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No fio da navalha: literatura e violência no Brasil de hoje

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<strong>No</strong> <strong>fio</strong> <strong>da</strong> <strong>navalha</strong> 17<strong>de</strong>mográfica do país, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> sempre buscou umaexpressão a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> à complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma experiência que evoluiutendo como pa<strong>no</strong> <strong>de</strong> fundo a <strong>violência</strong> 1 .Tomando-se esse processo em linhas gerais, em princípio, a <strong>literatura</strong>regionalista, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu <strong>de</strong>sejo inicial <strong>de</strong> traçar um mapa do país econquistar seu território, até o presente, vem representando a <strong>violência</strong>ain<strong>da</strong> articula<strong>da</strong> a uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> social em que, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, vigora umsistema simbólico <strong>de</strong> honra e vingança individuais, uma vez que a leiain<strong>da</strong> não po<strong>de</strong> garantir a igual<strong>da</strong><strong>de</strong> entre os sujeitos. Sobretudo <strong>no</strong>século XX, “o tema principal do regionalismo po<strong>de</strong> ser visto, <strong>de</strong>ssa forma,como o confronto entre um sistema global <strong>de</strong> justiça mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> esistemas locais <strong>de</strong> <strong>no</strong>rmatização social regulado pelos códigos <strong>de</strong> honra,vingança e retaliação” 2 .Daí os temas do cangaço, <strong>da</strong> jagunçagem, dos heróis justiceiros dosertão, muito fortes sobretudo <strong>no</strong>s romances <strong>da</strong> “geração <strong>de</strong> 30”, que reaparecemalgumas déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong>pois, transfundidos, em Guimarães Rosa ealguns outros, como Mário Palmério, Bernardo Elis, Gilvan Lemos etc., eaté em ple<strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 90, <strong>no</strong> Memorial <strong>de</strong> Maria Moura, <strong>de</strong> Rachel <strong>de</strong> Queiroz.De fato, percebe-se nesses textos uma espécie <strong>de</strong> verniz <strong>de</strong> civilização e<strong>de</strong> justiça, que se dilui ao me<strong>no</strong>r impacto, espalhando todo tipo <strong>de</strong> <strong>violência</strong>e <strong>de</strong>ixando visíveis antigas estruturas autoritárias que mantêmvivos velhos códigos <strong>de</strong> honra, uma vez que um sistema legal eficiente eneutro, característica <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, ain<strong>da</strong> não conseguiu se implantar.Tais arroubos <strong>de</strong> <strong>violência</strong> também estão ligados a velhas concepções<strong>de</strong> masculini<strong>da</strong><strong>de</strong> e macheza, além <strong>de</strong> muitas vezes surgirem envoltos porum caráter <strong>de</strong> “santi<strong>da</strong><strong>de</strong>”, estruturante <strong>de</strong> um mundo particular e arcaico<strong>de</strong> códigos e relações sociais.O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> urbana, por sua vez, segue um caminhoparalelo, <strong>da</strong>ndo outro matiz à representação <strong>da</strong> <strong>violência</strong>. Des<strong>de</strong> os primórdiosdo romance brasileiro, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> surge como o “pólo mo<strong>de</strong>rnizador”, centro dosvalores, hábitos e costumes <strong>da</strong> civilização européia, além <strong>de</strong> procurar ser reduto1Ver Scholhammer, “Os cenários urba<strong>no</strong>s <strong>da</strong> <strong>violência</strong> na <strong>literatura</strong> brasileira”, em Pereira, Linguagens<strong>da</strong> <strong>violência</strong>. Uma versão modifica<strong>da</strong> do mesmo artigo foi publica<strong>da</strong> em Rocha, Nenhum <strong>Brasil</strong>existe, com o título “O caso Fonseca: a procura do real”.2Id., p. 238.


18 Tânia Pellegrini<strong>da</strong> legali<strong>da</strong><strong>de</strong>, portanto um espaço com características diversas <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> dosertão. Assim, aí prevalecem os códigos estabelecidos <strong>da</strong> lei e <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m, mesmoque muitas vezes aparentes, como bem mostraram já um certo Alencar, <strong>de</strong>poisMachado <strong>de</strong> Assis, Lima Barreto e outros. É sob o manto <strong>da</strong> aparência quevicejam, por exemplo, os expedientes do <strong>no</strong>sso sargento <strong>de</strong> milícias, aambivalência moral dos brás cubas, a pilantragem macunaímica, a complacênciaou a apatia <strong>de</strong> tantos anti-heróis mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s, bem como a feroci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>alguns personagens contemporâneos.Vê-se, portanto, que é muito difícil estabelecer uma linha clara quesepare a or<strong>de</strong>m legitimamente constituí<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e <strong>da</strong> ilegali<strong>da</strong><strong>de</strong>,com gra<strong>da</strong>ções e aspectos diferentes, tanto <strong>no</strong> campo quanto na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>; ameu ver, essa ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> está na raiz <strong>da</strong> representação <strong>de</strong> todo tipo <strong>de</strong><strong>violência</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as mais brutais até as mais sutis. Nesse sentido, <strong>de</strong>stacamsealguns conceitos importantes que integram soli<strong>da</strong>mente a cultura brasileira– e que, literariamente, são herança direta <strong>da</strong> picardia do sargento <strong>de</strong>milícias e <strong>da</strong> transgressão macunaímica –, cuja ambivalência dá margem àrepresentação <strong>de</strong> formas varia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> <strong>violência</strong>: o “bom bandido”, e o “malandro”.Este último, cuja posição simpática e i<strong>de</strong>aliza<strong>da</strong>, mesmo quandodiretamente liga<strong>da</strong> à criminali<strong>da</strong><strong>de</strong>, sempre recebe tratamento carinhoso edignificante, tor<strong>no</strong>u-se uma espécie <strong>de</strong> marca registra<strong>da</strong> do imagináriopopular relacionado à periferia dos gran<strong>de</strong>s centros urba<strong>no</strong>s 3 .Po<strong>de</strong>-se concor<strong>da</strong>r que há nesses conceitos uma valorização doethos <strong>da</strong> malandragem como possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> concreta <strong>de</strong> representação<strong>de</strong> um certo “caráter nacional”, baseado <strong>no</strong> humor irreverente,na ironia ferina, na simpatia constante, <strong>no</strong> <strong>de</strong>sa<strong>fio</strong> meio irresponsávelà qualquer autori<strong>da</strong><strong>de</strong>, na valorização <strong>de</strong> espaços e práticas estranhasao mundo do trabalho ou à disciplina produtiva: a preguiça,o calor, o sexo, a malemolência e mesmo uma <strong>violência</strong> “i<strong>no</strong>fensiva”<strong>no</strong>s peque<strong>no</strong>s <strong>de</strong>litos que balizam a contravenção e a ilicitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>algumas práticas quotidianas 4 . E é fácil perceber que a valorização<strong>de</strong>sses tipos, além <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar um nível ingênuo <strong>de</strong> percepção <strong>da</strong>reali<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional, inevitavelmente acaba esbarrando nas prementesquestões que envolvem a marginali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a transgressão, o <strong>de</strong>sa<strong>fio</strong> à lei e3Ver Soares, “Uma interpretação do <strong>Brasil</strong> para contextualizar a <strong>violência</strong>”, em Pereira, op. cit., pp. 23-46.4Para uma análise <strong>de</strong>talha<strong>da</strong> <strong>de</strong> tais questões, ver DaMatta, Carnavais, malandros e heróis.


<strong>No</strong> <strong>fio</strong> <strong>da</strong> <strong>navalha</strong> 19à or<strong>de</strong>m e o crime. “Em sua versão benigna, a valorização <strong>da</strong> malandragemcorrespon<strong>de</strong> ao elogio <strong>da</strong> criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptativa e <strong>da</strong> predominância <strong>da</strong>especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s circunstâncias e <strong>da</strong>s relações pessoais sobre a friezareducionista e generalizante <strong>da</strong> lei (...). Em sua versão maximalista e maligna,porém, a valorização <strong>da</strong> malandragem equivale à negação dos princípioselementares <strong>de</strong> justiça, como a igual<strong>da</strong><strong>de</strong> perante a lei e ao <strong>de</strong>scrédito<strong>da</strong>s instituições <strong>de</strong>mocráticas” 5 . Voltaremos a esse ponto mais adiante.O roteiro do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> urbana necessariamentepassa por espaços que, já <strong>no</strong> século XIX, po<strong>de</strong>m ser chamados <strong>de</strong> espaços<strong>da</strong> exclusão: os “cortiços” e “casas <strong>de</strong> pensão” <strong>de</strong> Aluízio <strong>de</strong> Azevedo.Precursores <strong>da</strong>s atuais “neofavelas”, <strong>da</strong>s “ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Deus” e dos “capões” 6 ,abrigavam aqueles que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> explorava e refugava: escravos libertos,brancos pobres, imigrantes, prostitutas, homossexuais, vadios, todosantecessores dos “bichos-soltos” e dos “carandirus” <strong>de</strong> <strong>hoje</strong>. As formas <strong>de</strong><strong>violência</strong> ali representa<strong>da</strong>s obe<strong>de</strong>ciam aos códigos naturalistas <strong>da</strong> época,compreendidos como a simbolização mimética <strong>de</strong>terminista <strong>de</strong> conflitossociais que brotavam do submundo dos centros urba<strong>no</strong>s <strong>de</strong> então.Não há como negar que a <strong>violência</strong> assume o papel <strong>de</strong> protagonista <strong>de</strong>staca<strong>da</strong><strong>da</strong> ficção brasileira urbana a partir dos a<strong>no</strong>s 60 do século XX, principalmentedurante a ditadura militar 7 , traduzindo a introdução do país <strong>no</strong>circuito do capitalismo avançado. A industrialização crescente <strong>de</strong>sses a<strong>no</strong>svai – em última instância – <strong>da</strong>r força à ficção centra<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong> dos gran<strong>de</strong>scentros, que incham e se <strong>de</strong>terioram; <strong>da</strong>í a ênfase em todos os problemassociais e existenciais <strong>de</strong>correntes, entre eles a ascensão <strong>da</strong> <strong>violência</strong> a níveisinsuportáveis. Está formado o <strong>no</strong>vo cenário para a revitalização do realismo edo naturalismo, agora com tintas mais sombrias, não mais divididos em “campo”e “ci<strong>da</strong><strong>de</strong>”, como antes, mas ancorados numa única matéria bruta, fértile muito real: a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> cindi<strong>da</strong> 8 , ou seja, já irremediavelmente dividi<strong>da</strong> em“centro” e “periferia”, em “favela” e “asfalto”, em “ci<strong>da</strong><strong>de</strong>” e “subúrbio”, em“bairro” e “orla”, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo o uso <strong>de</strong>sses termos <strong>da</strong> região do país.5Soares, op. cit., p. 25.6Referência ao livro Capão Pecado, <strong>de</strong> Ferréz, que se insere na mesma vertente temática aqui analisa<strong>da</strong>.7Não incluo aqui a <strong>literatura</strong> <strong>de</strong>sses tempos, que brota <strong>da</strong>s lutas contra a repressão, pois trata-se <strong>de</strong>tópico específico que extrapola o tema <strong>de</strong>ste ensaio e a respeito do qual já existe ampla bibliografia.8Tomo <strong>de</strong> empréstimo o conhecido conceito <strong>de</strong> Zuenir Ventura, ci<strong>da</strong><strong>de</strong> parti<strong>da</strong>.


<strong>No</strong> <strong>fio</strong> <strong>da</strong> <strong>navalha</strong> 21impedia a i<strong>de</strong>ntificação do narrador com a personagem, por motivos sociais:“o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> preservar a distância social levava o escritor, malgrado asimpatia literária, a <strong>de</strong>finir sua posição superior, tratando <strong>de</strong> maneirapaternalista a linguagem e os temas do povo. Por isso se encastelava naterceira pessoa, que <strong>de</strong>fine o ponto <strong>de</strong> vista do realismo tradicional”.E referindo-se aos textos <strong>de</strong> Rubem Fonseca e <strong>de</strong> outros contemporâneos,repara que a “abdicação estilística” funciona muito bem, “masquando passam a terceira pessoa ou <strong>de</strong>screvem situações <strong>de</strong> sua classesocial, a força parece cair. Isto leva a perguntar se eles não estão criandoum <strong>no</strong>vo exotismo <strong>de</strong> tipo especial, que ficará mais evi<strong>de</strong>nte para osleitores futuros”.Consi<strong>de</strong>rando essas questões, percebe-se que, num ângulo específico,a representação <strong>da</strong> linguagem chula do submundo vai insuflar umanuance <strong>de</strong> outro teor à linguagem literária, não mais basea<strong>da</strong> <strong>no</strong>s antigospadrões realistas, calcados na bienséance, ain<strong>da</strong> que relativa, e <strong>de</strong>sgastadospela chama<strong>da</strong> “crise <strong>da</strong> representação” diante dos impasses <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>vareali<strong>da</strong><strong>de</strong> urbana. Outros temas e outros objetos <strong>hoje</strong> se impõem, traduzidosnuma outra linguagem: tudo o que é proibido ou excluído, tudo oque recebe estigmas culturais, como a <strong>violência</strong> paroxística, passa a objeto<strong>de</strong> representação. Como afirma Schollhammer, “quando a <strong>literatura</strong> se<strong>de</strong>para com os limites <strong>da</strong> representação, chega a expressar, na <strong>de</strong>rrota <strong>da</strong>transgressão, a própria proibição na sua forma mais concreta” 13 . São essesos pontos que problematizaremos a seguir, mesclando a matéria representa<strong>da</strong>e suas formas <strong>de</strong> representação.IIIParece que a questão primeira a ser trata<strong>da</strong>, com relação aos textosescolhidos, é a <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua representação <strong>hoje</strong>,ou seja, até que ponto e <strong>de</strong> que maneira a situação concreta e imediata<strong>da</strong> exclusão e <strong>da</strong> <strong>violência</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, com to<strong>da</strong>s as suas implicações enuances, po<strong>de</strong> ser representa<strong>da</strong> sem resvalar para o artificial, para o convencionalou para o ambíguo, tornando-se mais um elemento <strong>de</strong> folcloreou <strong>de</strong> exotismo, presa fácil <strong>de</strong> manipulação <strong>da</strong> mídia e do mercado.O que está em jogo nesse <strong>no</strong>vo realismo feroz – neo-realismo,13Op. cit., p. 245.


22 Tânia Pellegrinihiper-realismo ou ultra-realismo, como já foi chamado – não é apenas omodo como as coisas são construí<strong>da</strong>s enquanto linguagem, mas tambémo que elas são; sendo um estilo, esse realismo está funcionalmente ligadoa um objetivo cuja referência é concreta; assim, o objetivo <strong>da</strong> mimesisaqui tanto po<strong>de</strong> ser a indignação, a <strong>de</strong>núncia, o protesto, a contestação,quanto a constatação <strong>de</strong>sinteressa<strong>da</strong> ou interesseira e, na pior <strong>da</strong>shipóteses, cínica.Mas vamos aos textos. Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus 14 é um painel forte e fragmentado<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> na favela <strong>de</strong> mesmo <strong>no</strong>me, <strong>de</strong> dimensões quase bíblicas,<strong>de</strong>senhado com base em alguns itinerários individuais, que percorremum arco temporal <strong>de</strong> três déca<strong>da</strong>s. O primeiro <strong>de</strong>les é o <strong>de</strong> Cabeleira(Inferninho), bandido que domina o tráfico durante os a<strong>no</strong>s 60; o <strong>de</strong>Dadinho, transformado <strong>no</strong> terrível Zé Peque<strong>no</strong> (Miúdo), vem <strong>de</strong>pois, <strong>no</strong>sa<strong>no</strong>s 70; e, finalmente, <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 80, o <strong>de</strong> Ma<strong>no</strong>el Galinha, cobrador <strong>de</strong>ônibus que se transforma <strong>no</strong> gran<strong>de</strong> inimigo <strong>de</strong> Zé Peque<strong>no</strong>. Centra<strong>da</strong> <strong>no</strong>crime, a narrativa toma como personagem principal a <strong>violência</strong>, que corresolta naquilo que o autor <strong>de</strong><strong>no</strong>mina “neofavela”, um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro campo<strong>de</strong> guerra entre os integrantes do tráfico <strong>de</strong> drogas e a polícia corrupta.Uma brutali<strong>da</strong><strong>de</strong> monstruosa dá o tom que acompanha a narrativa atéo final, espreitando em ca<strong>da</strong> beco, em ca<strong>da</strong> esquina, em ca<strong>da</strong> casa, chegandoao ápice com as <strong>de</strong>scrições minuciosas do esquartejamento <strong>de</strong> umbebê (p. 69), passando por histórias como a do paraiba<strong>no</strong> que esfaqueiaaté a morte a mulher e o amante (p.115), ou <strong>da</strong> mulher que mata omarido <strong>de</strong>spejando-lhe água fervente na cabeça (p. 247), entre muitasoutras <strong>de</strong> mesmo teor. Há uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> crimes <strong>de</strong> atroci<strong>da</strong><strong>de</strong> seca,que se suce<strong>de</strong>m em ritmo veloz, a ponto <strong>de</strong> o leitor ser levado, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>um certo tempo, a perceber como “natural” a alternância <strong>de</strong> embatessangrentos entre a polícia e os “bichos-soltos”, entre os grupos rivais <strong>da</strong>própria favela, as cenas priva<strong>da</strong>s <strong>de</strong> sexo e <strong>violência</strong> sórdi<strong>da</strong> <strong>no</strong> interiordos barracos, tudo bem ao estilo dos filmes comerciais <strong>de</strong> ação. Não háalívio, em nenhum momento: to<strong>da</strong>s as situações <strong>de</strong>sembocam num crime,14São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2003, 2a. ed., revista pelo autor. To<strong>da</strong>s as citações farão referênciaa esta edição, me<strong>no</strong>r que a anterior, contendo algumas modificações: “Uma <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças mais perceptíveis<strong>da</strong> <strong>no</strong>va versão é o <strong>no</strong>me dos protagonistas. Zé Peque<strong>no</strong> virou Zé Miúdo, Bené virou Par<strong>da</strong>lzinhoe Cabeleira, Inferninho. ‘Quis manter a distância entre a <strong>literatura</strong> e o cinema’, conta Lins”. “Romance<strong>de</strong> Paulo Lins ganha versão mais enxuta”, em O Estado <strong>de</strong> São Paulo, 30/08/02.


<strong>No</strong> <strong>fio</strong> <strong>da</strong> <strong>navalha</strong> 23em que a droga funciona ao mesmo tempo como estímulo e calmante. Aespiral ascen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> barbárie, <strong>de</strong>ntro do espaço único, fechado eclaustrofóbico que é a Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus 15 , induz o leitor me<strong>no</strong>s atento ou<strong>de</strong>savisado a pensar que existe uma espécie <strong>de</strong> autofagia inelutável obrigandoos habitantes a se <strong>de</strong>struírem sistematicamente. Isso porque aspessoas comuns que habitam as favelas, com sua vi<strong>da</strong> quotidiana <strong>de</strong> trabalho,não têm nenhum <strong>de</strong>staque e também não aparecem as causas efetivasdo estado <strong>de</strong> coisas <strong>de</strong>gra<strong>da</strong>nte: os ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros man<strong>da</strong>ntes do tráfico<strong>de</strong> drogas e <strong>de</strong> armas e a corrupção política e militar que lhes asseguraa circulação e a sobrevivência.As personagens que percorrem esse espaço, “piranhas”, “bichos-soltos”,“otários”, “rapazes do conceito”, são na maioria adolescentes, ca<strong>da</strong>vez mais crianças à medi<strong>da</strong> que o tempo passa. Sempre miseráveis e analfabetos,são dizimados como insetos por uma maquinaria crimi<strong>no</strong>sa queenvolve muito mais instâncias do que as por eles conheci<strong>da</strong>s, em disputaspelo que lhes cabe nessa engrenagem: ínfimos troféus representados pormulheres, chefias <strong>de</strong> bando, posse <strong>de</strong> bocas-<strong>de</strong>-fumo, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, apenaspeque<strong>no</strong>s po<strong>de</strong>res e pequenas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s diante <strong>da</strong> gigantesca re<strong>de</strong> quesustenta essa situação 16 .A discussão sobre o livro iniciou-se, por ocasião do seu lançamento,com uma resenha extremamente favorável do professor RobertoSchwarz, enfatizando-lhe a força e a originali<strong>da</strong><strong>de</strong> 17 . Nas suas palavras,a <strong>violência</strong>, <strong>no</strong> livro, tem características específicas: “Se por um lado ocrime forma um universo à parte, interessante em si mesmo e propício àestetização, por outro ele não fica fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> comum, o que proíbeo distanciamento estético, obrigando à leitura engaja<strong>da</strong>, quando mais15Não por acaso, a <strong>de</strong><strong>no</strong>minação dos espaços cria “não-lugares”: “Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus (...) re<strong>no</strong>meou ocharco: Lá em Cima, Lá na Frente, Lá Embaixo, Lá do Outro Lado do Rio e Os Apês” (p. 16).16“Os bandidos seguiram a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Belzebu. <strong>No</strong>vamente o policial e o sargento entreolharam-se.Combinaram tudo ali sem fazer uso <strong>da</strong> palavra. O primeiro tiro <strong>da</strong> pistola calibre 45 do sargentoatravessou a mão esquer<strong>da</strong> <strong>de</strong> Pelé e alojou-se em sua nuca. A raja<strong>da</strong> <strong>de</strong> metralhadora <strong>de</strong> Belzeburasgou o corpo <strong>de</strong> Pará. Um peque<strong>no</strong> grupo <strong>de</strong> pessoas tentou socorrê-los, porém Belzebu proibiucom outra raja<strong>da</strong> <strong>de</strong> metralhadora, <strong>de</strong>sta vez para o alto. Aproximou-se dos corpos e <strong>de</strong>sfechou ostiros <strong>de</strong> misericórdia” (p. 94).17Sabe-se que o livro é uma espécie <strong>de</strong> ficcionalização <strong>de</strong> uma pesquisa et<strong>no</strong>gráfica na Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>Deus, coor<strong>de</strong>na<strong>da</strong> por Alba Zaluar, <strong>de</strong> que Paulo Lins, antigo morador, fez parte.


24 Tânia Pellegrininão seja por medo. Trata-se <strong>de</strong> uma situação literária com quali<strong>da</strong><strong>de</strong>spróprias (...). Daí uma espécie <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> irrecorrível, uma objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>absur<strong>da</strong>, <strong>de</strong>corrência do acossamento, que <strong>de</strong>ixam o juízo moral semchão. Dito isso, estamos longe do exotismo ou do sadismo <strong>da</strong> <strong>literatura</strong>comercial <strong>de</strong> assunto semelhante (...) A intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> com o horror, bemcomo a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> encará-lo com distância, se possível esclareci<strong>da</strong>,é uma situação mo<strong>de</strong>rna “ 18 .Segundo ele, trata-se <strong>de</strong> “arte compósita”, ou seja, <strong>da</strong> ficcionalização<strong>de</strong> <strong>da</strong>dos objetivos <strong>de</strong> pesquisa, que fica na intersecção entre a “<strong>literatura</strong><strong>de</strong> imaginação” e “o esforço organizado <strong>de</strong> autoconhecimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>”.Talvez seja justamente essa composição que vai <strong>da</strong>r margem aque possa emergir mais uma vez a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> a que <strong>no</strong>s vínhamos referindo,só que agora <strong>de</strong> outro tipo.A <strong>literatura</strong>, como sabemos, ao imobilizar ou fixar a vi<strong>da</strong> por meio dodiscurso, transforma-a em representação. Nesse sentido, como ela permitefazer também uma espécie <strong>de</strong> teste dos limites <strong>da</strong> palavra enquantopossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong> uma <strong>da</strong><strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, em se tratando <strong>de</strong>uma matéria como essa, a exploração <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> transgressãodita<strong>da</strong> pelas situações mais extremas – o sexo, a <strong>violência</strong>, a morte – criatemas “necessários” para o escritor, que, por meio <strong>de</strong>les, garante um interessenarrativo escorado <strong>no</strong> terror e na pie<strong>da</strong><strong>de</strong>, na atração e na repulsa,na aceitação e na recusa, movimentos inerentes à sedução atávica queatrai para o indizível, o interdito, para as regiões <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s <strong>da</strong> almae <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humanas. Daí a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sse realismo que aponta ao mesmotempo para o protesto e a aceitação, para a <strong>de</strong>núncia e a conivência,aproximando-se do sadismo e do exotismo, que Schwarz <strong>de</strong>scarta, masque são aspectos <strong>de</strong>sse modo presentes <strong>no</strong> texto. A “distância esclareci<strong>da</strong>”a que ele se refere fica assim neutraliza<strong>da</strong>, sendo substituí<strong>da</strong> por um mergulhona sedução <strong>da</strong> <strong>violência</strong>, atingindo os “limites <strong>da</strong> representação”antes referidos, mesmo não havendo, evi<strong>de</strong>ntemente, nenhuma intenção<strong>de</strong> legitimar a terrível reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s “neofavelas”.O ponto <strong>de</strong> vista em terceira pessoa retoma a distância crítica doantigo realismo, a que <strong>no</strong>s referimos: a <strong>de</strong>seja<strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação com amatéria bruta do mundo narrado não ocorre; não há “abdicação estilística”;18Schwarz, “Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus”, em Seqüências brasileiras.


<strong>No</strong> <strong>fio</strong> <strong>da</strong> <strong>navalha</strong> 25o narrador reproduz os temas e situações <strong>da</strong>quela reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, os modos <strong>de</strong>falar dos seus habitantes, sem conseguir uma i<strong>de</strong>ntificação efetiva comaquele universo, procurando uma espécie <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> classe que,apesar do esforço, não o inclui 19 . Isso <strong>de</strong>nuncia justamente a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>em que se coloca inclusive o autor do livro, enquanto antigo morador, <strong>de</strong>poisetnógrafo e em segui<strong>da</strong> “ficcionalizador” <strong>da</strong>quele universo. Desse modo,o texto acaba tocando <strong>no</strong> exótico, <strong>no</strong> pitoresco e <strong>no</strong> folclórico que, “para oleitor <strong>de</strong> classe média têm o atrativo <strong>de</strong> qualquer outro pitoresco 20 ”.Essas questões também estão representa<strong>da</strong>s <strong>no</strong>s personagens; <strong>de</strong>sapareceramo “bom-bandido” e o “malandro esperto” <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> anterior,convivendo amigavelmente com os otários <strong>da</strong>queles tempos, num limiarfluido entre a lei e a contravenção, em narrativas que, mesmo quando<strong>de</strong>nunciavam, faziam-<strong>no</strong> <strong>de</strong> um modo complacente; ou seja, essa ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong>sapareceu. O que se tem em Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus é a representaçãoimplacável <strong>da</strong> bandi<strong>da</strong>gem cega, centra<strong>da</strong> na existência <strong>de</strong> uma trágicaoposição, “otário/bicho solto”, em que o segundo só po<strong>de</strong> existir às custasdo primeiro. 21 Trata-se <strong>de</strong> “uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> irrecorrível”, que “<strong>de</strong>ixa o juízomoral sem chão”, como diz Roberto Schwarz, mas que acaba funcionando,para o leitor – <strong>de</strong>vido à representação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminismo cego queoblitera qualquer resistência –, como a aceitação <strong>da</strong> <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> socialgerando o crime e a evidência <strong>da</strong> absoluta falta <strong>de</strong> condições <strong>de</strong>possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> superá-los, situando-os, então, do lado <strong>de</strong> fora <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,como um quadro na pare<strong>de</strong>, em que o “belo-feio” acaba sendo apenasuma escolha estética.Essas questões estão liga<strong>da</strong>s também ao que se po<strong>de</strong> chamar <strong>de</strong> umape<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> <strong>violência</strong> geri<strong>da</strong> pela indústria <strong>da</strong> cultura, sobretudo pelos19Um estudo minucioso <strong>da</strong> linguagem – que não é <strong>no</strong>sso objetivo aqui – vai revelar, inclusive,“oscilações” <strong>de</strong> registro (do “culto” ao “popular”) e <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong> discurso, evi<strong>de</strong>nciando essas questões,aponta<strong>da</strong>s já por vários críticos.20Candido, op. cit., p. 213.21“Era bicho-solto necessitado <strong>de</strong> dinheiro rápido; naquela situação assaltaria qualquer um, emqualquer lugar e hora, porque tinha disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> para encarar quem se metesse a besta, paratrocar tiro com a polícia e para o caralho a quatro. Tudo o que <strong>de</strong>sejava na vi<strong>da</strong> um dia conseguiriacom as próprias mãos e com muita atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sujeito homem, macho até dizer chega”. Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>Deus, p. 42. “Realmente, tinha medo <strong>de</strong> amanhecer com a boca cheia <strong>de</strong> formiga, mas virar otário naconstrução civil, jamais. Essa on<strong>da</strong> <strong>de</strong> comer <strong>de</strong> marmita, pegar ônibus lotado pra ser tratado quenem cachorro pelo patrão, não, isso não “. Id., p. 117.


26 Tânia Pellegrinimeios visuais, cujo principal método é a espetacularização. <strong>No</strong> interior<strong>de</strong>ssa indústria, a <strong>violência</strong> real que castiga a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira vemgra<strong>da</strong>tivamente sendo percebi<strong>da</strong> como um <strong>da</strong>do simbólico portador <strong>de</strong>gran<strong>de</strong> potencial <strong>de</strong> agregação <strong>de</strong> valor, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente estetiza<strong>da</strong>por meio do excesso, <strong>da</strong> exacerbação, transformando-se assim em espetáculo,tal como acontece, por exemplo, na cinematografia americana 22 . Ameu ver, o traço mais geral <strong>de</strong>sse espetáculo não é a procura <strong>de</strong> um possívele “<strong>de</strong>mocrático” valor <strong>de</strong> exposição, mas o seu oposto, <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>gra<strong>da</strong><strong>da</strong>:o valor <strong>de</strong> culto 23 <strong>hoje</strong> votado a to<strong>da</strong>s as formas <strong>de</strong> <strong>violência</strong> e cruel<strong>da</strong><strong>de</strong>passíveis <strong>de</strong> se transformar em valiosa mercadoria; a exposição <strong>da</strong>morte, <strong>da</strong> <strong>de</strong>struição, <strong>da</strong> tortura e <strong>da</strong> violação exacerba<strong>da</strong>s diluem qualquerpretensão à neutrali<strong>da</strong><strong>de</strong> estética ou moral na representação. Estetizara <strong>violência</strong> tem sido, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, criar condições excitantes para a velhafruição <strong>de</strong> um mórbido <strong>de</strong>leite; mais uma vez o terror e a pie<strong>da</strong><strong>de</strong>, aatração e a repulsa, a aceitação e a recusa reforçam os estereótipos emque o pobre e o feio sempre aparecem como risco e ameaça, pois suacontextualização histórica e social <strong>de</strong>saparece.IVCom Estação Carandiru é necessário analisar também outros aspectos,pois o livro não se preten<strong>de</strong> ficcional. Efetivamente, não se trata <strong>de</strong> umromance, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> suas peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> origem; po<strong>de</strong>ria ser um<strong>de</strong>poimento, uma crônica, um relatório, um testemunho; quem sabe umamistura disso tudo e então teríamos um gênero híbrido, “arte compósita”,na expressão <strong>de</strong> Schwarz, tão comum na <strong>literatura</strong> contemporânea; masacredito que po<strong>de</strong>ríamos enquadrá-lo, feitas as necessárias a<strong>da</strong>ptações,na antiqüíssima categoria <strong>de</strong> “<strong>literatura</strong> <strong>de</strong> viajantes e catequistas” – eaqui vale a metáfora –, consi<strong>de</strong>rando o relato do autor a respeito doestranho mundo que <strong>de</strong>scobriu quando iniciou, em 1989, um trabalho22“O espetáculo é o capital em tal grau <strong>de</strong> acumulação que se torna imagem”. Debord, A socie<strong>da</strong><strong>de</strong>do espetáculo, p. 25. A discussão sobre a espetacularização <strong>da</strong> <strong>violência</strong> acirrou-se com o filme“Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong> Fernando Meirelles. Ver: Bentes, “Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus promove turismo <strong>no</strong>infer<strong>no</strong>”, em O Estado <strong>de</strong> S.Paulo, 31/08/2002. Ver também Castro, “Dialética <strong>da</strong> marginali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, emCa<strong>de</strong>r<strong>no</strong> Mais!, Folha <strong>de</strong> S. Paulo, 29/04/2004.23Utilizo os conceitos <strong>de</strong> Benjamin em “A obra <strong>de</strong> arte na era <strong>de</strong> sua reprodutibili<strong>da</strong><strong>de</strong> técnica”, emObras escolhi<strong>da</strong>s I.


<strong>No</strong> <strong>fio</strong> <strong>da</strong> <strong>navalha</strong> 27voluntário e quase missionário <strong>de</strong> prevenção à Aids, na Casa <strong>de</strong> Detenção<strong>de</strong> São Paulo, o <strong>hoje</strong> extinto Carandiru. Por trás <strong>da</strong>s muralhas, Varellaconheceu uma espécie <strong>de</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> regi<strong>da</strong> por leis próprias, outra moe<strong>da</strong>e valores específicos, <strong>de</strong> cujos habitantes ouviu, numa língua particular,histórias <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>de</strong> morte, até a antológica rebelião final, <strong>de</strong> todosconheci<strong>da</strong>, que termi<strong>no</strong>u com um pavoroso banho <strong>de</strong> sangue.Po<strong>de</strong>-se dizer que, estruturalmente, o livro segue a tradição dos antigos“relatos <strong>de</strong> viagem”, acrescido <strong>de</strong> um toque <strong>de</strong> ficcionali<strong>da</strong><strong>de</strong>: primeiro,<strong>de</strong>scrições do espaço a ser <strong>de</strong>sbravado, os meandros <strong>de</strong> sua geografiainterna, seus habitantes, usos e costumes; <strong>de</strong>pois, as vivências <strong>de</strong>les,sua linguagem, embates, vi<strong>da</strong> e morte. O autor, um viajante pisando emterras estranhas. <strong>No</strong>vamente o <strong>de</strong>sconhecido, o exótico, o pitoresco, tãolonge e tão perigosamente perto. A diferença crucial <strong>de</strong>stas terras comrelação a <strong>da</strong> favela antes visita<strong>da</strong> é a privação <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois as condições<strong>de</strong> penúria e os habitantes são os mesmos; se lá havia “bichossoltos”,“bandidos”, marginais”, vivendo em condições mínimas, aquiexistem “ladrões, estelionatários, traficantes, estupradores, assassi<strong>no</strong>s” 24 ,vale dizer, “bichos-presos”. E é justamente isso que Varella afirma querermostrar, logo <strong>no</strong> prefácio: que a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e a restrição do espaçofísico não levam necessariamente à barbárie 25 .Nesse sentido, segundo seu relato, o contato semanal com ospresos permitiu-lhe fazer <strong>de</strong>scobertas surpreen<strong>de</strong>ntes, como, porexemplo, o baixo índice <strong>de</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> em um ambiente fechado,dominado pelo crime, ou a percepção <strong>de</strong> que a li<strong>de</strong>rança, <strong>de</strong>ntrodo presídio, não é conquista<strong>da</strong> pelo mais forte, mas por aquele queconsegue estabelecer mais alianças. Ou seja, em <strong>no</strong>me <strong>da</strong> sobrevivência,cria-se uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> na qual quem infringe as regras alimesmo estabeleci<strong>da</strong>s paga com a própria vi<strong>da</strong>; uma espécie <strong>de</strong> civilizaçãoparalela regi<strong>da</strong> por um sistema moral com <strong>no</strong>ções claras <strong>de</strong>certo e errado, que não são certamente as instituí<strong>da</strong>s fora <strong>da</strong>s gra-24Op. cit., p. 11.25“Em cativeiro, os homens, como os <strong>de</strong>mais gran<strong>de</strong>s primatas (orangotangos, gorilas,chimpanzés ebo<strong>no</strong>bos), criam <strong>no</strong>vas regras <strong>de</strong> comportamento com o objetivo <strong>de</strong> preservar a integri<strong>da</strong><strong>de</strong> do grupo.Esse processo a<strong>da</strong>ptativo é regido por um código penal não escrito, como na tradição anglo-saxônica,cujas leis são aplica<strong>da</strong>s com extremo rigor: Entre nós, um crime jamais prescreve, doutor “. Id. , p. 10.


28 Tânia Pellegrini<strong>de</strong>s, em vigor na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> organiza<strong>da</strong>, mas que, <strong>no</strong> seu relativismo,funcionam como o mínimo controle necessário para que não imperesempre a barbárie.Paradoxalmente, são, também, em muitos pontos, diversas <strong>da</strong>quelas<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> “neofavela” <strong>de</strong>scrita por Paulo Lins, tambémuma civilização paralela, on<strong>de</strong>, to<strong>da</strong>via, grassa a lei do mais forte e aprerrogativa <strong>da</strong> satisfação do primeiro impulso, sempre violento. Comose o exercício <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, nas condições aí <strong>de</strong>scritas, funcionassecomo um passaporte para todo tipo <strong>de</strong> transgressão, uma vez que as<strong>no</strong>ções <strong>de</strong> moral, ética e legali<strong>da</strong><strong>de</strong>, que incluem o controle <strong>da</strong> <strong>violência</strong>,não chegaram a encontrar um solo minimamente fértil parase enraizar. Eis aí a “versão maximalista e maligna” <strong>da</strong> malandragem,anteriormente cita<strong>da</strong>.<strong>No</strong>rbert Elias 26 sugere que, na mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, os comportamentospacificaram-se, pois os impulsos agressivos foram paulatinamenterefreados, recalcados, por se tornarem incompatíveis com a diferenciaçãoca<strong>da</strong> vez maior <strong>da</strong>s funções sociais que foram emergindoe também com a mo<strong>no</strong>polização <strong>da</strong> força pelo Estado mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>. Nassuas palavras, “ao se formar um mo<strong>no</strong>pólio <strong>de</strong> força, criam-se espaçossociais pacificados, que <strong>no</strong>rmalmente estão livres <strong>de</strong> atos <strong>de</strong><strong>violência</strong>. (...) A mo<strong>de</strong>ração <strong>da</strong>s emoções espontâneas, o controledos sentimentos, a ampliação do espaço mental além do momentopresente, levando em conta o passado e o futuro, o hábito <strong>de</strong> ligaros fatos em ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> causa e efeito – todos esses são distintosaspectos <strong>da</strong> mesma transformação (...). Ocorre uma mu<strong>da</strong>nça“civilizadora” do comportamento”.Acredito que essas <strong>no</strong>ções po<strong>de</strong>m explicar as diferenças <strong>de</strong> “expressãodo impulso violento” encontra<strong>da</strong>s <strong>no</strong>s livros analisados e que,literariamente, alimentam o exotismo. Submetidos ao controle centraldo presídio, que, em última instância, representa fisicamente omo<strong>no</strong>pólio <strong>da</strong> força (haja vista a “solução final”), seus habitantes sevêem impedidos <strong>de</strong> utilizar livremente e a qualquer hora a sua forçafísica; assim, organizam-se minimamente em funções sociais simplesque estabelecem alguns laços <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência entre eles, evitando26Elias, O processo civilizador, v. 2, p. 198.


<strong>No</strong> <strong>fio</strong> <strong>da</strong> <strong>navalha</strong> 29explosões constantes <strong>de</strong> <strong>violência</strong> 27 . Essas ocorrem, mas sempre em circunstânciasespecíficas que, <strong>no</strong> mais <strong>da</strong>s vezes, envolvem ruptura do códigoestabelecido e aceito por todos 28 .Po<strong>de</strong>-se pensar que, <strong>no</strong> caso do universo que Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus retrata,o “mo<strong>no</strong>pólio <strong>de</strong> força” não é legitimado por ser percebido como distante<strong>no</strong> tempo e <strong>no</strong> espaço, abstrato e francamente <strong>de</strong>sfavorável, em se tratando<strong>da</strong>s leis instituí<strong>da</strong>s, representa<strong>da</strong>s por policiais corruptos, vis e extremamenteviolentos. Além disso, os “bichos-soltos” eximem-se <strong>de</strong> assumiras funções sociais mais elementares, agrupando-se aleatoriamente embandos cuja organização interna se baseia apenas na soma <strong>de</strong> individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>se cujo cimento é a obtenção <strong>de</strong> algum objetivo imediato: umamulher, um ponto <strong>de</strong> drogas, a morte <strong>de</strong> um oponente. Compara<strong>da</strong> à dopresídio, a vi<strong>da</strong> dos “bichos-soltos” oscila entre dois extremos: uma amplaliber<strong>da</strong><strong>de</strong>, que inclui <strong>da</strong>r vazão a seus sentimentos e paixões, à alegriaselvagem, à satisfação sem limites do prazer, do ódio, <strong>da</strong> <strong>de</strong>struição e até<strong>da</strong> tortura a todos os que lhe são hostis e a exposição a esses mesmostormentos, em caso <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrota. Ou seja, a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s favelas representa<strong>da</strong>s<strong>no</strong>s livros analisados é comparável àquelas <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s primitivas,“não pacifica<strong>da</strong>s”, para retomar <strong>No</strong>rbert Elias, em que a satisfação doimpulso violento é autoriza<strong>da</strong> apenas pela pulsão do presente imediato.Parece-me que, ao contrário <strong>da</strong> atmosfera “guerreira” <strong>de</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>Deus, é <strong>de</strong>sse clima “pacificado” que Varella consegue – paradoxalmente– investir a representação <strong>de</strong> seu relato, o que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do ponto<strong>de</strong> vista por ele adotado: a primeira pessoa <strong>de</strong> um relator, <strong>de</strong>clara<strong>da</strong>mentealguém que não pertence àquele lugar, que ali está <strong>de</strong> passagem, cum-27“Passamos vários a<strong>no</strong>s neste lugar; tem que zelar como se fosse sua casa. Eu limpo <strong>hoje</strong> e só sereiencarregado <strong>da</strong>qui a 26 dias. Não teria <strong>de</strong>sculpa para não fazer <strong>no</strong> maior capricho. Outra, também,é que não ia <strong>da</strong>r certo. Querer bancar o espertinho entre nós, tudo malandro, ó, nunca tem finalfeliz”. Ver Estação Carandiru, p. 42.28“Dessa forma, os ladrões tornam explícito que seu código penal é implacável quando as vítimas sãoeles próprios. – Ladrão que rouba ladrão tem cem a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> perdão, só que quando a gente pega éproblema”. Id., p. 43.29“Essa aura <strong>de</strong> respeito sincero em tor<strong>no</strong> <strong>da</strong> figura do médico que lhes trazia uma pequena aju<strong>da</strong>exaltou em mim o senso <strong>de</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> em relação a eles. Com mais <strong>de</strong> vinte a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> clínica, foi<strong>no</strong> meio <strong>da</strong>queles que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ra como escória que percebi com mais clareza o impacto <strong>da</strong>presença do médico <strong>no</strong> imaginário huma<strong>no</strong>, um dos mistérios <strong>da</strong> minha profissão”. Id., p. 75.


30 Tânia Pellegriniprindo uma missão que lhe faculta ver e ouvir com simpatia e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong>29 . Não há revolta ou contestação, apenas a observação, que procuratodo o tempo ser isenta e imparcial – <strong>de</strong> acordo com o tipo <strong>de</strong>relato escolhido –, inclusive quando transmite as histórias ouvi<strong>da</strong>s dospresos. Deixando-os narrar suas vi<strong>da</strong>s, com mentiras ou ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s atenua<strong>da</strong>s– não há como saber –, Varella legitima caridosamente suas versõese permite que eles sejam vistos como querem, como vítimas <strong>da</strong>s circunstânciase do “sistema”. Tal opção narrativa mostra o crime como algoexplicável, tira o peso amedrontador <strong>da</strong>s situações e acaba confortando oleitor, que se sente envolvido numa incursão humanitária que o exime <strong>de</strong>qualquer culpa perante aquela situação e perante o massacre final. Se acatarse ocorre, é pela falta e não pelo excesso, pois a linguagem se <strong>de</strong>témna ante-sala do horror, problematizando assim seu próprio limite.Como não se trata <strong>de</strong> ficção, mas <strong>de</strong> um “relato <strong>de</strong> viajante”, emboraem primeira pessoa, não ocorre “abdicação estilística”: o narrador nãoprocura se i<strong>de</strong>ntificar àquelas paisagens e seus habitantes, conserva odistanciamento <strong>de</strong> sua classe e condição, não se <strong>de</strong>ixando contaminarpor aquele universo “interessante em si mesmo e propício à estetização”.Assim, o exotismo intrínseco a essa condição – que existe – não precisaser exacerbado até o limite, com a representação sadicamente minuciosado crime, <strong>da</strong> dor e <strong>da</strong> abjeção. A <strong>violência</strong> é a palo seco: curta, direta einstantânea; existe nela uma lógica específica, na medi<strong>da</strong> em que, <strong>de</strong>acordo com a narrativa, a todo efeito correspon<strong>de</strong> uma causa explicita<strong>da</strong><strong>no</strong> próprio universo retratado, ou seja, existe uma explicação e uma justificativa,inerentes àquele universo ou à vi<strong>da</strong> fora <strong>de</strong>le. Além disso, a<strong>violência</strong> aí é, para o leitor, um exótico previsível, <strong>da</strong><strong>da</strong> a matéria retrata<strong>da</strong>.Algo como esperar batalhas sangrentas ou mesmo a antropofagia <strong>da</strong>stribos <strong>de</strong> índios dos antigos relatos <strong>de</strong> viajantes e catequistas.Nesse sentido, não se instaura nenhuma ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> com relaçãoà representação <strong>da</strong> <strong>violência</strong>; o que se tem é uma contenção estilísticaproposital, revelando inclusive a compaixão <strong>de</strong> quem procura<strong>de</strong>libera<strong>da</strong>mente ver seres huma<strong>no</strong>s por trás <strong>da</strong> condição <strong>de</strong> “bichospresos”;por outro lado, não há complacência ou a instauração <strong>de</strong> umaversão minimiza<strong>da</strong> <strong>de</strong> qualquer tipo <strong>de</strong> malandragem na representação,pois <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início sabe-se que ali se trata <strong>de</strong> crime e <strong>de</strong> crimi<strong>no</strong>sos. Ameu ver, é essa contenção clássica que filtra o sadismo e o sangue,


<strong>No</strong> <strong>fio</strong> <strong>da</strong> <strong>navalha</strong> 31embora eles brotem em profusão: talvez aí resi<strong>da</strong> o valor ético e moral<strong>de</strong>sse relato, que procura não estetizar a miséria humana, na medi<strong>da</strong> emque não a exacerba; assim, não se equilibra perigosamente entre a <strong>de</strong>núnciae a conivência dos outros livros.V<strong>No</strong> mesmo ensaio anteriormente citado, Antonio Candido pon<strong>de</strong>ra,a respeito <strong>da</strong> “<strong>no</strong>va narrativa brasileira”, que “<strong>no</strong>s vemos lançadosnuma ficção sem parâmetros críticos <strong>de</strong> julgamento. Não se cogitamais <strong>de</strong> produzir (nem <strong>de</strong> usar como categorias) a Beleza, a Graça, aEmoção, a Simetria, a Harmonia. O que vale é o impacto, produzidopela Habili<strong>da</strong><strong>de</strong> ou a Força. Não se <strong>de</strong>seja emocionar nem suscitar acontemplação, mas causar choque <strong>no</strong> leitor e excitar a argúcia docrítico, por meio <strong>de</strong> textos que penetram com vigor mas não se <strong>de</strong>ixamavaliar com facili<strong>da</strong><strong>de</strong>” 30 .Acredito que isso se aplica aos textos <strong>de</strong> que tratamos, sobretudo porque eles trazem <strong>de</strong> volta, como vimos, a questão <strong>da</strong> representação, aqual, <strong>no</strong> campo <strong>da</strong> análise crítica, tinha sido <strong>de</strong>sloca<strong>da</strong>, <strong>de</strong>ixando <strong>no</strong>centro, por muito tempo, o primado <strong>da</strong> forma. Voltam agora, portanto,pontos consi<strong>de</strong>rados “exteriores ao texto”, “excrescências” supera<strong>da</strong>s, comoa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> <strong>de</strong> criar (ou não) mundos verossímeis queexpressem efetivamente uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> concreta, e, principalmente, empaíses como o <strong>no</strong>sso, a potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua função social.Nesse sentido, o choque suscitado pela <strong>violência</strong> que emergedos textos aqui tratados <strong>de</strong>ixa claro que é necessário buscar outrascategorias <strong>de</strong> análise, não restritas a forma e estilo, como aqui tentamosfazer, para buscar compreen<strong>de</strong>r o sentido e a função <strong>da</strong> produção<strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> <strong>hoje</strong>. Se <strong>no</strong>s ativermos à afirmação<strong>de</strong> Candido, vamos perceber que, <strong>de</strong> fato, trata-se <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>r a perspectiva,abandonando uma <strong>de</strong>finição romântica <strong>da</strong> função social<strong>da</strong> cultura basea<strong>da</strong> na idéia <strong>de</strong> que esta <strong>de</strong>veria ser veículo <strong>da</strong>“graça, <strong>da</strong> beleza e <strong>da</strong> harmonia”, aceitando a prevalência <strong>de</strong> umapossível função social que, <strong>de</strong> algum modo, leve em consi<strong>de</strong>raçãoesse impacto trazido pela representação <strong>da</strong> <strong>violência</strong> e <strong>da</strong> abjeção,30Candido, op. cit., p. 214.


32 Tânia Pellegrinina ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, frutos do profundo mal-estar <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s contemporâneasem geral, agudizado <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> por suas condições sócio-culturaisespecíficas. Nessa linha, é bastante provável que a produção e o consumodos textos aqui analisados, como vimos, tenha brotado justamentedo i<strong>no</strong>minável, <strong>da</strong> irresistível atração pelo abjeto, representado pela ausência<strong>de</strong> limites para o excesso <strong>de</strong> <strong>violência</strong> (variável em ca<strong>da</strong> texto),mas também <strong>da</strong> visão “exemplar” dos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> experiência humanaquase em estado primitivo, anterior à constituição do indivíduo comoum ser apto a viver com digni<strong>da</strong><strong>de</strong> em uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civiliza<strong>da</strong>, porquejusta. Algo como a “positivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do negativo”, que se efetua quando <strong>no</strong>s<strong>de</strong>paramos com os limites <strong>da</strong> representação; a transgressão <strong>de</strong>sses limitesrevela a concretu<strong>de</strong> do horror, po<strong>de</strong>ndo servir, assim, à causa <strong>de</strong> umapossível transformação.A <strong>de</strong>speito <strong>da</strong>s ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s aponta<strong>da</strong>s em ca<strong>da</strong> texto – oriun<strong>da</strong>sdo tratamento ambivalente <strong>da</strong> <strong>violência</strong> ao longo <strong>da</strong> história <strong>da</strong> culturanacional, como vimos -, a <strong>de</strong>speito do potencial <strong>de</strong> exotismo presenteem ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les, propício à estetização e à sua transformação emmercadoria, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> sua espetacularização e <strong>da</strong> <strong>de</strong>gra<strong>da</strong>ção impostapor um “valor <strong>de</strong> culto” conferido à <strong>violência</strong> <strong>no</strong> interior <strong>da</strong> culturacontemporânea, esses textos são representações <strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong>traumática inescapável, tal como ela se configura, com alguns matizes,na maioria dos países do terceiro mundo. É claro que, como evi<strong>de</strong>nciamos,as representações paroxísticas <strong>da</strong> miséria e <strong>da</strong> <strong>violência</strong> aqui examina<strong>da</strong>spo<strong>de</strong>m funcionar como reforço dos antigos estereótipos <strong>da</strong> culturabrasileira – e <strong>da</strong> cultura oci<strong>de</strong>ntal. Mas também po<strong>de</strong>m vir a seruma abertura para um discurso mais amplo e complexo, que comportaum viés político necessário; e é nesse <strong>fio</strong> <strong>de</strong> <strong>navalha</strong> que os textos analisadoscorrem, à revelia <strong>de</strong> si mesmos.Retomando Ador<strong>no</strong> 31 – sempre atual –, po<strong>de</strong>-se pensar que talvez sejaessa a única maneira <strong>de</strong> olhar <strong>de</strong> frente essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>: aceitando o trauma,representá-lo por meio <strong>de</strong> choques, rebentando “a tranqüili<strong>da</strong><strong>de</strong> do leitordiante <strong>da</strong> coisa li<strong>da</strong>”, rompendo sua atitu<strong>de</strong> meramente contemplativa, “porquea ameaça permanente <strong>de</strong> catástrofe não permite mais a ninguém a observação<strong>de</strong>sinteressa<strong>da</strong>”. Ain<strong>da</strong> com ele, também se po<strong>de</strong> dizer que esse tipo <strong>de</strong>31Ador<strong>no</strong>, “Posição do narrador <strong>no</strong> romance contemporâneo”, em Os Pensadores, pp. 269-73.


<strong>No</strong> <strong>fio</strong> <strong>da</strong> <strong>navalha</strong> 33representação cria textos semelhantes a “epopéias negativas”, construí<strong>da</strong>ssobre “a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que não compete a elas <strong>de</strong>cidir se a tendênciahistórica que registram é a recaí<strong>da</strong> na barbárie ou, pelo contrário, visa àrealização <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> “. Mas, adverte – e creio que este é o sentido<strong>de</strong>ste ensaio –, “algumas sentem-se <strong>de</strong>masiado à vonta<strong>de</strong> <strong>no</strong> barbarismo”...BibliografiaADORNO, Theodor W. “Posição do narrador <strong>no</strong> romance contemporâneo”,em Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.BENJAMIN, Walter. “A obra <strong>de</strong> arte na era <strong>de</strong> sua reprodutibili<strong>da</strong><strong>de</strong> técnica”,em Obras escolhi<strong>da</strong>s I. São Paulo: <strong>Brasil</strong>iense, 1985.BENTES, Ivana. “Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus promove turismo <strong>no</strong> infer<strong>no</strong>”, emO Estado <strong>de</strong> São Paulo, 31/8/2002.CANDIDO, Antonio. “A <strong>no</strong>va narrativa”, em A educação pela <strong>no</strong>ite e outrosensaios. São Paulo: Ática, 1987.DAMATTA , Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Guanabara Koogan, 1990.DEBORD, Guy. A socie<strong>da</strong><strong>de</strong> do espetáculo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Contraponto, 1997.DURIGAN, Jesus A. “João Antônio e a ciran<strong>da</strong> <strong>da</strong> malandragem”, emSCHWARZ, Roberto (org.). Os pobres na <strong>literatura</strong> brasileira. São Paulo:<strong>Brasil</strong>iense, 1983.ELIAS, <strong>No</strong>rbert. O processo civilizador. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor,1993, v. 2.LINS, Paulo. Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2003.ORICHIO, Luiz Zanin. “‘Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus’ faz espetáculo <strong>da</strong> <strong>violência</strong>”, emO Estado <strong>de</strong> São Paulo, 30/8/2002.PELLEGRINI, Tânia. A imagem e a letra: aspectos <strong>da</strong> ficção brasileira contemporânea.Campinas: Mercado <strong>de</strong> Letras/Fapesp, 1999.ROCHA, João Cezar <strong>de</strong> Castro. “Dialética <strong>da</strong> marginali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, em Ca<strong>de</strong>r<strong>no</strong>Mais!, Folha <strong>de</strong> S. Paulo, 29/4/2004.SCHOLHAMER, Karl Eric. “Os cenários urba<strong>no</strong>s <strong>da</strong> <strong>violência</strong> na <strong>literatura</strong>brasileira”, em PEREIRA, Carlos Alberto Messe<strong>de</strong>r (org.). Linguagens <strong>da</strong><strong>violência</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 2000.SCHOLHAMER, Karl Eric. “O caso Fonseca: a procura do real”, em CASTRO,J. C. (org.). Nenhum <strong>Brasil</strong> existe. Rio <strong>de</strong> Janeiro: UniverCi<strong>da</strong><strong>de</strong> Ed.;Topbooks; Editora <strong>da</strong> UERJ, 2004.


34 Tânia PellegriniSCHWARZ, Roberto. “Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus”, em Seqüências brasileiras. São Paulo:Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1999.SOARES, Luiz Eduardo. “Uma interpretação do <strong>Brasil</strong> para contextualizara <strong>violência</strong>”, em PEREIRA, C.A. Messe<strong>de</strong>r (org.). Linguagens <strong>da</strong> <strong>violência</strong>.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 2000.VARELLA, Dráuzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras,2003.Recebido em agosto <strong>de</strong> 2004.Aprovado em setembro <strong>de</strong> 2004.Tânia Pellegrini – “<strong>No</strong> <strong>fio</strong> <strong>da</strong> <strong>navalha</strong>: <strong>literatura</strong> e <strong>violência</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> <strong>de</strong> <strong>hoje</strong>”. Estudos <strong>de</strong> Literatura<strong>Brasil</strong>eira Contemporânea, nº 24. Brasília, julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2004, pp. 15-34.

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