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A edição popular no Brasil - Grupo de Estudos em Literatura ...

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A <strong>edição</strong> <strong>popular</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>:o caso da literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>lVilma Mota QuintelaA história da <strong>edição</strong> <strong>popular</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> está ainda por ser escrita.Até o momento, <strong>em</strong> <strong>no</strong>sso meio, relativamente pouco ou quase nada sepublicou sobre a <strong>edição</strong> <strong>popular</strong> e os editores que aqui se especializaramna produção <strong>de</strong> livros ou brochuras <strong>de</strong> preço relativamente acessível,direcionaram tais tipos <strong>de</strong> obra a um público <strong>de</strong> leitores comuns, s<strong>em</strong>iletradose <strong>de</strong> baixo po<strong>de</strong>r aquisitivo. No entanto, <strong>em</strong>bora, <strong>de</strong> modo geral,me<strong>no</strong>sprezada pelas instituições do saber dominante, essa prática, quenão é tão antiga <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> quanto <strong>em</strong> alguns países da Europa, constituiuma parte relevante da <strong>no</strong>ssa história cultural. De fato, se observamos<strong>no</strong>ssa vida literária <strong>em</strong> perspectiva histórica, levando <strong>em</strong> consi<strong>de</strong>ração adiversida<strong>de</strong> dos leitores que a integra, isto é, mirando além ou aquém doleitor padrão ou i<strong>de</strong>al, v<strong>em</strong>os ressaltar a importância <strong>de</strong>ssas iniciativaseditoriais para a formação do público leitor <strong>de</strong> um modo geral. É certoque uma cultura literária, <strong>em</strong> qualquer parte do mundo, não se constituigraças unicamente às obras selecionadas pela instituição escolar, pelahistoriografia e pela crítica literária ou, <strong>de</strong> modo geral, pelas instituiçõesculturais dominantes.Consi<strong>de</strong>rando, pois, esse aspecto, ressalta-se a importância <strong>de</strong> umahistória literário-cultural crítica e abrangente, que leve <strong>em</strong> conta, além dasobras <strong>de</strong>correntes do sist<strong>em</strong>a literário oficial, a produção literária <strong>de</strong>rivadadas diversas práticas editoriais que concorr<strong>em</strong> para a constituição docampo literário <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. Nessa história, haveria <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar, porex<strong>em</strong>plo, iniciativas como a do editor Pedro Quaresma, do Rio <strong>de</strong> Janeiro,pioneiro na publicação <strong>de</strong> modinhas <strong>popular</strong>es e <strong>de</strong> histórias <strong>de</strong>dicadasao público infantil. Haveria <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar a atuação <strong>de</strong> editoras comoa H. Antunes e a Modinha Popular, ambas também do Rio <strong>de</strong> Janeiro;a Tipografia Editora Souza, <strong>de</strong> São Paulo, além da Livraria EditoraGuajarina, do Pará, e da Popular Editora, da Paraíba, entre outras, que,<strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, contribuíram para a formação <strong>de</strong> um públicoleitor pouco ou nada escolarizado, sumariamente ig<strong>no</strong>rado pela práticalivresca dominante.Cumpre ressaltar: uso aqui o termo “literatura” tomando como parâmetrouma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gêneros concorrentes, incluindo os gêneros literárioscanônicos e a produção <strong>de</strong>stinada ao consumo <strong>em</strong> massa. Ao assim41


Vilma Mota Quintelaproce<strong>de</strong>r, parto do pressuposto <strong>de</strong> que os valores estéticos que, <strong>em</strong> parte,justificam a escolha dos autores e obras que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> integrar a histórialiterária canônica não se encontram dissociadas das práticas e mediaçõessociais que condicionam a sua inserção <strong>em</strong> um contexto <strong>de</strong> produçãomais amplo, <strong>em</strong> que se situam, <strong>em</strong> posições concorrentes, produçõesliterárias diferenciadas. Tal ponto <strong>de</strong> vista não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser relevante paraa compreensão da vida literária <strong>de</strong> um país, b<strong>em</strong> como do jogo <strong>de</strong> relaçõessociais que <strong>de</strong>terminam as posições dominantes <strong>no</strong> seu campo literário,consi<strong>de</strong>rando-se não apenas o sist<strong>em</strong>a literário heg<strong>em</strong>ônico. Cumprel<strong>em</strong>brar que a existência <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a literário <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> não apenas <strong>de</strong>leitores e escritores ligados por uma linguag<strong>em</strong> comum, mas também <strong>de</strong>uma série <strong>de</strong> instituições sociais que o legitima ou não, <strong>de</strong>finindo o lugaralém ou aquém que as diversas produções literárias <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ocupar nahierarquia cultural. Além disso, toda produção literária <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> umsist<strong>em</strong>a editorial que, por mais mo<strong>de</strong>sto que seja, possa fazê-la circular,tendo <strong>em</strong> vista um grupo específico <strong>de</strong> leitores disponíveis <strong>no</strong> mercadoou um público possível, ainda por se instituir. Desse ponto <strong>de</strong> vista, ahistória da <strong>edição</strong> <strong>popular</strong> representa uma parte importante da histórialiterário-cultural brasileira, dado o seu papel na formação <strong>de</strong> um públicoleitor diversificado, s<strong>em</strong> o qual a instituição do campo literário não seriapossível.Uso aqui a expressão “campo literário” <strong>no</strong> sentido <strong>em</strong>pregado porBourdieu (1992) <strong>em</strong> sua “teoria dos campos”, mais especificamente<strong>no</strong> estudo sobre a gênese do campo literário. Nesse sentido, o “campoliterário” se <strong>de</strong>fine como um espaço simbólico <strong>em</strong> que se trava a lutapor posições previamente instituídas (a posição do autor, do crítico, doeditor etc.). Enquanto realida<strong>de</strong> simbólica mutável, o campo literáriose caracterizada pelas relações objetivas entre seus diferentes agentes(autores, editores, críticos, produtores etc.) que negociam um lugar nessaesfera <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>. A sua existência implica a luta ou o <strong>em</strong>bate entre“tomadas <strong>de</strong> posição” diferenciadas. Por ex<strong>em</strong>plo, a tomada <strong>de</strong> posição<strong>de</strong> um agente <strong>no</strong> campo literário como autor, editor ou produtor <strong>de</strong> modogeral, é, por um lado, condicionada pelas regras dominantes <strong>no</strong> espaçosocial <strong>em</strong> que essa tomada <strong>de</strong> posição se torna possível; e, por outro, pelasdisposições culturais que esse agente traz consigo para essa posição. Ocampo literário se <strong>de</strong>fine, pois, como um espaço simbólico, um campo<strong>de</strong> luta <strong>no</strong> qual seus agentes, <strong>de</strong> acordo com a posição que ocupam ecom o espaço social <strong>em</strong> que atuam, <strong>de</strong>terminam, validam, legitimam ou<strong>de</strong>negam a valida<strong>de</strong> das representações simbólicas que a ele concorr<strong>em</strong>.A teoria <strong>de</strong> Pierre Bourdieu divi<strong>de</strong> o campo da produção literária42


A <strong>edição</strong> <strong>popular</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong><strong>em</strong> dois gran<strong>de</strong>s subsist<strong>em</strong>as: o da produção restrita, que se caracterizapela <strong>de</strong>negação “vanguardista” do lucro imediato e das motivaçõeseconômicas dos produtores, dirigidas prioritariamente aos seus pares; eo da produção <strong>em</strong> larga escala, impulsionada pelas leis do mercado, quese traduz nas obras <strong>de</strong> consumo fácil, <strong>de</strong>stinadas ao público <strong>em</strong> geral.Para cont<strong>em</strong>plarmos o caso da produção literária brasileira, po<strong>de</strong>ríamosacrescentar uma terceira categoria. Nela, po<strong>de</strong>ríamos incluir a literatura <strong>de</strong>cor<strong>de</strong>l, que se situa, por assim dizer, “entre lugar cultural”, encontrandosena fronteira entre a produção <strong>de</strong> consumo fácil, excluída do rol dasobras <strong>de</strong> valor literário reconhecido, e o cult, que <strong>em</strong>bora <strong>popular</strong>, <strong>no</strong>que diz respeito à linguag<strong>em</strong> e à forma <strong>de</strong> consumo, distingue-se comoprodução elevada à condição <strong>de</strong> clássico cultural. Enquanto tal, isto é,enquanto produção legitimada por experts como obra <strong>de</strong> valor cultural, ocor<strong>de</strong>l ten<strong>de</strong> a se expandir, cont<strong>em</strong>poraneamente, como se po<strong>de</strong> observar,para muito além <strong>de</strong> sua mídia original, encontrando espaço, pouco apouco, <strong>no</strong> campo da produção literária restrita. Fortalecendo-se a partirdo diálogo que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua orig<strong>em</strong>, seus produtores mantiveram comos seus outros culturais, o cor<strong>de</strong>l, não obstante, resiste como um sist<strong>em</strong>aliterário relativamente autô<strong>no</strong>mo, que, ainda que mo<strong>de</strong>stamente, concorrecom os sist<strong>em</strong>as literários, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, dominantes paraa constituição do campo literário brasileiro como um todo (Bourdieu,1992).Posto isso, cumpre ressaltar que o advento do cor<strong>de</strong>l brasileiro como umsist<strong>em</strong>a literário relativamente autô<strong>no</strong>mo relaciona-se, fundamentalmente,com a história da <strong>edição</strong> <strong>popular</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. Nesta, como foi dito acima,<strong>de</strong>staca-se como pioneira a Livraria Editora Quaresma, que atuou <strong>no</strong> Rio<strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as últimas décadas do século XIX até meados do séculoXX. No cenário da belle époque carioca, dominado por editoras estrangeiras,tais como a La<strong>em</strong>mert, a Garnier e a Francisco Alves, que atendiamsobretudo a uma elite cultural e econômica, o brasileiro Pedro Quaresmase estabeleceu, <strong>no</strong> final da década <strong>de</strong> 1870, difundindo, <strong>em</strong> várias partesdo <strong>Brasil</strong>, incluindo o Nor<strong>de</strong>ste, uma literatura feita <strong>em</strong> boa parte <strong>de</strong>encomenda para aten<strong>de</strong>r a um público s<strong>em</strong>iletrado, então, <strong>em</strong>ergente. Oadvento <strong>de</strong>ssa editora não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um produto da <strong>popular</strong>ização doimpresso <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, entre as últimas décadas do século XIX e as primeirasdécadas do século seguinte, ao qual, necessariamente, o surgimento docor<strong>de</strong>l está relacionado (Brito Broca, 1975), (Brito Broca, 1994) (Oliveira,2002). A propósito, Brito Broca (1975) ressalta a importância <strong>de</strong> PedroQuaresma como editor especializado na publicação <strong>de</strong> livros <strong>de</strong> modinhas<strong>popular</strong>es, poesia sertaneja, humor, crendices e literatura para crianças.43


Vilma Mota QuintelaDiz o autor:A Livraria Quaresma merece uma referência mais <strong>de</strong>talhada pelasi<strong>no</strong>vações que introduziu. Tendo <strong>em</strong> vista a pouca cultura do <strong>no</strong>ssopovo, Pedro da Silva Quaresma, que se instalara, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1879, narua São José, compreen<strong>de</strong>u que o meio <strong>de</strong> levá-lo ao livro eradar-lhe leitura fácil, amena ou <strong>de</strong> interesse prático, mas <strong>de</strong> cunhoessencialmente <strong>popular</strong>, ao alcance <strong>de</strong> qualquer um e <strong>em</strong> brochuras<strong>de</strong> preço módico. Daí o verda<strong>de</strong>iro gênero por ele criado entrenós, e o rótulo <strong>de</strong> “<strong>edição</strong> Quaresma”, que passou a <strong>de</strong>signar, <strong>de</strong>maneira geral, as edições <strong>popular</strong>es para o gran<strong>de</strong> público. Algunsescritores <strong>de</strong> terceira categoria forneciam-lhe essa subliteraturaque ele espalhava, com gran<strong>de</strong> êxito, por todos os cantos do <strong>Brasil</strong>.Em qualquer velha residência lá pelos sertões da Bahia ou pelo<strong>no</strong>rte <strong>de</strong> Minas ainda é fácil <strong>de</strong>scobrir-se até hoje, num canto <strong>de</strong>gaveta, alguma <strong>de</strong>ssas “edições Quaresma”. O leitor iletrado nelasencontrava um precioso el<strong>em</strong>ento, que po<strong>de</strong>ria, certamente, atraí-lopara um nível me<strong>no</strong>s primário. (Brito Broca, 1975, p. 143)Como afirma o autor, as edições Quaresma tornaram-se referênciapara as edições do gênero. Pedro Quaresma, cuja livraria editora se tor<strong>no</strong>uponto <strong>de</strong> frequentação, não apenas do vulgo, mas também <strong>de</strong> intelectuaiscomo Machado <strong>de</strong> Assis e Olavo Bilac, divulgou, <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, a fórmula dolivro <strong>popular</strong>, posteriormente aproveitada por editoras <strong>popular</strong>es como aparaibana Popular Editora, <strong>de</strong> Francisco das Chagas Batista, e a paraenseGuajarina, <strong>de</strong> Francisco Lopes, que tiveram papel prepon<strong>de</strong>rante <strong>no</strong>estabelecimento do mercado literário do cor<strong>de</strong>l <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> na primeirameta<strong>de</strong> do século XX. Conquanto tenham se especializado na publicaçãoda literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l, essas editoras também fizeram circular umaprodução diversa <strong>de</strong>stinada ao vulgo. Chagas Batista (1882-1930)manteve na linha <strong>de</strong> produção, além da coleção <strong>de</strong>dicada ao cor<strong>de</strong>l, aque ele intitulou <strong>de</strong> “<strong>Literatura</strong> Popular”, material para fins comerciaise didáticos, como também os chamados “livros <strong>de</strong> prateleira”, que eramedições <strong>popular</strong>es <strong>de</strong> romances e <strong>no</strong>velas <strong>em</strong> circulação <strong>no</strong> mercadolivresco geral. Já o pernambuca<strong>no</strong> Francisco Lopes (1883-1947), da Guajarina,manteve duas linhas editoriais principais: o cancioneiro <strong>popular</strong> urba<strong>no</strong>,representado pelas modinhas e canções seresteiras à moda carioca, e aliteratura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l. No que diz respeito à linha <strong>de</strong> produção, observasecerta afinida<strong>de</strong> entre essas editoras <strong>popular</strong>es, respectivamente, doNor<strong>de</strong>ste e do Norte do país, e as editoras do Su<strong>de</strong>ste, especializadas na<strong>edição</strong> <strong>de</strong> obras <strong>popular</strong>escas, como a H. Antunes e a Modinha Popular,que incluíram o cor<strong>de</strong>l <strong>no</strong>r<strong>de</strong>sti<strong>no</strong> <strong>em</strong> sua linha <strong>de</strong> produção <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s44


A <strong>edição</strong> <strong>popular</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>1950. O mesmo se <strong>de</strong>u com a editora Prelúdio, hoje, editora Luzeiro,<strong>de</strong> São Paulo. Agregando ao seu catálogo uma literatura diversificada(que vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> livros <strong>de</strong> ocultismo até histórias <strong>de</strong>stinadas ao públicoinfantil), a editora incorporou o cor<strong>de</strong>l <strong>no</strong>r<strong>de</strong>sti<strong>no</strong>, também na década <strong>de</strong>1950, e figurou, dos a<strong>no</strong>s 1970 até, pelo me<strong>no</strong>s, a década passada, como aprincipal editora do gênero <strong>no</strong> país.No que diz respeito à história da <strong>edição</strong> <strong>popular</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, é precisosublinhar a <strong>em</strong>presa <strong>de</strong> João Martins Athay<strong>de</strong>, que expandiu o mercadodo cor<strong>de</strong>l para além do Norte e do Nor<strong>de</strong>ste brasileiros, tornando-o umfenôme<strong>no</strong> <strong>popular</strong> nacional entre os a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> 1930 e 1940. Ao contrário <strong>de</strong>Chagas Batista e Francisco Lopes, Athay<strong>de</strong> especializou-se exclusivamentena produção <strong>de</strong> cordéis, tendo aperfeiçoado a fórmula editorial com queo cor<strong>de</strong>l ficou conhecido. A partir <strong>de</strong> 1921, quando adquiriu o espólioliterário <strong>de</strong> Leandro Gomes <strong>de</strong> Barros, o mais importante e mais fecundoautor da literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l <strong>no</strong>r<strong>de</strong>stina, morto <strong>em</strong> 1918, Athay<strong>de</strong> dáinício a um projeto editorial <strong>no</strong> sentido da padronização <strong>de</strong> suas edições,tendo <strong>em</strong> vista a consolidação da sua marca editorial. As capas simples,predominant<strong>em</strong>ente usadas nas edições do cor<strong>de</strong>l até então, vão sendosubstituídas pelas capas t<strong>em</strong>áticas. Nas capas dos romances, já <strong>no</strong> inícioda década <strong>de</strong> 1920, são usados clichês feitos a partir <strong>de</strong> cartões-postais àmoda francesa, <strong>em</strong> que se ve<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>los fotográficos, geralmente, umajov<strong>em</strong> ou um casal <strong>em</strong> pose romântica.Em alguns casos, as capas dos romances eram, também, ilustradascom <strong>de</strong>senhos encomendados aos gravuristas locais, tal como ocorre comos folhetos das <strong>de</strong>mais modalida<strong>de</strong>s, <strong>em</strong> cujas reimpressões as capas sãoreaproveitadas, passando assim, <strong>de</strong> certa forma, a integrar a composição.Esse é, por ex<strong>em</strong>plo, o caso das capas dos folhetos A vida e o testamento<strong>de</strong> canção <strong>de</strong> fogo, O casamento do calangro, O soldado jogador, Proezas <strong>de</strong> JoãoGrilo, que se tornaram quase tão <strong>popular</strong>es quanto as obras que servirampara ilustrar. Já os folhetos contendo pelejas ou representações <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio,republicados a partir da década <strong>de</strong> 1930, traz<strong>em</strong>, na capa, um <strong>de</strong>senho ouuma caricatura da cena representada: <strong>em</strong> um salão familiar ou ao ar livre,portando violas sertanejas e sentados frente à frente, os protagonistasatuam, assistidos por uma plateia. Esse clichê até hoje aparece <strong>no</strong>s cordéis<strong>de</strong>ssa modalida<strong>de</strong>. Ainda na década <strong>de</strong> 1930, surg<strong>em</strong> as ilustraçõesfeitas a partir <strong>de</strong> uma técnica <strong>de</strong> colag<strong>em</strong> (na qual se mistura <strong>de</strong>senhoe fotogravura), muito usada, sobretudo na década <strong>de</strong> 1940, na confecção45


Vilma Mota QuintelaCapa <strong>de</strong> romance <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l publicado na década <strong>de</strong> 1940, <strong>de</strong> autoria<strong>de</strong> José Camelo Rezen<strong>de</strong>, editado por Athay<strong>de</strong>, que usa como clichê umafotogravura feita a partir <strong>de</strong> um cartão-postal. Facsímile cedido por RiaL<strong>em</strong>aire, diretora do Fonds Raymond Cantel, Poitiers, França.das capas dos romances (Souza, 1981). Nestes, o apelo ao cin<strong>em</strong>a evi<strong>de</strong>nciase,especialmente <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> editorial dos cordéis. Observa-se a influência dalinguag<strong>em</strong> publicitária e <strong>de</strong> certos gêneros da cultura <strong>de</strong> massa na escolhados títulos, na i<strong>de</strong>ia das capas (feitas a partir da justaposição <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entosque formam um quadro sinóptico da história apresentada, l<strong>em</strong>brandoos cartazes <strong>de</strong> divulgação dos filmes) e também <strong>no</strong> tom sensacionalistadas chamadas do editor, que aparec<strong>em</strong> na primeira página da maioriados romances publicados nesse período, tais como: “Amor! Sofrimento!Luta! Triunfo!” (Nobreza <strong>de</strong> um ladrão), “Degredo! Prisão! Sofrimento!” (Oromance <strong>de</strong> um sentenciado), ou “Romance cheio <strong>de</strong> amor e poesia! Página<strong>de</strong> viva realida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se le<strong>em</strong> as tramas da traição curvar-se ante o altardo amor; a paixão <strong>de</strong> dois jovens que ascen<strong>de</strong>m até aos mais altos po<strong>de</strong>resda existência” (As gran<strong>de</strong>s aventuras <strong>de</strong> Armando e Rosa) 1 .1Todos esses cordéis se encontram disponíveis <strong>em</strong>: http://www.cnfcp.gov.br46


A <strong>edição</strong> <strong>popular</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>A apropriação <strong>de</strong>sses recursos editoriais, b<strong>em</strong> como da linguag<strong>em</strong>própria das narrativas <strong>popular</strong>izadas pelo cin<strong>em</strong>a e pelo jornal, entreoutros meios afins, sugere um forte investimento <strong>em</strong> um perfil <strong>de</strong> leitorespecífico. Provavelmente, essa produção v<strong>em</strong> a aten<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> modo particular,certo público urba<strong>no</strong> <strong>em</strong>ergente, que inclui o gênero f<strong>em</strong>ini<strong>no</strong>,formado <strong>em</strong> um contexto cultural oralizado, <strong>no</strong> qual, não obstante, ossímbolos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> se impunham como força heg<strong>em</strong>ônica.Essa investida <strong>no</strong> sentido da padronização dos folhetos v<strong>em</strong>, s<strong>em</strong>dúvida, fortalecer a sua marca editorial, constituindo também um modo<strong>de</strong> apropriação das obras <strong>de</strong> autoria diversa, por ele negociadas parapublicação. Especialmente <strong>no</strong> caso das obras <strong>de</strong> Leandro, as quais, coma compra dos direitos <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>, Athay<strong>de</strong> passa a representarlegalmente, a apropriação se dá <strong>de</strong> forma radical. Algumas vezes, comomostram sobretudo as edições posteriores a 1930, as atualizações vão umpouco além da revisão ortográfica e das pequenas mudanças observadas<strong>no</strong> título <strong>de</strong> algumas obras, chegando, <strong>em</strong> muitos casos, a comprometer oreconhecimento da autoria. Essa e outras formas <strong>de</strong> apropriação, que seapresentam, <strong>de</strong> certo ponto <strong>de</strong> vista, como dispositivos <strong>de</strong> salvaguardada proprieda<strong>de</strong> pelo editor, não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser representativas do modocomo, na prática, o mo<strong>no</strong>pólio editorial, por ele exercido, serviu àafirmação da sua posição como autor. Sobretudo a partir da década <strong>de</strong>1930, Athay<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha um papel <strong>de</strong>cisivo na consolidação do sist<strong>em</strong>aliterário do cor<strong>de</strong>l, fomentando e dando vazão à produção <strong>de</strong> poetas que,<strong>em</strong>boraprestigiados <strong>no</strong> meio, não possuíam recursos e <strong>popular</strong>ida<strong>de</strong>suficientes para uma carreira autô<strong>no</strong>ma. Esse é o caso <strong>de</strong> João Ferreira<strong>de</strong> Lima, José Camelo, José Pacheco da Rocha e Delarme Monteiro, esteúltimo, <strong>de</strong> certa maneira, formado sob a influência do editor.Cumpre pon<strong>de</strong>rar: <strong>de</strong>certo o êxito <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong> não se <strong>de</strong>veu apenas àdisposição comercial que o caracterizou como editor, <strong>em</strong>bora tal aspectoo tenha colocado <strong>em</strong> uma posição privilegiada <strong>em</strong> relação a seus colegas<strong>de</strong> ofício. Juntamente com isso, a sua experiência como poeta formado<strong>no</strong> ambiente da cantoria e do cor<strong>de</strong>l tor<strong>no</strong>u-o apto a orientar a produção,<strong>de</strong> acordo com as injunções do mercado. Detentor, <strong>em</strong> potencial, domo<strong>no</strong>pólio editorial do gênero, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1920, quando se tor<strong>no</strong>ueditor autorizado das obras <strong>de</strong> Leandro, coube a Athay<strong>de</strong>, <strong>de</strong> certa forma,dar continuida<strong>de</strong> à linha <strong>de</strong> produção <strong>de</strong>finida por seus antecessores e, poroutro lado, atualizá-la <strong>de</strong> acordo com a <strong>de</strong>manda do público <strong>em</strong>ergente. Aesse respeito, po<strong>de</strong>-se dizer que a sua atuação foi eficaz.À atuação enérgica <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong> <strong>no</strong> mercado editorial do cor<strong>de</strong>l, <strong>de</strong>veseo gran<strong>de</strong> prestígio que ele atingiu <strong>em</strong> vida, <strong>em</strong> seu próprio meio e <strong>em</strong>47


Vilma Mota Quintelacerto meio intelectual, como poeta, <strong>em</strong>bora gran<strong>de</strong> parte do que lhe foiatribuído pertencesse à autoria alheia. Por volta da década <strong>de</strong> 1930, seu<strong>no</strong>me já havia cruzado fronteiras geográficas e sociais, tornando-se umfenôme<strong>no</strong> <strong>de</strong> <strong>popular</strong>ida<strong>de</strong>, conforme test<strong>em</strong>unha Wal<strong>de</strong>mar Valente, <strong>em</strong><strong>de</strong>poimento publicado <strong>em</strong> 1976:Athay<strong>de</strong> tor<strong>no</strong>u-se, s<strong>em</strong> exagero, um verda<strong>de</strong>iro ídolo <strong>popular</strong>.Não apenas da gente pobre e humil<strong>de</strong>, s<strong>em</strong>i-alfabetizada e mesmoanalfabeta, do interior – Zona da Mata, principalmente –, mas dagente r<strong>em</strong>ediada e rica das zonas urbanas e até capitais e cida<strong>de</strong>simportantes, entre elas Salvador, Recife, Fortaleza, Caruaru,Campina Gran<strong>de</strong> e Garanhuns.Entre seus leitores mais entusiastas, estavam meni<strong>no</strong>s, adolescentese até adultos. Gente branca e gente <strong>de</strong> cor. A plebe iletrada e a eliteintectual, incluindo estudiosos <strong>de</strong> <strong>no</strong>sso folclore. De modo especial,os que se interessavam pela literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l. (apud Athay<strong>de</strong>,2000, p. 28)Dentre os produtores <strong>de</strong> folhetos <strong>no</strong>r<strong>de</strong>sti<strong>no</strong>s, s<strong>em</strong> dúvida, J. Martins<strong>de</strong> Athay<strong>de</strong> foi o que melhor representou o processo <strong>de</strong> homogeneizaçãoeditorial do cor<strong>de</strong>l, ocorrido <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr do século XX. Esse aspectoressalta, antes <strong>de</strong> mais nada, <strong>no</strong> modo como o poeta-editor proce<strong>de</strong>u<strong>em</strong> relação à forma <strong>de</strong> apresentação dos folhetos, padronizando, porex<strong>em</strong>plo, o estilo das capas das representações <strong>de</strong> pelejas e dos romances,as duas categorias por ele privilegiadas. Tal situação se configura tambémna escolha das obras publicáveis, efetuada, metodicamente, por Athay<strong>de</strong>,<strong>de</strong> acordo com as <strong>de</strong>mandas dos públicos tradicional e <strong>em</strong>ergente. Esseprocesso revela, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte, a posição centralizadora assumida pelopoeta-editor pernambuca<strong>no</strong>, sobretudo a partir da década <strong>de</strong> 1930. Nasdécadas seguintes, antes da crise econômica que provocou a extinção daseditoras folhetarias <strong>no</strong>r<strong>de</strong>stinas especializadas na produção do cor<strong>de</strong>l,entre as décadas <strong>de</strong> 1960 e 1970, a <strong>em</strong>presa <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong> impulsionará,<strong>no</strong> cenário <strong>no</strong>r<strong>de</strong>sti<strong>no</strong>, um movimento editorial <strong>popular</strong> inédito <strong>no</strong><strong>Brasil</strong>. Editores como João José, Ma<strong>no</strong>el Camilo dos Santos, RodolfoCoelho Cavalcante e José Bernardo da Silva, entre outros direcionadosou inspirados pelo sucesso da <strong>em</strong>presa <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>, darão continuida<strong>de</strong>a essa tradição editorial que chegou ao seu auge <strong>no</strong> século XX, durante asua atuação.Dada a sua peculiarida<strong>de</strong>, a história editorial da literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l<strong>no</strong>r<strong>de</strong>stina constitui um capítulo à parte na história da <strong>edição</strong> <strong>popular</strong> <strong>no</strong><strong>Brasil</strong>. Essa história, que se inscreve <strong>no</strong> movimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> eretomada da produção ao longo do t<strong>em</strong>po, inicia-se a partir do momento48


A <strong>edição</strong> <strong>popular</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong><strong>em</strong> que se torna possível a apropriação por parte do produtor <strong>popular</strong> <strong>de</strong><strong>de</strong>terminados recursos e bens simbólicos produzidos nas esferas culturaisdominantes. Nesse caso, o produtor <strong>popular</strong> <strong>de</strong>ve sua originalida<strong>de</strong> aofato da sua não pertinência a tais esferas, nas quais, contudo, ele transita ecom a qual ele dialoga. Nessa história inclui-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Leandro Gomes <strong>de</strong>Barros, que se <strong>de</strong>stacou, nesse contexto, como editor e difusor da própriaobra, até os autores-editores cont<strong>em</strong>porâneos que se aproximam cada vezmais do universo cult, como é o caso do cartunista, poeta <strong>de</strong> bancada eeditor Klévisson Viana, da editora Tupynanquim. Essa história, que secaracteriza pela luta <strong>de</strong>sses produtores <strong>no</strong> sentido da legitimação docor<strong>de</strong>l como um b<strong>em</strong> simbólico, não se <strong>de</strong>senvolve à marg<strong>em</strong>, mas <strong>no</strong>interior do campo cultural <strong>em</strong> que o cor<strong>de</strong>l se inscreve como um discursoliterário concorrente.Referências bibliográficasATHAYDE, João Martins (2000). João Martins <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>: antologia. São Paulo,Hedra.BOURDIEU, Pierre (1992). Les règles <strong>de</strong> l’art: gènese et structure du champlittéraire. Paris, Seil.BRITO BROCA, José (1975). A vida literária <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>: 1900. Rio <strong>de</strong> Janeiro: JoséOlympio._______ (1994). O repórter impenitente. Campinas: Ed. Unicamp.SOUZA, liedo Maranhão <strong>de</strong> (1981). O folheto <strong>popular</strong>: sua capa e seusilustradores. Recife: Massangana.Recebido <strong>em</strong> abril <strong>de</strong> 2010.Aprovado para publicação <strong>em</strong> maio <strong>de</strong> 2010.Resumo/AbstractA <strong>edição</strong> <strong>popular</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>: o caso da literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>lVilma Mota QuintelaCom o intuito <strong>de</strong> estudar o cor<strong>de</strong>l brasileiro sob o ponto <strong>de</strong> vista do seu sist<strong>em</strong>aeditorial, neste artigo buscou-se ressaltar a importância <strong>de</strong>sse fenôme<strong>no</strong> editorial<strong>popular</strong> que se instituiu, <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, como um marco da mo<strong>de</strong>rnização que transformouas relações <strong>de</strong> produção cultural <strong>no</strong> Nor<strong>de</strong>ste a partir dos últimos <strong>de</strong>cêniosdo século XIX. Observada <strong>de</strong>sse ângulo, a literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l é traduzida comoum efeito da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> que se impunha <strong>em</strong> pontos estratégicos do <strong>Brasil</strong>. A<strong>popular</strong>ização da imprensa <strong>no</strong> Nor<strong>de</strong>ste, especialmente <strong>em</strong> Recife, on<strong>de</strong> primeirose <strong>de</strong>senvolveu o mercado do cor<strong>de</strong>l <strong>no</strong> país, tor<strong>no</strong>u possível o surgimento <strong>de</strong>49

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