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o erotismo religioso de Murilo Mendes - Grupo de Estudos em ...

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Poética <strong>de</strong> uma conversão neorromântica:o <strong>erotismo</strong> <strong>religioso</strong> <strong>de</strong> <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>sRobson Coelho TinocoA noite é um resumo <strong>de</strong> cios.<strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>sConsi<strong>de</strong>rando três <strong>de</strong> seus livros – O visionário, A poesia <strong>em</strong> pânico e Poesialiberda<strong>de</strong> –, nota-se que a poética <strong>de</strong> <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s, com seu constante impulsoneor<strong>religioso</strong> <strong>de</strong> estar-no-mundo 1 é fort<strong>em</strong>ente marcada por el<strong>em</strong>entosque se comple-mentam. Entre eles, <strong>de</strong>stacam-se a questão da metafísica,do cotidiano, do surrealismo, do encantatório e, <strong>de</strong> maneira b<strong>em</strong> singular, ado f<strong>em</strong>inino, suav<strong>em</strong>ente encoberto por um <strong>erotismo</strong> que passeia entre oslimiares <strong>de</strong> um inefável senso <strong>religioso</strong> e as formas provocant<strong>em</strong>ente sagradasdo corpo <strong>de</strong> mulher(es), s<strong>em</strong>pre brasileira(s).<strong>Murilo</strong> <strong>de</strong>senvolve uma poética centralizada entre o <strong>de</strong>lírio e o sonho,todavia s<strong>em</strong> per<strong>de</strong>r o senso do real 2 . Por ela, a literatura não interessa mais<strong>em</strong> si mesma. Interessa “é ‘a literatura como’ (como <strong>de</strong>positária da m<strong>em</strong>óriacultural, como colonizadora e/ou <strong>de</strong>scolonizadora, como expressão dasdiferenças sexuais, como i<strong>de</strong>ologia etc.)” 3 . Interessa a literatura vazada <strong>em</strong>el<strong>em</strong>entos pelos quais a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e manifestação da libidose juntam harmoniosamente, compondo po<strong>em</strong>as <strong>de</strong> fundo romântico. Sobtal composição, a <strong>de</strong>scrição do ser amado, e das coisas amadas, mesclamsecom uma evocação da presença <strong>de</strong> Deus e da igreja para “acompanhar”esses <strong>de</strong>sejos, fazendo do poeta, no enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> José Guilherme Merquior,um dos mais po<strong>de</strong>rosos representantes do “anarco<strong>erotismo</strong> surreal” 4 . Essaspresenças são reveladas quando, para o poeta,Aparece no céu uma mulher cometaOlhai o rabo <strong>de</strong> prata que ela t<strong>em</strong>1“Sou terrivelmente do mundo”; “só po<strong>de</strong>mos ser cristãos ou cínicos”; “só o futuro é mo<strong>de</strong>rníssimo”,são algumas das frases-versos que revelam a visão <strong>de</strong> mundo muriliana.2Ribeiro e Neves, <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s.3Perrone-Moisés, Altas literaturas, p. 192.4Merquior, apud Picchio, <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s.


252 Robson Coelho Tinoco(...)Ah, qu<strong>em</strong> me <strong>de</strong>ra ir na vertig<strong>em</strong> da mulher-cometa.(...) Não és tu que soluças no corredor escuroPorque abafaram tua alma, e a noite inteira rezas?Tu mesma que vais consolar a nu<strong>de</strong>z das estátuas,(...)Que me importam os sinais da comunida<strong>de</strong>Se posso enlaçar o busto da mulher-cometa? 5Ou quando ele constata que “Estás engrenada nas formas/Que se engrenam<strong>em</strong> outras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a corrente dos séculos. (...) Mulher, tu és a convergência<strong>de</strong> dois mundos./Quando te olho a extensão do t<strong>em</strong>po se <strong>de</strong>sdobraante mim” 6 .As estrofes murilianas, à sua maneira <strong>de</strong>nsa – e ainda que “necessit<strong>em</strong> damontag<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma parafernália analítica” 7 –, pren<strong>de</strong>m-se à composição <strong>de</strong>um grafismo marcado pela aspereza dos sons e dos vocábulos. Raramente seencontra nelas uma preocupação com tons suaves ou amenos, buscando umacomposição b<strong>em</strong> ritmada e harmoniosa da mensag<strong>em</strong> a ser apresentada 8 . Pelocontrário, <strong>em</strong> <strong>Murilo</strong>, a opção é por um tipo <strong>de</strong> sinfonia dissonante <strong>em</strong> queas rupturas – compostas pelo ritmo quebrado e absoluta <strong>de</strong>spreocupação comas rimas –, formam uma polifonia da <strong>de</strong>smusicalização. Assim buscam contatocom o projeto surrealista <strong>de</strong> composição formal 9 , <strong>em</strong> que as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong>v<strong>em</strong> fluirlivres para revelar o máximo <strong>de</strong> sentimento profundo e verda<strong>de</strong>iro. Essasmarcas formais, com base centrada <strong>em</strong> um quê <strong>de</strong> <strong>erotismo</strong> velado, cresc<strong>em</strong>invisivelmente entre as imagens <strong>de</strong> palavras entrecolocadas nos espaços <strong>de</strong>fala e sensação. Assim, é que “eu me sinto um fragmento <strong>de</strong> Deus/(...) NaIgreja há pernas, seios, ventres e cabelos/Em toda parte, até nos altares./Hágran<strong>de</strong>s forças <strong>de</strong> matéria na terra no mar e no ar/(...) A matéria é forte eabsoluta/S<strong>em</strong> ela não há poesia” 10 .Seguindo essa linha, centrada na óptica incessante da universalida<strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rna – do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> contato direto com o mundo e tão b<strong>em</strong>-vinda aosolhos dos mo<strong>de</strong>rnistas radicais –, a poesia <strong>de</strong> <strong>Murilo</strong> foi consi<strong>de</strong>rada como5Men<strong>de</strong>s, “Evocação”, p. 345.6Id., “Mulher vista do alto <strong>de</strong> uma pirâmi<strong>de</strong>”, p. 237.7Lima, “O agônico na abertura <strong>de</strong> Cont<strong>em</strong>plação”, p. 22.8Guimarães, Território/conjunções.9Merquior, A razão do po<strong>em</strong>a.10Men<strong>de</strong>s, “Po<strong>em</strong>a espiritual”, p. 278.


Poética <strong>de</strong> uma conversão neorromântica253t<strong>em</strong>aticamente limitada. Tal “limite” se marcava por uma exacerbada tendênciareligiosa na expressão dos el<strong>em</strong>entos poéticos, ao lado <strong>de</strong> um <strong>erotismo</strong>velado, e marcada pelo exagero da presença <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> como expressão<strong>de</strong> um individualismo s<strong>em</strong>pre muito surrealista 11 . Essas características mantinhammuito poucos pontos <strong>de</strong> contato com uma então <strong>de</strong>nominada “poesiamo<strong>de</strong>rna”, que utilizava novas formas e conteúdos poéticos para expressaro choque <strong>de</strong> <strong>em</strong>oções, o caos <strong>de</strong> sentimentos e sensações, a busca <strong>de</strong> novoscaminhos <strong>em</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> ritmo frenético <strong>de</strong> industrialização. Aliás,é o próprio poeta mineiro, <strong>em</strong> seu s<strong>em</strong>pre-tom <strong>de</strong> pacífica reclamação, queconstata “como é difícil, na Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, a língua do eterno”.Todavia, n<strong>em</strong> todos os i<strong>de</strong>alizadores dos métodos e t<strong>em</strong>as do que seriauma escola mo<strong>de</strong>rnista lançavam seus olhares mo<strong>de</strong>rnos à poesia como se elafosse produto-objeto <strong>de</strong> si mesmos. Manuel Ban<strong>de</strong>ira – pessoa mais <strong>de</strong> visãomo<strong>de</strong>rna que poeta <strong>de</strong> estilo mo<strong>de</strong>rnista – teve, mesmo participando do “movimentomo<strong>de</strong>rnista brasileiro”, uma percepção muito mais ampla do que aproposta pelos teóricos da nova forma poética assumida como cont<strong>em</strong>porânea.O autor <strong>de</strong> “Os sapos” – um dos ícones da S<strong>em</strong>ana Mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> 1922 – fazuma análise, por estar menos atrelada a preconceitos estabelecidos comoconjunto <strong>de</strong> normas, muito mais representativa da importância das i<strong>de</strong>ias<strong>de</strong> <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> sua visão <strong>de</strong> poesia para o Brasil, quando consi<strong>de</strong>raque “<strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s é um conciliador <strong>de</strong> contrários”. É nessa “missão” <strong>de</strong>conciliador que o poeta vaticina queTeus olhos vão ser julgadosCom cl<strong>em</strong>ência b<strong>em</strong> menorDo que o resto do teu corpo.Teus olhos pousaram <strong>de</strong>maisNos seios e nos quadris,Eles pousaram <strong>de</strong> menosNos outros olhos que exist<strong>em</strong>Aqui neste mundo <strong>de</strong> Deus 12 .A poesia muriliana (composta por esses três livros), centrada na opção dopoeta <strong>de</strong> compor seu mo<strong>de</strong>rnismo literário sob uma base erótico-religiosa, visa11Elia<strong>de</strong>, Imágenes y símbolos.12Men<strong>de</strong>s, “Juízo final dos olhos”, <strong>em</strong> O visionário, p. 205.


254 Robson Coelho Tinoco<strong>de</strong>monstrar seu aspecto universalista – poesia <strong>de</strong> um ser humano visível, maisque ser poético, feita para outros seres humanos (visíveis) e para o mundo queos abriga 13 . Assim, parecendo se afastar, essa poesia se aproxima do estratomais profundo da “i<strong>de</strong>ologia mo<strong>de</strong>rnista” cujo componente fundamentalera a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> esclarecimento, por meio da mensag<strong>em</strong> escrita (e sua relaçãocom o mundo), <strong>de</strong> um leitor alheio se transformando <strong>em</strong> hom<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>rno,inserido <strong>em</strong> contexto sócio-histórico mo<strong>de</strong>rno.Revela, ainda, mais que a simples constatação <strong>de</strong> duas tendências – aerótico-religiosida<strong>de</strong> e o surrealismo – avaliadas como aspectos centrais napoética muriliana. Essa poética foge à imposição <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> estar só “tão cheia”<strong>de</strong> nacionalismo <strong>em</strong> que, o escritor buscando tal representação, assumia umpapel didático frente à coletivida<strong>de</strong> e sua vocação patriótico-sentimental 14 .Nesse sentido <strong>de</strong> “revelação”, os po<strong>em</strong>as precisam ser vistos além <strong>de</strong> seuaspecto meramente formal – mensag<strong>em</strong> composta com el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> literarieda<strong>de</strong>– e percebidos como estrato linguístico <strong>de</strong> percepção social (<strong>em</strong> seusel<strong>em</strong>entos cambiáveis <strong>de</strong> neo<strong>erotismo</strong> e popularização ascen<strong>de</strong>nte). AssimA noite chegaR<strong>em</strong>exendo os quadris.Os casais passam na ruaEngolindo sombras, tontos <strong>de</strong> tanto calor e <strong>de</strong> amor.(...)A curva do mar balança.Uns sons <strong>de</strong> maxixe violentoVêm do clube “Jasmim do Amor”!A moça morena cisma na cama. 15 .Tal percepção, note-se, amplia a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apreensão das intençõesdo poeta frente a sua produção. Essa atitu<strong>de</strong> permite, ainda, “enten<strong>de</strong>r”melhor uma poesia (mo<strong>de</strong>rnista) que requer uma releitura s<strong>em</strong> submeter-setanto aos limites, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre b<strong>em</strong> <strong>de</strong>finidos, do que seria uma literaturamo<strong>de</strong>rna – limites inadmissíveis pelos autointitulados “anarcovanguardistas”e, paradoxalmente, impostos por eles próprios. Aliás, esse rígido estabelecimentotodo <strong>de</strong> formas, e t<strong>em</strong>as, e conteúdos foi causado, no mais, por13Aragão, A poética da visibilida<strong>de</strong> e a visibilida<strong>de</strong> poética <strong>em</strong> <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s.14Candido, Literatura e socieda<strong>de</strong>.15Men<strong>de</strong>s, “A noiva”, <strong>em</strong> O visionário, p. 216.


Poética <strong>de</strong> uma conversão neorromântica255exigências <strong>de</strong> teor burocrático entre didático-acadêmico que equiparam,s<strong>em</strong> uma análise mais cuidadosa, a arte literária às chamadas artes <strong>de</strong> massa(fotonovelas, filmes <strong>de</strong> cowboy etc.) 16 .A poesia <strong>de</strong> <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s, enquanto representação artística daqueles(novos) t<strong>em</strong>pos mo<strong>de</strong>rnos, ultrapassa os limites <strong>de</strong> normas/formas condicionadoras<strong>de</strong> uma pretensa liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> estilo. É preciso lê-la atentamentepara avaliar sua assumida condição <strong>de</strong> universalida<strong>de</strong> como fator <strong>de</strong> expressãoliterária representando um período mo<strong>de</strong>rno marcado por revalorizações do<strong>erotismo</strong> como questão natural, questionamentos pessoais e (re)or<strong>de</strong>naçãoconflituosa <strong>de</strong> classes sociais. É preciso percebê-la como produto do mo<strong>de</strong>rnismo<strong>em</strong> um contexto artístico vanguardista (última década do século XIXaté décadas iniciais do século XX – 1920, 1930) e sua interferência, como estabelecimento <strong>de</strong> propostas e normas a ser<strong>em</strong> seguidas, na construçãopoética e visão <strong>de</strong> mundo <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> integrado ao seu t<strong>em</strong>po-espaçohistórico (<strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s nasceu <strong>em</strong> 1901, <strong>em</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, MG, e morreuaos 74 anos, <strong>em</strong> Lisboa).No poeta, a questão do mo<strong>de</strong>rno toma feições <strong>de</strong> uma erótico-religiosida<strong>de</strong><strong>em</strong> que o tom <strong>de</strong> angústia e <strong>de</strong> melancolia, presentes na naturezahumana como um <strong>de</strong> seus condicionadores existenciais, completa-se comum surrealismo otimista buscando na forma uma representação possível <strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Tal representação se dá como núcleo <strong>de</strong> acontecimentos quer<strong>em</strong>et<strong>em</strong> o ser humano à sua (frágil) possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser eterno e não coisaefêmera, submetida à rapi<strong>de</strong>z mercantil-tecnológica da (mo<strong>de</strong>rna) passag<strong>em</strong>do t<strong>em</strong>po. É nesse ambiente que “O namorado cont<strong>em</strong>pla/O corpo da namorada./Vêo corpo como está,/Não vê como o corpo foi n<strong>em</strong> como o corposerá” 17 . Ambiente <strong>em</strong> que a percepção do corpo da amada é “O que rarasvezes a forma/Revela./O que, s<strong>em</strong> evidência, vive./O que a violeta sonha./Oque o cristal contém/Na sua primeira infância” 18 .Sob tal concepção poética, fundada <strong>em</strong> uma estrutura <strong>de</strong> sensaçõeseróticas e manifestações religiosas, <strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar, ainda, a importância<strong>de</strong> um “novo” sentido <strong>de</strong> romantismo como instrumento <strong>de</strong> expressão /ação anticapitalista e revolucionária 19 , el<strong>em</strong>entos que, na poesia <strong>de</strong> <strong>Murilo</strong>16Lopes, A palavra e os dias.17Men<strong>de</strong>s, “O namorado e o t<strong>em</strong>po”, <strong>em</strong> O visionário, p. 201.18Id., “Algo (a Maria da Sauda<strong>de</strong>)”, <strong>em</strong> Poesia liberda<strong>de</strong>, p. 438.19Löwy e Sayre, Revolta e melancolia.


256 Robson Coelho TinocoMen<strong>de</strong>s, possu<strong>em</strong> forte relação com sua visão mo<strong>de</strong>rnamente romântica eeroticamente religiosa.Essa poesia, ao revelar a expressão da Poesia, mostra-nos a inutilida<strong>de</strong> daposse do que, <strong>de</strong> fato, não nos pertence. Tal “sentido <strong>de</strong> inutilida<strong>de</strong>” assimse dá por não se saber assumir integralmente a existência <strong>de</strong> um ser, <strong>de</strong> umobjeto, <strong>de</strong> um sentimento, enfim, da própria poesia como artefato poético <strong>de</strong>percepção <strong>de</strong> mundo e integração com o outro – artefato <strong>de</strong> informação,sensação, canto e invocação. Ao invocar a presença do hom<strong>em</strong>, a poesia lherevela que “A gente fica pensando/Que é dono <strong>de</strong> alguma coisa/Que possuimóvel <strong>de</strong> carne.../Mas eu não sou <strong>de</strong> ninguém” 20 .Dessa maneira, enten<strong>de</strong>-se, a poética muriliana cumpre a função <strong>de</strong><strong>de</strong>monstrar a evolução filosófico-histórica do romantismo como produçãosocial questionando, praticamente, os próprios valores e conceitos. Possibilita,ainda, e <strong>de</strong> maneira especial, uma leitura mais apurada da presença<strong>de</strong>sses el<strong>em</strong>entos <strong>em</strong> sua estrutura, universalista na apresentação dos t<strong>em</strong>ase essencialista na composição das i<strong>de</strong>ias. Poética marcada por imagens entreformas f<strong>em</strong>ininas como sentido <strong>de</strong> presença e afastamento, eternida<strong>de</strong> epassag<strong>em</strong> <strong>em</strong> queA mulher que escolh<strong>em</strong>os, a única e não outraDentre tantas que habitam a terra triste,Esta mesma, frágil e in<strong>de</strong>fesa, bela ou feia,(...)Esta é a que rompe as gra<strong>de</strong>s do nosso coração,Esta é a que possuímos mais pela ternura que pelo sexo 21 .Mulher que o poeta possui menos pelo sexo e mais pela dolorosa ternura,poisTe vi crescendo na rua, no colégio,Vi teu sangue, entrei no teu corpo,Mas não estou ligado a ti mesma.Meu espírito não soprou no teu corpo,Não te fez renascer 22 .20Men<strong>de</strong>s, “Canto da pobreza”, <strong>em</strong> O visionário, p. 207.21Id., “O amor separa”, O visionário, p. 200.22Id., “A mulher do <strong>de</strong>serto”, O visionário, p. 222.


Poética <strong>de</strong> uma conversão neorromântica257E ainda, <strong>de</strong>sta mulher lascivamente amorosa, aponta queO amor é muito gran<strong>de</strong>Mas não é puro, as mulheresToda a hora humilham a genteCom golpes fundos <strong>de</strong> olhares,Com arrancadas <strong>de</strong> seios...Mas assim mesmo inda é bom 23 .Na percepção <strong>de</strong>sse romantismo mo<strong>de</strong>rno (resguardado sob um mantoerótico-<strong>religioso</strong>) como instrumento <strong>de</strong> revolução (pessoal/poética), <strong>em</strong>um momento histórico essencialmente capitalista, é fundamental percebera construção e caminho, <strong>em</strong> <strong>Murilo</strong>, <strong>de</strong>ssa “categoria lírica”, instaurando-acomo um dos componentes <strong>de</strong> sua própria poética 24 . Nesse sentido, ao lado<strong>de</strong> uma sensibilíssima expressão erótica, vários po<strong>em</strong>as se apresentam pormeio <strong>de</strong> profundos questionamentos críticos, mesmo que não explícitos,sobre o po<strong>de</strong>r social dos interesses econômicos, sobre os projetos das nações<strong>em</strong> oferecer requintadas estruturas urbanas – <strong>em</strong> um mundo fincado entreguerras, mortes, injustiças, amores volúveis –, sobre propagandas do b<strong>em</strong>estartido como algo politicamente correto, todavia, ineficaz à comunida<strong>de</strong>.Enfim, essas informações, que intentam compor um quadro geral t<strong>em</strong>áticodos três <strong>de</strong> livros, vêm representar a estrutura básica da linha poética <strong>de</strong><strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s. Essa linha é fort<strong>em</strong>ente caracterizada por suas já citadastendências sócio-históricas, clássicas, visionárias, barroquizantes, surrealistas,mesmo pós-mo<strong>de</strong>rnistas e, sobretudo, românticas, melhor dizendo,mo<strong>de</strong>rnamente românticas/eroticamente religiosas. É assim que “Sinto-mecompelido ao trabalho literário: (...); pela notícia <strong>de</strong> que Deus, diante daburrice e cruelda<strong>de</strong> soltas, <strong>de</strong>mitiu-se do cargo <strong>de</strong> administrador dos negóciosdo hom<strong>em</strong>; pelo charme operante das cabeleirosas e das pernilongas, dassexy a jato e das menos sexy a tílburi” 25 .Essas tendências, articuladas, formam a base da visão poética muriliana<strong>de</strong> mundo construída pela criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus próprios conceitos, crenças,projetos, amores e <strong>de</strong>sejos eróticos. Acrescente-se a tais el<strong>em</strong>entos23Id., “Mas”, O visionário, p. 234.24Tinoco, Poesia <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>em</strong> pânico.25Micro<strong>de</strong>finição do autor (A), Picchio, op. cit., p. 46.


258 Robson Coelho Tinocoum senso visionário vigoroso, musicalida<strong>de</strong> difusamente atonal, lirismoe religiosida<strong>de</strong> originalíssimos atrelados à concepção surreal-mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>versos, ritmos e imagens.Tal essência poética se articula à manifestação mo<strong>de</strong>rna que revela o sentidoético-estético dos <strong>de</strong>sejos (também eróticos) das pessoas e seus sonhos,suas vonta<strong>de</strong>s e, entre eles, a noção (mo<strong>de</strong>rna) do pecado, do perdão, doamor, dos sonhos, <strong>de</strong> Deus, dos anjos, diabos. Como <strong>de</strong>staque, note-se que<strong>de</strong>ssas “pessoas murilianas”, as muitas mulheres <strong>em</strong> seus po<strong>em</strong>as se apresentamcomo revelação físico-metafísica do fim e da eternida<strong>de</strong>, como <strong>em</strong>Mulher, o mais terrível e vivo dos espectros,Por que te alimentas <strong>de</strong> mim <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio?Em ti encontro as imagens da criação:És pássaro e flor, pedra e onda variável...Mais que tudo, a nuv<strong>em</strong> que volta e se consome 26 .Tal visão <strong>de</strong>slimita-se na medida <strong>em</strong> que associa a intuição surreal àconcepção cristã que busca abranger e conter a explicação essencialista domundo e do sentido das ações práticas. Essa visão abrange, ainda, o “<strong>de</strong>stino”na vida humana, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> suas primeiras manifestações até o fim bíblicodos t<strong>em</strong>pos, <strong>em</strong> que o importante seria o sentido <strong>de</strong> fé e humilda<strong>de</strong> frente aacontecimentos inexoráveis. Consi<strong>de</strong>rando que a “questão romântica” nãoserá vista pelo mérito <strong>de</strong> juízos <strong>de</strong> valor ou avaliações críticas <strong>de</strong> uma ou <strong>de</strong>outra corrente, é o próprio <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s – eroticamente <strong>religioso</strong>, s<strong>em</strong>presendo romântico – qu<strong>em</strong> se manifesta, ao afirmar queNão encontro minha paz na Igreja.(...)Tu, mulher, criatura limitada como eu,Recebes a melhor parte do meu culto.Eu te amo pela tua elegância, pela tua mentira, pela tua vida teatral,E n<strong>em</strong> ao menos posso repousar a cabeça na pedra do teu corpo.Só tu, <strong>de</strong>mônio, nunca me faltas n<strong>em</strong> um instante 27 .26Men<strong>de</strong>s, “Mulher”, <strong>em</strong> A poesia <strong>em</strong> pânico, pp. 290-1.27Id., “Os três círculos, <strong>em</strong> A poesia <strong>em</strong> pânico, p. 287.


Poética <strong>de</strong> uma conversão neorromântica259Agoniado <strong>de</strong>mônio que não lhe falta e, talvez, impeça sua percepçãofinamente essencial da vida e da poesia, pois “Eu nunca po<strong>de</strong>ria aplacar estaânsia absoluta,/Esta gana que tenho <strong>de</strong> ti/– Mesmo se te possuísse./(...) Eutenho ciúme <strong>de</strong> Deus/(...) Na noite total s<strong>em</strong> pensamento e s<strong>em</strong> sexo 28 . Enessa agonia (visionariamente <strong>de</strong>moníaca) <strong>de</strong> percepção das formas f<strong>em</strong>ininas,o poeta se redime frente à figura prototípica <strong>de</strong> Mulher que, s<strong>em</strong> pedirnada, oferece tudo a todos. Assim,Os namorados passavam, cheiravam os seios <strong>de</strong> JandiraE eram precipitados nas <strong>de</strong>lícias do inferno.Eles jogavam por causa <strong>de</strong> Jandira,Deixavam noivas, esposas, mães, irmãsPor causa <strong>de</strong> Jandira.E Jandira não tinha pedido coisa alguma 29 .Romantismo muriliano: <strong>erotismo</strong> e(m) <strong>de</strong>sejo;oração e(m) pecadoDe extensa amplitu<strong>de</strong> conceitual, os termos clássico e romântico terminariampor significar respectivamente “equilíbrio e interrupção <strong>de</strong> equilíbrio”, oque, na visão do autor, po<strong>de</strong>ria ser tomado como aproximação da <strong>de</strong>finição<strong>de</strong> Goethe. O escritor al<strong>em</strong>ão, ao avaliar a presença dos dois termos, dizque “por clássico, indico a saú<strong>de</strong>, e por romântico, a doença”, <strong>de</strong>finição que<strong>de</strong>nota a postura <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> vê o estado sereno da pessoa que não percebe aprópria saú<strong>de</strong> porque sadia; do outro, o estado <strong>de</strong> fermentação, <strong>de</strong> labutafebriciante que luta para superar a própria doença, isto é, para alcançarnovo equilíbrio 30 .Percebe-se pela composição muriliana a articulação entre el<strong>em</strong>entosclássicos (mo<strong>de</strong>rnizados) e líricos, aplicados a um romantismo íntimo (esocial) estabelecendo aproximações que, enfim, dão o tom <strong>de</strong> análise i<strong>de</strong>alpara “compreen<strong>de</strong>r” sua poética. Por ex<strong>em</strong>plo, mesmo sua expressão barrocarevela – também – uma sensação erótica que extrapola o jogo claro-escuropós-medieval, con<strong>de</strong>nsando-se na brilhante clarida<strong>de</strong> neorrenascentista da28Men<strong>de</strong>s, “Poesia do ciúme”, <strong>em</strong> A poesia <strong>em</strong> pânico, p. 293.29Id., “Jandira”, <strong>em</strong> O visionário, p. 203.30Praz, A carne, a morte e o diabo na literatura romântica.


260 Robson Coelho Tinocomo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. É nesse “con<strong>de</strong>nsamento” que “A múltipla sinfonia avançapara mim/Com os quadris s<strong>em</strong> sinos e violoncelos/A mulher <strong>de</strong> aço me interroganas altas serras,/Deverei <strong>de</strong>cifrar o seu enigma” 31 . É nele, ainda, queo sentido sublime da forma todo se esvai sob uma camada concreta fundadano prosaísmo do factual. Assim, “Carm<strong>em</strong> fica matutando/No seu corpo jápassado./– Até a volta, meu seio/De mil novecentos e doze./A<strong>de</strong>us, minhaperna linda/De mil novecentos e quinze” 32 .Entenda-se que o termo romântico, <strong>em</strong> suas origens r<strong>em</strong>otas, significavamais do que romanesco – quimérico, fabuloso – ou pitoresco – usado para<strong>de</strong>screver cenários que se abr<strong>em</strong> aos olhos e conotariam admiração. Assim,romântico não <strong>de</strong>screvia somente o cenário, mas a <strong>em</strong>oção pessoal suscitada<strong>em</strong> qu<strong>em</strong> o cont<strong>em</strong>plasse. Nesse sentido, e frente ao racionalismo da socieda<strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rna, a poesia po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o romantismo, um tipo<strong>de</strong> “nostalgia” da religião. Todavia, frente ao cristianismo, será pecaminosaexaltação da carne, culto mais do b<strong>em</strong> do amor do que da graça 33 .Sob esses conceitos <strong>em</strong> <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s, percebe-se que sua poesia retraçaa linha tênue entre prazeres mundanos e orações místicas. O poeta, assim,escreve/entoa cânticos <strong>em</strong> queCabeleiras <strong>de</strong> palmeirasMorenas vermelhas lourasSe agitam neste <strong>de</strong>serto.Água não falta, cerveja,Uísques e aguar<strong>de</strong>ntes.Po<strong>em</strong>as faz<strong>em</strong> l<strong>em</strong>brarQue se <strong>de</strong>ve rezar um pouco 34 .Cânticos que repet<strong>em</strong>, murilianamente, o tom bíblico dos “Cânticos <strong>de</strong>Salomão” 35 . Neles, o autor, <strong>em</strong> tom <strong>de</strong> ternura apaixonada, diz:Como és bela, minha amada, (...)Teu pescoço é a torre <strong>de</strong> Davi,31Men<strong>de</strong>s, “Segunda natureza (I)”, <strong>em</strong> A poesia <strong>em</strong> pânico, p. 290.32Id., “A mãe do primeiro filho”, <strong>em</strong> O visionário, p. 198.33Merquior, O fantasma romântico e outros ensaios.34Men<strong>de</strong>s, “Po<strong>em</strong>a no bon<strong>de</strong>-carmelo”, <strong>em</strong> O visionário, pp. 234-5.35Bíblia <strong>de</strong> Jerusalém.


Poética <strong>de</strong> uma conversão neorromântica261construída com <strong>de</strong>fesas;<strong>de</strong>la pen<strong>de</strong>m mil escudose armaduras dos heróis.Teus seios são dois filhotes,filhos gêmeos <strong>de</strong> gazela,pastando entre açucenas 36 .Sob tal sentido sócio-literário – que para <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s representaa ar<strong>de</strong>nte (con)vivência conflituosa eros-<strong>em</strong>-espírito santo –, românticopassa a representar subjetivamente um caráter, na verda<strong>de</strong>, in<strong>de</strong>finido,como interessante, charmoso, excitante, que <strong>de</strong>screv<strong>em</strong> “não tanto asproprieda<strong>de</strong>s dos objetivos quanto nossas reações a eles, os afetos queeles suscitam no espectador impressionável” 37 . Nesse âmbito, a Natureza,<strong>de</strong>scrita a partir <strong>de</strong> uma composição romântica, seria revelada por meiodo conjunto fluido <strong>de</strong> associações e <strong>de</strong> sentimentos <strong>de</strong>duzidos da poesiae, além <strong>de</strong>la, da literatura <strong>em</strong> geral. Seria, pois, a expressão <strong>de</strong> uma novaóptica <strong>de</strong> análise que toma força nos meios intelectuais e artísticos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>meados do século passado, segundo a qual a Natureza é que imitaria aArte, e não o contrário.Na verda<strong>de</strong>, cabe a esses conceitos a função <strong>de</strong> “apenas fornecer uma indicaçãovaga da coisa, <strong>de</strong>ixando à imaginação a tarefa <strong>de</strong> evocá-la” e “naquiloque é inefável, por consequência, consiste-se a essência da romanticida<strong>de</strong>”.Para Schlegel (Lucin<strong>de</strong>), a palavra e a forma são apenas acessórios; o essencialresi<strong>de</strong> no “pensamento e o fantasma poético e esses são possíveis somentena passivida<strong>de</strong>” 38 . Quanto a essa vaguidão bíblico-carnal, impressa <strong>em</strong> umaevocação surreal, o poeta <strong>de</strong>staca queEsta cabeleira nasceuNo corpo das nebulosas,Depois renasceu <strong>em</strong> Eva,Atravessou muitos túneisDe corpos gran<strong>de</strong>s, morenos(...)36Quinto po<strong>em</strong>a, Cântico 3-4, Cântico dos Cânticos, Bíblia <strong>de</strong> Jerusalém, p. 1094.37Praz, A carne, a morte e o diabo na literatura romântica, p. 34.38Praz, op. cit., p. 35.


262 Robson Coelho TinocoVinham os amantes <strong>de</strong> Dulce,À sombra da cabeleiraPassavam dias e noites,Alguns <strong>de</strong>les n<strong>em</strong> l<strong>em</strong>bravamQue além dos cabelos haviaOutras belezas no corpo 39 .Aqui a essência romântica – <strong>em</strong> que romântico é consi<strong>de</strong>rar a expressãoconcreta como tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência – exalta o artista que não materializaseus sonhos, <strong>de</strong>staca o poeta parado “ante a eternida<strong>de</strong> da página branca, omúsico que, s<strong>em</strong> nenhuma intenção <strong>de</strong> traduzi-los <strong>em</strong> notas pentagrâmicas,fica atento aos concertos harmoniosos <strong>de</strong> sua alma” 40 . Em <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s,tal essência revela a intensa harmonia do <strong>religioso</strong> amor (romântico) entreincontido <strong>de</strong>sejo (erótico), por vezes, resguardando os “murilianos paradoxos”<strong>de</strong> a alma divina habitar um corpo humano e <strong>de</strong>sse corpo <strong>de</strong>sejar um outro(que não lhe pertence). Assim é queO volume do teu seioPe<strong>de</strong> o ímã <strong>de</strong> outros <strong>de</strong>dos...O cheiro do teu cabeloNão é feito pro travesseiro.(...)O sangue <strong>de</strong> tuas veiasNoutro corpo há <strong>de</strong> ferver.O teu hálito cheirosoOutro t<strong>em</strong> que o respirar 41 .Note-se que não foram poucos os românticos que, por meio da virtu<strong>de</strong>moral, não conseguindo dominar n<strong>em</strong> ultrapassar “a perturbação com quehaviam excitado seus peitos, esquecendo-a e retomando a mo<strong>de</strong>sta vida burguesa,caíram <strong>em</strong> perdição” 42 . Ex<strong>em</strong>plos singulares <strong>de</strong>ssa “queda”, <strong>em</strong> <strong>Murilo</strong>,são compostos eroticamente (e religiosamente), quando da construção dopo<strong>em</strong>a Jandira (já citado), <strong>em</strong> que a f<strong>em</strong>inilização poético-conceitual <strong>de</strong> um39Men<strong>de</strong>s, “Biografia da cabeleira”, <strong>em</strong> O visionário, p. 206.40Praz, op. cit., p. 36.41Men<strong>de</strong>s, “A noiva”, <strong>em</strong> O visionário, p. 217.42Bene<strong>de</strong>to Croce apud Praz, op. cit., p. 60.


Poética <strong>de</strong> uma conversão neorromântica263sentimento amoroso se antepõe à paixão carnal; <strong>em</strong> que libido e luxúria sesubmet<strong>em</strong> à reverência ao ser amado divinizado, e o mundo...O mundo começava nos seios <strong>de</strong> Jandira.(...)Apareceram ritmos que estavam <strong>de</strong> reserva,Combinações <strong>de</strong> movimento entre as ancas e os seios.(...)E Jandira não morre,Espera que os clarins do juízo finalVenham chamar seu corpo,Mas eles não vêm 43 .Quanto a essa questão romântica e suas influências – na produçãomuriliana aqui focada –, <strong>de</strong>ve-se notar a intenção <strong>de</strong> se instaurar sobre abase <strong>de</strong> uma crise metafísica a orig<strong>em</strong> das atribulações e variações <strong>de</strong> umdado período sócio-histórico. Alguns historiadores da literatura 44 , a fim <strong>de</strong>encontrar explicação razoável para o surgimento na Inglaterra da correntepoética iniciada com John Donne, a atribuíram ao manifestado esgotamentohistórico da concepção medieval do mundo submetido à presença <strong>de</strong> umanova socieda<strong>de</strong> (<strong>em</strong> que <strong>em</strong>ergiam ciências como sociologia, comunicação,pesquisas antropológicas e científicas etc.), sobretudo, economicamente maisativa e competitiva. Imerso nesse mundo, o poeta nota que a “velocida<strong>de</strong> seopõe/À nu<strong>de</strong>z essencial” e que permanece, sobre o t<strong>em</strong>po, a “Pulsação dahumanida<strong>de</strong>/Que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a orig<strong>em</strong> até o fim/Procura entre tédios e lágrimas./Pela carne miserável,/Entre colares <strong>de</strong> sangue,/Entre incertezas e abismos/Entre fadiga e prazer” 45 .A questão romântica – mo<strong>de</strong>rnamente lírica/religiosamente erótica –,no poeta, é uma presença que busca superar essas manifestações, no mais,<strong>de</strong> estilo, conteúdo e t<strong>em</strong>as pessoais. Sob tal marca <strong>de</strong> superação, <strong>Murilo</strong>procura a integração máxima com o ser divino, sobretudo, no ser f<strong>em</strong>inino(mulher = Igreja). Assim, afirma que43Men<strong>de</strong>s, “Jandira”, <strong>em</strong> O visionário, p. 202.44Cf., por ex<strong>em</strong>plo, Merquior, O fantasma romântico e outros ensaios, e Carpeaux, História da literaturaoci<strong>de</strong>ntal.45Men<strong>de</strong>s, “Janela do caos”, <strong>em</strong> Poesia liberda<strong>de</strong>, pp. 438-9.


264 Robson Coelho TinocoQuero suprimir o t<strong>em</strong>po e o espaçoA fim <strong>de</strong> me encontrar s<strong>em</strong> limites unido ao teu ser,Quero que Deus aniquile minha forma atual e me faça voltar a ti,(...)Quero penetrar tuas entranhasA fim <strong>de</strong> ter um conhecimento <strong>de</strong> ti que n<strong>em</strong> tu mesma possuis.(...)Quero ser acariciado <strong>em</strong> pedra <strong>em</strong> tuas mãos,Quero me dissolver <strong>em</strong> perfume nas tuas narinas.Quero me transformar <strong>em</strong> ti 46 .E, plenamente (<strong>de</strong> corpo <strong>em</strong> alma) transformado,Eu te respiro por todos os poros:Mulher, estás <strong>em</strong> todos os lugares.Prefiro me danar a um dia te per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista.(...)Tua existência é a justificação do mundo:Para que vale o solSenão para dar a vida à matéria que te cerca,(...)Para que vale o paraísoSe não estiveres a meu lado? 47 .Enfim – como cadinho poético <strong>em</strong> que se con<strong>de</strong>nsam –, é importantenotar que tais manifestações humanas compunham o então quadro social,instituído sobre as dúvidas e hesitação <strong>de</strong> dogmas po<strong>de</strong>rosos, <strong>de</strong>terminadospor séculos <strong>de</strong> dominação eclesiástica e teocêntrica. Tomando como baseesse “contexto <strong>de</strong> dominação”, na leitura <strong>de</strong>sses po<strong>em</strong>as <strong>de</strong> <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>sse percebe a originalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um conflito estabelecido entre o sentido <strong>de</strong>uma ascese religiosa, <strong>em</strong> “poético confronto” com uma sensação erótica –paradoxo cuidadosamente instituído entre o que nasce e o que morre; gênesise Sodoma; calvário e Paris; altar e carnaval. Então, como <strong>de</strong>sejado fruto46Men<strong>de</strong>s, “O amante invisível, <strong>em</strong> A poesia <strong>em</strong> pânico, p. 304.47Id., “Po<strong>em</strong>a con<strong>de</strong>nado”, <strong>em</strong> A poesia <strong>em</strong> pânico, p. 308.


Poética <strong>de</strong> uma conversão neorromântica265bendito <strong>de</strong>ssa veia anarcossurreal-erótica, tal conflito se revela na forma <strong>de</strong>provocações poéticas anunciando queO espírito da poesia me arrebataPara a região s<strong>em</strong> forma on<strong>de</strong> passo longo t<strong>em</strong>po imóvelNum silêncio <strong>de</strong> antes da criação das coisas.Súbito estendo o braço direito e tudo se encarna:O esterco novo da volúpia aquece a terra,Os peixes sob<strong>em</strong> os porões do oceano,As massas precipitam-se na praça pública.Bordéis e igrejas, maternida<strong>de</strong>s e c<strong>em</strong>itériosLevantam-se no ar para o b<strong>em</strong> e para o mal 48 .Referências bibliográficasAragão, Maria Lúcia Gomes Poggi <strong>de</strong>. A poética da visibilida<strong>de</strong> e a visibilida<strong>de</strong>poética <strong>em</strong> <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s. Tese (Doutorado <strong>em</strong> Literatura Brasileira).Rio <strong>de</strong> Janeiro: UFRJ, 2000.Bíblia <strong>de</strong> Jerusalém. 3ª. ed. São Paulo: Paulus, 2004.Candido, Antonio. Literatura e socieda<strong>de</strong>. São Paulo: Ouro sobre azul, 2006.Carpeaux, Otto Maria. História da literatura oci<strong>de</strong>ntal. v. 4. 3ª. ed. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Alhambra, 1985.Elia<strong>de</strong>, Mircea. Imágenes y símbolos: ensayos sobre el simbolismo mágico-<strong>religioso</strong>.5ª. ed. Madrid: Taurus, 1987.Guimarães, Júlio Castañón. Territórios/conjunções: poesia e prosa críticas <strong>de</strong><strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1993.Lima, Luiz Costa. “O agônico na abertura <strong>de</strong> Cont<strong>em</strong>plação”. Ipotesi: revista<strong>de</strong> estudos literários. Juiz <strong>de</strong> Fora: Editora da UFJF, 2002.Lopes, Edward Lopes. A palavra e os dias: ensaios sobre a teoria e a prática daliteratura. São Paulo/Campinas: EdUNESP/EdUNICAMP, 2003.Löwy, Michael e Sayre, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramãoda mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Trad. <strong>de</strong> Guilherme João <strong>de</strong> Freitas Teixeira.Petrópolis: Vozes, 1995.Men<strong>de</strong>s, <strong>Murilo</strong>. Poesia liberda<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Agir, 1947._______. O visionário. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio, 1941._______. A poesia <strong>em</strong> pânico. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Guanabara, 1937.48Id., “Po<strong>em</strong>a visto por fora”, <strong>em</strong> A poesia <strong>em</strong> pânico, p. 285.


266 Robson Coelho TinocoMerquior, José Guilherme. A razão do po<strong>em</strong>a. 2ª. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Topbooks,1996._______. O fantasma romântico e outros ensaios. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Vozes, 1980.Moisés, Massaud. A criação literária: poesia. 16ª. ed. São Paulo: Cultrix, 2003.Perrone-Moisés, Leyla. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras,1998.Picchio, Luciana Stegagno. <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s: poesia completa e prosa. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Nova Aguilar, 1994.Praz, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Trad. <strong>de</strong> Phila<strong>de</strong>lphoMenezes. Campinas: EdUNICAMP, 1996.Ribeiro, Gilvan Procópio Ribeiro e Neves, José Alberto Pinho. <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s:o visionário. Juiz <strong>de</strong> Fora: Editora da UFJF, 1997.Tinoco, Robson Coelho. <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s: poesia <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>em</strong> pânico. Brasília:Editora UnB, 2007.Recebido <strong>em</strong> maio <strong>de</strong> 2009.Aprovado para publicação <strong>em</strong> agosto <strong>de</strong> 2009.resumo/abstractPoética <strong>de</strong> uma conversão neorromântica: o <strong>erotismo</strong> <strong>religioso</strong> <strong>de</strong> <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>sRobson Coelho TinocoA poética neorromântica <strong>de</strong> <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s (<strong>em</strong> O visionário, A poesia <strong>em</strong> pânico e Poesialiberda<strong>de</strong>) – também composta por um forte el<strong>em</strong>ento erótico-<strong>religioso</strong> – baseia-se <strong>em</strong> aspectosespiritual-corpóreos que revelam, tanto quanto ocultam, marcas <strong>de</strong> um surrealismo singular.Nela, especialmente a mulher se <strong>de</strong>fine entre imagens e alegorias construídas sobre uma baset<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> que o plurissentido <strong>de</strong> altar católico (impresso na fé dogmática) se completa no<strong>de</strong>senho curvilíneo das formas f<strong>em</strong>ininas (impresso no <strong>de</strong>sejo físico). Tal poética, apresentadacomo parte integrante da literatura brasileira <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1930, constrói-se por meio <strong>de</strong>sseneorromantismo – tão lírico quanto mo<strong>de</strong>rno – que leva o poeta a enfrentar, questionar e<strong>de</strong>svendar o mundo (seu e <strong>de</strong> “suas” mulheres) no que possui <strong>de</strong> lirismo e(m) sensualida<strong>de</strong>,<strong>erotismo</strong> e(m) religião.Palavras-chave: romantismo, religião, corpo, <strong>erotismo</strong>, mulher, <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s


Poética <strong>de</strong> uma conversão neorromântica267The poetics of Neoromantic conversion: <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s’s religious eroticismThe neoromantic poetics of <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s (in O visionário, A poesia <strong>em</strong> pânico and Poesialiberda<strong>de</strong>) – also composed of a strong erotic-religious component – relies in spiritual-physicalaspects that reveal as much as hi<strong>de</strong>, as marks of a unique surrealism. In this poetics, the womanis especially <strong>de</strong>fined between images and allegories built on a th<strong>em</strong>atic basis on which thecatholic altar and its multiple meanings (printed on dogmatic faith) complete itself in thecurvilinear <strong>de</strong>sign of f<strong>em</strong>inine forms (printed on the physical <strong>de</strong>sire). This poetic, presentedas part of the Brazilian literature since 1930, is being built through this neoromanticism – aslyrical as mo<strong>de</strong>rn – that leads the poet to confront, to question and to discover the world (hisand his women’s) as has of lyricism and (in) sensuality, eroticism and (in) religion.Keywords: romanticism, religion, body, eroticism, woman, <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>sRobson Coelho Tinoco – “Poética <strong>de</strong> uma conversão neorromântica: o <strong>erotismo</strong> <strong>religioso</strong> <strong>de</strong> <strong>Murilo</strong> Men<strong>de</strong>s”.<strong>Estudos</strong> <strong>de</strong> Literatura Brasileira Cont<strong>em</strong>porânea, nº. 34. Brasília, julho-<strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2009, pp. 251-267.

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