28 Tânia Pellegrini<strong>de</strong>s, em vigor na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> organiza<strong>da</strong>, mas que, <strong>no</strong> seu relativismo,funcionam como o mínimo controle necessário para que não imperesempre a barbárie.Paradoxalmente, são, também, em muitos pontos, diversas <strong>da</strong>quelas<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> “neofavela” <strong>de</strong>scrita por Paulo Lins, tambémuma civilização paralela, on<strong>de</strong>, to<strong>da</strong>via, grassa a lei do mais forte e aprerrogativa <strong>da</strong> satisfação do primeiro impulso, sempre violento. Comose o exercício <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, nas condições aí <strong>de</strong>scritas, funcionassecomo um passaporte para todo tipo <strong>de</strong> transgressão, uma vez que as<strong>no</strong>ções <strong>de</strong> moral, ética e legali<strong>da</strong><strong>de</strong>, que incluem o controle <strong>da</strong> <strong>violência</strong>,não chegaram a encontrar um solo minimamente fértil parase enraizar. Eis aí a “versão maximalista e maligna” <strong>da</strong> malandragem,anteriormente cita<strong>da</strong>.<strong>No</strong>rbert Elias 26 sugere que, na mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, os comportamentospacificaram-se, pois os impulsos agressivos foram paulatinamenterefreados, recalcados, por se tornarem incompatíveis com a diferenciaçãoca<strong>da</strong> vez maior <strong>da</strong>s funções sociais que foram emergindoe também com a mo<strong>no</strong>polização <strong>da</strong> força pelo Estado mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>. Nassuas palavras, “ao se formar um mo<strong>no</strong>pólio <strong>de</strong> força, criam-se espaçossociais pacificados, que <strong>no</strong>rmalmente estão livres <strong>de</strong> atos <strong>de</strong><strong>violência</strong>. (...) A mo<strong>de</strong>ração <strong>da</strong>s emoções espontâneas, o controledos sentimentos, a ampliação do espaço mental além do momentopresente, levando em conta o passado e o futuro, o hábito <strong>de</strong> ligaros fatos em ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> causa e efeito – todos esses são distintosaspectos <strong>da</strong> mesma transformação (...). Ocorre uma mu<strong>da</strong>nça“civilizadora” do comportamento”.Acredito que essas <strong>no</strong>ções po<strong>de</strong>m explicar as diferenças <strong>de</strong> “expressãodo impulso violento” encontra<strong>da</strong>s <strong>no</strong>s livros analisados e que,literariamente, alimentam o exotismo. Submetidos ao controle centraldo presídio, que, em última instância, representa fisicamente omo<strong>no</strong>pólio <strong>da</strong> força (haja vista a “solução final”), seus habitantes sevêem impedidos <strong>de</strong> utilizar livremente e a qualquer hora a sua forçafísica; assim, organizam-se minimamente em funções sociais simplesque estabelecem alguns laços <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência entre eles, evitando26Elias, O processo civilizador, v. 2, p. 198.
<strong>No</strong> <strong>fio</strong> <strong>da</strong> <strong>navalha</strong> 29explosões constantes <strong>de</strong> <strong>violência</strong> 27 . Essas ocorrem, mas sempre em circunstânciasespecíficas que, <strong>no</strong> mais <strong>da</strong>s vezes, envolvem ruptura do códigoestabelecido e aceito por todos 28 .Po<strong>de</strong>-se pensar que, <strong>no</strong> caso do universo que Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus retrata,o “mo<strong>no</strong>pólio <strong>de</strong> força” não é legitimado por ser percebido como distante<strong>no</strong> tempo e <strong>no</strong> espaço, abstrato e francamente <strong>de</strong>sfavorável, em se tratando<strong>da</strong>s leis instituí<strong>da</strong>s, representa<strong>da</strong>s por policiais corruptos, vis e extremamenteviolentos. Além disso, os “bichos-soltos” eximem-se <strong>de</strong> assumiras funções sociais mais elementares, agrupando-se aleatoriamente embandos cuja organização interna se baseia apenas na soma <strong>de</strong> individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>se cujo cimento é a obtenção <strong>de</strong> algum objetivo imediato: umamulher, um ponto <strong>de</strong> drogas, a morte <strong>de</strong> um oponente. Compara<strong>da</strong> à dopresídio, a vi<strong>da</strong> dos “bichos-soltos” oscila entre dois extremos: uma amplaliber<strong>da</strong><strong>de</strong>, que inclui <strong>da</strong>r vazão a seus sentimentos e paixões, à alegriaselvagem, à satisfação sem limites do prazer, do ódio, <strong>da</strong> <strong>de</strong>struição e até<strong>da</strong> tortura a todos os que lhe são hostis e a exposição a esses mesmostormentos, em caso <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrota. Ou seja, a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s favelas representa<strong>da</strong>s<strong>no</strong>s livros analisados é comparável àquelas <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s primitivas,“não pacifica<strong>da</strong>s”, para retomar <strong>No</strong>rbert Elias, em que a satisfação doimpulso violento é autoriza<strong>da</strong> apenas pela pulsão do presente imediato.Parece-me que, ao contrário <strong>da</strong> atmosfera “guerreira” <strong>de</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>Deus, é <strong>de</strong>sse clima “pacificado” que Varella consegue – paradoxalmente– investir a representação <strong>de</strong> seu relato, o que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do ponto<strong>de</strong> vista por ele adotado: a primeira pessoa <strong>de</strong> um relator, <strong>de</strong>clara<strong>da</strong>mentealguém que não pertence àquele lugar, que ali está <strong>de</strong> passagem, cum-27“Passamos vários a<strong>no</strong>s neste lugar; tem que zelar como se fosse sua casa. Eu limpo <strong>hoje</strong> e só sereiencarregado <strong>da</strong>qui a 26 dias. Não teria <strong>de</strong>sculpa para não fazer <strong>no</strong> maior capricho. Outra, também,é que não ia <strong>da</strong>r certo. Querer bancar o espertinho entre nós, tudo malandro, ó, nunca tem finalfeliz”. Ver Estação Carandiru, p. 42.28“Dessa forma, os ladrões tornam explícito que seu código penal é implacável quando as vítimas sãoeles próprios. – Ladrão que rouba ladrão tem cem a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> perdão, só que quando a gente pega éproblema”. Id., p. 43.29“Essa aura <strong>de</strong> respeito sincero em tor<strong>no</strong> <strong>da</strong> figura do médico que lhes trazia uma pequena aju<strong>da</strong>exaltou em mim o senso <strong>de</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> em relação a eles. Com mais <strong>de</strong> vinte a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> clínica, foi<strong>no</strong> meio <strong>da</strong>queles que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ra como escória que percebi com mais clareza o impacto <strong>da</strong>presença do médico <strong>no</strong> imaginário huma<strong>no</strong>, um dos mistérios <strong>da</strong> minha profissão”. Id., p. 75.