conselho editorial - Index of - Universidade Federal da Paraíba
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Fonte: Óleo sobre tela. Carapibus 2004 (Eliane Maria Barbosa de Mendonça).<br />
ISSN 1980-993X (Online)<br />
http://www.okara.ufpb.br<br />
Revista OKARA: Geografia em debate, João Pessoa-PB, v. 1, n. 1, p. 1-152, Julho 2007
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
CONSELHO EDITORIAL<br />
María Franco Garcia<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Aline Barboza de Lima<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Carlos Augusto de Amorim Cardoso<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Maria Geral<strong>da</strong> de Almei<strong>da</strong><br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> de Goiás, Brasil<br />
Denise de Souza Elias<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Estadual do Ceará, Brasil<br />
Marcos Ferreira<br />
IG-UNICAMP, Brasil<br />
François Laurent<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Maine, França<br />
Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Marco Antonio Mitidiero Junior<br />
UEVC, Brasil<br />
Ruy Moreira<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> Fluminense, Brasil<br />
Genylton Odilon Rêgo <strong>da</strong> Rocha<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> do Pará, Brasil<br />
Roberto Sassi<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Sílvio Simione <strong>da</strong> Silva<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> do Acre, Brasil<br />
Xosé Santos Solla<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de Santiago de Compostela, Espanha<br />
Eduardo Rodrigues Viana de Lima<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
José Antonio Pacheco Almei<strong>da</strong><br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> de Sergipe, Brasil<br />
Editores<br />
Conselho Científico<br />
Identi<strong>da</strong>de Gráfica, Marcelo Brandão<br />
Corretor de Portugês, Pollyane Kahelen <strong>da</strong> Costa Diniz<br />
Richarde Marques <strong>da</strong> Silva<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Pedro Costa Guedes Vianna<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Alexandrina Luz Conceição<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> de Sergipe, Brasil<br />
Maria A<strong>da</strong>ilza Martins de Albuquerque<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Araci Farias Silva<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Maria Franco<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Antonio Thomaz Júnior<br />
UNESP, Brasil<br />
Doralice Sátyro Maia<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Emilia de Ro<strong>da</strong>t Fernandes Moreira<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Claudio Castilho Moura<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Ariane Norma de Menezes Sá<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Maria de Fátima Ferreira Rodrigues<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Bartolomeu Israel Souza<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Magno Erasto Araújo<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil<br />
Ficha Catalográfica<br />
Revista OKARA/Programa de Pós-Graduação em Geografia.<br />
João Pessoa. v. 1, n. 1 (2007) - João Pessoa: PPGG, 2007.<br />
Quadrimestral<br />
ISSN 1980-993X<br />
1. Geografia. 2. Território. I. Programa de Pós-Graduação<br />
em Geografia. III. Título.<br />
CDD - 333.705<br />
CDU - (03)556.18
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
ÍNDICE<br />
CAPA<br />
Óleo sobre tela. Carapibus 2004.<br />
Fonte: Eliane Maria Barbosa de Mendonça (Aluna do Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB).<br />
EDITORIAL<br />
Maria Franco Garcia 1<br />
ARTIGOS<br />
CONSIDERAÇÕES SOBRE A GEOGRAFIA E O AMBIENTE<br />
Bartolomeu Israel Souza, Dirce Maria Antunes Suertegaray 5<br />
ANÁLISE DAS PERDAS DE ÁGUA E SOLO EM DIFERENTES COBERTURAS SUPERFICIAIS NO SEMI-ÁRIDO DA PARAÍBA 16<br />
Celso Augusto Guimarães Santos, Richarde Marques Silva, Vajapeyam Srirangachar Srinivasan<br />
NATUREZA, SOCIEDADE E TRABALHO: CONCEITOS PARA UM DEBATE GEOGRÁFICO 33<br />
Doralice Sátyro Maia<br />
MOBILIDADE ESPACIAL E ACESSIBILIDADE À CIDADE 436<br />
Silvia Regina Pereira<br />
JOVENS ANDARILHOS NO CURTO CICLO DO CAPITAL 77<br />
Alexandrina Luz Conceição<br />
TEM TRUKÁ NA ALDEIA: NARRATIVA DE UM TRABALHO DE CAMPO NA ILHA DE ASSUNÇÃO, CABROBÓ-PE 101<br />
Maria de Fátima Ferreira Rodrigues<br />
DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS<br />
A PRODUÇÃO DO ESPAÇO INTRA-URBANO E AS OCUPAÇÕES IRREGULARES NO CONJUNTO MANGABEIRA,<br />
JOÃO PESSOA–PB<br />
Luciana Medeiros de Araújo<br />
O TERRITÓRIO COMO UM TRUNFO: UM ESTUDO SOBRE A CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS NA PARAÍBA (ANOS 1990) 121<br />
Josineide <strong>da</strong> Silva Bezerra<br />
A CIDADE DOS OLHOS VERDES: PRECARIEDADE URBANA (Um estudo <strong>da</strong>s implicações sócio-espaciais <strong>da</strong> Lei<br />
que altera as áreas verdes para construir habitação popular em João Pessoa-PB<br />
Márcia Maria Costa Gomes<br />
A COLONIZAÇÃO DO SERTÃO DA PARAÍBA: AGENTES PRODUTORES DO ESPAÇO E CONTATOS INTERÉTNICOS<br />
(1650-1730)<br />
Paulo Henrique Marques de Queiroz Guedes<br />
AS TRANSFORMAÇÕES NA PAISAGEM DO PORTO DO CAPIM: LEITURA(S) DE UMA PAISAGEM URBANA 131<br />
Vera Lúcia Araújo<br />
ENTREVISTA GEOGRÁFICA<br />
VISÕES DE UMA GEÓGRAFA PORTUGUESA - Pr<strong>of</strong>ª. Drª. Ana Firmino (<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Nova de Lisboa) 135<br />
Aline Barboza de Lima<br />
118<br />
125<br />
128
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
TÓPICOS OKARA<br />
MANUEL CORREIA DE OLIVEIRA ANDRADE: UMA VIDA DE TRABALHO EM DEFESA DE UMA CIÊNCIA<br />
GEOGRÁFICA SOCIALMENTE COMPROMETIDA<br />
Emilia Moreira, Ivan Targino, Maria de Fátima Ferreira Rodrigues<br />
IMPRESSÕES DO I SEMILUSO E PERSPECTIVAS FUTURAS 146<br />
Emilia Moreira<br />
O CARACOL E SUA CONCHA: ENSAIOS SOBRE A NOVA MORFOLOGIA DO TRABALHO 150<br />
María Franco Garcia<br />
143
Revis ta OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
EDITORIAL<br />
María Franco Garcia<br />
Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB<br />
Na língua tupi–guarani o termo okara se designa a praça <strong>da</strong> aldeia indígena, o<br />
ponto de encontro <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, a sua centrali<strong>da</strong>de, e o espaço <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de<br />
em oposição ao <strong>da</strong> privaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> oka. Na polis romana o termo que definia esse<br />
espaço era o fórum, e na ci<strong>da</strong>de grega a ágora. Do latim, as derivações são<br />
múltiplas, como várias são as suas línguas-filhas: praza em galego, plaza em<br />
espanhol , praça em português.<br />
Em qualquer caso, os tais espaços possuem, no contexto <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des, vilas e<br />
aldeias nas que se inserem um aspecto simbólico bastante importante para a<br />
cultura de ca<strong>da</strong> um dos povos, a materialização de certa idéia e público ou, para<br />
outros, de coletivo.<br />
A idéia de construir uma publicação que fosse ao encontro com o conceito de um<br />
coletivo, que se reúne para o debate, para o intercâmbio e para a socialização, foi<br />
levanta<strong>da</strong> por um grupo de pr<strong>of</strong>essores do Programa de Pós-graduação em<br />
Geografia <strong>da</strong> UFPB. Naquele momento formavam parte do que chamamos de<br />
Comissão PRODOC. Desde esse dia até hoje, muitos colegas se uniram a este<br />
projeto, em diferentes momentos e de diversas maneiras, fazendo possível que<br />
hoje publiquemos o primeiro número <strong>da</strong> revista OKARA: Geografia em debate.<br />
Ela nasce com o objetivo de debater as questões e os temas que a pesquisa<br />
geografia nos apresenta. A complexa problemática que emerge desse movimento<br />
deman<strong>da</strong> a atualização constante <strong>da</strong>s nossas reflexões, o que exige pensar os<br />
conteúdos <strong>da</strong> produção do espaço no mundo atual, e por outro lado considerar os<br />
múltiplos olhares segundo os quais podemos lê-lo.<br />
A nossa intenção é divulgar resultados de pesquisadores e reflexões realiza<strong>da</strong>s no<br />
âmbito <strong>da</strong> Geografia paraibana, mas ao mesmo tempo, receber a contribuição de<br />
pesquisadores de geografia e outras áreas do Brasil e do exterior, que<br />
desenvolvam análises tendo o espaço como centro <strong>da</strong>s suas preocupações, de<br />
modo a estabelecer um diálogo qualificado, em nível supradisciplinar.<br />
O interesse <strong>da</strong> equipe <strong>editorial</strong> que toma esta iniciativa é a de editar uma revista<br />
de amplitude nacional, vincula<strong>da</strong> ao Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong><br />
UFPB.<br />
O Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB vem-se consoli<strong>da</strong>ndo como<br />
um espaço de pesquisa e ensino na comuni<strong>da</strong>de geográfica paraibana desde o<br />
ano de 2003. São vários os resultados desse percurso, entre eles as dissertações<br />
de mestrado defendi<strong>da</strong>s. Um desafio para os membros do PPGG foi tornar<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-4, 2007
GARCIA, M. F.<br />
realmente público o saber, as revelações e o ineditismo que todos esses trabalhos<br />
apresentam. Para isso, o primeiro passo do PPGG foi disponibilizar to<strong>da</strong>s as<br />
dissertações defendi<strong>da</strong>s até o momento no Programa na sua página internet,<br />
http://www.geociencias.ufpb.br/posgrad. No intuito de ampliar o debate como<br />
outros Programas, lugares e pesquisadores o PPGG cria esta publicação.<br />
O perfil de OKARA: Geografia em debate começa a se delinear no seu primeiro<br />
número, em função <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de de temáticas e quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s reflexões que o<br />
compõem.<br />
Os textos de Doralice Sátyro Maia, Bartolomeu I. Souza e Dirce M. A. Suertegaray<br />
abor<strong>da</strong>m questões relativas ao tripé conceitual natureza-espaço-socie<strong>da</strong>de como<br />
alicerce do pensamento geográfico e, a evolução <strong>da</strong> construção histórica de tal<br />
pensamento na relação socie<strong>da</strong>de-natureza. Ambos os textos trazem a partir de<br />
diferentes perspectivas e sobre diversas temáticas, contribuições significativas<br />
para estimular o debate teórico na geografia. Os artigos de Sílvia Regina Pereira,<br />
Maria de Fátima Rodrigues, Alexandrina Luz Conceição, Celso A. G. Santos,<br />
Richarde Marques <strong>da</strong> Silva e Vajapeyam S. Srinivasan, tomam como referencia<br />
diferentes dimensões <strong>da</strong> atual reali<strong>da</strong>de socioespacial brasileira. Pesquisas que se<br />
debruçam ante a problemática urbana <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de e acessibiliade à ci<strong>da</strong>de<br />
media, a importancia metodológica do trabalho de campo para a pesquisa<br />
geográfica e as suas contribuições no desven<strong>da</strong>mento dos sertões, a mobili<strong>da</strong>de e<br />
precarie<strong>da</strong>de do trabalho <strong>da</strong>s gerações mais jovens no campo Sergipano, até a<br />
avaliação <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s de água no solo de duas bacias no Cariri paraibano. Textos<br />
que apresentam sintéticamente resultados de pesquisas e que contribuem para o<br />
conhecimento dos diversos problemas analisados, mas também para a reflexão<br />
teórico-metodológica.<br />
Divulgaram as suas dissertações de mestrado, defendi<strong>da</strong>s no nosso Programa em<br />
2004, Josineide <strong>da</strong> Silva Bezerra, Luciana Medeiros de Araújo, Márcia Maria Costa<br />
Gome, Paulo Henrique Marques de Queiroz Guedes e Vera Lúcia Araújo. Onde em<br />
uma exposição sucinta apresentam as suas pesquisas, destacando os objetivos,<br />
metodologia e resultados alcançados. Esta seção tem como objetivo divulgar o<br />
trabalho desses autores e autoras e mostrar a produção que este Programa de<br />
Pós-Graduação está acumulando, graças à cooperação entre os orientadores<br />
vinculados ao PPGG e um número ca<strong>da</strong> vez maior e mais qualificado de alunos e<br />
alunas.<br />
Na seção de entrevistas publicamos uma conversa com a pr<strong>of</strong>essora Ana Firmino<br />
<strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Nova de Lisboa, inaugurando uma serie de entrevistas que se<br />
pretende realizar em ca<strong>da</strong> número com um pesquisador, pr<strong>of</strong>essor ou pr<strong>of</strong>issional<br />
com reconheci<strong>da</strong> inserção na geografia e áreas afins. O resultado de diálogos a<br />
dois, três ou mais vozes são experiencias dialógicas muito ricas, que nos permitem<br />
conhecer, não só a autor e a sua obra com mais finura, mas também os caminhos,<br />
avanços e retrocessos na construção do pensamento geográfico contemporâneo.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-4, 2007<br />
2
3<br />
Editorial<br />
Por fim, destaca a seção titula<strong>da</strong> de Tópicos OKARA. Com marcado carater de<br />
autor, se trata de um espaço aberto para o ensaio, onde priorizamos as outras<br />
dimensões que o exercicio <strong>da</strong> pesquisa em geografia nos permite. Desde relatos<br />
de trabalhos de campo, impressões sobre a participação e organização de<br />
eventos, participação em defesas de teses e dissertações, lançamentos de livros<br />
ou resenhas sobre novas obras. Neste número, lançado apenas um mês após o<br />
falecimento do Pr<strong>of</strong>. Manuel Corrêa de Andrade, publicamos um breve texto na<br />
sua homenagem.<br />
Os autores são Emilia de Ro<strong>da</strong>t F. Moreira, Maria de Fátima Rodrigues e Ivan<br />
Targino, e é subscrito por to<strong>da</strong> a equipe <strong>editorial</strong> de OKARA. Também, María<br />
Franco apresenta a resenha de uma <strong>da</strong>s últimas obras do sociólogo brasileiro<br />
Ricardo Antunes, intitula<strong>da</strong> O caracol e a sua concha. Ensaios sobre a nova<br />
morfologia do Trabalho, publica<strong>da</strong> em 2005.<br />
Dona Haraway, cientista política norte-americana, costuma falar que as coisas são<br />
mais ver<strong>da</strong>deiras dependendo do lugar desde onde se fala. OKARA é o lugar que<br />
escolhemos para falar e nos fazer ouvir. Para construirmos um debate crítico,<br />
comprometido com o desven<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> alienção espacial em que<br />
cotidianamente somos doutrinados. Aberto para a reflexão progressista que<br />
contribua com uma mu<strong>da</strong>nça efetiva dos pensares e fazeres sobre o espaço,<br />
desigual e injusto, no que vivemos e trabalhamos, mas ao mesmo tempo alvo e<br />
dimensão do possível. Para isso, contamos com todos vocês.<br />
Fica o nosso sincero agradecimento aos membros <strong>da</strong> comissão científica que<br />
aceitaram o convite de participação. A Joana Coeli que nos auxiliou nos primeiros<br />
passos, aos autores que nos cederam os textos e resumos para publicação. A Ana<br />
Bernardete, Carlos Soares, Graça Almei<strong>da</strong> e Dadá (Pr<strong>of</strong>ª. Maria A<strong>da</strong>ilza)<br />
colaboradores do projeto. A Eliane M. B. de Mendonça pela bela obra de arte<br />
cedi<strong>da</strong>, que ilustra nossa primeira capa. A Edinalva Maria <strong>da</strong> Silva, pela poesia que<br />
completa nosso <strong>editorial</strong>. Ao artista Marcelo Brandão, por traduzir tão bem o<br />
significado <strong>da</strong> revista através <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de gráfica. A Coordenação e membros <strong>da</strong><br />
Pós-Graduação pelo incentivo, ao Departamento de Geociências, grande<br />
colaborador <strong>da</strong> nossa cerimônia de lançamento. Especialmente agradecemos a<br />
Guilherme Ataíde do portal de periódicos <strong>da</strong> UFPB pelo seu compromiso e a Aline<br />
Barboza e Richarde Marques, sem os quais a OKARA não teria sido possível. E a<br />
todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuiram para a concretização<br />
desse projeto.<br />
Conselho Editorial OKARA<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-4, 2007
GARCIA, M. F.<br />
O que é que tem no meu lugar?<br />
Mangue,<br />
Maré,<br />
Manga<br />
E araçá.<br />
E lá? O que é que tem?<br />
No meu lugar tem<br />
Aratú,<br />
Siri,<br />
Goiamum,<br />
Caranguejo-uçá<br />
E lá o que é que tem?<br />
No meu lugar tem<br />
Rolinha,<br />
Vem-vem,<br />
Siricóia,<br />
Sabiá.<br />
E lá o que é que tem?<br />
No meu lugar tem<br />
Ostra,<br />
Sururu,<br />
Marisco<br />
E peixe a se pescar.<br />
E lá o que é que tem?<br />
O que é que tem no seu lugar?<br />
No meu lugar tem<br />
Rede,<br />
Ratoeira,<br />
Anzol<br />
E puçá.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-4, 2007<br />
O MEU LUGAR<br />
E lá? O que se usa para pescar?<br />
No meu lugar tem<br />
Pai do mangue,<br />
Visagem,<br />
Simpatia,<br />
Assombração.<br />
E lá, acredita-se no que tem cá?<br />
No meu lugar tem<br />
Gente que brinca<br />
Na lama, na terra<br />
De bola,<br />
Biriba,<br />
Baralho e bilhar.<br />
E lá? Como fazem para brincar?<br />
No meu lugar tem<br />
Bosque de mangue,<br />
Sítio de manga,<br />
Roça e canavial.<br />
A mata, não está mais aqui!<br />
E lá? Como está?<br />
Existe mata no seu lugar?<br />
Se não existe, o que é que há?<br />
No meu lugar<br />
Tem gente que canta<br />
Que pesca<br />
Que planta<br />
Brinca e sonha.<br />
E lá?<br />
Penso que tem gente que sonha em<br />
todo lugar.<br />
Edinalva Maria <strong>da</strong> Silva<br />
Edinalva é pr<strong>of</strong>essora de Geografia e aluna do Programa de Pós-Graduação em<br />
Geografia <strong>da</strong> UFPB.<br />
Poema escrito a partir <strong>da</strong>s “ro<strong>da</strong>s de conversa”, realiza<strong>da</strong>s com os alunos <strong>da</strong><br />
Escola Municipal de Ensino Fun<strong>da</strong>mental Padre Pires Ferreira na comuni<strong>da</strong>de de<br />
manguezal de Nossa Senhora do Livramento, Santa Rita-PB, 2006.<br />
4
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
CONSIDERAÇÕES SOBRE A GEOGRAFIA E O<br />
AMBIENTE<br />
Resumo<br />
Bartolomeu I. Souza<br />
Departamento de Engenharia e Meio Ambiente <strong>da</strong> UFPB<br />
Dirce M. A. Suertegaray<br />
Departamento de Geografia <strong>da</strong> UFRGS<br />
Originalmente a Geografia se propôs a realizar a articulação Socie<strong>da</strong>de/Natureza,<br />
entretanto, influencia<strong>da</strong> pelo Positivismo, na prática, acabou seguindo o caminho<br />
<strong>da</strong> disjunção desses elementos, o que tem acompanhado historicamente to<strong>da</strong>s as<br />
correntes do pensamento geográfico. A emergência <strong>da</strong> questão ambiental, num<br />
mundo caracterizado ca<strong>da</strong> vez mais pela complexi<strong>da</strong>de, acaba estabelecendo a<br />
necessi<strong>da</strong>de de se criar um canal de comunicação entre os diversos ramos do<br />
conhecimento, através <strong>da</strong> interdisciplinari<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> transdisciplinari<strong>da</strong>de,<br />
caminho parcialmente trilhado pela Geografia através do princípio <strong>da</strong> conexi<strong>da</strong>de.<br />
Palavras-Chave: pensamento geográfico, relação socie<strong>da</strong>de/natureza, questão<br />
ambiental.<br />
Resumé<br />
La Géographie, <strong>da</strong>ns ses origines, a proposé de faire l’articulation entre Nature et<br />
Societé. Par contre, étant sous l’influence du Positivisme, la Géographie <strong>da</strong>ns la<br />
pratique a suivie le chemin de la disjonction <strong>da</strong>ns tous les domaines de la pensée<br />
géographique. L’urgence de la problématique environnementale, <strong>da</strong>ns un monde<br />
caracterisé par la complexité des relations, a crée le besoin d’un maillon de<br />
communication entre les connaissances diverses. La recherche interdisciplinaire et<br />
transdisciplinaire parcorru partialement par la Géographie peut être un chemin<br />
por chercher le principe de la conexión entre la nature et societé.<br />
Mots-Cl ef s: pensé e géograp hiqu e, relatio n societé/natur e, problemat ique<br />
environnementale.<br />
INTRODUÇÃO<br />
A déca<strong>da</strong> de 1960 marca o início, a nível mundial, <strong>da</strong>s discussões sobre a questão<br />
ambiental. As razões dessas preocupações estão basea<strong>da</strong>s no comprometimento<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 05-15, 2007
SOUZA, B. I; SUERTEGARAY, D. M. A.<br />
de uma série de recursos naturais, na possibili<strong>da</strong>de de um confronto nuclear que<br />
exterminaria grande parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do planeta e na busca por uma melhor<br />
quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong>, obrigando a socie<strong>da</strong>de a repensar o seu “[...] modo de ser, de<br />
produzir e de viver [...]” (PORTO GONÇALVES, 2004, p.28).<br />
Esse ato reflexivo passou a colocar em questão, entre outros, o conceito de<br />
natureza até então dominante. Tradicionalmente a Natureza é entendi<strong>da</strong> como<br />
algo externo ao Homem, já que se torna ca<strong>da</strong> vez mais difícil estabelecer o que é<br />
puramente Natural do que é Social, sendo a interpenetração desses elementos a<br />
regra ca<strong>da</strong> vez mais comum.<br />
Evolui-se assim para o conceito de Ambiente, resultante não somente de uma<br />
interface entre os processos naturais e a socie<strong>da</strong>de, mas também, e<br />
principalmente, de uma transfiguração proporciona<strong>da</strong> pelas técnicas ao<br />
intervirem nas formas e processos naturais (SUERTEGARAY, 2000), sendo<br />
qualifica<strong>da</strong> por Santos (1997) como Natureza Artificial, Tecnifica<strong>da</strong> ou<br />
Instrumental. Nesse caso, são as conseqüências <strong>da</strong>nosas dessa transfiguração que<br />
chamamos de questão ambiental.<br />
Souza Santos (1988) é de opinião que o saber científico tradicional, fortemente<br />
baseado na Moderni<strong>da</strong>de e por essa razão excessivamente parcelizado e<br />
disciplinarizado, acabou fazendo do cientista um ignorante especializado, já que<br />
este, como regra, não consegue enxergar além <strong>da</strong>s especifici<strong>da</strong>des de sua<br />
formação, o que lhe confere uma capaci<strong>da</strong>de ca<strong>da</strong> vez menor de <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong><br />
complexi<strong>da</strong>de que se configura, e na qual se enquadra a questão ambiental.<br />
Para <strong>da</strong>r conta dessa nova reali<strong>da</strong>de, Morin (1996) propõe que devemos nos guiar<br />
pelo que ele denomina de Princípio <strong>da</strong> Complexi<strong>da</strong>de. Este princípio está baseado<br />
este numa visão poliocular ou poliscópica, onde as discussões físicas, biológicas,<br />
espirituais, culturais, sociológicas e históricas, entre outras, deixam de ser<br />
incomunicáveis, como até a pouco se fazia, resultando numa concepção de<br />
mundo fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na simplificação, disjunção e redução, tornando difícil a<br />
criação de uma base de entendimento e de respostas para uma série de questões<br />
que passaram a afligir a humani<strong>da</strong>de.<br />
Dessa forma, há um crescente aumento <strong>da</strong> compreensão de que não se pode<br />
separar em partes distintas aquilo que é uma teia de relações inseparáveis<br />
(GUERRA e MARÇAL, 2006), emerge então a necessi<strong>da</strong>de de se encontrar uma<br />
maneira de integrar os diversos ramos do conhecimento.<br />
Muito <strong>da</strong> busca de estabelecer e compreender as conexões entre a Natureza e a<br />
Socie<strong>da</strong>de faz parte <strong>da</strong> história <strong>da</strong> Geografia, ciência complexa por princípio<br />
(MORIN, 2002) que, desde que se construiu como tal, se propôs a realizar a<br />
articulação entre tais elementos. Entretanto, na prática, seguindo a linha<br />
positivista dominante àquela época, esta também se fragmentou, perdendo<br />
parcialmente a capaci<strong>da</strong>de de integrar saberes.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 05-15, 2007<br />
6
7<br />
Considerações sobre a geografia e o ambiente<br />
Nesse caso, esse texto tem como objetivo, por um lado, resgatar um pouco <strong>da</strong><br />
discussão ambiental na Geografia a partir <strong>da</strong>s suas correntes do pensamento, e<br />
por outro debater algumas propostas que, pressupondo a articulação entre a<br />
Socie<strong>da</strong>de e a Natureza, ousam tentar superar essa e outras dicotomias que ain<strong>da</strong><br />
hoje custam tão caro a essa ciência e <strong>da</strong>r uma resposta aos desafios <strong>da</strong> crise<br />
ambiental.<br />
Determinismo e Possibilismo<br />
A Geografia passou à condição de Ciência em meados do século XIX. Ao<br />
estabelecer como objeto de estudo o Espaço Geográfico, já nessa fase dominante<br />
a Geografia, acabou se tornando alvo de uma série de críticas do pensamento<br />
positivista, a ponto de ser considera<strong>da</strong> por muitos uma não-ciência. Tal fato é<br />
explicado porque o seu objeto de estudo se colocava numa situação de interface<br />
entre as chama<strong>da</strong>s Ciências <strong>da</strong> Natureza e <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de, algo inédito para a<br />
época, onde predominava a disjunção entre esses conhecimentos (SUERTEGARAY,<br />
2004).<br />
Para o Positivismo, a Natureza é estu<strong>da</strong><strong>da</strong> exclusivamente pelas Ciências Naturais,<br />
enquanto que a Socie<strong>da</strong>de é estu<strong>da</strong><strong>da</strong> pelas Ciências Sociais, não havendo relação<br />
entre as duas. Ao tentar romper esse paradigma, entende-se porque a Geografia<br />
foi, nessa fase embrionária, tão critica<strong>da</strong>, a ponto de, para ser aceita como<br />
Ciência, ter que caminhar para uma prática onde esses conhecimentos seguiram<br />
trajetórias de análise de maneira separa<strong>da</strong>.<br />
Em relação ao Determinismo, essa é considera<strong>da</strong> a primeira corrente do<br />
pensamento geográfico, tendo desenvolvido uma linha de pensamento pauta<strong>da</strong><br />
no Naturalismo, devido a forte influência que Ratzel (principal proponente e<br />
criador dessa escola) s<strong>of</strong>reu dos alemães Humboldt e Ritter.<br />
Sendo Humboldt naturalista e Ritter filós<strong>of</strong>o e historiador, ao descreverem,<br />
respectivamente, as características naturais e as organizações espaciais dos<br />
diferentes lugares em que estiveram e pesquisaram, explicavam essas situações<br />
através <strong>da</strong>s relações dos Homens com a Natureza (MENDONÇA, 1998),<br />
concebendo a segun<strong>da</strong> como principal agente desses processos.<br />
As relações dessa corrente com o imperialismo alemão são estreitas já que, para<br />
justificar a sua expansão territorial, o recém criado Estado germânico<br />
fun<strong>da</strong>mentava e justificava suas ações em uma suposta superiori<strong>da</strong>de racial,<br />
herança de um clima temperado que lhe beneficiou, e na teoria do Espaço Vital.<br />
Percebe-se assim que o debate geográfico sobre a Natureza, desde o início, é<br />
consubstancial a natureza <strong>da</strong> Geografia. Bertrand (1991) chega a considerar essa<br />
fase debutante <strong>da</strong> Geografia como ciência, particularmente, através do<br />
Determinismo, considera<strong>da</strong> também, a i<strong>da</strong>de de ouro <strong>da</strong> Geografia, onde a<br />
Natureza estava nela. Para este autor, a descoberta de novos mundos, de<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 05-15, 2007
SOUZA, B. I; SUERTEGARAY, D. M. A.<br />
recursos desconhecidos e aparentemente inesgotáveis e de paisagens exóticas<br />
fun<strong>da</strong>va uma ciência imperial e imperialista, reconheci<strong>da</strong> como o estudo dos<br />
contatos entre os homens e os meios naturais.<br />
Paralela ao Determinismo, nascia na França a corrente Possibilista, cujo principal<br />
expoente era Vi<strong>da</strong>l de La Blache. Essa escola defendia que a socie<strong>da</strong>de criava<br />
possibili<strong>da</strong>des técnicas de uso <strong>da</strong> Natureza, não sendo aquela um elemento<br />
passivo nessa relação, como defendia a corrente alemã.<br />
Podemos associar o Possibilismo a duas necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> França, aparentemente<br />
contraditórias: desmascarar o imperialismo alemão que, ao defender a<br />
superiori<strong>da</strong>de racial do povo germânico e a teoria do Espaço Vital, ameaçava a<br />
integri<strong>da</strong>de territorial de vários países (incluindo a própria França), e justificar a<br />
presença francesa nas colônias africanas e asiáticas, alegando que isso seria<br />
benéfico para os povos que habitavam essas regiões, uma vez que para eles<br />
seriam repassados investimentos em capital e tecnologia, capazes de fazer com<br />
que explorassem melhor os recursos naturais existentes em seus territórios e<br />
superassem o atraso econômico e social.<br />
A disputa entre essas duas potências e as suas justificativas de expansão territorial<br />
acabaram originando na Geografia o distanciamento entre os estudos que<br />
enfocavam a Socie<strong>da</strong>de e aqueles que destacavam a Natureza, aproximando<br />
assim essa ciência dos postulados positivistas já dominantes nesse período.<br />
Em outras palavras, a partir desse momento, começa a ser superado, de forma<br />
mais intensa e quase em definitivo, o antigo conceito grego de “physis”,<br />
entendido inicialmente como a totali<strong>da</strong>de do real, passando a dominar um<br />
paradigma que, nascido <strong>da</strong>s idéias de Platão e Aristóteles e reforçado pela<br />
influência ju<strong>da</strong>ico-cristã, defende a existência de uma Natureza desumaniza<strong>da</strong><br />
(PORTO GONÇALVES, 2004).<br />
Geografia Teorética (Quantitativa), Geografia Crítica (Marxista) e<br />
Geografia Humanística<br />
No início do século XX, com o avanço do conhecimento científico baseado mais<br />
fortemente no método positivista, as especializações dos saberes se<br />
intensificaram. Na Geografia temos, inicialmente, a separação mais clara entre as<br />
chama<strong>da</strong>s partes física e humana. Caberia à Geografia Física, nessa disjunção, o<br />
estudo <strong>da</strong> Natureza, só que uma Natureza desvincula<strong>da</strong> dos elementos sócioeconômicos.<br />
Dava-se assim continui<strong>da</strong>de a um processo iniciado no século XIX.<br />
Deve-se destacar o esforço de Elisée Reclus, ain<strong>da</strong> no final do século XIX,<br />
mediante uma orientação anarquista, em criar uma Geografia integradora e<br />
mesmo ambientalista nesse período. Através <strong>da</strong> máxima “O Homem é a Natureza<br />
adquirindo consciência de si própria” ele revela, uma concepção <strong>da</strong> relação<br />
Homem/Natureza diferente dos métodos científicos presentes até então<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 05-15, 2007<br />
8
9<br />
Considerações sobre a geografia e o ambiente<br />
(CATTANEO, 2004). Entretanto, <strong>da</strong><strong>da</strong> a orientação política de Reclus e ao<br />
pensamento dominante <strong>da</strong> época, essa nova concepção não obteve espaço para<br />
crescer, o que fez com que a sua obra tenha sido edita<strong>da</strong> somente na segun<strong>da</strong><br />
metade do século XX (MENDONÇA, 1998).<br />
Tendo como base cronológica o final <strong>da</strong> 2ª Guerra Mundial, a antiga maneira de<br />
se conceber e praticar Geografia, basea<strong>da</strong> no Positivismo Clássico, e por isso<br />
mesmo caracteriza<strong>da</strong> pelas descrições <strong>da</strong>s paisagens, <strong>da</strong>s regiões e dos territórios,<br />
não mais se adequava ao momento tecnológico, político e econômico que passava<br />
a predominar, de maneira mais intensa, a partir desse período. São essas<br />
circunstâncias que fazem surgir as correntes Teorética e Crítica.<br />
A corrente Teorética adota como base metodológica o Neopositivismo, com<br />
ampla utilização <strong>da</strong> linguagem matemática (através <strong>da</strong> estatística), uso de<br />
fotografias aéreas e, mais recentemente, imagens de satélite como<br />
instrumentação. O objetivo é o uso <strong>da</strong> Geografia para o planejamento. A Natureza<br />
é ca<strong>da</strong> vez mais trata<strong>da</strong> como recurso para o uso preferencialmente imediato ou à<br />
prazos um pouco mais largos. Há uma ênfase no presente com vistas a<br />
planificação do futuro.<br />
Entende-se essa concepção, agora vigente, a partir do estabelecimento de uma<br />
fase de reconstrução do capitalismo, no denominado período Monopolista (ou<br />
Financeiro), e também do socialismo, no contexto político <strong>da</strong> Guerra Fria.<br />
É a partir dessa corrente que a Geografia absorve <strong>da</strong> Biologia, que por sua vez<br />
absorveu <strong>da</strong> Física, o conceito de Sistema. A partir desse momento a Natureza<br />
passa a ser trabalha<strong>da</strong> através <strong>da</strong> Teoria Geral dos Sistemas (TGS), resgatando-se<br />
a relação entre o organismo (antes visto de maneira isola<strong>da</strong>) e o meio,<br />
estabelecendo-se, a partir de uma concepção de ordem universal, a possibili<strong>da</strong>de<br />
de se criar modelos para explicar a Natureza através do sistema computacional.<br />
As teorias, por sua vez, poderiam ser vali<strong>da</strong><strong>da</strong>s sem o recurso <strong>da</strong> experiência do<br />
trabalho de campo, ação considera<strong>da</strong> ca<strong>da</strong> vez mais desnecessária por acreditar<br />
que a reali<strong>da</strong>de poderia ser simula<strong>da</strong> virtualmente.<br />
Observa-se assim um avanço relativo quando comparado ao método positivista<br />
clássico já que o Homem agora aparece inserido no processo.Não entanto, não<br />
têm resolvido o sentido assumido pelo humano no sistema, já que este é<br />
identificado como fator ou ação antrópica, visão ain<strong>da</strong> reducionista por não<br />
responder pelas tensões sociais no âmbito do movimento do mundo<br />
(SUERTEGARAY, 2005).<br />
A Geografia Crítica, por sua vez, passou a utilizar como método o Marxismo que,<br />
através <strong>da</strong> Dialética, concebe a história do Homem como uma continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
história <strong>da</strong> Natureza, entendendo o trabalho como mediador universal dessa<br />
relação (CASSETI, 1991). Esse entendimento, que aparentemente unia Socie<strong>da</strong>de<br />
e Natureza, somente se fez presente no campo teórico. Enquanto na prática esses<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 05-15, 2007
SOUZA, B. I; SUERTEGARAY, D. M. A.<br />
dois elementos permaneceram como distintos, relegando o conhecimento <strong>da</strong><br />
Natureza aos que desejassem trabalhar exclusivamente com ela.<br />
A contradição acima exposta foi resultante <strong>da</strong> ênfase que se deu nessa corrente<br />
aos elementos sócio-econômicos em detrimento <strong>da</strong> análise dos elementos<br />
naturais nesse jogo de influências, sendo comum, inclusive, para alguns adeptos<br />
<strong>da</strong> Geografia Crítica, rotular os geógrafos que estu<strong>da</strong>vam a Natureza de nãogeógrafos.<br />
Ain<strong>da</strong> nesse período se desenvolve a corrente denomina<strong>da</strong> Geografia<br />
Humanística. Sua origem está relaciona<strong>da</strong> a uma insatisfação de vários<br />
pesquisadores com o tratamento material predominante na ciência clássica na<br />
qual se fun<strong>da</strong>mentava até então a Geografia.<br />
Para romper com esse encaminhamento metodológico, os adeptos <strong>da</strong> corrente<br />
Humanística passaram a se utilizar de uma série de conceitos e categorias<br />
nascidos <strong>da</strong> Psicologia. A consciência, entendi<strong>da</strong> como fenômeno originando o<br />
que se denomina de Fenomenologia, logo a emoção, passou a ser o elemento<br />
principal <strong>da</strong> análise feita por essa proposta (CATTANEO, 2004). Nesse caso, a<br />
concepção de Natureza e Ambiente apresenta um caráter relativizado e externo<br />
ao Homem, sendo esses dois elementos percebidos e representados de diversas<br />
maneiras, pelos os indivíduos que estiverem sendo analisados.<br />
A Questão Ambiental e a Geografia<br />
Antes de discutir essa questão e as suas relações com a Geografia, fazem-se<br />
necessários alguns comentários sobre a crise <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de e o advento <strong>da</strong> Pós-<br />
Moderni<strong>da</strong>de, pois é nesse interstício que surge a problemática ambiental.<br />
De maneira sucinta, a Moderni<strong>da</strong>de foi um período em que dominaram, entre<br />
outras características, a valorização do indivíduo e do mercado, a confiança no<br />
progresso <strong>da</strong> ciência e nos benefícios que isso acarretaria. Entretanto, a partir do<br />
final dos anos 1960, o ocaso do Marxismo e <strong>da</strong>s políticas tradicionais liga<strong>da</strong>s ao<br />
capitalismo, em seu papel de resolver uma série de problemas de diversas ordens,<br />
associado a evolução científica (particularmente <strong>da</strong> Física em sua Teoria do Caos)<br />
e, conforme já dito anteriormente , a possibili<strong>da</strong>de de extermínio <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de<br />
através de um conflito nuclear e a escassez de certos recursos naturais, trouxeram<br />
à tona uma série de dúvi<strong>da</strong>s em relação a concepção ordena<strong>da</strong> de mundo até<br />
então dominante.<br />
A geração dessa época interpretou esse sentimento de maneira festiva e<br />
contestadora, através <strong>da</strong> revolução sexual e do comportamento. A Ciência, por<br />
sua vez, foi obriga<strong>da</strong> a levar em conta a aleatorie<strong>da</strong>de e o acaso. Nascia, para<br />
muitos, a Pós-Moderni<strong>da</strong>de, uma socie<strong>da</strong>de aberta para a diferença e a<br />
complexi<strong>da</strong>de.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 05-15, 2007<br />
10
11<br />
Considerações sobre a geografia e o ambiente<br />
Expressando-se primeiro no campo <strong>da</strong>s artes, o Pós-modernismo acabou,<br />
progressivamente, atingindo a to<strong>da</strong>s as outras áreas. Ao mesmo tempo, enquanto<br />
alguns autores vêem esse momento como um novo paradigma, outros como<br />
Harvey (2004), defendem que esse estilo ou conceito periodizador na<strong>da</strong> mais é<br />
que um estágio do capitalismo avançado, uma comercialização e domesticação do<br />
Modernismo enfim.<br />
Nesse novo contexto o individualismo, o cientificismo e o mercado atingem um<br />
estágio incomparável. Entretanto, a certeza é substituí<strong>da</strong> pela dúvi<strong>da</strong>, já que os<br />
caminhos anteriormente pré-estabelecidos deixaram de existir. Paradoxalmente<br />
cresce a preocupação com a quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong>, passando esta a se manifestar de<br />
diversas formas. Uma delas diz respeito ao Ambiente que, por conta disso, passa a<br />
receber uma atenção especial.<br />
Mesmo com essa atenção especial dedica<strong>da</strong> ao Ambiente, paradoxalmente,<br />
muitos dos métodos para interpretá-lo ain<strong>da</strong> são pr<strong>of</strong>un<strong>da</strong>mente influenciados<br />
pelo pensamento de cientistas que criaram os seus postulados entre os séculos<br />
XVIII e o início do século XX, portanto, baseados na idéia de Moderni<strong>da</strong>de, o que,<br />
para Sousa Santos (1988), significa que<br />
Vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si<br />
próprio descobre que os seus pés são um cruzamento de<br />
sombras, sombras que vem do passado que hora pensamos já<br />
não sermos, ora pensamos não termos ain<strong>da</strong> deixado de ser,<br />
sombras que vem do futuro que ora pensamos já sermos, ora<br />
pensamos nunca virmos a ser (p. 46).<br />
Leff (2001) defende que a emergência <strong>da</strong> problemática ambiental acaba por<br />
propor, inclusive, a necessi<strong>da</strong>de de se internalizar o que ele denomina de saber<br />
ambiental (grifo nosso), inerente não apenas ao que se denomina de<br />
conhecimento científico, mas também ao saber popular, e de se construir uma<br />
racionali<strong>da</strong>de ambiental para que realmente seja criado um desenvolvimento<br />
sustentável ao mesmo tempo equitativo e duradouro.<br />
Já vimos que muito <strong>da</strong> busca de compreender as conexões entre a Natureza e a<br />
Socie<strong>da</strong>de, base <strong>da</strong> questão ambiental, faz parte <strong>da</strong> história <strong>da</strong> Geografia, ciência<br />
complexa por princípio (MORIN, 2002). Na reali<strong>da</strong>de, essa busca está inseri<strong>da</strong><br />
numa questão ain<strong>da</strong> maior, a própria complexi<strong>da</strong>de do mundo, denominado de<br />
híbrido por Latour (1994), onde o conceito de Ciência está se modificando<br />
(MORIN, 1996).<br />
Dessa forma, acreditamos que no processo de criação de um novo entendimento<br />
científico, onde estão incluí<strong>da</strong>s as questões relaciona<strong>da</strong>s a Geografia e a Questão<br />
Ambiental, um encaminhamento metodológico adequado seria a adoção <strong>da</strong><br />
interdisciplinari<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> transdisciplinari<strong>da</strong>de, o que é considerado por alguns<br />
uma anarquia epistêmica (CATTANEO, 2005).<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 05-15, 2007
SOUZA, B. I; SUERTEGARAY, D. M. A.<br />
Segundo Suertegaray (2004), trabalhar interdisciplinarmente significa trabalhar<br />
coletivamente, buscando o consenso na interpretação e compreensão de um<br />
problema, o que requer abertura e capaci<strong>da</strong>de para entender as diferentes<br />
formas em que este aparece.<br />
Essa prática, segundo a autora, pode ser facilita<strong>da</strong> pela transdisciplinari<strong>da</strong>de,<br />
entendi<strong>da</strong> como a capaci<strong>da</strong>de de transitar entre os vários campos do<br />
conhecimento, indo além <strong>da</strong>s formações acadêmicas específicas de ca<strong>da</strong><br />
pr<strong>of</strong>issional de área, criando um novo olhar. Em outras palavras, resgatar, de<br />
certa forma, um pouco <strong>da</strong> conexi<strong>da</strong>de, princípio clássico que, em tese, sempre<br />
acompanhou a Geografia.<br />
Além <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de do resgate de alguns conceitos clássicos consoli<strong>da</strong>dos,<br />
também é necessário superá-los, criando novos conceitos que expressem melhor<br />
a história <strong>da</strong> apropriação <strong>da</strong> Natureza pelo Homem “[...] através do trabalho e <strong>da</strong><br />
técnica enquanto instrumentos de produção, acumulação e, por conseqüência, de<br />
produção de uma nova natureza [...]” (SUERTEGARAY, 2002, p. 52).<br />
Essas preocupações e propostas em relação ao tempo <strong>da</strong> ação humana e as suas<br />
transformações também são inerentes a outras ciências, a exemplo <strong>da</strong> Geologia,<br />
para a qual alguns autores (TER-STEPANIAN, 1988; PELOGGIA, 1998) chegam<br />
mesmo a defender que, no momento em que as ativi<strong>da</strong>des humanas e as suas<br />
conseqüências já superaram significativamente os processos naturais, a época<br />
geológica denomina<strong>da</strong> Holoceno já teria sido supera<strong>da</strong> por outra, denomina<strong>da</strong> de<br />
Tecnógeno (ou Quinário). Propõe-se assim uma ruptura com o Quaternário<br />
clássico, <strong>da</strong>ndo espaço para uma nova Era (SUERTEGARAY, 2002).<br />
A aceitação dessa nova natureza pressupõe novas abor<strong>da</strong>gens que já estão sendo<br />
discuti<strong>da</strong>s, por exemplo, no âmbito <strong>da</strong> Geomorfologia, onde o conceito clássico de<br />
Depósitos Correlativos, inerente aos depósitos superficiais decorrentes de<br />
processos naturais que nos permitiram correlacionar com outros espaços e/ou<br />
épocas, vêm sendo superado pelo conceito de Depósitos Tecnogênicos,<br />
expressando este a dinâmica morfogenética ao longo <strong>da</strong> história humana. Nesse<br />
caso, a atuação antropogênica e seus artefatos passa ser aceita enquanto<br />
processo geomorfológico (SUERTEGARAY, 2002).<br />
Para a Geografia, de uma forma geral, Suertegaray (2004) considera como<br />
balizador o conceito de Espaço Geográfico, sendo este entendido como a<br />
materialização <strong>da</strong>s práticas humanas sobre a superfície <strong>da</strong> terra.<br />
De acordo com essa autora, por constituir uma totali<strong>da</strong>de que não pode ser<br />
compreendi<strong>da</strong> de forma analítica, o Espaço Geográfico é considerado uno. Ao<br />
mesmo tempo, como pode ser lido sob diferentes expressões <strong>da</strong> leitura<br />
geográfica, onde está incluído o conceito de Ambiente (além do Domínio, <strong>da</strong><br />
Paisagem, <strong>da</strong> Região, etc.), ele também é considerado múltiplo. Portanto, <strong>da</strong><br />
mesma forma, pode e seria salutar que fosse trabalhado interdisciplinarmente,<br />
uma vez que isso o tornaria melhor compreendido.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 05-15, 2007<br />
12
13<br />
Na visão de Suertegaray (2004):<br />
Considerações sobre a geografia e o ambiente<br />
[...] pensar o ambiente em geografia é considerar a relação<br />
natureza/socie<strong>da</strong>de, uma conjunção complexa e conflituosa<br />
que resulta do longo processo de socialização <strong>da</strong> natureza<br />
pelo homem. Processo este que, ao mesmo tempo em que<br />
transforma a natureza, transforma, também, a natureza<br />
humana (p.196).<br />
A socialização <strong>da</strong> Natureza a que a autora se refere é resultante <strong>da</strong>s diversas<br />
intervenções humanas através do processo produtivo e, consequentemente,<br />
tecnológico, nas suas variações espaço-temporais criando, conforme já reportado<br />
anteriormente, o que Santos (1997) denomina de Natureza Tecnifica<strong>da</strong>.<br />
Considerações Finais<br />
Vivemos, ca<strong>da</strong> vez mais, um mundo de incertezas. Mais que nunca a Geografia, a<br />
Ciência e o Homem, estão procurando novos caminhos. Nessa caminha<strong>da</strong>, as<br />
bússolas nos são retira<strong>da</strong>s a todo instante, já que, num mundo de tempo<br />
acelerado, surgem coisas novas a todo momento, gerando várias conseqüências e<br />
possibili<strong>da</strong>des, desafiando-nos a criar formas de articular conhecimentos capazes<br />
de <strong>da</strong>r conta dessas novas reali<strong>da</strong>des.<br />
No caso <strong>da</strong> questão ambiental, nos é exigido um novo desenho <strong>da</strong>s constituições<br />
natural e política para que possamos, de fato, compreender a articulação dos<br />
elementos e processos naturais e sociais (LATOUR, 1994).<br />
Para a Geografia, resgatar a união entre Natureza e Socie<strong>da</strong>de, união esta que nos<br />
foi embrionária, e que representa um dos maiores diferenciais inerentes á história<br />
dessa Ciência, quando compara<strong>da</strong> a outras, significa superar a dicotomia cria<strong>da</strong> ao<br />
longo do seu processo histórico para que assim possamos <strong>da</strong>r respostas mais<br />
efetivas aos desafios científicos que nos são propostos.<br />
Essa experiência inicial, confere à Geografia algumas vantagens em relação a<br />
outros ramos do conhecimento científico que estu<strong>da</strong>m a questão ambiental, para<br />
os quais as inter-relações Socie<strong>da</strong>de/Natureza são uma experiência nunca antes<br />
feita e por isso mesmo ain<strong>da</strong> estão tentando criar todo um caminho<br />
metodológico.<br />
Cremos que um retorno a esse passado integrador, associado à absorção de<br />
conhecimentos de outras áreas, seja um caminho capaz de <strong>da</strong>r novo fôlego à<br />
Geografia e à questão ambiental, como foi possível demonstrar em alguns<br />
exemplos.<br />
Finalmente cabe destacar que fazer Ciência é também, e ca<strong>da</strong> vez mais, um<br />
exercício constante de dialética. Particularmente para os que se dedicam a<br />
compreender e explicar a Geografia e o Ambiente, estes são obrigados, mais que<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 05-15, 2007
SOUZA, B. I; SUERTEGARAY, D. M. A.<br />
nunca, a ir à fronteira do conhecimento, onde o que é diferente se unifica,<br />
tornando-se híbrido (SUERTEGARAY, 2005).<br />
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OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 05-15, 2007<br />
14
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SOUZA SANTOS, B. Um discurso sobre as Ciências na transição para uma ciência<br />
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SUERTEGARAY, D.M.A. A subordinação que recria e reinventa a natureza. Texto de<br />
exposição realiza<strong>da</strong> na mesa-redon<strong>da</strong> “Perpectivas <strong>da</strong> Geografia Latino-Americana<br />
no Século XXI”, como parte <strong>da</strong> programação do X Encontro dos Geógrafos <strong>da</strong><br />
América Latina (EGAL). São Paulo: USP, 2005, 12p. (Mimeo).<br />
TER-STEPANIAN, G. Beginning <strong>of</strong> the Technogene. Bulletin I.A.E.G., n.38, p.133-<br />
142, 1988.<br />
Contato com os autores: bartoisrael@yahoo.com.br; suerte.ez@terra.com.br.<br />
Recebido em: 09/05/2007<br />
Aprovado em: 20/06/2007<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 05-15, 2007
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
ANÁLISE DAS PERDAS DE ÁGUA E SOLO EM<br />
DIFERENTES COBERTURAS SUPERFICIAIS NO<br />
SEMI-ÁRIDO DA PARAÍBA<br />
Resumo<br />
Celso A. G. Santos<br />
Departamento de Engenharia Civil <strong>da</strong> UFPB<br />
Richarde Marques <strong>da</strong> Silva<br />
Departamento de Geociências <strong>da</strong> UFPB<br />
Vajapeyam S. Srinivasan<br />
Uni<strong>da</strong>de Acadêmica de Engenharia Civil <strong>da</strong> UFCG<br />
O presente artigo busca descrever as per<strong>da</strong>s de água e solo nas bacias<br />
experimentais de Sumé e de São João do Cariri, ambas localiza<strong>da</strong>s no semi-árido<br />
<strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, Brasil. Os <strong>da</strong>dos de lâmina escoa<strong>da</strong> e produção de sedimentos foram<br />
obtidos em parcelas de 100 m² com cobertura superficial diferencia<strong>da</strong>s para o<br />
período de 1983 a 1991 em Sumé e para o período de 1999 a 2006 em São João<br />
do Cariri. Os experimentos em Sumé constituíram-se de uma parcela com solo<br />
revolvido, duas desmata<strong>da</strong>s, uma com caatinga nativa, duas com cobertura<br />
morta, uma com palma cultiva<strong>da</strong> morro abaixo e uma com palma cultiva<strong>da</strong> em<br />
nível; já os experimentos em São João do Cariri constituíram-se de duas parcelas,<br />
<strong>da</strong>s quais uma desmata<strong>da</strong> e outra com cobertura de vegetação rasteira num<br />
período de três anos e depois manti<strong>da</strong> desmata<strong>da</strong>.<br />
Palavras-chave: cobertura vegetal, per<strong>da</strong> de água, erosão, semi-árido.<br />
Abstract<br />
The present paper aims to describe the water and soil losses under various types<br />
<strong>of</strong> vegetal covers in the experimental basins <strong>of</strong> Sumé and São João do Cariri, both<br />
located in the semiarid region <strong>of</strong> <strong>Paraíba</strong> State, Brazil. The field <strong>da</strong>ta <strong>of</strong> run<strong>of</strong>f and<br />
sediment yield were collected in plots <strong>of</strong> 100 m² with different surface covers<br />
between 1983 and 1991 in Sumé and between 1999 and 2006 in São João do<br />
Cariri. The plot experiments in Sumé consist <strong>of</strong> one revolved soil plot, two cleared<br />
bare plots, one plot with native semiarid vegetation, two mulched plots, one plot<br />
with cactus planted down slope and one plot with cactus planted along the<br />
contour lines. The plots in São João do Cariri consist <strong>of</strong> one with bare soil and<br />
another with common grass cover during three years and with cleared bare soil<br />
later.<br />
Key words: vegetal cover, water loss, erosion, semiarid region.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007
17<br />
Análise <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s de água e solo em diferentes coberturas superficiais no semi-árido <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong><br />
Introdução<br />
O presente artigo busca descrever e analisar as per<strong>da</strong>s de água e solo nas bacias<br />
experimentais de Sumé e de São João do Cariri, a partir de <strong>da</strong>dos observados de<br />
lâmina escoa<strong>da</strong> e erosão, medidos em parcelas de 100 m² com coberturas<br />
superficiais diferencia<strong>da</strong>s.<br />
A erosão dos solos é um dos mais importantes problemas ambientais em todo<br />
mundo. As questões relaciona<strong>da</strong>s à erosão têm aumentado consideravelmente<br />
nos últimos anos, especialmente em regiões semi-ári<strong>da</strong>s de países como o Brasil,<br />
onde grande parte <strong>da</strong> população depende de ativi<strong>da</strong>des econômicas liga<strong>da</strong>s à<br />
agricultura. Existem várias regiões semi-ári<strong>da</strong>s no planeta, entretanto, nenhuma<br />
destas possui a pluviosi<strong>da</strong>de, a extensão e a densi<strong>da</strong>de populacional do semiárido<br />
do nordeste brasileiro.<br />
Nas regiões semi-ári<strong>da</strong>s, como é o caso de parte do Nordeste do Brasil, a<br />
degra<strong>da</strong>ção dos solos pela erosão hídrica é um sério problema e por isso vem<br />
sendo estu<strong>da</strong><strong>da</strong> nas últimas déca<strong>da</strong>s por órgãos e pesquisadores que se<br />
preocupam com os aspectos e as relações socioeconômicas e físicas do semiárido.<br />
A região semi-ári<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong> compreende uma área de aproxima<strong>da</strong>mente<br />
20.000 km² e caracteriza-se, do ponto de vista geoambiental, pela diversi<strong>da</strong>de de<br />
suas paisagens, tendo como elemento marcante, no quadro natural <strong>da</strong> região, a<br />
condição de semi-aridez que atinge grande parte do seu território e a alta<br />
variabili<strong>da</strong>de pluviométrica espacial e temporal inerente a esse tipo climático<br />
(SALES, 2002).<br />
A ocupação do semi-árido paraibano, assim como a de todo o sertão nordestino,<br />
ocorreu sempre em uma perspectiva de exploração excessiva, levando inclusive à<br />
exaustão de parte dos recursos naturais. Deve-se considerar ain<strong>da</strong> que, alia<strong>da</strong> a<br />
essa exploração pre<strong>da</strong>tória, estabeleceu-se uma estrutura social concentradora de<br />
ren<strong>da</strong> e de poder, o que foi responsável pela relativa estagnação e baixos índices<br />
sócioeconômicos registrados na região.<br />
Devido ao Nordeste localizar-se numa zona tropical, verifica-se que os processos<br />
relacionados à erosão e à vazão repercutem sobre o desenvolvimento regional,<br />
uma vez que podem causar <strong>da</strong>nos à agricultura, às diversas outras ativi<strong>da</strong>des<br />
econômicas e ao próprio meio ambiente. Os prejuízos, sob o ponto de vista <strong>da</strong><br />
per<strong>da</strong> de solo, contribuem para a degra<strong>da</strong>ção ambiental à medi<strong>da</strong> que podem<br />
provocar: (a) redução <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> água pela presença de sedimentos e suas<br />
associações com agrotóxicos e nutrientes; (b) assoreamento de córregos e lagos;<br />
(c) enchentes; e (d) inun<strong>da</strong>ções causa<strong>da</strong>s por alterações no regime fluvial, as quais<br />
afetam a fauna, a flora e as ativi<strong>da</strong>des humanas (SILVA et al., 2003; GUERRA, 2005).<br />
Como qualquer outro fenômeno do âmbito de estudo <strong>da</strong> Geografia Física, a<br />
erosão do solo, provoca<strong>da</strong> pela ação do escoamento superficial, é estu<strong>da</strong><strong>da</strong> do<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007
SANTOS, C A. G.; SILVA, R. M.; SRINIVASAN, V. S.<br />
ponto de vista <strong>da</strong>s interrelações espaciais, de seus fatores condicionantes e,<br />
principalmente, dos fatores físicos do solo. Portanto, o presente estudo busca<br />
trazer para o âmbito <strong>da</strong> Geografia, a discussão sobre a influência <strong>da</strong> cobertura<br />
vegetal nos processos de escoamento superficial e de erosão.<br />
Segundo Brandt (1986), a cobertura vegetal pode atuar de duas maneiras no<br />
processo de erosão: primeiro reduzindo o volume de água que chega ao solo,<br />
através <strong>da</strong> interceptação e, segundo, alterando a distribuição do tamanho <strong>da</strong>s<br />
gotas de chuva, afetando, com isso, a energia cinética <strong>da</strong> chuva. Já Thornes (1980)<br />
vai um pouco mais além e destaca que a cobertura vegetal controla a erosão dos<br />
solos de três maneiras: (a) atuando sobre o escoamento superficial; (b) no<br />
balanço hidrológico; e (c) nas variações sazonais <strong>da</strong> interceptação <strong>da</strong>s gotas de<br />
chuva no solo.<br />
Sobre os principais fatores atuantes que influenciam a erosão dos solos, Guerra<br />
(1998) aponta a erosivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> chuva, as proprie<strong>da</strong>des físicas do solo, a cobertura<br />
vegetal e as características <strong>da</strong>s encostas, como sendo os fatores relevantes e<br />
controladores <strong>da</strong> variação <strong>da</strong>s taxas de erosão dos solos. Estudos sobre a erosão<br />
dos solos vêm sendo desenvolvidos desde meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1940, como<br />
exemplo, podemos citar os de Wischmeier (1960; 1976), Vanoni (1970), Kirkby (1980),<br />
Lal (1990), Singh (1995), Beven e Moore (1993) e Yu et al. (1999).<br />
De acordo com Silva et al. (2003), o tema erosão tem sido intensivamente<br />
estu<strong>da</strong>do segundo vários pontos de vista em várias partes do mundo, isto é, o<br />
assunto vem sendo pesquisado no sentido de produzir conhecimento técnicocientífico<br />
dentro de várias áreas como Hidrologia, Geomorfologia, Geografia,<br />
Geologia, Pedologia e Agronomia, entre outras, mostrando a interativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />
relações entre o clima, a temperatura, o relevo, o mau manejo do solo e suas<br />
influências no processo de erosão, cujas conseqüências trazem sérios <strong>da</strong>nos para<br />
o desenvolvimento regional.<br />
Devido à necessi<strong>da</strong>de de estudos hidrológicos de longo prazo em ambientes<br />
específicos, como é o caso do semi-árido nordestino, foram instala<strong>da</strong>s diversas<br />
bacias experimentais no Nordeste do Brasil. No entanto, estas bacias foram<br />
desativa<strong>da</strong>s depois de um período curto de aquisição de <strong>da</strong>dos, devido aos altos<br />
custos para a manutenção <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des de monitoramento e pela falta de<br />
recursos, com exceção <strong>da</strong> bacia experimental de Sumé que foi manti<strong>da</strong> com o<br />
apoio de recursos provenientes de projetos institucionais como os <strong>da</strong> SUDENE-<br />
ORSTOM-UFPB (a parte que é UFCG agora), BID-CNPq-UFPB (a parte que é UFCG<br />
agora), e projetos individuais de pesquisadores <strong>da</strong> UFPB e UFCG. A Bacia<br />
Experimental de Sumé, instala<strong>da</strong> em 1981 pela SUDENE (Superintendência do<br />
Desenvolvimento do Nordeste) e pelo instituto francês de cooperação técnica<br />
ORSTOM (atualmente IRD), constituiu uma <strong>da</strong>s mais importantes fontes de <strong>da</strong>dos<br />
de escoamento superficial e erosão, e teve suas ativi<strong>da</strong>des encerra<strong>da</strong>s em 1996,<br />
devido à solicitação <strong>da</strong> área experimental pelo proprietário <strong>da</strong> terra onde se<br />
localizava a bacia (SRINIVASAN e GALVÃO, 2003). A partir de então, os estudos<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007<br />
18
19<br />
Análise <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s de água e solo em diferentes coberturas superficiais no semi-árido <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong><br />
experimentais começaram a ser realizados na Bacia Experimental de São João do<br />
Cariri. Atualmente, diversos órgãos financiadores, como FINEP, CT-HIDRO e CNPq,<br />
através de projetos, por exemplo, IBESA (Implantação de Bacias Experimentais no<br />
Semi-árido) e BEER-UFCG (Bacias Experimental e Representativa <strong>da</strong> Rede de<br />
Hidrologia do Semi-Árido), apóiam a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des de pesquisa na<br />
Bacia Experimental de São João do Cariri.<br />
Materiais e Métodos<br />
Como já mencionado, os <strong>da</strong>dos aqui utilizados foram coletados em duas bacias<br />
experimentais localiza<strong>da</strong>s na região semi-ári<strong>da</strong> do Estado <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, a Bacia<br />
Experimental de Sumé e a Bacia Experimental de São João do Cariri. A Bacia<br />
Experimental de Sumé, atualmente desativa<strong>da</strong>, estava localiza<strong>da</strong> na Fazen<strong>da</strong><br />
Nova, no município de Sumé, situa<strong>da</strong> na altura do km 118 <strong>da</strong> BR-412, entre as<br />
ci<strong>da</strong>des de Sumé e Monteiro, entre as coordena<strong>da</strong>s 7º 40’ de latitude Sul e 37º 00’<br />
de longitude Oeste, com altitude entre 500 e 700 m.<br />
A Bacia Experimental de São João do Cariri localiza<strong>da</strong> na Bacia do Riacho<br />
Namorados (área de 15 km²) está localiza<strong>da</strong> próxima à ci<strong>da</strong>de do mesmo nome,<br />
entre as coordena<strong>da</strong>s 7º 22’ de latitude Sul e 36º 31’ de longitude Oeste, e com<br />
altitude entre 450 e 500 m. Essas duas bacias experimentais possuem um grande<br />
acervo de <strong>da</strong>dos de escoamento superficial e erosão dos solos, além de <strong>da</strong>dos<br />
climatológicos.<br />
De acordo com a classificação climática de Köeppen, o clima <strong>da</strong> região é do tipo<br />
climático BSh (semi-árido), caracterizado por insuficiência e irregulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />
precipitações pluviais e ocorrência de temperaturas eleva<strong>da</strong>s. A precipitação<br />
pluvial média anual, observa<strong>da</strong> no período de 1986 a 1990, foi de 695 mm. A<br />
temperatura média anual histórica é de 24ºC e a umi<strong>da</strong>de relativa média anual é<br />
de 57% (ALBUQUERQUE et al., 2002). Apresenta, ain<strong>da</strong>, solos rasos, pouco<br />
porosos e predominantemente plásticos, subsolo derivado do embasamento<br />
cristalino, vegetação do tipo caatinga e relevo bastante ondulado, com altitudes<br />
variando entre 450 a 700 m.<br />
Parcelas de Erosão<br />
A avaliação <strong>da</strong> influência <strong>da</strong> cobertura vegetal nas per<strong>da</strong>s de água e solo no semiárido<br />
paraibano foi realiza<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> comparação dos <strong>da</strong>dos observados de<br />
escoamento superficial e de erosão produzidos em oito parcelas de erosão na<br />
Bacia Experimental de Sumé e em duas parcelas na Bacia Experimental de São<br />
João do Cariri, to<strong>da</strong>s com área igual 100 m² (4,5 × 22,2 m). Essas parcelas de<br />
erosão foram manti<strong>da</strong>s sob condições distintas no que tange à cobertura do solo.<br />
Uma descrição mais detalha<strong>da</strong> <strong>da</strong>s características <strong>da</strong>s parcelas é apresenta<strong>da</strong> nas<br />
Tabelas 1 e 2 para as bacias experimentais de Sumé e São João do Cariri,<br />
respectivamente.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007
SANTOS, C A. G.; SILVA, R. M.; SRINIVASAN, V. S.<br />
Tabela 1. Característica <strong>da</strong>s parcelas <strong>da</strong> Bacia Experimental de Sumé<br />
Parcela<br />
Declivi<strong>da</strong>de<br />
Média (%)<br />
Cobertura Vegetal<br />
Período de<br />
<strong>da</strong>dos<br />
1 3,8 Desmata<strong>da</strong> 1982–1991<br />
2 3,9 Vegetação rasteira com cobertura morta 1982–1991<br />
3 7,2 Vegetação rasteira com cobertura morta 1982–1991<br />
4 7,0 Desmata<strong>da</strong> 1982–1991<br />
5 9,5 Caatinga nativa 1982–1991<br />
6 4,0 Palma morro abaixo 1983–1991<br />
7 4,0 Palma cultiva<strong>da</strong> em nível 1983–1991<br />
8 4,0 Solo revolvido (Padrão Wischmeier) 1986–1991<br />
Tabela 2. Característica <strong>da</strong>s parcelas <strong>da</strong> Bacia Experimental de São João do Cariri<br />
Parcela<br />
Declivi<strong>da</strong>de<br />
média (%)<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007<br />
Cobertura Vegetal Período de <strong>da</strong>dos<br />
1 3,4 Desmata<strong>da</strong> 1999–2006<br />
2 3,6<br />
Vegetação rasteira com cobertura<br />
morta<br />
1999–2002<br />
Desmata<strong>da</strong> 2003–2006<br />
O tipo de solo no local dos experimentos em Sumé é um Luvissolo Hipocrômico<br />
Órtico Vértico, com horizonte A fraco e textura argilosa fase caatinga<br />
hiperxerófila. Nas parcelas de São João do Cariri o solo é do tipo Luvissolo Crômico<br />
Vértico com horizonte A fraco e textura argilosa fase caatinga hiperxerófila.<br />
Nas parcelas 1 e 4 (desmata<strong>da</strong>s) <strong>da</strong> Bacia Experimental de Sumé a vegetação era<br />
removi<strong>da</strong> quando atingia 5 cm em média (Figuras 1a e 1b). As parcelas 6 e 7, com<br />
palma forrageira (Figura 1c), eram limpas quando a vegetação rasteira atingia<br />
cerca de 5 cm de altura. As parcelas com vegetação rasteira e com cobertura<br />
morta (2 e 3) eram roça<strong>da</strong>s quando a vegetação atingia de 20 a 25 cm, sem retirála<br />
de dentro <strong>da</strong>s parcelas para servir como cobertura morta (Figura 1d).<br />
Já na parcela 8 (Figura 1e), o solo foi mantido constantemente sem nenhum tipo<br />
de vegetação e revolvido com ancinho sempre que se tornava compactado pela<br />
ação <strong>da</strong>s chuvas. A parcela com cobertura vegetal nativa (Figura 1f) não s<strong>of</strong>reu<br />
intervenção alguma (SRINIVASAN e GALVÃO, 2003).<br />
Deve-se ressaltar que existia ain<strong>da</strong> na Bacia Experimental de Sumé uma nona<br />
parcela, porém, não foi leva<strong>da</strong> em consideração no presente estudo devido ao<br />
fato dela possuir a mesma cobertura vegetal <strong>da</strong> parcela com caatinga nativa, e por<br />
ter sido implanta<strong>da</strong>, apenas em 1986, numa área onde havia anteriormente um<br />
plantio de tomate até 1981, quando então a caatinga começou a se recuperar<br />
naturalmente.<br />
20
21<br />
Análise <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s de água e solo em diferentes coberturas superficiais no semi-árido <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong><br />
(a) Vista <strong>da</strong> Parcela 1 (desmata<strong>da</strong>). (b) Detalhe <strong>da</strong> Parcela 4 (desmata<strong>da</strong>).<br />
(c) Parcelas com palma cultiva<strong>da</strong>. (d) Parcela com vegetação rasteira e<br />
cobertura morta).<br />
(e) Parcela 8 com solo revolvido. (f) Parcela 5 com caatinga nativa.<br />
Figura 1. Parcelas de erosão <strong>da</strong> Bacia Experimental de Sumé.<br />
As Figuras 2a e 2b mostram respectivamente a Parcela 1 (desmata<strong>da</strong>) e os<br />
detalhes dos tanques coletores de sedimentos e de lâmina escoa<strong>da</strong> <strong>da</strong>s parcelas<br />
<strong>da</strong> Bacia Experimental de São João do Cariri.<br />
(a) Vista <strong>da</strong> Parcela 1 (desmata<strong>da</strong>). (b) Tanques para coleta de <strong>da</strong>dos.<br />
Figura 2. Parcelas de erosão na Bacia Experimental de São João do Cariri.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007
SANTOS, C A. G.; SILVA, R. M.; SRINIVASAN, V. S.<br />
Microbacia <strong>da</strong> Bacia Experimental de São João do Cariri<br />
A microbacia de 0,16 ha <strong>da</strong> Bacia Experimental de São João do Cariri foi utiliza<strong>da</strong>,<br />
no presente estudo, para a análise <strong>da</strong> influência <strong>da</strong> erosivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> chuva sobre a<br />
erosão do solo. A bacia experimental é constituí<strong>da</strong> por várias instalações dentre as<br />
quais existem três microbacias e quatro sub-bacias instrumenta<strong>da</strong>s. A microbacia<br />
de 0,16 ha foi escolhi<strong>da</strong> devido ao fato dela possuir o maior número de eventos<br />
observados de chuva, vazão e erosão dentre to<strong>da</strong>s as outras. Os principais tipos<br />
de solos encontrados na Bacia Experimental de São João do Cariri são Luvissolo<br />
Crômico Vértico, Vertissolo e Neossolo Lítico.<br />
Dados Coletados<br />
Os <strong>da</strong>dos observados de chuva, lâmina escoa<strong>da</strong> e erosão, e aqui apresentados,<br />
fazem parte do acervo de <strong>da</strong>dos coletados nas bacias experimentais de Sumé e<br />
São João do Cariri, para as escalas de parcelas e de microbacia. Foram registrados<br />
264 eventos com escoamento e produção de sedimentos entre 1983 e 1991 na<br />
Bacia Experimental de Sumé. Os <strong>da</strong>dos de precipitação foram coletados em um<br />
pluviógrafo localizado próximo às parcelas. Já na Bacia Experimental de São João<br />
do Cariri foram registrados 172 eventos entre 1999 e 2006, cujos valores de<br />
precipitação foram obtidos em um pluviógrafo localizado na própria bacia. Estes<br />
<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> precipitação foram utilizados para calcular os totais diários, mensais e<br />
anuais na bacia, para a determinação do índice de erosivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> chuva.<br />
Erosivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Chuva em São João do Cariri<br />
A determinação do índice de erosivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> chuva, defini<strong>da</strong> como o produto <strong>da</strong><br />
energia cinética <strong>da</strong> chuva e a maior intensi<strong>da</strong>de num intervalo de 30 minutos, foi<br />
realiza<strong>da</strong> a partir dos <strong>da</strong>dos registrados no pluviógrafo para ca<strong>da</strong> evento de chuva<br />
que provocou escoamento no período de 1999 a 2002. Contudo, a erosivi<strong>da</strong>de foi<br />
considera<strong>da</strong> nula quando não existiu escoamento. A partir destes <strong>da</strong>dos, foram<br />
calcula<strong>da</strong>s as intensi<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> evento em mm/h, além <strong>da</strong>s máximas<br />
intensi<strong>da</strong>des em trinta minutos, I30 em mm/h. O cálculo <strong>da</strong> energia cinética<br />
individual foi realizado para ca<strong>da</strong> segmento de chuva com intensi<strong>da</strong>de constante,<br />
através <strong>da</strong> equação proposta por Wischmeier e Smith (1978), converti<strong>da</strong> para o<br />
Sistema Internacional de Uni<strong>da</strong>des (FOSTER et al., 1981):<br />
Ec = 0,119 + 0,0873 log10 I (1)<br />
em que Ec é a energia cinética <strong>da</strong> chuva, em MJ/ha, e I é a intensi<strong>da</strong>de de chuva<br />
em ca<strong>da</strong> segmento com intensi<strong>da</strong>de constante em mm/h, sendo que, para<br />
intensi<strong>da</strong>des maiores que 76 mm/h, a energia cinética foi considera<strong>da</strong> de valor<br />
máximo igual a 0,2832 MJ/ha.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007<br />
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Análise <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s de água e solo em diferentes coberturas superficiais no semi-árido <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong><br />
Os valores calculados através <strong>da</strong> equação (1) foram utilizados para o cálculo do<br />
índice de erosivi<strong>da</strong>de EI30, que é igual à soma <strong>da</strong>s energias cinéticas para ca<strong>da</strong><br />
segmento com intensi<strong>da</strong>de constante multiplicado pelo I30.<br />
Resultados e Discussões<br />
Para estu<strong>da</strong>r as per<strong>da</strong>s de água e solo nas duas bacias experimentais,<br />
inicialmente, as precipitações anuais em Sumé e São João do Cariri foram<br />
relaciona<strong>da</strong>s. O coeficiente de determinação R² igual a 0,91 entre as duas<br />
precipitações, conforme mostrado na Figura 3, indica que seus totais anuais<br />
podem ser considerados como altamente correlacionados.<br />
Figura 3. Relação entre os valores anuais <strong>da</strong> precipitação em<br />
São João do Cariri e Sumé.<br />
Influência <strong>da</strong> Cobertura Vegetal na Lâmina Escoa<strong>da</strong><br />
Comparando-se os <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> Tabela 3, percebe-se que a Parcela 8 (solo revolvido)<br />
escoou aproxima<strong>da</strong>mente cinco vezes mais água que na Parcela 5 (com caatinga<br />
nativa) em relação ao valor médio do período estu<strong>da</strong>do (Tabela 3). Assim, a<br />
lâmina escoa<strong>da</strong> <strong>da</strong> Parcela 8, em relação à precipitação média anual de 1986 a<br />
1991 (707 mm), foi em torno de 26%, enquanto a lâmina escoa<strong>da</strong> na Parcela 5,<br />
para o período de 1983 a 1991, foi de 4%.<br />
Segundo Albuquerque et al. (2001), as menores reduções de lâmina escoa<strong>da</strong><br />
ocorrem provavelmente pelo fato do solo, independente do tipo de cobertura,<br />
apresentar limita<strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de infiltração, a partir <strong>da</strong> qual a taxa de enxurra<strong>da</strong><br />
tende a igualar-se em diferentes sistemas de manejo do solo. Portanto, os<br />
resultados obtidos mostram que as áreas onde a vegetação nativa foi preserva<strong>da</strong>,<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007
SANTOS, C A. G.; SILVA, R. M.; SRINIVASAN, V. S.<br />
houve uma diminuição <strong>da</strong>s taxas de infiltração de água no solo, acarretando<br />
assim, uma diminuição do volume escoado (Tabela 3). Desta forma, esses <strong>da</strong>dos<br />
ressaltam o importante papel que a cobertura vegetal pode desempenhar no<br />
controle <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s de água por escoamento superficial, principalmente, quando<br />
considera<strong>da</strong> a irregulari<strong>da</strong>de temporal e espacial <strong>da</strong>s chuvas na região semi-ári<strong>da</strong><br />
do Nordeste do Brasil.<br />
Os valores médios anuais, excluídos os anos de 1989 e 1990 de lâmina escoa<strong>da</strong><br />
nas Parcelas 6 e 7, com palma morro abaixo e palma em nível, foram de 198 mm e<br />
172,7 mm, respectivamente. Os volumes <strong>da</strong> lâmina escoa<strong>da</strong> para essas mesmas<br />
parcelas em relação à precipitação média anual do mesmo período, excluídos os<br />
<strong>da</strong>dos de chuva de 1989 e 1990 (559 mm), foram de 35,4% e 30,9%,<br />
respectivamente (Tabela 3). As Parcelas 1 e 4 (desmata<strong>da</strong>s) apresentaram os<br />
maiores valores de lâmina escoa<strong>da</strong>, 199,3 mm e 215,0 mm e, conseqüentemente,<br />
a maior relação com a precipitação média anual, 35,2% e 38,0%, respectivamente<br />
(Tabela 3).<br />
Tabela 3. Valores anuais de precipitação e <strong>da</strong> lâmina escoa<strong>da</strong> <strong>da</strong>s parcelas em<br />
Sumé<br />
Ano<br />
Chuva<br />
(mm) P1 P2<br />
Lâmina Escoa<strong>da</strong> (mm)<br />
P3 P4 P5 P6 P7 P8<br />
1983 245 24,2 4,5 0,0 20,0 0,0 0,0 0,0 –<br />
1984 608 199,4 75,4 43,1 221,0 5,0 90,5 39,0 –<br />
1985 1.453 543,0 254,5 326,9 630,0 136,0 547,6 496,0 –<br />
1986 965 235,0 106,9 115,6 304,4 39,0 299,3 243,0 251,5<br />
1987 372 109,6 0,0 0,0 89,3 0,0 112,4 60,3 58,7<br />
1988 736 351,6 2,0 10,3 290,0 0,0 330,0 262,6 319,0<br />
1989 917 280,0 9,1 0,0 316,4 0,0 – – 331,0<br />
1990 267 50,7 0,0 0,0 57,0 0,0 – – 43,0<br />
1991 986 0,0 5,4 0,0 6,8 23,9 6,5 108,3 123,7<br />
Média 566 199,3 50,9 55,1 215,0 22,7 198,0 172,7 187,8<br />
A partir dos <strong>da</strong>dos observados de lâmina escoa<strong>da</strong> na Bacia Experimental de São<br />
João do Cariri, nota-se que a Parcela 1 (desmata<strong>da</strong>) obteve uma lâmina escoa<strong>da</strong><br />
anual média igual a 173,9 mm, enquanto que na Parcela 2 (manti<strong>da</strong> um tempo<br />
com vegetação rasteira com cobertura morta e outro período desmata<strong>da</strong>) foi<br />
observa<strong>da</strong> uma média anual de 125,5 mm, uma redução <strong>da</strong> lâmina escoa<strong>da</strong> igual a<br />
26,38% mm (Tabela 4). Assim, a lâmina escoa<strong>da</strong> <strong>da</strong> Parcela 1, em relação à<br />
precipitação média anual (456 mm), foi de 38,1%, enquanto a lâmina escoa<strong>da</strong> na<br />
Parcela 2 foi de 27,5%, mostrando que estas áreas apresentaram valores<br />
considerados próximos, uma vez que o tipo de cobertura vegetal, em boa parte<br />
do tempo, foi igual em ambas as parcelas (Tabela 4). Esses valores podem ser<br />
explicados, em parte, pelo fato de que as condições em ambas as parcelas eram<br />
quase iguais e, com o crescimento <strong>da</strong> cobertura vegetal, houve a diminuição do<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007<br />
24
25<br />
Análise <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s de água e solo em diferentes coberturas superficiais no semi-árido <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong><br />
escoamento. Nos anos 2000 e 2001, o efeito <strong>da</strong> vegetação foi total e no ano 2002,<br />
com a retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> vegetação rasteira, o escoamento aumentou gradualmente.<br />
A representação gráfica de todos os eventos de vazão registrados nas duas<br />
parcelas <strong>da</strong> Bacia Experimental de São João do Cariri mostra que os eventos<br />
extremos de lâmina escoa<strong>da</strong> foram semelhantes em ambas as parcelas, com<br />
exceção dos picos em alguns eventos isolados. Nota-se também uma pequena<br />
diferença em relação aos valores <strong>da</strong>s médias observa<strong>da</strong>s, 7,56 mm na Parcela 1 e<br />
5,45 mm na Parcela 2 (Figura 4).<br />
Tabela 4. Valores anuais e médios de precipitação e <strong>da</strong> lâmina escoa<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />
parcelas em São João do Cariri<br />
Ano<br />
Precipitação<br />
(mm) Parcela 1<br />
Lâmina Escoa<strong>da</strong> (mm)<br />
Parcela 2 Redução (%)<br />
1999 143 21,1 15,5 26,38<br />
2000 762 273,8 133,3 51,30<br />
2001 343 137,0 14,1 89,74<br />
2002 550 233,7 182,0 22,13<br />
2003 261 63,0 56,8 9,88<br />
2004 645 220,0 199,5 9,32<br />
2005 580 276,8 247,8 10,46<br />
2006 365 165,9 154,6 6,83<br />
Média 456 173,9 125,5 27,87<br />
Figura 4. Lâmina escoa<strong>da</strong> nas parcelas de São João do Cariri.<br />
Influência <strong>da</strong> Cobertura Vegetal na Erosão<br />
Comparando-se os <strong>da</strong>dos observados de erosão na Bacia Experimental de Sumé,<br />
constatou-se que o valor médio anual de erosão do solo na Parcela 8 (solo<br />
revolvido) com relação ao valor médio <strong>da</strong> Parcela 5 (com caatinga nativa), no<br />
período de 1983 a 1990, foi 84 vezes maior (Tabela 5). Segundo Albuquerque et<br />
al. (2002), em estudo sobre a influência do manejo do solo sobre as per<strong>da</strong>s de<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007
SANTOS, C A. G.; SILVA, R. M.; SRINIVASAN, V. S.<br />
solo para o semi-árido paraibano, essa diferença é atribuí<strong>da</strong> à remoção <strong>da</strong><br />
cobertura vegetal <strong>da</strong> superfície do solo na parcela com solo revolvido, permitindo<br />
a ação do impacto <strong>da</strong>s gotas de chuva e do escoamento superficial sobre o solo<br />
descoberto, ocasionando, assim, a desagregação e transporte <strong>da</strong>s partículas do<br />
solo. Constatou-se, dessa forma, que as parcelas com caatinga nativa contribuíram para<br />
reduzir significativamente as taxas de erosão do solo, quando compara<strong>da</strong>s com a<br />
parcela descoberta.<br />
Os valores médios anuais de erosão, correspondente ao período de 1986 a 1990,<br />
obtidos para a Parcela 5 (caatinga nativa) e para as Parcelas 1 e 4 (desmata<strong>da</strong>s),<br />
foram de 0,2, 33,2 e 52,1 t/ha, respectivamente (Tabela 5). Os valores médios de<br />
erosão <strong>da</strong>s Parcelas 2 e 3 (com vegetação rasteira e cobertura morta) e <strong>da</strong> Parcela<br />
4 (desmata<strong>da</strong>) foram de 0,3 e 52,1 t/ha, respectivamente (Tabela 5), sendo que a<br />
parcela com cobertura morta reduziu as per<strong>da</strong>s de solo em 99% quando<br />
compara<strong>da</strong> com aquela desmata<strong>da</strong>. Fato que pode ser explicado quando se<br />
considera que a existência <strong>da</strong> cobertura morta contribuiu para proteger a<br />
superfície do solo, tanto do impacto <strong>da</strong>s gotas de chuva quanto do poder de<br />
desagregação e transporte <strong>da</strong> enxurra<strong>da</strong>, corroborando os resultados obtidos por<br />
Levien et al. (1990).<br />
Tabela 5. Valores anuais e médios de precipitação e <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s de solo <strong>da</strong>s<br />
parcelas experimentais em Sumé<br />
Erosão (t/ha)<br />
Chuva<br />
Ano<br />
(mm) P1 P2 P3 P4 P5 P6 P7 P8<br />
1983 245 14,0 0,0 0,0 2,7 0,0 0,0 0,0 –<br />
1984 608 32,6 0,8 0,3 83,2 0,0 0,6 2,4 –<br />
1985 1.453 102,2 0,4 0,6 186,0 0,2 10,4 6,0 –<br />
1986 965 19,8 1,0 1,6 25,6 0,6 13,7 8,5 17,3<br />
1987 372 11,0 0,0 0,0 18,9 0,0 7,8 2,8 9,5<br />
1988 736 58,7 0,0 0,0 63,5 0,0 31,5 12,8 48,8<br />
1989 917 51,1 0,0 0,0 83,0 0,0 – – 34,5<br />
1990 267 9,3 0,0 0,0 5,1 0,1 – – 5,5<br />
1991 986 0,0 0,1 0,0 1,0 0,6 0,5 0,7 36,2<br />
Média 728 33,2 0,3 0,3 52,1 0,2 9,2 4,7 25,3<br />
Analisando-se os valores de erosão <strong>da</strong>s Parcelas 6 e 7, constatou-se que, em relação<br />
ao valor médio no período de estudo, o plantio de palma cultiva<strong>da</strong> em nível<br />
apresentou per<strong>da</strong> de solo bem inferior (4,7 t/ha) àquele obtido com o cultivo de<br />
palma morro abaixo (9,2 t/ha) (Tabela 5). Desta forma, o cultivo em nível<br />
contribuiu para reduzir em torno de 94,6% as per<strong>da</strong>s de solo, quando comparado<br />
com o cultivo morro abaixo, corroborando com os resultados obtidos por Bertoni<br />
e Lombardi Neto (1985) e Margolis et al. (1991).<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007<br />
26
27<br />
Análise <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s de água e solo em diferentes coberturas superficiais no semi-árido <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong><br />
No que tange à comparação dos <strong>da</strong>dos de erosão na Bacia Experimental de São<br />
João do Cariri observou-se que o valor médio anual de erosão na Parcela 1<br />
(desmata<strong>da</strong>) em relação ao valor médio <strong>da</strong> Parcela 2 (manti<strong>da</strong> um tempo com<br />
vegetação rasteira, com cobertura morta e outro período desmata<strong>da</strong>), no período<br />
estu<strong>da</strong>do, foi aproxima<strong>da</strong>mente oito vezes maior, apresentando valores médios<br />
de erosão de 4,2 e 1,0 t/ha, respectivamente, com uma redução de per<strong>da</strong>s de solo<br />
<strong>da</strong> ordem de 74,6% (Tabela 6).<br />
As Figuras 5a e 5b apresentam a relação entre os <strong>da</strong>dos observados de<br />
precipitação e erosão medidos nos 11 eventos nas Parcelas 1 e 2. Na Parcela 1, os<br />
maiores valores observados de erosão estiveram entre 1,5 e 2,0 (t/ha), enquanto<br />
que, na Parcela 2, os maiores valores observados de erosão ficaram entre 0,5 e<br />
0,8 (t/ha), ou seja, valores menores quando comparados com a Parcela 1. Isto<br />
mostra que há influência direta <strong>da</strong> cobertura vegetal sobre as per<strong>da</strong>s de solo e água.<br />
A representação gráfica de todos os eventos registrados nas duas parcelas <strong>da</strong> Bacia<br />
Experimental de São João do Cariri mostra que os eventos mais extremos de<br />
per<strong>da</strong>s de solo foram distintos quando comparados evento a evento (Figura 6).<br />
Tabela 6. Valores anuais e médios de precipitação e <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s de solo <strong>da</strong>s<br />
parcelas experimentais em São João do Cariri<br />
Ano<br />
Chuva<br />
(mm) Parcela 1<br />
Erosão (t/ha)<br />
Parcela 2 Redução (%)<br />
1999 143 1,2 0,3 75,0<br />
2000 762 14,4 1,5 89,6<br />
2001 343 4,1 0,1 97,6<br />
2002 550 3,2 0,5 84,4<br />
2003 261 1,1 0,1 90,9<br />
2004 645 2,9 0,6 79,3<br />
2005 580 4,6 3,3 28,3<br />
2006 365 2,3 2,2 4,3<br />
Média 456 4,2 1,0 74,6<br />
Figura 5. Relação entre precipitação e erosão nas parcelas de São João do Cariri.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007
SANTOS, C A. G.; SILVA, R. M.; SRINIVASAN, V. S.<br />
Figura 6. Erosão nas parcelas de erosão em São João do Cariri.<br />
Influência <strong>da</strong> Erosivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Chuva na Erosão dos Solos<br />
O potencial de erosão hídrica de determinado local ou região pode ser<br />
caracterizado por meio <strong>da</strong> avaliação <strong>da</strong> erosivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s chuvas e sua distribuição<br />
temporal (Cogo et al., 2003). Com o objetivo de se verificar a influência do índice<br />
de erosivi<strong>da</strong>de na erosão dos solos no semi-árido paraibano foi determina<strong>da</strong> a<br />
erosivi<strong>da</strong>de anual e mensal <strong>da</strong> chuva em uma microbacia <strong>da</strong> Bacia Experimental de<br />
São João do Cariri, descrita anteriormente. Observa-se na Tabela 7 que os valores<br />
totais de erosivi<strong>da</strong>de mais altos ocorreram no período compreendido entre os<br />
meses de janeiro a março. A precipitação anual apresentou-se de forma irregular<br />
ao longo do período estu<strong>da</strong>do, sempre um ano com baixo valor, seguido de outro<br />
com alto valor, refletindo diretamente nos valores de erosivi<strong>da</strong>de, conforme pode<br />
ser visto na Figura 7.<br />
Tabela 7. Valores mensais e anuais de erosivi<strong>da</strong>de em MJ⋅mm/ha⋅h em São João do Cariri<br />
Meses 1999 2000 2001 2002 Média Mensal<br />
Janeiro 0,00 1.143,07 0,00 428,59 392,92<br />
Fevereiro 0,00 492,91 0,00 654,91 286,96<br />
Março 33,55 1067,75 168,64 85,77 338,93<br />
Abril 22,87 599,36 9,62 0,00 157,96<br />
Maio 49,84 153,68 0,00 330,78 133,58<br />
Junho 23,34 24,79 63,32 0,00 27,86<br />
Julho 0,00 206,84 8,28 14,50 57,41<br />
Agosto 0,00 50,37 25,99 0,00 19,09<br />
Setembro 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00<br />
Outubro 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00<br />
Novembro 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00<br />
Dezembro 69,58 0,00 14,50 0,00 21,02<br />
Média Anual 16,60 311,56 24,20 126,21 –<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007<br />
28
29<br />
Análise <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s de água e solo em diferentes coberturas superficiais no semi-árido <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong><br />
Figura 7. Distribuição dos valores anuais <strong>da</strong> erosivi<strong>da</strong>de e sua comparação com a<br />
precipitação.<br />
Considerações Finais<br />
Sobre a erosivi<strong>da</strong>de constatou-se que há uma correlação entre a erosivi<strong>da</strong>de e a<br />
erosão dos solos. Entretanto, outras características <strong>da</strong> chuva e <strong>da</strong> área devem ser<br />
leva<strong>da</strong>s em consideração para melhor descrever o fenômeno <strong>da</strong> erosão.<br />
Os resultados obtidos sobre a lâmina escoa<strong>da</strong> nas parcelas de Sumé mostraram<br />
que a Parcela 8 (solo revolvido) gerou escoamento em torno de cinco vezes mais<br />
que a Parcela 5 (com caatinga nativa), tomando como base o valor médio do<br />
período estu<strong>da</strong>do. Assim, a lâmina escoa<strong>da</strong> <strong>da</strong> Parcela 8 foi de 22,1%, em relação<br />
à precipitação média anual (566 mm), enquanto o escoamento de água na Parcela<br />
5 foi de apenas 4%, destacando a grande influência <strong>da</strong> vegetação nativa sobre a<br />
infiltração.<br />
Os valores médios anuais de escoamento ou per<strong>da</strong> de água <strong>da</strong> Parcela 6 (palma<br />
morro abaixo) e <strong>da</strong> Parcela 7 (palma em nível) foram de 154 mm e 134,4 mm,<br />
respectivamente. Os volumes <strong>da</strong> lâmina escoa<strong>da</strong> <strong>da</strong>s parcelas com palma<br />
cultiva<strong>da</strong> morro abaixo e palma cultiva<strong>da</strong> em nível foram relativamente próximos<br />
(Tabela 3), de 27,2% e 23,7%, respectivamente, em relação à precipitação<br />
pluviométrica média anual do mesmo período (566 mm). As Parcelas 1 e 4<br />
(desmata<strong>da</strong>s) apresentaram os maiores valores de lâmina escoa<strong>da</strong>, 199,3 mm e<br />
215,0 mm e, conseqüentemente, a maior relação com a precipitação média anual,<br />
35,2% e 38,0%, respectivamente.<br />
Os resultados de erosão obtidos em Sumé mostraram que as Parcelas 1 e 4<br />
(desmata<strong>da</strong>s) contribuíram com per<strong>da</strong>s anuais de solo de respectivamente 33,2 e<br />
52,1 t/ha. Nas Parcelas com cobertura morta a erosão foi de 0,3 t/ha, enquanto que<br />
na Parcela 5 (com caatinga nativa) a erosão média foi de apenas 0,2 t/ha.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007
SANTOS, C A. G.; SILVA, R. M.; SRINIVASAN, V. S.<br />
Em São João do Cariri, a erosão média na Parcela 1 foi 3,4 t/ha, enquanto que na<br />
Parcela 2 foi de 0,4 t/ha, mostrando a influência <strong>da</strong> cobertura vegetal sobre o<br />
processo erosivo no semi-árido.<br />
Sobre os valores observados de lâminas escoa<strong>da</strong>s em São João do Cariri nota-se<br />
que a Parcela 1 (desmata<strong>da</strong>) obteve uma lâmina escoa<strong>da</strong> anual média igual a<br />
173,9 mm, enquanto para a Parcela 2 (manti<strong>da</strong> um tempo com vegetação rasteira<br />
com cobertura morta e outro período desmata<strong>da</strong>) o valor médio observado foi de<br />
125,5 mm. Com a eliminação <strong>da</strong> vegetação <strong>da</strong> superfície os valores nas lâminas<br />
escoa<strong>da</strong>s na Parcela 2 aproximaram-se aos valores <strong>da</strong> Parcela 1.<br />
Agradecimentos<br />
Os autores agradecem ao Laboratório de Recursos Hídricos <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong><br />
<strong>Federal</strong> de Campina Grande pelos <strong>da</strong>dos de campo obtidos em parceria. Os<br />
autores têm sido apoiados com recursos e bolsas do CNPq e do MCT/FINEP/CT-<br />
HIDRO.<br />
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Contato com os autores: celso@ct.ufpb.br, richardemarques@yahoo.com.br.<br />
Recebido em: 21/05/2007<br />
Aprovado em: 20/06/2007<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 16-32, 2007<br />
32
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
NATUREZA, SOCIEDADE E TRABALHO:<br />
CONCEITOS PARA UM DEBATE GEOGRÁFICO 1<br />
Resumo<br />
Doralice Sátyro Maia<br />
Departamento de Geociências/Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB<br />
O texto discute as noções de Natureza, Socie<strong>da</strong>de e Trabalho. Parte do princípio<br />
que essas noções, bem como a sua relação, se encontram no fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong><br />
Geografia, nos alicerces <strong>da</strong> construção do conhecimento geográfico. Resgata a<br />
história do conhecimento geográfico desde a Antigui<strong>da</strong>de para pensar de que<br />
forma se estabelecia a relação natureza, socie<strong>da</strong>de e trabalho, por entender que a<br />
tríade apresenta<strong>da</strong> está na base do conhecimento e <strong>da</strong> história <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de.<br />
Para a análise decompõe as noções apresenta<strong>da</strong>s e propõe a reflexão <strong>da</strong> origem<br />
<strong>da</strong> separação dos conteúdos na história <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Conclui que a relação<br />
Natureza, Socie<strong>da</strong>de e Trabalho produze espaço e, portanto, é inerente ao<br />
conhecimento geográfico.<br />
Pala vras-chave: natureza, soci e<strong>da</strong> de, trabal ho, conheci ment o geo gráfico.<br />
Resumen<br />
El artículo discute las nociones de Naturaleza, Socie<strong>da</strong>d y Trabajo. Parte del<br />
principio que estas nociones, así como su relación, se encuentran en el<br />
fun<strong>da</strong>mento de la Geografía, en la base de la construcción del conocimiento<br />
geográfico desde la Antigüe<strong>da</strong>d y se propone pensar de qué manera se establece<br />
la relación naturaleza, socie<strong>da</strong>d y trabajo. Comprende que la tríade apunta<strong>da</strong> está<br />
en la base del conocimiento y de la historia de la Humani<strong>da</strong>d. Para el análisis<br />
descompone las nociones presenta<strong>da</strong>s y propone la reflexión del origen de la<br />
separación de los termos en la historia de la socie<strong>da</strong>d. Concluye que la relación<br />
Naturaleza, Socie<strong>da</strong>d y Trabajo produce espacio y, por lo tanto, es inherente al<br />
conocimiento geográfico.<br />
Palabra s-cl aves: natural eza, socie<strong>da</strong>d, trabaj o, conocimiento geo gráfico.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 33-42, 2007
MAIA, D. S.<br />
O tema proposto para esta discussão encontra-se no fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> Geografia,<br />
nos alicerces <strong>da</strong> construção do conhecimento geográfico. Dizemos construção do<br />
conhecimento geográfico, portanto, ao que antecede e muito à constituição <strong>da</strong><br />
Geografia enquanto disciplina. Referimo-nos, ao início <strong>da</strong> história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.<br />
Pois, se remontarmos aos primórdios <strong>da</strong> história, o homem primitivo ao registrar<br />
em seus desenhos os seus costumes, a sua gente, representou também a<br />
natureza e o trabalho. Tal fase <strong>da</strong> história do conhecimento geográfico, Sodré<br />
chamou de “etapa preliminar <strong>da</strong> pré-história” (SODRÉ, 1987, p.14). A segun<strong>da</strong><br />
etapa <strong>da</strong> história proposta pelo mesmo autor corresponde ao período posterior<br />
ao registro escrito e nesta estaria a contribuição dos pensadores <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de,<br />
especialmente aqueles registrados nos “périplos”, desenvolvidos pelos<br />
navegadores, militares, comerciantes, matemáticos, etc.<br />
Nesse conjunto de contribuições estaria a obra de Heródoto - mais conhecido<br />
como “pai <strong>da</strong> História” - que realizou ricas descrições do Egito, <strong>da</strong> Babilônia, do<br />
Nilo, do Saara, enfim, <strong>da</strong>s regiões <strong>da</strong> África por onde viajou. Hipócrates,<br />
Erastóstenes, ou o próprio Aristóteles também deram importantes contribuições<br />
à formação do conhecimento geográfico. Nestas descrições e nestes estudos dos<br />
pensadores gregos, encontram-se registros sobre a terra, a cultura e os homens,<br />
portanto, <strong>da</strong> natureza, <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e do trabalho.<br />
Ain<strong>da</strong> na Antigui<strong>da</strong>de, merecem destaque Estrabão e Ptolomeu por terem<br />
sistematizado conhecimentos anteriormente produzidos. Segundo Blanco (1991),<br />
apesar <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de em se unificar os diversos métodos de investigação dos<br />
relatos <strong>da</strong>s viagens terrestres e marítimas realiza<strong>da</strong>s na Antigui<strong>da</strong>de, pode-se<br />
afirmar que os seus propósitos eram a expansão política e o intercâmbio<br />
comercial, principalmente quando se tratava de terras estranhas. Ain<strong>da</strong> de acordo<br />
com o mesmo autor, após Eudox e Eratóstenes, somente Estrabão procurou<br />
unificar aqueles conhecimentos. Estrabão destaca-se dos outros pensadores pela<br />
grande contribuição <strong>da</strong><strong>da</strong> à formação do conhecimento geográfico e mesmo <strong>da</strong><br />
Geografia, especialmente a partir <strong>da</strong> sua obra “Geografia. Esta obra está dividi<strong>da</strong><br />
em 17 livros. Os livros I e II são dedicados à defesa de Homero como geógrafo, à<br />
discussão <strong>da</strong>s obras dos seus principais antecessores e aos conteúdos e conceitos<br />
básicos <strong>da</strong> Geografia: a Terra, o clima, latitude e longitude, os mares, os rios, as<br />
condições atmosféricas, os costumes, as tradições, a organização social e política,<br />
o território e o lugar. Para Estrabão (1991):<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 33-42, 2007<br />
a geografía está en su mayor parte orienta<strong>da</strong> hacia las<br />
necesi<strong>da</strong>des políticas […] está to<strong>da</strong> ella orienta<strong>da</strong> hacia las<br />
acciones propias del gobierno, pues como mejor podrían<br />
manejar ca<strong>da</strong> país es sabiendo de qué extensión es el<br />
territorio y a qué distancia se encuentra de otros lugares y qué<br />
carácter características diferenciales tiene tanto en su clima<br />
como en si mismo (p. 113-114).<br />
Para o autor supracitado, as grandes ci<strong>da</strong>des seriam tão próprias à Geografia<br />
como os grandes acidentes geográficos. (BLANCO, op. cit., p. 113).<br />
34
35<br />
Natureza, socie<strong>da</strong>de e trabalho: conceitos para um debate geográfico<br />
Desta forma, se normalmente são destacados neste período histórico os<br />
chamados “avanços científicos”, tais como as noções de latitude e longitude,<br />
informações sobre a superfície terrestre, fenômenos astronômicos e<br />
atmosféricos, é preciso lembrar, que, já naquelas contribuições, ou mesmo nesses<br />
registros geográficos, estava-se tratando <strong>da</strong> natureza, <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e também do<br />
trabalho. Naquelas obras, vários são os registros <strong>da</strong>s condições do escravismo, <strong>da</strong><br />
necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> dominação, bem como as descrições <strong>da</strong>s áreas a serem<br />
devassa<strong>da</strong>s, tratam-se de descrições físicas <strong>da</strong>quelas regiões, mas também dos<br />
costumes, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>queles povos, e, portanto, <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e do trabalho.<br />
Na ver<strong>da</strong>de, esse resgate dos primórdios do conhecimento geográfico foi<br />
estabelecido não para comprovar uma existência <strong>da</strong> “Geografia” desde a<br />
Antigui<strong>da</strong>de ou mesmo desde a Pré-História, mas sim para dizer que a tríade<br />
apresenta<strong>da</strong> – Natureza, Socie<strong>da</strong>de e Trabalho – diz respeito à História <strong>da</strong><br />
Humani<strong>da</strong>de, está presente desde a nossa origem e, portanto, está na base do<br />
conhecimento geográfico, pois nela, e não a partir dela, está o espaço geográfico.<br />
A relação socie<strong>da</strong>de – natureza é materializa<strong>da</strong> pelo trabalho, como bem explicou<br />
Lucien Febvre (1949):<br />
Estas marcas acabam por precisar, aos nossos olhos, o<br />
ver<strong>da</strong>deiro caráter <strong>da</strong> ação dos homens na superfície do<br />
Globo. Não se trata <strong>da</strong> ação de indivíduos isolados. Trata-se <strong>da</strong><br />
ação de amplas coletivi<strong>da</strong>des extensas, e que se impõe a<br />
massas humanas consideráveis. Tão longe quanto nossas<br />
investigações permitem alcançar, leis, costumes, modos de<br />
agir que reagem poderosamente sobre a conduta dessas<br />
massas em face <strong>da</strong>s forças e dos recursos <strong>da</strong> natureza (FEBVRE<br />
apud SODRÉ, 1987, p. 84).<br />
Em outras palavras, o trabalho é a mediação <strong>da</strong> Natureza com a Socie<strong>da</strong>de e que<br />
por sua vez produz o espaço. A compartimentação – Natureza, Socie<strong>da</strong>de,<br />
Trabalho – faz-se necessária para o conhecimento. Salientamos que, a princípio,<br />
não estamos falando do trabalho alienado, mas do trabalho no seu sentido mais<br />
genérico, que corresponde à aplicação <strong>da</strong>s forças e facul<strong>da</strong>des humanas para<br />
alcançar um determinado fim. Estas forças e facul<strong>da</strong>des humanas podem ser<br />
principalmente físicas e/ou intelectuais. De acordo com Albornoz (1992):<br />
“Trabalho é o esforço e também o seu resultado: a construção enquanto processo<br />
e ação, e o edifício pronto.” (p. 12). De acordo com a mesma autora, para muitos,<br />
“o que distingue o trabalho humano do dos outros animais é que neste há<br />
consciência e intencionali<strong>da</strong>de, enquanto os animais trabalham por instinto,<br />
programados, sem consciência.” (1992, p.12.). E complementa a autora:<br />
Natureza e invenção se entrelaçam no trabalho humano, em<br />
níveis diversos, <strong>da</strong> ação mais mecânica e natural à mais<br />
controla<strong>da</strong> e consciente. Natureza e cultura se encontram no<br />
labor do parto, no cultivo do campo, na modelagem <strong>da</strong> argila,<br />
na invenção <strong>da</strong> eletrici<strong>da</strong>de; como na produção de vitaminas<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 33-42, 2007
MAIA, D. S.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 33-42, 2007<br />
em comprimidos, na montagem de cérebros eletrônicos e no<br />
envio de astronaves à Lua. (1992, p. 13).<br />
Assim, se o conceito de trabalho acompanha um longo percurso histórico, é<br />
preciso notar que nesta trajetória há uma ruptura. Ruptura esta que se dá na<br />
História, mas que também constitui a separação homem – natureza. Nas<br />
comuni<strong>da</strong>des primitivas não havia esta distinção, aí o trabalho humano<br />
representa um prolongamento do trabalho <strong>da</strong> natureza: a caça e a coleta<br />
compõem as ações dos grupos humanos integrados às ações dos outros animais.<br />
Homem é natureza e sente-se natureza.<br />
Se o aprimoramento <strong>da</strong>s técnicas agrícolas dá início à divisão do trabalho, com<br />
esta há a separação socie<strong>da</strong>de – natureza que posteriormente se intensifica com o<br />
surgimento <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e do trabalho industrial. Como bem explicou<br />
Engels (1961):<br />
O trabalho é a primeira condição fun<strong>da</strong>mental de to<strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
humana, a tal ponto que, em certo sentido, deveríamos<br />
afirmar que o próprio homem foi criado por obra do trabalho<br />
(p. 143).<br />
Neste momento, há a separação homem – natureza, e nesta divisão há a ruptura<br />
homem – trabalho. O trabalho então não mais corresponde ao prolongamento <strong>da</strong><br />
ação <strong>da</strong> natureza, mas sim à “activi<strong>da</strong>d totalmente extraña a si misma, extraña al<br />
hombre y a la naturaleza y por ello totalmente extraña a la conciencia y a la<br />
manifestación vital.” (MARX, 1984, p. 125). Estamos, pois, agora, nos remetendo a<br />
um outro momento histórico, pois estamos tratando do trabalho alienado.<br />
Alienado por:<br />
[ser] o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte <strong>da</strong><br />
natureza, e, por conseguinte, ele não se realizar em seu<br />
trabalho mas negar a si mesmo, ter um sentimento de<br />
s<strong>of</strong>rimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente<br />
suas energias mentais e físicas mas ficar fisicamente exausto e<br />
mentalmente deprimido. [...] Ele não é a satisfação de uma<br />
necessi<strong>da</strong>de, mas apenas um meio para satisfazer outras<br />
necessi<strong>da</strong>des. [...]. Por fim, o caráter exteriorizado do trabalho<br />
para o trabalhador é demonstrado por não ser o trabalho dele<br />
mesmo mas trabalho para outrem, por no trabalho ele não se<br />
pertencer a si mesmo mas sim a outra pessoa. (MARX, 1984,<br />
p.98-99) 2 .<br />
A alienação corresponde à separação e, portanto, à exteriori<strong>da</strong>de. O trabalho<br />
torna-se alheio ao homem também no sentido de ser externo a ele próprio.<br />
Conseqüentemente, o homem também se exterioriza <strong>da</strong> natureza, muito embora<br />
continue sendo natureza. A natureza passa, portanto, a pertencer a um mundo<br />
exterior onde se concretiza o trabalho, em que este atua e com que e por meio do<br />
qual produz coisas. Desta forma, a natureza separa<strong>da</strong>, também se torna coisa <strong>da</strong><br />
36
37<br />
Natureza, socie<strong>da</strong>de e trabalho: conceitos para um debate geográfico<br />
qual o trabalhador depende, pois este “não pode criar na<strong>da</strong> sem a ‘natureza’, sem<br />
o mundo exterior sensível” (MARX, 1984, p. 105).<br />
Precisamos, portanto, refletir melhor sobre a origem dessa separação, dessa<br />
ruptura, desse estranhamento. Ora, este processo não decorre unicamente do<br />
desenvolvimento <strong>da</strong>s forças produtivas nem surgiu como um passe de mágica <strong>da</strong><br />
instituição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>. Na ver<strong>da</strong>de, na origem desta separação, está a<br />
capaci<strong>da</strong>de do distanciar-se, do desassociar-se, portanto, do “olhar o outro”.<br />
Segundo Rilke (1965) foi preciso abandonar:<br />
[...] o olho preconcebido do nativo, que relaciona tudo o que<br />
vê consigo mesmo e com suas necessi<strong>da</strong>des. [...]. Foi<br />
necessário então começar por afastar as coisas de si para<br />
tornar-se capaz, em segui<strong>da</strong>, de aproximar-se delas de modo<br />
mais imparcial e mais sereno, com menos familiari<strong>da</strong>de e com<br />
um recuo respeitador. Porque só quando se deixou de tocar a<br />
natureza começou-se a percebê-la; quando sentia-se que ela<br />
era o outro, o indiferente, que não tem sentidos para nos<br />
notar, só então saíamos dela, solitários, de um mundo<br />
solitário.” (1965, p.3).<br />
Portanto, essa capaci<strong>da</strong>de de “olhar o outro” somente será possível com o<br />
surgimento do indivíduo e <strong>da</strong> individuação, ou seja, <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de distinguir-se<br />
em relação a outros. Aristóteles pode ser considerado como o primeiro autor a<br />
pensar sobre esta questão e ele atribuía à matéria a constituição <strong>da</strong> individuação.<br />
Na filos<strong>of</strong>ia contemporânea, a individuação corresponde à “uma construção<br />
mental à base dos <strong>da</strong>dos dos sentidos”, o individual está fun<strong>da</strong>mentado “em si<br />
mesmo” e ain<strong>da</strong> “a idéia de coisa como é determina<strong>da</strong> pela<br />
localização espacio-temporal” (FERRATER MORA, 1982, p. 209). Apesar <strong>da</strong>s<br />
diferentes reflexões, Leibiniz atribuiu à individuação “o princípio <strong>da</strong>s negações”<br />
(apud FERRATER MORA, 1982). Veja-se que este princípio esclarece a origem dos<br />
outros, inclusive do que fun<strong>da</strong>mentou a idéia de Aristóteles, pois, ao atribuir à<br />
matéria o princípio <strong>da</strong> individuação, estes seriam indivíduos a partir <strong>da</strong> sua<br />
constituição, em que a matéria de todos os corpos naturais é a terra, o fogo, a<br />
água e o ar; a dos corpos orgânicos, os tecidos; a dos seres humanos, os órgãos, e<br />
assim sucessivamente. Este princípio também toma por base a negação, isto é, ao<br />
reunir-se os “elementos” de mesma matéria, separa-se os de matéria distinta,<br />
portanto, àquela que nega a outra. Neste princípio, portanto, encontra-se a<br />
origem <strong>da</strong> separação homem–natureza, na capaci<strong>da</strong>de de individualizar-se, de<br />
distinguir-se dela, de negar-se a ela. Nega-se a ela, para poder, inclusive,<br />
reconhecer-se nela.<br />
Neste sentido, Carlos Walter P. Gonçalves em seu livro Os (des)caminhos do meio<br />
ambiente, ao pensar sobre a relação entre os homens e a natureza reflete sobre a<br />
construção do conceito de natureza, e diz:<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 33-42, 2007
MAIA, D. S.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 33-42, 2007<br />
To<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, to<strong>da</strong> cultura, cria, inventa, institui uma<br />
determina<strong>da</strong> idéia do que seja a natureza. Nesse sentido, o<br />
conceito de natureza não é natural, sendo na ver<strong>da</strong>de criado e<br />
instituído pelos homens. Constitui um dos pilares através do<br />
qual os homens erguem as suas relações sociais, sua produção<br />
material e espiritual, enfim, a sua cultura (1989, p. 23).<br />
Realmente, o conceito de natureza, assim como qualquer conceito, é uma<br />
elaboração, é um pensar, uma produção, portanto, um trabalho. Mas também se<br />
pensarmos nas idéias de Marx anteriormente apresenta<strong>da</strong>s, na origem, este<br />
pensar é natureza, pois o homem e to<strong>da</strong>s as suas funções são natureza. Desta<br />
forma, poderíamos dizer que o conceito de natureza é, e não é, natural.<br />
Mas, poder-se-ia in<strong>da</strong>gar: em que esta discussão interessa à Geografia?<br />
Responderia: em tudo. Pois iniciamos este artigo apresentando as bases<br />
preliminares do conhecimento geográfico. Lá estavam os fun<strong>da</strong>mentos dos<br />
conhecimentos <strong>da</strong> natureza, antes mesmo do princípio <strong>da</strong> individuação, se é que<br />
podemos chamar ali de natureza. Contudo, na institucionalização do<br />
conhecimento geográfico, portanto, na origem <strong>da</strong> Geografia, o homem e a<br />
natureza são os seus conteúdos basilares, e a paisagem surge enquanto categoria<br />
geográfica que traduzirá a natureza. Fisionomia <strong>da</strong> vegetação, estudo <strong>da</strong><br />
vegetação, noção de meio natural, conceito de região natural, são algumas<br />
noções trabalha<strong>da</strong>s pela Geografia para compreender a natureza. Evidentemente<br />
que estas noções compõem o que se denomina de Geografia Clássica ou<br />
Tradicional e que desde então muito já se repensou sobre as noções aponta<strong>da</strong>s.<br />
To<strong>da</strong>via, elas ilustram muito bem como se dá a apreensão <strong>da</strong> natureza pela<br />
Geografia. Isto não acontece unicamente na Geografia, ela não será uma exceção,<br />
mas corresponde ao processo de constituição <strong>da</strong>s ciências e <strong>da</strong> sua divisão:<br />
ciências <strong>da</strong> Natureza e ciências Humanas.<br />
Em linhas gerais, as ciências <strong>da</strong> Natureza desenvolveram-se desde Aristóteles a<br />
partir do exercício <strong>da</strong> observação e <strong>da</strong> experimentação. No século XIX formula-se<br />
o princípio do Determinismo que se configura como uma doutrina sobre a<br />
Natureza: “O determinismo universal é, assim, a afirmação do princípio <strong>da</strong> razão<br />
suficiente, ou <strong>da</strong> causali<strong>da</strong>de, e <strong>da</strong> idéia de previsibili<strong>da</strong>de absoluta dos<br />
fenômenos naturais” (CHAUÍ, 1995, p. 264). Já o que se passou a denominar de<br />
ciências Humanas <strong>da</strong>ta do século XIX, quando o homem passa a ser objeto de<br />
algumas ciências. Isto não quer dizer que só então se começou a estu<strong>da</strong>r o<br />
homem, mas antes, tudo que dizia respeito ao homem era tratado pela Filos<strong>of</strong>ia.<br />
Assim, segundo Chauí (1995, p. 271), as ciências Humanas surgem no período em<br />
que “prevalecia a concepção empirista e determinista <strong>da</strong> ciência”, e, por<br />
conseguinte, trataram de estu<strong>da</strong>r o homem utilizando os mesmos métodos <strong>da</strong>s<br />
ciências <strong>da</strong> Natureza, “os métodos hipotético-indutivos e experimentais de estilo<br />
empirista, buscando leis causais necessárias e universais para os fenômenos<br />
humanos”. (CHAUÍ, 1995, p. 271). Ain<strong>da</strong> de acordo com a mesma autora, apesar<br />
38
39<br />
Natureza, socie<strong>da</strong>de e trabalho: conceitos para um debate geográfico<br />
<strong>da</strong>s ciências humanas <strong>da</strong>tarem do século XIX, “a percepção de que os seres<br />
humanos são diferentes <strong>da</strong>s coisas naturais é antiga” (1995, p. 272).<br />
Desta forma, está nas origens do conhecimento a apreensão do Homem e <strong>da</strong><br />
Natureza como coisas distintas. O apreender ou o perceber a natureza como algo<br />
diferente permitiu o entendimento de diversos fenômenos e organismos.<br />
Contudo, como bem escreveu Arlete Rodrigues (1994), os eventos <strong>da</strong> “natureza” –<br />
vulcanismo, tectonismo, enchentes, inun<strong>da</strong>ções, incêndios em florestas<br />
provocados por tempestades - que interferiam na organização sócio-espacial, mas<br />
que não dependiam diretamente <strong>da</strong> ação humana, eram tratados como catástr<strong>of</strong>e<br />
ou desastre. Complementa a autora:<br />
E acrescenta:<br />
[...] Cabia conhecer a natureza para dominá-la. Muito embora,<br />
esses “desastres” fossem mais problemáticos nas áreas<br />
ocupa<strong>da</strong>s por grandes concentrações populacionais, a<br />
pesquisa e análise <strong>da</strong> natureza foi realiza<strong>da</strong>, desde a<br />
antigui<strong>da</strong>de clássica, em todo o mundo habitado (p.37)<br />
[...] Embora o homem tenha “instintos naturais” e a própria<br />
vi<strong>da</strong> seja “natural”, a natureza como um todo tem sido<br />
considera<strong>da</strong> exterior ao homem e à socie<strong>da</strong>de. A natureza é<br />
assim: mágica, recurso, tem leis próprias, deve ser domina<strong>da</strong>,<br />
deve “servir” ao homem, etc., e o homem, através <strong>da</strong> sua<br />
“natureza” social, se apropria <strong>da</strong> natureza para transforma-la<br />
em bens – em mercadorias. Para isso precisa conhecer as leis<br />
<strong>da</strong> natureza. (p. 37-38).<br />
Marx, em Os Manuscritos Econômicos Filosóficos escreve sobre esta fragmentação<br />
<strong>da</strong> ciência. Para ele, “o homem é objeto imediato <strong>da</strong> Ciência natural, mas<br />
também “a ‘natureza’ é o objeto imediato <strong>da</strong> Ciência do homem. (1984, p. 153).<br />
Pois, ain<strong>da</strong> nas palavras do referido autor:<br />
E prossegue:<br />
O primeiro objeto do homem – o homem – é natureza,<br />
sensibili<strong>da</strong>de, e as especiais forças essenciais sensíveis do ser<br />
humano só na ciência do mundo natural podem encontrar seu<br />
autoconhecimento, do mesmo modo que só nos objetos<br />
‘naturais’ podem encontrar sua realização objetiva (1984, p.<br />
153).<br />
Algum dia a Ciência natural se incorpora à Ciência do homem,<br />
do mesmo modo que a Ciência do homem se incorpora à<br />
Ciência natural, haverá uma só Ciência (1984, p. 153).<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 33-42, 2007
MAIA, D. S.<br />
Se tomarmos como princípio geral a idéia descrita acima para pensarmos a<br />
Geografia, a velha dicotomia Geografia Física x Geografia Humana não teria<br />
sentido. Algumas categorias geográficas como espaço, lugar e paisagem não<br />
permitem a duali<strong>da</strong>de, a separação. Nelas estão encrava<strong>da</strong>s as categorias<br />
expostas no título desta comunicação – Natureza, Socie<strong>da</strong>de e Trabalho. A<br />
respeito <strong>da</strong> atribuição do que seria o conhecimento de uma e de outra “parcela”<br />
<strong>da</strong> Geografia, trazemos a contribuição <strong>da</strong><strong>da</strong> por Dirce Suertegaray (2000) em<br />
texto publicado no livro Geografia e Educação: geração de ambiências. (RÊGO;<br />
SUERTEGARAY e HYDRICH, 2000). A autora, ao refletir sobre a questão “o que<br />
ensinar em Geografia (Física)?”, formula<strong>da</strong> por um acadêmico de Geografia, diz<br />
ter respondido aquela in<strong>da</strong>gação, com as seguintes palavras: “tudo o que for<br />
possível ensinar no contexto espaço-temporal <strong>da</strong> disciplina sob a nossa<br />
responsabili<strong>da</strong>de” (2000, p. 98), e chama atenção para o fato de que:<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 33-42, 2007<br />
O significativo nesta pergunta é mais do que o conteúdo em si,<br />
a questão metodológica, ou seja, como ensinar no contexto <strong>da</strong><br />
Geografia os conteúdos referentes à compreensão <strong>da</strong><br />
natureza, nesta ciência, reconhecidos como Geografia Física<br />
(2000, p. 98).<br />
Neste mesmo texto, Suertegaray propõe alguns estudos que partam <strong>da</strong><br />
concepção de lugar:<br />
Como espaço próximo, espaço vivido e como espaço de<br />
expressão de relações horizontais (relações de comuni<strong>da</strong>de<br />
com seu meio) e espaço de relações verticais (relações sociais<br />
mais amplas determinando em parte a especifici<strong>da</strong>de dos<br />
lugares) (2000, p. 99).<br />
Concor<strong>da</strong>mos com a autora acima cita<strong>da</strong> e acrescentamos que o problema <strong>da</strong><br />
duali<strong>da</strong>de está no método e na episteme, portanto, na teoria do conhecimento e<br />
na metodologia. Desta forma, Natureza, Socie<strong>da</strong>de e Trabalho são inerentes à<br />
Geografia. Como bem explicou Milton Santos em A natureza do espaço: técnica e<br />
tempo razão e emoção:<br />
É por demais sabido que a principal forma de relação entre o<br />
homem e a natureza, ou melhor entre o homem e o meio, é<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong> pela técnica. As técnicas são um conjunto de meios<br />
instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua<br />
vi<strong>da</strong>, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço (1996, p.25).<br />
Se técnica é trabalho, como afirmamos no início desta exposição, a relação<br />
natureza – socie<strong>da</strong>de – trabalho produz o espaço.<br />
Por fim, utilizamo-nos <strong>da</strong>s palavras do Milton Santos (1986) para expressar as<br />
últimas idéias e deixar a mensagem do autor:<br />
40
41<br />
Notas<br />
Natureza, socie<strong>da</strong>de e trabalho: conceitos para um debate geográfico<br />
Devemos nos preparar para estabelecer os alicerces de um<br />
espaço ver<strong>da</strong>deiramente humano, de um espaço que possa<br />
unir os homens para e por seu trabalho, mas não para em<br />
segui<strong>da</strong> dividi-los em classes, em exploradores e explorados,<br />
um espaço matéria-inerte que seja trabalha<strong>da</strong> pelo homem,<br />
mas não se volte contra ele; um espaço Natureza social aberta<br />
à contemplação direta dos seres humanos, e não um fetiche;<br />
um espaço instrumento de reprodução <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, e não uma<br />
mercadoria trabalha<strong>da</strong> por outra mercadoria, o homem<br />
fetichizado. (1986, p. 27).<br />
1 Este artigo foi produzido originalmente para a apresentação em Mesa Redon<strong>da</strong> durante o Encontro Regional de<br />
Geógrafos realizado em Aracajú-SE em 2003.<br />
² Tradução espontânea nossa.<br />
Referências<br />
ALBORNOZ, Suzana. O que é trabalho. 5. ed. (Coleção Primeiros Passos). São<br />
Paulo: Brasiliense, 1992.<br />
BLANCO, J. García. Introcción General. In: ESTRABÓN. Geografía. Madrid: Gredos,<br />
1991.<br />
CHAUÍ, Marilena. Convite á Filos<strong>of</strong>ia. São Paulo: Ática, 1995.<br />
GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des)caminhos do meio ambiente. São<br />
Paulo: Contexto, 1989.<br />
ENGELS, F. Dialética <strong>da</strong> Natureza. México: s/e, 1961.<br />
MARX, Karl. Manuscritos Economia y Filos<strong>of</strong>ia. 11. ed. Madrid: Alianza Editorial,<br />
1984.<br />
RILKE, Rainer Maria. Da Paisagem. s/d; s/l. (mimeo). Extraído Samtliche Werke,<br />
Fünfter Baand, Frakfurt am Main: Insel Verlag, 1965. Tradução de Luciana Martins<br />
e Ferdinand Reis.<br />
RODRÍGUES, Arlete Moisés. A questão ambiental e a (re)descoberta do espaço:<br />
uma nova relação socie<strong>da</strong>de/natureza? Boletim Paulista de Geografia, n. 73, São<br />
Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros – São Paulo, 1994).<br />
SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1986.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 33-42, 2007
MAIA, D. S.<br />
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo – razão e emoção. São<br />
Paulo: Hucitec, 1996.<br />
SODRÉ, Nelson W. Introdução á Geografia. Petrópolis: Vozes, 1987.<br />
SUERTEGARAY, Dirce M. Antunes. O que ensinar em Geografia (Física)? In: REGO,<br />
Nelson, SUERTEGARAY, Dirce e HEIDRICH, Álvaro (orgs.). Geografia e Educação:<br />
geração de ambiências. Porto Alegre: Editora <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> – UFRGS, 2.<br />
Contato <strong>da</strong> autora: doramaia@ccen.ufpb.br<br />
Recebido em: 15/05/2007<br />
Aprovado em: 09/06/2007<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 33-42, 2007<br />
42
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
MOBILIDADE ESPACIAL E ACESSIBILIDADE À<br />
CIDADE 1<br />
Resumo<br />
Sílvia Regina Pereira<br />
Departamento de Geografia <strong>da</strong> UNIOESTE-PR<br />
A estruturação urbana nas ci<strong>da</strong>des capitalistas interfere no cotidiano dos citadinos<br />
à medi<strong>da</strong> que estes necessitam locomover-se constantemente para realizarem as<br />
mais diversas funções e ativi<strong>da</strong>des, e para adquirir bens e serviços, os quais se<br />
encontram dispersos nesse espaço e são necessários à reprodução <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Dessa<br />
forma, a situação espacial de ca<strong>da</strong> um pode facilitar ou dificultar esses<br />
deslocamentos intra-urbanos. Associado a ela está o poder aquisitivo que definirá<br />
os meios de locomoção a serem utilizados para que ocorram o uso e a<br />
apropriação do espaço urbano. As ci<strong>da</strong>des médias, em sua maioria, como o caso<br />
de Presidente Prudente-SP, têm apresentado características que eram, até pouco<br />
tempo, comuns apenas nos espaços metropolitanos. Isso tem ocorrido em função<br />
<strong>da</strong>s diferenças socioespaciais estarem mais presentes, e do espaço urbano tornarse<br />
ca<strong>da</strong> vez mais compartimentado, expressando os processos de segregação e<br />
auto-segregação, os enclaves e as novas periferias, os novos espaços voltados<br />
para o consumo de mercadorias e a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ocorrência <strong>da</strong> fragmentação<br />
urbana. Nesse sentido, nosso objetivo foi entender como essas manifestações se<br />
apresentam nesta ci<strong>da</strong>de e interferem na vi<strong>da</strong> dos citadinos, no que diz respeito<br />
ao exercício do direito à ci<strong>da</strong>de. Para a compreensão do fato, analisamos o<br />
cotidiano de diferentes tipos sociais (mulher trabalhadora, dona-de-casa,<br />
estu<strong>da</strong>nte, desempregado, idoso, portador de deficiência física e residente em<br />
ci<strong>da</strong>de vizinha a Presidente Prudente), por meio de entrevistas e<br />
acompanhamentos de percursos intra-urbanos, no intuito de avaliar a mobili<strong>da</strong>de<br />
e o grau de acessibili<strong>da</strong>de para a reprodução <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Definimos três perfis para<br />
ca<strong>da</strong> tipo social, considerando para isso a faixa salarial, a faixa etária, o lugar de<br />
residência e os meios de deslocamentos. A partir desse estudo foi possível<br />
entender os entrevistados como segregados, diferenciados ou auto-segregados<br />
socioespacialmente, de acordo com a relação entre situação espacial e a condição<br />
socioeconômica, que define o meio de deslocamento e interfere no acesso<br />
diferenciado à ci<strong>da</strong>de. Essas configurações refletem a lógica de produção,<br />
apropriação e consumo do espaço urbano, que favorece a diferenciação<br />
socioespacial no interior <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e interfere na vi<strong>da</strong> dos citadinos.<br />
Palavras-chave: percursos urbanos, mobili<strong>da</strong>de, acessibili<strong>da</strong>de, diferenciação<br />
socioespacial, segregação socioespacial, fragmentação urbana, direito à ci<strong>da</strong>de.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
Resumen<br />
A estruturação urbana nas ci<strong>da</strong>des capitalistas interfere no cotidiano dos citadinos<br />
à medi<strong>da</strong> que estes necessitam locomover-se constantemente para realizarem as<br />
mais diversas funções e ativi<strong>da</strong>des, e para adquirir bens e serviços, os quais se<br />
encontram dispersos nesse espaço e são necessários à reprodução <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Dessa<br />
forma, a situação espacial de ca<strong>da</strong> um pode facilitar ou dificultar esses<br />
deslocamentos intra-urbanos. Associado a ela está o poder aquisitivo que definirá<br />
os meios de locomoção a serem utilizados para que ocorram o uso e a<br />
apropriação do espaço urbano. As ci<strong>da</strong>des médias, em sua maioria, como o caso<br />
de Presidente Prudente-SP, têm apresentado características que eram, até pouco<br />
tempo, comuns apenas nos espaços metropolitanos. Isso tem ocorrido em função<br />
<strong>da</strong>s diferenças socioespaciais estarem mais presentes, e do espaço urbano tornarse<br />
ca<strong>da</strong> vez mais compartimentado, expressando os processos de segregação e<br />
auto-segregação, os enclaves e as novas periferias, os novos espaços voltados<br />
para o consumo de mercadorias e a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ocorrência <strong>da</strong> fragmentação<br />
urbana. Nesse sentido, nosso objetivo foi entender como essas manifestações se<br />
apresentam nesta ci<strong>da</strong>de e interferem na vi<strong>da</strong> dos citadinos, no que diz respeito<br />
ao exercício do direito à ci<strong>da</strong>de. Para a compreensão do fato, analisamos o<br />
cotidiano de diferentes tipos sociais (mulher trabalhadora, dona-de-casa,<br />
estu<strong>da</strong>nte, desempregado, idoso, portador de deficiência física e residente em<br />
ci<strong>da</strong>de vizinha a Presidente Prudente), por meio de entrevistas e<br />
acompanhamentos de percursos intra-urbanos, no intuito de avaliar a mobili<strong>da</strong>de<br />
e o grau de acessibili<strong>da</strong>de para a reprodução <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Definimos três perfis para<br />
ca<strong>da</strong> tipo social, considerando para isso a faixa salarial, a faixa etária, o lugar de<br />
residência e os meios de deslocamentos. A partir desse estudo foi possível<br />
entender os entrevistados como segregados, diferenciados ou auto-segregados<br />
socioespacialmente, de acordo com a relação entre situação espacial e a condição<br />
socioeconômica, que definem o meio de deslocamento e interferem no acesso<br />
diferenciado à ci<strong>da</strong>de. Essas configurações refletem a lógica de produção,<br />
apropriação e consumo do espaço urbano, que favorece a diferenciação<br />
socioespacial no interior <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e interfere na vi<strong>da</strong> dos citadinos.<br />
Palabras-clave: trayectos urbanos, movili<strong>da</strong>d, segregación socio-espacial,<br />
fragmentación urbana, derecho a la ciu<strong>da</strong>d.<br />
Introdução<br />
A partir do enfoque <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de espacial, buscamos, neste capítulo, analisar a<br />
acessibili<strong>da</strong>de à ci<strong>da</strong>de. As pessoas entrevista<strong>da</strong>s residem em diversas áreas de<br />
Presidente Prudente e utilizam diferentes meios de deslocamento para realizarem<br />
suas ativi<strong>da</strong>des cotidianas.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
44
45<br />
Tomamos a perspectiva de que:<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
La forma urbana es el marco sobre el que las personas, las<br />
mercancías y la información se mueven, de ahí su importancia<br />
cuando queremos realizar un estudio sobre movili<strong>da</strong>d urbana<br />
(GUERRERO, 2003, p. 18).<br />
A forma urbana é uma dimensão específica e restrita <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Partimos dela,<br />
mas estamos analisando a estruturação urbana que é mais abrangente porque<br />
compreende a forma e os fluxos que se estabelecem em um <strong>da</strong>do espaço urbano.<br />
Nosso estudo busca compreender o espaço urbano de uma ci<strong>da</strong>de média,<br />
diferenciado socioespacialmente 2 por apresentar os problemas que,<br />
anteriormente, eram apenas visíveis e sentidos nas grandes ci<strong>da</strong>des. Partimos <strong>da</strong><br />
hipótese de que as condições socioespaciais definem e reafirmam o tipo de<br />
inserção que os citadinos estabelecem com relação à ci<strong>da</strong>de onde vivem,<br />
podendo estar segregados ou não.<br />
Consideramos para essa análise: a) a situação espacial, ou seja, o local de<br />
moradia, em relação ao centro; b) os meios de deslocamento utilizados,<br />
avaliando-se o tempo e a freqüência dos mesmos; c) o poder aquisitivo destes; e<br />
d) as formas de utilização e consumo de diferentes áreas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. A partir<br />
dessas considerações, foi possível verificar a mobili<strong>da</strong>de dos entrevistados,<br />
procurando saber se são segregados, os graus de acessibili<strong>da</strong>de e se conseguem<br />
se apropriar do conjunto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />
Partimos do entendimento <strong>da</strong> estruturação que se estabelece no espaço urbano,<br />
por meio dos percursos realizados pelo transporte público, visando a entender<br />
como ocorre o acesso dos diferentes segmentos a esse meio de transporte, bem<br />
como o atendimento, ou não, às suas deman<strong>da</strong>s e, por conseguinte, como isso<br />
implica na definição do grau de acessibili<strong>da</strong>de dos citadinos à ci<strong>da</strong>de.<br />
Posteriormente, analisamos o espaço urbano como lócus do automóvel particular,<br />
em contraposição aos espaços dos pedestres e do transporte coletivo, e as<br />
interferências e problemas que se apresentam para o tráfego urbano. Analisamos,<br />
também, os deslocamentos e os meios de transporte utilizados pelos<br />
entrevistados, para entender como se dá a acessibili<strong>da</strong>de destes ao espaço<br />
urbano, segundo suas condições socioespaciais.<br />
Para finalizar o capítulo, avaliamos a mobili<strong>da</strong>de dos entrevistados, no intuito de<br />
verificar as dificul<strong>da</strong>des e facili<strong>da</strong>des de deslocamento de ca<strong>da</strong> um deles,<br />
concluindo, então, se há ou não acessibili<strong>da</strong>de para todos.<br />
Transporte público e espaço urbano<br />
Com o intuito de relacionar a questão do transporte público com o espaço<br />
urbano, apresentamos alguns aportes de estudos de casos que tratam desse<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
assunto, mesmo que estejam relacionados com outras reali<strong>da</strong>des e outros<br />
períodos históricos, para que seja possível entender como o tema é abor<strong>da</strong>do, de<br />
modo geral e a partir de então, saber se é plausível o estabelecimento de<br />
correlações.<br />
Pelo fato de termos tido a oportuni<strong>da</strong>de de realizar um estágio em Barcelona,<br />
vivenciando, assim, um pouco <strong>da</strong>quela reali<strong>da</strong>de, e também pela leitura de obras<br />
sobre a temática aqui abor<strong>da</strong><strong>da</strong>, incluímos na discussão algumas referências à<br />
questão <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de nessa ci<strong>da</strong>de, com base em dois trabalhos. Em segui<strong>da</strong>,<br />
destacamos as idéias de um estudo que abor<strong>da</strong> esse assunto na metrópole de São<br />
Paulo. A partir de então, consideramos a ci<strong>da</strong>de em estudo, buscando estabelecer<br />
analogias entre esses níveis escalares, suas diferenças, bem como os contextos<br />
históricos que a ensejam.<br />
Em relação aos trabalhos indicados, o de Oyón (1992) discute o transporte<br />
tranviário 3 em Barcelona no período de 1872 a 1914, destacando que as redes de<br />
transportes tiveram um papel decisivo no crescimento <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des européias<br />
desde o século XIX. Para ele, a relação transporte-crescimento urbano é bastante<br />
complexa e, no caso dessa ci<strong>da</strong>de, foi opera<strong>da</strong> simultaneamente ao crescimento<br />
urbano em forma de ensanche 4 e de suburbanização, sendo que nem to<strong>da</strong>s as<br />
áreas e nem to<strong>da</strong>s as classes sociais participaram <strong>da</strong> democratização do<br />
transporte, por ter sido este um processo bastante lento e seletivo, fortalecendo<br />
as diferenciações existentes. Segundo o autor, faz-se necessário questionar a<br />
divisão social do espaço provoca<strong>da</strong> pelo tráfego urbano em Barcelona e to<strong>da</strong>s as<br />
conseqüências sobre o crescimento urbano.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
Es necesario preguntarnos primero sobre quién usaba el<br />
transporte y a qué costes para poder examinar después en<br />
detalle posibles efectos físicos en la expansión de la ciu<strong>da</strong>d. El<br />
espacio historico que se abarca es el de la era de transporte<br />
caro, caracteriza<strong>da</strong> por un no intervencionismo municipal y la<br />
gestión de las redes técnicas urbanas a través del sistema de<br />
concesiones a compañias priva<strong>da</strong>s. El control municipal del<br />
transporte fue voluntariamente tibio, pero esa misma<br />
reluctancia a intervenir y los particulares sistemas de<br />
regulación liberal impuestos facilitaram un sistema de gestión<br />
empresarial, unas políticas tarifarias, de trazado y extensión<br />
de líneas de consecuencias pr<strong>of</strong>un<strong>da</strong>s en la estructura urbana<br />
(OYÓN, 1992, p. 108).<br />
Para compreender as interferências do transporte público na estruturação urbana<br />
de Barcelonano referido período, Oyón faz uma recuperação <strong>da</strong> implantação de<br />
infra-estruturas de transporte e dos tipos que foram instalados a partir de 1848,<br />
como os ferrocarriles 5 para grandes distâncias, os chamados ómnibuses 6 e os<br />
46
47<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
tranvias (de tração animal, a partir de 1872, com o vapor, em 1889, e o elétrico,<br />
em 1903).<br />
Com o tranvia houve uma valorização de áreas como do ensanche e dos “bairros<br />
altos”, em termos de longitude de vias e de superfície urbana atendi<strong>da</strong>, pois as<br />
companhias visavam ao atendimento <strong>da</strong>s áreas que poderiam <strong>of</strong>erecer maior<br />
rentabili<strong>da</strong>de, já que o transporte era considerado caro para a época. Entre 1892<br />
e 1896 houve um grande impulso do transporte público, diante <strong>da</strong>s reduções de<br />
tarifas em várias linhas e, no período de 1898-99 a 1906, com a eletrificação. A<br />
partir de 1909 ocorreu um decréscimo na utilização do tranvia, aumentando<br />
novamente a partir de 1914-1919. O uso do transporte público, a partir de 1922,<br />
em relação à época do tranvia de tração animal aumentou, mas, mesmo assim,<br />
ain<strong>da</strong> era inferior ao seu uso nas ci<strong>da</strong>des britânicas, alemãs e em outras ci<strong>da</strong>des<br />
européias de tamanho similar ao de Barcelona, que se destacava em relação à<br />
freqüência no uso diário. Essas variações do tráfego tranviário refletem os altos e<br />
baixos <strong>da</strong> economia <strong>da</strong> época, caracterizando uma elementar democratização do<br />
transporte barcelonês entre 1883 e 1914, marcado por oscilações, principalmente<br />
para aqueles que não podiam custear o uso desse meio de transporte, já que não<br />
era acessível a todos os segmentos (OYÓN, 1992).<br />
Em Barcelona, para o período destacado pelo autor, os tranvias e os ferrocarriles<br />
foram os meios de transporte utilizados apenas por alguns segmentos sociais, por<br />
serem extremamente seletivos, e desse modo, não acessíveis a todos, em especial<br />
pelo custo, trazendo implicações para a mobili<strong>da</strong>de dos citadinos, o que não<br />
possibilitava efetiva acessibili<strong>da</strong>de. Segundo o autor, o caminho para uma<br />
democratização do transporte público foi traçado a partir de 1914, quando do<br />
aumento nos salários, permitindo a alguns trabalhadores o pagamento pelo<br />
transporte. O fato, no entanto, não significou acessibili<strong>da</strong>de a todos. Nesse<br />
período de democratização do tranvia, com o uso em diferentes áreas sociais,<br />
aparece um outro meio de transporte, privado, o automóvel, que teve grande<br />
influência no fortalecimento <strong>da</strong> divisão e <strong>da</strong> diferenciação do espaço urbano e dos<br />
segmentos.<br />
Um outro trabalho mais recente sobre Barcelona é o de Guerrero (2003), no qual<br />
o autor retrata a questão <strong>da</strong> estrutura urbana e <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de entre residência e<br />
trabalho. Abor<strong>da</strong> os deslocamentos e a <strong>of</strong>erta de transportes no século XIX, com a<br />
utilização <strong>da</strong> tração animal, <strong>da</strong>s caminha<strong>da</strong>s e, posteriormente, com a utilização<br />
do ómnibus, como meio de transporte urbano.<br />
La deman<strong>da</strong> de movili<strong>da</strong>d se hallava directamente<br />
condiciona<strong>da</strong> por la reduci<strong>da</strong> <strong>of</strong>erta y por la estructura<br />
espacial de las ciu<strong>da</strong>des. A grandes rasgos la forma espacial de<br />
la ciu<strong>da</strong>d preindustrial se configuraba como uni<strong>da</strong>d orgánica,<br />
compacta, muy bien delimita<strong>da</strong>, con alta densi<strong>da</strong>d de<br />
población, cuyo interior encontraba una alta integración entre<br />
amplia varie<strong>da</strong>d de funciones (tanto residenciales, como<br />
comerciales y de producción); además compreendía distintos<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
estratos sociales, presentando, en cuanto a su desarrollo en el<br />
espacio, una forma orgánica, con un entramado urbano<br />
generalmente complejo formado por calles angostas<br />
(GUERRERO, 2003).<br />
A introdução <strong>da</strong>s inovações tecnológicas nos sistemas de transporte permitiu<br />
ampliar a mobili<strong>da</strong>de urbana por meio <strong>da</strong> implementação do transporte público<br />
(que era caro) e pela generalização do seu uso. O custo elevado nos transportes<br />
deu-se, em especial, no período entre 1830 e 1900, com os tranvias, trens e<br />
ómnibus que, além <strong>da</strong>s tarifas eleva<strong>da</strong>s, possuíam inadequação de horários,<br />
tornando-se acessíveis somente para a burguesia, enquanto os trabalhadores<br />
deslocavam-se quase sempre a pé ou de bicicleta. Com a eletrificação, a<br />
municipalização dos transportes e a inclusão de trolebus 7 , houve uma redução<br />
nos custos, possibilitando um aumento na utilização desse meio por volta <strong>da</strong><br />
segun<strong>da</strong> metade dos anos 30 do século XX, o que permitiu a ampliação dos limites<br />
espaciais <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des industriais (GUERRERO, 2003).<br />
O modo de produção fordista incitou a necessi<strong>da</strong>de de maior espaço para o<br />
desenvolvimento de funções produtivas, fazendo com que a localização <strong>da</strong><br />
produção industrial urbana passasse do centro para as periferias. Concomitante a<br />
isso, a função residencial também foi desloca<strong>da</strong> para a periferia, devido ao<br />
aumento do uso do automóvel.<br />
No pós-fordismo (com as mu<strong>da</strong>nças no processo de produção, nas práticas<br />
laborais e no processo de consumo), a introdução de novas tecnologias resultou<br />
em elemento chave no processo de flexibilização e nos transportes. Houve um<br />
crescimento forçado <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de, diante <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de dos fluxos<br />
intrametropolitanos, com a descentralização dos centros de produção e de<br />
consumo e com o crescimento <strong>da</strong> interação territorial. A <strong>of</strong>erta de serviços de<br />
transporte necessitava ser adequa<strong>da</strong> à reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> policentrali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong><br />
diversificação de ativi<strong>da</strong>des, com os novos fluxos entre subcentros, para então<br />
melhorar a mobili<strong>da</strong>de (GUERRERO, 2003).<br />
Assim, no que diz respeito à Barcelona, pelos estudos apresentados, a forma<br />
urbana atual reflete as decisões que foram sendo toma<strong>da</strong>s ao longo dos anos,<br />
definindo e redefinindo a sua organização espacial que, segundo o último autor,<br />
pode sintetizar o confronto de duas estratégias de planejamento.<br />
La traducción urbanística de este conflito se concetra<br />
básicamente en la confrontación de dos modelos alternativos<br />
de crecimiento urbano: un modelo de crecimiento radial, que<br />
busca mediante la generação de centrali<strong>da</strong>d revalorizar el<br />
suelo del centro historico de la ciu<strong>da</strong>d (defendido por los<br />
propietarios del suelo); y otro, representado por el Plan<br />
Cerdà, que busca la extensión mediante el ensanche sobre el<br />
llano de Barcelona, con la intención última de aumentar la<br />
<strong>of</strong>erta de suelo sin incrementar el precio del mismo<br />
(GUERRERO, 2003, p. 20).<br />
48
49<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
O plano de Ensanche de Ildefons Cerdà foi aprovado em 1859 e, no princípio do<br />
século XX, a ci<strong>da</strong>de consoli<strong>da</strong>va sua expansão, anexando núcleos de populações já<br />
existentes como Sants, Gràcia, Sant Andreu, Sàrria etc. Em 1905, o Plan Jaussely<br />
propunha uma ci<strong>da</strong>de como uni<strong>da</strong>de funcional de produção e consumo,<br />
rechaçando o Plan Cerdà, mas não chegou a ser posto em prática, embora o Plan<br />
General de Urbanización de 1917 tenha levado em conta algumas de suas<br />
propostas como limitação do crescimento, grandes artérias radiocêntricas que<br />
orientam o crescimento de acordo com os anéis concêntricos com base no preço<br />
do solo e zoneamento de ativi<strong>da</strong>des. Outros planos também foram propostos,<br />
como o Regional Planning, de 1932, para a região metropolitana, e o Plan Macia,<br />
de 1934, para Barcelona, com a colaboração de Le Corbusier e com vistas à<br />
aplicação do conceito de ci<strong>da</strong>de funcional. O ordenamento territorial foi<br />
retomado nos anos cinqüenta por meio <strong>da</strong> metropolização <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e do<br />
aumento do transporte privado. O Plan Comarcal, de 1953, visava ordenar essa<br />
metropolização, primando o uso do transporte privado à medi<strong>da</strong> que organizava o<br />
espaço para esse meio, criando uma extensa rede viária e deixando de lado outros<br />
meios e os pedestres. Em 1976, com o governo democrático, foi aprovado o Plan<br />
General Metropolitano que procurou corrigir as ações urbanísticas anteriores e<br />
valorizar o interesse coletivo, de acordo com Guerrero (2003).<br />
Essas ações ao longo do tempo são protagoniza<strong>da</strong>s por agentes urbanos que<br />
influenciam e direcionam o ordenamento, o planejamento e a estruturação<br />
espacial que se estabelece nas ci<strong>da</strong>des.<br />
Resumi<strong>da</strong>mente, a estruturação atual, nessa ci<strong>da</strong>de européia, em termos de<br />
<strong>of</strong>erecimento de transporte público, é composta por metrôs, ônibus, tranvias e<br />
trens, entre os quais há uma integração no intervalo de uma hora e quinze<br />
minutos. As tarifas para os percursos na área urbana e metropolitana se<br />
diferenciam de acordo com a divisão por zonas. A deman<strong>da</strong> por transporte é<br />
bastante grande, sendo ain<strong>da</strong> acentua<strong>da</strong> pelos turistas, em função <strong>da</strong> falta de<br />
áreas para estacionamentos de automóveis individuais e de seu custo elevado. Há<br />
um grande número de automóveis particulares e de táxis gerando um tráfego<br />
bastante tumultuado.<br />
É possível apreender que as afirmações anteriores dizem respeito a um outro<br />
contexto histórico, mas também podem ser perfeitamente relaciona<strong>da</strong>s à<br />
reali<strong>da</strong>des capitalistas atuais. O fato de haver uma estruturação dos transportes<br />
que privilegia algumas áreas em detrimento de outras, de não atender a deman<strong>da</strong><br />
dos usuários que mais necessitam, de ser um serviço de alto custo para a grande<br />
maioria <strong>da</strong> população, de não haver um planejamento desse sistema de modo<br />
que seja eficiente e que se torne uma opção mais atrativa em relação ao uso do<br />
automóvel privado, são características que se aplicam a diferentes contextos<br />
socioespaciais. Nossa preocupação, portanto, é a de destacar a necessi<strong>da</strong>de de<br />
uma reestruturação do sistema de transporte público considerando os seus<br />
usuários, as diferenças socioespaciais, o aumento do uso do transporte privado e,<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
com isso, a concorrência pelas vias de circulação, bem como a grande importância<br />
de se efetivar a acessibili<strong>da</strong>de à ci<strong>da</strong>de.<br />
Após essas considerações sobre a reali<strong>da</strong>de de Barcelona, apresentamos<br />
Vasconcelos (2001) que analisa, para a ci<strong>da</strong>de de São Paulo dos anos 1960 a 1990,<br />
as relações entre transporte urbano, espaço e equi<strong>da</strong>de em países em<br />
desenvolvimento, numa perspectiva política e social, buscando entender os<br />
deslocamentos humanos no espaço urbano e seus condicionantes. Segundo o<br />
autor, as condições de transporte são insatisfatórias para grande parte <strong>da</strong><br />
população, principalmente para aquelas que não têm acesso ao transporte<br />
privado. As políticas e investimentos em políticas públicas poderiam propiciar<br />
uma melhora nas condições de vi<strong>da</strong> dos segmentos de menor ren<strong>da</strong>.<br />
Concomitante a isso a política de transporte urbano poderia gerenciar o<br />
crescimento urbano que não fosse tão excludente em termos ambientais e<br />
sociais. Propõe ain<strong>da</strong> que haja uma abor<strong>da</strong>gem sociológica <strong>da</strong> circulação para<br />
analisar a <strong>of</strong>erta, a operação e o uso <strong>da</strong>s estruturas e meios de circulação em<br />
função <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des de produção e reprodução.<br />
Primeiramente, o autor faz uma distinção entre os enfoques <strong>da</strong> política de<br />
transporte e trânsito, sendo que o enfoque técnico limita-se a cálculos gerais<br />
sobre quanti<strong>da</strong>des e custos, o social, por outro lado, diz respeito à contabili<strong>da</strong>de<br />
dos impactos sociais, enquanto o sociológico complementa a análise numérica,<br />
considerando os padrões de viagem em função de condições sociais, políticas,<br />
econômicas e institucionais que condicionam as decisões de pessoas e enti<strong>da</strong>des.<br />
O autor faz um aporte geral de como foi sendo redefinido o planejamento de<br />
transporte nos países industrializados. Neles, após a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial,<br />
com o aumento no uso do automóvel e o considerável crescimento territorial<br />
urbano, eram utiliza<strong>da</strong>s técnicas s<strong>of</strong>istica<strong>da</strong>s de planejamento, predominando a<br />
função do engenheiro de tráfego, que procurava a acomo<strong>da</strong>ção para o<br />
automóvel, por meio de planos e propostas técnicas sem a adoção de enfoques<br />
sociais e políticos. Já nos anos de 1960, a Sociologia e a Ciência Política passaram<br />
a estu<strong>da</strong>r a área dos transportes, considerando-se, a partir <strong>da</strong>í, os impactos sociais<br />
e ambientais, mesmo que esse planejamento ain<strong>da</strong> continuasse sendo<br />
unidirecional e com uma visão estreita defini<strong>da</strong> pela relação custo-benefício. Após<br />
os anos de 1970, houve uma reavaliação do planejamento do transporte com uma<br />
melhor utilização <strong>da</strong> Sociologia para a análise <strong>da</strong> estrutura e <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças sociais<br />
(VASCONCELOS, 2001). Essas metodologias eram, geralmente, transpostas para<br />
outros países, como ocorreu com o Brasil, em função <strong>da</strong> aceleração <strong>da</strong><br />
urbanização após a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial quando as maiores ci<strong>da</strong>des<br />
começaram a vivenciar problemas de transporte e trânsito. O período militar, com<br />
a centralização política e a falta de recursos locais para investimentos em sistemas<br />
de transporte público, fez com que o planejamento nessa área fosse desenvolvido<br />
junto ao Governo <strong>Federal</strong>, no Ministério dos Transportes (à exceção de São Paulo,<br />
que contava com agências próprias). A metodologia utiliza<strong>da</strong> era tradicional, ou<br />
seja, um enfoque técnico com incursões na área social. Como as condições de<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
50
51<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
transporte não se alteraram significativamente, houve uma forte crítica a esse<br />
tipo de planejamento tradicional no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1960.<br />
O tema transporte não era abun<strong>da</strong>ntemente abor<strong>da</strong>do, enquanto aqueles<br />
relacionados à habitação e à educação recebiam maior atenção. Aos poucos, na<br />
déca<strong>da</strong> de 1980, foi se privilegiando a incorporação do tema e dos atores sociais,<br />
bem como a sua participação na construção do espaço urbano, significando uma<br />
transição em relação ao uso <strong>da</strong> metodologia <strong>da</strong> sociologia urbana francesa dos<br />
anos de 1970 (VASCONCELOS, 2001).<br />
Este autor considera, em sua análise, a estrutura de produção, que se refere ao<br />
ambiente construído onde grande parte <strong>da</strong> produção e <strong>da</strong> gestão ocorre com a<br />
indústria, o comércio e serviços e as empresas públicas; a estrutura de<br />
reprodução, onde ocorre a produção biológica, social e cultural <strong>da</strong>s pessoas,<br />
destacando-se a residência, a escola, locais de lazer e de realização de outras<br />
ativi<strong>da</strong>des sociais e políticas, bem como dos serviços médicos; e a estrutura de<br />
circulação, que são as vias públicas, calça<strong>da</strong>s, terminais, ou seja, onde ocorre a<br />
circulação.<br />
A circulação é extremamente essencial para que haja o deslocamento <strong>da</strong>s pessoas<br />
até seus locais de trabalho já que, normalmente, há uma separação entre este e o<br />
local de moradia, bem como <strong>da</strong>s demais ativi<strong>da</strong>des necessárias à sua reprodução,<br />
o que implica em custos que, muitas vezes, não podem ser pagos, fazendo com<br />
que as pessoas busquem outras alternativas, como ir a pé ou de bicicleta.<br />
Historicamente, a provisão dos meios de transporte foi sendo<br />
paulatinamente transferi<strong>da</strong> do empregador para o Estado à<br />
medi<strong>da</strong> que não mais interessou ao capital. Condições<br />
específicas do modo capitalista de produção – luta em torno<br />
do valor <strong>da</strong> força de trabalho, <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des sociais de<br />
reprodução e dos salários determinados pelo mercado –<br />
levam a uma incapaci<strong>da</strong>de permanente do sistema para<br />
prover to<strong>da</strong>s as necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> força de trabalho [...]. No<br />
caso de São Paulo, por exemplo, a construção de moradias<br />
junto às fábricas pelos empregadores garantia a residência e o<br />
transporte (a pé) dos trabalhadores no início <strong>da</strong><br />
industrialização (VASCONCELLOS, 2001, p. 35).<br />
Essa situação foi sendo altera<strong>da</strong> com o aumento do número de trabalhadores e<br />
dos custos para a habitação, e com o fato dos empregadores passarem, aos<br />
poucos, os encargos de transporte para o Estado e para os próprios trabalhadores<br />
(VASCONCELOS, 2001).<br />
No que diz respeito a esses encargos, as pessoas com menor ren<strong>da</strong> sempre terão<br />
que resolver questões básicas relativas à sua reprodução, ou seja, precisam<br />
conseguir habitação e emprego, além do deslocamento para realizar essas e<br />
outras ativi<strong>da</strong>des, geralmente por meio de transporte coletivo. Muitas vezes<br />
moram distante do trabalho e não têm como custear os seus deslocamentos,<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
tendo que sair mais cedo de sua residência e ir a pé ou de bicicleta, e, em muitos<br />
casos, precisam percorrer longas distâncias. Uma acessibili<strong>da</strong>de adequa<strong>da</strong> não faz<br />
parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> desses segmentos sociais.<br />
Essas questões correspondem ao fato do espaço urbano ser produzido,<br />
reproduzido e apropriado de acordo com os ditames <strong>da</strong> lógica capitalista e se<br />
encontrar ca<strong>da</strong> vez mais dividido e segmentado socioespacialmente. Nesse<br />
sentido, a circulação e a mobili<strong>da</strong>de de pessoas, bens e mercadorias, nesse<br />
espaço, dão-se diferentemente, de acordo com os fatores econômicos, políticos e<br />
sociais.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
As pessoas, enquanto seres políticos, apropriam-se do espaço<br />
de formas varia<strong>da</strong>s, algumas condizentes com as formas<br />
previstas e outras não, interferindo nos pressupostos formais<br />
<strong>da</strong>s políticas de transporte e trânsito. O exemplo mais claro<br />
está no trânsito, em que a ocupação violenta do espaço pelos<br />
motoristas reflete um aspecto <strong>da</strong> luta de classes. Se no campo<br />
do trabalho o conflito principal se dá entre os detentores dos<br />
meios de produção e os trabalhadores, no trânsito o conflito<br />
básico se dá entre a classe média e os trabalhadores, na forma<br />
automóvel versus ônibus/pedestres (VASCONCELLOS, 2001, p.<br />
205).<br />
No caso específico de São Paulo, Vasconcellos (2001) faz uma análise de alguns<br />
aspectos e dimensões <strong>da</strong> política de transporte em dois grandes períodos<br />
distintos: um entre 1960 e 1980, caracterizado pelo regime militar e pelo<br />
crescimento econômico com grandes transformações no espaço dessa ci<strong>da</strong>de e,<br />
pós 1980, quando ocorre a redemocratização <strong>da</strong> política, estagnação econômica,<br />
inflação e desemprego.<br />
Com os processos de urbanização e industrialização, a ci<strong>da</strong>de se reestrutura e a<br />
localização <strong>da</strong>s diferentes ativi<strong>da</strong>des também se reorganiza de acordo com o uso<br />
do solo, com o direcionamento <strong>da</strong> expansão urbana e com as infra-estruturas.<br />
Para essa estruturação espacial se constituir são necessários os meios de<br />
transporte, que poderão ser públicos ou privados, de acordo com o poder<br />
aquisitivo dos usuários. Tanto a estruturação espacial quanto a ordenação dos<br />
meios de transportes públicos não são tão simples e espontâneas, estando<br />
permea<strong>da</strong>s por interesses diferenciados dos agentes urbanos. Com isso não há,<br />
portanto, uma situação favorável que permita fluir a circulação de maneira<br />
adequa<strong>da</strong>, já que há inúmeros problemas nos sistemas de transporte público e<br />
uma grande presença do automóvel particular, implicando na mobili<strong>da</strong>de e<br />
acessibili<strong>da</strong>de de muitas pessoas, principalmente <strong>da</strong>s que possuem uma ren<strong>da</strong><br />
menor.<br />
Voltando-nos para Presidente Prudente 8 destacamos, a seguir, as informações<br />
reuni<strong>da</strong>s por Sperandio (1992), que fez uma análise <strong>da</strong> legislação relativa ao<br />
transporte coletivo, a partir do início de 1950, onde se encontram as premissas<br />
52
53<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
que nortearam a prestação desse serviço, por meio <strong>da</strong> concessão e <strong>da</strong> permissão<br />
do mesmo à empresas particulares.<br />
A autora analisa a prestação de serviços de transporte coletivo nas diferentes<br />
administrações <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, demonstrando como o <strong>of</strong>erecimento desse serviço à<br />
população foi se estruturando. No governo de Luiz Ferraz de Sampaio (de 1961 a<br />
1964) foi cria<strong>da</strong> a Empresa de Transportes Brasília S/A (1961), que prestou<br />
serviços ilegalmente até 1963, ano em que foi outorga<strong>da</strong> a primeira permissão<br />
para que a empresa operasse na legali<strong>da</strong>de. De 1965 a 1968, com o prefeito Watal<br />
Ishibashi, essa permissão foi renova<strong>da</strong>, não considerando o prazo de cinco anos<br />
previstos para a renovação. No período posterior, com Antonio Sandoval Neto<br />
(1969 a 1972), essa mesma empresa continuou sendo beneficia<strong>da</strong>, já que o edital<br />
para a prestação desse serviço estipulava o mínimo de dez anos de experiência no<br />
ramo de transportes coletivos para participar <strong>da</strong> concorrência. Ela possuía esses<br />
requisitos, além de não existir naquele momento outra empresa que pudesse<br />
concorrer (SPERANDIO, 1992).<br />
A situação não se diferenciou nos dois man<strong>da</strong>tos posteriores, de 1973 a 1980,<br />
com os governos de Valter Soares e Paulo Constantino. Não houve nem mesmo a<br />
prorrogação <strong>da</strong> permissão prevista para 1977 e 1978. A empresa criava e<br />
ampliava linhas de acordo com seus interesses. Nos anos de 1981 e 1982, no<br />
governo de Benedito Pereira do Lago, houve a renovação <strong>da</strong> permissão, mas sem<br />
uma concorrência pública e, conseqüentemente, a regularização de linhas cria<strong>da</strong>s<br />
anteriormente.<br />
No man<strong>da</strong>to de Virgílio Tiezzi Júnior (1985 a 1988), a prorrogação <strong>da</strong> permissão foi<br />
realiza<strong>da</strong> mais uma vez sem grandes alterações. O prefeito Paulo Constantino<br />
teve um segundo man<strong>da</strong>to, de 1989 a 1992, constituindo-se o último período<br />
analisado pela autora cita<strong>da</strong>, o qual foi marcado por conflitos entre a Prefeitura<br />
Municipal e a empresa que atuava no ramo dos transportes coletivos, já que esse<br />
empresário, Virgílio Tiezzi, demonstrou interesse em concorrer no setor, uma vez<br />
que já atuava no ramo de transporte coletivo. Ele tinha empresas de transporte<br />
intermunicipal e interestadual e também de transporte urbano nas ci<strong>da</strong>des de<br />
Araçatuba, Franca, no Estado de São Paulo, e Campo Grande, no Estado de Mato<br />
Grosso do Sul (SPERANDIO, 1992).<br />
Os empresários proprietários <strong>da</strong> Empresa de Transportes Brasília sempre atuaram<br />
visando o lucro. Criaram e suprimiram linhas quando julgaram necessário, as quais<br />
foram legaliza<strong>da</strong>s no momento <strong>da</strong> renovação <strong>da</strong> permissão, sem que houvesse a<br />
interferência do poder público, legítimo representante dos interesses dos<br />
usuários. Essa reali<strong>da</strong>de começou a ser altera<strong>da</strong> a partir de 1993, quando o<br />
decreto de 1991 entrou em vigor determinando a concorrência pública em<br />
igual<strong>da</strong>de de condições e a proibição <strong>da</strong> prorrogação <strong>da</strong> permissão dos serviços.<br />
Ficou expresso, também, que poderia/deveria operar mais de uma empresa na<br />
prestação desse serviço por meio <strong>da</strong> setorização <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, dividindo entre elas as<br />
áreas a serem servi<strong>da</strong>s (SPERANDIO, 1992).<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
Por meio <strong>da</strong>s considerações feitas, é possível compreender que houve um<br />
monopólio com relação à prestação de transporte coletivo em Presidente<br />
Prudente, o que foi, de certa forma, apoiado pelo poder público durante a maior<br />
parte do tempo de atuação <strong>da</strong> empresa cita<strong>da</strong>, legitimando as suas ações. Fica<br />
evidente que os usuários eram os mais prejudicados com essa omissão do poder<br />
público em propiciar melhores condições de deslocamento à população<br />
prudentina, ao permitir que a empresa administrasse o transporte coletivo de<br />
acordo com os seus interesses.<br />
O transporte coletivo, na ci<strong>da</strong>de de Presidente Prudente, foi gerenciado por essa<br />
empresa até o ano de 1993 e, a partir de 1994, passou a ser operado por duas<br />
empresas, a Transporte Coletivo Presidente Prudente (TCPP) e a Pruden Express,<br />
que permanecem até o momento como prestadoras do serviço. Segundo consta<br />
extra-<strong>of</strong>icialmente, as duas empresas são de proprie<strong>da</strong>de do ex-prefeito Paulo<br />
Constantino. Esse fato, se confirmado, evidencia que não houve mu<strong>da</strong>nças com<br />
relação à manutenção do monopólio. As linhas de transporte coletivo somam, nas<br />
duas empresas, um total de 47, sendo que a TCPP opera em 27 linhas (dentre<br />
estas, quatro são com veículos a<strong>da</strong>ptados a portadores de deficiência física) e a<br />
Pruden Express opera um total de 20 (destas, três são com veículos a<strong>da</strong>ptados).<br />
A freqüência de ônibus (em termos de maior número de veículos e menor<br />
intervalo de tempo) é maior nas linhas que servem o centro e as suas imediações,<br />
enquanto há um maior intervalo de tempo entre os que circulam numa mesma<br />
linha comparativamente àquelas que compreendem trajetos mais longos entre<br />
áreas periféricas e centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, chegando até a 40 ou 50 minutos. Nos<br />
horários de pico, com maior deman<strong>da</strong>, os veículos estão sempre lotados,<br />
influenciando na quali<strong>da</strong>de do serviço prestado. O preço do transporte é<br />
considerado alto para essa ci<strong>da</strong>de de porte médio, sem contar que não há<br />
terminal de integração. Muitas pessoas não podem pagar R$ 1,80 (um real e<br />
oitenta centavos), principalmente as de ren<strong>da</strong> mais baixa, portanto, não é<br />
acessível a todos.<br />
Com relação à estruturação do transporte público e do espaço urbano de<br />
Presidente Prudente, lembramos que a expansão cafeeira a que esteve associa<strong>da</strong><br />
a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, interferiu na implantação de suas vias de circulação, já que<br />
os veículos eram, em sua maior parte, individuais, como carros e charretes, sendo<br />
ausente uma visão urbanística que orientasse um plano urbano com vias mais<br />
largas que, mais tarde, pudessem ser mais apropria<strong>da</strong>s para o tráfego, em<br />
especial ao de ônibus (SPERANDIO, 1992).<br />
Compõem a estrutura urbana 9 atual de Presidente Prudente uma área central e<br />
pericentral com ruas estreitas que dificultam o tráfego e, em contraposição, um<br />
grande número de loteamentos em áreas distantes, com a permanência de vazios<br />
urbanos intermediários resultantes <strong>da</strong> especulação imobiliária, implicando na<br />
mobili<strong>da</strong>de e acessibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> população.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
54
55<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
No que se refere ao uso <strong>da</strong>s vias na ci<strong>da</strong>de, há uma concorrência entre os ônibus<br />
que realizam o transporte coletivo e os veículos privados e individuais que,<br />
associados a uma estruturação viária não adequa<strong>da</strong>, geram congestionamentos e<br />
uma menor fluidez nos horários de pico. Além disso, o alto custo desse meio de<br />
transporte faz com que diversas pessoas se desloquem a pé ou de bicicleta por<br />
grandes distâncias, o que se torna ain<strong>da</strong> mais dificultoso pela declivi<strong>da</strong>de do sítio<br />
urbano.<br />
Além <strong>da</strong>s características do sistema viário, não há também na ci<strong>da</strong>de um sistema<br />
de transporte coletivo integrado que facilite a acessibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> população. Neste<br />
sentido, o poder público tem que atuar com o intuito de possibilitar uma melhor<br />
integração entre as diversas áreas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, por meio do transporte público e<br />
<strong>of</strong>erecer melhores condições para a população de menor ren<strong>da</strong>, que geralmente<br />
se encontra distante <strong>da</strong>s áreas melhores servi<strong>da</strong>s com equipamentos de uso<br />
coletivo, de comércio e serviços etc. No caso de Presidente Prudente, os setores<br />
norte e leste abrigam um grande contingente populacional de baixa ren<strong>da</strong> e, no<br />
setor sul, esse fato pouco ocorre, porque a ocupação é feita pelo segmento de<br />
maior poder aquisitivo.<br />
Apesar <strong>da</strong>s diferenças de escala, de países, de contexto histórico, <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s<br />
sociais, do número de habitantes etc, as ci<strong>da</strong>des capitalistas estão ca<strong>da</strong> vez mais<br />
se estruturando para o uso do automóvel em contraposição ao transporte<br />
coletivo, que tem seu custo ca<strong>da</strong> vez mais alto, e, com isso, a diferenciação<br />
socioespacial amplia-se em função <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des de acessibili<strong>da</strong>de, como já<br />
dito, principalmente para os segmentos de menor poder aquisitivo. Assim,<br />
entendemos que a análise <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de é fator primordial para a compreensão<br />
de como ocorre o direito à ci<strong>da</strong>de.<br />
A princípio, é mister e necessária uma inter-relação entre planejamento urbano,<br />
ordenação dos meios de transportes públicos e circulação dos transportes<br />
privados, de modo que as pessoas que residem em áreas mais afasta<strong>da</strong>s não<br />
sejam tão prejudica<strong>da</strong>s em seus direitos de ir e vir nas ci<strong>da</strong>des, que estão ca<strong>da</strong> vez<br />
mais caracteriza<strong>da</strong>s pela diferenciação socioespacial. Faz-se necessária a ação<br />
conjunta dos agentes envolvidos nessas questões: o poder público, o poder<br />
privado e a população.<br />
A seguir, a análise se <strong>da</strong>rá entendendo a ci<strong>da</strong>de como lócus do automóvel privado<br />
e individual que ca<strong>da</strong> vez mais se beneficia dos espaços urbanos em contraposição<br />
ao transporte público e coletivo.<br />
A Ci<strong>da</strong>de do automóvel<br />
A predominância do automóvel no espaço urbano é destaca<strong>da</strong> a seguir por ser<br />
este considerado um meio de deslocamento flexível e mais veloz em comparação<br />
às condições de transporte coletivo. O fato traz graves implicações, já que há uma<br />
disputa pelos espaços de circulação por esse meio de transporte, gerando<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
congestionamentos, aumento <strong>da</strong> poluição, necessi<strong>da</strong>des de novas áreas para<br />
estacionamento e o uso bastante diferenciado, já que muitos o utilizam<br />
individualmente, enquanto o transporte coletivo pode atender a um número mais<br />
significativo de pessoas.<br />
A maioria <strong>da</strong>s idéias que se seguem estão basea<strong>da</strong>s em referências bibliográficas<br />
européias, mas elas retratam o que acontece em outras reali<strong>da</strong>des sobre a<br />
influência do automóvel no espaço urbano. Barcelona será novamente cita<strong>da</strong>,<br />
mas não realizamos uma análise sobre a reali<strong>da</strong>de brasileira ou prudentina, pois o<br />
objetivo aqui é fazer a apresentação <strong>da</strong>s idéias que justificam o item, ou seja, a<br />
ci<strong>da</strong>de como lócus do automóvel para, posteriormente, abor<strong>da</strong>mos os<br />
deslocamentos e os meios de transporte utilizados por nossos entrevistados.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
Tras la II Guerra Mundial el paradigma de ciu<strong>da</strong>d industrial<br />
está completamente afianzado en los países desarrollados,<br />
potenciado desde diversos terrenos: en el económico, por la<br />
evolución del modo de producción industrial hacia procesos<br />
fordistas; en el transporte, por la consoli<strong>da</strong>ción del transporte<br />
privado como medio de transporte hegemónico, y en el<br />
terreno del pensamiento urbano, con la puesta en práctica de<br />
las ideas del pensamiento funcionalista en la planificación<br />
urbanística de las ciu<strong>da</strong>des (GUERRERO, 2003, p. 14).<br />
Na Espanha, o automóvel foi sendo ca<strong>da</strong> vez mais utilizado e, nos anos de 1960,<br />
teve seu uso ain<strong>da</strong> mais elevado em função <strong>da</strong> diminuição dos custos de<br />
fabricação e pelo fato de propiciar flexibili<strong>da</strong>de, privaci<strong>da</strong>de e veloci<strong>da</strong>de. Em<br />
outras palavras, pôde-se verificar que ocorreu, de fato, um aumento na<br />
mobili<strong>da</strong>de, multiplicando a intensi<strong>da</strong>de e o número de fluxos obrigatórios dos<br />
indivíduos nos espaços urbanos (GUERREIRO, 2003).<br />
Como já citado, a ren<strong>da</strong> é determinante para a escolha do tipo de transporte a ser<br />
utilizado, sendo que os segmentos de menor poder aquisitivo levarão sempre em<br />
conta esses custos no seu orçamento mensal, enquanto os de maior poder<br />
aquisitivo podem optar pela comodi<strong>da</strong>de e flexibili<strong>da</strong>de dos meios de circulação<br />
privados e individuais.<br />
Nesse sentido, a ci<strong>da</strong>de vai sendo ca<strong>da</strong> vez mais lócus <strong>da</strong> circulação realiza<strong>da</strong> por<br />
meios de transporte privados e individuais que competem nas vias com os meios<br />
de transporte coletivo, sendo progressivamente a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> para o uso <strong>da</strong>queles em<br />
detrimento destes. É necessário propiciar o uso coletivo dos espaços urbanos e,<br />
com isso, possibilitar uma circulação mais flui<strong>da</strong>, melhorando o tráfego, os<br />
congestionamentos e a quali<strong>da</strong>de do ar (por meio <strong>da</strong> diminuição <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de<br />
de monóxido de carbono emitido), privilegiando-se, inclusive, os pedestres.<br />
Para isso é importante que haja a implementação de medi<strong>da</strong>s que regulem o uso<br />
do solo urbano e promovam a acessibili<strong>da</strong>de dos citadinos à ci<strong>da</strong>de enquanto<br />
conjunto. Além disso, é preciso atrair os usuários para a utilização do transporte<br />
56
57<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
coletivo. Para Guerrero a “[...] medi<strong>da</strong> más efectiva para cambiar la tendência de<br />
incremento de uso del automóvil el ahorro en los tiempos de viaje de los<br />
transportes públicos” (2003, p. 38).<br />
Em função dos problemas no <strong>of</strong>erecimento de transporte público, é preciso<br />
considerar a <strong>of</strong>erta e a deman<strong>da</strong>, de modo que haja uma eficácia, uma melhoria,<br />
para que de fato os usuários sejam contemplados com um meio de deslocamento<br />
eficiente.<br />
Dado que la deman<strong>da</strong> no es constante a lo largo del tiempo,<br />
sino que tiene puntas, si se quiere evitar la congestión, la<br />
capaci<strong>da</strong>d del sistema tiene que adecuarse al máximo de la<br />
deman<strong>da</strong>. Este es el panorama que tenemos que contemplar:<br />
los mínimos de capaci<strong>da</strong>d tienen que ser suficientes para<br />
absorber el máximo de deman<strong>da</strong>. El problema seria trivial si<br />
las diferencias entre máximos y mínimos de capaci<strong>da</strong>d de<br />
<strong>of</strong>erta y entre las de deman<strong>da</strong> fueran insignificantes; el<br />
problema es grave porque ocurre todo lo contrario. La<br />
consecuencia es una infraestructura infrautiliza<strong>da</strong> durante 16<br />
horas al día, acompaña<strong>da</strong> de una deficiencia de capaci<strong>da</strong>d<br />
durante 8 horas diarias que representan los máximos de<br />
deman<strong>da</strong>. Es decir, congestión acompaña<strong>da</strong> de una utilización<br />
antieconómica de la infraestructura (LORCA, 1971, p. 28).<br />
Essa situação é observa<strong>da</strong> em muitas ci<strong>da</strong>des com veículos de transporte coletivo<br />
super lotados nos horários de maior utilização, quando deveria haver uma maior<br />
<strong>of</strong>erta que atendesse essa deman<strong>da</strong>. Por outro lado, nestes mesmos períodos do<br />
dia observa-se o maior número de carros nas vias, sendo que a maior parte deles<br />
tem apenas um passageiro. Assim, há o transporte individual e privado ocupando<br />
a maior parte <strong>da</strong>s áreas <strong>da</strong>s vias, mas, com uma densi<strong>da</strong>de baixa quando se<br />
verifica a relação veículos x número de passageiros transportados por<br />
automóveis, ocorrendo o contrário no que concerne ao transporte coletivo.<br />
As longas distâncias percorri<strong>da</strong>s em transporte público podem tornar-se ain<strong>da</strong><br />
mais extensas diante do tempo de espera, do tempo de viagem, <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de do<br />
serviço <strong>of</strong>erecido, influenciando, muitas vezes, na escolha pelo automóvel<br />
individual.<br />
Os segmentos que possuem veículo próprio utilizam constantemente esse meio<br />
para os deslocamentos em funções <strong>da</strong>s suas ativi<strong>da</strong>des, mesmo que elas se<br />
encontrem a curtas distâncias de sua residência. Esses segmentos podem residir<br />
em áreas mais centrais, como também nas áreas de expansão urbana mais<br />
recentes, caracteriza<strong>da</strong>s pelos loteamentos fechados, que se encontram<br />
geralmente afastados <strong>da</strong> malha compacta sendo que, nesse caso, a escolha <strong>da</strong><br />
área de residência leva em consideração a facili<strong>da</strong>de de deslocamentos por meio<br />
do transporte próprio.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
A escolha do automóvel, por parte de quem tem possibili<strong>da</strong>de<br />
de escolher, decorre de uma avaliação racional de suas<br />
necessi<strong>da</strong>des de deslocamento, frente aos condicionantes<br />
econômicos e de tempo, e frente ao desempenho relativo <strong>da</strong>s<br />
tecnologias de transporte disponíveis. Neste sentido, a visão<br />
do automóvel como símbolo de status é superficial: a sua<br />
escolha não decorre de um “desejo natural” <strong>da</strong>s pessoas, mas<br />
<strong>da</strong> percepção de que ele constitui um meio essencial para a<br />
reprodução <strong>da</strong>s classes médias cria<strong>da</strong>s pela modernização<br />
capitalista [...] (VASCONCELLOS, 2001, p. 38).<br />
Para o caso de Barcelona, Guerrero (2003) ressalta que esse fato provoca uma<br />
eleva<strong>da</strong> externali<strong>da</strong>de, com a saí<strong>da</strong> de setores <strong>da</strong> população de ren<strong>da</strong>s altas <strong>da</strong><br />
área central para áreas mais afasta<strong>da</strong>s, e com menos densi<strong>da</strong>de, dependendo do<br />
automóvel para esses deslocamentos. Segundo ele, isto gera custos para o meio<br />
ambiente à medi<strong>da</strong> que se prioriza o transporte privado e o poder público tem<br />
que investir constantemente no sistema viário, que, muitas vezes, não é utilizado<br />
de forma coletiva mas apropriado seletivamente por segmentos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />
El automovilista urbano sólo paga una parte del coste de la<br />
infraestructura con los impuestos. Sin embargo, hasta ahora<br />
no se ha resuelto el problema de establecer un sistema<br />
discriminatorio por la utilización de la infraestructura urbana<br />
en horas de punta (LORCA, 1971, p. 23).<br />
Como solução para os problemas de trânsito e circulação, Lorca (1971) sugere que<br />
haja uma segregação de tráfegos, separando os diferentes tipos, evitando a<br />
interação entre eles e o congestionamento. O tráfego pode ser segregado de<br />
acordo com a distância <strong>da</strong> viagem, por meio de ron<strong>da</strong>s ou cinturões, se o destino<br />
for mais exterior ao núcleo central, segregar o tráfego dos pedestres por meio de<br />
vias eleva<strong>da</strong>s, segregação de corredores viários para transporte público e a<br />
segregação dos horários de abastecimento de mercadorias nos estabelecimentos<br />
centrais. Essas sugestões poderiam ser implementa<strong>da</strong>s para as diferentes<br />
reali<strong>da</strong>des urbanas, tendo em vista a melhor mobili<strong>da</strong>de e acessibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
população.<br />
Lorca (1971) ain<strong>da</strong> ressalta que, do ponto de vista individual, o automóvel é o<br />
meio de transporte mais caro e, se forem agregados os custos sociais, esse meio<br />
torna-se ain<strong>da</strong> mais oneroso. Ele afirma que não quer defender com isso, que o<br />
automóvel deva desaparecer, mas que para evitar males maiores é necessário:<br />
[…] robustecer el sistema de transportes colectivos en la<br />
ciu<strong>da</strong>d y racionalizar el sistema de precios para que tengan<br />
éstos algo que ver con los costes de los diferentes servicios y<br />
así construir las bases que hagan posible una elección lógica<br />
por parte del individuo del medio de transporte utilizado ( p.<br />
23-24).<br />
58
59<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
A ci<strong>da</strong>de ca<strong>da</strong> vez mais está sendo reestrutura<strong>da</strong>, levando-se em conta a<br />
circulação que tem aumentado bastante. Parte desses fluxos é constituí<strong>da</strong> por<br />
transporte privado, ocorrendo a apropriação desigual dos espaços <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de por<br />
alguns segmentos que se beneficiam desse meio. Em função do automóvel, a<br />
ci<strong>da</strong>de é sempre modifica<strong>da</strong>, como destaca Fábregas (1971):<br />
Desde el trazado de sus calles hasta las señales reguladoras<br />
del tráfico. Desde la mentali<strong>da</strong>d de sus ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nos hasta los<br />
“slogans”publicitarios. Desde la mano de obra emplea<strong>da</strong> en la<br />
industria automovilística hasta los agentes de la autori<strong>da</strong>d,<br />
pasando por los programas de actuación pública, están<br />
impregnados, condicionados y colocados a servicio del<br />
automóvil (p. 37).<br />
Que a ci<strong>da</strong>de está estrutura<strong>da</strong> em função do automóvel, isso é fato, mas devemos<br />
ampliar nossas considerações levando em conta o papel de agentes que<br />
promovem esse espaço para a utilização desse meio, em contraposição ao uso<br />
pelo transporte coletivo público. “¿Quién crea los automóviles?, ¿quién utiliza los<br />
automóviles? y ¿quién construye la infraestructura del tranporte? (FÁBREGAS,<br />
1971, p. 38).<br />
Essas questões precisam permear as discussões sobre a influência do automóvel<br />
no espaço urbano, já que não é simplesmente um mero aumento do número de<br />
veículos privados, mas to<strong>da</strong> uma lógica que permeia a estruturação e<br />
reestruturação desse espaço que serve ao automóvel, que segrega os segmentos<br />
<strong>da</strong> população, que propicia a concentração de uso <strong>da</strong>s infra-estruturas e<br />
equipamentos coletivos, ou seja, há que se demonstrar o papel dos agentes<br />
envolvidos na produção e apropriação dos espaços <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de capitalista.<br />
Fábregas (1971) salienta, considerando indicativos que para ele são fortes<br />
argumentos para se defender o uso do meio de transporte coletivo, que uma<br />
pessoa que viaja neste tipo de transporte ocupa uma sétima parte do espaço que<br />
ocupa a pessoa que viaja em automóvel e uma pessoa que viaja em motocicleta<br />
ocupa a quinta parte do espaço que ocupa a pessoa que se desloca por<br />
automóvel.<br />
Circulando en autobuses se reducíria el espacio necesario a<br />
una séptima parte. Circulando en autobuses se reducíria el<br />
problema de los aparcamientos, de los embotellamientos, de<br />
la contaminación, etc. Circulando en motocicletas se reduce el<br />
espacio necesario destinado a trafico en una quinta parte.<br />
[...] los responsables de la gestión pública en Barcelona se<br />
empeñan en la construcción de aparcamientos subterráneos<br />
que aplazan, pero no solucionan el problema, en las tentativas<br />
de diseñar un conjunto de vías rápi<strong>da</strong>s a base de cambiar<br />
constantemente las direcciones y los sentidos de marcha y<br />
atravesar la ciu<strong>da</strong>d longitudinamlmente por autovías que<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
además de romper y dividir el barrio, constituyen un peligro y<br />
molestia para los transeúntes (p. 47).<br />
Ain<strong>da</strong> de acordo com o autor, no que diz respeito à reali<strong>da</strong>de européia,<br />
especificamente a espanhola, os investimentos em infra-estrutura pública para o<br />
uso do automóvel beneficiam somente 15% <strong>da</strong>s famílias. No caso de Barcelona, o<br />
que se obtinha com a cobrança para a circulação não cobria os custos com<br />
manutenção e conservação <strong>da</strong>s infra-estruturas. “Nuevamente aparece la<br />
desproporción entre los que contribuyen y los poseedores de automóvil privado al<br />
Municipio y el enorme gasto público que se realiza éste para aquéllos” (p. 49-50).<br />
A solução proposta por Fábregas (1971) para a reali<strong>da</strong>de européia, assim como a<br />
solução aponta<strong>da</strong> por outros autores para outras reali<strong>da</strong>des é a mesma, ou seja,<br />
“la colectivización de los transportes. Sin embargo, esto es imposible mientras la<br />
clase dirigente se mueva sobre cuatro rue<strong>da</strong>s” (p. 51).<br />
É preciso uma conciliação e efetivi<strong>da</strong>de de políticas de transporte urbano para<br />
promover a mobili<strong>da</strong>de e a acessibili<strong>da</strong>de para/na ci<strong>da</strong>de, de modo que se<br />
priorize a circulação do transporte público e coletivo, possibilitando a <strong>of</strong>erta de<br />
acordo com a deman<strong>da</strong>, em contraposição à presença massiva dos automóveis,<br />
principalmente nas áreas de concentração de equipamentos coletivos.<br />
É fun<strong>da</strong>mental permitir-se o acesso dos segmentos de menor poder aquisitivo,<br />
que em sua maioria necessitam do transporte coletivo para se deslocar à ci<strong>da</strong>de.<br />
Estes se encontram ca<strong>da</strong> mais segregados, não conseguindo realizar todos os<br />
deslocamentos que gostariam, enquanto os segmentos de maior poder aquisitivo<br />
e possuidores do veículo próprio não têm sua mobili<strong>da</strong>de prejudica<strong>da</strong>.<br />
Os segmentos de menor poder aquisitivo já se encontram, em grande parte,<br />
distantes <strong>da</strong>s áreas abasteci<strong>da</strong>s e melhores equipa<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des e precisam,<br />
pelo menos, chegar até elas sem maiores prejuízos e dificul<strong>da</strong>des.<br />
Lorca (1971) aponta que as moradias para esses segmentos estão:<br />
[...] más aleja<strong>da</strong>s de los centros de trabajo y son utiliza<strong>da</strong>s por<br />
la parte de población con rentas económicas más bajas y<br />
matrimonios más jóvenes. Esta circunstancia hace que la<br />
mayor carga de costes de los transportes urbanos tenga que<br />
ser soporta<strong>da</strong> por este sector de la población. Otro hecho que<br />
expresa la situación de esta población es que es el sector que<br />
va a tener que utilizar con más frequencia el transporte<br />
público por carecer del privado, y si la cali<strong>da</strong>d de éste se<br />
deteriora, sus oportuni<strong>da</strong>des de acceso a las distintas partes de la<br />
ciu<strong>da</strong>d disminuirán y, consiguientemente, lo harán sus<br />
oportuni<strong>da</strong>des de trabajo, entretenimiento y de compras. La<br />
ciu<strong>da</strong>d está quitando la movili<strong>da</strong>d a quien más la necesita (p. 32).<br />
60
61<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
Portanto, os que mais necessitam dos deslocamentos não são atendidos como<br />
deveriam, restringindo a acessibili<strong>da</strong>de desses segmentos à ci<strong>da</strong>de e aos bens e<br />
equipamentos de uso coletivo nela concentrados. Muitas vezes as estruturas<br />
produzi<strong>da</strong>s socialmente não são utiliza<strong>da</strong>s pelo simples fato de se encontrarem<br />
distantes do local de moradia de grande parte dos citadinos e pelo fato de se ter<br />
que pagar caro para se chegar até elas, restringindo os deslocamentos para a<br />
realização de ativi<strong>da</strong>des como o trabalho e ensino. O possuidor do transporte<br />
privado pode encurtar as distâncias, aumentar o tempo disponível, enquanto os<br />
usuários do transporte coletivo têm um dispêndio maior de tempo em função <strong>da</strong>s<br />
distâncias e <strong>da</strong> seletivi<strong>da</strong>de resultante do fato de que os espaços <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de ca<strong>da</strong><br />
vez mais são os espaços para a circulação do automóvel.<br />
Apresentamos, a seguir, os deslocamentos e os meios de transporte utilizados<br />
pelas pessoas entrevista<strong>da</strong>s, procurando entender a mobili<strong>da</strong>de destas no espaço<br />
urbano de Presidente Prudente.<br />
Os deslocamentos e os meios de transporte utilizados<br />
Necessitamos, constantemente, nos deslocarmos para a reprodução. Tanto as<br />
ativi<strong>da</strong>des a se desenvolverem, como os deslocamentos, dependerão de fatores,<br />
especialmente econômicos e espaciais, que podem restringir ou possibilitar a<br />
diversi<strong>da</strong>de e a intensi<strong>da</strong>de dos mesmos.<br />
Dessa forma, consideramos as reflexões que alguns autores estabelecem a partir<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de européia, mas que se aplicam a outras reali<strong>da</strong>des, para enfocar em<br />
segui<strong>da</strong>, o deslocamento dos nossos entrevistados, bem como os meios utilizados<br />
por na realização de diferentes ativi<strong>da</strong>des no espaço urbano.<br />
Os segmentos de menor ren<strong>da</strong>, muitas vezes por falta de mobili<strong>da</strong>de que gera<br />
baixo grau de acessibili<strong>da</strong>de, não se movem pela ci<strong>da</strong>de, desconhecendo muitas<br />
parcelas de seu território e não tendo oportuni<strong>da</strong>de de apreendê-la como<br />
totali<strong>da</strong>de.<br />
Los desplazamientos cotidianos, en relación con el trabajo y el<br />
ocio, constituyen un rasgo indiscutido de la vi<strong>da</strong> actual, y el<br />
hombre moderno se desplaza más que ninguno de sus<br />
predecesores, no sólo en ámbitos comerciales, sino también<br />
en intercambio de ideas. La evidencia más patente de este<br />
hecho la encontramos en nuestras grandes ciu<strong>da</strong>des que son<br />
puntos clave de industria, comercio y administración. Y es<br />
objetivo primordial de las autori<strong>da</strong>des municipales asegurar<br />
que las rue<strong>da</strong>s continúen girando: cualquier obstrucción<br />
aporta cierto grado de desorganización y su subsiguiente<br />
pérdi<strong>da</strong> de eficacia (MACGREGOR, 1974, p. 437).<br />
O mesmo autor ressalta ain<strong>da</strong>, que as ci<strong>da</strong>des, lócus de diversos deslocamentos,<br />
exercem influências para além de seus limites espaciais, e esse fato está<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
relacionado com as facili<strong>da</strong>des de transporte para os deslocamentos que se<br />
realizam.<br />
Macgregor (1974) retrata, por meio de um estudo de caso, os deslocamentos<br />
cotidianos em Edimburgo. Ele inicia seu estudo ressaltando que, na Grã-Bretanha,<br />
ocorreu um despovoamento dessa comarca e a ci<strong>da</strong>de se tornou inóspita com as<br />
restrições dos muros, o tráfego e os acidentes nas rodovias, havendo com isso,<br />
per<strong>da</strong> do sentido comunitário. Em razão desses resultados, ele apresenta alguns<br />
questionamentos sobre a possibili<strong>da</strong>de de reorganizar a expansão suburbana para<br />
frear os deslocamentos locais e diminuir o congestionamento no tráfego <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de, por meio <strong>da</strong> criação de assentamentos de identi<strong>da</strong>des próprias, exteriores<br />
à ci<strong>da</strong>de. Nesse caso, as autori<strong>da</strong>des de administração e planejamento urbano<br />
teriam que melhorar a acessibili<strong>da</strong>de à mesma.<br />
Guerrero (2003) salienta que a organização territorial é regi<strong>da</strong> por cinco grandes<br />
princípios, o <strong>da</strong> interação espacial, o <strong>da</strong> aglomeração, o <strong>da</strong> acessibili<strong>da</strong>de, o <strong>da</strong><br />
hierarquia e o <strong>da</strong> competitivi<strong>da</strong>de. Dentre esses, o <strong>da</strong> interação espacial estaria<br />
diretamente associado aos deslocamentos e à mobili<strong>da</strong>de no interior <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des.<br />
No que se refere à questão <strong>da</strong> especialização funcional de algumas delas nas áreas<br />
metropolitanas, tendo em vista os custos com moradia, seria preciso implementar<br />
as políticas de transporte para favorecer esses deslocamentos, básicos para o<br />
exercício <strong>da</strong> função trabalho. Sobre Barcelona, ele ressalta que:<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
En la aglomeración central encontramos grandes variaciones<br />
entre municípios, así tenemos municípios especializados en<br />
residencia como Ba<strong>da</strong>lona, Hospitalet y especialmente Santa<br />
Coloma de Gramenet, frente la creciente especialización en<br />
trabajo de Barcelona (GUERRERO, 2003, p. 57).<br />
Há, portanto, os deslocamentos cotidianos desses municípios <strong>da</strong> área<br />
metropolitana para a ci<strong>da</strong>de de Barcelona onde muitas pessoas trabalham,<br />
necessitando, por isso, de condições favoráveis à mobili<strong>da</strong>de, ampliando o grau<br />
de acessibili<strong>da</strong>de para essas áreas. O autor adverte que há uma relação entre o<br />
aumento no consumo de energia e a mobili<strong>da</strong>de por meio de transportes diante<br />
do tipo de urbanização <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des, sendo que as mais compactas possibilitam a<br />
redução desse consumo. Considera também que os aspectos sociais, econômicos,<br />
as políticas urbanísticas e as características físicas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de são fun<strong>da</strong>mentais<br />
para a maior ou menor mobili<strong>da</strong>de.<br />
[...] podemos indicar que las variables que afectan al coste<br />
colectivo de commuting son susceptibles de actuación política:<br />
tanto política sobre usos del suelo, como em política de<br />
formación educativa, o como en potenciación de desarrollo<br />
local; y que, por tanto, la tendencia al aumento de la<br />
externali<strong>da</strong>d genera<strong>da</strong> por la movili<strong>da</strong>d puede ser controla<strong>da</strong><br />
tanto de manera directa <strong>of</strong>reciendo una red efectiva e<br />
62
63<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
integra<strong>da</strong> de transportes como de manera indirecta incidiendo<br />
en las políticas [...] (GUERRERO, 2003, p. 63-64).<br />
Essas variáveis destaca<strong>da</strong>s pelo autor com relação à reali<strong>da</strong>de espanhola, podem<br />
e são considera<strong>da</strong>s pelos agentes urbanos, como o poder público (que elabora a<br />
legislação e as políticas de planejamentos) e os atores econômicos (que<br />
influenciam as decisões de acordo com os seus interesses, não prevalecendo os<br />
interesses coletivos, pelos quais o poder público deveria zelar). Podemos<br />
entender que essa situação também se estabelece em outras reali<strong>da</strong>des como,<br />
por exemplo, em Presidente Prudente, que possui um tecido urbano bastante<br />
diferenciado, com um grande número de vazios, que provoca uma expansão<br />
urbana para além <strong>da</strong> área compacta, aumentando a especulação imobiliária e<br />
influenciando na estruturação <strong>da</strong> periferia pobre, que é carente de infraestruturas<br />
adequa<strong>da</strong>s que permitam melhores condições de vi<strong>da</strong> e acessibili<strong>da</strong>de.<br />
Aqui, não há o entrelaçamento entre a política urbana e a de transportes públicos,<br />
fato que pode propiciar melhores condições de deslocamento e mobili<strong>da</strong>de para a<br />
população, predominando a estruturação viária para os automóveis particulares e<br />
individuais, o que dificulta o acesso à ci<strong>da</strong>de, agravado pelo aumento dos custos<br />
com os meios de locomoção públicos.<br />
É preciso considerar que os deslocamentos:<br />
[...] são determinados por fatores sociais, políticos e<br />
econômicos que variam no tempo e no espaço, de acordo com<br />
as classes sociais, regiões e países. Por exemplo, o nível e a<br />
diversi<strong>da</strong>de do consumo de um habitante de classe média<br />
europeu são muito diferentes do que eram no início do século<br />
e são diferentes também dos atuais padrões de consumo de<br />
um habitante <strong>da</strong> África rural ou Brasil urbano.<br />
Conseqüentemente, as suas necessi<strong>da</strong>des de transporte também<br />
são muito diferentes e estão diretamente liga<strong>da</strong>s às condições<br />
específicas de ca<strong>da</strong> local (VASCONCELLOS, 2001, p. 37).<br />
Para Vasconcellos (2001), os deslocamentos são condicionados pela ação dos<br />
indivíduos, mas também são influenciados por características familiares, como<br />
ren<strong>da</strong>, escolari<strong>da</strong>de, i<strong>da</strong>de e relações de gênero. Nesse sentido, o autor ressalta<br />
que, em um domicílio mononuclear, as pessoas mais jovens ou idosas estão<br />
sempre dependentes <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des dos adultos que trabalham (questão <strong>da</strong><br />
i<strong>da</strong>de), as inativas de acordo com as necessi<strong>da</strong>des dos ativos (questão econômica)<br />
e as do sexo feminino conformam-se às necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s pessoas do sexo<br />
masculino (questão de gênero).<br />
Observamos, com relação aos deslocamentos realizados pelos entrevistados em<br />
Presidente Prudente, que os moradores <strong>da</strong>s áreas distantes (Mapa 1), <strong>da</strong> periferia<br />
mais empobreci<strong>da</strong>, como as do Jardim Mora<strong>da</strong> do Sol, do Jardim Humberto<br />
Salvador, do Conjunto Habitacional Brasil Novo, com menor ren<strong>da</strong>, deveriam ter a<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
possibili<strong>da</strong>de de se deslocarem, por meio de transporte coletivo, para a realização<br />
<strong>da</strong>s suas ativi<strong>da</strong>des, fato este que não ocorre.<br />
Dentre eles, a trabalhadora Rosa, residente no Conjunto Habitacional Brasil Novo,<br />
utiliza o transporte coletivo diariamente para ir trabalhar e, esporadicamente,<br />
para ir à casa de um familiar ou a alguma área de lazer pública, não realizando<br />
estes últimos percursos freqüentemente em virtude dos custos.<br />
No Jardim Mora<strong>da</strong> do Sol reside a dona-de-casa Irail<strong>da</strong> que, em função <strong>da</strong> baixa<br />
ren<strong>da</strong> e pequeno grau de mobili<strong>da</strong>de, não tem acesso ao conjunto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />
Presidente Prudente. A jovem estu<strong>da</strong>nte Ieide, que também reside nessa mesma<br />
área, usa esse meio de deslocamento diariamente para trabalhar, tendo que<br />
servir-se de duas linhas para ir ao local de trabalho e duas para voltar à sua<br />
residência, o que aumenta seus gastos e não permite que ela utilize esse<br />
transporte para outras ativi<strong>da</strong>des, dificultando, por exemplo, o seu acesso à<br />
educação formal, já que não há a <strong>of</strong>erta de escolas na área de sua residência. O<br />
Senhor Olegário, desempregado, residente nesse bairro, utiliza a sua bicicleta<br />
para se deslocar para as diferentes partes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de por não possuir recursos<br />
suficientes para o pagamento do transporte coletivo, fator que restringe o<br />
desenvolvimento de outras ativi<strong>da</strong>des e de freqüência à áreas de lazer públicas,<br />
como por exemplo, o Parque do Povo.<br />
Os outros dois entrevistados <strong>da</strong> periferia pobre, apresentados a seguir, não<br />
utilizam freqüentemente o transporte coletivo.<br />
O idoso 10 , Senhor Francisco, residente no Parque José Rota, quase não utiliza o<br />
transporte público 11 , realizando os trajetos a pé ou por meio de caronas de<br />
amigos.<br />
A portadora de deficiência física Zilá, residente no Jardim Humberto Salvador, não<br />
usa esse tipo de transporte principalmente pelo fato de não existir uma linha, com<br />
ônibus a<strong>da</strong>ptado 12 para os portadores dessa deficiência, que realize o trajeto<br />
entre o local de sua moradia e o de seu trabalho. Ela também não pode usufruir<br />
do serviço em função dos ônibus, que fazem o percurso entre a sua residência e<br />
outras áreas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de às quais ela deseje ir, não possuírem este tipo de<br />
a<strong>da</strong>ptação. É servi<strong>da</strong> somente pelo ônibus convencional, o que dificulta o seu<br />
acesso à ci<strong>da</strong>de por meio do transporte público. Dessa forma, além de ser um<br />
meio considerado caro por ela, não há condições estruturais, nos ônibus que<br />
circulam por essa área que permitam seu deslocamento. Fica ain<strong>da</strong> mais restrito o<br />
seu direito de ir e vir pois, na maioria <strong>da</strong>s vezes, ela tem que ser conduzi<strong>da</strong> em sua<br />
própria cadeira, enfrentando os declives e aclives do sítio urbano.<br />
Para o conjunto de entrevistados que compõe a periferia pobre e distante,<br />
podemos afirmar que a ren<strong>da</strong> baixa e o alto custo do transporte coletivo não<br />
possibilitam a acessibili<strong>da</strong>de à ci<strong>da</strong>de, mantendo-os segregados<br />
socioespacialmente 13 .<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
64
65<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
Ao retratarmos as áreas mais próximas ao centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, no entanto,<br />
percebemos a diferença no padrão de acessibili<strong>da</strong>de de alguns entrevistados que<br />
residem nessas áreas.<br />
A mulher trabalhadora Dona Antônia utiliza diariamente o transporte coletivo<br />
para trabalhar, não sendo prejudica<strong>da</strong> pelo fato <strong>da</strong> <strong>of</strong>erta desse serviço ser mais<br />
freqüente nessa área e também por realizar percursos a pé em função <strong>da</strong><br />
proximi<strong>da</strong>de em que se encontra.<br />
Um fato interessante, que destoa dos observados em relação aos demais<br />
entrevistados residentes na área central e pericentral, refere-se à dona-de-casa<br />
Vilma que, como a dona-de-casa residente na periferia pobre Irail<strong>da</strong>, possui um<br />
baixo grau de mobili<strong>da</strong>de, mesmo residindo em área de fácil deslocamento para<br />
outras partes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Essa quase imobili<strong>da</strong>de deve-se ao fato de que seu poder<br />
aquisitivo não propicia o desenvolvimento de ativi<strong>da</strong>des que estejam além <strong>da</strong>s<br />
imediações de sua residência, como o contato com a vizinhança, familiares,<br />
deslocamento para levar os filhos à escola e creche nas proximi<strong>da</strong>des, que é<br />
também o local onde realiza o consumo de bens e serviços necessários à sua<br />
subsistência. Para Vilma, a mobili<strong>da</strong>de está relaciona<strong>da</strong> com esse tipo de consumo<br />
e, segundo ela, sua ren<strong>da</strong> não permite o deslocamento em direção a outras áreas<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Já Irail<strong>da</strong> ressalta que, se residisse mais próximo <strong>da</strong>s áreas centrais,<br />
teria uma mobili<strong>da</strong>de maior, mesmo que fosse somente para olhar e não<br />
consumir bens.<br />
O estu<strong>da</strong>nte Márcio desloca-se diariamente para trabalhar e estu<strong>da</strong>r por meio de<br />
transporte coletivo, não tendo grandes dificul<strong>da</strong>des, como a estu<strong>da</strong>nte <strong>da</strong><br />
periferia pobre, pois reside mais próximo <strong>da</strong> área central onde a freqüência desse<br />
meio de transporte é maior, além de poder realizar percursos a pé para as<br />
ativi<strong>da</strong>des de lazer.<br />
A desemprega<strong>da</strong> Maria de Fátima, por residir em uma área de fácil acessibili<strong>da</strong>de,<br />
realiza os percursos a pé, não necessitando pagar o transporte coletivo, já que a<br />
sua situação socioeconômica não possibilita custear esse meio de deslocamento.<br />
O idoso Senhor Afonso desloca-se muito a pé em razão <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de que<br />
desenvolve para complementar sua ren<strong>da</strong>. Vende bilhetes de loteria e, para ele,<br />
se não fosse a possibili<strong>da</strong>de de ir e vir a pé propicia<strong>da</strong> pela área em que reside,<br />
não poderia trabalhar com essa ativi<strong>da</strong>de, pois, assim como o Senhor Francisco,<br />
ele não utiliza o transporte coletivo, mesmo que para ele este seja gratuito em<br />
razão <strong>da</strong>s mesmas justificativas que esse outro senhor também apresentou.<br />
O portador de deficiência física Paulo tem uma mobili<strong>da</strong>de reduzi<strong>da</strong> pelo fato de<br />
não conseguir deslocar-se sozinho, o que o faz dependente de um familiar. É<br />
também o que ocorre com a portadora dessa deficiência Zilá, já cita<strong>da</strong><br />
anteriormente. A diferença entre eles está no meio de deslocamento utilizado. Ele<br />
sempre é conduzido por amigos em veículos particulares ou por meio de<br />
transporte público, como ambulâncias ou peruas <strong>da</strong> Prefeitura Municipal, para a<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
realização <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des esportivas e atendimento médico. Assim, tem mais<br />
acessibili<strong>da</strong>de que ela, podendo realizar ativi<strong>da</strong>des esportivas e de lazer,<br />
enquanto ela realiza os seus deslocamentos prioritariamente para trabalhar. Na<br />
ver<strong>da</strong>de, entendemos que o que os diferencia não é a situação socioecômica, mas<br />
a situação espacial em que se encontram, bem como o fato dele ser contemplado<br />
por uma política pública que <strong>of</strong>erece transporte coletivo para os portadores de<br />
deficiência realizarem alguns deslocamentos e ativi<strong>da</strong>des, como, por exemplo, a<br />
prática de esportes. Paulo é autônomo e realiza sua função pr<strong>of</strong>issional na sua<br />
casa, enquanto Zilá tem que cumprir horários em um local de trabalho público,<br />
fato que não permite a ela uma flexibili<strong>da</strong>de para realização de outras ativi<strong>da</strong>des.<br />
O deslocamento principal é para trabalhar e, para isso, não é contempla<strong>da</strong> por<br />
uma política pública.<br />
Quando o deslocamento é feito por meio de veículos privados, a mobili<strong>da</strong>de é<br />
maior e a acessibili<strong>da</strong>de se efetiva. Os entrevistados motorizados, com ren<strong>da</strong> mais<br />
eleva<strong>da</strong> e residentes em área central ou próxima a ela, ou ain<strong>da</strong>, em loteamentos<br />
fechados, permitiram-nos verificar que a condição socioeconômica alia<strong>da</strong> ao fácil<br />
deslocamento por meio de veículo próprio possibilita a realização de um número<br />
maior de ativi<strong>da</strong>des e uma maior acessibili<strong>da</strong>de à ci<strong>da</strong>de.<br />
No caso <strong>da</strong> mulher trabalhadora Eliane, a mobili<strong>da</strong>de e a realização de diferentes<br />
ativi<strong>da</strong>des é bem semelhante à <strong>da</strong> dona-de-casa Vera, justamente pelo maior<br />
poder aquisitivo e pela utilização de veículo próprio. Ambas residem em<br />
loteamentos fechados.<br />
Essa dona-de-casa, ao contrário <strong>da</strong>s duas outras donas de casa (Irail<strong>da</strong>, <strong>da</strong><br />
periferia pobre, e Vilma, <strong>da</strong> área próxima ao centro), têm uma grande mobili<strong>da</strong>de<br />
para a realização de diversas ativi<strong>da</strong>des do seu dia-a-dia, propicia<strong>da</strong> pelo<br />
transporte privado e por sua condição socioeconômica.<br />
A estu<strong>da</strong>nte Zumira que compõe esse grupo, apesar de ter um dia-a-dia bastante<br />
preenchido com ativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> sua pr<strong>of</strong>issão e com o seu estudo, desloca-se<br />
facilmente, não tendo grandes dificul<strong>da</strong>des para ir e vir. Na fase de realização de<br />
estágios exigidos pelo curso que está fazendo, tem uma agen<strong>da</strong> bastante cheia e,<br />
para poder realizar to<strong>da</strong>s as suas ativi<strong>da</strong>des, tem sido fun<strong>da</strong>mental o fato de<br />
possuir um meio de deslocamento próprio, o que facilita seu ir e vir com<br />
agili<strong>da</strong>de.<br />
Entrevistamos um desempregado, Eduardo, que reside em um condomínio<br />
fechado, possui veículo próprio e que também desloca-se facilmente,<br />
basicamente para estu<strong>da</strong>r e consumir bens e serviços, já que outras ativi<strong>da</strong>des<br />
não são realiza<strong>da</strong>s em razão de sua situação econômica no momento.<br />
O idoso Senhor Lourival possui uma boa condição socioeconômica e um veículo<br />
próprio para realizar algumas ativi<strong>da</strong>des, que, segundo ele, são suficientes. Não<br />
realiza uma grande mobili<strong>da</strong>de freqüentemente, mas também não pode ser<br />
caracterizado por uma simples imobili<strong>da</strong>de. Assim, essa menor mobili<strong>da</strong>de é<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
66
67<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
decorrência de sua i<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s deman<strong>da</strong>s e interesses que ele julga serem<br />
necessários satisfazer nessa fase <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Uma outra diferença é notável entre o portador de deficiência física desse grupo<br />
Manoel, pois, mesmo com poder aquisitivo, não o é tão mais elevado que o dos<br />
outros dois portadores de deficiência física (Zilá, <strong>da</strong> periferia pobre, e Paulo, <strong>da</strong><br />
área próxima ao centro). Por possuir um veículo próprio a<strong>da</strong>ptado, possui<br />
também maior mobili<strong>da</strong>de, não dependendo de alguém para conduzir sua<br />
cadeira. Essa condição possibilita que ele trabalhe e desfrute de ativi<strong>da</strong>des<br />
esportivas e de lazer, tendo uma boa acessibili<strong>da</strong>de.<br />
No que diz respeito às entrevista<strong>da</strong>s que residem em ci<strong>da</strong>des vizinhas à<br />
Presidente Prudente, destacamos que a entrevista<strong>da</strong> Rose, residente em<br />
Pirapozinho, que se desloca diariamente pra trabalhar por meio de transporte<br />
público para Presidente Prudente, também tem um fácil acesso a essa ci<strong>da</strong>de<br />
quando precisa de bens e serviços que não encontra na sua. Não há problema em<br />
residir lá pois o tempo necessário para o deslocamento entre essas ci<strong>da</strong>des é<br />
também menor que entre alguns dos bairros de Presidente Prudente. Além disso,<br />
essa entrevista<strong>da</strong> possui uma grande mobili<strong>da</strong>de em Presidente Prudente,<br />
freqüentando-a constantemente para a realização de ativi<strong>da</strong>des de lazer e visitas<br />
familiares, utilizando o transporte coletivo e o serviço de moto-táxi.<br />
A estu<strong>da</strong>nte Celina, residente em Álvares Machado, desloca-se diariamente pra<br />
estu<strong>da</strong>r por meio de transporte coletivo para estu<strong>da</strong>r, realizando basicamente<br />
apenas esse trajeto e algumas vezes um percurso até o centro ou ao shopping <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de para consumir algum bem. Ela não possui uma mobili<strong>da</strong>de no interior <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de, mas possui uma mobili<strong>da</strong>de interurbana, já que o deslocamento que<br />
realiza entre a ci<strong>da</strong>de de sua residência e o local de estudos é mais rápido que no<br />
espaço interno de Presidente Prudente. Segundo ela há boas condições para<br />
residir em uma ci<strong>da</strong>de pequena e, quando necessita, desloca-se facilmente para a<br />
ci<strong>da</strong>de maior.<br />
Já a entrevista<strong>da</strong> Dona Marta, residente em Regente Feijó, que se desloca<br />
algumas vezes para Presidente Prudente por meio de veículo próprio, poderia ter<br />
uma mobili<strong>da</strong>de maior, mas não tem, já que vem à ci<strong>da</strong>de para ir a pontos<br />
específicos, sendo que seus deslocamentos são maiores e mais freqüentes na<br />
ci<strong>da</strong>de de origem, onde ela, também como as demais, realiza a maioria do<br />
consumo de bens e serviços.<br />
Para esse grupo constituído por residentes em ci<strong>da</strong>des vizinhas a mobili<strong>da</strong>de e a<br />
acessibili<strong>da</strong>de que se estabelecem realizam-se na escala interurbana, salientando<br />
que as distâncias entre essas ci<strong>da</strong>des e Presidente Prudente é relativamente<br />
pequena 14 , sendo os deslocamentos realizados em tempo menor<br />
comparativamente ao necessário entre algumas áreas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />
Os deslocamentos cotidianos <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong> população são para o exercício do<br />
trabalho e, dependendo do tamanho <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> diferenciação socioespacial<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
existente, seus citadinos têm suas mobili<strong>da</strong>des afeta<strong>da</strong>s já que, para as grandes<br />
distâncias, é necessária a utilização de transporte público que, na maioria dos<br />
casos, é insuficiente e caro, restringindo o uso.<br />
Os segmentos de menor poder aquisitivo e que residem nas áreas mais distantes<br />
procuram outras alternativas, como o uso <strong>da</strong> bicicleta, a caminha<strong>da</strong>, ou até<br />
mesmo o pedido de carona aos que possuem veículo próprio, para que possam<br />
deslocar-se para o trabalho e para pagamento de contas e algum consumo<br />
esporádico em áreas centrais, quando isso é possível. Em outros casos, a<br />
imobili<strong>da</strong>de pode predominar se não houver uma ativi<strong>da</strong>de obrigatória a cumprir,<br />
como o trabalho. Nestas condições, outras ativi<strong>da</strong>des podem até mesmo<br />
deixarem de ser realiza<strong>da</strong>s, como, por exemplo, estu<strong>da</strong>r, freqüentar parques e<br />
praças públicas ou simplesmente circular pelos espaços <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Para muitos,<br />
utilizar-se do espaço urbano e por ele circular está relacionado com o consumo de<br />
bens e serviços, ain<strong>da</strong> que sejam também importantes os tipos de circulação<br />
relativos à vi<strong>da</strong> urbana, em seu sentido mais amplo, ou seja, aqueles que<br />
propiciam a apropriação do espaço urbano para a vi<strong>da</strong> social e política.<br />
Diante <strong>da</strong>s considerações realiza<strong>da</strong>s, apresentamos, a seguir, uma análise sobre a<br />
mobili<strong>da</strong>de dos entrevistados, com intuito de avaliar se ela é facilita<strong>da</strong> ou<br />
dificulta<strong>da</strong>.<br />
Mobili<strong>da</strong>de e acessibili<strong>da</strong>de: para todos?<br />
Abor<strong>da</strong>mos, em nossa análise, a importância de uma mobili<strong>da</strong>de que seja eficaz e<br />
permita a ocorrência <strong>da</strong> acessibili<strong>da</strong>de. Essa acessibili<strong>da</strong>de deve estar associa<strong>da</strong> à<br />
estruturação urbana que se estabelece em diferentes contextos para que assim,<br />
haja de fato a possibili<strong>da</strong>de de exercício do direito à ci<strong>da</strong>de.<br />
Será que todos os citadinos possuem uma mobili<strong>da</strong>de que lhes permita a<br />
acessibili<strong>da</strong>de?<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
[…] ¿Cuáles son los benefícios que podría <strong>of</strong>recer la movili<strong>da</strong>d<br />
al ser urbano? Veamos algunos de los más importantes:<br />
a)La movili<strong>da</strong>d aumenta las posibili<strong>da</strong>des de trabajo; la gran<br />
ciu<strong>da</strong>d, con sus economías de aglomeración, <strong>of</strong>rece al<br />
individuo una amplia gama de trabajos, la movili<strong>da</strong>d del<br />
individuo dentro de la ciu<strong>da</strong>d <strong>of</strong>rece la posibili<strong>da</strong>d de elegiar<br />
entre éstas la más adecua<strong>da</strong> a sus deseos y aptitudes.<br />
b)La movili<strong>da</strong>d va a <strong>da</strong>r más oportuni<strong>da</strong>des de acceso a los<br />
lugares de entretenimiento.<br />
c)Uno de los beneficios más importantes de la movili<strong>da</strong>d es el<br />
aumento del tiempo disponible: tiempo-trabajo y tiempo-ocio.<br />
68
69<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
Las ventajas del aumento del tiempo son claras, disminuición<br />
de costes, aumento de producción, etc.<br />
d)Aumento del espacio disponible es otra de las ventajas,<br />
espacio-trabajo, espacio-entretenimiento, espacio-escuela,<br />
etc. La movili<strong>da</strong>d <strong>da</strong> la oportuni<strong>da</strong>d de poder utilizar to<strong>da</strong> esa<br />
serie de espacios (LORCA, 1971, p. 18).<br />
De acordo com os apontamentos destacados, podemos avaliar a importância <strong>da</strong><br />
mobili<strong>da</strong>de para o funcionamento do sistema urbano, bem como para a<br />
reprodução social, uma vez que os indivíduos necessitam realizar constantes<br />
deslocamentos para satisfazer necessi<strong>da</strong>des referentes a essa reprodução.<br />
Sabemos, porém, que a efetivação dessa mobili<strong>da</strong>de nem sempre acontece de<br />
forma simples e adequa<strong>da</strong>, estando relaciona<strong>da</strong> com inúmeras determinações<br />
políticas, sociais e econômicas.<br />
No lado prático, o processo de reprodução requer mobili<strong>da</strong>de<br />
física para realizar as ativi<strong>da</strong>des. Ele também implica a<br />
disponibili<strong>da</strong>de de meios de transporte, seja os meios nãomotorizados<br />
e pessoais (a pé, de bicicleta), seja os meios<br />
motorizados, públicos ou privados. Finalmente, implica a<br />
ligação física e temporal adequa<strong>da</strong> entre os meios de<br />
transporte e os destinos desejados. Portanto, o processo de<br />
reprodução é uma combinação entre meios pessoais, o<br />
sistema de circulação e os destinos desejados. Isso requer<br />
uma melhor compreensão <strong>da</strong>s diferenças entre uma visão<br />
simplista <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de pessoal e uma visão mais abrangente<br />
<strong>da</strong> acessibili<strong>da</strong>de (VASCONCELLOS, 2001, p. 40).<br />
A mobili<strong>da</strong>de, como um fim a ser obtido por um meio de transporte, varia de<br />
acordo com o meio em que ela é realiza<strong>da</strong>. Em alguns casos e situações podemos<br />
nos movimentar, movermo-nos pelo espaço urbano a pé, para realizar algumas<br />
ativi<strong>da</strong>des. À medi<strong>da</strong> que a extensão territorial desse espaço se amplia e parte dos<br />
equipamentos coletivos ain<strong>da</strong> permanece centraliza<strong>da</strong>, faz-se necessário o<br />
deslocamento por meio de transporte motorizado. Esses meios podem ser<br />
públicos e coletivos ou privados e individuais de acordo com a ren<strong>da</strong> dos usuários,<br />
sendo que, a <strong>of</strong>erta, quali<strong>da</strong>de, eficiência e o tempo de deslocamento entre eles<br />
serão bastante diferenciados, implicando em menor grau de acessibili<strong>da</strong>de dos<br />
que dependem do transporte coletivo.<br />
Nesse sentido, nem sempre a mobili<strong>da</strong>de possibilita a acessibili<strong>da</strong>de. Para que a<br />
equiparação entre mobili<strong>da</strong>de e acessibili<strong>da</strong>de ocorra é necessária uma adequa<strong>da</strong><br />
política de transportes atrela<strong>da</strong> ao planejamento e às políticas urbanas, de modo<br />
a favorecer a melhoria e a eficácia dos deslocamentos por meio de transporte<br />
público coletivo, contribuindo para que o acesso aos equipamentos de uso<br />
coletivo e aos espaços para as realizações <strong>da</strong>s diferentes funções e ativi<strong>da</strong>des seja<br />
adequado, o que garante essa condição principalmente para os segmentos que se<br />
utilizam desse meio e que se encontram ca<strong>da</strong> vez mais afastados <strong>da</strong> área central.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
Vasconcellos (2001) salienta que a mobili<strong>da</strong>de, na visão tradicional, refere-se<br />
meramente ao ato de movimentar-se de acordo com condições físicas e<br />
econômicas. Esta visão deixa a idéia incorreta de que a política de transporte<br />
deveria aumentar o número de meios de transporte, atendendo aos preceitos <strong>da</strong><br />
modernização capitalista, segundo os quais o tempo, como valor econômico, é<br />
ca<strong>da</strong> vez mais presente. Já a acessibili<strong>da</strong>de é entendi<strong>da</strong> como a mobili<strong>da</strong>de para a<br />
realização <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des para a reprodução, ou seja, não é simplesmente<br />
movimentar-se, mas chegar aos destinos desejados. Nesse sentido, com um<br />
enfoque mais amplo que o <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de, ao se tratar de acessibili<strong>da</strong>de,<br />
considera-se que há uma conexão entre a <strong>of</strong>erta do sistema de circulação e a<br />
estrutura urbana, e ela refere-se ao modo como o indivíduo pode usar o espaço<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />
De acordo com a estruturação que se estabelece em ca<strong>da</strong> espaço urbano, poderá<br />
haver aumento ou redução nos deslocamentos para a realização de determina<strong>da</strong>s<br />
funções segundo a localização <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des no interior <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, conforme suas<br />
áreas centrais e as mais periféricas.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
La dispersión de la localización de trabajos y vivien<strong>da</strong>s puede<br />
teóricamente llevar a minimizar el tiempo (o distancia) medio<br />
de viaje pero también puede llegar a maximizarlo<br />
dependiendo de cuáles sean los orígenes y destinos de los<br />
desplazamientos. El policentrismo, a pesar de desconcentrar<br />
los empleos y residencias a lo largo del territorio <strong>of</strong>rece<br />
ventajas de proximi<strong>da</strong>d local que reducen tanto el tiempo<br />
como la distancia de los viajes. Sin embargo, esta ventaja se<br />
diluye si la densi<strong>da</strong>d de los subcentros es reduci<strong>da</strong> [...]<br />
(GUERRERO, 2003, p. 33-34).<br />
A constituição de subcentros é considera<strong>da</strong>, no caso do policentrismo, como um<br />
tipo de estruturação que se faz presente em muitas ci<strong>da</strong>des, tanto européias<br />
quanto latino-americanas, e que, a nosso ver, poderia contribuir para facilitar a<br />
acessibili<strong>da</strong>de aos meios de consumo coletivo, à medi<strong>da</strong> que eles fossem sendo<br />
descentralizados nesses vários núcleos urbanos, e para ampliar e melhorar a<br />
eficácia <strong>da</strong> circulação, já que os fluxos não precisariam ser todos para a área<br />
central. Isso não quer dizer que a mobili<strong>da</strong>de tenha que ser propicia<strong>da</strong> somente<br />
nas imediações desses núcleos, mas a utilização desses subcentros estaria<br />
atrela<strong>da</strong> a uma acessibili<strong>da</strong>de para a ci<strong>da</strong>de como um todo, por meio de um<br />
sistema de transporte público eficaz e mais descentralizado, comparativamente à<br />
constituição de sistemas de transporte coletivo exclusivamente radiais, cujos<br />
fluxos convergem somente para a área central principal.<br />
Associado a isso poder-se-ia “[...] incrementar los niveles de densi<strong>da</strong>d residencial;<br />
y la adopción de políticas de transporte que proporcionen un sistema de servicios<br />
públicos alternativo al transporte privado [...] así como desincentivar el uso del<br />
automóvil” (GUERRERO, 2003, p. 31).<br />
70
71<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
Outra medi<strong>da</strong> importante para propiciar a acessibili<strong>da</strong>de é ampliar as<br />
oportuni<strong>da</strong>des de uso do transporte público pelos segmentos carentes e que se<br />
encontram distanciados <strong>da</strong>s áreas melhor servi<strong>da</strong>s de meios de consumo coletivo.<br />
Para Lorca (1971), seria interessante se houvesse reduções <strong>da</strong>s tarifas de<br />
transporte nos horários de pico para beneficiar a classe trabalhadora que se utiliza<br />
basicamente desse meio para se deslocar. A redução <strong>da</strong>s tarifas, um maior<br />
conforto, maior veloci<strong>da</strong>de e flexibili<strong>da</strong>de fariam com que o transporte coletivo<br />
fosse mais atrativo, podendo contribuir para uma menor utilização do transporte<br />
individual e privado, o que implicaria na melhoria do tráfego, na diminuição dos<br />
tempos médios de deslocamento e na quali<strong>da</strong>de do ar.<br />
Sousa (2003) analisou a mobili<strong>da</strong>de e a acessibili<strong>da</strong>de dos moradores de um bairro<br />
de baixa ren<strong>da</strong> que se utilizam do transporte coletivo na área suburbana de<br />
Guarulhos, indicando que a mobili<strong>da</strong>de está vincula<strong>da</strong> a aspectos<br />
socioeconômicos e a acessibili<strong>da</strong>de está relaciona<strong>da</strong> ao uso do solo e à forma<br />
urbana, que se referem ao processo de funcionamento <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Ele ressalta que<br />
os entrevistados utilizam o transporte coletivo para trabalhar na área central de<br />
Guarulhos ou em São Paulo. Na ci<strong>da</strong>de de São Paulo, uma pessoa que se desloca<br />
por meio de transporte privado ocupa oito vezes o espaço físico de uma pessoa<br />
que utiliza o transporte coletivo no horário de pico, ocorrendo uma apropriação<br />
desigual do território <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, gerando um desequilíbrio na circulação e no uso<br />
do espaço urbano. Nessa ci<strong>da</strong>de, houve também uma diminuição no uso do<br />
transporte coletivo e um aumento no transporte individual a partir dos anos de<br />
1990, resultado <strong>da</strong> inserção do transporte alternativo. O índice de mobili<strong>da</strong>de tem<br />
caído, mesmo com o aumento do transporte privado, devido ao baixo<br />
investimento em transporte coletivo, aumento no preço <strong>da</strong>s tarifas, aumento do<br />
desemprego e má ocupação do solo (SOUSA, 2003).<br />
Segundo esse autor, a mobili<strong>da</strong>de faz parte <strong>da</strong>s pré-condições do<br />
desenvolvimento político e cultural de um povo, pois as pessoas necessitam estar<br />
em constante movimento para realizar diferentes funções como trabalho, lazer,<br />
educação, práticas religiosas, consumo de bens e serviços. A mobili<strong>da</strong>de está<br />
vincula<strong>da</strong> à ren<strong>da</strong> que define o tipo de transporte a ser utilizado e as diferentes<br />
acessibili<strong>da</strong>des.<br />
Merlin, apud Sousa (2003), fez uma distinção entre as mobili<strong>da</strong>des realiza<strong>da</strong>s no<br />
espaço urbano, classificando-a em quatro grupos, que são:<br />
- mobili<strong>da</strong>de residencial: é a circulação entre o local de<br />
moradia em direção a qualquer outro ponto em meio a um<br />
mesmo espaço urbano. É o desejo de a<strong>da</strong>ptar as<br />
características do local às necessi<strong>da</strong>des familiares;<br />
- mobili<strong>da</strong>de ocasional: não obedece um período<br />
determinado. Os motivos são: pr<strong>of</strong>issional, lazer, visita a<br />
parentes, etc.;<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
- mobili<strong>da</strong>de semanal: está relaciona<strong>da</strong> aos trabalhadores e<br />
estu<strong>da</strong>ntes que exercem ativi<strong>da</strong>des longe de suas<br />
residências, repetindo-se as viagens semanalmente;<br />
- mobili<strong>da</strong>de quotidiana: é quase obrigatória. É o circuito de<br />
ligação diário entre o local de moradia e os locais de<br />
trabalho e escola (SOUSA, 2003, p. 32-33).<br />
Sousa (2003) também retrata o movimento pendular como forma de mobili<strong>da</strong>de<br />
entre moradores de áreas distantes e desprovidos de condições adequa<strong>da</strong>s para a<br />
vi<strong>da</strong> urbana, em direção às centrais, em busca de bens e equipamentos de uso<br />
coletivo.<br />
A acessibili<strong>da</strong>de é o acesso fácil, quali<strong>da</strong>de do que é acessível. A falta de<br />
acessibili<strong>da</strong>de no transporte coletivo está associa<strong>da</strong> às grandes distâncias e longas<br />
viagens. O tempo é o momento ou a ocasião apropria<strong>da</strong> para que um fato se<br />
realize. A pouca acessibili<strong>da</strong>de no transporte está associa<strong>da</strong> ao tempo excessivo<br />
de execução de uma viagem. Trata-se <strong>da</strong> relação tempo-espaço (SOUSA, 2003, p.<br />
40).<br />
A acessibili<strong>da</strong>de aos equipamentos de uso coletivo pode ser prejudica<strong>da</strong> se a<br />
mobili<strong>da</strong>de para essas áreas não for eficaz o que dependerá do meio de<br />
transporte utilizado.<br />
A mobili<strong>da</strong>de e a acessibili<strong>da</strong>de estão atrela<strong>da</strong>s ao uso de meios de transporte,<br />
considerando a relação espaço-tempo, e se encontram vincula<strong>da</strong>s à estruturação<br />
urbana, que deve ser resultado de políticas e planejamento que direcionam o uso<br />
do solo, mas, na maior parte dos casos, como o de Presidente Prudente, resultam<br />
sobretudo <strong>da</strong>s iniciativas e interesses dos agentes privados. O planejamento<br />
urbano deve priorizar os interesses coletivos e deve estar associado à<br />
estruturação do sistema de transporte público, que proporcione a acessibili<strong>da</strong>de à<br />
ci<strong>da</strong>de, considerando as diferentes áreas onde se localizam as ativi<strong>da</strong>des de<br />
trabalho, educação, saúde, lazer, comércio e serviços. Quando a acessibili<strong>da</strong>de<br />
não é favoreci<strong>da</strong> fortalece-se ain<strong>da</strong> mais a diferenciação socioespacial.<br />
Vasconcellos (2001) avalia a acessibili<strong>da</strong>de a partir <strong>da</strong> <strong>of</strong>erta de linhas de<br />
transportes públicos para os usuários freqüentes e <strong>da</strong> densi<strong>da</strong>de de vias para os<br />
usuários de automóveis privados, o que determina o tempo de espera e de<br />
viagem.<br />
Por meio dessas considerações sobre mobili<strong>da</strong>de e acessibili<strong>da</strong>de e avaliando os<br />
deslocamentos realizados pelos entrevistados em nosso trabalho, já descritos no<br />
item 3, podemos inferir que:<br />
72
73<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
A) De maneira geral, os residentes na periferia pobre (Jardim Mora<strong>da</strong> do Sol,<br />
Conjunto Habitacional Brasil Novo, Parque José Rota e Jardim Humberto Salvador)<br />
possuem uma mobili<strong>da</strong>de reduzi<strong>da</strong>, que está diretamente relaciona<strong>da</strong> ao:<br />
- cumprimento <strong>da</strong> função trabalho por meio de transporte público, como é o<br />
caso <strong>da</strong> mulher trabalhadora Rosa, <strong>da</strong> estu<strong>da</strong>nte Leide e <strong>da</strong> portadora de<br />
deficiência física Zilá; e<br />
- deslocamento para a realização de algumas ativi<strong>da</strong>des não tão freqüentes<br />
como pagamentos de contas e visitas familiares, no caso do desempregado<br />
Senhor Olegário, que se desloca por meio <strong>da</strong> sua bicicleta, e do idoso Senhor<br />
Francisco, que se desloca a pé para a realização do consumo de bens e<br />
serviços.<br />
Já a dona-de-casa Irail<strong>da</strong>, possui uma quase imobili<strong>da</strong>de, em função <strong>da</strong> não<br />
realização de qualquer função fora de sua residência, <strong>da</strong> distância em que se<br />
encontra e dos custos para se deslocar.<br />
Assim, para esse grupo, além <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de reduzi<strong>da</strong> não há uma acessibili<strong>da</strong>de à<br />
ci<strong>da</strong>de.<br />
B) Os residentes <strong>da</strong>s áreas mais próximas ao centro (Jardim Paulista, Vila Santa<br />
Tereza, Vila Iolan<strong>da</strong>, Jardim Itapura, Parque Furquim e Vila Malaman) possuem<br />
uma mobili<strong>da</strong>de maior, que está relaciona<strong>da</strong> à:<br />
- i<strong>da</strong> ao trabalho, por meio do transporte coletivo, para a mulher trabalhadora<br />
Dona Antônia, e para o estu<strong>da</strong>nte Márcio, que também o utiliza para<br />
estu<strong>da</strong>r;<br />
- realização de diferentes ativi<strong>da</strong>des e funções, pela desemprega<strong>da</strong> Maria de<br />
Fátima, que se desloca sempre a pé; e<br />
- complementação <strong>da</strong> ren<strong>da</strong>, pelo idoso Senhor Afonso, que também se<br />
desloca a pé.<br />
O portador de deficiência física Paulo têm uma mobili<strong>da</strong>de mais reduzi<strong>da</strong>,<br />
deslocando-se sempre com aju<strong>da</strong> de um familiar ou amigo para a realização de<br />
ativi<strong>da</strong>des de lazer, esportivas e de outros serviços. A dona-de-casa Vilma, mesmo<br />
residindo em área relativamente próxima à central, desloca-se muito pouco.<br />
Nesse grupo podemos dizer que a mulher trabalhadora Dona Antônia, o<br />
estu<strong>da</strong>nte Márcio e a desemprega<strong>da</strong> Maria de Fátima possuem uma maior<br />
mobili<strong>da</strong>de, como também uma acessibili<strong>da</strong>de à ci<strong>da</strong>de, diante <strong>da</strong>s condições<br />
socioespaciais dos mesmos. Em contraposição a eles, o idoso Senhor Afonso,<br />
apesar de seu potencial grau de mobili<strong>da</strong>de, não têm acessibili<strong>da</strong>de em função <strong>da</strong><br />
situação socioeconômica que, segundo ele, restringe seu acesso a alguns meios de<br />
consumo coletivo. O portador de deficiência física Paulo têm mobili<strong>da</strong>de e<br />
acessibili<strong>da</strong>de reduzi<strong>da</strong>s diante <strong>da</strong>s suas condições físicas e socioeconômicas. Uma<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
quase imobili<strong>da</strong>de é a característica marcante para a dona-de-casa Vilma,<br />
resultado <strong>da</strong> sua condição socioeconômica.<br />
C) No que diz respeito ao grupo constituído pelos entrevistados de maior poder<br />
aquisitivo, que possuem também veículo próprio, podemos ressaltar que, de<br />
maneira geral, todos eles possuem mobili<strong>da</strong>de e acessibili<strong>da</strong>de à ci<strong>da</strong>de, sendo<br />
beneficiados pela condição socioeconômica que possuem. Destacamos que o<br />
idoso Senhor Lourival têm menor mobili<strong>da</strong>de nesse grupo em função de circular<br />
menos, o que ele próprio considera uma opção para a fase de vi<strong>da</strong> em que se<br />
encontra, realizando os mínimos deslocamentos para as ativi<strong>da</strong>des que julga<br />
necessárias, como lazer, compras e outros serviços. Nesse caso não é a ren<strong>da</strong> nem<br />
a dificul<strong>da</strong>de de mobili<strong>da</strong>de que influenciam. O portador de deficiência física,<br />
Manoel, têm uma mobili<strong>da</strong>de e acessibili<strong>da</strong>de maior que os outros dois<br />
portadores (Zilá, <strong>da</strong> periferia pobre, e Paulo <strong>da</strong> área próxima ao centro), em razão<br />
de sua condição socioeconômica que possibilita que o mesmo tenha um meio de<br />
transporte próprio e a<strong>da</strong>ptado para realizar seus deslocamentos.<br />
D) As pessoas residentes em ci<strong>da</strong>des vizinhas têm mobili<strong>da</strong>de e acessibili<strong>da</strong>de<br />
para a ci<strong>da</strong>de de Presidente Prudente sem grandes dificul<strong>da</strong>des de deslocamento.<br />
A mobili<strong>da</strong>de no interior desta é maior para a entrevista<strong>da</strong> Rose, que se desloca<br />
todos os dias para trabalhar. As três entrevista<strong>da</strong>s se utilizam mais do espaço<br />
urbano <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de origem, que são ci<strong>da</strong>des pequenas, para o consumo de bens<br />
e serviços, em comparação à freqüência com que realizam este tipo de ativi<strong>da</strong>de<br />
em Presidente Prudente, que é uma ci<strong>da</strong>de média. A ci<strong>da</strong>de de destino é utiliza<strong>da</strong><br />
por Rose para a realização <strong>da</strong> sua ativi<strong>da</strong>de pr<strong>of</strong>issional, além do consumo de<br />
alguns bens e de algumas áreas de lazer. A estu<strong>da</strong>nte Celina têm como objetivo<br />
principal cursar a <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong>, não realizando um consumo considerável de<br />
mercadorias e <strong>da</strong>s áreas de lazer. Marta, apesar <strong>da</strong> fácil acessibili<strong>da</strong>de por meio<br />
de transporte próprio, não consome prioritariamente em Presidente Prudente.<br />
Consideramos que é necessária e urgente a efetivação de políticas públicas de<br />
transporte urbano que permitam a acessibili<strong>da</strong>de dos citadinos à ci<strong>da</strong>de para a<br />
realização <strong>da</strong>s suas mais diferentes ativi<strong>da</strong>des que se encontram dispersas pelo<br />
espaço urbano. Sabemos que a maior determinante é a diferença de ren<strong>da</strong>,<br />
portanto, uma <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s que poderia viabilizar a acessibili<strong>da</strong>de é a<br />
diferenciação de tarifas de acordo com o poder aquisitivo <strong>da</strong> população. Os de<br />
menor ren<strong>da</strong> precisam receber subsídios para utilizar o meio de transporte<br />
público, que deve ser eficiente e atender à deman<strong>da</strong> existente de modo a tornarse<br />
mais atrativo que os meios de deslocamento privados. Assim, ocorrerá a<br />
redução dos inúmeros problemas que são gerados com a presença massiva do<br />
automóvel.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
74
75<br />
Notas<br />
Mobili<strong>da</strong>de espacial e acessibili<strong>da</strong>de<br />
1 Esse texto é o primeiro capítulo <strong>da</strong> Tese de Doutorado intitula<strong>da</strong> “Percursos urbanos: mobili<strong>da</strong>de espacial,<br />
acessibili<strong>da</strong>de e o direito à ci<strong>da</strong>de”, defendi<strong>da</strong> em Junho de 2006 junto ao Programa de Pós-Graduação <strong>da</strong><br />
FCT/UNESP de Presidente Prudente-SP, sob orientação <strong>da</strong> Pr<strong>of</strong>essora Maria Encarnação Beltrão Sposito e com<br />
financiamento <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).<br />
2 Inicialmente faremos o uso do termo diferenciação para referenciarmos-nos ao processo social que se expressa<br />
no espaço urbano, para posteriormente nos posicionar em relação à adoção dos conceitos de segregação<br />
socioespacial e fragmentação urbana.<br />
3 Transporte realizado por meio dos tranvias, que são trens que circulam em vias férreas exclusivas, sobre o<br />
espaço urbano.<br />
4 É um tipo de planejamento proposto por Ildefonso Cerdà, em 1855, com a definição de traçados urbanísticos<br />
dispostos em quadrículas quase regulares, combinando ca<strong>da</strong> quarteirão com blocos de casas e áreas verdes, e<br />
outros para equipamentos coletivos, adotando disposições distintas entre esses blocos, convertendo a<br />
monotonia <strong>da</strong>s quadrículas em atrativos. Ele concebe o ensanche como uma grande ampliação artificial <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de antiga e leva em conta a circulação nessas vias.<br />
5 São os trens utilizados para o deslocamento entre Barcelona e outros municípios.<br />
6 Foi o segundo meio de transporte que surgiu, caracterizado por pequenos ônibus, que eram mais rápidos e<br />
também alugados para passeios aos povoados <strong>da</strong> província de Barcelona.<br />
7 Foi um tipo de ônibus utilizado na época que funcionava com eletrici<strong>da</strong>de.<br />
8 Sobre a formação histórica de Presidente Prudente, ver ABREU, Dióres Santos. Formação histórica de uma<br />
ci<strong>da</strong>de pioneira paulista: Presidente Prudente. Presidente Prudente: Facul<strong>da</strong>de de Filos<strong>of</strong>ia, Ciências e Letras de<br />
Presidente Prudente, 1972.<br />
9 Ver SPOSITO, Eliseu Savério. Produção e apropriação <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> fundiária urbana em Presidente Prudente.São<br />
Paulo: USP, 1990 (Tese de Doutorado em Geografia) e SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão. O chão em Presidente<br />
Prudente: a lógica de expansão territorial urbana. Rio Claro: IGCE/UNESP, 1983 (Mestrado em Geografia).<br />
10 De acordo com a Lei N o 10.741 de 1º de Outubro de 2003, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso, é considerado<br />
idosa pessoa com i<strong>da</strong>de igual ou superior a 60 anos.<br />
11 Apesar de poder se deslocar por transporte público sem pagá-lo, por ser idoso, ele disse que não se sente à<br />
vontade, sentindo-se constrangido pelas condições em que eles são transportados, devendo ficar restritos aos<br />
poucos assentos <strong>da</strong> frente (antes <strong>da</strong> catraca), muitas vezes sentindo que atrapalham a entra<strong>da</strong> de outros<br />
passageiros.<br />
12 É o ônibus que possui uma estrutura com uma base que é retrátil, rebaixa<strong>da</strong> até o nível <strong>da</strong> calça<strong>da</strong> e sob a qual<br />
o cadeirante se posiciona. O motorista do veículo coloca a trava de segurança e essa base é suspensa até o<br />
interior do ônibus. No interior do mesmo há também um espaço reservado para os cadeirantes permanecerem.<br />
13 Esse conceito será discutido no capítulo três.<br />
14 As distâncias aproxima<strong>da</strong>s entre Presidente Prudente e Pirapozinho são 19 km, e entre aquela e Álvares<br />
Machado são 12 km, e em relação a Regente Feijó são de 15 km.<br />
Referências<br />
FÁBREGAS, Simó. El automóvil. In: Colegio Oficial de Arquitectos de Cataluña y<br />
Baleares. Movili<strong>da</strong>d urbana. Barcelona: A.T.E., 1971, p. 37-51.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007
PEREIRA, S. R.<br />
GUERRERO, Rafael Sergio Porcar. La relación entre estructura urbana y movili<strong>da</strong>d<br />
obliga<strong>da</strong> residencia – trabajo. Teoría, evidencia e implicaciones en el diseño de<br />
políticas: el caso de la región metropolitana de Barcelona. 2003. Treball de<br />
recerca. Universi<strong>da</strong>d Autónoma de Barcelona, Barcelona.<br />
LORCA, Alejandro. Algunos aspectos del problema del transporte urbano. In:<br />
Colegio Oficial de Arquitectos de Cataluña y Baleares. Movili<strong>da</strong>d urbana,<br />
Barcelona (A.T.E.), 1971, p. 17-33.<br />
MACGREGOR, D. Ronald. Desplazamientos cotidianos: estudio de distancias y<br />
tiempos en el área de Edimburgo. In: THEODORSON, G. A. Estudios de ecología<br />
humana. Traducción de Javier González Pueyo. Barcelona: Editorial Labor, 1974.<br />
p. 437-449.<br />
OYÓN, José Luis. Transporte cara y crecimiento urbano. El trafico tranviario en<br />
Barcelona, 1872-1914. In: Ciu<strong>da</strong>d y Territorio, Madrid (Instituto Nacional de<br />
Administración pública), n. 94, 1992, p. 107-123.<br />
SOUSA, Marcos Timóteo Rodrigues. Uma abor<strong>da</strong>gem sobre o problema <strong>da</strong><br />
mobili<strong>da</strong>de e acessibili<strong>da</strong>de do transporte coletivo, o caso do bairro Jardim São<br />
João no município de Guarulhos-SP. 2003. Dissertação (Mestrado em Engenharia<br />
Civil), <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de Campinas, Campinas.<br />
VASCONCELLOS, Eduardo Alcântara. Transporte urbano, espaço e equi<strong>da</strong>de:<br />
análise <strong>da</strong>s políticas públicas. São Paulo: Annablume, 2001.<br />
E-mail para contato: silviarpereira@yahoo.com.br<br />
Recebido em: 06/06/2007<br />
Aprovado em: 30/06/2007<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 43-76, 2007<br />
76
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
JOVENS ANDARILHOS NO CURTO CICLO DO<br />
CAPITAL 1<br />
Alexandrina Luz Conceição<br />
Núcleo de Pós-graduação em Geografia <strong>da</strong> UFS<br />
Resumo<br />
Este artigo tem com objetivo refletir a inserção <strong>da</strong>s políticas públicas na<br />
perspectiva <strong>da</strong> fixação do jovem no campo. Parte-se do princípio de que o tripé<br />
Estado Capital e Mercado, antes de garantir a fixação do jovem na terra, acentua<br />
a sua expulsão <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de de produção familiar. O Estado impõe um discurso<br />
velado de submissão ao capital à medi<strong>da</strong> que favorece a crescente mobili<strong>da</strong>de do<br />
trabalho. Na situação de itinerantes tornam-se an<strong>da</strong>rilhos, indo onde tem<br />
trabalho e retornando para o campo quando acaba. Consumidores de<br />
mercadorias que garantem a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> reprodução do capital vivem no<br />
campo fetichizados no sonho <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de do consumo barato e supérfluo.<br />
Quando o dinheiro termina procuram retornar, se encontram outras<br />
possibili<strong>da</strong>des de trabalho. Na condição de sujeitos assujeitados ao capital<br />
aceitam qualquer tipo de contrato precarizado, parcial e temporário submetendose<br />
à irracionali<strong>da</strong>de do capital e à lógica do mercado.<br />
Palavras-chave: mobili<strong>da</strong>de do trabalho, políticas públicas, jovens,<br />
quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong>.<br />
Resumen<br />
Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre La inserción de políticas<br />
públicas en la perspectiva de fijación del joven en el campo. Partimos del principio<br />
de que el tripe Estado-Capital-Mercado antes de garantizar la fijación del joven en<br />
la tierra agudiza su expulsión de la uni<strong>da</strong>d de producción familiar. El Estado<br />
impone un discurso velado de sumisión al capital al mismo tiempo que favorece la<br />
creciente movili<strong>da</strong>d del trabajo. En la situación de itinerantes se vuelven lazarillos,<br />
yendo donde hay trabajo y regresando para el campo cuando este termina.<br />
Consumidores de mercancías que garantizan la continui<strong>da</strong>d de la reproducción del<br />
capital viven en el campo fetichizados en el sueño de la posibili<strong>da</strong>d de consumo<br />
barato y superfluo, cuando el dinero acaba intentan volver, si encuentran otras<br />
posibili<strong>da</strong>des de trabajo. En la condición de sujetos sujetados al capital, aceparan<br />
cualquier tipo de contrato precario, parcial y temporal sometiéndose a la<br />
irracionali<strong>da</strong>d del capital y a la lógica del mercado.<br />
Palabras-claves: movili<strong>da</strong>d del trabajo, políticas públicas, jóvenes, cali<strong>da</strong>d de vi<strong>da</strong>.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100, 2007
CONCEIÇÃO, A. L.<br />
Introdução<br />
Embora os discursos institucionais indiquem que tem sido objetivo governamental<br />
a implementação de projetos nas áreas rurais via fortalecimento <strong>da</strong> agricultura<br />
familiar para agricultores sem terra, através de políticas de: garantia de subsídios,<br />
assistência técnica e de crédito, principalmente a partir de 1996 com a instalação<br />
do Programa de Fortalecimento <strong>da</strong> Agricultura Familiar/PRONAF sob a égide do<br />
Banco Mundial, to<strong>da</strong>via há uma forte entonação de propostas para a integração<br />
<strong>da</strong> produção familiar ao mercado capitalista via fortalecimento de empresas<br />
rurais, desde o processo identificado como modernização do campo, com os I, II e<br />
III PND (Plano Nacional de Desenvolvimento).<br />
Compreendendo a dinâmica <strong>da</strong>s relações de produção do Brasil, na inserção <strong>da</strong><br />
mundialização do capital e conseqüentemente na reconfiguração <strong>da</strong> geopolítica<br />
mundial, as Políticas Públicas se inscrevem no campo mascarando os reordenamentos<br />
<strong>da</strong>s configurações <strong>da</strong> divisão social e territorial do trabalho sob o<br />
discurso dos novos paradigmas <strong>da</strong> modernização tecnológica como reguladores<br />
do espaço através <strong>da</strong>s relações de trabalho, tendo como propósito uma nova<br />
reestruturação produtiva.<br />
O carro chefe que sedimenta o discurso atual de apoio ao jovem no campo se<br />
circunscreve na política do PRONAF. A proposta do PRONAF Jovem como linha de<br />
financiamento específica, com taxas de juros e prazos de pagamento<br />
diferenciados, tem sido a de atender jovens entre 16 e 25 anos com o objetivo de<br />
incentivá-los a manterem-se no campo e iniciarem uma ativi<strong>da</strong>de produtiva que<br />
agregue ren<strong>da</strong> às suas famílias. Entretanto, o que se coloca em pauta é a contínua<br />
mobili<strong>da</strong>de do trabalho, principalmente desses jovens.<br />
Em busca dos caminhos nos descaminhos<br />
A partir de 1930 o Estado brasileiro tem assumido a condição de facilitador <strong>da</strong><br />
expansão monopolista do capital via políticas públicas estrutura<strong>da</strong>s para a<br />
ampliação e consoli<strong>da</strong>ção de uma política econômica de extração <strong>da</strong> mais valia,<br />
do trabalho excedente, através do re-ordenamento <strong>da</strong> divisão social e territorial<br />
do trabalho na relação campo-ci<strong>da</strong>de. Desse modo, sustenta<strong>da</strong>s na concepção<br />
clássica linear e na histórica de desenvolvimento e centra<strong>da</strong> na abor<strong>da</strong>gem<br />
funcionalista, as políticas públicas de planejamento tem acirrado o<br />
desenvolvimento desigual.<br />
A intervenção estatal na estrutura <strong>da</strong>s relações capital e trabalho transformou a<br />
estrutura regional centro-periferia tornando o país urbano. Isto se deu com um<br />
intenso processo de metropolização reproduzindo as desigual<strong>da</strong>des sociais em<br />
níveis locais e subregionais. Associa<strong>da</strong> a ideologia desenvolvimentista que se<br />
sustentava na metropolização houve uma forte divulgação do mito <strong>da</strong><br />
urbanização como modelo de desenvolvimento. As grandes ci<strong>da</strong>des passaram a<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100 2007<br />
78
79<br />
Jovens an<strong>da</strong>rilhos do ciclo curto do capital<br />
ser focos de concentrações populacionais em guetos, que passaram a reunir<br />
centenas e milhares de humanos, na sua grande maioria migrantes, pequenos<br />
produtores expulsos do campo frente à modernização agrícola.<br />
A partir dos anos de 1970 e 1980 a ideologia urbano-industrial, reflexo <strong>da</strong> política<br />
mundial, teve no Estado brasileiro o principal agente <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças para atender<br />
as exigências do novo modelo de desenvolvimento. O discurso <strong>da</strong> modernização<br />
sempre esteve associado ao sinônimo de civili<strong>da</strong>de. Contudo, como afirma<br />
NOVAES (2004), “a simples evocação <strong>da</strong> palavra civilização remete,<br />
necessariamente, ao seu outro, que é a barbárie” (2004:10). O saldo <strong>da</strong><br />
metropolização resultou no processo de intensa favelização. Conforme a ONU 2 em<br />
2001, 76% <strong>da</strong> população urbana dos países do primeiro mundo era favela<strong>da</strong>. No<br />
quadro mundial 84% vivia em favelas e apenas 6% tinha condições de quali<strong>da</strong>de<br />
de vi<strong>da</strong>.<br />
Expulsa do seu local de origem seguindo a trilha do capital, a classe trabalhadora é<br />
também expulsa do urbano nas áreas de valorização do solo. Sem condições<br />
mínimas de moradia lhe é reservado, por apropriação e luta, áreas sem<br />
valorização fundiária, desprovi<strong>da</strong>s dos serviços necessários para a reprodução <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>. Distante <strong>da</strong> relação do poder de deman<strong>da</strong> a classe pobre produz o espaço <strong>da</strong><br />
favela que revela o contraste do urbano a partir de uma paisagem/local marca<strong>da</strong><br />
pela materialização dos “barracos <strong>da</strong> miséria”. É no movimento de<br />
ocupação/expulsão/ocupação pelas diferentes classes sociais que se produz o<br />
urbano e o seu espaço <strong>da</strong> miséria (COSTA, SHIMADA e CONCEIÇÃO: 2006).<br />
O espaço <strong>da</strong> pobreza e <strong>da</strong> miséria está destinado aos migrantes vindos do campo<br />
para se “modernizarem”. A expansão capitalista no campo significou a garantia <strong>da</strong><br />
acumulação capitalista monopolista mundial sob o controle do Banco Mundial. A<br />
implementação de políticas e programas direcionados para o desenvolvimento<br />
regional voltados para as áreas rurais tinha como objetivo a instalação e expansão<br />
<strong>da</strong> agroindústria.<br />
O discurso <strong>da</strong> modernização do campo, ao tempo que reforça o processo <strong>da</strong><br />
monopolização e <strong>da</strong> territorialização do capital, acentua a expulsão dos<br />
camponeses <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de de produção familiar, à medi<strong>da</strong> que permite o processo<br />
de subsunção do trabalho ao capital. Desprovidos de possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> terra como<br />
condição de vi<strong>da</strong>, o Estado, pela coação, impõe um discurso velado <strong>da</strong> submissão<br />
ao capital à medi<strong>da</strong> que favorece a crescente mobili<strong>da</strong>de do trabalho.<br />
As estratégias de regionalização, sob a direção do Estado, tinham como propósito<br />
a institucionalização de macrorregiões a fim de neutralizar as oligarquias regionais<br />
e instalar as bases para a modernização, via instalação de pólos de crescimento<br />
que organizavam o território através de interligações de circuitos nacionais e<br />
internacionais de fluxos financeiros e de mercadorias.<br />
A partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1990 o Estado assume o papel de gestor e promotor<br />
implementando políticas agrícolas inscritas às novas formas de expansão<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100, 2007
CONCEIÇÃO, A. L.<br />
capitalista no auge <strong>da</strong> financeirização <strong>da</strong> economia, via o compromisso <strong>da</strong> dívi<strong>da</strong><br />
externa. A espetacularização se pautava no signo <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de industrial como<br />
condição única necessária para o progresso e desenvolvimento (CONCEIÇÃO,<br />
2006). As políticas nacionais de integração, os PNDs, foram solidifica<strong>da</strong>s na ci<strong>da</strong>de<br />
e no campo sob a dinâmica de <strong>of</strong>ertas de trabalho na especifici<strong>da</strong>de dos setores<br />
de bens de consumo e produção industrial. No Nordeste, sobremaneira, a<br />
constituição <strong>da</strong> SUDENE em sintonia com as políticas de integração nacional veio<br />
atender a deman<strong>da</strong> de bens não duráveis sob a dinâmica <strong>da</strong> formação de pólos de<br />
crescimento (OLIVEIRA, 2003), passando a fomentar a modernização do campo. A<br />
expansão capitalista via a dependência <strong>da</strong> indústria de fertilizantes, como o caso<br />
de Sergipe 3<br />
Na periferia <strong>da</strong> periferia as políticas <strong>da</strong> SUDENE irão reforçar a mobili<strong>da</strong>de<br />
crescente de jovens ao urbano, aumentando acelera<strong>da</strong>mente as populações<br />
urbanas, ao tempo que vão “engrossando” o estoque <strong>da</strong>s fileiras do exército de<br />
reserva industrial latente. Parte <strong>da</strong> população rural encontra-se continuamente na<br />
iminência de transferir-se para o urbano. Seu fluxo constante para as ci<strong>da</strong>des<br />
pressupõe uma contínua superpopulação latente no próprio campo. “O<br />
trabalhador rural é, por isso, rebaixado para o mínimo do salário e está sempre<br />
com um pé no pântano do pauperismo” (MARX, 1988, 199).<br />
Segundo Pereira (2005), entre 1990 e 2004, o Banco Mundial e o FMI assumiram<br />
uma política de controle para o campo na América Latina e consequentemente no<br />
Brasil implementando políticas em acordos com o Estado - nação a fim de garantir<br />
a liberalização <strong>da</strong>s economias nacionais, que apr<strong>of</strong>un<strong>da</strong>m a mercantilização <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> social e, de outro lado, a contra-reforma do Estado, que substitui seu papel<br />
redistributivo por políticas focaliza<strong>da</strong>s de “alívio” <strong>da</strong> pobreza que não alteram as<br />
bases <strong>da</strong> reprodução <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> exploração. O Banco Mundial e o FMI<br />
retornam o olhar para o campo visando:<br />
a) liberalizar os mercados fundiários eliminando as barreiras legais à livre compra<br />
e ven<strong>da</strong> e ao arren<strong>da</strong>mento de terras como parte dos programas de ajuste<br />
estrututural;<br />
c) <strong>da</strong>r resposta aos conflitos agrários e, em alguns casos, às ações de movimentos<br />
sociais pró-reforma agrária com o objetivo de garantir a segurança do capital;<br />
d) criar programas sociais compensatórios no campo em resposta aos efeitos<br />
socialmente regressivos <strong>da</strong>s políticas de ajuste estrutural;<br />
e) hegemonizar a mercantilização de modo a consoli<strong>da</strong>r o capitalismo financeiro,<br />
permitindo, via mercado, a saí<strong>da</strong> de produtores “ineficientes” e a entra<strong>da</strong> de<br />
produtores “eficientes” sob a ótica do capital agroindustrial. O objetivo é de<br />
aumentar o grau de mercantilização <strong>da</strong> terra via titulação priva<strong>da</strong>. Implica na<br />
concessão de títulos de proprie<strong>da</strong>de a posseiros com o objetivo prioritário de<br />
diminuir a informali<strong>da</strong>de no mercado de terras.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100 2007<br />
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81<br />
Ações e Intervenções no Campo<br />
Jovens an<strong>da</strong>rilhos do ciclo curto do capital<br />
Através de políticas assistencialistas compensatórias são acionados na América<br />
Latina desde a déca<strong>da</strong> de 1980, e no Brasil, na déca<strong>da</strong> de 1990, programas de<br />
“combate à pobreza”, como proposta de incorporação dos jovens ao mercado de<br />
trabalho. Programas, sob a coordenação de organismos internacionais, como o<br />
BID, ou, coordenados por instituições não governamentais, na implementação de<br />
programas de capacitação como parte do projeto de desenvolvimento<br />
estratégico. O Estado, como instituição de poder e controle de dominação de uma<br />
classe sobre outra sob a perspectiva do discurso <strong>da</strong> garantia <strong>da</strong> democratização e<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, em parceria com a socie<strong>da</strong>de civil implementam um conjunto de<br />
ações em escalas locais (governos municipais), regionais, no campo e na ci<strong>da</strong>de<br />
nas diferentes escalas, uma vez que se propõe levar em conta as especifici<strong>da</strong>des<br />
do país considerando as relações assimétricas acentua<strong>da</strong>s e perspectivas de<br />
inclusão e expulsão no mosaico <strong>da</strong>s políticas públicas para a juventude<br />
(CONCEIÇÃO, 2006).<br />
Nesta perspectiva, os discursos <strong>da</strong>s políticas públicas sustentam seus programas e<br />
projetos nos planos participativos de desenvolvimento territoriais via programas<br />
de geração de ren<strong>da</strong>, por meio <strong>da</strong> capacitação para o trabalho e <strong>da</strong><br />
implementação de projetos produtivos.<br />
Conforme estudos desenvolvidos 4 , só a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de<br />
1990 é que surgem no cenário brasileiro as discussões sobre políticas sociais com<br />
a preocupação com a juventude. A representação <strong>da</strong> juventude como problema<br />
social econômico ganha ampla dimensão na discussão de diversos segmentos <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de civil no âmbito <strong>da</strong> institucionali<strong>da</strong>de governamental, poder público e no<br />
setor privado. Estado e socie<strong>da</strong>de civil se articulam na produção de políticas<br />
públicas <strong>da</strong> juventude uma vez que a juventude passa a ser considera<strong>da</strong> um<br />
problema político, um estado de conflito ou ain<strong>da</strong> uma situação de crise,<br />
acionando o Estado para assumir ações e encontrar soluções para amenizar os<br />
conflitos ora deman<strong>da</strong>dos frente à situação de extrema exclusão que se<br />
estabelece desde o final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970 acentua<strong>da</strong> pelo crescente aumento <strong>da</strong><br />
taxa demográfica de jovens nascidos na América Latina (BANGO, 2003; SPOSITO,<br />
2003; NOVAES, 2003).<br />
Os percentuais demográficos passam a sinalizar uma alta deman<strong>da</strong> de jovens<br />
considerados necessários como força de trabalho provi<strong>da</strong> de alto poder de<br />
produção industrial face à garantia de um exército industrial de reserva<br />
possibilitador de uma crescente mais valia. A produção capitalista estrutura<strong>da</strong> no<br />
mecanismo produtivo em bases taylorista/fordista exigia na América Latina a<br />
transferência de valoração em uma faixa etária mais qualifica<strong>da</strong>, permiti<strong>da</strong> por<br />
uma transferência de recursos ao sistema educacional viabiliza<strong>da</strong> pelo Estado<br />
nação.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100, 2007
CONCEIÇÃO, A. L.<br />
O sistema do metabolismo societal do capital, a mais expressiva e poderosa<br />
estrutura dominante <strong>da</strong> história <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, se constitui no tripé composto por<br />
capital - trabalho – Estado, forma indissociável, interliga<strong>da</strong> por relações dialéticas<br />
e contraditórias. O trabalho torna-se ca<strong>da</strong> vez mais objetivado em detrimento <strong>da</strong><br />
subjetivação constante do capital. Nesta trajetória, as políticas públicas, de forma<br />
geral e na especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> juventude, se consoli<strong>da</strong>m no discurso <strong>da</strong> ênfase <strong>da</strong><br />
estratégia desenvolvimentista <strong>da</strong> modernização, na lógica global, focalizando,<br />
contraditoriamente, o discurso <strong>da</strong> lógica local <strong>da</strong> sustentabili<strong>da</strong>de.<br />
A política pública do PRONAF: Caracterização e Limitações<br />
O Programa de Fortalecimento <strong>da</strong> Agricultura Familiar foi instituído no ano de<br />
1995 conforme Resolução 2.191 do Banco Central de 24/08/1995. Em 1996 se<br />
constituiu com base legal conforme Decreto Presidencial nº. 1946 de 28/06/96.<br />
Resultado <strong>da</strong> luta reivindicativa dos movimentos sociais que exigiam uma política<br />
de fortalecimento <strong>da</strong> agricultura camponesa, face ao privilégio dos grandes<br />
proprietários, o PRONAF passa a ser um programa governamental com o discurso<br />
de uma política integra<strong>da</strong> de desenvolvimento sustentado para o meio rural<br />
brasileiro. Em resposta as pressões deste movimento sindical, o Estado cria, em<br />
1996, o PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento <strong>da</strong> Agricultura Familiar),<br />
com a finali<strong>da</strong>de de “prover crédito agrícola e apoio institucional às categorias de<br />
pequenos produtores rurais que vinham sendo alijados <strong>da</strong>s políticas públicas ao<br />
longo <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980 e encontravam sérias dificul<strong>da</strong>des de se manter na<br />
ativi<strong>da</strong>de”. A partir do surgimento do PRONAF, o sindicalismo rural brasileiro,<br />
sobretudo os localizados nas regiões Sul e Nordeste, passou a reforçar a defesa de<br />
propostas do compromisso do Estado com a implementação de políticas públicas<br />
diferencia<strong>da</strong>s (juros menores, apoio institucional etc) para a agricultura familiar.<br />
De acordo com o documento base (FAO, INCRA, 1994), o PRONAF foi criado com a<br />
intenção de atender ao conjunto dos agricultores familiares com o objetivo <strong>da</strong><br />
inclusão <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de familiar, pelo crescimento <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> familiar do emprego, <strong>da</strong><br />
produção e pela adoção de políticas de re-ordenamentos territoriais combatendo,<br />
desta forma, parte dos problemas sociais urbanos provocados pelo desemprego<br />
rural.<br />
Segundo proposta <strong>of</strong>icial, os objetivos principais do Programa são de: possibilitar<br />
o aumento <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de produtiva, gerar de empregos, melhorar a ren<strong>da</strong>,<br />
contribuir para a quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> e a ampliação do exercício <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia por<br />
parte dos agricultores familiares. Tendo como objetivos específicos: a) ajustar<br />
políticas públicas à reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> agricultura familiar; b) viabilizar a infraestrutura<br />
rural necessária à melhoria do desempenho produtivo e <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
população rural; c) fortalecer os serviços de apoio ao desenvolvimento <strong>da</strong><br />
agricultura familiar; d) elevar o nível de pr<strong>of</strong>issionalização de agricultores para<br />
lhes propiciar novos padrões tecnológicos e de gestão; e e) favorecer o acesso de<br />
agricultores familiares e suas organizações aos mercados de produtos e insumos.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100 2007<br />
82
83<br />
Jovens an<strong>da</strong>rilhos do ciclo curto do capital<br />
A partir de 1999, no Segundo Governo de Fernando Henrique, o PRONAF s<strong>of</strong>reu<br />
várias alterações institucionais deixando de fazer parte do Ministério <strong>da</strong><br />
Agricultura e passando a ser incorporado ao Ministério do Desenvolvimento<br />
Agrário (MDA) com a criação <strong>da</strong> Secretaria <strong>da</strong> Agricultura Familiar (SAF) liga<strong>da</strong> ao<br />
MDA. Em termos <strong>da</strong>s instâncias deliberativas verificam-se ain<strong>da</strong>, nos anos atuais,<br />
a mesma sistemática adota<strong>da</strong> desde o início <strong>da</strong> implantação do programa,<br />
expressando uma articulação institucional entre Conselhos municipais, estaduais<br />
e nacionais e representações dos agricultores, além de parcerias entre as diversas<br />
instâncias e a participação dos movimentos sociais.<br />
Seguindo a lógica do agronegócio capitalista, que não só domina e determina a<br />
economia rural brasileira como também controla ideologicamente as estratégias e<br />
as políticas táticas do governo, as grandes empresas e corporações multinacionais<br />
e do capital financeiro aniquilam ca<strong>da</strong> vez mais a já precariza<strong>da</strong> soberania<br />
nacional. As grandes parcelas <strong>da</strong>s classes subalternas, <strong>da</strong>s organizações e<br />
movimentos sociais do campo se renderam à integração ao agronegócio e se<br />
deixaram levar pelo discurso de geração de ren<strong>da</strong> à curto prazo (CARVALHO,<br />
2004).<br />
Anunciando a inclusão <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de familiar, via adoção de políticas de reordenamentos<br />
territoriais em sintonia com o modelo de financeirização, a linha<br />
de crédito do PRONAF tem mantido os mais pobres, os desprovidos <strong>da</strong> terra,<br />
excluídos <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de permanência nela, já que as exigências bancárias só<br />
têm permitido acesso aos recursos do programa de crédito, para quem detém a<br />
proprie<strong>da</strong>de ou que pode penhorar bens. Tal fato automaticamente exclui uma<br />
gama de trabalhadores familiares e garante a formação do exército de reserva<br />
estagnado e latente em constante mobili<strong>da</strong>de temporária. Impossibilitado de ter a<br />
terra e os recursos para a sua garantia de vi<strong>da</strong>, os jovens principalmente passam a<br />
ser determinados pelo templo cíclico do capital.<br />
No Ciclo <strong>da</strong> Mu<strong>da</strong>nça no/do Capital<br />
Em pesquisa de campo realiza<strong>da</strong> nas áreas <strong>da</strong> microrregião do Sertão Sergipano<br />
(municípios de Canindé do São Francisco, Monte Alegre, Nossa Senhora <strong>da</strong> Glória,<br />
Poço Redondo, Poço <strong>da</strong> Folha) microrregião de Carira (Ribeirópolis e Nossa<br />
Senhora Apareci<strong>da</strong>), microrregião do Agreste de Itabaiana, município de<br />
Itabaiana, mesorregião Agreste de Lagarto, município de Lagarto e mesorregião<br />
de Boquim, municípios de Boquim e Salgado, considerando o conjunto dos jovens<br />
pesquisados, 24,3% afirmaram que a maioria dos jovens está migrando para<br />
dentro do estado, enquanto 75,7% afirmam que a maioria continua migrando<br />
para fora do estado. O que se pode constatar é que atualmente há maior<br />
diversificação de preferência <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des em direção ao trabalho.<br />
No conjunto <strong>da</strong>s regiões pesquisa<strong>da</strong>s, o índice de preferência dos jovens (43,7%)<br />
ain<strong>da</strong> é o estado de São Paulo. Estes seguem a trilha <strong>da</strong> citricultura, não só pela<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100, 2007
CONCEIÇÃO, A. L.<br />
experiência neste cultivo, como também por este não exigir mão de obra<br />
qualifica<strong>da</strong>, além de que, a <strong>of</strong>erta de trabalho é sempre contínua. De forma<br />
específica, observa-se a procura de outros estados não comuns nas déca<strong>da</strong>s<br />
anteriores à segun<strong>da</strong> metade <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de noventa. Da microrregião do sertão,<br />
os jovens têm também migrado para os estados de Mato Grosso (18,5%), Minas<br />
Gerais (17,5%), Rio de Janeiro (11,7%), Tocantins (3,8%). Por sua vez o índice de<br />
migração dos jovens <strong>da</strong> microrregião de Carira e do Agreste de Itabaiana<br />
demonstra acentua<strong>da</strong> incidência para as ci<strong>da</strong>des internas do próprio estado de<br />
Sergipe.<br />
As preferências diferencia<strong>da</strong>s de locali<strong>da</strong>des podem ser explica<strong>da</strong>s pela<br />
identi<strong>da</strong>de de experiência de trabalho. Como vimos, São Paulo, por causa <strong>da</strong><br />
citricultura, Minas, Mato Grosso e Tocantis, pela <strong>of</strong>erta de trabalho especializa<strong>da</strong><br />
nas áreas de barragens, experiência já conheci<strong>da</strong> na área de barragem de<br />
Xingo/SE. Segundo os entrevistados, a escolha depende também do parentesco<br />
que ele possua na locali<strong>da</strong>de de procura ou <strong>da</strong> fronteira agrícola. Neste caso,<br />
depende do período do ciclo produtivo e <strong>da</strong> circulação do ciclo <strong>da</strong> produção do<br />
capital. Na ci<strong>da</strong>de, ocupam geralmente pequenos serviços gerais (trabalho em<br />
lanchonetes, bares etc), ativi<strong>da</strong>des autônomas como vigia e na construção civil.<br />
Ficou níti<strong>da</strong> a diminuição de intensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de do trabalho. Para 53,1%<br />
dos entrevistados está ocorrendo uma menor migração. Esta posição foi<br />
confirma<strong>da</strong> nas entrevistas coletivas, onde para a maioria, tem ocorrido a<br />
diminuição <strong>da</strong> intensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> migração. Apenas 4,2% dos entrevistados<br />
afirmaram que não tem ocorrido alteração na mobili<strong>da</strong>de.<br />
Os principais motivos <strong>da</strong> migração estão relacionados à ausência de possibili<strong>da</strong>des<br />
de permanecer na terra, não havendo, portanto, melhorias significativas para a<br />
fixação do jovem na terra (CONCEIÇÃO, 2006).<br />
Para a melhor obtenção de um perfil de expectativas do jovem no campo foi<br />
também necessário identificar o nível de preferência de moradia do jovem no<br />
limite de sua garantia de vi<strong>da</strong>. Como resultados foram obti<strong>da</strong>s as seguintes<br />
respostas:<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100 2007<br />
84
85<br />
Jovens an<strong>da</strong>rilhos do ciclo curto do capital<br />
Gráfico 01: Principais motivos <strong>da</strong> migração do jovem<br />
100%<br />
80%<br />
60%<br />
40%<br />
20%<br />
0%<br />
54%<br />
Falta de<br />
emprego no<br />
campo<br />
Facili<strong>da</strong>de e<br />
emprego na<br />
ci<strong>da</strong>de<br />
8% 8% 9,1% 8%<br />
Vi<strong>da</strong> s<strong>of</strong>ri<strong>da</strong><br />
no campo<br />
Dificul<strong>da</strong>des<br />
climáticas<br />
Melhoria dos<br />
estudos<br />
Fonte: Alexandrina Luz Conceição. Pesquisa de campo 2006.<br />
100%<br />
80%<br />
60%<br />
40%<br />
20%<br />
Gráfico 02: Preferências de moradia<br />
63,20%<br />
36,80%<br />
0%<br />
Campo Ci<strong>da</strong>de<br />
Fonte: Alexandrina Luz Conceição. Pesquisa de campo 2006.<br />
Gráfico 03: Por quê? Preferências de vi<strong>da</strong> no CAMPO<br />
Fonte: Alexandrina Luz Conceição. Pesquisa de campo 2006.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100, 2007
CONCEIÇÃO, A. L.<br />
Gráfico 04: Preferências de vi<strong>da</strong> na CIDADE<br />
Fonte: Alexandrina Luz Conceição. Pesquisa de campo 2006.<br />
Em Sergipe, até a déca<strong>da</strong> de 1990 a população urbana duplicou em relação à<br />
população rural, constatando-se que centenas de jovens camponeses partiram de<br />
vários municípios, principalmente os do sertão sergipano, acompanhando o<br />
movimento internacional <strong>da</strong> relação capital-trabalho, sob o modelo neoliberal.<br />
Conforme relatório <strong>da</strong> CEPLAN (2005), a economia sergipana na déca<strong>da</strong> de 90<br />
teve uma retração no seu PIB, integrando-se às propostas de desregulamentação<br />
de mercado, adotando medi<strong>da</strong>s de redução <strong>da</strong>s barreiras de proteção a seus<br />
mercados e implementando programas de privatização de empresas públicas. No<br />
início desta déca<strong>da</strong> a economia sergipana apresentou uma forte que<strong>da</strong> na taxa<br />
média de crescimento do PIB estadual, de 5,7% nos anos de 1985 a 1989<br />
passando para 1,7% nos anos de 1990 a 1993 (<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> CEPLAN). No período<br />
entre 1999 a 2002 há uma relativa melhoria no crescimento médio anual<br />
passando para 2,1%, s<strong>of</strong>rendo uma estagnação em 2003. Tal situação é entendi<strong>da</strong><br />
como reflexo <strong>da</strong> inserção <strong>da</strong> economia sergipana no bojo do mesmo modelo <strong>da</strong><br />
economia nacional e nordestina.<br />
Em 2002 o estado de Sergipe apresentava uma população de 1.868.430 pessoas.<br />
A maior concentração encontrava-se na microrregião de Aracaju, por exercer a<br />
primazia de ser ci<strong>da</strong>de/capital do estado, com cerca de 66,5% dos residentes do<br />
estado.<br />
A mesorregião do Agreste Sergipano ocupava no ano de 2002 22,5% do total <strong>da</strong><br />
população do estado, ou seja, 420,5 mil pessoas ocupavam 26,9% do território do<br />
estado. Nesta mesorregião destacam-se a microrregião de Itabaiana com a maior<br />
concentração de população (150,8 mil pessoas), ocupando o segundo lugar no<br />
estado, segui<strong>da</strong> <strong>da</strong>s microrregiões de Lagarto e de Tobias Barreto que<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100 2007<br />
86
87<br />
Jovens an<strong>da</strong>rilhos do ciclo curto do capital<br />
apresentavam contingentes populacionais, respectivamente, de 106,4 mil e 103,6<br />
mil.<br />
A mesorregião do Sertão Sergipano, que compreende as microrregiões Sergipana<br />
do Sertão do São Francisco e de Carira, concentrava 33,6% do território sergipano,<br />
com uma população de apenas 10,9%, sendo a mais extensa do estado com 5.4<br />
mil Km² e uma população de 141,4 mil residentes. Já a microrregião de Carira<br />
possui um território de 1,9 mil Km² e tem uma população de 63,2 mil pessoas.RG<br />
Conforme informações obti<strong>da</strong>s no Relatório <strong>da</strong> CEPLAN (2005), entre os anos de<br />
1985 e 1990 observou-se, no Nordeste, uma tendência de redução do ritmo de<br />
crescimento <strong>da</strong> economia para 1,6% ao ano, reduzindo ain<strong>da</strong> mais entre 1990 e<br />
1993 em 4,4% ao ano em termos absolutos. O investimento público contribuiu<br />
para essa que<strong>da</strong> com 9,9% ao ano. Neste período a agropecuária registrou o<br />
melhor desempenho entre os grandes setores <strong>da</strong> economia sergipana, com taxas<br />
anuais de 4,4%, segui<strong>da</strong> pela indústria, com 3,4%, e serviço, com 2,9%.<br />
Acompanhando este ritmo, na primeira metade dos anos de 1990, a taxa de<br />
crescimento do PIB sergipano desacelerou consideravelmente, tendo caído de<br />
3,5% (período anterior) para 1,7% ao ano. Foi o período de crise mais agu<strong>da</strong> do<br />
setor industrial, enquanto o setor de serviços passou a apresentar as maiores<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100, 2007
CONCEIÇÃO, A. L.<br />
taxas de crescimento, seguido do setor agropecuário. A partir de 1995 há uma<br />
que<strong>da</strong> na taxa de crescimento anual do setor agropecuário em decorrência <strong>da</strong><br />
estiagem de chuva, <strong>da</strong> seca e <strong>da</strong> crise do setor citrícola, ou seja, <strong>da</strong> nova<br />
reestruturação produtiva frente à flexibilização do capital.<br />
Entre 1985 e 1990 os crescimentos mais expressivos foram os do setor de serviços<br />
sob a primazia <strong>da</strong> administração pública, <strong>da</strong> previdência social, como também do<br />
setor de comércio e <strong>da</strong> construção civil. De 1985 a 1995 a economia sergipana<br />
estava ancora<strong>da</strong> ao setor <strong>da</strong> agropecuária, entretanto em 1995 a 2000 há uma<br />
que<strong>da</strong> negativa de -0,1% neste setor, passando o setor industrial a ocupar o<br />
primeiro lugar no PIB com uma taxa de crescimento de 5,6%. Já no ano de 2001<br />
há uma que<strong>da</strong> vertiginosa com o encolhimento do setor que passa para -1,0%.<br />
Neste período a economia sergipana de forma geral apresenta um déficit muito<br />
baixo, tendo uma recuperação no setor industrial a partir de 2002.<br />
Ao longo do período de 1970-1995 verificaram-se mu<strong>da</strong>nças significativas no uso<br />
<strong>da</strong> terra com a expansão <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de agropecuária sergipana e a ocupação <strong>da</strong><br />
fronteira agrícola 5 . Assim, enquanto as áreas de pastagens e de lavoura se<br />
expandiram, as matas e as áreas produtivas não utiliza<strong>da</strong>s recuaram. O censo<br />
agropecuário sergipano registrou a ocupação de 1.702,6 mil hectares de terras<br />
nas ativi<strong>da</strong>des agropecuárias no estado. Segundo Relatório <strong>da</strong> CEPLAN (2005) a<br />
expansão <strong>da</strong> agropecuária pode ser observa<strong>da</strong> desde 1970-1995, e tem sua<br />
explicativa principalmente por causa do avanço do processo <strong>da</strong> pecuarização, com<br />
maior intensi<strong>da</strong>de nos anos 1970 devido ao avanço acelerado <strong>da</strong>s áreas de<br />
pastagens planta<strong>da</strong>s e <strong>da</strong> expansão <strong>da</strong>s áreas de lavouras permanentes.<br />
O que de fato pôde-se constatar foi o avanço do capitalismo no campo, via a<br />
monopolização e a territorialização <strong>da</strong> terra, sob o domínio <strong>da</strong> citricultura no<br />
centro sul. É preciso também destacar o forte processo de ocupação <strong>da</strong>s terras no<br />
estado, principalmente no agreste, sob a custódia do Estado face ao caráter<br />
rentista do capitalismo. A pecuarização no estado de Sergipe, principalmente a<br />
partir dos finais dos anos de 1980, nos limites <strong>da</strong> ascensão e que<strong>da</strong> <strong>da</strong> citricultura,<br />
foi possibilita<strong>da</strong> via política de crédito para os grandes e médios proprietários,<br />
acentuando, inclusive, a privatização <strong>da</strong> terra.<br />
De forma geral registra-se que conforme Censo Agropecuário de 1995-1996, as<br />
culturas temporárias ocupavam 10% <strong>da</strong>s áreas agricultáveis do estado e as<br />
culturas permanentes 7,0%, enquanto o domínio <strong>da</strong>s pastagens concentrava 68%.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100 2007<br />
88
89<br />
Jovens an<strong>da</strong>rilhos do ciclo curto do capital<br />
Os cultivos estavam concentrados na ativi<strong>da</strong>de de subsistência familiar, com o<br />
plantio de milho, feijão e mandioca. Quanto às culturas comerciais, permaneciam<br />
também em destaque a cana-de-açúcar e o arroz.<br />
Segundo <strong>da</strong>dos do CEPLAN (2005), conforme estatísticas <strong>da</strong> Produção Agrícola<br />
Municipal, entre 2002 e 2003 a área total colhi<strong>da</strong> de lavouras temporárias em<br />
Sergipe foi de 178.2 mil hectares, apenas 3% superior a <strong>da</strong> média trienal 1990-<br />
1992. Destacou-se a redução nos anos de 1990, <strong>da</strong> área colhi<strong>da</strong> <strong>da</strong> cana-de-açúcar<br />
que passou de 35.0 mil hectares para 20.1 mil, assim como do fumo, notando-se,<br />
entretanto, a expansão do cultivo do milho, <strong>da</strong> batata-doce e do arroz.<br />
Nos últimos anos observa-se a presença <strong>da</strong> fruticultura no Baixo São Francisco.<br />
Nos anos de 1990 o governo do Estado tem implementado cultivos irrigados nessa<br />
região, com a implementação de capital industrial associado ao financeiro, através<br />
do contrato de como<strong>da</strong>do, o que significou a desterritorialização de grande parte<br />
<strong>da</strong> população que perdeu as suas proprie<strong>da</strong>des. Sem terra, as pessoas foram<br />
obriga<strong>da</strong>s a saírem <strong>da</strong> área em detrimento <strong>da</strong> mão de obra emigrante com<br />
conhecimento tecnológico.<br />
Entretanto, considerando a abrangência <strong>da</strong>s culturas temporárias, nos anos de<br />
2000 e 2002 o domínio é ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> mandioca com 29% do valor total obtido,<br />
seguindo a cana-de-açúcar, com 23%, o feijão, com 14%, o milho, 10%, e o arroz,<br />
9%.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100, 2007
CONCEIÇÃO, A. L.<br />
É preciso levar em conta a interferência climática nas oscilações dos preços <strong>da</strong>s<br />
culturas temporárias, como é o caso <strong>da</strong> mandioca e <strong>da</strong>s culturas do milho, feijão,<br />
cana-de-açúcar e arroz, cujos valores segundo os <strong>da</strong>dos do CEPLAN (2005), são<br />
fun<strong>da</strong>mentais para a pecuária e algumas culturas cítricas (laranja e maracujá),<br />
além de banana e coco-<strong>da</strong>-baía.<br />
As culturas permanentes tiveram seu apogeu nos anos de 1970 e na primeira<br />
metade dos anos de 1980. Em 1970 a área total de cultivo era de a 66.3 mil<br />
alcançando no ano de 1985 uma área de 109.7 mil hectares. Esta expansão, como<br />
já afirmado anteriormente, se deve ao cultivo <strong>da</strong> citricultura na região centro-sul<br />
do estado (nos municípios em estudo, como Lagarto, Boquim e Salgado), que<br />
tiveram também peso na cultura <strong>da</strong> citricultura e na produção do maracujá,<br />
manga, tangerina e limão.<br />
É preciso observar que a citricultura corresponde ao interesse <strong>da</strong> inserção do<br />
capital mundial no Brasil, via processo de modernização do campo, com a<br />
introdução <strong>da</strong> tecnologia, ou melhor, com a subordinação <strong>da</strong> pequena produção à<br />
indústria de insumos. Deste modo, o capital se expande no campo,<br />
monopolizando e territorializando a produção e a terra 6 .<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100 2007<br />
90
91<br />
Jovens an<strong>da</strong>rilhos do ciclo curto do capital<br />
Em 2002-2003 a cultura dos cítricos representava o maior domínio <strong>da</strong> cultura<br />
permanente com uma área colhi<strong>da</strong> de 103,4 mil hectares. A laranja concentrava<br />
50,7 mil hectares, segui<strong>da</strong> pelo côco-<strong>da</strong>-baía, banana, maracujá, manga e limão.<br />
As culturas de cítricos e o côco-<strong>da</strong>-baía representavam, na média, 94% <strong>da</strong> área<br />
colhi<strong>da</strong> de culturas permanentes.<br />
A bovinocultura representa ain<strong>da</strong> o maior percentual de criação com 76,8% <strong>da</strong><br />
área dos estabelecimentos. Segundo <strong>da</strong>dos obtidos, se for incluí<strong>da</strong> a área <strong>da</strong><br />
produção mista, a porcentagem chega a atingir 96,7%. Em segui<strong>da</strong> está a criação<br />
<strong>da</strong> avicultura.<br />
Em termos de efetivos, foram registrados, em 2003, um volume de 895,9 mil<br />
bovinos, 3,0 milhões entre galos, frangas, frangos e pintos, além de 126,1 mil<br />
ovinos, 95,8 mil eqüinos, 15,9 mil muares e 13,9 mil caprinos.<br />
Segundo os <strong>da</strong>dos informativos do CEPLAN a criação do efetivo bovino vêm<br />
diminuindo em relação, apresentando de 1995 a 2000 uma per<strong>da</strong> de 17%. Já a<br />
criação de aves tem se expandido significativamente em Sergipe, em to<strong>da</strong>s as<br />
mesorregiões sergipanas. Embora seja o Agreste a região de domínio desde 2000,<br />
o Sertão Sergipano tem apresentado significativo aumento na sua criação.<br />
A criação do gado para o leite tem se constituído uma <strong>da</strong>s principais fontes de<br />
recursos <strong>da</strong> região Sergipana do Sertão do São Francisco. O município de Nossa<br />
Senhora <strong>da</strong> Glória é o que apresenta a maior produção. De forma geral, constatase<br />
na região do Agreste de Lagarto e Boquim, principalmente na primeira, a<br />
permanência do domínio <strong>da</strong> cultura <strong>da</strong> laranja. No sul (município de Lagarto)<br />
permanecem ain<strong>da</strong> as culturas de subsistência: mandioca, milho, batata-doce e<br />
feijão. A cultura <strong>da</strong> mandioca, em 2003, concentrava quase metade do valor <strong>da</strong><br />
produção.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100, 2007
CONCEIÇÃO, A. L.<br />
Conforme resultado <strong>da</strong> dissertação de Kolming (2005) a cultura <strong>da</strong> mandioca tem<br />
representado a garantia <strong>da</strong> permanência <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de de produção familiar.<br />
Segundo a autora, nas comuni<strong>da</strong>des periféricas do entorno do povoado Treze<br />
(município de Lagarto/SE) onde, desde o final de 1970, há o domínio do cultivo <strong>da</strong><br />
citricultura, as comuni<strong>da</strong>des que não aceitaram submeter-se ao monopólio <strong>da</strong><br />
terra na produção <strong>da</strong> laranja permanecem na agricultura de subsistência,<br />
retirando a ren<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra, sem necessi<strong>da</strong>de de submeter-se diretamente ao<br />
capital. A produção <strong>da</strong> mandioca garante a condição camponesa. Quando a<br />
produção é insuficiente para a manutenção <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de de produção familiar,<br />
comercializam frutas como manga, banana e jaca, que deman<strong>da</strong>m pouco<br />
investimento em insumos e menor apropriação de parte <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra<br />
camponesa pelo capital. A ven<strong>da</strong> direta nas feiras livres é a estratégia para evitar<br />
que o capital comercial se aproprie de sua ren<strong>da</strong>. Assim, permanecem<br />
camponeses.<br />
De acordo com os resultados apresentados observa-se que nas áreas em estudo a<br />
uni<strong>da</strong>de de produção camponesa, através de culturas de subsistência, é o esteio<br />
<strong>da</strong> economia sergipana e local.<br />
No sertão, as culturas mais importantes, ain<strong>da</strong> em 2003, eram as tradicionais de<br />
subsistência milho, mandioca e feijão que respondiam por 93,7% do valor <strong>da</strong><br />
produção. A cultura do milho manteve-se como a principal ativi<strong>da</strong>de agrícola.<br />
Na microrregião Sergipana do Sertão do São Francisco, ao lado também do feijão<br />
(que tem apresentado uma que<strong>da</strong> na produção), tem surgido novas culturas como<br />
a melancia e o abacaxi.<br />
A partir dos anos de 1980 destacam-se no Sertão Sergipano a construção <strong>da</strong> Usina<br />
Hidroelétrica de Xingó e uma efetiva ocupação de assentamentos rurais.<br />
A falta de trabalho tem sido significativa no estado. Em 1999 o número de pessoas<br />
sem ocupação nos setores econômicos elevou-se para 74 mil, alcançando em<br />
2003 cerca de 84.6 mil. Cresce o número de pessoas do sexo feminino que<br />
buscam trabalho. Em 2003, a taxa de per<strong>da</strong> de ocupação elevou-se para 9,0%,<br />
sendo que a taxa de desemprego entre os homens cresceu apenas de 6,2% para<br />
6,7% enquanto a feminina elevou-se de 8 % para 11,8%, uma variação bem<br />
superior à apresenta<strong>da</strong> para a taxa de desemprego masculina. O crescimento dos<br />
empregados em Sergipe foi inferior ao ritmo de expansão <strong>da</strong> ocupação total.<br />
Cresce o número de trabalhadores por conta própria.<br />
A administração pública absorve a maior taxa dos trabalhadores. Em 2003, a<br />
administração pública absorvia 35,5% do emprego formal regional, segui<strong>da</strong> pelos<br />
serviços (26,9%) e pela indústria (18,4%), onde se destacam a indústria de<br />
transformação (12,9%), e o comércio (14,8%), conforme <strong>da</strong>dos do CEPLAN (2005).<br />
Na região em estudo há a presença do Grupo Maratá Indústria de Embalagens<br />
Lt<strong>da</strong>, localizado no município de Lagarto, que tem absorvido o maior percentual<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100 2007<br />
92
93<br />
Jovens an<strong>da</strong>rilhos do ciclo curto do capital<br />
<strong>da</strong> força de trabalho dos desapropriados <strong>da</strong> terra que, sem condições de retira<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> ren<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra para a sobrevivência, são absorvidos como assalariados.<br />
O Grupo Azaléia (Indústria de Calçados), Projeto de Calçado Hispania, localizados<br />
nos municípios de Frei Paulo, Carira, Ribeirópolis e Lagarto, é o grande<br />
responsável com o Grupo Maratá pela maior parte dos jovens como força de<br />
trabalho. Ressalta-se ain<strong>da</strong> o Grupo Itabaiana Indústria de Fios (Indústria Têxtil).<br />
Quando na aplicação dos questionários, como também nas entrevistas individuais<br />
e coletivas, identificou-se na Região de Carira, nos residentes dos municípios de<br />
Ribeirópolis e N. Sra. Apareci<strong>da</strong>, como também na micorregião de Itabaiana, uma<br />
forte atração que essas indústrias têm exercido sobre os produtores familiares. A<br />
dificul<strong>da</strong>de para obter a extração <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra, para a sobrevivência, força a<br />
migração para o trabalho assalariado e semi-assalariado. A possibili<strong>da</strong>de de<br />
aproveitamento <strong>da</strong> força de trabalho à baixos salários nessas indústrias, tem<br />
alterado o quadro do fluxo migratório, prevalecendo a migração interna em<br />
detrimento <strong>da</strong> saí<strong>da</strong> para outros estados <strong>da</strong> federação.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100, 2007
CONCEIÇÃO, A. L.<br />
Esta internalização pode ser constata<strong>da</strong> na pesquisa de campo <strong>da</strong>s três áreas<br />
pesquisa<strong>da</strong>s. Apenas os jovens <strong>da</strong>s micorregiões de Carira e Agreste de Itabaiana<br />
afirmaram que a migração atualmente tem crescido, o que se explica pelo índice<br />
de preferência interna em direção a Indústria de Calçados Azaléia no município de<br />
Ribeirópolis e para a Indústria têxtil no município de Itabaiana.<br />
O Governo do Estado, conforme <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> CEPLAN, sinaliza a “melhoria do semiárido”<br />
como perspectiva para os futuros anos através <strong>da</strong> aplicação de<br />
investimentos:<br />
a) no Programa de Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido Sergipano –<br />
PDSSAS. Conhecido como Projeto Nova Califórnia, via incentivo a fruticultura, haja<br />
vista a infra-estrutura dos projetos de irrigação na região, em especial os<br />
municípios de Canindé do São Francisco, Poço Redondo e Porto <strong>da</strong> Folha;<br />
b) na Implantação do Pólo Agroindustrial do Xingo com a consoli<strong>da</strong>ção do Projeto<br />
Jacaré-Curituba; e<br />
c) no Apoio ao desenvolvimento regional visando atrair investimentos privados<br />
para os agronegócios.<br />
Tudo indica que há interesse em consonância com o Governo <strong>Federal</strong> para a<br />
consoli<strong>da</strong>ção do tripé Estado, Capital e Mercado no processo <strong>da</strong> mundialização do<br />
capital e <strong>da</strong> financeirização <strong>da</strong> economia.<br />
Neste sentido, o que se procurou questionar foi: até que ponto há uma real<br />
consonância entre o desejo <strong>da</strong> permanência do campo, do direito <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, <strong>da</strong><br />
autonomia do capital, do sonho de permanecer na uni<strong>da</strong>de de produção familiar<br />
com as propostas de Governo? Neste viés observou-se que há uma sintonia entre<br />
a proposta do PRONAF com as perspectivas de investimentos sinalizados pelo<br />
Governo local. Inclusive é importante ressaltar que está na própria estrutura de<br />
gestão local (governo anterior e atual) a concretização <strong>da</strong> consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><br />
inserção total no sistema do capital, e, conseqüentemente, <strong>da</strong> monopolização e<br />
territorialização <strong>da</strong> terra ao capital sob a égide do Banco Mundial e do Fundo<br />
Monetário Internacional.<br />
Advin<strong>da</strong> como uma nova categoria, capitanea<strong>da</strong> pelos impactos <strong>da</strong> abertura<br />
comercial e determina<strong>da</strong> pelo modelo hegemônico do capitalismo, a agricultura<br />
familiar surge no contexto do Novo Mundo Rural. A proposta de Novo Mundo<br />
Rural, implanta<strong>da</strong> desde meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1990 pelo Governo <strong>Federal</strong>,<br />
garantiu que o modelo dominante do agronegócio fosse a melhor opção para a<br />
burguesia como também para as classes subalternas (CARVALHO, 2004). Desse<br />
ponto de parti<strong>da</strong> e como conseqüência direta <strong>da</strong> nova concepção de Novo Rural<br />
Brasileiro é que surge o PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento <strong>da</strong><br />
agricultura), seguindo a lógica do agronegócio.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100 2007<br />
94
95<br />
Conclusões<br />
Jovens an<strong>da</strong>rilhos do ciclo curto do capital<br />
No movimento do ciclo do capital o que tem alterado é a estrutura <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de<br />
do processo <strong>da</strong> divisão social e territorial do trabalho. São Paulo deixou de ser a<br />
ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> hegemonia <strong>da</strong> migração, embora permaneça sendo a locali<strong>da</strong>de<br />
majoritária nos índices de mobili<strong>da</strong>de.<br />
No novo padrão de acumulação, na inserção do processo <strong>da</strong> mundialização e<br />
financeirização <strong>da</strong> economia, o trabalho deixa de ser fixo para ser móvel ficando<br />
disponível ao tempo cíclico curto <strong>da</strong> produção, distribuição e circulação do capital,<br />
que, na maioria <strong>da</strong>s vezes, representa-se alienígeno ao processo de tecnificação<br />
<strong>da</strong> economia. À contramão do modelo modernizante <strong>da</strong> organização <strong>da</strong> produção<br />
e do trabalho, a reprodução amplia<strong>da</strong> do capital é garanti<strong>da</strong> por formas de<br />
desqualificação do trabalho e do trabalhador.<br />
Sem registro formal os jovens sujeitam-se a baixos salários e estão disponíveis aos<br />
interesses do lucro. Tornam-se inclusos para serem excluídos do mundo do<br />
trabalho. A per<strong>da</strong> dos direitos trabalhistas e o crescente desemprego favorecem a<br />
desrealização do ser na condição de sujeitos asujeitados ao capital, aceitando<br />
qualquer tipo de contrato precarizado, parcial e temporário, submetendo-se à<br />
racionali<strong>da</strong>de do capital e à lógica do mercado. Na situação de itinerantes tornamse<br />
an<strong>da</strong>rilhos, indo onde tem trabalho e retornando para o campo quando acaba.<br />
O retorno ao campo torna-se a possibili<strong>da</strong>de do reconhecimento na comuni<strong>da</strong>de.<br />
Consumidores de mercadorias que garantem a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> reprodução do<br />
capital apresentam-se no campo fetichizados no sonho <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de do<br />
consumo barato e supérfluo. Quando o dinheiro trazido termina, procuram<br />
retornar quando encontram outras possibili<strong>da</strong>des de trabalho.<br />
Os jovens continuam a migrar para atender a necessi<strong>da</strong>de do capital que o<br />
autoaliena, fazendo-o acreditar-se como o definidor de seu desejo de vi<strong>da</strong>, de<br />
moradia. Migram para a ci<strong>da</strong>de de médio e grande porte, e, na sua maioria, ficam<br />
confinados nos barracos <strong>da</strong>s empresas ou nas favelas, sujeitando-se à piores<br />
condições de vi<strong>da</strong>. Enquanto a reali<strong>da</strong>de permite ter o trabalho, fixam-se na<br />
maioria <strong>da</strong>s vezes em barracos até voltarem e realizarem o ciclo do retorno do<br />
trabalho, ciclos ca<strong>da</strong> vez mais curtos, na condição de exército de reserva latente e<br />
candi<strong>da</strong>tos ao desemprego.<br />
Um fato a ser destacado é a tendência <strong>da</strong> diminuição <strong>da</strong> curva <strong>da</strong> migração nos<br />
últimos três anos. A política de crédito do PRONAF, com to<strong>da</strong>s as suas mazelas, é<br />
compreendi<strong>da</strong> como um ganho, assegurando temporariamente uma parte dos<br />
jovens no campo, via a política assistencialista do Governo <strong>Federal</strong>, com a <strong>of</strong>erta<br />
de bolsas: família, escola, alimentação, vale gás etc.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100, 2007
CONCEIÇÃO, A. L.<br />
Segundo os jovens não há fuga do campo, o que há é a falta de opção no campo.<br />
Na logística do capital não importa que a opção seja o campo ou a ci<strong>da</strong>de, mas<br />
que estejam livres para migrar.<br />
O que se observou no campo sergipano é que há uma cultura alimenta<strong>da</strong> pelos<br />
próprios pais de que não é possível a melhoria do jovem na terra. Em entrevista<br />
com os pais dos jovens, estes justificaram sua posição frente ao s<strong>of</strong>rimento que<br />
está reservado para os filhos devido à falta de perspectivas, de trabalho e <strong>da</strong><br />
terra. No quadro de intenções do jovem pode-se afirmar que não há uma linha<br />
níti<strong>da</strong> de definição <strong>da</strong> preferência do campo ou ci<strong>da</strong>de. O que se observa é que na<br />
curva <strong>da</strong>s suas intenções prepondera uma linha linear onde está defini<strong>da</strong> a opção<br />
pela condição de vi<strong>da</strong>, a garantia do trabalho, a própria terra.<br />
Para os jovens que retornaram ao campo, a terra é a garantia <strong>da</strong> autonomia, <strong>da</strong><br />
liber<strong>da</strong>de de não ter patrão. Todos, entretanto, têm a certeza de que a<br />
perspectiva na terra só é possível para quem tem a proprie<strong>da</strong>de, e que, diante <strong>da</strong><br />
ausência <strong>da</strong> capacitação, dos recursos para a aplicação <strong>da</strong> técnica para o sustento,<br />
a dureza do trabalho e a baixa ren<strong>da</strong> afastam as possibili<strong>da</strong>des do querer<br />
permanecer no campo, principalmente para os que já obtiveram o curso médio e<br />
para os que estão fazendo curso superior. O conhecer a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> melhoria<br />
salarial via emprego urbano é condição de não aceitar a vi<strong>da</strong> “dura” no campo.<br />
Conforme as reflexões desenvolvi<strong>da</strong>s, foi elabora<strong>da</strong> a curva <strong>da</strong>s intenções do<br />
JOVEM no campo:<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100 2007<br />
96
97<br />
Não há assistência<br />
técnica<br />
Inadequação do valor<br />
do crédito ao custo <strong>da</strong><br />
comercialização do<br />
produto<br />
Questão climática<br />
PERMANCER NO<br />
CAMPO<br />
- Autonomia e liber<strong>da</strong>de: 32%<br />
- Melhor quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong>: 0,4%<br />
- Na ci<strong>da</strong>de tudo é caro: 13%<br />
- Tudo que planta tem retorno: 2,3%<br />
- É a terra que a gente nasce: 2,3%<br />
Política de adequação<br />
valor do crédito/custo <strong>da</strong><br />
comercialização do<br />
produto<br />
Valorização <strong>da</strong><br />
sustentabili<strong>da</strong>de local<br />
Assistência técnica<br />
regulariza<strong>da</strong><br />
Desconcentração <strong>da</strong><br />
terra/reforma agrária<br />
JOVEM<br />
OBJETIVO<br />
Garantia de quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong><br />
NÍVEIS DE<br />
DIFICULDADES<br />
NÍVEL DE<br />
DESEJO<br />
EXPECTATIVAS<br />
GARANTIA DE<br />
QUALIDADE DE VIDA<br />
Jovens an<strong>da</strong>rilhos do ciclo curto do capital<br />
Não há curso de<br />
capacitação<br />
Inadequação <strong>da</strong><br />
liberação do curso ao<br />
período de plantio<br />
local<br />
Falta de autonomia<br />
para a utilização<br />
PERMANENCER<br />
NA CIDADE<br />
- A vi<strong>da</strong> no campo é dura: 41,4%<br />
- Não há futuro no campo: 23,9%<br />
- A ci<strong>da</strong>de <strong>of</strong>erece mais<br />
(oportuni<strong>da</strong>de de crescer e<br />
emprego): 23,9%<br />
- No campo não tem onde<br />
trabalhar: 2,2%<br />
Política de ampliação e<br />
garantia de acesso ao crédito<br />
Capacitação para o trabalho<br />
Adequação período de<br />
liberação do crédito com o<br />
período do ciclo do<br />
cultivo local<br />
Garantia <strong>da</strong> terra como<br />
valor de uso e não de troca<br />
Para todos resta à expectativa de melhoria no campo ou ci<strong>da</strong>de. Os que não estão<br />
envolvidos com Projetos de luta pela terra, vêem nas Políticas Públicas a única<br />
possibili<strong>da</strong>de de permanência no campo. Entretanto, fica nítido o avanço do<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100, 2007
CONCEIÇÃO, A. L.<br />
agronegócio via a pecuarização, fruticultura ou através de projetos de irrigação,<br />
sob a regência do BM e do FMI garantido na logística do tripé capital industrial,<br />
capital financeiro e o Estado. O modelo agrícola do agronegócio, antes de<br />
constituir saí<strong>da</strong>, tem na proposta <strong>da</strong> territorialização do capital a forma<br />
possibilitadora <strong>da</strong> ampliação e consoli<strong>da</strong>ção do seu controle sociometabólico<br />
(CONCEIÇÃO, 2005).<br />
Permanece no campo sergipano a expulsão do jovem <strong>da</strong> terra. O que preocupa é<br />
que estes jovens não têm construído formas de resistência ao capital. Não se<br />
observa fora dos que se inscrevem nas lutas sociais dos movimentos <strong>da</strong> terra,<br />
nenhuma reação coletiva para a conquista dos “espaços <strong>da</strong> esperança”. Não há<br />
nenhuma pretensão de romper as relações sociais de trabalho e produção.<br />
Na medi<strong>da</strong> que se localizam à margem do processo produtivo, aumenta o<br />
estranhamento entre o sujeito que trabalha e o produto de seu trabalho,<br />
condição <strong>da</strong> sua autoalienação, permanecendo an<strong>da</strong>rilhos no curto tempo cíclico<br />
do capital.<br />
Notas<br />
¹ Artigo resultante de pesquisa realiza<strong>da</strong> para o CNPq 2005/2006, intitula<strong>da</strong> “Ações e Intervenções<br />
<strong>da</strong>s Políticas Públicas inscritas no espaço agrário sergipano: Condição de inclusão ou exclusão?”.<br />
2 Dados obtidos no livro de Carlos Walter Porto-Gonçalves. Globalização <strong>da</strong> Natureza e a Natureza<br />
<strong>da</strong> Globalização, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. (Ver Parte III).<br />
3 Recomen<strong>da</strong>-se a dissertação de tese de Rosângela Resende Rocha, sob minha orientação: “As<br />
Políticas Públicas de Desenvolvimento Regional no Baixo Cotinguiba” defendi<strong>da</strong> no NPGEO/UFS, em<br />
2007.<br />
4 Refiro-me a pesquisa de campo por mim desenvolvi<strong>da</strong> para o CNPq, referencia<strong>da</strong> anteriormente.<br />
5 Sobre esta temática ler dissertação de mestrado sob minha orientação, de Luciene Leite Santos:<br />
“Mobili<strong>da</strong>de do Trabalho na fronteira do município de Canindé do São Francisco: estratégia de<br />
formação e degra<strong>da</strong>ção do espaço”, defendi<strong>da</strong> em 2004 no NPGEO/UFS.<br />
6 Sobre esta discussão é preciso destacar os artigos de Conceição (2004) e Conceição e Kolming<br />
(2001); e a dissertação de mestrado de Fernan<strong>da</strong> V. Kolming, sob minha orientação, ver bibliografia<br />
cita<strong>da</strong>).<br />
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E-mail para contato: aluz@oi.com.br<br />
Recebido em: 15/06/2007<br />
Aprovado em: 30/06/2007<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 77-100 2007<br />
100
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
TEM TRUKÁ NA ALDEIA: NARRATIVA DE UM<br />
TRABALHO DE CAMPO NA ILHA DE<br />
ASSUNÇÃO, CABROBÓ-PE<br />
Maria de Fátima Ferreira Rodrigues<br />
Departamento de Geociências/Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB<br />
“Tem que ser todos um corpo só. Temos que cui<strong>da</strong>r de nós todos, de nosso costume.<br />
Nosso costume é <strong>da</strong>nçar Toré. Não é o samba, o pagode ou o forró. O Toré dá todo<br />
ensinamento a nós. (....) Sem o Toré não teria mais a raça do índio” 1 .<br />
Resumo<br />
Neste ensaio apresentamos uma discussão sobre o trabalho de campo ao mesmo<br />
tempo em que enfatizamos o debate realizado por diversos pesquisadores <strong>da</strong><br />
área de Ciências Humanas e Sociais a favor dessa prática acadêmica. Nosso<br />
objetivo nessa narrativa é ampliar o olhar na direção desse exercício tão<br />
necessário à pesquisa geográfica. Empreendemos também, ao longo do texto, um<br />
diálogo com a literatura existente sobre o tema numa perspectiva interdisciplinar,<br />
ao mesmo tempo em que relatamos acontecimentos e encontros relativos a um<br />
ponto de para<strong>da</strong>, parte de um roteiro maior de um trabalho de campo que deu<br />
suporte a tese de doutorado apresenta<strong>da</strong> ao Programa de Pós-graduação em<br />
Geografia <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de São Paulo, no ano de 2001 2 .<br />
Palavras-chave: trabalho de campo, pesquisa geográfica, perspectiva<br />
interdisciplinar, roteiro, sertão.<br />
Resumen<br />
Presentamos en este ensayo una reflexión sobre el trabajo de campo y al mismo<br />
tiempo enfatizamos el debate realizado por diversos investigadores del área de<br />
Ciencias Humanas y Sociales a favor de esta práctica académica. Nuestro objetivo<br />
en esta narrativa es ampliar nuestra mira<strong>da</strong> en la dirección de tal ejercicio tan<br />
necesario para la investigación geográfica. También iniciamos, a lo largo del texto,<br />
un diálogo con la literatura existente sobre el tema desde la perspectiva<br />
interdisciplinar y relatamos los acontecimientos y encuentros relativos a un punto<br />
de para<strong>da</strong>, parte de una ruta mayor de un trabajo de campo que dio el soporte a<br />
la tesis de doctorado presenta<strong>da</strong> en el Programa de Pos-grado en Geografía de la<br />
Universi<strong>da</strong>d de São Paulo, en el año de 2001.<br />
Palabras-claves: trabajo de campo, investigación geográfica, perspectiva<br />
interdisciplinar, ruta, sertão.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007
RODRIGUES, M. F. F.<br />
Introdução<br />
Sabe-se que os debates acerca do trabalho de campo têm ocupado lugar de<br />
destaque no âmbito <strong>da</strong>s ciências humanas. Das questões éticas aos<br />
procedimentos que possibilitam a realização de uma boa etnografia, as discussões<br />
relativas a esta temática oscilam. Desse modo, mesmo ciente de que, na<br />
contemporanei<strong>da</strong>de, a natureza encontra-se devasta<strong>da</strong> e que não há mais<br />
espaços a conquistar, o entendimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de em sua dinâmica exige do<br />
pesquisador a atualização dos registros sobre a mesma e esses registros, por sua<br />
vez, ampliam-se por ocasião <strong>da</strong> pesquisa de campo, ensejando novas<br />
interpretações <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />
De fato, descobrir novas terras ou novas etnias é algo que há muito não se coloca<br />
como possibili<strong>da</strong>de. Ilustrativo desta afirmativa é o relato de Lévi-Strauss (1998),<br />
no livro Tristes Trópicos desolado diante <strong>da</strong> dizimação e <strong>da</strong> decadência <strong>da</strong>s<br />
socie<strong>da</strong>des primitivas <strong>da</strong> América por ele visita<strong>da</strong>s e pesquisa<strong>da</strong>s nos anos 40 do<br />
século XX. No que diz respeito à ampliação dos conhecimentos a partir do<br />
trabalho de campo, o relato desse autor é bastante eluci<strong>da</strong>tivo. Outras pesquisas,<br />
na mesma linha de reflexão explicita<strong>da</strong>, como a de Evans-Pritchard (1978), sobre<br />
Os Nuer ou as de Clifford Geertz (1998) sobre Bali, Marrocos e Java são ricas em<br />
informações e reflexões que permitem repensar a complexi<strong>da</strong>de e os limites de<br />
um trabalho de campo.<br />
A despeito do sentimento de desilusão, amplamente divulgado através dos<br />
relatos de viagens que marcam, por vezes, as situações de contato, é mister<br />
salientar que o campo coloca-se para o geógrafo como um laboratório, onde se<br />
busca através <strong>da</strong> descrição e <strong>da</strong> interpretação, contribuir para o fortalecimento do<br />
corpo de enunciados <strong>da</strong> Geografia. Interessa, portanto, a essa ciência, o registro<br />
de acontecimentos, práticas culturais e questões ambientais que traduzam a<br />
relação socie<strong>da</strong>de-natureza em sua diversi<strong>da</strong>de e particulari<strong>da</strong>des, não cabendo,<br />
neste exercício, nenhum tipo de divisão do saber.<br />
Para fun<strong>da</strong>mentar a construção dos roteiros de viagens uma série de leituras foi<br />
feita com vistas ao entendimento do processo de ocupação territorial do Brasil.<br />
Essas leituras situam-se, especialmente, no campo <strong>da</strong> História Econômica, <strong>da</strong><br />
Geografia 3 , <strong>da</strong> Antropologia e <strong>da</strong> Literatura, merecendo registro algumas cujo eixo<br />
central é o relato de experiências vivi<strong>da</strong>s no campo por viajantes, geógrafos 4 e<br />
antropólogos. Foi a partir <strong>da</strong>s experiências relata<strong>da</strong>s por esses pesquisadores que<br />
defini, para esta fase <strong>da</strong> pesquisa, os procedimentos éticos e metodológicos a<br />
serem adotados no campo.<br />
Com o objetivo de realizar satisfatoriamente o trabalho de campo, li e considerei,<br />
no âmbito <strong>da</strong> ciência geográfica, diversos relatos e discussões sobre esse tema 5 .<br />
Contudo, interessei-me particularmente pelas leituras de cunho metodológico.<br />
Autores como Leo Waibel (1958), Yves Lacoste (1985), Orlando Valverde (1985),<br />
B. kayser (1985), Armando Corrêa <strong>da</strong> Silva (1982), Ariovaldo Umbelino de Oliveira<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007<br />
102
103<br />
Tem Truká na Aldeia: narrativa de um trabalho de campo na Ilha de Assunção-PE<br />
(1991), Regina Sader (1986), contribuíram para um melhor entendimento <strong>da</strong><br />
prática do trabalho de campo, seja na discussão específica desse tema, seja<br />
através de outras leituras de pesquisas desses autores; estudos de casos, artigos,<br />
teses.<br />
No campo <strong>da</strong> antropologia, lemos uma diversi<strong>da</strong>de de pesquisas que discutem o<br />
trabalho de campo, seja abor<strong>da</strong>ndo-o em seus aspectos teórico-metodológicos,<br />
seja tendo como eixo os relatos etnográficos e as discussões acerca do uso <strong>da</strong><br />
fotografia. Entre os trabalhos lidos destaco Godolpim (1995), Samain (1995), Da<br />
Matta (1993), Zaluar (1988), Collier Junior (1973) Sherer (1996) e Travassos<br />
(1996).<br />
Contribuiu para a definição do roteiro as experiências relata<strong>da</strong>s por viajantes e<br />
pesquisadores. Quanto à escolha dos lugares a serem visitados, parti <strong>da</strong>s<br />
experiências históricas que os qualificam como sertão, mas, sobretudo, <strong>da</strong>s suas<br />
representações presentes comumente na literatura erudita, na literatura de<br />
cordel, na fotografia e no cinema. A partir desses referenciais e do registro de<br />
traços culturais, símbolos e iconografias reconhecidos como integrantes <strong>da</strong><br />
cultura sertaneja, defini os roteiros e os procedimentos metodológicos 6 que<br />
considerei necessários ao bom an<strong>da</strong>mento do trabalho de campo “pelos sertões”.<br />
Foi também significativo o aprendizado obtido através <strong>da</strong>s leituras de textos<br />
sociológicos e antropológicos acerca dos procedimentos a serem adotados nas<br />
situações de contato, assim como as informações necessárias ao registro de<br />
imagens 7 e os limites postos a este tipo de registro.<br />
Todos os procedimentos adotados tiveram em vista a importância do trabalho de<br />
campo para a geografia. Nesse sentido foi que o encaminhei pari passu à<br />
concretização <strong>da</strong> pesquisa em seu todo. O percurso realizado deve ser entendido<br />
desde a preparação <strong>da</strong> viagem e delimitação dos roteiros até a sistematização <strong>da</strong>s<br />
informações coleta<strong>da</strong>s 8 .<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007
RODRIGUES, M. F. F.<br />
Figura 01: “Pelos sertões: roteiro de um trabalho de campo”<br />
Desenho: Roosevelt.<br />
Os lugares que compuseram o roteiro de campo “pelos sertões”, que se estendeu<br />
de João Pessoa, passando pelo interior desse estado, seguindo por Pernambuco<br />
até Juazeiro <strong>da</strong> Bahia e, prosseguindo novamente por outra rota de Pernambuco,<br />
Ceará e <strong>Paraíba</strong> até o retorno a João Pessoa, guar<strong>da</strong>m um referencial comum.<br />
Foram eles pontos de passagem ou entroncamentos, lugares onde se realizam ou<br />
se realizavam feiras de gado e vaqueja<strong>da</strong>s e por onde, tendo à sua frente os<br />
tangerinos, passavam os grandes rebanhos bovinos em busca de novos mercados,<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007<br />
104
105<br />
Tem Truká na Aldeia: narrativa de um trabalho de campo na Ilha de Assunção-PE<br />
<strong>da</strong>í a denominação Caminhos do Gado, que definiram novos territórios e<br />
desterritorializações.<br />
Figura 02<br />
Fonte: A<strong>da</strong>ptado de BATISTA, Mercia Rejane Rangel. De caboclos <strong>da</strong> assunção a índios Truká<br />
(Dissertação de Metrado). Rio de Janeiro: Museu nacional, 1992 p. 06.<br />
Desenho: Joana Correia de Oliveira Alves. Organização: Maria de Fátima Ferreira Rodrigues e João<br />
Bosco Nogueira.<br />
O ponto de para<strong>da</strong> escolhido para compor esse ensaio foi a Tribo Truká residente<br />
na ilha de Assunção – também um dos pontos de para<strong>da</strong> <strong>da</strong> viagem “pelos<br />
Sertões”.<br />
A Ilha de Assunção é mora<strong>da</strong> e abrigo <strong>da</strong> Tribo Truká, município de Cabrobó-PE e<br />
assim sendo vale destacar as descobertas e emoções de um encontro com os<br />
índios do sertão que nos levaram a outros contatos e, posteriormente, a um<br />
retorno a essa mesma tribo com nossos alunos do curso de geografia <strong>da</strong> UFPB<br />
juntamente com outros colegas docentes 9 .<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007
RODRIGUES, M. F. F.<br />
Colocados os pressupostos que fun<strong>da</strong>mentaram em seu todo, a realização do<br />
trabalho de campo, segue-se o relato 10 num tom de "prosa", pois acredito que a<br />
informali<strong>da</strong>de assegurará leveza ao conjunto <strong>da</strong>s informações e questões<br />
discuti<strong>da</strong>s num exercício dessa natureza.<br />
Histórias de “um” campo: resistência e “incantos” dos Truká<br />
Já havíamos saído de João Pessoa há três dias quando chegamos em Cabrobó-PE.<br />
O relógio marcava dezenove horas do dia 26 de junho de 1998. A causa dessa<br />
demora não foi a quilometragem percorri<strong>da</strong>, mas a permanência nas para<strong>da</strong>s<br />
anteriores. Como estávamos bastante cansados, fizemos um breve passeio pelo<br />
perímetro urbano, jantamos e resolvemos dormir mais cedo.<br />
Já chegamos com a história <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de em nossas anotações e memória.<br />
Retomemos, pois, o sentido do topônimo que deu origem à ci<strong>da</strong>de. Segundo a<br />
literatura e depoimentos Cabrobó significa, etimologicamente, “mato ou árvore<br />
de urubu, ou lugar de cobras negras”. O município está localizado na microrregião<br />
de Petrolina – mesorregião do São Francisco pernambucano. A ci<strong>da</strong>de se situa à<br />
margem esquer<strong>da</strong> do rio São Francisco, a 325 metros de altitude.<br />
O povoamento de Cabrobó começou por volta de 1762 com o aldeamento de<br />
Assunção, cuja origem assenta-se nos Cariris.<br />
Não se tem certeza sobre a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> aldeia de Assunção, sendo como <strong>da</strong>ta<br />
cita<strong>da</strong> o ano de 1722, tendo sido uma obra dos missionários católicos. No<br />
entanto, pelo que lemos em Prata (1952 apud Batista, 1992) e Nantes (1952 apud<br />
Batista, 1992), a <strong>da</strong>ta provável recuaria ao final do século XVII, pois os Carmelitas<br />
entregaram suas missões aos Capuchinhos em 1701 e Nantes faz referência à<br />
fun<strong>da</strong>ção de um aldeamento na ilha do Pambu.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007<br />
[...] Galvão (1908:38) ao escrever o verbete sobre a ilha diz<br />
que a aldeia de Assunção tomou esse título em 1722 e que foi<br />
constituí<strong>da</strong> em vila no ano de 1761. As esparsas informações<br />
encontra<strong>da</strong>s sobre as déca<strong>da</strong>s seguintes apontam, segundo o<br />
autor, para a diminuição de sua população (em 1716, possuía<br />
mais de 100 fogos e mais de 270 casas; em 1789, possuía 400<br />
pessoas, em 1817, possuía 154 indígenas e, em 1853, possuía<br />
620 índios) e para a destruição <strong>da</strong>s construções como<br />
decorrência <strong>da</strong> enchente de 1792) (BATISTA, 1992, p. 70/71).<br />
Sabedores dessas informações e cheios de curiosi<strong>da</strong>de sobre Cabrobó acor<strong>da</strong>mos<br />
cedo no dia seguinte para assistirmos ao nascer do sol nessa ci<strong>da</strong>de. Logo cedo<br />
pessoas e carros circulavam na aveni<strong>da</strong> principal que tem no centro belos<br />
canteiros onde os pedestres circulam tranquilamente. Fizemos algumas<br />
fotografias e filmagens e, por indicação de alguns moradores locais, fomos<br />
procurar o Senhor Gildenor Pires que era na ocasião Secretário de Cultura e<br />
Turismo do Município. Esse senhor nos recebeu com educação, porém, com<br />
106
107<br />
Tem Truká na Aldeia: narrativa de um trabalho de campo na Ilha de Assunção-PE<br />
evasivas. Não quis gravar entrevista, nem nos forneceu nenhum documento ou<br />
fotografia que aju<strong>da</strong>sse em nossa pesquisa. Nenhum <strong>da</strong>do que nos aju<strong>da</strong>sse na<br />
compreensão do processo de povoamento ou mesmo <strong>da</strong> história recente do<br />
município. Ressaltando sempre a sua falta de tempo, nos disse, contudo, <strong>da</strong><br />
importância de conversarmos com os índios Truká <strong>da</strong> Ilha de Assunção. Para<br />
facilitar o nosso contato com essa tribo, ele nos levou até a ponte sobre o Rio São<br />
Francisco, onde nos indicou a entra<strong>da</strong> para a tribo e retornou às suas ativi<strong>da</strong>des.<br />
IMAGENS-TESTEMUNHOS: ASPECTOS DA VIDA COTIDIANA E DA<br />
HISTÓRIA DOS TRUKÁ DA ILHA DE ASSUNÇÃO-PE<br />
Portão de entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> área indígena:<br />
ponte sobre o rio São Francisco.<br />
Casa com uma água: habitação comum<br />
na aldeia e, na porta, criança com o<br />
dedo na boca aguar<strong>da</strong> os visitantes.<br />
Vista parcial de um arruamento na<br />
aldeia.<br />
Na entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> aldeia: mensagem e<br />
testemunho.<br />
Oca: testemunho de como moravam os<br />
ancestrais.<br />
Casas conjuga<strong>da</strong>s, bem ao estilo sertanejo.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007
RODRIGUES, M. F. F.<br />
Crianças brincando na aldeia. Criança Truká pousa para a foto em<br />
frente à própria casa.<br />
Os Truká são habitantes <strong>da</strong> ilha de Assunção desde tempos imemoriais. Sua<br />
presença nessa locali<strong>da</strong>de é registra<strong>da</strong> desde as primeiras crônicas de viagem.<br />
Sobre os Truká e o lugar onde estão instalados, Batista (1992, p. 01) nos informa<br />
que:<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007<br />
A ilha tem uma área total de 6000 ha, aproxima<strong>da</strong>mente,<br />
sendo a maior ilha do rio São Francisco. A população total dos<br />
Turká 11 é estima<strong>da</strong> pela FUNAI em 900 índios, embora no<br />
decorrer do nosso trabalho tenhamos feito uma estimativa<br />
diferente. (....) A área identifica<strong>da</strong> como sendo de ocupação<br />
imemorial é de 1650 ha, estando ocupa<strong>da</strong> parcialmente por<br />
posseiros. Como ativi<strong>da</strong>des econômicas principais temos a<br />
agricultura, com plantações de arroz, feijão, legumes e frutas<br />
com vistas à produção de um excedente comercializável e que<br />
serve para o abastecimento do mercado <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des mais<br />
próximas, como Cabrobó, Orocó, Belém de São Francisco.<br />
Chegamos à entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> tribo Truká por volta de nove horas. Seguimos<br />
apreensivos e curiosos acerca de como seríamos recebidos por esse povo. Fomos<br />
recepcionados por Ailson, filho <strong>da</strong> Dona Lurdes, chefe <strong>da</strong> tribo, naquele período.<br />
Através do Ailson e enquanto aguardávamos a resposta se seríamos recebidos por<br />
sua mãe, ficamos ouvindo um pouco <strong>da</strong> história deste povo e conhecendo alguns<br />
objetos artesanais feitos por eles próprios, como: colares, pujá, atavi, dentre<br />
outros usados em seus rituais, principalmente no toré.<br />
A resposta a nossa solicitação chegou de forma positiva, de modo que não só<br />
entrevistamos Ailson e dona Lurdes, como também seu esposo, que era, na<br />
ocasião, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cabrobó. Tivemos<br />
oportuni<strong>da</strong>de, também, de conhecer Dona Rosa, a índia mais velha <strong>da</strong> tribo, que<br />
contava, em junho de 1998 com 91 anos, e estava completamente lúci<strong>da</strong>.<br />
Almoçamos com a Dona Lurdes e seus familiares, carne de bode cozi<strong>da</strong>, far<strong>of</strong>a,<br />
feijão de cor<strong>da</strong> e arroz. Todos os componentes <strong>da</strong> refeição, por eles servidos, era<br />
108
109<br />
Tem Truká na Aldeia: narrativa de um trabalho de campo na Ilha de Assunção-PE<br />
fruto do trabalho <strong>da</strong> tribo e foi produzido na própria ilha. Sobre esse produto e<br />
seu potencial econômico o Poratim (2005) informa:<br />
“A maior cultura <strong>da</strong> ilha é o arroz. Os Truká contam com<br />
orgulho que são os maiores rizicultores de Pernambuco e que<br />
o seu grão costuma ser até 30% maior do que a média do<br />
arroz que vem de outros estados. Para eles, reafirmar sua<br />
capaci<strong>da</strong>de de produção e as quantias produzi<strong>da</strong>s é uma<br />
forma de se contrapor ao preconceito que s<strong>of</strong>rem na região.<br />
Atualmente, são cultivados 2000 hectares de arroz. Ca<strong>da</strong><br />
hectare produz cerca de 6000kg, segundo os indígenas. ‘A<br />
nossa produção alimenta a ci<strong>da</strong>de e ain<strong>da</strong> dizem que a gente<br />
não faz na<strong>da</strong>, reclama a liderança Adenilson Santos Vieira, o<br />
Dena’”. 12<br />
De fato os Truká são orgulhosos de sua produção de arroz e dos demais cultivos e<br />
criatórios. Sentem orgulho com a mesma intensi<strong>da</strong>de de sua cultura e não<br />
perdem oportuni<strong>da</strong>de de apresentar aos visitantes os rituais mais importantes e<br />
que os caracterizam como povos indígenas. Por isso nosso prêmio maior naquela<br />
<strong>da</strong>ta foi obtermos autorização para assistir e registrar o Toré.<br />
O Toré entre os Truká é também chamado de “Folguedo dos índios”. Na<br />
compreensão do grupo este ritual é encarado enquanto uma diversão ou festejo<br />
típico dos “Caboclos” e consiste numa reunião de um grupo de <strong>da</strong>nçadores,<br />
cantores e assistentes, que se reúnem num local aberto, com o objetivo de “se<br />
divertirem”.<br />
[....] A <strong>da</strong>nça consiste numa coreografia varia<strong>da</strong>, indo <strong>da</strong><br />
simples marcação de uma bati<strong>da</strong> com o pé direito e o arrastar<br />
do pé esquerdo, deslocando-se o corpo para o lado até trocarse<br />
de posição com o parceiro do lado, até operações mais<br />
complexas, onde os dois se abaixam, se levantam, batem o pé<br />
direito e vão puxando sua fileira para o final, de forma a se<br />
constituir uma evolução sincroniza<strong>da</strong>” (BATISTA, 1992, p. 173-<br />
177).<br />
Naquela noite o Toré, que ocorre regularmente na aldeia, teve muito de<br />
improvisação, mas a animação foi geral. Participaram do ritual idosos, jovens e<br />
crianças e até nós, a certa altura, fomos convi<strong>da</strong>dos a participar desse folguedo.<br />
O Toré, para os povos ressurgidos, antes do "<strong>da</strong>r-se a<br />
conhecer" para a socie<strong>da</strong>de envolvente, era praticado apenas<br />
por algumas famílias "detentoras" desse conhecimento. A<br />
partir de sua apresentação pública, como povos<br />
diferenciados, passa a fazer parte dos deveres cotidianos<br />
desses povos, suas comuni<strong>da</strong>des e seus indivíduos. No que se<br />
refere as suas obrigações espirituais, o Toré passa a ser<br />
elemento de iniciação infantil, delimita funções e atribui<br />
privilégios tanto no plano social como no espiritual no<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007
RODRIGUES, M. F. F.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007<br />
interior do grupo. A complexi<strong>da</strong>de sócio-político-religiosa<br />
existente no Toré é o elemento central aglutinador entre os<br />
povos indígenas do Nordeste, seu caráter ritual implica dois<br />
universos principais: o Toré de ordem pública e o de ordem<br />
"particular", isto é, o ritualístico.<br />
O primeiro está relacionado a sua etnici<strong>da</strong>de, é público, é o<br />
"nós estamos aqui", pintados e com cocar para mostrar que<br />
"somos índios"; dessa forma se apresentam com suas<br />
vestimentas em eventos políticos e religiosos. O segundo,<br />
sem seus elementos visuais, é praticado no "terreiro", na<br />
aldeia e dele participam todos os integrantes”. 13<br />
Durante todo o ritual que vivenciamos naquela noite sob a luz <strong>da</strong>s estrelas e<br />
acariciados pela brisa do “Velho Chico”, a música entoa<strong>da</strong> pelos índios fez-se<br />
acompanhar apenas pelo som do maracá e <strong>da</strong>s fortes pisa<strong>da</strong>s dos participantes.<br />
Ficou evidencia<strong>da</strong> a animação dos mais velhos <strong>da</strong> tribo que <strong>da</strong>nçaram e beberam<br />
no decorrer do ritual que se prolongou <strong>da</strong>s dezenove as vinte e duas horas.<br />
Naquela ocasião ficou confirma<strong>da</strong>, a importância do pajé que se manteve à frente<br />
do cerimonial, em todo os momentos. A lembrança do Toré <strong>da</strong>nçado pelos Truká<br />
vez por outra retorna a nossa memória. Também compõem a memória desse<br />
encontro belas fotos e imagens em vídeo por nós produzi<strong>da</strong>s as quais recorremos<br />
com freqüência para ilustrar as nossas aulas de Geografia do Brasil.<br />
O “Particular” é um outro ritual praticado pelos Truká, tendo como elemento de<br />
destaque a Juremeira que, segundo Dona Lurdes, faz parte dos “incantos”. Sobre<br />
esse ritual nos fala Batista (1992 p. 189) e nos dá uma descrição minuciosa do<br />
mesmo.<br />
Iniciamos com uma descrição do que vem a ser um particular<br />
ou Auricuri, ou ain<strong>da</strong> uma Cienciazinha. Como elemento de<br />
maior destaque encontra-se a “juremeira”, bebi<strong>da</strong> primordial<br />
para este ritual. Ela é obti<strong>da</strong> através <strong>da</strong> efusão <strong>da</strong> casca <strong>da</strong> raiz<br />
Jurema, que foi arranca<strong>da</strong> com antecedência, acompanha<strong>da</strong><br />
de orações (padre-nosso, ave-maria e invocações) e uma vela<br />
acesa.<br />
Este foi o único momento ve<strong>da</strong>do a observação <strong>da</strong><br />
pesquisadora, pois foi dito que nenhum não-iniciado tem<br />
permissão para assistir a este momento, quando se pede o<br />
consentimento <strong>da</strong> árvore, para a retira<strong>da</strong> de uma de suas<br />
muitas raízes.<br />
Existem muitos tipos de Jurema, mas só uma árvore de<br />
Jurema, serve, pois ela traz a força e o conhecimento<br />
necessários aos seus seguidores. Esse tipo especial de Jurema<br />
110
111<br />
Tem Truká na Aldeia: narrativa de um trabalho de campo na Ilha de Assunção-PE<br />
tem essas quali<strong>da</strong>des porque é o sangue de um índio morto.<br />
A jurema que serve é lisa, sem espinhos e branca.<br />
Depois de arranca<strong>da</strong> a raiz, se for para ser utiliza<strong>da</strong> nos<br />
próximos dias, torna-se a enterrá-la, perto do local onde irá<br />
ocorrer o Particular, to<strong>da</strong>s as pessoas envolvi<strong>da</strong>s deverão<br />
orar e rogar aos seus “espíritos protetores” que tudo ocorra<br />
bem e que aqueles que lhes querem fazer mal sejam<br />
afastados. Algumas horas antes do início... já que todos são<br />
caboclos <strong>da</strong> ilha.<br />
Apesar de sabermos <strong>da</strong> existência de remanescentes indígenas na Ilha de<br />
Assunção, em Cabrobó, não imaginávamos ao sairmos para o campo que o nosso<br />
contato tivesse um desfecho tão interessante. Para nós foi gratificante conhecer e<br />
entrevistar os índios Truká, assim como compartilhar do Toré com esse povo 14 .<br />
A história dos Truká integra um conjunto de lutas pela retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong>s terras<br />
indígenas no Brasil. São eles, portanto, um exemplo <strong>da</strong> resistência pela posse <strong>da</strong><br />
terra, especialmente <strong>da</strong> terra indígena no Nordeste brasileiro, sobre a qual Spix e<br />
Martius (1986) já afirmavam no século XIX:<br />
Quando os colonos europeus se espalharam <strong>da</strong> Bahia para a<br />
província do Piauí entre os anos de 1674 e 1700, e, mais tarde,<br />
nos princípios do século passado começaram a viajar de M.<br />
Gerais pelo Rio São Francisco abaixo, foram fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s diversas<br />
missões à margem deste rio, pelos franciscanos, <strong>da</strong> Bahia. Os<br />
pontás e maçaracás foram aldeados em Juazeiro, na Vila Real<br />
de Santa Maria, na Vila de Nossa Senhora <strong>da</strong> Assunção e em<br />
Cabroró [sic]; os chucurus, em Orobó. To<strong>da</strong>via, não tiveram<br />
essas tentativas de civilização um êxito feliz, e, quase todos os<br />
índios morreram, ou então se misturaram com portugueses e<br />
mestiços. (SPIX e MARTIUS, 1986, p. 216)<br />
Felizmente os Truká desafiaram as marcas do tempo e reintegraram-se como<br />
etnia em seu lugar ancestral. A força desse povo na reapropriação do território<br />
nos faz recor<strong>da</strong>r antigos pressupostos <strong>da</strong> ciência geográfica que desde o século<br />
XIX através de autores como Ratzel (1990) já propugnava o território como trunfo;<br />
do mesmo modo como o ratifica Raffestin (1993) até os dias atuais. Foi tomandoo<br />
com este valor que os colonizadores souberam tão bem usar do potencial<br />
técnico de que eram detentores para apropriar-se do território brasileiro. Na<br />
atuali<strong>da</strong>de os povos indígenas reafirmam a importância do território nos<br />
processos de resistência através <strong>da</strong>s manifestações culturais reatulizando seus<br />
valores e suas crenças. A defesa dos territórios pelos diversos povos em luta no<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007
RODRIGUES, M. F. F.<br />
Brasil, nos fazem lembrar de alguns geógrafo a exemplo de Haesbaert (2002;<br />
2004), que interpreta os movimentos em defesa do território a partir do conceito<br />
de territorialização e suas múltiplas formas de construção e apropriação concretas<br />
ou simbólicas do território. Esse autor denomina a “fuga” ou desapropriação do<br />
território de desterritorialização; já a reapropriação do mesmo denomina de<br />
reterritorialização.<br />
Mestiços, caboclos, aldeados, índios do sertão, assim é que os Truká se<br />
reconhecem e buscam reconstruir sua história e lutar pelos seus direitos. De<br />
posse de documentos que os identificam enquanto aldeados <strong>da</strong> ilha de Assunção,<br />
retomaram a luta pela terra, por várias vezes inicia<strong>da</strong>s por seus ancestrais. Com o<br />
Toré e o Particular, eles reafirmam a sua identi<strong>da</strong>de indígena, fazendo emergir<br />
relações esqueci<strong>da</strong>s “num intenso reencantamento do mundo” 15 .<br />
Sobre os índios Truká, podemos afirmar que eles nos deixaram lições de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia<br />
que merecem ser retoma<strong>da</strong>s a ca<strong>da</strong> dia.<br />
Considerações Finais<br />
“Fico muito emocionado quando ouço dos mais velhos os encantos do Rio São<br />
Francisco, eles não conseguem olhar para águas e não se indignar pelo que<br />
fizeram com os nossos ‘encantos’, entre barragens, desmatamentos, poluição<br />
meu povo chora! Clama pela vi<strong>da</strong> do Velho Chico e o que generosamente<br />
distribuiu por todo nordeste. A história de luta e resistência do povo Truká, foi<br />
trava<strong>da</strong> nas ribeiras, nas ilhas do São Francisco ele significa pra nós o ser pai.<br />
Vi<strong>da</strong> minha, vi<strong>da</strong> sua Corre lá e corre cá. É <strong>da</strong>s pernas desse rio que depende os<br />
Truká. Se sair a transposição maior surpresa terão. Por meu pai não respeitar" 16 .<br />
Ao retomar estes escritos para a versão inaugural <strong>da</strong> Revista OKARA fui<br />
surpreendi<strong>da</strong> com a notícia de que os Truká estão acampados as margens do São<br />
Francisco numa grande mobilização contra a transposição do Rio São Francisco. As<br />
razões dos Truká e o que os mobiliza a resistência é de uma racionali<strong>da</strong>de<br />
inquestionável. Eles já perambularam pelas periferias urbanas e com muita garra<br />
conseguiram retomar as terras ancestrais. O rio é sinônimo de vi<strong>da</strong>; terra e água<br />
formam uma só base material e simbólica que não cabe separação; bem sabem os<br />
Truká em sua sábia filos<strong>of</strong>ia. Poderíamos aprender com eles velhas lições que a<br />
separação <strong>da</strong> natureza, em nome <strong>da</strong> técnica, nos impôs. Os Truká sabem que<br />
sobre o seu território pairam as ameaças <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de que recorrentemente<br />
nos fazem lembrar uma noção deixa<strong>da</strong> pelo velho Marx que no Manifesto<br />
Comunista afirmou: “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Referia-se o filós<strong>of</strong>o<br />
comunista aos processos aut<strong>of</strong>ágicos <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de capitalista e as suas<br />
conseqüências.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007<br />
112
113<br />
Tem Truká na Aldeia: narrativa de um trabalho de campo na Ilha de Assunção-PE<br />
Que a resistência dos Truká ultrapasse essa fronteira móvel <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de e<br />
reedite com suas práticas culturais velhas filos<strong>of</strong>ias para a continui<strong>da</strong>de desse<br />
grupo étnico, por quem temos grande respeito.<br />
O campo é assim.... a gente vai e vem. Ao fazer esse relato fiquei lembrando dos<br />
companheiros de viagem comigo adentrando aos sertões, na busca de entender o<br />
Brasil. Naquela ocasião eram alunos, hoje são pr<strong>of</strong>issionais que formam outros e<br />
que assim como eu sonham com um país onde o respeito às diferenças signifique<br />
liber<strong>da</strong>de e não aprisionamento. No retorno a esse tema minha gratidão pelo<br />
apoio 17 a esses velhos companheiros de muitas crenças e jorna<strong>da</strong>s.<br />
Notas<br />
1 Tonho de Chiquinho. Disponível em: http://www.indiosonline.org.br/blogs/index.php.<br />
Acesso em: 11 de julho de 2007<br />
2 Cf. Rodrigues, Maria de Fátima Ferreira. Sertão no Plural: <strong>da</strong> linguagem geográfica ao território <strong>da</strong><br />
diferença. (2001), <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de São Paulo (Tese de doutorado).<br />
3 Um trabalho de cunho geográfico que possibilitou melhor dimensionar o crescimento<br />
econômico e as transformações ocorri<strong>da</strong>s na paisagem, na região de Petrolina Juazeiro dos<br />
anos 50 do século passado até os tempos atuais é: AZEVEDO, Aroldo. A Região de Juazeiro<br />
e Petrolina In: Regiões e Paisagens do Brasil. São Paulo: Companhia editora Nacional,<br />
1952.<br />
4 Um trabalho de cunho geográfico que possibilitou melhor dimensionar o crescimento<br />
econômico e as transformações ocorri<strong>da</strong>s na paisagem, na região de Petrolina Juazeiro dos<br />
anos 50 do século passado aos tempos atuais é: AZEVEDO, Aroldo. A Região de Juazeiro e<br />
Petrolina In: Regiões e Paisagens do Brasil. São Paulo: Companhia editora Nacional, 1952.<br />
5 Busquei apoio em trabalhos de cunho geográfico onde de forma direta ou indireta, se<br />
coloca a discussão sobre o Trabalho de Campo. Cf. Ratts, Alecsando J. P. Entre os Povos<br />
Invisíveis In: Fronteiras Invisíveis: Territórios Negros e Indígenas no Ceará. Dissertação<br />
(Mestrado em Geografia Humana), São Paulo: USP, 1995. Katz, Cindi. Jugando en el campo:<br />
Cuestiones referi<strong>da</strong>s al trabajo de campo en Geografía. Universi<strong>da</strong>d de la Ciu<strong>da</strong>d de Nueva<br />
York: Pr<strong>of</strong>essional Geographer. Vol 46 (1), febrero, p. 67-72, 1994.<br />
6 As instituições por nós elenca<strong>da</strong>s anteriormente a viagem, com o objetivo de no campo,<br />
estabelecermos contato e obtermos informações sobre o sertão, foram: o IBGE, as IES, as<br />
Bibliotecas Públicas, as Casas de Cultura, as Prefeituras Municipais, os Sindicatos de<br />
Trabalhadores Rurais e os Museus. Nos propúnhamos também a procurar grupos de<br />
<strong>da</strong>nças folclóricas, pessoas idosas ou estudiosos comprometidos com o registro <strong>da</strong> cultura<br />
local.<br />
7 Foi de grande valia para o entendimento de como e porque fazer o Trabalho de Campo<br />
“Pelos Sertões” as leituras, orientações e discussões que permearam o curso “O Trabalho<br />
de Campo em Antropologia”, ministrado pelo Pr<strong>of</strong>essor Kabengelê Munanga, no segundo<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007
RODRIGUES, M. F. F.<br />
semestre de 1995, na <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de São Paulo. A este Pr<strong>of</strong>essor agradeço as<br />
contribuições <strong>da</strong><strong>da</strong>s no sentido de fun<strong>da</strong>mentar meu projeto de pesquisa.<br />
8 No Cap I - item 1.2 – Da semi-aridez aos contornos simbólicos, relato o percurso desde as<br />
primeiras descobertas até a delimitação do tema. Grande parte <strong>da</strong>s leituras e reflexões<br />
feitas nesta fase <strong>da</strong> pesquisa, serviram de aporte à delimitação do campo.<br />
9 Em 2000 uma equipe de pr<strong>of</strong>essores do Departamento de Geografia <strong>da</strong> UFPB realizou um trabalho<br />
de campo nessa mesma locali<strong>da</strong>de sob juntamente com a Pr<strong>of</strong>a Doralice Sátyro Maia, Carlos<br />
Augusto Amorim Cardoso e Maria do Rosário Ferreira . Na ocasião fomos recebidos por Dona<br />
Lurdes, liderança Truká.<br />
10 Além <strong>da</strong>s fontes já cita<strong>da</strong>s fui buscar as informações complementares a este relato em<br />
livros, panfletos, artigos, notas, teses e depoimentos obtidos no decorrer do Trabalho de<br />
Campo. Estas fontes estão cita<strong>da</strong>s de forma direta ou indireta. Também fun<strong>da</strong>mentam e<br />
ilustram este relato as informações e fotografias obti<strong>da</strong>s no Trabalho de Campo.<br />
11 Em conversa com a antropóloga Mércia Rejane, em outubro de 1998, ela afirmou que a<br />
denominação Turká, ao invés de Truká, manti<strong>da</strong> por ela em sua pesquisa de mestrado,<br />
deu-se em respeito à forma como os índios pronunciavam o nome <strong>da</strong> tribo antes <strong>da</strong><br />
chega<strong>da</strong> de FUNAI para delimitação <strong>da</strong> área. Vale salientar que mantive a denominação<br />
Truká, porque quando os conheci os próprios índios assim se autodenominaram.<br />
12 Porantim. Em Defesa <strong>da</strong> Causa Indígena, Ano XXVI. No 274 – Brasília-DF, abril de 2005.<br />
13 AMORIM, Siloé Soares de. Notas etnográficas: A construção <strong>da</strong> auto-imagem de povos indígenas<br />
ressurgidos Os Tumbalalá, os Kalankó e os Karuazu, Kóiupanká e Catókinn – II In:<br />
http://www.studium.iar.unicamp.br/13/5.html?studium=2.html Acesso em 20/03/2007.<br />
14 Da<strong>da</strong> a riqueza do depoimento obtido, por meio <strong>da</strong> entrevista concedi<strong>da</strong> por Dona Lurdes,<br />
com a participação do seu filho Ailson e de seu esposo o Sr. Wlisses, esta entrevista<br />
passou a constituir um anexo a tese de doutorado já menciona<strong>da</strong> nesse texto.<br />
15 ARRUTI, José Maurício Andion. Morte e vi<strong>da</strong> do Nordeste indígena: a emergência étnica<br />
como fenômeno histórico regional. Revista de Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n<br />
15, jan./jun., p. 57-94, 1995.<br />
16 PAJEÚ, Edna Bezerra. Disponível em: http://www.indiosonline.org.br/blogs/index.php.<br />
Acesso em: 11 de julho de 2007<br />
17 Participaram desse campo comigo Ednilza Barbosa, William Guimarães e Martha Priscilla.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007<br />
114
115<br />
Referências<br />
Tem Truká na Aldeia: narrativa de um trabalho de campo na Ilha de Assunção-PE<br />
AMORIM, Siloé Soares de. Notas etnográficas: A construção <strong>da</strong> auto-imagem de<br />
povos indígenas ressurgidos Os Tumbalalá, os Kalankó e os Karuazu, Kóiupanká e<br />
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OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 101-117, 2007
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
A PRODUÇÃO DO ESPAÇO INTRA-URBANO E<br />
AS OCUPAÇÕES IRREGULARES NO CONJUNTO<br />
MANGABEIRA, JOÃO PESSOA–PB 1<br />
Resumo<br />
Luciana Medeiros de Araújo<br />
Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB<br />
O presente trabalho analisa a produção do espaço intra-urbano do conjunto de<br />
Mangabeira, localizado em João Pessoa, destacando-se as suas ocupações<br />
irregulares, a exemplo <strong>da</strong> Feirinha – recorte espacial para nossa investigação<br />
empírica. Construído na déca<strong>da</strong> de 1980 esse conjunto inscreve-se no contexto<br />
<strong>da</strong>s políticas públicas de habitação social, bem como no processo de periferização<br />
planeja<strong>da</strong>, o qual expandiu o tecido urbano nas direções sul-sudeste onde estão<br />
localizados os grandes conjuntos habitacionais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />
De modo mais específico, busca entender a participação do Estado na construção<br />
de moradias e a permissivi<strong>da</strong>de deste quanto à existência <strong>da</strong>s ocupações<br />
irregulares; o processo de apropriação dos espaços públicos para a<br />
autoconstrução de moradias; e delimita algumas ocupações irregulares, com o<br />
intuito de se perceber a condição dos moradores postos sob o estigma de<br />
“favelados”, de “invasores”.<br />
Quanto à escala espacial, esta pesquisa está inscrita no espaço intra-urbano de<br />
João Pessoa. No entanto, a problemática analisa<strong>da</strong> emerge de uma escala maior,<br />
que vai além dos limites <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de ou mesmo <strong>da</strong> região. Isso porque, concebe-se<br />
que, a periferização, a favelização e a pobreza urbana nas ci<strong>da</strong>des do mundo<br />
subdesenvolvido, são ca<strong>da</strong> vez mais engendra<strong>da</strong>s a partir de forças externas e do<br />
modo capitalista de produção.<br />
Assim, as reflexões sobre o espaço intra-urbano são remeti<strong>da</strong>s ao processo <strong>da</strong><br />
expansão territorial <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des brasileiras, sobretudo a partir <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s de<br />
1970-1980, ressaltando-se a celeri<strong>da</strong>de do processo de urbanização dessas<br />
ci<strong>da</strong>des. Pautado no modelo de desenvolvimento econômico desigual e<br />
excludente, esse processo têm contribuído para a formação de uma estrutura<br />
intra-urbana socioespacialmente fragmenta<strong>da</strong> e segrega<strong>da</strong>, cujas áreas mais<br />
periféricas e deteriora<strong>da</strong>s são reserva<strong>da</strong>s à população de menor poder aquisitivo<br />
(BONDUKI e ROLNIK, 1982; KOWARICK, 1993; SANTOS, 1982).<br />
Neste contexto, a expansão urbana <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de João Pessoa se configura como<br />
um “mosaico” socioespacialmente distinto, marcado por contradições e<br />
iniqüi<strong>da</strong>des sociais, sobre o qual atuam as forças produtivas que tramam a<br />
(re)produção de seu espaço urbano. Fragmentado, seletivo, este espaço comporta<br />
um crescente movimento de ocupações irregulares nas áreas mais periféricas, a<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 118-120, 2007
119<br />
A produção do espaço intra-urbano e as ocupações irregulares no conjunto Mangabeira, João Pessoa–PB<br />
exemplo de Mangabeira. Aqui, estas ocupações estão assenta<strong>da</strong>s em quarteirões<br />
que foram inicialmente destinados à implantação de uni<strong>da</strong>des de vizinhanças,<br />
equipamentos urbanos e praças. Com efeito, à despeito de seu caráter<br />
desordenado e <strong>da</strong> precarie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s moradias autoconstruí<strong>da</strong>s (MARICATO, 1982),<br />
constituem ver<strong>da</strong>deiros enclaves de favelas, onde sobrevivem trabalhadores que<br />
estão à margem <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de dita legal, cujo rendimento mensal varia entre 1 e 2<br />
salários mínimos.<br />
Sob uma perspectiva mais ampla, reafirma-se que os processos de periferização<br />
planeja<strong>da</strong> e de favelização observados em João Pessoa, são postos como questões<br />
desafiadoras à gestão pública. Estes processos, arraigados nas estruturas urbanas<br />
<strong>da</strong>s médias e grandes ci<strong>da</strong>des dos países subdesenvolvidos, foram ampliados a<br />
partir <strong>da</strong> industrialização e <strong>da</strong> rápi<strong>da</strong> urbanização, comportando complexas<br />
formas e conteúdos, marca<strong>da</strong>s por grandes contradições, conflitos e segregação<br />
socioespacial.<br />
Nas áreas mais periféricas essa segregação revela-se pelo alto índice de pobreza<br />
urbana, pelas iniqüi<strong>da</strong>des sociais e pelos bolsões de miséria formados por um<br />
expressivo contingente de trabalhadores pobres alijados do direito à ci<strong>da</strong>de<br />
(LEFEBVRE, 2001) e do acesso à moradia digna e às “benesses” dos equipamentos<br />
e serviços urbanos mais modernos, configurando-se, pois, uma “urbanização<br />
patológica” (MARTINS, 1981).<br />
A dissertação ora apresenta<strong>da</strong> está estrutura<strong>da</strong> em quatro capítulos. O primeiro,<br />
“A produção do espaço intra-urbano de João Pessoa”, propõe um breve resgate<br />
histórico do processo de expansão urbana dessa ci<strong>da</strong>de, evidenciando a<br />
distribuição espacial <strong>da</strong>s classes pobres no tecido urbano e a análise <strong>da</strong> formação<br />
<strong>da</strong>s favelas, tomando como referência as novas direções de expansão <strong>da</strong> “Ci<strong>da</strong>de<br />
Moderniza<strong>da</strong>” a partir de 1970 (MAIA, 1994). O segundo capítulo, denominado<br />
“Periferização planeja<strong>da</strong>: a produção dos conjuntos habitacionais em João<br />
Pessoa”, discute as intervenções do poder público na provisão <strong>da</strong> moradia<br />
popular a partir <strong>da</strong> implantação dos conjuntos habitacionais financiados pelo<br />
Banco Nacional de Habitação (BNH) e pelo Sistema Financeiro de Habitação (SFH).<br />
O terceiro capítulo, “Conjunto Mangabeira: dimensões, visibili<strong>da</strong>de e suas<br />
ocupações irregulares”, abor<strong>da</strong> a localização, delimitação e caracterização<br />
socioeconômica de Mangabeira, discutindo ain<strong>da</strong>, o surgimento <strong>da</strong>s ocupações<br />
irregulares, a luta e a resistência de seus moradores. O quarto capítulo, intitulado<br />
“A Feirinha: para além <strong>da</strong> ilegali<strong>da</strong>de, o espaço <strong>da</strong> moradia”, está centrado na<br />
análise <strong>da</strong> ocupação irregular <strong>da</strong> Feirinha de Mangabeira, trazendo a leitura e a<br />
interpretação dos <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> pesquisa empírica. A Feirinha é revela<strong>da</strong> por fora e<br />
por dentro: sua origem, as condições de vi<strong>da</strong> e de trabalho de seus moradores e a<br />
carência dos serviços urbanos básicos.<br />
No tocante à metodologia, a presente dissertação combina dois procedimentos<br />
indissociáveis à pesquisa geográfica: o levantamento bibliográfico e documental e<br />
o trabalho de campo. Este último possibilitou uma maior relação de interação<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 118-120, 2007
ARAÚJO, L. M.<br />
social e intersubjetivi<strong>da</strong>de com os moradores <strong>da</strong> Feirinha, desvelando<br />
inquietações relativas à vi<strong>da</strong> e ao cotidiano dos moradores, os quais foram<br />
estu<strong>da</strong>dos por meio de conversas informais, entrevistas estruturas, aplicação de<br />
questionários e por uma rica documentação fotográfica. Igualmente, o trabalho<br />
de campo viabilizou o levantamento de <strong>da</strong>dos secundários, por intermédio de<br />
visitas aos órgãos públicos federais, estaduais e municipais.<br />
Palavras-chave: favelização, periferização, ocupações irregulares, espaço<br />
intra-urbano.<br />
Notas<br />
1 Dissertação de Mestrado defendi<strong>da</strong> em 01 de Setembro de 2006 no Programa de Pós-Graduação<br />
em Geografia (PPGG) <strong>da</strong> UFPB, sob a orientação <strong>da</strong> Pr<strong>of</strong>ª. Drª Doralice Sátyro Maia.<br />
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capitalista <strong>da</strong> casa (e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de) no Brasil Industrial. São Paulo: Alga-Ômega, p.71-<br />
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SANTOS, M. A urbanização desigual. A especifici<strong>da</strong>de do fenômeno urbano em<br />
países subdesenvolvidos. Petrópolis: Vozes, 1982. 125p.<br />
Contato <strong>da</strong> autora: araujolm@uol.com.br<br />
Recebido em: 15/05/2007<br />
Aprovado em: 29/05/2007<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 118-120, 2007<br />
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Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
O TERRITÓRIO COMO UM TRUNFO: UM<br />
ESTUDO SOBRE A CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS<br />
NA PARAÍBA (ANOS 1990) 1<br />
Resumo<br />
Josineide <strong>da</strong> Silva Bezerra<br />
Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB<br />
A dissertação por mim defendi<strong>da</strong> junto ao PPGG pretendeu construir uma<br />
reflexão acerca do processo de criação dos últimos 52 municípios instalados na<br />
<strong>Paraíba</strong>, onde as uni<strong>da</strong>des locais de governo saltaram de 171 para 223, nos anos<br />
1990. Apesar de ter me debruçado sobre a história política local, esse processo,<br />
relacionado à organização <strong>da</strong>s fronteiras internas estaduais, é verificável em todo<br />
o Brasil, onde mais de mil locali<strong>da</strong>des distritais foram emancipa<strong>da</strong>s no mesmo<br />
período.<br />
Ante o expressivo número de territórios instalados, voltei-me à Mesorregião <strong>da</strong><br />
Mata Paraibana, centrando a pesquisa empírica nos municípios de Capim e de<br />
Sobrado, desmembrados em Mamanguape e Sapé, respectivamente. Sendo a<br />
primeira região a ser ocupa<strong>da</strong> na <strong>Paraíba</strong>, foi a partir <strong>da</strong> Mata que se realizou o<br />
processo de criação dos nossos primeiros núcleos de povoamento na época<br />
colonial. Capim e Sobrado foram selecionados porque são <strong>of</strong>icialmente<br />
classificados como o mais urbano e o mais rural município, entre os oitos novos<br />
municípios criados nessa mesorregião, segundo o IBGE.<br />
A pesquisa foi operacionaliza<strong>da</strong> a partir de um levantamento bibliográfico para o<br />
embasamento teórico, sendo o território e o poder local recortados como<br />
categorias especiais sob influência de autores como Raffestin (1993) e Costa<br />
(2004), bem como de um levantamento geral <strong>da</strong>s fontes a serem consulta<strong>da</strong>s<br />
junto à órgãos como Assembléia Legislativa, TRE e IBGE. De igual modo, foi feita<br />
uma pesquisa de campo, com a realização de entrevistas abertas e semiestrutura<strong>da</strong>s<br />
junto à socie<strong>da</strong>de local. Neste resumo, optei por apresentar a<br />
dissertação por intermédio <strong>da</strong>s conclusões as quais cheguei.<br />
Considerações sobre a criação de municípios na <strong>Paraíba</strong><br />
A criação de novos municípios marca a história recente <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, ampliando a<br />
malha municipal existente. Tal processo é verificável nos diferentes estados<br />
brasileiros, estando relacionado à dinâmica político-institucional vivencia<strong>da</strong> no<br />
país, a partir <strong>da</strong> superação <strong>da</strong> Ditadura Militar sob normativas estabeleci<strong>da</strong>s pela<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 121-124, 2007
BEZERRA, J. S.<br />
Carta de 1988, a qual remeteu aos entes estaduais a prerrogativa de definir as<br />
suas fronteiras internas.<br />
Nos anos 1990, o mapa político local passou a contar com 223 municípios criados<br />
sob uma legislação bastante permissiva quando considera<strong>da</strong>s as exigências aos<br />
distritos aptos à emancipação, a exemplo de contar com população não inferior a<br />
2 mil habitantes. Daí a formação de uni<strong>da</strong>des locais classificáveis como pequenos<br />
municípios, segundo o IBGE, com um contingente populacional não superior a 20<br />
mil habitantes. Na <strong>Paraíba</strong>, entre os 52 novos territórios, o mais populoso é Gado<br />
Bravo, no Agreste, com pouco menos de 9 mil habitantes.<br />
O argumento propalado pelo Legislativo Estadual, responsável pela criação <strong>da</strong>s<br />
novas locali<strong>da</strong>des instala<strong>da</strong>s, esteve embasado em um discurso que apontava<br />
para duas questões, ambas volta<strong>da</strong>s à melhoria <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
população.<br />
Por um lado, os deputados afirmavam que a criação de municípios promoveria<br />
uma nova partilha de receitas, valorizando-se o território distrital, quando<br />
emancipado, ante o incremento do seu orçamento, essencial ao atendimento <strong>da</strong>s<br />
deman<strong>da</strong>s dos ci<strong>da</strong>dãos, marcados pelo estigma do “esquecimento” por viverem<br />
em um território distrital legalmente destituído de autonomia. Por outro lado,<br />
ressaltavam que as políticas emancipacionistas incrementariam a democracia<br />
brasileira, pois aproximariam o ci<strong>da</strong>dão do governo municipal, potencializando a<br />
sua capaci<strong>da</strong>de de propor ações de fiscalizar o executivo local.<br />
Assinalo que há uma coerência nesse discurso. Entre os moradores <strong>da</strong>s<br />
locali<strong>da</strong>des pesquisa<strong>da</strong>s é consensual o entendimento de que houve uma<br />
melhoria <strong>da</strong>s condições de vi<strong>da</strong> nesses territórios, isso quando considerados os<br />
direitos mais elementares, indispensáveis: acesso à escola e assistência básica à<br />
saúde. Sob essa perspectiva, o que deveria ser assegurado ao ci<strong>da</strong>dão como uma<br />
obrigação do Poder Público, ou não se realizava, ou se realizava ain<strong>da</strong> mais<br />
precariamente nos antigos distritos.<br />
É assinalável, to<strong>da</strong>via, que isso não constitui uma política estratégica de<br />
desenvolvimento local ou de aperfeiçoamento <strong>da</strong> nossa democracia, a qual está<br />
alicerça<strong>da</strong> em bases especialmente eleitorais, no limite do exercício do voto. Um<br />
exercício fragilizado pelas práticas clientelistas que o perpassam, basea<strong>da</strong>s na<br />
troca de favores. Práticas que dão continui<strong>da</strong>de a uma reali<strong>da</strong>de que é vivencia<strong>da</strong><br />
nos mais diferentes recantos do país, onde o voto é pontuado por um jogo de<br />
barganhas que alimenta as elites políticas locais e regionais.<br />
Daí entender que a criação de município esteve impregna<strong>da</strong> pela lógica de<br />
reprodução de novos espaços de poder por meio <strong>da</strong> criação de novas máquinas<br />
burocráticas, as quais dizem respeito a instituição de criação de novas prefeituras<br />
e câmaras municipais. Não obstante, a vi<strong>da</strong> nas locali<strong>da</strong>des distritais encerra<br />
necessi<strong>da</strong>des que a emancipação veio a minimizar, minorando as desigual<strong>da</strong>des<br />
socioespaciais. Assim, a centrali<strong>da</strong>de política que os municípios comportam<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 121-124, 2007<br />
122
123<br />
O território como um trunfo: um estudo sobre a criação de municípios na <strong>Paraíba</strong> (anos 1990)<br />
reveste-se de uma positivi<strong>da</strong>de, mesmo que a autonomia local esbarre, por<br />
exemplo, na limita<strong>da</strong> densi<strong>da</strong>de econômica desses territórios – dependentes de<br />
transferências constitucionais.<br />
Os <strong>conselho</strong>s municipais são contornados como instâncias que abrem espaços à<br />
uma participação social mais ampla na gestão do poder público (SANTOS JÚNIOR,<br />
2001). Entretanto, nos novos territórios esses <strong>conselho</strong>s são constituídos sob uma<br />
pressão legal, como um pré-requisito para o acesso à programas e recursos<br />
federais. Potencialmente, os espaços locais são mais propícios à um engajamento<br />
político. Porém, a participação social, inscrevendo a socie<strong>da</strong>de civil na gestão<br />
local, é praticamente inexistente. Há uma ausência relaciona<strong>da</strong> ao<br />
desconhecimento dos canais a serem ocupados ou a inexistência de uma<br />
articulação orgânica através de grupos de interesses como associações e<br />
sindicatos.<br />
Além disso, em que pese o fato <strong>da</strong>s câmaras municipais serem um instrumento<br />
fiscalizador, tais instituições funcionam como extensão <strong>da</strong>s prefeituras, cujos<br />
vereadores são por elas cooptados, sem compor um espaço de fiscalização e de<br />
elaboração de políticas públicas. A sua atuação está centra<strong>da</strong> em benfeitorias<br />
pontuais, requeri<strong>da</strong>s junto à prefeitura: a rua calça<strong>da</strong>, o telefone público; a<br />
reforma <strong>da</strong> praça. E há muito o que fiscalizar. O nepotismo é um exercício<br />
comum, admitido como normali<strong>da</strong>de ou como exercício legítimo.<br />
Sistematicamente as contas municipais são rejeita<strong>da</strong>s, envoltas em práticas de má<br />
gestão como o gasto excessivo com compras efetua<strong>da</strong>s ou a ausência do<br />
mecanismo licitatório.<br />
Pelo exposto, posso admitir que os novos municípios já se revelam “velhos”<br />
territórios. Isso porque o perfil aqui apontado demonstra práticas políticas<br />
comuns às diferentes municipali<strong>da</strong>des já existentes no país. Certamente há muitas<br />
semelhanças entre Sobrado e Sapé ou entre Capim e Mamanguape. A novi<strong>da</strong>de<br />
está nos ci<strong>da</strong>dãos que vivenciaram a transição política. Essas pessoas são as que<br />
mais se demonstram empolga<strong>da</strong>s e esperançosas no novo lugar de se viver:<br />
apesar de ser pequena, ser ci<strong>da</strong>de não tem comparação com ser distrito –<br />
manifestou-me uma dona de casa.<br />
O meu trabalho leva-me a pensar que há outros caminhos a serem trilhados por<br />
aqueles que discutem os pequenos municípios ou a emancipação de novos<br />
territórios. Temos que promover reflexões sobre a relação entre as sedes<br />
municipais e os seus distritos e temos que pensar o município como um ente que<br />
é constituído por territórios sem autonomia – os distritos. Caso contrário, teremos<br />
que admitir que o quadro de precarie<strong>da</strong>de que caracteriza os diferentes distritos<br />
<strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong> ou do Brasil só será minimamente recomposto quando os mesmos<br />
forem alçados à condição de municípios a partir <strong>da</strong> emancipação local.<br />
Por fim, retomo um consenso na literatura sobre a temática abor<strong>da</strong><strong>da</strong> (CATAIA,<br />
2001; SILVA, 2006), o qual também está ancorado na pesquisa que realizei. A<br />
viabili<strong>da</strong>de dos novos territórios, sob a perspectiva de uma socie<strong>da</strong>de mais justa e<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 121-124, 2007
BEZERRA, J. S.<br />
democrática, basea<strong>da</strong> na valorização de um munícipe que tem acesso à direitos,<br />
somente poderá ser imagina<strong>da</strong> se sustenta<strong>da</strong> não no governo de plantão, mas na<br />
conquista de um território ver<strong>da</strong>deiramente emancipado, construído por ci<strong>da</strong>dãos<br />
que sejam sujeitos de sua própria emancipação.<br />
Palavras-chave: gestão do território, descentralização, emancipação municipal,<br />
pequenos municípios.<br />
Notas<br />
1 Dissertação de Mestrado defendi<strong>da</strong> em 14 de Setembro de 2006 no Programa de Pós-Graduação<br />
em Geografia (PPGG) <strong>da</strong> UFPB, sob a orientação <strong>da</strong> Pr<strong>of</strong>ª. Drª Maria de Fátima Ferreira Rodrigues.<br />
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fragmentação do território brasileiro. 2001. Tese (Doutorado em Geografia).<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de São Paulo – USP, São Paulo. 252p.<br />
COSTA, Rogério Haesbaert <strong>da</strong>. O Mito <strong>da</strong> desterritorialização: do “fim dos<br />
territórios” à multiterritoriali<strong>da</strong>de. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 389p.<br />
RAFEFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993. 269p.<br />
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no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2001. 246p.<br />
SILVA, Anieres B. Relações de poder, fragmentação e gestão do território no<br />
semi-árido nordestino: um outro olhar sobre o Cariri Paraibano, 2006. Tese<br />
(Doutorado em Ciências Sociais). <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> do Rio Grande do Norte –<br />
UFRN, Natal. 311p.<br />
Contato <strong>da</strong> autora: pr<strong>of</strong>.neide@uol.com.br<br />
Recebido em: 20/05/2007<br />
Aprovado em: 01/06/2007<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 121-124, 2007<br />
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Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
A CIDADE DOS OLHOS VERDES:<br />
PRECARIEDADE URBANA (Um estudo <strong>da</strong>s<br />
implicações sócio-espaciais <strong>da</strong> Lei que altera<br />
as áreas verdes para construir habitação<br />
popular em João Pessoa- PB 1<br />
Resumo<br />
Márcia Maria Costa Gomes<br />
Centro <strong>Federal</strong> de Educação Tecnológica <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong> (CEFET-PB)<br />
A dissertação de Mestrado intitula<strong>da</strong> “A ci<strong>da</strong>de de olhos verdes: Precarie<strong>da</strong>de<br />
urbana” tem como objetivo analisar as implicações sócio-espaciais <strong>da</strong> Lei<br />
Municipal nº 9.962/03 que altera o uso de áreas verdes de loteamentos para fins<br />
de construção de uni<strong>da</strong>des habitacionais populares na ci<strong>da</strong>de de João Pessoa -PB.<br />
Nisto resultou uma preocupação em apreender e entender a reali<strong>da</strong>de do objeto<br />
de estudo <strong>da</strong> pesquisa, atentando para a complexi<strong>da</strong>de dos processos sociais em<br />
sua totali<strong>da</strong>de. A temática norteadora <strong>da</strong> pesquisa relacionou-se com as<br />
implicações sociais e espaciais <strong>da</strong> alteração do uso, por força de lei, em áreas<br />
verdes de loteamentos para a construção de casas populares em bairros<br />
localizados na periferia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de João Pessoa.<br />
Assim, analisar as implicações sócio-espaciais <strong>da</strong> Lei nº 9.962/03 que altera o uso<br />
de bens de comum uso do povo, nota<strong>da</strong>mente de áreas verdes de loteamentos e<br />
equipamentos comunitários para a construção de habitações populares na ci<strong>da</strong>de<br />
de João Pessoa, é considerar a relação entre espaço e socie<strong>da</strong>de. Isto é, como se<br />
dá o processo de organização espacial através <strong>da</strong>s práticas sociais numa socie<strong>da</strong>de<br />
heterogênea e complexa.<br />
Neste sentido, a reflexão <strong>da</strong> problemática levanta<strong>da</strong> no espaço urbano de João<br />
Pessoa têm como conceito central de análise, o espaço urbano enquanto<br />
abor<strong>da</strong>gem geográfica. No entendimento de Santos (1985, p.49), o espaço<br />
“constitui uma reali<strong>da</strong>de objetiva, um produto social em permanente processo de<br />
transformação”. Para este autor, a socie<strong>da</strong>de somente pode ser defini<strong>da</strong> através<br />
do espaço, uma vez que ele é fruto <strong>da</strong> produção do trabalho realizado pelos<br />
homens num determinado tempo.<br />
Desse modo, a problemática levanta<strong>da</strong> no espaço urbano de João Pessoa constitui<br />
uma reali<strong>da</strong>de objetiva e que se relaciona com a questão <strong>da</strong>s áreas verdes de<br />
loteamentos na periferia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de concomitante a questão <strong>da</strong> habitação popular.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 125-127, 2007
GOMES, M. M. C.<br />
Portanto, discutiu-se nesta pesquisa não somente sobre as condições precárias <strong>da</strong><br />
“classe-que-vive-do-trabalho” 2 , especificamente os de baixa ren<strong>da</strong>, os que não<br />
tem ren<strong>da</strong> e os miseráveis que não tem como obter a mercadoria/habitação, mas<br />
expõe em que condições os trabalhadores urbanos ocupam espaços públicos na<br />
ci<strong>da</strong>de.<br />
A análise construí<strong>da</strong> foi alicerça<strong>da</strong> pelo entendimento que a acumulação de<br />
riqueza nas ci<strong>da</strong>des capitalistas no mundo contemporâneo têm-se ampliado na<br />
medi<strong>da</strong> que se intensifica a precarização do trabalho 3 , resultando em péssimas<br />
condições de moradia e em sua extensão, nos serviços de transporte, de saúde,<br />
de educação, de lazer, de áreas verdes.<br />
Neste sentido, foi essencial distinguir a natureza política <strong>da</strong>s ocupações<br />
fomenta<strong>da</strong>s pelos movimentos sociais, nota<strong>da</strong>mente os <strong>da</strong> moradia, haja vista, de<br />
modo geral, que as ocupações se efetuam em bens públicos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, ora em<br />
prédios públicos, ora em áreas verdes de loteamentos, com objetivos de<br />
pressionar os governos municipais e/ou estadual na obtenção de moradia.<br />
Diferentemente <strong>da</strong> natureza política <strong>da</strong> alteração do uso de áreas verdes de<br />
loteamentos provoca<strong>da</strong> pelo Poder Público Municipal e, conseqüentemente, por<br />
força de lei, é desafetar os bens de uso comum do povo para construir habitação<br />
popular.<br />
Para alcançar o objetivo traçado, buscou-se analisar os argumentos dos<br />
vereadores <strong>da</strong> Câmara Municipal de João Pessoa, cuja aprovação <strong>da</strong> Lei<br />
menciona<strong>da</strong> foi quase que unânime. Ain<strong>da</strong> assim, averiguou-se o posicionamento<br />
dos moradores do entorno <strong>da</strong>s áreas verdes de loteamentos do bairro José<br />
Américo e do Planalto <strong>da</strong> Boa Esperança, sobretudo <strong>da</strong> alteração de uso para a<br />
construção de uni<strong>da</strong>des habitacionais populares.<br />
Verificou-se que as razões, de modo geral, diluí<strong>da</strong>s nos argumentos do Poder<br />
Público, foram focaliza<strong>da</strong>s em nome do déficit habitacional na ci<strong>da</strong>de de João<br />
Pessoa e <strong>da</strong> urgência <strong>da</strong> população pobre que mora em áreas de risco. Esse<br />
entendimento reforçou uma suposição inicialmente levanta<strong>da</strong>. A criação <strong>da</strong> Lei nº<br />
9.962/03 que altera o uso <strong>da</strong>s áreas verdes de loteamentos para construir<br />
habitação popular esbarra numa implicação social essencial: a violação do<br />
usufruto dos bens de uso comum do povo na ci<strong>da</strong>de, em detrimento de uni<strong>da</strong>des<br />
habitacionais populares, argüí<strong>da</strong> por um discurso filantrópico <strong>da</strong> burguesia.<br />
Palavras-chave: áreas verdes de loteamento, habitação popular, precarização do<br />
trabalho.<br />
Notas<br />
1 Dissertação de Mestrado defendi<strong>da</strong> em 29 de Setembro de 2006 no Programa de Pós-Graduação<br />
em Geografia (PPGG) <strong>da</strong> UFPB, sob a orientação do Pr<strong>of</strong>. Dr. Carlos Augusto de Amorim Cardoso.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 125-127, 2007<br />
126
127<br />
A ci<strong>da</strong>de dos olhos verdes: precarie<strong>da</strong>de urbana (um estudo <strong>da</strong>s implicações sócio-espaciais <strong>da</strong> Lei que<br />
altera as áreas verdes para construir habitação popular em João Pessoa-PB)<br />
2 Expressão utiliza<strong>da</strong> por Ricardo Antunes em “Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a<br />
centrali<strong>da</strong>de do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2005.<br />
3 Para um apr<strong>of</strong>un<strong>da</strong>mento sobre a questão no mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo,<br />
cf. Antunes, Ricardo. As metamorfoses no Mundo do trabalho. In: Adeus ao trabalho? Ensaio sobre<br />
as metamorfoses e a centrali<strong>da</strong>de do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2005.<br />
Referências<br />
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a<br />
centrali<strong>da</strong>de no mundo do trabalho. 10. ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP:<br />
Editora <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Estadual de Campinas, 2005.<br />
SANTOS, Milton . Espaço & método. São Paulo: Nobel, 1985. (Coleção espaços).<br />
Contato <strong>da</strong> autora: mmarciagomes@ibest.com.br<br />
Recebido em: 22/05/2007<br />
Aprovado em: 09/06/2007<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 125-127, 2007
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
A COLONIZAÇÃO DO SERTÃO DA PARAÍBA:<br />
AGENTES PRODUTORES DO ESPAÇO E<br />
CONTATOS INTERÉTNICOS (1650-1730) 1<br />
Resumo<br />
Paulo Henrique Marques de Queiroz Guedes<br />
Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB<br />
Dentre as diversas conceituações possíveis de espaço, aquela que o entende<br />
como produto <strong>da</strong>s relações entre indivíduos, grupos ou culturas, nos desperta<br />
especial interesse. Além disso, o espaço se produz no tempo estando, assim, em<br />
contínua construção. Baseado nessas premissas, nossa dissertação de mestrado<br />
teve como objetivo principal analisar a ocupação colonial do sertão <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong><br />
tomando por base os agentes produtores deste espaço e os contatos interétnicos<br />
entre índios e colonizadores, num período que compreende a segun<strong>da</strong> metade do<br />
século XVII e as três primeiras déca<strong>da</strong>s do século XVIII.<br />
Num trabalho desta natureza, as relações interdisciplinares são, não apenas<br />
importantes, mas sobretudo imprescindíveis para um maior enriquecimento dos<br />
temas tratados. Neste sentido, procuramos realizar um diálogo entre a geografia,<br />
a história e a antropologia, sendo esta última, uma área de conhecimento<br />
essencial para estudos que envolvem índios. Ao longo do século XX os índios<br />
foram enfocados, principalmente como força de trabalho, objetos de catequese<br />
ou empecilho ao avanço colonial, porém, quase nunca foram vistos como<br />
protagonistas dos processos históricos dos quais participaram. Assim sendo,<br />
pesou sobre eles, quase sempre, um olhar passivo que os condenava à transitar<br />
na história como aqueles que sempre refletiam as ações desencadea<strong>da</strong>s pelos<br />
colonizadores. Somente a partir <strong>da</strong>s duas últimas déca<strong>da</strong>s do século XX, em<br />
decorrência principalmente de um maior diálogo <strong>da</strong> história e <strong>da</strong> geografia com a<br />
antropologia, estes passaram a ser vistos como sujeitos ativos, capazes de agir em<br />
função de seus interesses e de acordo com suas estratégias diante dos contatos<br />
com os colonizadores.<br />
Nosso trabalho insere-se na “órbita” dos estudos sobre formação social e<br />
territorial pois todo processo de colonização têm em sua lógica a expansão<br />
territorial de um determinado grupo humano. Assim sendo, a colonização<br />
pressupõe domínio territorial, sendo suas razões fruto de interesses materiais e<br />
simbólicos. Para que a colonização ocorresse foi necessário uma intervenção<br />
humana e uma nova ordenação do espaço conquistado, relações, portanto,<br />
íntimas entre socie<strong>da</strong>de e espaço. Daí a necessi<strong>da</strong>de, a qual nos reportamos<br />
acima, de articular geografia e história para enriquecer a compreensão <strong>da</strong><br />
colonização do sertão <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong> nos seus primeiros tempos.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 128-130, 2007
129<br />
A colonização do Sertão <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>: agentes produtores do espaço e contatos interétnicos (1650-1730)<br />
Partindo do pressuposto de que a cultura define ou redefine o espaço, nós o<br />
consideramos como uma reali<strong>da</strong>de tríplice, ao mesmo tempo social, funcional e<br />
simbólica. Assim, para a geografia cultural, o moderno conceito de espaço<br />
humanizado é reflexo de escolhas, necessi<strong>da</strong>des e meios de diferentes culturas,<br />
sendo esta perspectiva igualmente direciona<strong>da</strong> sobre o conceito de região.<br />
Tomando como pressuposto essa perspectiva, o espaço humanizado que<br />
abor<strong>da</strong>mos nesta pesquisa é o sertão, ou melhor, o que se entendia por sertão no<br />
contexto <strong>da</strong> conquista e colonização <strong>da</strong> Capitania Real <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>. Torna-se<br />
importante destacar, desde já, que, nas representações simbólicas sobre o<br />
território colonial, o sertão aparecia, quase sempre, como a oposição do litoral<br />
colonizado, ganhando ain<strong>da</strong> outras conotações. Neste sentido, no momento <strong>da</strong><br />
interiorização <strong>da</strong> conquista na Capitania Real <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, o sertão representava<br />
também to<strong>da</strong> uma área ain<strong>da</strong> não ocupa<strong>da</strong> pela colonização que equivalia, nos<br />
séculos XVII e XVIII, às mesorregiões que conhecemos hoje como Cariri, Seridó,<br />
Brejo, Agreste e Curimataú, além <strong>da</strong> própria mesorregião denomina<strong>da</strong> atualmente<br />
de Sertão.<br />
A pesquisa se desenvolveu fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> em fontes primárias e bibliográficas,<br />
nota<strong>da</strong>mente neste segundo caso, em obras que abor<strong>da</strong>m a colonização do<br />
sertão, grupos indígenas do período colonial e temas afins. Quanto às fontes<br />
primárias, merecem destaque os relatos dos cronistas do período colonial, bem<br />
como os documentos de diversos tipos, principalmente aqueles que compõem o<br />
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (relativos a <strong>Paraíba</strong>) e a Coleção de<br />
Documentos Históricos <strong>da</strong> Biblioteca Nacional. Ain<strong>da</strong> no que se refere às fontes<br />
primárias, deve-se destacar o estudo <strong>da</strong> documentação de base cartográfica,<br />
evidenciando os mapas que foram produzidos no período colonial ou<br />
recentemente, e que têm relação com o espaço abor<strong>da</strong>do no trabalho. Vale<br />
destacar ain<strong>da</strong> que em alguns capítulos, principalmente no primeiro e terceiro,<br />
recorremos sobretudo aos resumos <strong>da</strong>s concessões de sesmarias no sertão<br />
conti<strong>da</strong>s na obra “Apontamentos para a história territorial <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>”, de João de<br />
Lyra Tavares (1982) e nas “Synopsis <strong>da</strong>s Sesmarias”, de Irenêo J<strong>of</strong>fily (1892).<br />
Nesse sentido, no primeiro capítulo analisamos as várias dimensões do sertão no<br />
período colonial. Primeiro a dimensão simbólica, ou seja, a forma como o sertão<br />
colonial era visto pelos homens <strong>da</strong> época, partindo do pressuposto de que as<br />
imagens cria<strong>da</strong>s sobre este espaço variaram no tempo e de acordo com as<br />
mu<strong>da</strong>nças conjunturais. Além disso, procuramos demonstrar como o sertão foi<br />
qualificado de acordo com determinados grupos étnicos e sociais, nota<strong>da</strong>mente<br />
os índios “Tapuia”. Num segundo momento discutimos as mu<strong>da</strong>nças ecológicas<br />
fruto <strong>da</strong> transmigração de plantas e animais exógenos em meio à colonização do<br />
sertão. Por fim, avaliamos os fluidos limites territoriais do sertão <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, os<br />
conflitos de jurisdição entre diferentes esferas de poder (eclesiástico, fazendário,<br />
militar, entre outros) e seus problemas durante o período colonial em relação ao<br />
sertão.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 128-130, 2007
GUEDES, P. H. M. Q.<br />
No segundo capítulo, destacamos o modo de vi<strong>da</strong> dos índios “Tapuia”, que são<br />
considerados protagonistas <strong>da</strong> conquista do sertão e importantes agentes<br />
produtores do espaço. Procuramos aqui, a partir principalmente dos cronistas <strong>da</strong><br />
época e de uma bibliografia especializa<strong>da</strong>, apresentar aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> material,<br />
simbólica e <strong>da</strong> organização social destes povos. Tomando como referência<br />
teoricamente as abor<strong>da</strong>gens culturais <strong>da</strong> geografia e os estudos antropológicos,<br />
procuramos apresentar inicialmente a grande diversi<strong>da</strong>de étnica dos índios do<br />
sertão para em segui<strong>da</strong> analisar aspectos de sua cultura material e simbólica.<br />
No terceiro capítulo detivemo-nos na análise <strong>da</strong> interiorização <strong>da</strong> conquista <strong>da</strong><br />
<strong>Paraíba</strong>, partindo do sistema sesmarial que propiciou a obtenção de terra na<br />
região. Procura-se neste momento, apresentar, principalmente, to<strong>da</strong> a<br />
heterogenei<strong>da</strong>de social <strong>da</strong>queles que foram, junto com os índios, agentes<br />
produtores do espaço-sertão na capitania <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>. Tratamos a ocupação<br />
colonial do sertão enfocando os principais agentes colonialistas produtores do<br />
espaço, as motivações e itinerários <strong>da</strong> conquista colonial do sertão <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>,<br />
destacando os principais grupos sociais e as estratégias adota<strong>da</strong>s por estes para<br />
adquirir terra no sertão.<br />
No capítulo final abor<strong>da</strong>mos os contatos interétnicos entre índios e colonizadores,<br />
nota<strong>da</strong>mente as ações bélicas que envolveram os índios, a participação destes<br />
como guias nas penetrações ou ain<strong>da</strong> como sesmeiros. Enfocamos também os<br />
aldeamentos indígenas no sertão, considerando-os como lócus de resistência e<br />
inserção dos índios em meio à socie<strong>da</strong>de colonial que se formava no sertão.<br />
Partimos do pressuposto de que estes contatos variaram de acordo com as<br />
estratégias adota<strong>da</strong>s pelos vários grupos indígenas ante os agentes colonialistas.<br />
De resistência arma<strong>da</strong> ao avanço colonial à aliança militar firma<strong>da</strong> entre índios e<br />
colonizadores, passando pelos aldeamentos indígenas, foram várias as situações<br />
de contato na conquista do sertão.<br />
Palavras-chave: colonização, sertão, índios, formação territorial.<br />
Notas<br />
1 Dissertação de Mestrado defendi<strong>da</strong> em 17 de Fevereiro de 2006 no Programa de Pós-Graduação<br />
em Geografia (PPGG) <strong>da</strong> UFPB, sob a orientação <strong>da</strong> Pr<strong>of</strong>ª. Drª Ariane Norma de Menezes Sá.<br />
Referências:<br />
JOFFILY, Irenêo. Notas sobre a Parahyba. Brasília-DF: Thesauros Editora, 1892.<br />
TAVARES, João de Lyra. Apontamentos para a história territorial <strong>da</strong> Parahyba.<br />
Edição Fac-similar. Coleção Mossoroense, 1982.<br />
Contato do autor: pr<strong>of</strong>paulohenrique@gmail.com<br />
Recebido em: 02/06/2007<br />
Aprovado em: 19/06/2007<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 128-130, 2007<br />
130
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
AS TRANSFORMAÇÕES NA PAISAGEM DO<br />
PORTO DO CAPIM: LEITURA(S) DE UMA<br />
PAISAGEM URBANA 1<br />
Resumo<br />
Vera Lúcia Araújo<br />
Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB<br />
A presente pesquisa de mestrado resulta <strong>da</strong> determinação em estu<strong>da</strong>r a paisagem<br />
do Porto do Capim, motiva<strong>da</strong> pela constatação de intensa degra<strong>da</strong>ção, não<br />
obstante a sua singulari<strong>da</strong>de histórica e paisagística. Na área situa<strong>da</strong> à margem<br />
direita do rio Sanhauá/<strong>Paraíba</strong>, <strong>da</strong> planície até a colina, há marcas <strong>da</strong> origem <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de. A primitiva paisagem do Porto do Capim foi sendo continuamente<br />
transforma<strong>da</strong>.<br />
Localizado na parte baixa do Bairro do Varadouro, o Porto do Capim representa a<br />
locali<strong>da</strong>de mais antiga <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, portanto, a única centrali<strong>da</strong>de até a déca<strong>da</strong> de<br />
1960 quando se iniciou o processo de expansão <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Na déca<strong>da</strong> de 1950 a<br />
área passou a ser ocupa<strong>da</strong> por populações de baixa ren<strong>da</strong>. A desvalorização<br />
imobiliária, a infra-estrutura de transportes urbanos e a proximi<strong>da</strong>de com o<br />
comércio varejista, contribuíram para a ocupação desordena<strong>da</strong> e a formação de<br />
favelas urbanas: famílias sem moradia que aos poucos ocuparam os espaços “fora<br />
do mercado imobiliário”. Essas são as razões que levaram a formação <strong>da</strong>s<br />
Comuni<strong>da</strong>des Porto do Capim e Vila Nassau.<br />
A transferência <strong>da</strong> função portuária para o município de Cabedelo contribuiu para<br />
a estagnação <strong>da</strong> área do Porto do Capim, enquanto o antigo Bairro do Varadouro<br />
entrava em gra<strong>da</strong>tiva decadência. Atualmente, o processo de uso e ocupação do<br />
solo reflete a segregação espacial e habitacional a que são submeti<strong>da</strong>s essas<br />
populações. As transformações na paisagem e nessas comuni<strong>da</strong>des são o objeto<br />
de estudo desta pesquisa que se reporta ao estudo do próprio processo histórico<br />
de (re)construção do espaço urbano <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de João Pessoa. Por seus atributos<br />
históricos e paisagísticos, o sítio de origem <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, não obstante ter sido<br />
degra<strong>da</strong>do ao longo de sua existência, chama a atenção dos turistas que visitam a<br />
ci<strong>da</strong>de. Assim, o Porto do Capim tem sido alvo de diversos planos de revitalização,<br />
tal como o Plano de Revitalização para o Varadouro e o Antigo Porto do Capim, o<br />
mais recente, que apresenta propostas de intervenção volta<strong>da</strong>s para o turismo.<br />
Analisar as transformações <strong>da</strong> paisagem do Porto do Capim é o objetivo geral <strong>da</strong><br />
pesquisa. Os objetivos específicos consistem em realizar leitura(s) <strong>da</strong> paisagem<br />
urbana a partir do resgate de suas características nas diversas fases de sua<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 131-134, 2007
ARAÚJO. V. L.<br />
existência e explicar as transformações que ora se processam, no que diz respeito<br />
à estrutura e equipamentos urbanos, à condição de moradia e ain<strong>da</strong>, ao cotidiano<br />
e às estratégias de sobrevivência econômica dos moradores <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des<br />
Porto do Capim e Vila Nassau.<br />
Nos percursos metodológicos <strong>da</strong> história do pensamento geográfico, a abor<strong>da</strong>gem<br />
lablachiana foi a referência de parti<strong>da</strong> para a elaboração do referencial teórico<br />
que norteia o desenvolvimento desta pesquisa no campo <strong>da</strong> Geografia Humana,<br />
porquanto se entende que o atributo cultural permeia as representações, sendo<br />
as relações e os eventos fatores atuantes na (des)construção <strong>da</strong> paisagem.<br />
Buscou-se subsídio no aprendizado <strong>da</strong>s leituras antropológicas, considerando que<br />
a Antropologia tradicionalmente têm analisado grupos étnicos e, mais<br />
recentemente, vêm estu<strong>da</strong>ndo a vi<strong>da</strong> urbana. Para analisar as transformações<br />
ocorri<strong>da</strong>s na paisagem em suas diversas fases, buscou-se a perspectiva <strong>da</strong><br />
Geografia Histórica, linha de pesquisa que possibilita resgatar a trajetória <strong>da</strong><br />
paisagem e estabelecer a articulação necessária entre os recortes espaçotemporais.<br />
Além dessa ancoragem, buscou-se também o aporte <strong>da</strong><br />
Fenomenologia e <strong>da</strong> Nova História que se tangenciam na leitura <strong>da</strong> paisagem.<br />
Assim, a pesquisa se reporta também à Jacques Le G<strong>of</strong>f (1996), por sua trajetória<br />
de elaboração de um novo paradigma histórico e pela tentativa de introduzir<br />
alguma racionali<strong>da</strong>de na história vivi<strong>da</strong> e na memória. Essa paisagem têm sido<br />
intensamente transforma<strong>da</strong>, tanto que interpretá-la exige diversos olhares. Além<br />
de volver ao passado epistemológico em que se teorizou o conhecimento<br />
geográfico, fez-se necessário buscar os fun<strong>da</strong>mentos teóricos nos quais se<br />
baseiam os estudos contemporâneos do espaço através <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong> paisagem.<br />
A análise <strong>da</strong> paisagem por suas transformações recentes não se dá sem um<br />
estudo e uma reflexão relativa às populações envolvi<strong>da</strong>s. A paisagem é<br />
importante pelos significados que encerra enquanto parte <strong>da</strong> memória coletiva<br />
<strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des que nela se reconhecem e através dela mantêm a sua<br />
identi<strong>da</strong>de. Este estudo buscou referências ao conceito de paisagem nas<br />
geografias pós-modernas, com o resgate <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s paisagens locais, do<br />
sentido de lugar e do sentimento de pertença. Reporta-se também às pesquisas<br />
realiza<strong>da</strong>s por geógrafos brasileiros na busca de um conceito que viesse traduzir<br />
as singulari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> paisagem objeto de estudo, cuja construção contou com uma<br />
participação heterogênea de atores sociais. Portanto, são considerados os<br />
estudos que levam ao resgate histórico-geográfico <strong>da</strong> formação do espaço urbano<br />
nesta ci<strong>da</strong>de. Em tempos de paisagem globaliza<strong>da</strong> a condição <strong>da</strong>s paisagens locais<br />
possibilita conhecer as questões que envolvem o trabalho, não somente do<br />
geógrafo, mas <strong>da</strong>queles que, na sua reali<strong>da</strong>de, necessitam se dedicar ao estudo<br />
do espaço e <strong>da</strong> paisagem. Assim, esta pesquisa buscou, no pensamento de Milton<br />
Santos (1997), explicações para os desequilíbrios urbanos que se materializam nas<br />
paisagens locais, <strong>of</strong>erecendo métodos e técnicas para analisar a reali<strong>da</strong>de<br />
brasileira. A pesquisa se reporta também aos geógrafos Denise Elias (2002), Dirce<br />
Maria Antunes Suertegaray (2001), Arlete Moysés Rodrigues (2001), Doralice<br />
Sátyro Maia (2000), Roberto Lobato Correia (1999), Zeny Rosendhal (1996) e<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 131-134, 2007<br />
132
133<br />
As transformações na paisagem do porto do capim: leitura(s) de uma paisagem urbana<br />
Edvânia Torres Aguiar Gomes (1997), pelas contribuições para a geografia<br />
brasileira, <strong>of</strong>erecendo fun<strong>da</strong>mentos para o estudo <strong>da</strong> paisagem, análise do espaço<br />
e explicações para a exclusão social que se apresenta nas ci<strong>da</strong>des brasileiras e, em<br />
particular, para interpretação <strong>da</strong> área objeto de estudo. Enquanto a paisagem é<br />
analisa<strong>da</strong> sob várias dimensões, resgata-se o próprio processo de construção do<br />
espaço geográfico.<br />
Embora comprometi<strong>da</strong> com o resgate do processo histórico e ancora<strong>da</strong> na<br />
perspectiva <strong>da</strong> Geografia Histórica, a pesquisa procurou se distanciar <strong>da</strong><br />
lineari<strong>da</strong>de temporal. Essa tentativa de evasão à estabili<strong>da</strong>de de tempo cíclico<br />
aponta para uma circunvisão que considera a temporali<strong>da</strong>de espiral. Procurou-se<br />
apreender as peculiari<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s fases <strong>da</strong> paisagem, identificando<br />
suas conexões. Assim, foram definidos os procedimentos metodológicos que<br />
levariam à leitura <strong>da</strong> paisagem segundo critérios específicos para ca<strong>da</strong> segmento,<br />
sem perder de vista a paisagem presente. Nesse contexto de tentativas<br />
metodológicas, buscou-se identificar também, a forma de convergência dos<br />
fatores de transformação. A dissertação apresenta a seguinte estrutura:<br />
• Porto do Capim: o resgate historiográfico de uma paisagem urbana;<br />
• A paisagem <strong>da</strong>s intervenções modernas;<br />
• Porto do Capim e Vila Nassau: a paisagem (re)visita<strong>da</strong>.<br />
A partir dessa estrutura foram determina<strong>da</strong>s linhas de abor<strong>da</strong>gem para ca<strong>da</strong><br />
segmento, mas que se tangenciam na leitura <strong>da</strong> paisagem. Por isso, leitura(s) de<br />
uma paisagem urbana. No terceiro segmento, a paisagem (re)visita<strong>da</strong>, a pesquisa<br />
versa sobre as comuni<strong>da</strong>des a partir dos depoimentos coletados em entrevistas e<br />
questionários direcionados para temas relativos às relações cotidianas nessas<br />
comuni<strong>da</strong>des, às alternativas de moradia e às estratégias de sobrevivência<br />
econômica. Este segmento contém a essência <strong>da</strong> pesquisa, tendo sido elaborado a<br />
partir dos contatos mantidos com as comuni<strong>da</strong>des estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s, Porto do Capim e<br />
Vila Nassau. Sobretudo foram registrados os depoimentos dos moradores e os<br />
relatos de suas memórias. Foram elaborados croquis, mapas e registro fotográfico<br />
com análise, explicações e comentários. Portanto, registra-se a paisagem do Porto<br />
do Capim como atualmente se apresenta, enquanto se reafirma o trabalho de<br />
campo como indispensável na pesquisa científica e particularmente na análise <strong>da</strong><br />
paisagem.<br />
Palavras-chave: paisagem, comuni<strong>da</strong>des, favelas, Porto do Capim.<br />
Notas<br />
1 Dissertação de Mestrado defendi<strong>da</strong> em 14 de Setembro de 2006 no Programa de Pós-Graduação<br />
em Geografia (PPGG) <strong>da</strong> UFPB, sob a orientação <strong>da</strong> Pr<strong>of</strong>ª. Drª Doralice Sátyro Maia.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 131-134, 2007
ARAÚJO. V. L.<br />
Referências<br />
CORRÊA, R. L. O espaço urbano. 4. ed. São Paulo: Ática, 1999.<br />
ELIAS, D. "Milton Santos: a construção <strong>da</strong> geografia ci<strong>da</strong>dã". In: El ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>no, la<br />
globalización y la geografía. Homenaje a Milton Santos. Scripta Nova. Revista<br />
electrónica de geografía y ciencias sociales, Universi<strong>da</strong>d de Barcelona, vol. VI,<br />
núm. 124, 30 de septiembre de 2002. Disponível em:<br />
. Acesso em 24 de ago. 2006. [ISSN:<br />
1138-9788].<br />
GOMES, E. T. A. Recortes de paisagens na Ci<strong>da</strong>de do Recife: uma abor<strong>da</strong>gem<br />
geográfica. Tese de doutorado em Geografia Humana. São Paulo: <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong><br />
de São Paulo, 1997.<br />
LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1996.<br />
MAIA, D. S. Tempos lentos na ci<strong>da</strong>de: permanência e transformações dos<br />
costumes rurais na ci<strong>da</strong>de de João Pessoa-PB. <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de São Paulo, 2000.<br />
(Doutorado em Geografia).<br />
RODRIGUES, A. M. Moradia nas ci<strong>da</strong>des brasileiras. São Paulo: Contexto, 2001.<br />
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2001. Disponível em: . Acesso em 24 de<br />
ago. 2006.<br />
Contato <strong>da</strong> autora: veralucia.pb@ig.com.br<br />
Recebido em: 25/05/2007<br />
Aprovado em: 19/06/2007<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 131-134, 2007<br />
134
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
ENTREVISTA<br />
Pr<strong>of</strong>ª. Drª. Ana Firmino<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Nova de Lisboa<br />
VISÕES DE UMA GEÓGRAFA PORTUGUESA<br />
Ana Maria Viegas Firmino, natural de Amadora, Portugal, é doutora em<br />
Planejamento Rural pela <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Nova de Lisboa. Atualmente é docente<br />
desta instituição de ensino, vincula<strong>da</strong> à Facul<strong>da</strong>de de Ciências Sociais e<br />
Humanas, no Departamento de Geografia e Planejamento Regional. Suas<br />
principais áreas de investigação são Geografia Rural, Desenvolvimento<br />
Sustentável, Formas alternativas de produção agrícola, Ecologia <strong>da</strong> Paisagem e<br />
Problemática Agro-Alimentar. Em visita ao Brasil em julho de 2006, através de<br />
intercâmbio promovido pelo Programa de Pós-graduação em Geografia <strong>da</strong><br />
UFPB, a pr<strong>of</strong>essora Firmino concedeu uma entrevista* que a revista OKARA:<br />
Geografia em Debate agora tem a satisfação de publicar.<br />
*Entrevista realiza<strong>da</strong> por Aline Barboza de Lima e Maria de Fátima Ferreira Rodrigues.<br />
OKARA: Quando e como ocorreu seu ingresso na Geografia?<br />
Firmino: Foi uma coincidência, quando eu pretendia entrar para a facul<strong>da</strong>de, em<br />
1976, tinham decorrido dois anos após a revolução, tínhamos uma Reforma<br />
Agrária em grande ebulição, e por isso pensou-se que estu<strong>da</strong>r na universi<strong>da</strong>de era<br />
um privilégio, e todos os candi<strong>da</strong>tos, estu<strong>da</strong>ntes universitários, tinham que antes<br />
de entrar <strong>da</strong>r um ano de trabalho gratuito a comuni<strong>da</strong>de. Hoje em dia nenhum<br />
aluno meu acredita nisso, mas é ver<strong>da</strong>de. E, portanto, eu estive um ano<br />
substituindo grávi<strong>da</strong>s e deficientes na fila para marcar médico, no posto de saúde,<br />
não é assim um trabalho muito agradável, mas foi o que me foi atribuído. Oito<br />
horas por dia sem ganhar na<strong>da</strong>. Eu tinha me inscrito em economia, e era nos <strong>da</strong><strong>da</strong><br />
à possibili<strong>da</strong>de, quando tínhamos tempo livre, de ir assistir as aulas, e eu ain<strong>da</strong> fui<br />
assistir algumas, e comecei a achar que aquilo estava demasia<strong>da</strong>mente politizado<br />
para o meu gosto, e sobretudo, havia uma grande confrontação entre alunos e<br />
pr<strong>of</strong>essores, porque uns defendiam o Marx, outros defendiam outros<br />
movimentos, e as coisas naquele tempo não eram na<strong>da</strong> pacíficas, nem<br />
democráticas, era mesmo confrontação física. Muitas vezes éramos avaliados pela<br />
forma que nos vestíamos, ao contrário de hoje, em que é chique an<strong>da</strong>r com roupa<br />
de marca, nessa altura, alguém que aparecesse com uma camisa de marca, era<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 135-142, 2007
OKARA Entrevista: Pr<strong>of</strong>a. Dra. Ana Firmino (<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Nova de Lisboa)<br />
logo apeli<strong>da</strong>do de fascista, cacique, e era quase perseguido, e portanto, quase<br />
to<strong>da</strong> a gente vestia muito mal, calça de ganga, sujos, para <strong>da</strong>r um aspecto assim<br />
de trabalhadora do campo. Eu comecei a achar que aquilo não era o ambiente<br />
que me agra<strong>da</strong>va, mas eu estava inscrita, e como eu disse, cheguei a freqüentar<br />
algumas aulas. Quando chegou a altura de eu me inscrever, as confrontações<br />
físicas em economia foram tão grandes, que eles fecharam a facul<strong>da</strong>de, e o meu<br />
pai disse: “Não, isso não pode ser, então estive sustentando você um ano sem<br />
trabalhar e agora vou estar outro ano sustentando você a espera que a facul<strong>da</strong>de<br />
abra, você vai trabalhar”. E eu comecei a ver dentro <strong>da</strong>s cadeiras que eu tinha<br />
feito, quais eram as alternativas, uma era administração naval, que eu não queria<br />
nem pensar, outra era educação física, que até me atraia, porque eu sempre fiz<br />
muito esporte, mas já tinha sido opera<strong>da</strong> do joelho, e achei que não era sensato,<br />
e ain<strong>da</strong> bem que não procurei isso, e o outro era Geografia, e achei que era<br />
interessante, acho que foi uma sorte, porque o curso satisfez-me completamente.<br />
Ele vai ao encontro <strong>da</strong> minha essência. Ajudou-me a encontrar a minha própria<br />
essência, o geógrafo no fundo é alguém que está muito ligado à natureza, embora<br />
haja alguns desvirtuados que estejam manipulados pelo capitalismo, mas o<br />
trabalho do geógrafo deve ser ligado ao trabalho de campo, e as pessoas também.<br />
Pelo menos foi isso que nos ensinaram em 1976, quando eu entrei para a<br />
universi<strong>da</strong>de. Havia quem dizia que o curso de geografia era pior do que recruta<br />
de militares, porque nós andávamos imensos, fiz muitas bolhas nos pés. Ain<strong>da</strong> me<br />
lembro um dia, subimos um monte com uma pr<strong>of</strong>essora francesa, que foi uma<br />
grande figura <strong>da</strong> geografia portuguesa, a pr<strong>of</strong>essora Susane Dago, ela subiu ao<br />
topo do monte, mandou-nos fazermos um croqui <strong>da</strong> paisagem, chovia tanto que o<br />
lápis não escrevia na<strong>da</strong>, e ela dizia: “não, geógrafo é mesmo assim, tem que li<strong>da</strong>r<br />
com as intempéries”, e portanto, havia uma grande ligação com os elementos <strong>da</strong><br />
natureza, e também com as populações, porque fazíamos inquéritos, e eu gostei<br />
mesmo desse trabalho. Tenho certeza de que se tivesse ido para economia não<br />
tinha tido essa experiência Isso veio ao encontro <strong>da</strong> minha própria natureza, e<br />
ajudou-me a encontrar essa ligação com o meio e respeitar as pessoas e as<br />
paisagens, acho que me valorizou como pessoa.<br />
OKARA: Que geógrafos influenciaram na sua formação e quando começou a<br />
ensinar?<br />
Firmino: Eu tenho uma dívi<strong>da</strong> de gratidão muito grande com a pr<strong>of</strong>essora<br />
Carmin<strong>da</strong> Cavaco. Ela é especialista em temas <strong>da</strong> agricultura na geografia<br />
portuguesa. Ao longo <strong>da</strong> minha licenciatura eu fui trabalhar com ela em projetos,<br />
nomea<strong>da</strong>mente alguns livros que ela veio a escrever e que eu fiz o trabalho de<br />
campo e, portanto ela é uma referencia na minha formação. Quando acabei o<br />
curso eu ain<strong>da</strong> tinha trabalhos em conjunto com ela, e um dia em conversa eu<br />
disse que ia comprar uma quinta e fazer agricultura, e ela disse: “Ana, se você não<br />
aceitar o convite que lhe foi feito, para ingressar na <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Nova, eu nunca<br />
mais falo com você”, e aquilo foi um choque para mim, porque eu valorizava tanto<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 135-142, 2007<br />
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137<br />
OKARA Enrevista: Pr<strong>of</strong>a. Dra. Ana Firmino (<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Nova de Lisboa)<br />
a minha relação de amizade com ela, que ela deixar de me falar era o pior que<br />
poderia fazer.<br />
Eu sou uma geógrafa que de alguma forma enveredou pela via <strong>da</strong> agronomia, e<br />
por isso que alguns amigos meus agrônomos, dizem assim “mas como é que um<br />
geógrafo percebe destas coisas?”, é ver<strong>da</strong>de, porque nós não temos essa<br />
formação na facul<strong>da</strong>de, mas eu tive o cui<strong>da</strong>do de freqüentar vários cursos, que<br />
me deram conhecimento. Porque acho que para nós discutirmos, até mesmo para<br />
compreendermos o trabalho, a luta, o s<strong>of</strong>rimento dos agricultores, temos que<br />
perceber o processo, temos nós próprios que passar por ele, para <strong>da</strong>r valor, e por<br />
isso eu fiz dois cursos de agricultura biológica, um <strong>da</strong>do pela AGROBIO e o outro<br />
pelo Ministério <strong>da</strong> Agricultura, que são os cursos de formação para quem quer ser<br />
agricultor biológico, e tenho feito vários cursos, em que aprendi po<strong>da</strong>, enxertia, as<br />
técnicas básicas de horticultura e de jardinagem. Também pertenço a uma<br />
associação de Amigos do Jardim Botânico, com agrônomos, pertenço a uma<br />
Socie<strong>da</strong>de Portuguesa de Estudos Agrícolas, que é a SPEA, que é forma<strong>da</strong><br />
basicamente por agrônomos. Portanto eu mantenho contato com eles, leio muita<br />
coisa de agronomia, o Pr<strong>of</strong>. Fernando Oliveira Batista, o Manoel Moreira, que são<br />
agrônomos, o Francisco Elias, são uma referência para o meu trabalho, são todos<br />
economistas agrários ou agrônomos, ou ligados mesmo à questão. Há muito<br />
poucos geógrafos que se ocupem <strong>da</strong> agricultura e do desenvolvimento rural, por<br />
isso eu procurei mas as obras dos próprios agrônomos.<br />
OKARA: Especificamente sobre agricultura orgânica ou biológica que autores<br />
influenciam o seu trabalho?<br />
Firmino: Eu leio muitas coisas relaciona<strong>da</strong>s com ecologia, sobretudo liga<strong>da</strong>s a<br />
questão <strong>da</strong> agricultura biológica, ultimamente estudo a obra do Rudolf Steiner.<br />
Não é na<strong>da</strong> fácil, nós nos reunimos uma vez por mês, para ver se em conjunto<br />
conseguimos perceber melhor a sua obra. Rudolf Steiner é uma referência.<br />
Eu tenho alguns livros de um pr<strong>of</strong>essor amigo meu aqui do Brasil, de Curitiba,<br />
sobre agricultura orgânica, como vocês chamam aqui, de autores brasileiros, que<br />
eu acho muito bom, por exemplo, José Gonilha. Eu também gosto do trabalho <strong>da</strong><br />
Ana Primavese, embora seja mais teórico, ela também tem estu<strong>da</strong>do o processo<br />
<strong>da</strong> agricultura ecológica.<br />
Alguns seguem bastante o Fukoka, que era um biólogo japonês, que herdou uma<br />
chácara do pai, e ele não tinha tempo para tomar conta <strong>da</strong> agricultura e pensou:<br />
“se as coisas na natureza sobrevivem sem qualquer tratamento, eu também posso<br />
por a minha chácara a funcionar dessa forma”. Bom, ele aprendeu a custa dele<br />
que to<strong>da</strong>s as plantas que estão domestica<strong>da</strong>s não se pode passar do manejo<br />
regular ao abandono, porque há muitas árvores que não dão na<strong>da</strong>, outras<br />
morrem mesmo, mas entretanto, ele conseguiu perceber que após uma fase de<br />
a<strong>da</strong>ptação é possível deixar a natureza funcionar por si. Obter as mesmas boas<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 135-142, 2007
OKARA Entrevista: Pr<strong>of</strong>a. Dra. Ana Firmino (<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Nova de Lisboa)<br />
colheitas sem ter muita intervenção. Ele é o pai <strong>da</strong> sementeira direta, que é uma<br />
técnica que até se utiliza hoje na agricultura convencional.Em vez de trabalhar a<br />
terra, depois por exemplo de cortar o milho, tu vais apenas fazer um furinho para<br />
obter a semente <strong>da</strong> próxima cultura, para uma melhor utilização do solo.<br />
OKARA: Essa influência <strong>da</strong> agronomia ajudou-lhe a dialogar com agricultores e<br />
técnicos?<br />
Firmino: Exatamente. Como é que eu posso propor uma estratégia, se eu não sei<br />
quais são as dificul<strong>da</strong>des, as vantagens, ou os inconvenientes que ela pode vir a<br />
trazer? E é por isso que há muita gente que fala, “ah os OGM, os organismos<br />
geneticamente modificados, isso é que vai ser a solução para a fome no mundo”,<br />
eles não sabem do que estão falando, não fazem a mínima idéia. Ouviram<br />
publici<strong>da</strong>de de uma empresa que anuncia que aquilo é o melhor do mundo. Como<br />
é lógico, a empresa tenta sempre vender e de uma forma irresponsável fazem<br />
disso um estan<strong>da</strong>rte, fazendo crer que é a solução para todos os problemas, mas<br />
não é, isso é um argumento absolutamente falido, porque a fome tem haver<br />
sobretudo com a distribuição de riqueza, e não com produção alimentar, porque<br />
se fosse uma questão de produção alimentar já não haveria fome. Nós estamos<br />
queimando comi<strong>da</strong> em Portugal. É um crime, é uma vergonha, todo o alimento<br />
que se deixa estragar proposita<strong>da</strong>mente para não fazer descer o preço, para que<br />
o preço <strong>da</strong> produção não baixe, quando há tanta gente precisa<strong>da</strong>, que não pode. É<br />
falaciosa essa argumentação em torno do aumento <strong>da</strong> produção, <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de<br />
de aumentar a produção para matar a fome. Eu penso que se as pessoas tivessem<br />
o conhecimento do campo e desta reali<strong>da</strong>de, não abraçavam essa argumentação<br />
em torno dos OGMs. Isso é tudo uma questão de pressão econômica, não tem<br />
na<strong>da</strong> haver com a necessi<strong>da</strong>de de alimentação, e o mesmo aconteceu na<br />
revolução verde.<br />
OKARA: Quando começou a se interessar pelo estudo de uma agricultura mais<br />
comprometi<strong>da</strong> com o meio ambiente?<br />
Firmino: Fiz uma pós-graduação na Holan<strong>da</strong>, em Haia, durante um ano, em<br />
Planeamento Rural no Instituto de Ciências Sociais, e ai sim eu tomei contato com<br />
uma reali<strong>da</strong>de que em Portugal ain<strong>da</strong> não era divulga<strong>da</strong>. Já havia algumas pessoas<br />
interessa<strong>da</strong>s em agricultura biológica, mas não era divulga<strong>da</strong>. Eu até essa altura,<br />
que foi em 1986, nunca tinha ouvido falar em agricultura biológica. Na Holan<strong>da</strong> já<br />
discutiam os impactos ambientais que uma agricultura mais intensiva provocava.<br />
Isso também era conseqüência do fato deles estarem mais avançados nas suas<br />
etapas do desenvolvimento, e portanto, tinham causado já mais <strong>da</strong>nos ao<br />
ambiente do que na altura se verificava em Portugal. Nós não estávamos tão<br />
mecanizados e esse foi o ano em que entramos para União Européia, em 1986.<br />
Ain<strong>da</strong> fazíamos uma agricultura muito tradicional. Havia muita empresa familiar<br />
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em que a prática agrícola ain<strong>da</strong> era, como se costuma dizer, rudimentar, embora<br />
hoje esse rudimentar é o mais adequado numa perspectiva ambientalista, e<br />
portanto é natural que na Holan<strong>da</strong>, nessa altura, estivessem mais preocupados,<br />
porque já tinham tomado consciência desses problemas ambientais.<br />
Tive a oportuni<strong>da</strong>de de visitar algumas explorações de agricultura biológica e<br />
biodinâmica, que é algo que ain<strong>da</strong> hoje em Portugal é considerado muito<br />
exotérico. Eu penso que tenho tido um papel pioneiro nesse aspecto, aliás, tenho<br />
um artigo que fala <strong>da</strong> minha introdução dos temas <strong>da</strong> agricultura biológica na<br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de Lisboa, e hoje acho que continuo a ter esse papel pioneiro a falar<br />
de biodinâmica, aliás, pertenço a um grupo de agricultura biodinâmica, em<br />
Portugal, e também <strong>da</strong> permacultura. Foi a partir dessa experiência na Holan<strong>da</strong>,<br />
na pós-graduação, que eu me interessei em procurar pessoas em Portugal que<br />
tivessem alguma ligação com a agricultura biológica, e foi aí que eu descobri a<br />
AGROBIL – Associação Portuguesa de Agricultura Biológica, vindo mais tarde a<br />
fazer parte <strong>da</strong> direção. Conheci algumas pessoas que faziam agricultura biológica,<br />
a partir <strong>da</strong>í nunca mais deixei de estar liga<strong>da</strong> a esse movimento.<br />
OKARA: Em que trabalhos você tem divulgado a sua discussão sobre agricultura<br />
biológica?<br />
Firmino: Em 1996 escrevi um artigo para a IFOAM, que é a Federação<br />
Internacional dos Movimentos <strong>da</strong> Agricultura Biológica, que na altura teve um<br />
grande impacto, que se chama “Os falsos Agricultores Biológicos”, mas foi a pedra<br />
no saco, um estrago realmente. Havia uma incompatibili<strong>da</strong>de entre o processo de<br />
apoio técnico e de certificação, porque alguns agricultores não estavam<br />
cumprindo com as regras, quando essa inspeção surgiu, porque na medi<strong>da</strong> em<br />
eles achavam que denunciando essa situação, isso poderia descredibilizar a<br />
agricultura biológica. Eu acho que se atuarmos com lisura, antes nos safamos <strong>da</strong>s<br />
críticas que nos possam vir ser feitas, portanto, se nós somos os primeiros a dizer:<br />
“Cui<strong>da</strong>do! Isso não está a ser bem feito, é preciso ter cui<strong>da</strong>do e mu<strong>da</strong>r a forma de<br />
controle”, mostramos que estamos preocupados com a boa conduta do<br />
agricultor, e portanto, que estamos trabalhando para que o produto que é<br />
vendido como biológico, mereça realmente o preço que se paga por ele, por ser<br />
um produto caro, a partir <strong>da</strong>í tenho sempre trabalhado com agricultura biológica.<br />
Em 1999 eu fui convi<strong>da</strong><strong>da</strong> para trabalhar com uma instituição alemã, que é uma<br />
instituição que criou uma rede de colaboradores na Europa, que mantém<br />
atualiza<strong>da</strong> a informação para ca<strong>da</strong> país, que está disponível no endereço<br />
eletrônico: http://www.organci-europe.net/countryreports/ e tem um relatório<br />
<strong>da</strong> agricultura biológica em todos os países <strong>da</strong> União Européia. Portugal é <strong>da</strong><br />
minha responsabili<strong>da</strong>de. Eu tenho uma série de artigos publicados relacionados<br />
com a agricultura biológica. Numa revista holandesa faço uma apreciação dos<br />
impactos paisagísticos, porque isso está intimamente ligado com a ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
agricultura biológica. E é por isso que há coisa de cinco anos, eu com mais quatro<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 135-142, 2007
OKARA Entrevista: Pr<strong>of</strong>a. Dra. Ana Firmino (<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Nova de Lisboa)<br />
ou cinco pessoas, criamos a Associação Portuguesa de Ecologia <strong>da</strong> Paisagem, a<br />
APEP, uma associação sem fins lucrativos. Somos afiliados a International<br />
Association Landscape Ecology, que é a associação principal <strong>da</strong> ecologia <strong>da</strong><br />
paisagem. Ao nível dos consumidores, faço parte também de um grupo que é uma<br />
cooperativa de agricultores biológicos, é uma estrutura que eu tenho apoiado,<br />
porque permite que o consumidor adquira os produtos biológicos a um preço<br />
mais baixo, uma vez que não há atravessador. Pelo menos para os produtos<br />
frescos, pois nós importamos muita coisa <strong>da</strong> França, e aí já há certo<br />
encarecimento do produto. Por outro lado permite que eles não tenham que<br />
custear a certificação, porque essa é assegura<strong>da</strong> pela cooperativa. Não há uma<br />
certificação individual dos agricultores, a cooperativa tem uma certificação<br />
coletiva que assume a responsabili<strong>da</strong>de de tudo o que é vendido lá e é certificado.<br />
OKARA: Como você entende a agroecologia?<br />
Firmino: Nós, na Europa, temos um sistema muito estrito com a definição dos<br />
conceitos. Agroecologia é um termo que eu encontro mais na literatura brasileira.<br />
Oficialmente não há nenhuma definição que eu conheça na União Européia <strong>da</strong><br />
Agroecologia, pelo aquilo que tenho ouvido aqui é um movimento que pretende<br />
praticar o cultivo de uma agricultura que seja amiga do ambiente, agora, a forma<br />
como isso se processa, pode se revestir de diferentes formas, e não tem que ser<br />
necessariamente agricultura biológica, agricultura natural, ou orgânica, que para<br />
mim é a mesma coisa, a biodinâmica, a permacultura. Outra agricultura que nós<br />
temos na Europa é proteção integra<strong>da</strong>, e eu penso que to<strong>da</strong>s essas, nas suas<br />
diferentes facetas, ain<strong>da</strong> em mente a proteção integra<strong>da</strong>, que em certas situações<br />
pode utilizar agroquímica, podem ser incluí<strong>da</strong>s dentro <strong>da</strong> agroecologia, porque<br />
não é fácil também para um agricultor, de um momento para o outro, deixar de<br />
utilizar agrotóxico. Digamos assim, se cair do trapézio não vai quebrar a cabeça,<br />
isso é compreensível porque permite fazer a transmissão de um ecossistema<br />
poluído para um ecossistema que funciona bem. Pois bem, a agricultura biológica,<br />
é em termos de definições explicados por aí, só que existem várias formas de<br />
fazer agricultura biológica. Tem essa <strong>da</strong> agricultura natural, que eu associo ao<br />
movimento Masanobu Fukuoka, que na literatura inglesa aparece como The<br />
nature Agriculture, isto é, uma agricultura que tenta não fazer na<strong>da</strong>. Temos a<br />
agricultura biológica e a agricultura biodinâmica, que é pratica<strong>da</strong> nos<br />
conhecimentos deixados pelo Rudolf Steiner, nas suas conferências nos anos 20,<br />
na Alemanha, é uma agricultura que também tem um procedimento muito<br />
particular, não se pode chamar de agricultura biológica, porque pode funcionar<br />
com as luas, com o calendário lunar, o eclipse. Foi utiliza<strong>da</strong> pelos agricultores<br />
tradicionais, mas que eles o fazem de uma forma mais evoluí<strong>da</strong>, digamos em<br />
termos de conhecimento, e por outro lado utiliza os preparados, seguindo as<br />
diretrizes do Rudolf Steiner . Depois temos a permacultura, que é uma coisa muito<br />
recente, que foi cria<strong>da</strong> por dois australianos, um deles que é muito conhecido,<br />
que é o Bill Mollison, nos anos 1960, com base no conhecimento dos aborígines,<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 135-142, 2007<br />
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ele estudou a forma como os aborígines faziam parte <strong>da</strong> inóspitabili<strong>da</strong>de do meio,<br />
sem água, ou com chuva a mais, ou sem equipamentos, sem ferramentas, e<br />
sobretudo, sem trocas com o exterior, isto é, os insumos são todos produzidos<br />
dentro do seu território.<br />
OKARA: To<strong>da</strong>s essas formas de agricultura existem em Portugal?<br />
Firmino: Pode-se dizer que sim, mas a permacultura é um pouco difícil,<br />
<strong>of</strong>icialmente ela não está contabiliza<strong>da</strong>, apenas os imigrantes <strong>da</strong>s ex-colônias,<br />
nomea<strong>da</strong>mente os caboverdianos, que aproveitam muito os terrenos ao longo do<br />
trem. Os espaços desocupados de Lisboa são muitas vezes ocupados por esses<br />
imigrantes, que fazem agriculturas que eles tem mais interesse, como é o caso do<br />
milho, para comer a maçaroca. Nós não temos esse hábito, é difícil você encontrar<br />
uma maçaroca a ven<strong>da</strong>.<br />
OKARA: Pelos estudos que você já fez e pelos lugares que já visitou, como enxerga<br />
a perspectiva de crescimento e resistência <strong>da</strong> agroecologia, uma vez que existe<br />
todo um outro lado, de um agricultura ca<strong>da</strong> vez mais tecnifica<strong>da</strong>, com alto uso de<br />
agrotóxicos?<br />
Firmino: Eu penso que está intimamente associado a uma toma<strong>da</strong> de consciência<br />
<strong>da</strong>s populações e a sua evolução pessoal. É por isso que isto é tão s<strong>of</strong>rido, porque<br />
quer nós queremos, quer não, estamos todos inseridos num processo de<br />
globalização, e por vezes é muito difícil a pessoa libertar-se desse processo, é<br />
como se fosse um polvo, e uns reagem e querem se libertar, outros até se sentem<br />
bem, digamos; apoiados, confortáveis, instalados nos tentáculos do polvo e em<br />
Portugal há muita publici<strong>da</strong>de que convi<strong>da</strong> ao consumo. Cria-se uma mentali<strong>da</strong>de<br />
em que as pessoas não valem por aquilo que são, pelo seu íntimo, mas pelo aquilo<br />
que mostram e é por isso que ao vir <strong>da</strong> escola a criança só quer an<strong>da</strong>r com roupa<br />
de marca, julgam os colegas pelo aquilo que vestem, pelas férias que fazem, e não<br />
por aquilo que comem. Se tiver um celular ela liga, se não tem celular, se veste<br />
roupa sem marca, ele pode comer a melhor comi<strong>da</strong> do mundo! Mas não tem<br />
prestígio, não é respeitado pelos colegas, e aí é que é complicado, porque se tu és<br />
o espelho <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, aí, portanto só a partir do momento em que as pessoas<br />
comecem a tomar consciência de que a ecologia, é fun<strong>da</strong>mental, até para a sua<br />
felici<strong>da</strong>de interior é que alguma coisa pode mu<strong>da</strong>r. Portanto, hoje em dia, o que<br />
temos em Portugal é ain<strong>da</strong> uma minoria, que delibera<strong>da</strong>mente procura a<br />
alimentação biológica, os outros, a primeira reação que tem é, isso é caro, mas se<br />
for para comprar um celular, ou para trocar de carro, para fazer inveja ao síndico,<br />
tem muito isso, até a própria publici<strong>da</strong>de explora isso. Havia uma publici<strong>da</strong>de que<br />
dizia: “Se o seu vizinho tem um televisor, você compra dois e resolve o problema”.<br />
Mas que problema? Eu não tenho televisão, eu não tenho vídeo, e não sinto<br />
necessi<strong>da</strong>de disso, portanto isso é um processo que não é fácil<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 135-142, 2007
OKARA Entrevista: Pr<strong>of</strong>a. Dra. Ana Firmino (<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Nova de Lisboa)<br />
OKARA: Você atua no Vietnã e na China, que trabalhos desenvolve lá?<br />
Firmino: Eu fui convi<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo grupo de investigadores holandeses, para integrar<br />
o grupo num projeto para promoção de horticultura sustentável nas áreas<br />
metropolitanas de Nadin, na China e Hanói, no Vietnã. O projeto foi aceito e<br />
financiado pela União Européia e os meus colegas estão mais vocacionados para<br />
proteção integra<strong>da</strong>. Havia de alguma forma uma luta contra dos economistas, que<br />
acham que agricultura orgânica é só para sonhadores, e, portanto não tinha<br />
rentabili<strong>da</strong>de, nem aceitação por parte <strong>da</strong>s populações que poderiam ter<br />
proteção integra<strong>da</strong>, até porque proteção integra<strong>da</strong> tem tido muito divulgação<br />
nesses países através <strong>da</strong> FAO ou através de algumas instituições européias como é<br />
o caso de uma instituição dinamarquesa de DIAAD, que tem feito cursos com<br />
agricultores, tem <strong>da</strong>do apoio técnico, e tem estabelecido algumas culturas de<br />
produção, proteção integra<strong>da</strong>. Ele achava que a proteção integra<strong>da</strong> ia ter muito<br />
mais aceitação. Com os nossos contatos fizemos seminários, visitas de campo nas<br />
áreas de estudo. Do trabalho que tivemos com os colegas chineses e vietnamitas,<br />
chegou a conclusão, pelo menos no caso do Vietnã, que eles estavam mais<br />
interessados na produção orgânica, do que na proteção integra<strong>da</strong>, e portanto o<br />
projeto está agora no final, e a possibili<strong>da</strong>de de haver um outro só para criar<br />
estruturas de produção, agricultura orgânica no Vietnã, porque na China já tem,<br />
eles até exportam, mas o Vietnã não. Portanto, é importante eles terem<br />
demonstrado esse interesse, eu estou em contato com uma ONG vietnamita, para<br />
a divulgação de medi<strong>da</strong>s de proteção para o ambiente, e vou ver se consigo com<br />
eles estabelecer um projeto de hortas biológicas nas escolas, a exemplo <strong>da</strong>quilo<br />
que existe em Portugal, e fazer ações de divulgação com folhetos, com o diário <strong>da</strong><br />
agricultura biológica, por exemplo, campanhas também de publici<strong>da</strong>de nas<br />
mídias, na televisão, no rádio, nos jornais. É um pouco difícil encontrar muita<br />
clientela, <strong>da</strong>do o baixo nível de vi<strong>da</strong> dos vietnamitas, mas <strong>da</strong><strong>da</strong> a proximi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
China, que é um mercado de milhões, e que está a emergir uma classe abasta<strong>da</strong>,<br />
que procura tudo, que consome tudo, e sobretudo, o Japão, que também é um<br />
mercado com elevado nível de vi<strong>da</strong>, e que <strong>da</strong><strong>da</strong> a própria estrutura do país, não<br />
tem área para produzir, portanto, é uma boa opção como um mercado de<br />
exportação. Para mim foi muito interessante trabalhar na Ásia, porque é uma<br />
mentali<strong>da</strong>de diferente, é um povo com uma outra cultura, mas que em certo<br />
momento, se entrecruza com a minha própria cultura e que é muito interessante<br />
verificar, aprendi muito, sobretudo.<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 135-142, 2007<br />
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Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
MANUEL CORREIA DE OLIVEIRA ANDRADE:<br />
UMA VIDA DE TRABALHO EM DEFESA DE UMA<br />
CIÊNCIA GEOGRÁFICA SOCIALMENTE<br />
COMPROMETIDA<br />
Emilia Moreira<br />
Departamento de Geociências/Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB<br />
Ivan Targino<br />
Departamento de Economia/Programa de Pós-Graduação em Economia <strong>da</strong> UFPB<br />
Maria de Fátima F. Rodrigues<br />
Departamento de Geociências/Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB<br />
Há muito, um grupo expressivo de integrantes do corpo docente de vários<br />
departamentos <strong>da</strong> UFPB vinha discutindo a justeza de propor aos órgãos<br />
competentes <strong>da</strong> UFPB a concessão do título de doutor “honoris causa” ao<br />
eminente geógrafo Pr<strong>of</strong>. Manuel Correia de Oliveira Andrade. Em nome desses<br />
colegas, assumimos a incumbência de formalizar o pedido, iniciando pelo<br />
Departamento de Geociências por ser este o representante <strong>da</strong> área de<br />
conhecimento na qual mais se destacou o homenageado. Isto se deu em 24 de<br />
outubro de 2003. Para tanto buscamos resgatar um pouco <strong>da</strong> sua história de vi<strong>da</strong><br />
e de trabalho.<br />
O Pr<strong>of</strong>. Manuel Correia de Oliveira Andrade nasceu em Pernambuco em 1922. O<br />
seu berço (Engenho Jundiá, município de Vicência) e o seu tempo marcaram a sua<br />
trajetória intelectual. Como cabia aos filhos <strong>da</strong> aristocracia agrária, dedicou-se aos<br />
estudos do direito, ingressando na Facul<strong>da</strong>de de Direito de Recife, em 1941, e<br />
diplomando-se em 1945. A sua inquietação cívica tornou-o representante de sua<br />
turma no Diretório Acadêmico, participando do movimento pela<br />
redemocratização do país. A sua consciência ci<strong>da</strong>dã, traço marcante <strong>da</strong> sua<br />
trajetória de vi<strong>da</strong>, portanto, foi forja<strong>da</strong> na luta contra o estado discricionário<br />
incorporado no Estado Novo. Mas Manuel Correia não é apenas o homem do seu<br />
tempo. É também o homem do seu espaço. Além <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Direito, seguiu<br />
também o curso de Geografia e História na Facul<strong>da</strong>de de Ciências e Letras Manoel<br />
<strong>da</strong> Nóbrega, obtendo os graus de bacharel e licenciado em 1947.<br />
Inicialmente dedicou-se ao direito, exercendo a advocacia. Porém foi o magistério<br />
a sua grande vocação. Exerceu a docência em escolas particulares, na Escola<br />
Normal de Pernambuco e no Ginásio Pernambucano, de onde foi pr<strong>of</strong>essor<br />
catedrático. A partir de 1952, ingressou no ensino universitário, como pr<strong>of</strong>essor<br />
assistente de Geografia Física na <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> de Pernambuco. A sua vi<strong>da</strong><br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 143-145, 2007
MOREIRA, E.; TARGINO, I.; RODRIGUES, M.F.F.<br />
na UFPE foi <strong>da</strong>s mais fecun<strong>da</strong>s, tendo fun<strong>da</strong>do os mestrados de Economia (1970)<br />
e de Geografia (1976).<br />
A sua formação acadêmica teve prosseguimento no Curso de Altos Estudos<br />
Geográficos (<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> do Brasil, em 1956), no Curso de Estudo Técnico do<br />
Meio Natural <strong>da</strong> América Latina (<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de Paris). Em 1966, obteve título de<br />
doutor em Economia com a tese “A pecuária no Agreste de Pernambuco”.<br />
A sua carreira docente, no entanto, não se restringiu à UFPE. Foi pr<strong>of</strong>essor<br />
visitante <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de São Paulo (1986-87), <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de Santa<br />
Catarina (1988), <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de Buenos Aires (1997).<br />
Entre os títulos e honrarias recebi<strong>da</strong>s podem ser destaca<strong>da</strong>s: Doutor Honoris<br />
Causa pela <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Católica de Pernambuco (1978), pela <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong><br />
<strong>Federal</strong> de Alagoas (1994), pela <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> do Rio Grande do Norte<br />
(1995), pela <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> de Sergipe (1995); Pr<strong>of</strong>essor emérito <strong>da</strong><br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> de Pernambuco (1990), Pesquisador Emérito <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção<br />
Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (1989); Me<strong>da</strong>lha CAPES 50 ANOS, concedi<strong>da</strong><br />
pelo Governo <strong>Federal</strong> (2001) e; Comen<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Ordem Nacional do Mérito<br />
Científico (2001); Membro <strong>da</strong> Academia Pernambucana de Letras.<br />
Algumas vezes, os títulos e honrarias mais elevam do que espelham o<br />
homenageado. Com certeza, não é o caso do Pr<strong>of</strong>essor Manuel Correia de Oliveira<br />
Andrade. Sem medo de cair em apologia comezinha, pode-se afirmar que a sua<br />
vi<strong>da</strong> e a sua obra dignificam os títulos e honrarias que recebeu. Dizíamos<br />
anteriormente que o Pr<strong>of</strong>essor Manuel Correia é um homem de seu tempo e de<br />
seu lugar. Pois bem, a sua preocupação primeira foi em estu<strong>da</strong>r a sua região, o<br />
Nordeste, mas sem cair na armadilha do provincianismo. A sua extensa obra é<br />
referência obrigatória para quem queira entender o Nordeste Brasileiro. São mais<br />
de 108 livros e de 250 artigos publicados em vários idiomas. Se o Nordeste é a sua<br />
preocupação central, ela não é exclusiva. O Brasil e a América Latina também<br />
estão incluídos no rol <strong>da</strong>s suas preocupações. Basta percorrer os títulos de<br />
algumas de suas obras para se ter a confirmação do que acima foi dito: A Terra e o<br />
Homem no Nordeste; Geografia Econômica do Nordeste; Paisagens e Problemas<br />
do Brasil; Espaço, Polarização e Desenvolvimento; Geografia, Região e<br />
Desenvolvimento; Lutas camponesas no Nordeste; O Brasil e a América Latina; O<br />
Povo e o Poder; Geopolítica do Brasil.<br />
Apesar <strong>da</strong> sua incursão em outros campos do conhecimento, particularmente <strong>da</strong><br />
história (A guerra dos cabanos; João Alfredo, o estadista <strong>da</strong> abolição; Pereira <strong>da</strong><br />
Costa: o homem e a obra etc.) é, no entanto, no campo <strong>da</strong> Geografia que se<br />
circunscrevem as suas maiores contribuições.<br />
O seu livro “A terra e o homem no Nordeste” deve ser destacado no conjunto de<br />
sua obra por várias razões: a) primeiro, porque mostra a importância <strong>da</strong><br />
interdisciplinari<strong>da</strong>de para o entendimento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de social nordestina; de<br />
forma magistral, o autor lança mão de conhecimentos históricos, geográficos,<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 143-145, 2007<br />
144
145<br />
Manuel Correia de Oliveira Andrade: uma vi<strong>da</strong> de trabalho em defesa de uma ciência geográfica<br />
socialmente comprometi<strong>da</strong><br />
econômicos, sociais e políticos para apreender os elementos constitutivos do<br />
espaço regional; b) segundo, porque supera a tradição que fechava o método<br />
geográfico no empiricismo <strong>da</strong>s ciências naturais, herança do século XIX, assim<br />
como superou o determinismo geográfico; ao contrário, incorporou o método<br />
dialético à sua análise ao estu<strong>da</strong>r a formação do espaço regional a partir <strong>da</strong>s<br />
relações sociais de produção; segundo Caio Prado, essa foi a maior contribuição<br />
de “A Terra e o Homem no Nordeste” e seu desejo era o de que os especialistas<br />
de outras regiões do país seguissem o exemplo de Manuel Correia. “E que o façam<br />
no mesmo diapasão de rigor e probi<strong>da</strong>de científica que caracteriza este último”; c)<br />
terceiro, norteia to<strong>da</strong> a exposição tendo como pano de fundo o processo de<br />
desenvolvimento, chamando para primeiro plano a dinâmica <strong>da</strong>s transformações<br />
sociais e do papel do Estado nesse processo; quarto, o autor não se esconde atrás<br />
de uma neutrali<strong>da</strong>de científica; ao contrário, expõe suas posições com clareza e<br />
destemor, como por exemplo a respeito <strong>da</strong>s Ligas Camponesas mesmo em um<br />
momento de grande ebulição social como foi o início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de sessenta.<br />
Essas quatro dimensões permeiam to<strong>da</strong> a obra de Manuel Correia, <strong>da</strong>ndo-lhe<br />
individuali<strong>da</strong>de e relevância no conjunto <strong>da</strong> ciência geográfica desenvolvi<strong>da</strong> no<br />
Brasil e por que não dizer, no conjunto <strong>da</strong>s ciências sociais brasileiras. É<br />
exatamente a importância de sua obra, particularmente, para o entendimento <strong>da</strong><br />
reali<strong>da</strong>de nordestina que nos moveu a propor a UFPB a concessão do título de<br />
Doutor Honoris Causa ao Pr<strong>of</strong>essor Manuel Correia, juntando-se, ain<strong>da</strong> que<br />
tardiamente, ao conjunto de outras <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong>s do Nordeste.<br />
Infelizmente os descaminhos burocráticos atrasaram e interromperam o<br />
an<strong>da</strong>mento deste projeto restando-nos, no entanto, a certeza que com essa<br />
interrupção quem perdeu foi a UFPB, pois o pr<strong>of</strong>essor Manoel Correia pertence a<br />
estirpe dos homens que, ao ser homenageado, não é ele que se engrandece mas<br />
quem o homenageou.<br />
Fica-nos o exemplo de uma vi<strong>da</strong> dedica<strong>da</strong> à ciência. Mais do que isso, fica-nos o<br />
testemunho de um intelectual que construiu uma vasta e respeita<strong>da</strong> obra<br />
científica em defesa <strong>da</strong> justiça e <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de social.<br />
Contato <strong>da</strong> autora: ero<strong>da</strong>t@hotmail.com<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 143-145, 2007
Revista OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
IMPRESSÕES DO I SEMILUSO E PERSPECTIVAS<br />
FUTURAS<br />
Emilia Moreira<br />
Departamento de Geociências/Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB<br />
No contexto do presente processo de globalização, há o acirramento <strong>da</strong><br />
competitivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s uni<strong>da</strong>des produtivas tendo em vista a sua inserção nas<br />
estruturas do mercado. Essa reali<strong>da</strong>de coloca graves problemas para a<br />
possibili<strong>da</strong>de de reprodução <strong>da</strong>s pequenas uni<strong>da</strong>des familiares agrícolas uma vez<br />
que elas não dispõem de condições tecnológicas, econômicas e culturais de<br />
competir no mesmo pé de igual<strong>da</strong>de que as empresas capitalistas bem<br />
constituí<strong>da</strong>s. Isso é agravado ain<strong>da</strong> mais para aquelas pequenas uni<strong>da</strong>des de<br />
produção inseri<strong>da</strong>s em áreas que apresentam fortes limitações do quadro natural.<br />
Daí a busca dessas uni<strong>da</strong>des quer de forma individual quer coletivamente, por<br />
formas alternativas de inserção. Os espaços construídos a partir dessas<br />
alternativas podem ser denominados, de acordo com Moreira (2004; 2005), de<br />
“territórios alternativos”, isto é, porções do espaço socialmente produzido onde<br />
ocorre um certo adensamento de tais procedimentos, viabilizados seja através de<br />
políticas públicas seja pelo suporte de ONGs e movimentos sociais.<br />
Na região semi-ári<strong>da</strong> do Nordeste brasileiro, que compreende cerca de 72 milhões<br />
de hectares (aproxima<strong>da</strong>mente 52% <strong>da</strong> superfície regional) (DUQUE, 1964), a<br />
antigui<strong>da</strong>de de formas inadequa<strong>da</strong>s de exploração <strong>da</strong>s terras para a ativi<strong>da</strong>de<br />
agrícola com manejos pre<strong>da</strong>tórios do solo tais como as queima<strong>da</strong>s, o<br />
desmatamento <strong>da</strong> cobertura vegetal de caatinga, a expansão <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />
pecuária semi-intensiva ou intensiva com sobrepastoreio, o uso de métodos de<br />
irrigação inadequados, além <strong>da</strong> exploração <strong>da</strong> madeira para produção do carvão,<br />
<strong>da</strong> prática <strong>da</strong> exploração mineral em forma de garimpagem, entre outros, tem<br />
promovido o avanço do processo de desertificação com custos sociais e<br />
econômicos incalculáveis. A esse processo soma-se a desestruturação <strong>da</strong><br />
ativi<strong>da</strong>de cotonicultora dizima<strong>da</strong> pela praga do bicudo, a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />
metade dos anos 80 do século XX, e o amiu<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> ocorrência de períodos de<br />
secas, nos anos 90 do mesmo século, contribuindo para agravar as condições de<br />
reprodução <strong>da</strong>s pequenas uni<strong>da</strong>des de produção familiares (MOREIRA e TARGINO,<br />
1997). Foi também a partir dos anos 90 que se acirrou a luta dos trabalhadores<br />
por terra na região, <strong>da</strong>ndo origem à desapropriação de imóveis rurais pelo Estado<br />
através do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária que resultou na<br />
criação de Projetos de Assentamento (MOREIRA e TARGINO, 1997; MOREIRA,<br />
1997). Diante desse novo quadro, tem-se buscado desenvolver formas<br />
alternativas de reprodução <strong>da</strong> agricultura familiar com o apoio de algumas<br />
políticas públicas federais e estatais, bem como de ONGs e movimentos sociais, a<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 146-149, 2007
147<br />
Impressões do I SEMILUSO e perspectivas futuras<br />
exemplo <strong>da</strong> ASA (Articulação no Semi-Árido Brasileiro), iniciativa que reúne cerca<br />
de 800 organizações de 12 estados para buscarem soluções e empreenderem<br />
ativi<strong>da</strong>des para que a população consiga não reverter as más condições impostas<br />
pelo clima, mas conviver com elas. Tem resultado <strong>da</strong>í experiências interessantes e<br />
exitosas no campo <strong>da</strong> produção agroecológica e <strong>da</strong> comercialização solidária.<br />
Tais estratégias alternativas de uso do território, postos em prática pela<br />
agricultura de base familiar no Nordeste brasileiro, representam também uma<br />
perspectiva de enfrentamento <strong>da</strong>s condições de exploração, de dominação e de<br />
desigual<strong>da</strong>de social, através de ações organiza<strong>da</strong>s de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, cooperação e<br />
reciproci<strong>da</strong>de entre agricultores, grupos e enti<strong>da</strong>des populares. A essa<br />
perspectiva socioeconômica soma-se uma outra, não menos importante, que é a<br />
ambiental, representa<strong>da</strong> pela tentativa de superar as dificul<strong>da</strong>des encontra<strong>da</strong>s na<br />
prática <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de agrícola através <strong>da</strong> busca de formas diversifica<strong>da</strong>s de<br />
convivência com fenômenos climáticos extremos.<br />
O interesse em realizar estudos comparativos dessa reali<strong>da</strong>de com a observa<strong>da</strong> no<br />
Interior Centro - Sul de Portugal e na Ilha de Santiago em Cabo Verde, deu origem<br />
a um projeto de Missões Exploratórias, aprovado pelo CNPq, através do programa<br />
de Cooperação em Matéria de Ciências Sociais para os países <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de dos<br />
países de Língua Portuguesa (Programa Ciências Sociais CPLP) – Assessoria de<br />
Cooperação Internacional – ASCIN/CNPq, em dezembro de 2005, envolvendo o<br />
Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB, o Departamento de<br />
Geografia e Planeamento Regional <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Nova de Lisboa e o Instituto<br />
Superior de Educação de Cabo Verde. Uma <strong>da</strong>s metas do mencionado projeto era<br />
a realização de um Seminário que possibilitasse o início do intercâmbio e a<br />
democratização do conhecimento produzido. Assim nasceu o primeiro “Seminário<br />
Luso-Brasileiro-Caboverdiano (SEMILUSO).<br />
O I SEMILUSO foi realizado a partir de uma parceria construí<strong>da</strong> pelo Programa de<br />
Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB (PPGG) com a Associação dos Geógrafos<br />
Brasileiros (AGB) – Seção João Pessoa, o Departamento de Geociências <strong>da</strong> UFPB<br />
(DGEOC), o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente<br />
(PRODEMA/UFPB) e o Mestrado de Economia também <strong>da</strong> UFPB (PPGE). A ele<br />
integraram-se dois eventos sendo um de caráter local e outro de caráter regional:<br />
o III Encontro Paraibano de Geografia e a Semana de Geografia (SEMAGEO). Essa<br />
iniciativa foi muito salutar na medi<strong>da</strong> em que envolveu os estu<strong>da</strong>ntes e<br />
pr<strong>of</strong>essores dos cursos de graduação em geografia e outros afins, não só do<br />
estado <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong> como de outros estados do Nordeste e do Brasil.<br />
Para a realização do SEMILUSO contou-se com apoios fun<strong>da</strong>mentais: do CNPq,<br />
que propiciou a concretização do projeto, do Ministério do Meio Ambiente<br />
através Coordenação de Combate à Desertificação <strong>da</strong> Secretaria Nacional de<br />
Recursos Hídricos; <strong>da</strong> Pró-Reitoria de Pós-Graduação <strong>da</strong> UFPB; <strong>da</strong> Pró-Reitoria de<br />
Extensão e Assuntos Comunitários <strong>da</strong> UFPB; do Centro de Ciências Exatas e <strong>da</strong><br />
Natureza e <strong>da</strong> Editora Universitária <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong> – UFPB. Merece realce o apoio dos<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 146-149, 2007
MOREIRA, E.<br />
pr<strong>of</strong>essores e alunos dos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia do<br />
Campus I – UFPB, dos pr<strong>of</strong>essores e alunos do PRODEMA e do Mestrado em<br />
Economia <strong>da</strong> UFPB, bem como de pr<strong>of</strong>essores e alunos dos cursos de Geografia <strong>da</strong><br />
UEPB – Campi de Guarabira e de Campina Grande.<br />
O SEMILUSO teve como objetivos: a) promover o debate entre pesquisadores<br />
portugueses, caboverdianos e brasileiros sobre estratégias alternativas de<br />
reprodução <strong>da</strong> agricultura familiar em regiões susceptíveis à desertificação; b)<br />
discutir as políticas públicas de fortalecimento <strong>da</strong> agricultura familiar e de<br />
combate à desertificação no Brasil e em Portugal; c) possibilitar o intercâmbio de<br />
experiências de convivência com a seca e de comercialização solidária; d)<br />
identificar as redes de ações solidárias constituí<strong>da</strong>s por agricultores, organizações<br />
e enti<strong>da</strong>des.<br />
O evento foi realizado entre 29 de junho e 2 de julho de 2006, no Campus I <strong>da</strong><br />
UFPB e foi estruturado com base num tema âncora, “Agricultura familiar em<br />
regiões com risco de desertificação” e em quatro Eixos Temáticos que<br />
contemplavam subtemas correlatos quais sejam: a) Eixo Temático I: Agricultura<br />
Familiar. Subtemas: 1. Agricultura familiar e experiências de convivência com a<br />
seca. 2. Gestão <strong>da</strong> água. 3. Políticas públicas e agricultura familiar. 4. Emprego<br />
rural e mobili<strong>da</strong>de do trabalho; b) Eixo Temático II: Desenvolvimento e Ambiente.<br />
Subtemas: 1. Desertificação. 2. Possibili<strong>da</strong>des de exploração econômica dos recursos<br />
naturais. 3. Gestão Ambiental. 4. Campo e Ci<strong>da</strong>de. 5. Hidrologia do semi-árido. c)<br />
Eixo Temático III: Política Agrária e Novas Territoriali<strong>da</strong>des. Subtemas: 1. Novas<br />
territoriali<strong>da</strong>des. 2. 2. Política fundiária. 3. Limites e potenciali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> reforma<br />
agrária em regiões semi-ári<strong>da</strong>s. 4. Balanço <strong>da</strong> reforma agrária; d) Eixo Temático IV:<br />
Educação e Socie<strong>da</strong>de. Subtemas: 1. Políticas educacionais. 2. Educação do<br />
campo.<br />
A programação leva<strong>da</strong> a efeito compreendeu: uma conferência de abertura com o<br />
tema “Panorama Mundial <strong>da</strong> Desertificação”, pr<strong>of</strong>eri<strong>da</strong> pela pr<strong>of</strong>essora Dra. Maria<br />
José Roxo <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Nova de Lisboa; seis Mesas Redon<strong>da</strong>s sobre assuntos<br />
correlatos ao tema âncora, <strong>da</strong>s quais participaram os membros <strong>da</strong> equipe<br />
estrangeira e brasileira e convi<strong>da</strong>dos <strong>da</strong>s <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong>s <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, <strong>da</strong><br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> do Ceará, <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> de Campina Grande, <strong>da</strong><br />
<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> de Pernambuco, o coordenador técnico <strong>da</strong> Coordenação de<br />
Combate à Desertificação do MMA, José Roberto de Lima, representantes de<br />
ONGs, de Movimentos Sociais e camponeses de áreas de reforma agrária.<br />
Palestras, workshops, ativi<strong>da</strong>des culturais e sessões de comunicações livres<br />
também tiveram lugar no âmbito do evento. O Seminário contou com a<br />
participação de 380 pessoas. Foram inscritos 198 trabalhos dos quais 150 foram<br />
selecionados pela Comissão Científica e apresentados durante as sessões de<br />
comunicações livres.<br />
Como resultado foi possível publicar, através <strong>da</strong> Editora Universitária <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>,<br />
com o apoio do Centro de Ciências Exatas e <strong>da</strong> Natureza, do MMA e do setor de<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 146-149, 2007<br />
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Impressões do I SEMILUSO e perspectivas futuras<br />
multimídia <strong>da</strong> UFPB, um livro de Resumo <strong>da</strong>s Comunicações e um CD-Rom<br />
contendo os trabalhos completos selecionados e o livro “Agricultura Familiar e<br />
Desertificação” com o apoio do Ministério do Meio Ambiente, através <strong>da</strong><br />
Coordenação de Combate à Desertificação <strong>da</strong> Secretaria de Recursos Hídricos, <strong>da</strong><br />
Gesellschaft fur Tecnische Zusammenarbeit (GTZ) e do SEBRAE-PB.<br />
A continui<strong>da</strong>de do Projeto de Cooperação entre o PPGG, a UNL e o ISE foi<br />
garanti<strong>da</strong> através <strong>da</strong> aprovação pelo CNPq (Programa de Ciências Sociais - CPLP)<br />
do Projeto de Pesquisa “Agricultura familiar, emprego e ren<strong>da</strong> em regiões com<br />
risco de desertificação: os casos do semi-árido brasileiro, <strong>da</strong> região Interior<br />
Centro-Sul de Portugal e <strong>da</strong> ilha de Santiago em Cabo Verde” que se encontra em<br />
an<strong>da</strong>mento. No âmbito deste projeto está previsto o II SEMILUSO, a ser realizado<br />
em junho de 2008 no Campus I <strong>da</strong> UFPB. Nele pretende-se dirigir as discussões<br />
sobre a dinâmica espacial, a agricultura familiar, emprego e ren<strong>da</strong> em regiões com<br />
risco de desertificação nos paises lusófonos, <strong>da</strong>ndo continui<strong>da</strong>de ao debate<br />
anteriormente iniciado e possibilitando a divulgação e discussão dos resultados<br />
<strong>da</strong>s pesquisas realiza<strong>da</strong>s. Deste modo, o PPGG pretende fortalecer não apenas as<br />
parcerias construí<strong>da</strong>s mas também as suas linhas de pesquisa, na perspectiva de<br />
contribuir com a quali<strong>da</strong>de do curso e com a formação de pr<strong>of</strong>issionais aptos para<br />
atuar como agentes de transformação social.<br />
Contato <strong>da</strong> autora: ero<strong>da</strong>t@hotmail.com<br />
OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 146-149, 2007
Revis ta OKARA: Geografia em debate, v.1, n.1, p. 1-152, 2007<br />
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br<br />
O CARACOL E SUA CONCHA: ENSAIOS SOBRE A<br />
NOVA MORFOLOGIA DO TRABALHO<br />
Ricardo Antunes<br />
São Paulo: Boitempo, 2005<br />
María Franco Garcia<br />
Programa de Pós-Graduação em Geografia <strong>da</strong> UFPB<br />
Para Marx a manufatura separou o trabalhador dos meios de produção, como<br />
quem aparta o caracol <strong>da</strong> sua concha. Essa passagem do Capital é recupera<strong>da</strong> por<br />
Ricardo Antunes para <strong>da</strong>r título a uma <strong>da</strong>s suas obras publica<strong>da</strong>s em 2005. Uma<br />
coletânea de doze textos, onde recolhe e amplia a tese acerca <strong>da</strong> centrali<strong>da</strong>de do<br />
trabalho no mundo hoje.<br />
A obra <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de ao trabalho iniciado pelo autor em Adeus ao Trabalho?<br />
Ensaio sobre as metamorfoses e a centrali<strong>da</strong>de do mundo do trabalho (1995) e Os<br />
Sentidos do Trabalho. Ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho (1999).<br />
No primeiro livro Antunes questiona a suposta desaparição <strong>da</strong> classe-que-vive-dotrabalho,<br />
a suposta inevitabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de referência do ser social que<br />
trabalha pela redução do operariado tradicional ou fabril, as repercussões que as<br />
mu<strong>da</strong>nças no mundo do trabalho provocam nos sindicatos, e a celebra<strong>da</strong> per<strong>da</strong><br />
do estatuto de centrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> categoria trabalho no universo <strong>da</strong> práxis humana<br />
na socie<strong>da</strong>de contemporânea. Questionamentos que nos conduzem a refletir<br />
sobre qual é essa crise <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de do trabalho <strong>da</strong> qual se está falando. Em Os<br />
sentidos do trabalho, avança na discussão apresentando evidencias de que foi<br />
uma determina<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, a socie<strong>da</strong>de do trabalho abstrato, quem possibilitou<br />
a aparência de uma socie<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na per<strong>da</strong> de centrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> categoria<br />
trabalho, ou seja, na per<strong>da</strong> do papel fun<strong>da</strong>nte do ato laborativo no mundo<br />
contemporâneo, em função <strong>da</strong> grande massa de trabalhadores e trabalhadoras<br />
expulsos do processo produtivo. Em ambos os trabalhos, a necessi<strong>da</strong>de de<br />
superar as aparências <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças sociais para refletirmos sobre os diferentes e<br />
antagônicos sentidos que o capital e a humani<strong>da</strong>de conferem ao trabalho<br />
constituem a chama<strong>da</strong> do autor para o seu leitor atento.<br />
Na obra em questão, O caracol e a sua concha, Antunes retoma o debate crítico<br />
sobre a socie<strong>da</strong>de do trabalho no final do século XX e, novamente, se coloca na<br />
contramão dos autores que anunciam o fim do trabalho, e conseqüentemente,<br />
dessa socie<strong>da</strong>de. Autores chamados para o debate são Dominique Medá 1 , que<br />
apontou a desaparição do trabalho, Jürgen Habermas 2 , que propôs a substituição<br />
<strong>da</strong> esfera do trabalho pela esfera <strong>da</strong> comunicação, Jeremy Rifkin 3 , que falou do<br />
próprio fim do trabalho, Claus Offe 4 , que afirmou a per<strong>da</strong> de centrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
categoria trabalho, André Gorz 5 , que vaticinou o fim do proletariado e com ele a<br />
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Resenha: O caracol e a sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho<br />
grande parte <strong>da</strong>s ações decorrentes <strong>da</strong>s forças sociais do trabalho e, incluso,<br />
Robert Kurz 6 , que critica a ordem do capital estabeleci<strong>da</strong>.<br />
Nos escritos de Antunes, constatamos, ao contrario <strong>da</strong>s argüições dos autores<br />
mencionados, a relevância que o trabalho continua a ter na atuali<strong>da</strong>de. O autor<br />
parte <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de atender à concepção do trabalho como uma categoria<br />
vital para a humani<strong>da</strong>de, mas que nos obriga a aprendê-la na sua dupla, e mesmo<br />
contraditória dimensão: enquanto ativi<strong>da</strong>de central <strong>da</strong> história humana em seus<br />
processos de sociabili<strong>da</strong>de e mesmo para a sua emancipação, e na sua<br />
complexi<strong>da</strong>de no advento do capitalismo. A desconsideração deste fato faz com<br />
que muitos teóricos defen<strong>da</strong>m o suposto fim do trabalho, ou <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />
laborativa. Para o autor, longe do seu esgotamento, a sua existência se reafirma<br />
como valor e centrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de atual. O desafio para a pesquisa é o de<br />
compreender as varia<strong>da</strong>s formas que configuram hoje a classe trabalhadora, que<br />
nos termos do autor, é polissêmica e multifaceta<strong>da</strong>.<br />
A noção de classe trabalhadora introduzi<strong>da</strong> por Antunes é mais abrangente que a<br />
concepção que vigorou a meados do século XX, restrita ao proletariado industrial.<br />
Para ele o trabalho produtivo não é exclusivo do universo fabril, mas agrupa todos<br />
aqueles que vendem sua força em troca de salário e são desprovidos dos meios de<br />
produção, ou seja, além do proletariado industrial e rural, os assalariados do setor<br />
de serviços, os trabalhadores terceirizados, subcontratados, temporários, os<br />
trabalhadores de telemarketing os motoboys, e a totali<strong>da</strong>de dos desempregados.<br />
A noção amplia<strong>da</strong> exclui gestores do capital e seus altos funcionários que detêm o<br />
papel e o controle no processo de trabalho, valorização e reprodução do capital<br />
no interior <strong>da</strong>s empresas, os proprietários de capital acumulado, que vivem <strong>da</strong><br />
especulação e dos juros, os pequenos empresários e a pequena burguesia rural e<br />
urbana.<br />
A configuração <strong>da</strong> classe-que-vive-do-trabalho hoje é muito mais complexa,<br />
heterogênea e fragmenta<strong>da</strong>, <strong>da</strong> que predominou nos anos de apogeu do<br />
taylorismo e do fordismo. De um lado existe uma minoria de trabalhadores<br />
qualificados, polivalentes e multifuncionais, com maior possibili<strong>da</strong>de de exercitar<br />
a sua dimensão intelectual e, de outro lado, há um enorme incremento do subproletariado<br />
fabril e de serviços, <strong>da</strong> precarização do trabalho e <strong>da</strong> informali<strong>da</strong>de.<br />
Também, uma nova divisão social–sexual do trabalho está em curso,<br />
preferencialmente ao aumento do número de trabalhadoras em tempo parcial e<br />
desregulamentado.<br />
Antunes examina ao longo <strong>da</strong> sua obra significativas mu<strong>da</strong>nças na constituição <strong>da</strong><br />
classe trabalhadora, mostras de um processo de metamorfose e não de<br />
desaparecimento ou eliminação <strong>da</strong> mesma.<br />
Sinais desta metamorfose dizem respeito a uma crescente imbricação entre o<br />
trabalho material e imaterial e ao aumento <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des dota<strong>da</strong>s de maior<br />
dimensão intelectual. Ain<strong>da</strong> que ambos se encontrem subordinados à lógica de<br />
produção de mercadorias pelo capital, precisamos entender as formas<br />
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GARCIA, M. F.<br />
contemporâneas <strong>da</strong> agregação do valor-trabalho, já que na atuali<strong>da</strong>de a maisvalia<br />
não é extraí<strong>da</strong> apenas no plano material, mas também no imaterial do<br />
trabalho. Entretanto, o trabalho material ain<strong>da</strong> é predominante, em relação ao<br />
imaterial, especialmente, quando se analisa o capitalismo em escala global.<br />
Em síntese, defensor <strong>da</strong> centrali<strong>da</strong>de do trabalho hoje, o autor se afasta<br />
criticamente <strong>da</strong>s teorias que tentam eliminar ou relativizar a importância <strong>da</strong><br />
categoria no mundo atual. Entende o trabalho como elemento fun<strong>da</strong>nte, com<br />
condição para a existência do homem. Recusa também o trabalho fetichizado e<br />
estranhado gerador de uma subjetivi<strong>da</strong>de inautêntica e nos alerta para o fato de<br />
que uma vi<strong>da</strong> sem sentido no trabalho é incompatível com uma vi<strong>da</strong> cheia de<br />
sentido fora dele.<br />
Neste livro Antunes, mais uma vez, nos apresenta uma abor<strong>da</strong>gem rica e<br />
pr<strong>of</strong>un<strong>da</strong> sobre transformações ocorri<strong>da</strong>s no mundo do trabalho e suas possíveis<br />
repercussões. Ele é, portanto, uma referência indispensável para todos aqueles<br />
interessados e estudiosos na dinâmica social atual. Cabe, desde a perspectiva<br />
geográfica, refletir sobre as teses do autor e incorporar a discussão sobre o papel<br />
que joga o espaço no processo de mutação social em curso.<br />
Contato <strong>da</strong> autora: mmartillo@gmail.com<br />
Recebido em: 20/06/2007<br />
Aprovado em: 30/06/2007<br />
Notas<br />
1<br />
MÉDA, Dominique. Trabalho, um valor em vias de desaparecimento. Editora Aubier,<br />
Paris, 1995.<br />
MÉDA, Dominique; SCHOR, Juliet. Trabalho, uma revolução por vir. Arte éditions, Paris,<br />
1997.<br />
2<br />
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa I - Racionali<strong>da</strong>d de la acción y<br />
racionalización social. Madri: Taurus, 1987.<br />
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa II - Crítica de la razón<br />
funcionalista. Madri: Taurus, 1987.<br />
3 RIFKIN, Jeremy. O fim do trabalho. Editora La Découverte, Paris, 1996.<br />
4 OFFE, Claus. Trabalho como categoria sociológica fun<strong>da</strong>mental? In: Trabalho e<br />
Socie<strong>da</strong>de. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, v.1, 1989.<br />
5 GORZ, André. Adeus ao proletariado? Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1982.<br />
GORZ, André. Misérias do presente, riquezas do possível. Annablume, Paris, 1997.<br />
6 KURZ, Robert. Os últimos combates. Rio de Janeiro, Vozes, 1991.<br />
KURZ, Robert. O colapso <strong>da</strong> modernização. São Paulo, Paz e Terra, 1992.<br />
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