do eu-do-p<strong>as</strong>sado e do<br />

eu-atual. Agripina Ferreira (2008) <strong>as</strong>sim <strong>de</strong>fi ne o verbete “animus e anima”<br />

em seu dicionário:<br />

N<strong>as</strong> profun<strong>de</strong>z<strong>as</strong> do psiquismo <strong>de</strong> todo ser humano existe um animus<br />

e uma anima. Esta dualida<strong>de</strong> está sempre presente e atuante.<br />

Nos instantes <strong>de</strong> solidão, quando o sonhador em seus <strong>de</strong>vaneios ultrap<strong>as</strong>sa<br />

o mundo da percepção, indo <strong>para</strong> um espaço imaginário,<br />

sua anima liberta, e em expansão lhe proporciona esse encantamento,<br />

fazendo-a sonhar. Ao animus pertencem tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> ativida<strong>de</strong>s do<br />

‘pensamento claro’, da razão (Ferreira, 2008, p. 23).<br />

No que concerne ao <strong>de</strong>vaneio propriamente dito, retorno ao fi lósofo<br />

francês, que dizia:<br />

O <strong>de</strong>vaneio é uma mnemotécnica da imaginação. No <strong>de</strong>vaneio<br />

retomamos contato com possibilida<strong>de</strong>s que o <strong>de</strong>stino não soube<br />

utilizar. Um gran<strong>de</strong> <strong>para</strong>doxo está <strong>as</strong>sociado aos nossos <strong>de</strong>vaneios<br />

voltados <strong>para</strong> a infância: esse p<strong>as</strong>sado morto tem em nós<br />

um futuro, o futuro <strong>de</strong> su<strong>as</strong> imagens viv<strong>as</strong> (Bachelard, 1988, p.<br />

107).<br />

A ação aconteceu no pretérito, como indica o verbo, m<strong>as</strong> seus efeitos<br />

se esten<strong>de</strong>m ao presente e, por isso, contrariando a lógica aristotélica que<br />

Ricoeur recupera, atrevo-me a dizer que a memória pertence ao presente,<br />

porque aquilo que a memória <strong>de</strong> alguma forma recupera do p<strong>as</strong>sado é<br />

reconduzido ao presente daquele que relembra. E <strong>as</strong>sim se revive outra<br />

vez e mais outra e mais outra.<br />

Em “Cabeludinho”, o narrador se localiza em um<strong>as</strong> féri<strong>as</strong> <strong>de</strong> regresso<br />

à c<strong>as</strong>a dos avós; comenta sobre a maneira <strong>de</strong> sua avó falar <strong>de</strong>slocando <strong>as</strong><br />

preposições e relembra uma pelada com a criançada, quando um menino<br />

lhe grita:<br />

– Disilimina esse, Cabeludinho. Eu não disiliminei ninguém.<br />

M<strong>as</strong> aquele verbo novo trouxe um perfume <strong>de</strong> poesia à nossa<br />

quadra. Aprendi ness<strong>as</strong> féri<strong>as</strong> a brincar <strong>de</strong> palavr<strong>as</strong> mais do que<br />

trabalhar com el<strong>as</strong>. Comecei a não gostar <strong>de</strong> palavra engavetada<br />

(“Cabeludinho”).<br />

estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112 105


Raquel R. Souza<br />

E mais: “Por <strong>de</strong>pois ouvi um vaqueiro a cantar com sauda<strong>de</strong>: Ai morena,<br />

não me escreve / que eu não sei a <strong>ler</strong>. Aquele a preposto ao verbo <strong>ler</strong>,<br />

ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro” (“Cabeludinho”).<br />

A presentifi cação <strong>de</strong>sse p<strong>as</strong>sado, que a memória inventivamente selecionou,<br />

vem no apelo do movimento do tempo pela conjugação do verbo<br />

no imperfeito do indicativo – “ampliava a solidão do vaqueiro”, pois é a<br />

mesma solidão do <strong>de</strong>vaneador da infância. Com rar<strong>as</strong> exceções, os episódios<br />

que a memória do poeta renomado reimaginou são marcados pelo<br />

mesmo tempo verbal. Isso se dá na medida em que a proposta é mesmo o<br />

relato <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminad<strong>as</strong> re<strong>de</strong>scobert<strong>as</strong> do adulto, face ao que ressignifi cou<br />

quando era o menino. A memória, na sua autobiografi a, almeja recompor<br />

a história que “explica” a poesia do velho <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong>, agora, no<br />

tempo da escrita, com oitenta e cinco anos.<br />

A chave pendurada no poeta<br />

No tempo d<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong>, usualmente se recorda a infância. A explicação<br />

é <strong>de</strong> Bachelard (1988, p. 102): “É no último quartel da vida que compreen<strong>de</strong>mos<br />

<strong>as</strong> solidões do primeiro quartel, quando a solidão da ida<strong>de</strong><br />

provecta repercute sobre <strong>as</strong> solidões esquecid<strong>as</strong> da infância”. <strong>Manoel</strong>,<br />

agora, brinca com <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, <strong>de</strong> escovar palavr<strong>as</strong>. No capítulo “Escova”,<br />

diz:<br />

É que eles queriam encontrar nos ossos vestígios <strong>de</strong> antig<strong>as</strong> civilizações<br />

que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo<br />

pensei em escovar palavr<strong>as</strong>. Porque eu havia lido em algum lugar<br />

que <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> eram conch<strong>as</strong> <strong>de</strong> clamores antigos. (...) eu já sabia<br />

também que <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> possuem no corpo muit<strong>as</strong> oralida<strong>de</strong>s remontad<strong>as</strong><br />

e muit<strong>as</strong> signifi cânci<strong>as</strong> remontad<strong>as</strong> (“Escova”).<br />

<strong>Manoel</strong> está se referindo a um episódio <strong>de</strong> sua vida em que o menino<br />

<strong>de</strong>seja realizar o mesmo trabalho dos arqueólogos: escovar osso.<br />

Trata-se, na verda<strong>de</strong>, do primeiro capítulo <strong>de</strong> su<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>.<br />

Entretanto, é um capítulo que inaugura o tema da memória no qual a seleção<br />

<strong>de</strong> imagens e sentimentos tem por critérios os valores da poesia do<br />

chão, d<strong>as</strong> formig<strong>as</strong>, da infância livre e sem com<strong>para</strong>mentos, e não os fatos<br />

que factualmente po<strong>de</strong>m ter acontecido.<br />

O livro busca a memória do poeta ao fazer poesia, reimaginando<br />

aqueles momentos inaugurais dos sentimentos e d<strong>as</strong> percepções sobre os<br />

seus tem<strong>as</strong> poéticos vigentes ainda hoje. Ele alia a memória à metapoesia,<br />

<strong>de</strong> maneira que su<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong> são <strong>as</strong> que o poeta inventa (porque<br />

106 estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112


<strong>Chaves</strong> <strong>para</strong> <strong>ler</strong> <strong>as</strong> Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong><br />

“inventad<strong>as</strong>”) no surgimento da poesia em sua vida. O que aparece por<br />

trás dos afrescos, como dizia Stendhal, não é a história do homem, m<strong>as</strong><br />

sim a história da poesia que se instala no poeta; é ela, a própria poesia,<br />

quem tem lugar <strong>de</strong> prevalência n<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong> <strong>de</strong> <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong>. Trat<strong>as</strong>e,<br />

enfi m, da memória da poesia: “Então eu trago d<strong>as</strong> minh<strong>as</strong> raízes crianceir<strong>as</strong><br />

a visão comungante e oblíqua d<strong>as</strong> cois<strong>as</strong>”, diz o poeta no capítulo<br />

que informa “<strong>Manoel</strong> por <strong>Manoel</strong>”.<br />

Já em outro, intitulado “Fr<strong>as</strong>eador”, o poeta esclarece objetivamente,<br />

<strong>de</strong>marcando <strong>as</strong> dat<strong>as</strong>: “Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta<br />

n<strong>as</strong>ceu <strong>de</strong> treze” (“Fr<strong>as</strong>eador”). Anoto que esse é o único que vem com<br />

uma data marcada, melhor dizendo, com uma referência <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, e que<br />

não é propriamente uma data. Está mais <strong>para</strong> marcar os longos anos <strong>de</strong><br />

vivência da poesia. Por outro viés, a referência aos seus treze anos como<br />

ponto inicial do poeta se repete na estruturação do livro. Certamente não<br />

é aleatório o número <strong>de</strong> capítulos – treze. Difícil precisar uma simbologia<br />

numérica unifi cada <strong>para</strong> o número treze.<br />

No entanto, ainda que na Antiguida<strong>de</strong> o número tenha sido relacionado<br />

ao mau agouro, entre <strong>as</strong> divers<strong>as</strong> cultur<strong>as</strong>, o “treze” traz consigo,<br />

<strong>de</strong> uma forma geral, uma correspondência ao recomeço após a conclusão<br />

<strong>de</strong> um ciclo a partir da relação com a Morte, o décimo terceiro arcano superior<br />

do Tarô: doze mais um (12 + 1 = 13); é a memória imaginada que<br />

localiza o fi m <strong>de</strong> um ciclo – o menino sem poesia – e o recomeço <strong>de</strong> um<br />

outro ciclo – o menino que, impregnado <strong>de</strong> poesia, inicia su<strong>as</strong> ativida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> poeta. Pois é aos treze que <strong>Manoel</strong> diz ter n<strong>as</strong>cido o poeta.<br />

M<strong>as</strong> há também a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um refazer que, como Sísifo, repete ininterruptamente<br />

ao longo dos anos o mesmo trabalho incansável – no c<strong>as</strong>o do<br />

poeta, os tem<strong>as</strong> e os seu modo peculiar <strong>de</strong> trabalhar com a palavra poética,<br />

quebrando-a e remontando-a em outr<strong>as</strong> signifi cações, isto é, o valor<br />

primitivo <strong>de</strong>l<strong>as</strong>, ou como ele mesmo chama: “escovar palavr<strong>as</strong>”. Há que<br />

lembrar, por fi m, que “na última refeição <strong>de</strong> Cristo com os seus Apóstolos,<br />

na Ceia, eram treze os presentes. A Cabala enumerava treze espíritos do<br />

mal. O décimo terceiro capítulo do Apocalipse é o do Anticristo e da Besta<br />

(Chevalier e Gheerbrant, 1997, p. 902). Essa fi guração do treze como o mal<br />

remete a valores simbólicos que parecem estar conjugados no todo da sua<br />

obra, m<strong>as</strong> que n<strong>as</strong> su<strong>as</strong> “memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>” aparecem <strong>de</strong> uma maneira<br />

mais visível como memória da poesia br<strong>as</strong>ileira.<br />

Em outro momento, intitulado “Desobjeto”, <strong>Manoel</strong> recupera uma<br />

imagem poética muito forte na poesia br<strong>as</strong>ileira – a do poeta Carlos, o<br />

gauche na vida do “Poema <strong>de</strong> sete faces”, <strong>de</strong> Drummond. E <strong>as</strong>sume, <strong>de</strong>ssa<br />

maneira, uma memória poética que há muito transita pelo tema do<br />

estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112 107


Raquel R. Souza<br />

baixo, m<strong>as</strong> que no Br<strong>as</strong>il foi mantida às escondid<strong>as</strong>, a principiar pelo Boca<br />

do Inferno, p<strong>as</strong>sando pelos poet<strong>as</strong> românticos e a poesia pornográfi ca <strong>de</strong><br />

Bernardo Guimarães, chegando, evi<strong>de</strong>ntemente, a Augusto dos Anjos.<br />

Com o Mo<strong>de</strong>rnismo, c<strong>as</strong>o <strong>de</strong> Drummond, <strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>ira e <strong>de</strong> tantos<br />

outros, o tema do baixo em todos os seus matizes foi per<strong>de</strong>ndo a aura<br />

<strong>de</strong> maldição e ganhou foros <strong>de</strong> afeição aos “<strong>de</strong>sobjetos”, como lhes chama<br />

o <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong>: “O menino que era esquerdo e tinha cacoete<br />

pra poeta, justamente ele enxergara o pente naquele estado terminal”<br />

(Desobjeto). Não faltam, nessa composição, alguns elementos simbólicos<br />

muito presentes em sua poesia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Poem<strong>as</strong> concebidos sem pecados (1937)<br />

até Menino do mato (2010). O caramujo, o sapo, <strong>as</strong> camad<strong>as</strong> <strong>de</strong> areia, <strong>as</strong><br />

formig<strong>as</strong>, o musgo, o osso, o lagarto 9 são todos substantivos que comandam<br />

<strong>as</strong> imagens poétic<strong>as</strong> da memória <strong>de</strong> <strong>Manoel</strong>, ou como ele adverte na<br />

“Entrada” à sua Poesia completa: “Então comecei a fazer <strong>de</strong>senhos verbais<br />

<strong>de</strong> imagens” (2010, p. 7).<br />

Corroborando, saliento que é sintomático o capítulo “Obrar”, que recupera<br />

pela memória afetiva do aprendizado os valores que irão ajudar o<br />

poeta, no futuro, a compor sua obra poética. Em su<strong>as</strong> Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>,<br />

a modo <strong>de</strong> metapoesia, <strong>Manoel</strong> elege o episódio singular ocorrido numa<br />

tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> outono, ao pé da roseira <strong>de</strong> sua avó. O fato sobre o qual a memória<br />

“inventa” todo o resto foi o ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>fecar no pé da roseira. O eu-lírico<br />

(nesse episódio o autor adotou o formato poemático) explicita <strong>as</strong> signifi -<br />

cações do verbo “obrar”, que dá título ao capítulo, adotando seu sentido<br />

popular e rural. Naturalmente o tema não parece muito sugestivo <strong>para</strong><br />

compor um poema, m<strong>as</strong> ele o faz <strong>para</strong> reafi rmar su<strong>as</strong> escolh<strong>as</strong> temátic<strong>as</strong>,<br />

<strong>as</strong> quais são marcad<strong>as</strong> pela aparente singeleza d<strong>as</strong> imagens como também<br />

por um intrínseco entrelaçamento do alto (o tema da roseira) com o do<br />

baixo (<strong>de</strong>fecar em seu pé). Diz o poeta:<br />

Eu só obrei no pé da roseira da minha avó<br />

(...)<br />

Daí que também a avó me ensinou a não <strong>de</strong>sprezar <strong>as</strong> cois<strong>as</strong><br />

Desprezíveis<br />

E nem os seres <strong>de</strong>sprezíveis<br />

(“Obrar”).<br />

9 Lembro, neste momento, que Drummond, em sua autobiografi a, a série Boitempo, <strong>de</strong>dica um poema<br />

a sua insistente prática no quintal da c<strong>as</strong>a paterna em catar cacos <strong>de</strong> vidros enterrados pelo tempo e<br />

pelos moradores do sobrado mineiro. Solitário na brinca<strong>de</strong>ira, também era visto como um “esquerdo”<br />

entre os seus familiares. Ver Souza (2002).<br />

108 estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112


<strong>Chaves</strong> <strong>para</strong> <strong>ler</strong> <strong>as</strong> Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong><br />

As rememorações do poeta adulto reiluminam o menino quando este<br />

<strong>de</strong>scobre a literatura, e sugerem explicações <strong>para</strong> seu fazer poético. O capítulo<br />

“Parrre<strong>de</strong>!”, na sequência <strong>de</strong> “Desobjeto”, igualmente reverbera a<br />

memória da poesia. Adotando uma forma poemática mais visível, porque<br />

feita <strong>de</strong> versos, ainda que livres, o eu-lírico <strong>de</strong>clinado no pretérito localiza<br />

temporalmente através da memória, pela conjunção temporal “quando” –<br />

o espaço do acontecimento –, o colégio interno. Sob pretexto da <strong>de</strong>scoberta<br />

do prazer solitário da m<strong>as</strong>turbação, o menino-<strong>Manoel</strong> foi penalizado<br />

com a leitura, também solitária, dos Sermões <strong>de</strong> Padre Vieira: “Aprendi a<br />

gostar do equilíbrio sonoro d<strong>as</strong> fr<strong>as</strong>es. / Gostar qu<strong>as</strong>e até do cheiro d<strong>as</strong><br />

letr<strong>as</strong>” (“Parrre<strong>de</strong>!”). A leitura dos Sermões carrega a memória do prazer.<br />

A chave e a caixinha do <strong>Manoel</strong><br />

Na tangência da memória com o tempo e com a história, arquitetura<br />

fundamental <strong>para</strong> a palavra autobiográfi ca, pergunto-me mais uma vez:<br />

e a memória, como é a memória daquele que se joga à palavra admitida<br />

como autobiográfi ca? Como a memória atua n<strong>as</strong> mentes dos poet<strong>as</strong> que<br />

têm, por natureza do lírico, certa difi culda<strong>de</strong> em inserir-se no <strong>de</strong>curso <strong>de</strong><br />

tempo e que, em geral também não se preocupam com a historicida<strong>de</strong>?<br />

Pinçando algum<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> <strong>de</strong> Todorov (2000), relembro que a memória<br />

não se opõe ao esquecimento; antes, os termos mais ajustados <strong>para</strong><br />

se contraporem são a “supressão” e a “conservação”, da mesma maneira<br />

como exemplifi ca a metáfora <strong>de</strong> Stendhal antes mencionada. É na interação<br />

<strong>de</strong>sses dois movimentos que a memória é produzida, porque o<br />

restabelecimento integral do p<strong>as</strong>sado é uma impossibilida<strong>de</strong>. Aliás, Jean<br />

Pouillon (1974) já fez essa observação há alguns anos, quando esclareceu<br />

que aquilo que a memória estrita traz é a mentira.<br />

Contudo, Todorov reitera algo que há muito já se sabe, isto é, que a<br />

memória é uma seleção, e só se conserva aquilo que se elege. E mais ainda:<br />

como a memória é um ato seletivo, essa seleção é feita a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />

critérios, os quais, conscientes ou não, servirão igualmente <strong>para</strong><br />

a utilização que faremos do p<strong>as</strong>sado (Todorov, 2000, p. 16). E, por fi m, <strong>de</strong><br />

Todorov interessa-me ressaltar que “a memória não é responsável apen<strong>as</strong><br />

por noss<strong>as</strong> convicções, m<strong>as</strong> também por nossos sentimentos” (Todorov,<br />

2000, p. 26, tradução nossa) 10 .<br />

10 “La memoria no es sólo responsable <strong>de</strong> nuestr<strong>as</strong> convicciones sino también <strong>de</strong> nuestros sentimientos.”<br />

estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112 109


Raquel R. Souza<br />

Certo é que o poeta goiano, ao conservar <strong>de</strong>terminados episódios em<br />

<strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outros, conscientemente selecionou aquilo que lhe servirá<br />

como explicativo <strong>de</strong> sua poética. Esses são seus critérios <strong>para</strong> a sua<br />

memória, critérios que são reiterados sob o tema da metapoesia. Curioso<br />

notar que ele segue na contramão do usual d<strong>as</strong> autobiografi <strong>as</strong> contemporâne<strong>as</strong>,<br />

porque não esboça dúvid<strong>as</strong> quanto àquilo que preten<strong>de</strong> narrar<br />

como seu próprio aprendizado, muito menos a angustiosa perquirição do<br />

eu. O narrador não se questiona, não titubeia, não condiciona sua palavra<br />

autobiográfi ca a nada. Ele não está preocupado em reviver o p<strong>as</strong>sado <strong>para</strong><br />

encontrar explicações <strong>para</strong> seu presente. É opinião <strong>de</strong> Miraux que a escritura<br />

autobiográfi ca mo<strong>de</strong>rna é intersticial, elíptica, e que esses elementos<br />

“convertem-se na própria condição da escrita autobiográfi ca, que <strong>de</strong>senvolve<br />

uma obra mais próxima do fragmentário, da seleção, da coletânea,<br />

do que do fl uxo da narração exata” (Miraux, 2005, p. 73, tradução nossa) 11 .<br />

M<strong>as</strong> esse não é o c<strong>as</strong>o <strong>de</strong> <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong>.<br />

Ess<strong>as</strong> últim<strong>as</strong> observações que aponto, funcionam como uma espécie<br />

<strong>de</strong> chave <strong>para</strong> repensar a memória na palavra autobiográfi ca <strong>de</strong> <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Barros</strong>. Explico-me melhor: além dos tradicionais relatos sobre a infância<br />

<strong>de</strong> um menino, mergulhado em um Br<strong>as</strong>il semiurbano, semirrural, como<br />

é frequente n<strong>as</strong> autobiografi <strong>as</strong> <strong>de</strong> poet<strong>as</strong> relativamente contemporâneos<br />

a <strong>Manoel</strong>, ess<strong>as</strong> Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong> trazem uma corporifi cação diferente.<br />

Seu tema central é o n<strong>as</strong>cimento da poesia; o menino <strong>de</strong> su<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong><br />

só tem existência na confl uência da <strong>de</strong>scoberta da literatura e seus tem<strong>as</strong><br />

poéticos; melhor dito, n<strong>as</strong> ressignifi cações <strong>para</strong> aquilo que sempre foi <strong>de</strong>sprezado<br />

pelo cânone. A memória do velho <strong>Manoel</strong> obe<strong>de</strong>ce ao critério da<br />

seleção <strong>de</strong> imagens n<strong>as</strong> quais os valores afetivos <strong>de</strong>marcam a poesia que<br />

surge d<strong>as</strong> pequen<strong>as</strong> cois<strong>as</strong>, dos seres ínfi mos. E, como o foco irradiador<br />

<strong>de</strong>ss<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong> é a poesia ela mesma, todo o <strong>de</strong>mais será marcado pela<br />

diferenciação.<br />

Vou ao livro e sinto no tato e na visão o diferencial nesse volume <strong>de</strong><br />

memóri<strong>as</strong>. A memória emerge do p<strong>as</strong>sado por meio <strong>de</strong> imagens, m<strong>as</strong><br />

imagens em movimento, <strong>as</strong> quais, mergulhad<strong>as</strong> em um tempo vertical 12 ,<br />

comportam também um tempo horizontal, porque cada imagem narra<br />

um episódio signifi cativo d<strong>as</strong> vivênci<strong>as</strong> do menino <strong>Manoel</strong> que se presentifi<br />

cam no poeta <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong>.<br />

Esse livro <strong>de</strong> memóri<strong>as</strong> é composto por treze capítulos e um preâmbulo.<br />

Cada capítulo vem precedido <strong>de</strong> uma ilustração específi ca. E mais<br />

11 “Convierten en la propia condición <strong>de</strong> la escritura autobiográfi ca, que se <strong>de</strong>sarrolla una obra más<br />

cercana a lo fragmentario, a la selección, al fl orilegio que al cauce continuo <strong>de</strong> la narración exacta.”<br />

12 Lembro aqui <strong>as</strong> referênci<strong>as</strong> ao binômio tempo vertical e tempo horizontal proposto por Bachelard,<br />

conforme referi em meu artigo “Memória e imaginário” (Souza, 2010).<br />

110 estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112


<strong>Chaves</strong> <strong>para</strong> <strong>ler</strong> <strong>as</strong> Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong><br />

ainda: o <strong>as</strong>pecto formal com que foram planejad<strong>as</strong> su<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong>, na<br />

edição original, apresenta os capítulos em folh<strong>as</strong> solt<strong>as</strong> e se<strong>para</strong>d<strong>as</strong>, porém<br />

acondicionad<strong>as</strong> em uma caixinha. Não há numeração corriqueira<br />

d<strong>as</strong> págin<strong>as</strong>, apen<strong>as</strong> os números em romanos <strong>para</strong> indicar uma sequência<br />

que sequer segue uma linha <strong>de</strong> composição histórica. Os episódios são<br />

manuseados pelo leitor, que <strong>para</strong> lê-los necessita retirá-los <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da<br />

caixinha. Esse ato, qu<strong>as</strong>e involuntário, provoca uma intimida<strong>de</strong> acima do<br />

usual entre o poeta e seu leitor, porque o manuseio d<strong>as</strong> partes constitutiv<strong>as</strong><br />

d<strong>as</strong> Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong> implica o estranhamento característico com<br />

que sua obra tem sido recebida tanto pela crítica quanto pelos leitores <strong>de</strong><br />

poesia.<br />

O que impulsiona a memória <strong>de</strong> <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong> são os valores vividos,<br />

m<strong>as</strong> são valores referidos à poesia em possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> form<strong>as</strong> e <strong>de</strong><br />

tem<strong>as</strong>, e não à infância no sentido estrito do termo. Bachelard dizia que<br />

o p<strong>as</strong>sado não é estável e que acorre à memória sempre <strong>de</strong> maneira diferente.<br />

Para ir à memória mais profunda, é preciso reencontrar, <strong>para</strong> muito<br />

além dos fatos, os valores que fi caram. Afi rma o fi lósofo:<br />

Para constituir a poética <strong>de</strong> uma infância evocada num <strong>de</strong>vaneio,<br />

cumpre dar às lembranç<strong>as</strong> sua atmosfera <strong>de</strong> imagem (...) o p<strong>as</strong>sado<br />

rememorado não é simplesmente um p<strong>as</strong>sado da percepção. Já<br />

num <strong>de</strong>vaneio, uma vez que nos lembramos, o p<strong>as</strong>sado é <strong>de</strong>signado<br />

como valor <strong>de</strong> imagem (Bachelard, 1988, p. 99).<br />

A memória é uma imagem. A memória <strong>de</strong> <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong> busca <strong>as</strong><br />

imagens da sua poesia. E, como imagens, surgem <strong>de</strong> capítulo em capítulo,<br />

formando, cada uma <strong>de</strong>l<strong>as</strong>, um pequeno mundo in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Não<br />

à toa, o livro obe<strong>de</strong>ce a essa estrutura <strong>de</strong> blocos autônomos. Cada parte<br />

tem sua imagem nuclear e seus “ensinamentos”. Estão <strong>as</strong>sim dispostos:<br />

“Escova”, “Obrar”, “Desobjeto”, “Parrre<strong>de</strong>!”, “Ver”, “O lavador <strong>de</strong> pedra”,<br />

“Fr<strong>as</strong>eador”, “Achadouros”, “Sobre sucat<strong>as</strong>”, “Cabeludinho”, “O apanhador<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdícios”, “Brinca<strong>de</strong>ir<strong>as</strong>”, “A rã”, “C<strong>as</strong>o <strong>de</strong> amor” e “Lat<strong>as</strong>”,<br />

perfazendo treze imagens, treze memóri<strong>as</strong>. E, como já mencionei anteriormente,<br />

treze é a ida<strong>de</strong> em que n<strong>as</strong>ceu o poeta.<br />

Referênci<strong>as</strong><br />

BARROS, <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> (2003). Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>: a infância. São Paulo:<br />

Planeta.<br />

________ (2010). Poesia completa. São Paulo: Leya.<br />

BACHELARD, G<strong>as</strong>ton (1988). A poética do <strong>de</strong>vaneio. São Paulo: Martins Fontes.<br />

CHEVALIER, Jean ; GHEERBRANT, Alain (1997). Dicionário <strong>de</strong> símbolos. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: José Olympio.<br />

estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112 111


Raquel R. Souza<br />

FERREIRA, Agripina (2008). Dicionário <strong>de</strong> imagens, símbolos, mitos, termos e conceitos<br />

bachelardianos. Londrina: EDUEL.<br />

LURKER, Manfred (2003). Dicionário <strong>de</strong> simbologia. São Paulo: Martins Fontes.<br />

MIRAUX, Jean-Philippe (2005). La autobiografía: l<strong>as</strong> escritur<strong>as</strong> <strong>de</strong>l yo. Buenos<br />

Aires: Nueva Visión.<br />

SOUZA, Raquel R. (2002). Boitempo: A poesia autobiográfi ca <strong>de</strong> Drummond. Rio<br />

Gran<strong>de</strong>: Editora da FURG.<br />

________ (2010). “Memória e imaginário”. In: BERND, Zilá (org.). Dicionário<br />

<strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>s culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis.<br />

RICOEUR, Paul (2007). A memória, a história, o esquecimento. Campin<strong>as</strong>: Editora<br />

da Unicamp.<br />

TODOROV, Tzvetan (2000). Los abusos <strong>de</strong> la memória. Barcelona: Paidós.<br />

Recebido em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2011.<br />

Aprovado em março <strong>de</strong> 2012.<br />

resumo/abstract<br />

<strong>Chaves</strong> <strong>de</strong> memóri<strong>as</strong> em Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>, <strong>de</strong> <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong><br />

Raquel R. Souza<br />

Elegendo o livro Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>: a infância, do poeta goiano <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Barros</strong>, o artigo preten<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ter na memória e observar os mecanismos por meio<br />

dos quais ela atua. A partir do pressuposto básico <strong>de</strong> que a memória é imaginação,<br />

busca-se o apoio teórico da fenomenologia <strong>de</strong> G<strong>as</strong>ton Bachelard, relevantemente<br />

em um <strong>de</strong> seus últimos textos no qual se <strong>de</strong>dica ao exame do <strong>de</strong>vaneio e do<br />

<strong>de</strong>vaneio sobre a infância. Ao mesmo tempo, ressaltar-se-á a face referencial da<br />

metapoesia como foco irradiador <strong>de</strong>ss<strong>as</strong> memóri<strong>as</strong>.<br />

Palavr<strong>as</strong>-chave: vestígios memoriais, memória e imaginário, <strong>de</strong>vaneio e memória,<br />

memória da poesia, <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong>.<br />

Keys memories in Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>, by <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong><br />

Raquel R. Souza<br />

Electing the book Memóri<strong>as</strong> inventad<strong>as</strong>: a infância, by Brazilian poet <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Barros</strong>, from the state of Goiás, the article intends to observe memory and <strong>as</strong>sess<br />

the mechanisms through which it operates. From the b<strong>as</strong>ic <strong>as</strong>sumption that<br />

memory is imagination, we search the theoretical support of the Phenomenology<br />

studies of G<strong>as</strong>ton Bachelard, relevantly in one of his l<strong>as</strong>t texts, which is <strong>de</strong>dicated<br />

to the examination of daydreaming and daydreaming about childhood. At the<br />

same time, we highlight the face of referential metapoetry <strong>as</strong> a focus of radiaton<br />

of those memories.<br />

Keywords: memory traces, memory and imaginary, daydreaming and memory,<br />

memory of poetry, <strong>Manoel</strong> <strong>de</strong> <strong>Barros</strong>.<br />

112 estudos <strong>de</strong> literatura br<strong>as</strong>ileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 99-112

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!