No fio da navalha: literatura e violência no Brasil de hoje
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<strong>No</strong> <strong>fio</strong> <strong>da</strong> <strong>navalha</strong> 25o narrador reproduz os temas e situações <strong>da</strong>quela reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, os modos <strong>de</strong>falar dos seus habitantes, sem conseguir uma i<strong>de</strong>ntificação efetiva comaquele universo, procurando uma espécie <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> classe que,apesar do esforço, não o inclui 19 . Isso <strong>de</strong>nuncia justamente a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>em que se coloca inclusive o autor do livro, enquanto antigo morador, <strong>de</strong>poisetnógrafo e em segui<strong>da</strong> “ficcionalizador” <strong>da</strong>quele universo. Desse modo,o texto acaba tocando <strong>no</strong> exótico, <strong>no</strong> pitoresco e <strong>no</strong> folclórico que, “para oleitor <strong>de</strong> classe média têm o atrativo <strong>de</strong> qualquer outro pitoresco 20 ”.Essas questões também estão representa<strong>da</strong>s <strong>no</strong>s personagens; <strong>de</strong>sapareceramo “bom-bandido” e o “malandro esperto” <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> anterior,convivendo amigavelmente com os otários <strong>da</strong>queles tempos, num limiarfluido entre a lei e a contravenção, em narrativas que, mesmo quando<strong>de</strong>nunciavam, faziam-<strong>no</strong> <strong>de</strong> um modo complacente; ou seja, essa ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong>sapareceu. O que se tem em Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus é a representaçãoimplacável <strong>da</strong> bandi<strong>da</strong>gem cega, centra<strong>da</strong> na existência <strong>de</strong> uma trágicaoposição, “otário/bicho solto”, em que o segundo só po<strong>de</strong> existir às custasdo primeiro. 21 Trata-se <strong>de</strong> “uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> irrecorrível”, que “<strong>de</strong>ixa o juízomoral sem chão”, como diz Roberto Schwarz, mas que acaba funcionando,para o leitor – <strong>de</strong>vido à representação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminismo cego queoblitera qualquer resistência –, como a aceitação <strong>da</strong> <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> socialgerando o crime e a evidência <strong>da</strong> absoluta falta <strong>de</strong> condições <strong>de</strong>possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> superá-los, situando-os, então, do lado <strong>de</strong> fora <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,como um quadro na pare<strong>de</strong>, em que o “belo-feio” acaba sendo apenasuma escolha estética.Essas questões estão liga<strong>da</strong>s também ao que se po<strong>de</strong> chamar <strong>de</strong> umape<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> <strong>violência</strong> geri<strong>da</strong> pela indústria <strong>da</strong> cultura, sobretudo pelos19Um estudo minucioso <strong>da</strong> linguagem – que não é <strong>no</strong>sso objetivo aqui – vai revelar, inclusive,“oscilações” <strong>de</strong> registro (do “culto” ao “popular”) e <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong> discurso, evi<strong>de</strong>nciando essas questões,aponta<strong>da</strong>s já por vários críticos.20Candido, op. cit., p. 213.21“Era bicho-solto necessitado <strong>de</strong> dinheiro rápido; naquela situação assaltaria qualquer um, emqualquer lugar e hora, porque tinha disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> para encarar quem se metesse a besta, paratrocar tiro com a polícia e para o caralho a quatro. Tudo o que <strong>de</strong>sejava na vi<strong>da</strong> um dia conseguiriacom as próprias mãos e com muita atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sujeito homem, macho até dizer chega”. Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>Deus, p. 42. “Realmente, tinha medo <strong>de</strong> amanhecer com a boca cheia <strong>de</strong> formiga, mas virar otário naconstrução civil, jamais. Essa on<strong>da</strong> <strong>de</strong> comer <strong>de</strong> marmita, pegar ônibus lotado pra ser tratado quenem cachorro pelo patrão, não, isso não “. Id., p. 117.