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Guajajara Bacurizinho - Foto: Navarro<br />
Crime de pistolagem<br />
Povo<br />
Guajajara do<br />
Bacurizinho<br />
Depois de confirmada a morte<br />
anunciada do cacique Antônio<br />
Araújo criminosos permanecem<br />
impunes ameaçando seus<br />
familiares<br />
Apoinme realiza sua<br />
sexta assembléia<br />
Página 4<br />
Ano XXVI • N 0 276<br />
Brasília-DF Jun/Jul-2005<br />
R$ 3,00<br />
ISSN 0102-0625
Junho - 2005 2<br />
Opinião<br />
O barco, os piratas e as<br />
terras indígenas<br />
O<br />
barco está avariado, correndo<br />
sérios riscos. Os piratas, que<br />
desde a primeira hora buscaram<br />
assaltá-lo, estão assanhados.<br />
E os que foram sendo acomodados<br />
dentro dele conseguiram aumentar o<br />
rombo e garantir o rumo de seus interesses.<br />
E no barco que era para ser de<br />
todos, do povão que elegeu um programa<br />
de um novo Brasil com Lula, mais uma<br />
vez foi deixado na beira do rio. E o barco<br />
foi seguindo o rumo dos poucos com<br />
muito dinheiro. O rumo do FMI, do capital<br />
multinacional, garantindo a posição<br />
de país de pior distribuição de renda do<br />
planeta.<br />
Neste período em que o barco continuou<br />
descendo a correnteza da economia<br />
comandada pelo grande capital<br />
globalizado, os povos indígenas viram<br />
naufragar seus sonhos de viver em paz<br />
em suas terras demarcadas e respeitados<br />
seus direitos. Ao contrário, os processos<br />
de garantia de suas terras ficaram paralisados<br />
e praticamente nada foi feito nestes<br />
dois anos e meio. De enormes lutas<br />
resultaram algumas pequenas conquistas<br />
MARIOSAN<br />
ISSN 0102-0625<br />
Edição fechada em 30/06/2005<br />
Publicação do Conselho Indigenista<br />
Missionário (<strong>Cimi</strong>), órgão anexo à<br />
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil<br />
(CNBB).<br />
APOIADORES<br />
UNIÃO EUROPÉIA<br />
como a homologação da Raposa Serra do<br />
Sol , em Roraima, e do Cerro Marangatu,<br />
no MS.<br />
O Mato Grosso do Sul talvez tenha<br />
uma das realidades mais ilustrativas desse<br />
processo de não reconhecimento das<br />
terras indígenas. Os Kaiowá e Guarani,<br />
que ocupavam todo o cone sul do estado,<br />
com mais de três milhões e meio de<br />
hectares de terras de floresta tropical,<br />
hoje estão ocupando efetivamente em<br />
torno de vinte mil hectares. Eles são uma<br />
população de mais de trinta mil pessoas.<br />
Estão confinados, com as terras totalmente<br />
devastadas, vendo suas águas<br />
sendo envenenadas pelo agrotóxico, sendo<br />
mínimas as condições de produzir<br />
seus alimentos; confinados, reduzidos à<br />
dependência quase total das cestas básicas,<br />
com alta mortalidade infantil, por<br />
desnutrição e fome e com alta taxa de<br />
suicídio e violências de toda ordem.<br />
Essa dramática situação tem sido<br />
motivo de ampla divulgação na mídia<br />
nacional e internacional, daí surgiram<br />
inúmeras ações de investigação, debates,<br />
comissões parlamentares, visitas ilustres<br />
O jornal <strong>Porantim</strong> circula em algumas bancas de jornais do Distrito Federal, ao custo unitário de R$ 3,00.<br />
Na língua da nação indígena<br />
Sateré-Mawé, PORANTIM<br />
significa remo, arma, memória.<br />
Dom Gianfranco Masserdotti<br />
PRESIDENTE<br />
Paulo Maldos<br />
ASSESSOR POLÍTICO<br />
Cristiano Navarro<br />
EDITOR<br />
RP 32374/144/35/SP<br />
Priscila D. Carvalho<br />
REDATORA<br />
CONSELHO DE REDAÇÃO<br />
Antônio C. Queiroz<br />
Benedito Prezia<br />
Egon Heck<br />
Nello Ruffaldi<br />
Paulo Guimarães<br />
Paulo Maldos<br />
Paulo Suess<br />
e reuniões intermináveis. De toda essa<br />
mobilização o que resultou? Algumas<br />
ações pontuais, tímidas e sem eficácia<br />
para a superação efetiva desse quadro,<br />
que necessariamente teria que passar<br />
pela demarcação e reconhecimento das<br />
terras tradicionais desse povo (os tekoha)<br />
com planos de médio e longo prazo de<br />
recuperação das terras, do meio ambiente<br />
e a da economia Kaiowá Guarani.<br />
Porém o que vemos é que os piratas que<br />
direcionaram o barco para o não reconhecimento<br />
das terras indígenas fizeram<br />
prevalecer sua vontade, e os índios viram<br />
os sonhos de reaver suas terras, frustrados.<br />
É hora de encostar o barco na beira,<br />
e deixar os que votaram no novo<br />
projeto para o Brasil subirem para seguir<br />
o rumo do programa votado. E os<br />
índios estarão ali para contribuir, junto<br />
com os movimentos sociais do país. Talvez<br />
seja necessário enfrentar águas revoltas,<br />
subindo o rio em direção a um<br />
novo país.<br />
Egon D. Heck<br />
<strong>Cimi</strong> - MS<br />
Editoração eletrônica:<br />
Licurgo S. Botelho<br />
(61) 3349-5274<br />
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Registro nº 4,<br />
Port. 48.920,<br />
Cartório do 2º Ofício<br />
de Registro Civil - Brasília<br />
O Mago Mércio<br />
Em junho, durante seu depoimento<br />
na Comissão da Amazônia,<br />
Integração Nacional e de Desenvolvimento<br />
Regional, no Congresso Federal,<br />
o Presidente da Funai, doutor<br />
Mércio Gomes, botou a cartola e a<br />
bola de cristal para funcionar.<br />
A bola de Cristal<br />
Num primeiro momento, em seu<br />
exercício de futurologia o presidente<br />
anunciou a população indígena no<br />
Brasil para o ano de 2036, afirmando<br />
para os congressitas que “terão imensa<br />
responsabilidade, porque o novo<br />
estatuto vai reger as questões indígenas<br />
por pelo menos 30 anos, quando<br />
a população de índios terá aumentado<br />
de 450 mil para cerca de 2 milhões”.<br />
Cartola ou tapete?<br />
Depois de adivinhar a população,<br />
Mércio fez a mágica de sumir com terras<br />
indígenas. Neste sumiço o presidente<br />
anunciou que as demarcações<br />
já estão praticamente concluídas em<br />
todo país. Como exemplo, o presidente<br />
da Funai citou os estados do<br />
Acre, Rondônia, Maranhão e<br />
Tocantins. Para Mércio, nestes, estados<br />
as demarcações estão todas concluídas.<br />
Agora fica a pergunta: será<br />
que as terras que faltam foram escondidas<br />
em sua cartola ou varridas para<br />
debaixo do tapete?<br />
Parada, em greve<br />
Cada dia mais distante de cumprir<br />
a promessa de regularizar todas<br />
as terras indígenas, a administração<br />
da Funai vê o seu sucateamento chegar<br />
ao ápice com uma longa greve de<br />
seus funcionários. No entanto, a morosidade<br />
de seu funcionamento é tamanha,<br />
que poucos foram os que<br />
perceberam que ela está parada.<br />
Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores.<br />
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Conjuntura<br />
O dilema que se renova<br />
Paulo Maldos<br />
Assessor político do CIMI<br />
A<br />
situação política do país está deteriorando<br />
a olhos vistos nos últimos<br />
dias. As denúncias de<br />
corrupção; a performance teatral<br />
do deputado Roberto Jefferson; a tímida<br />
defesa dos acusados, tesoureiro e secretário-geral<br />
do Partido dos Trabalhadores e<br />
outros integrantes da cúpula petista; a<br />
avalanche de denúncias, vazias ou não, em<br />
toda a imprensa brasileira e inclusive repercutindo<br />
no exterior; tudo isso junto<br />
contribui para alimentar um mal estar público<br />
com relação às instituições políticas,<br />
à representação popular e ao governo federal.<br />
O clima é de perda de referências, de<br />
generalizações radicalizadas, de propostas<br />
as mais variadas, que vão do impeachment<br />
do presidente até a aliança do PT com o<br />
PSDB.<br />
O tom exacerbado de alguns setores<br />
influentes da mídia parece indicar que<br />
existe um interesse em explorar ao máximo<br />
a atual crise, para dela retirar dividendos<br />
eleitorais para a direita tradicional,<br />
que via com pessimismo as eleições de<br />
2006. É interessante observar como, depois<br />
de dias seguidos de manchetes com<br />
desdobramentos das denúncias de<br />
corrupção, os “institutos de opinião”<br />
publicam pesquisas com o objetivo declarado<br />
de verificar o quanto aquelas “afetaram”<br />
a avaliação do presidente e do<br />
governo.<br />
O governo, por sua vez, não altera um<br />
só milímetro a sua política de alianças com<br />
setores da direita, estratégia que o levou<br />
ao beco em que agora se encontra; pelo<br />
contrário, reafirma a “correção” da aliança<br />
com o PTB de Roberto Jefferson (!) e<br />
convoca o PMDB para “reforçar” a sua<br />
base de sustentação política. Ou seja,<br />
“más de lo mismo” , como diriam os argentinos.<br />
Os movimentos sociais entraram em<br />
cena, posicionando-se em torno de três<br />
eixos fundamentais: investigação profunda<br />
das denúncias de corrupção, com punição<br />
dos responsáveis; repúdio às tentativas<br />
de desestabilização da presidência<br />
da República e exigência de uma mudança<br />
de rumos do governo, para uma aliança<br />
com os setores populares; e a implementação<br />
das mudanças esperadas desde<br />
2003. Dezenas de entidades e movimentos,<br />
articulados pela CMS – Coordenação<br />
dos Movimentos Sociais – divulgaram<br />
uma Carta ao Povo Brasileiro, na qual<br />
expressam sua análise e suas propostas<br />
de saída para a atual crise.<br />
DESDOBRAMENTOS<br />
É difícil imaginar os desdobramentos<br />
da situação atual: que provas irão produzir<br />
as CPI’s instaladas? E as demais investigações<br />
em curso? E as investigações da<br />
imprensa? A quem irão atingir? Com qual<br />
gravidade?<br />
Como irá se comportar o governo? Irá<br />
manter a sua política de atração de setores<br />
de direita e que, comprovadamente,<br />
sempre trazem mais problemas de natureza<br />
ética a ele próprio? Ou como caracterizar<br />
os “ganhos” da aliança com Roberto<br />
Jefferson, com Romero Jucá, com Henrique<br />
Meirelles, com o ex-bispo Rodrigues, com<br />
o PTB, com o PP, com o PL etc. etc.? Irá<br />
manter e aprofundar a política econômica<br />
de matriz neoliberal e mais realista que o<br />
rei-FMI?<br />
Como irão se comportar o PSDB e o<br />
PFL, na sua euforia em retirar o máximo de<br />
vantagens da crise? O PFL irá colocar em<br />
primeiro plano a proposta de impeachment;<br />
o PSDB vai continuar com sua estratégia<br />
de “sangrar” indefinidamente o governo,<br />
para exauri-lo até 2006?<br />
Como irão se comportar os movimentos<br />
sociais? Terão força suficiente para se<br />
apresentar como uma alternativa de aliança<br />
ao governo federal, para um outro conceito<br />
e uma outra prática de governabilidade?<br />
Na verdade, esta última hipótese<br />
implica também em outro projeto político,<br />
econômico e social, aquele mesmo<br />
imaginado e esperado com as eleições de<br />
2002, que levaram Lula à presidência da<br />
República.<br />
Os movimentos sociais, as Igrejas e as<br />
entidades da sociedade civil definiram um<br />
calendário de mobilizações - com as Assembléias<br />
Populares Locais, Estaduais e Nacional -<br />
e de reflexões- com a IV Semana Social Brasileira<br />
- para serem realizadas ao longo deste<br />
ano, que significam condições excepcionais<br />
para a construção de um projeto alternativo<br />
para o Brasil.<br />
O FUTURO<br />
O governo Lula se encontra numa encruzilhada:<br />
ou aprofunda o modelo<br />
neoliberal adotado, dando continuidade à<br />
política econômica, cedendo mais e mais<br />
às exigências dos aliados da direita e aos<br />
recém fortalecidos inimigos, tucanos e<br />
pefelistas, também de direita, que se dispõem<br />
a anulá-lo ou “sangrá-lo” até a<br />
exaustão; ou traça uma estratégia de aproximação,<br />
de interlocução, de debates e de<br />
construção política de um projeto nacional,<br />
com os seus aliados históricos, de antes<br />
de 2003, com os setores populares.<br />
O governo Lula se encontra<br />
numa encruzilhada: ou<br />
aprofunda o modelo<br />
neoliberal adotado, cedendo<br />
mais e mais às exigências<br />
da direita ou traça uma<br />
estratégia de aproximação,<br />
de interlocução, de debates<br />
e de construção política de<br />
um projeto nacional, com os<br />
seus aliados históricos<br />
A primeira alternativa promete amesquinhar<br />
ainda mais o governo Lula, reduzindo-o<br />
a uma experiência a mais das próprias<br />
elites, sem vontade de futuro, sem<br />
ímpeto de transformação, sem compromisso<br />
com o resgate das imensas dívidas sociais<br />
acumuladas ao longo da História do<br />
nosso país. Promete colocar o governo, na<br />
memória da nação, como um a mais, sem<br />
dimensão nem importância históricas.<br />
A segunda alternativa significaria uma<br />
retomada do impulso popular que levou<br />
Lula à presidência da República, culminância<br />
de uma trajetória de trinta anos de criações<br />
e ousadias dos setores mais esclarecidos<br />
e mobilizados do povo brasileiro;<br />
entre estas, novas práticas comunitárias,<br />
no campo e na cidade; novos tipos de movimento<br />
popular e sindical; novas organizações<br />
sociais; novas práticas de participação<br />
popular e de gestão dos recursos e<br />
administrações públicas; novas e<br />
multitudinárias mobilizações sociais e políticas,<br />
que derrotaram a ditadura militar,<br />
num momento, que colocaram um governo<br />
corrupto fora do poder, em outro momento.<br />
Este é o dilema que se apresenta ao<br />
governo Lula: tanta ousadia popular terá<br />
por conseqüência a covardia de um governo<br />
conservador a mais, um a mais controlado<br />
pelas elites? Ou, da ousadia histórica<br />
dos setores populares nascerá a ousadia de<br />
um governo que se identifica com estes e<br />
se projeta na História brasileira e latinoamericana<br />
como o ponto de inflexão para<br />
a sua libertação definitiva?<br />
3 Junho - 2005
Junho - 2005 4<br />
Nordeste<br />
Assembléia da<br />
Apoinme decide<br />
fortalecer o<br />
movimento nas bases<br />
Priscila Carvalho<br />
Repórter<br />
“ O<br />
aumento assustador da violência<br />
contra os nossos povos, o crescente<br />
aumento da pistolagem,<br />
perseguição, criminalização e<br />
assassinato de nossas lideranças, o aumento<br />
da mortalidade infantil, de doenças<br />
infecto-contagiosas e endêmicas, a continuidade<br />
das invasões dos nossos territórios,<br />
a morosidade nas demarcações de terras,<br />
degradação do meio ambiente por madeireiros,<br />
garimpeiros, fazendeiros e até<br />
mesmo pelo governo federal, o desrespeito<br />
às nossas organizações, às nossas tradições.<br />
Enfim, a falta de uma política<br />
indigenista clara e precisa tem trazido, aos<br />
nossos povos, todo este quadro de desrespeito<br />
e violência generalizada”, é o que<br />
avaliam os mais de 250 indígenas reunidos<br />
na VI Assembléia da Articulação dos Povos<br />
Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito<br />
Santo (Apoinme), realizada entre 5 e<br />
10 de junho de 2005, na terra indígena<br />
Potiguara, município da Baía da Traição,<br />
Paraíba.<br />
O encontro serviu para planejar a atuação<br />
da entidade pelos próximos anos, focada<br />
na formação das lideranças, no fortalecimento<br />
do trabalho nas aldeias e na continuidade<br />
das articulações nacionais.<br />
Quando a Apoinme foi criada, em 1990,<br />
os indígenas lutavam contra o preconceito<br />
da sociedade envolvente e com as dificuldades<br />
de reconhecimento étnico. Quinze<br />
anos depois, a Assembléia ainda precisa<br />
posicionar-se contra os órgãos oficiais<br />
como a Fundação Nacional do Índio (Funai)<br />
e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa)<br />
que, baseados em “indícios de competência<br />
exclusiva da Funai” para o reconhecimento<br />
étnico, recusam-se a atender povos<br />
que não têm a situação fundiária regularizada<br />
ou não têm “reconhecimento étnico”<br />
da Funai. Para os indígenas, isto fere a<br />
Constituição Federal e a Convenção 169 da<br />
OIT (Organização Internacional do Trabalho),<br />
que preconiza a auto identificação dos<br />
povos indígenas.<br />
Hoje a Apoinme exige do poder público<br />
respeito aos povos resistentes, também<br />
conhecidos como ressurgidos, que durante<br />
anos foram obrigados a esconder suas iden-<br />
tidades étnicas, por serem vítimas de preconceito<br />
e de retaliações pelo fato de serem<br />
indígenas.<br />
Dentre os principais posicionamentos<br />
tomados está a decisão dos povos de lutar<br />
pela suspensão do projeto de transposição<br />
do rio São Francisco e a transferência dos<br />
recursos destinados a ele para a Revitalização<br />
do rio. Encaminharam também, ao<br />
Ministério Público Federal, uma solicitação<br />
para que este abra uma Ação Civil Pública<br />
para paralisar a transposição do rio, uma vez<br />
que isto causará graves danos ao meio ambiente<br />
na região e afetará pelo menos 25<br />
povos indígenas que vivem nas proximidades<br />
do rio e de seus afluentes.<br />
Conjuntura<br />
A inexistência de uma política<br />
indigenista clara que embase a atuação do<br />
Estado brasileiro em relação aos indígenas,<br />
e a ausência dos povos no planejamento<br />
destas políticas levam à existência de um<br />
órgão como a Funai, que não consegue fis-<br />
irleno Xokó foi uma das lideranças<br />
que participou do início da<br />
Apoinme, nos anos 1990. Hoje, com 53<br />
anos, conta histórias de tensão, de retomadas.<br />
Mas conta também muitos casos<br />
divertidos das diversas retomadas de que<br />
participou. Ou outra vez quando ele<br />
mesmo, que era militar e cacique do povo<br />
Xokó, participou de uma passeata em<br />
Maceió. Sem saber do itinerário, acabou<br />
passando na frente do quartel, em hora<br />
de expediente . “Eu trabalhava nos destacamentos<br />
do interior e consegui sensibilizar<br />
os meus superiores com as histórias<br />
do meu povo, com a necessidade que<br />
tinha de lutar”, afirma, explicando como<br />
achava jeito de viajar pela Apoinme.<br />
Depois de viajar dez horas de ônibus,<br />
Girleno participou da VI Assembléia<br />
da Apoinme. Lá, conversou com o<br />
<strong>Porantim</strong> sobre a história da Articulação,<br />
que estava completando 15 anos. Fundada<br />
em 1990 com o nome provisório<br />
de Comissão Leste/Nordeste, ela ganhou<br />
calizar a atuação de outros órgãos e<br />
tampouco está comprometida com a regularização<br />
das terras indígenas. Nos debates,<br />
fica clara a falta de legitimidade de um órgão<br />
indigenista oficial que se propõe a funcionar<br />
sem que suas linhas e prioridades<br />
sejam definidas com a participação dos povos<br />
indígenas, como prevê a legislação nacional<br />
e a Convenção 169. “A Funai está baseada<br />
na tutela, em conceitos herdados da<br />
ditadura militar e que caíram por terra com<br />
a Constituição de 1988”, afirmou o antropólogo<br />
Estêvão Palitot, da Universidade<br />
Federal da Paraíba.<br />
“O Mércio [Pereira Gomes, presidente<br />
da Funai] tem que respeitar este movimento.<br />
Estamos enfrentando esta política de<br />
não publicação dos trabalhos de identificação<br />
das terras. A Funai se aproveita dos<br />
atrasos dos relatórios, não dá atendimento<br />
dizendo que não tem relatório, que não<br />
tem recurso nesse ou naquele setor. E somos<br />
nós que estamos nas bases enfrentando<br />
pistoleiro, fazendeiro, garimpeiro e ma-<br />
o nome atual em 1995, quando institucionalizou-se.<br />
Desde sua criação, a Articulação<br />
apóia as retomadas de terra, principal<br />
instrumento dos povos indígenas para a<br />
reconquista de seus territórios durante as<br />
últimas décadas.<br />
deireiro”, afirmou a liderança Luiz Titiah,<br />
do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, que concluiu<br />
com a necessidade de fortalecimento do<br />
movimento indígena: “O que temos que<br />
fazer é fortalecer a nossa organização”,<br />
afirmou.<br />
Neste contexto, a Assembléia decidiu<br />
por uma moção de repúdio ao presidente<br />
da Funai, pela sua postura discriminatória<br />
em relação aos povos indígenas do Nordeste<br />
e Leste. Em uma moção, posicionam-se<br />
contra “a política adotada pela Funai de redução<br />
de Terras Indígenas”, contra “a política<br />
contrária à revisão de limites de Terras<br />
Indígenas no Brasil já identificadas e homologadas”.<br />
A Apoinme questiona a “decisão<br />
do presidente da Funai em não constituir o<br />
Conselho de Política Indigenista Nacional”,<br />
com o qual Gomes comprometeu-se durante<br />
o Abril Indígena.<br />
Os debates sobre a conjuntura nacional<br />
voltaram a abordar a difícil relação entre os<br />
povos indígenas e os poderes Executivo,<br />
Legislativo e Judiciário.<br />
“Nas retomadas, os povos chamavam a comissão e a<br />
G<br />
Fotos: Priscila Carvalho<br />
Sandro Tuxá (ao microfone) juntamente com outras lideranças do nordeste que<br />
repudiaram o projeto de transposição do Rio São Francisco<br />
Girleno Xokó<br />
Girleno falou também sobre suas impressões<br />
da Assembléia. “Hoje a gente tem<br />
mais gente e mais responsabilidade”, diz.<br />
Como você começou a participar da<br />
Apoinme?<br />
Eu fui convidado para uma reunião em<br />
Itabuna, as primeiras reuniões foram lá. A<br />
gente se reunia sentado no chão da casa paroquial.<br />
O convite foi feito pelo Nailton e pelo<br />
Manoelzinho Pataxó, com proposta de nos<br />
organizarmos, de juntar para articular. A gente<br />
precisava se comunicar melhor. De Sergipe<br />
fui eu, foi gente do Ceará, os Guarani do Espírito<br />
Santo. Os convites foram através do<br />
<strong>Cimi</strong> Nordeste e do <strong>Cimi</strong> Leste<br />
E para que vocês criaram a Apoinme?<br />
Tinha muita discriminação, muita falta<br />
de comunicação entre os povos. A gente se<br />
juntou para lutar para podermos ser pelo<br />
menos o que somos hoje, sermos povos<br />
conhecidos, termos voz. Nós do Nordeste<br />
éramos discriminados até pelos índios das<br />
outras regiões. Dizia-se que o Nordeste não<br />
tinha índio, não tinha cultura
Saúde<br />
Nas deliberações da Assembléia, os participantes<br />
“repudiam veementemente” a<br />
Funasa por sua política de não atender aos<br />
índios que residem fora das terras indígenas<br />
ou aqueles cujas terras ainda não foram<br />
identificadas e delimitadas.<br />
Ao lado das críticas à qualidade do atendimento<br />
à saúde e à falta de transparência<br />
na gestão dos recursos públicos, os indígenas<br />
propuseram a realização de concurso público<br />
para contratação de profissionais da<br />
saúde, sob a responsabilidade da Funasa,<br />
para retirar esta competência das prefeituras.<br />
Durante toda a Assembléia, a transferência<br />
das atribuições federais para terceiros<br />
foi criticada.<br />
Dor<br />
Entre os debates, os indígenas entoaram<br />
cantos e dançaram o Toré, ritual que<br />
hoje é realizado por grande parte dos povos<br />
da região, com características próprias<br />
em cada comunidade.<br />
Desde o início da Assembléia, foi forte<br />
o sentimento de dor pela morte dos 17 indígenas<br />
Pankararu e Atikum, em acidente de<br />
carro ocorrido dia 1º de junho, quando eram<br />
transportados pela Funasa, de Recife para<br />
as aldeias. No acidente, faleceram também<br />
o motorista do veículo e um bombeiro.<br />
Povos<br />
Participam da Assembléia 43 povos indígenas<br />
de nove estados: Pernambuco, Alagoas,<br />
Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Sergipe, Bahia,<br />
Espírito Santo e Rio Grande do Norte.<br />
Esta é a primeira vez que indígenas do<br />
Rio Grande do Norte participam da Assem-<br />
Na primeira reunião surgiu a idéia de<br />
fazermos uma assembléia. Mandamos cartas<br />
pelo correio. Nove povos atenderam ao<br />
chamado. Em janeiro de 1991 fizemos uma<br />
assembléia autônoma. Não tinha quem financiasse,<br />
e propusemos de cada povo que<br />
viesse arcar com as passagens e mandar dinheiro<br />
para alimentação. Foi em uma igreja,<br />
era verão, levamos redes. Eram 29 pessoas.<br />
A gente não tinha idéia do que ia ser<br />
depois, a necessidade mesmo naquele momento<br />
era articular. A Apoinme não tinha<br />
estatuto, diretrizes jurídicas até mais ou<br />
menos 95.<br />
A 2 a assembléia foi em Maceió, com um<br />
pouco mais de recursos. Juntamos cento e<br />
tantas lideranças, aí a gente se entusiasmou.<br />
“Vai dar certo”, falamos. Depois começamos<br />
a ser consultados por outras organizações<br />
em movimentos nacionais. Aí, vi que dava<br />
certo e que dependia de nós.<br />
Teve algum momento mais difícil de continuar?<br />
Povo Xukuru Kariri celebra durante a Assembléia da Apoinme<br />
bléia. São grupos que há cerca de 200 anos<br />
foram expulsos de suas terras, localizadas<br />
no atual estado da Paraíba, e migraram para<br />
o estado vizinho. Por conta do preconceito<br />
e da repressão, as comunidades conhecidas<br />
como Tapuia do Catu e por Família Mendonça<br />
do Amarelão tiveram que esconder suas<br />
identidades étnicas.<br />
Trabalho conjunto<br />
Oito mulheres estão na cozinha da escola<br />
que, improvisada, virou alojamento<br />
para os 250 indígenas do Nordeste, Minas<br />
Gerais e Espírito Santo que participaram da<br />
Assembéia da Apoinme. As grandes panelas<br />
são identificadas com letras feitas com<br />
esmalte: M para as panelas que vêm da comunidade<br />
de Marcação. Depois do almoço,<br />
um homem varre o chão vermelho, tirando<br />
a areia da praia que entra na cozinha.<br />
No início da tarde, já preparando o jantar,<br />
as mulheres conversam e riem. Falam<br />
alto enquanto cortam alho, picam batata.<br />
“Ai, Senhor, me ajuda com as minhas per-<br />
Em 1992, teve um momento em que<br />
pensamos em esmorecer. Não conseguíamos<br />
recurso, todo mundo da coordenação dizia<br />
que ia deixar a Apoinme, as famílias precisavam<br />
da gente em casa. Todo mundo tinha<br />
filhos, casa. Não se paga a ninguém para fazer<br />
parte da coordenação. Tinha a dificuldade<br />
de deslocamento, tinha que passar<br />
muito tempo fora de casa.<br />
Aí estourou um monte de ocupação, os<br />
povos chamavam a comissão e a gente tinha<br />
que dar assistência, mesmo sem ter condições.<br />
Como foi esse processo das retomadas?<br />
A Apoinme não tinha condições físicas<br />
de atender todo mundo que fazia retomada,<br />
mas denunciava, informava, dava apoio aos<br />
povos. Fomos aos Xukuru, aos Pataxó Hã-Hã-<br />
Hãe, aos Kiriri. Um marco foi com os<br />
Karapotó, em Alagoas. Fizemos as entradas<br />
com eles nas terras, quando tiveram que sair<br />
por decisão dos juízes, fomos para a estrada<br />
e depois voltamos com eles para as terras<br />
E como você participa hoje?<br />
nas”. “Perdi a voz”, diz a outra. Um Truká<br />
que estava por perto sugere que ela coma<br />
alho. “Começamos às 4 da manhã e só vamos<br />
largar às 11”. Não é fácil acertar o tempero<br />
para quase 300 refeições. Seis botijões<br />
de gás empilhados no fundo da cozinha,<br />
mais 5 enormes panelas encostadas em<br />
outra parede dão idéia do trabalho que teve<br />
a equipe de alimentação.<br />
Maninha Xukuru-Kariri<br />
é homenageada<br />
As mulheres estiveram presentes em<br />
toda a Assembléia, participando dos debates<br />
. Contaram histórias sobre sua participação<br />
na luta pela terra e pela garantia de<br />
direitos. Uma liderança feminina foi especialmente<br />
homenageada. Maninha Xukuru<br />
Kariri participa da Apoinme desde as primeiras<br />
reuniões, e esteve na coordenação<br />
da entidade desde seu início, há 15 anos. A<br />
partir deste ano, ela não vai participar da<br />
coordenação, mas foi convidada a assessorar<br />
o grupo.<br />
gente dava assistência, mesmo sem ter condições”<br />
Agora me afastei, muita gente não<br />
me conhece. Acho que a grande força<br />
vem dos jovens. Os mais velhos esmorecem,<br />
mas a juventude vem, tem vontade<br />
de levar a situação.<br />
O que você pensa quando vê essa assembléia<br />
que juntou mais de 250 pessoas?<br />
Eu me entusiasmo. Hoje eu me emocionei<br />
quando ouvi a Maninha [Xukuru-<br />
Kariri] fazendo a retrospectiva do movimento<br />
na abertura da Assembléia, ver<br />
esse mundo.... Tinha 29 pessoas na primeira,<br />
100 na segunda e hoje tem 250<br />
pessoas sentadas, ouvindo. Vale o sacrifício,<br />
vale a luta, muitas vezes a gente se<br />
cansa, mas quando vê todo mundo dando<br />
opinião, com interesse, isso me deixa<br />
feliz. Aqui tem 43 povos, a Assembléia<br />
está muito bem representada. Quer dizer<br />
que de alguma forma nosso trabalho<br />
funcionou. Teve vezes que eu achava que<br />
não ia voltar pra casa. Eu imaginava que<br />
ia dar em alguma coisa, mas não que fosse<br />
desse jeito.<br />
Girleno Xokó, companheiro de luta durante<br />
anos, falou para a Plenária sobre a<br />
importância de Maninha na luta dos povos<br />
do Nordeste e do Leste.<br />
Maninha esteve sempre presente em<br />
tudo. Nas reuniões que duravam dias, nas<br />
viagens, nas retomadas, na organização dos<br />
povos. “No meio daquele monte de homens,<br />
ela dizia: ‘respeito é bom e eu gosto’. E todos<br />
nós aprendemos muito com isso”, afirmou<br />
Girlneo.<br />
Um pouco da história<br />
dos Potiguara<br />
A caminho da terra Potiguara, passa-se<br />
por muitos quilômetros a cana de açúcar.<br />
Nas margens da estrada, apenas um tom de<br />
verde domina a paisagem. Mas a partir de<br />
um certo ponto a cor única é substituída<br />
por muitas cores, de muitas roças diferentes:<br />
mandioca, milho, feijão. Sinal de que<br />
entramos na terra Portiguara. Esta parte da<br />
terra foi retomada em 2003.<br />
Com contato desde os primeiros anos<br />
da colonização, o povo Potiguaram resistiu<br />
a portugueses, holandeses e franceses,<br />
que disputavam entre si terras e comércio.<br />
No século passado, resistiram à Companhia<br />
Rio Tinto, empresa de uma família sueca<br />
que expulsou famílias indígenas, queimou<br />
casas, obrigou indígenas a esconderem<br />
suas origens. As famosas Casas Pernambucanas<br />
pertenciam a este grupo. A fábrica<br />
de tecidos acabou falindo, e os Potiguara<br />
que haviam saído foram voltando a sua terra.<br />
Nos anos 70, veio a cana de açúcar e as<br />
usinas de açúcar e álcool, através do<br />
Próalcool, no tempo dos governos militares.<br />
A cana continua em boa parte da terra<br />
indígena, agora revalorizada pela alta do<br />
preço do petróleo e pelas exportações de<br />
açúcar e álcool.<br />
Também os indígenas continuam vivendo,<br />
fortes, com estratégias que passaram por<br />
autodemarcação, retomadas e também pela<br />
ocupação de espaços como a Universidade<br />
Federal da Paraíba, que tem um Grupo de<br />
Trabalho, fruto da luta de lideranças<br />
potiguara.<br />
Veja aqui trecho de um texto de um professor<br />
Potiguara, Cassio Ferreira Marques,<br />
sobre a resistência de seu povo, baseado em<br />
uma conversa com o cacique Valdo, liderança<br />
já falecida:<br />
“Com todo o empenho e poderio econômico<br />
a Companhia de Tecidos Rio Tinto<br />
pertencente ao grupo de famílias Lundgren<br />
conseguiu acabar com o aldeamento. Já que<br />
as famílias se recusavam a modificar suas<br />
casas, elas eram misteriosamente incendiadas<br />
na calada da noite. Uma a uma as<br />
casas foram sendo incendiadas e as de alvenaria<br />
foram tomando conta do que hoje é a<br />
avenida Aspirante Nena Barreto ou a Rua da<br />
Gamileira.<br />
Finalizou o cacique Valdo: “Mas ainda<br />
naquelas terras existe o expírito Potiguara.<br />
Ser Potiguara não é morar em casa de paua-pique<br />
ou alvenaria. È ter alma Potiguara<br />
de amor a essa terra e a essa causa”.<br />
5 Junho - 2005
Fotos Jorge Vieira<br />
Junho - 2005 6<br />
Resistentes<br />
ÍNDIOS DE ALAGOAS<br />
Do anonimato à afirmação étnica<br />
Jorge Vieira<br />
<strong>Cimi</strong>/NE<br />
A<br />
té o final da década de 1970 os povos<br />
indígenas do Nordeste foram relegados<br />
ao anonimato. Com idas e<br />
vindas históricas, impulsionadas<br />
pela ganância colonial sobre seus territórios<br />
e interesses religiosos, as populações indígenas<br />
foram paulatinamente sendo caladas<br />
e reduzidas, aos olhos da sociedade, a pequenos<br />
grupos familiares denominados de<br />
“caboclos”. Chegou-se a considerar que não<br />
existiam mais indígenas no estado de<br />
Alagoas, tamanha a prática política de negação<br />
da presença indígena.<br />
Desde o início da presença de agentes da<br />
empresa colonial européia, há 500 anos, o li-<br />
ontrariando cientistas e pesquisadores<br />
positivistas, os povos indígenas<br />
de Alagoas resistem ao domínio dos<br />
coronéis e, inicialmente, às políticas<br />
integracionistas implantadas pelo SPI e, a<br />
partir de 1967 pela Funai. Há séculos sob o<br />
manto da cultura camponesa, diversas populações<br />
indígenas vivem encravadas nos<br />
recôncavos serranos e sertanejos e nas margens<br />
do rio São Francisco.<br />
Considerando a produção acadêmica anterior<br />
à década de setenta e, conseqüentemente,<br />
as ações governamentais, os povos indígenas<br />
foram considerados extintos. Esta tese<br />
fundamentava-se no entendimento de que o<br />
ente “índio” tinha um estereótipo, ou seja,<br />
cabelos lisos, olhos fechados, pele vermelha,<br />
habitante das matas, viviam nus e se alimentavam<br />
de caça e pesca.<br />
Antropólogos de renome nacional e internacional,<br />
a exemplo de Darcy Ribeiro - que<br />
para sua época teve uma grande contribuição<br />
acadêmica e no indigenismo - defenderam<br />
a teoria da aculturação como instrumen-<br />
toral alagoano foi palco de disputas territoriais<br />
e intrigas entre colonizadores, a exemplo de<br />
portugueses e holandeses, que se utilizavam<br />
de indígenas e negros para garantir seus interesses<br />
econômicos e religiosos.<br />
O fato que se mantém até os dias atuais<br />
emblemático para a historiografia foi a morte<br />
do primeiro bispo do Brasil, dom Pedro<br />
Sardinha, em meados do século 16. Uma versão<br />
mais comum no imaginário popular relata<br />
que a embarcação que conduzia o religioso<br />
e sua comitiva naufragou em terras<br />
alagoanas, na região do atual município de<br />
Coruripe. Eles teriam sido sacrificados e comidos<br />
pelo povo Caeté.<br />
No entanto, outras versões do fato questionam<br />
se a morte do bispo não serviria a<br />
interesses políticos. Apontam conflitos<br />
to de análise das culturas indígenas. Com<br />
base nessa abordagem, foram definidos escalas<br />
e estágios para identificação das populações<br />
indígenas quanto ao processo de<br />
integração à sociedade nacional. Foi com<br />
base nesse critério que as populações indígenas<br />
do Nordeste foram consideradas “plenamente<br />
integradas à comunhão nacional”,<br />
e, portanto, deveriam ser emancipadas. Em<br />
contrapartida, para os povos da região amazônica,<br />
os que obedeciam aos critérios acima<br />
expostos, criam-se parques, a exemplo<br />
do Parque do Xingu, onde pudessem viver<br />
em seu estágio de pureza étnica.<br />
Esta teoria evolucionista encontrou guarida,<br />
obviamente, nas hostes governamentais<br />
prolongando-se durante o período militar<br />
pós-64. Em 1978, o então ministro do Interior<br />
– Ministério responsável pelas questões<br />
indígenas -, Rangel Reis, defendeu a execução<br />
da emancipação – leia-se extinção - dos<br />
povos num período de dez anos. Assim, o<br />
governo não teria mais a responsabilidade<br />
de elaborar e executar uma política específi-<br />
vivenciados pelo bispo e por missionários<br />
Jesuítas e, mais ferreamente, com o então<br />
governador Duarte da Costa e seu filho Álvaro<br />
da Costa.<br />
Nesse período, Alagoas era um lugar estratégico<br />
para a colonização entre<br />
Pernambuco e Bahia. Obrigatoriamente, o<br />
transporte marítimo e, conseqüentemente, os<br />
interesses econômicos tinham que passar por<br />
águas alagoanas. Isto era um problema, pois<br />
o povo Caeté, que fazia guerra contra a invasão<br />
de sua terra e a exploração de suas riquezas,<br />
era empecilho aos mercadores.<br />
Considerando os fatos acima expostos,<br />
será que não havia interessados na morte do<br />
bispo? Gente que queria passar para os indígenas<br />
uma responsabilidade que não interessava<br />
aos agentes da colonização?<br />
Povos indígenas na rota da pesquisa antropológica<br />
C<br />
ca para os povos indígenas. O mesmo feito<br />
foi defendido, em 1993, pelo sociólogo Hélio<br />
Jaguaribe em palestra proferida a militares,<br />
no Rio de Janeiro.<br />
No entanto, contrariando teorias acadêmicas<br />
e a futurologia governamental, mobilizados<br />
em torno dos direitos, organizados politicamente<br />
e em um processo de reelaboração<br />
cultural, diversos povos conseguiram, à base<br />
de muita luta, o reconhecimento da sociedade<br />
e dos órgãos oficiais. Nesse contexto, a participação<br />
de setores progressistas da Igreja Católica<br />
foi determinante para a organização e<br />
mobilização dos povos. Segundo o antropólogo<br />
Roberto Cardoso de Oliveira, com a criação,<br />
em 1972, do Conselho Indigenista Missionário,<br />
a Igreja passou a atuar no apoio e assessoria<br />
na organização de vários grupos, principalmente<br />
quanto aos impasses impostos<br />
pelo governo militar na implementação da<br />
política indigenista estabelecida pela Fundação<br />
Nacional do Índio.<br />
Antropólogos e historiadores também<br />
vêm desmistificando a teoria da extinção<br />
Foi nesse contexto histórico que a “Guerra<br />
Santa” contra o povo Caeté foi justificada.<br />
E, como conseqüência, as terras foram invadidas<br />
e os Caeté exterminados, a exemplo<br />
dos indígenas de Jacuípe, Anadia, Atalaia e<br />
muitos outros.<br />
Valendo-se desta “inexistência” da população<br />
indígena, os antigos aldeamentos foram<br />
considerados extintos e as terras transferidas<br />
ao domínio dos municípios e de particulares.<br />
Como resultado do confinamento implementado<br />
pela Província de Alagoas e pelo Serviço<br />
de Proteção ao Índio (SPI), órgão criado<br />
em 1910 pelo governo federal sob o comando<br />
do Marechal Cândido Rondon , os povos<br />
indígenas em Alagoas ficaram reduzidos<br />
aos Xucuru-Kariri, em Palmeira dos Índios, e<br />
Kariri-Xokó, em Porto Real do Colégio.<br />
desses grupos. O livro Índios de Alagoas, do<br />
antropólogo Clóvis Antunes, e a tese de doutorado<br />
da professora Vera Calheiros sobre os<br />
Kariri-Xokó são exemplos de pesquisas das<br />
décadas de 70 e 80. Recentemente, destacam-se<br />
as pesquisas e publicações coordenadas<br />
pelo professor Luiz Sávio de Almeida,<br />
a tese de doutorado da antropóloga e professora<br />
Sílvia Martins, da Ufal, e a dissertação<br />
de mestrado de Christiano Barros da Silva,<br />
também sobre os Kariri-Xokó.<br />
Sobre os povos do Sertão, além de trabalhos<br />
de alunos de graduação e de artigos<br />
científicos, há a dissertação do antropólogo<br />
Siloé Amorim, defendida na Universidade de<br />
Campinas ( SP).<br />
Há iniciativas consideráveis no campo da<br />
pesquisa e uma preocupação da academia em<br />
compreender a realidade dos povos indígenas.<br />
No entanto, considerando a situação e<br />
importância dos mesmos para a sociedade,<br />
muito pouco foi feito, especialmente no que<br />
se refere ao retorno do conhecimento científico<br />
para as comunidades.
Seja celebrando<br />
na aldeia, ou em<br />
um debate na<br />
universidade,<br />
os povos alagoanos<br />
permanecem<br />
defendendo a sua<br />
cultura<br />
Diante da visão comum de que no<br />
Nordeste não havia mais índio, o historiador<br />
Eduardo Hoornaert formula a pergunta:<br />
“Quem no Nordeste não é índio?”<br />
Essa inquietação estava embasada na<br />
compreensão de que a visão monocultural<br />
dos colonizadores impôs aos povos<br />
a negação de sua identidade étnica.<br />
As identidades foram ocultadas como<br />
forma de resistência e de sobrevivência.<br />
A partir da década 60 alguns fatos<br />
contribuíram para a mudança do cenário<br />
de invisibilidade das populações indígenas.<br />
Na Igreja Católica, o Concílio<br />
Vaticano II definiu novas diretrizes para<br />
a ação missionária, abrindo a ação pastoral<br />
à diversidade cultural e religiosa<br />
das populações autóctones. No Brasil,<br />
com a abertura democrática e em conjunto<br />
com setores da sociedade, lideranças<br />
indígenas iniciaram um processo de<br />
articulação interétnica, com a realização<br />
de assembléias nacionais e regionais que<br />
culminam com a criação de organizações<br />
indígenas, a exemplo da União das Nações<br />
Indígenas (UNI).<br />
Nesse ambiente de discussão,<br />
Alagoas inicia a reflexão sobre a realidade<br />
indígena através do professor Clóvis<br />
Antunes, da Universidade Federal de<br />
Alagoas (Ufal).<br />
Entre o final da década de 70 e início<br />
da década de 80, os povos indígenas<br />
assumem a luta pela garantia e conquista<br />
de seus direitos. Entre eles, estão os<br />
Tingui-Botó, município de Feira Grande;<br />
Wassu-Cocal, na cidade de Joaquim Gomes;<br />
Karapotó, de São Sebastião e<br />
Geripankó, em Pariconha.<br />
A partir de 1998, assumem para a<br />
sociedade a identidade e defesa dos direitos<br />
na região do Sertão de Alagoas<br />
os povos Kalankó, em Água Branca; os<br />
Karuazu e Katokinn, em Pariconha. Há<br />
ainda os Koiupanká, em Inhapi, e os<br />
Aconã, no município de Traipu, que<br />
viviam até recentemente com os<br />
Tingui-Boto.<br />
Fotos: Jussara Galhardo Aguirres Guerra<br />
Em Rio Grande do Norte grupos<br />
reivindicam sua identidade indígena<br />
Estevão Palitot<br />
Grupo de Trabalho Indígena – UFPB<br />
U<br />
ma Audiência Pública sobre a presença<br />
dos povos indígenas no Rio<br />
Grande do Norte ocorreu em 15 de<br />
junho na Assembléia Legislativa<br />
desse estado. Após mais de um século de<br />
silêncio oficial sobre a existência de povos<br />
indígenas no Rio Grande do Norte, três<br />
grupos étnicos reivindicam publicamente<br />
(ao Estado e à sociedade) o seu reconhecimento.<br />
Apesar de reconhecidos em nível<br />
local pelos seus vizinhos não-índios<br />
como grupos sociais nitidamente diferenciados,<br />
estes povos ainda não haviam projetado<br />
politicamente a sua existência frente<br />
à sociedade mais ampla.<br />
Lideranças de três povos indígenas<br />
entregaram abaixo-assinados com reivin-<br />
Comunidade do Catu<br />
Ocupando o vale do rio Catu, entre os<br />
municípios de Canguaretama e Goianinha,<br />
é formada por dois grandes grupos familiares,<br />
os Eleotério e os Serafim. Sua população<br />
é de cerca de 800 pessoas. Vivem<br />
espremidos pelas plantações de cana da<br />
Usina Estivas e queixam-se da degradação<br />
ambiental e da impossibilidade de desenvolverem<br />
suas atividades econômicas tradicionais.<br />
Apresentam um histórico de discriminação<br />
por parte dos moradores das cidades<br />
vizinhas que, em um passado recente,<br />
costumavam chamá-los do “catuzeiros”,<br />
tratando-os como um povo atrasado e arredio.<br />
Guardam na memória que suas terras<br />
teriam sido doadas por um padre para<br />
três irmãos provenientes da Paraíba, que<br />
se casaram com índias tapuias pegas no<br />
mato há mais de cem anos, e que todas as<br />
unidades familiares hoje existentes são<br />
descendentes dessas uniões. Afirmam que,<br />
quando buscaram legitimar suas posses no<br />
cartório da cidade, foram informados de<br />
que suas terras não possuíam documentos<br />
por serem sabidamente terras de índios.<br />
Provavelmente, suas terras remontam à<br />
antiga légua em quadra da aldeia de Vila<br />
Flor, distante poucos quilômetros do Catu.<br />
dicações de inclusão de suas comunidades<br />
nas políticas públicas oficiais de proteção<br />
e assistência. Os povos são conhecidos<br />
como comunidade do Catu (que vive nos<br />
municípios de Goianinha e Canguaretama),<br />
os Mendonça do Amarelão (do município<br />
de João Câmara) e os Caboclos do Assu (do<br />
município de Assu). Durante o encontro,<br />
eles foram apoiados por lideranças<br />
Potiguara da Paraíba, em nome da Articulação<br />
dos Povos Indígenas do Nordeste,<br />
Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).<br />
O representante da Funai que participou<br />
da audiência solicitou que os estudos<br />
já realizados pela Universidade Federal do<br />
Rio Grande do Norte sobre os povos sejam<br />
enviados ao Departamento de Assuntos<br />
Fundiários do órgão, que deverá incluir os<br />
territórios reivindicados na lista de terras<br />
a serem identificadas. No entanto, ele cha-<br />
Desde 2002 realizam visitas freqüentes aos<br />
Potiguara da Baía da Traição em busca de<br />
apoio às suas mobilizações.<br />
Os Mendonça do Amarelão<br />
O grupo, que vive no município de João<br />
Câmara, em 5 mil hectares, apresenta uma<br />
terra seca e infértil; é formado por mais de<br />
2 mil pessoas que se identificam como uma<br />
grande família, cuja referência identitária<br />
(Mendonça), os remete a uma origem indígena<br />
ligada aos primeiros que ali chegaram<br />
no início do século 19, migrantes do<br />
Brejo da Paraíba (Bananeiras) e de<br />
aldeamentos indígenas do Rio Grande do<br />
Norte (São Gonçalo, etc), conforme nos informam<br />
algumas referências bibliográficas<br />
e a história oral do grupo. Os indígenas<br />
falam sobre uma origem comum e se declaram<br />
descendentes de indígenas Tapuia.<br />
A luta pela terra é uma questão antiga<br />
dos Mendonça. Há registros bibliográficos<br />
sobre isto desde o início do século 20. A<br />
terra é vista como um bem coletivo, tendo<br />
à frente a luta do grupo junto ao Movimento<br />
dos Sem-Terra.<br />
As referências históricas de Câmara<br />
Cascudo ressaltam os deslocamentos e<br />
migrações indígenas no Rio Grande do<br />
Norte. Há uma referência específica aos<br />
mou a atenção para a existência de outras<br />
120 terras que ainda aguardam medidas da<br />
Funai para sua identificação.<br />
Alguns estudiosos clássicos do Rio<br />
Grande do Norte, entre eles Câmara<br />
Cascudo e Nestor Lima, já haviam citado a<br />
existência dessas comunidades de descendentes<br />
de índios há algumas décadas. Tais<br />
referências despertaram o interesse de vários<br />
pesquisadores, cujas investigações terminaram<br />
por motivar estudos mais aprofundados<br />
por parte do Departamento de<br />
Antropologia da UFRN. Trabalhos etnográficos,<br />
envolvendo histórias de vida e a reconstrução<br />
da memória social, por sua vez,<br />
estimularam membros dessas comunidades<br />
a procurarem “suas raízes” - como os<br />
próprios índios dizem - num movimento<br />
de positivação dos referenciais que informavam<br />
suas fronteiras sociais.<br />
Um rápido perfil das comunidades indígenas reconhecidas no RN<br />
“Mendonça”: “Pelos trilhos, dez quilômetros<br />
além, estendia-se o Amarelão onde os<br />
Mendonça moravam há mais de um século<br />
em regimen tribal, mestiços de Tupis, fugidos<br />
dos aldeamentos que se tornaram vilas(...)”.<br />
Segundo Irmã Terezinha, da ordem “Irmãs<br />
do Sagrado Coração de Maria”, moradora<br />
do Amarelão há mais de dez anos, os<br />
“Mendonça” passaram a trabalhar na construção<br />
das estradas como cossacos da firma<br />
de João Câmara. E afirma: “Eles contam<br />
que naquela época ganhavam muito dinheiro<br />
e com o fim da construção das estradas<br />
eles passaram a trabalhar nas fazendas<br />
plantando e colhendo algodão e depois nas<br />
plantações de agave”. Ela diz também que<br />
o povo do Amarelão ficou sem as terras<br />
devido à expansão das propriedades de<br />
algodão de João Câmara no período de<br />
1917 a 1940.<br />
Os Caboclos do Assu<br />
Comunidade composta por cerca de<br />
150 pessoas que vivem às margens das lagoas<br />
fluviais no vale do baixo Assu. Ocupam<br />
terrenos como meeiros em fazendas<br />
de grandes proprietários há mais de cem<br />
anos e envolveram-se no movimento indígena<br />
do RN há poucos meses.<br />
Na<br />
comunidade<br />
Catu,<br />
Mendonça do<br />
Amarelão e<br />
Assu a<br />
reafirmação<br />
da identidade<br />
7 Junho - 2005
Junho - 2005 8<br />
Tratados como agressores,<br />
Guajajara convivem com<br />
terror e morte anunciada<br />
Cristiano Navarro<br />
Editor do <strong>Porantim</strong><br />
E<br />
m 1979, durante a conclusão dos<br />
estudos antropológicos para demarcação<br />
da terra Bacurizinho do<br />
povo Guajajara, políticos e fazendeiros<br />
do município de Grajaú, interior<br />
do Maranhão, utilizaram-se<br />
de todos os recursos para impedir que o Estado<br />
não reconhecesse o direito dos índios.<br />
Inúmeras foram as vezes que aldeias inteiras<br />
foram incendiadas a mando de fazendeiros<br />
procurando forçar a expulsão dos<br />
Guajajara de suas terras. No mesmo ano em<br />
que o trabalho antropológico para a demarcação<br />
da terra Guajajara foi concluído, a face<br />
mais cruel desta oligarquia foi revelada nos<br />
assassinatos dos caciques Antônio Leão<br />
Guajajara, esquartejado e atirado em um rio,<br />
e Valdomiro Guajajara, carbonizado para dificultar<br />
a identificação de seu corpo. Até hoje<br />
ambos os crimes permanecem sem solução.<br />
Ainda hoje, a violência é utilizada por<br />
grupos que exploram de forma irregular carvão,<br />
eucalipto e soja nas terras Cana Brava e<br />
Bacurizinho, do povo Guajajara.<br />
As ameaças têm o intuito de forçar os indígenas<br />
a desistirem do processo de revisão<br />
dos limites da área, homologada na década<br />
de 80.<br />
Depois de muita luta veio a primeira vitória<br />
para os Guajajara, em 1984. Durante o<br />
governo do presidente José Sarney, a terra<br />
indígena foi finalmente homologada. No en-<br />
tanto, as pressões da elite local deram resultados.<br />
Dos 145.000 hectares da terra<br />
Bacurizinho, somente 82.432 hectares foram<br />
reconhecidos. Assim, aldeias centenárias localizadas<br />
nos 62.568 hectares não reconhecidos<br />
pelo Estado ficaram de fora dos limites<br />
da terra do povo Guajajara do<br />
Bacurizinho.<br />
A exclusão desta terra abriu espaço para<br />
ação de invasores, principalmente para o corte<br />
ilegal de madeira, carvoeiros, plantio irregular<br />
de soja, eucalipto e arroz, que devastam<br />
uma das últimas áreas preservadas do<br />
cerrado maranhense.<br />
Mesmas práticas, da mesma<br />
oligarquia<br />
Vinte e seis anos depois, em 2001, a partir<br />
do início dos trabalhos de revisão de limites<br />
da terra indígena, as práticas de violências<br />
utilizadas pela oligarquia maranhense para<br />
intimidar a luta do povo Guajajara por sua<br />
terra foram retomadas.<br />
Morte anunciada<br />
No último dia 18 de maio, três dias antes<br />
de morrer, o cacique da aldeia Kamihaw (uma<br />
das aldeias que ficou fora dos limites da terra<br />
Bacurizinho), João Araújo Guajajara, de 70<br />
anos, registrou ocorrência na delegacia da<br />
Polícia Civil de Grajaú, denunciando constantes<br />
ameaças de morte feitas pelo pistoleiro<br />
Milton Alves, conhecido como Milton “Careca”.<br />
O pistoleiro dava até o fim do mês de<br />
maio para que os moradores de Kamihaw dei-<br />
Carvoeiras<br />
avançam<br />
pela terra<br />
Bacurizinho<br />
enquanto<br />
famílias são<br />
ameaçadas<br />
de morte<br />
por<br />
pistoleiros<br />
xassem a aldeia, antes de serem mortos. Nos<br />
dois dias que se seguiram o cacique e seu<br />
povo insistiam na denúncia, porém nenhuma<br />
providência foi tomada.<br />
No dia 21 de maio, dez dias antes de terminar<br />
o prazo, um grupo formado por oito<br />
homens fortemente armados comandados<br />
por “Careca” invadiu a aldeia Kamihaw e assassinou<br />
o cacique João Araújo Guajajara com<br />
dois tiros na altura do peito, à queima roupa.<br />
Além de assassinar o cacique, o grupo<br />
queimou uma casa, estuprou a jovem indígena<br />
D. S., de 16 anos, e feriu Wilson Araújo<br />
Guajajara com um tiro na cabeça. Ambas as<br />
vítimas são filhos de Araújo. Ainda houve<br />
outro Guajajara que, ao fugir dos pistoleiros,<br />
foi alvejado com um tiro na perna direita.<br />
Os filhos de Milton “Careca”, Gilson Silva<br />
Rocha e Wilton Rocha, são apontados pelas<br />
vítimas como os executores do crime de estupro.<br />
Dos acusados, somente “Careca” foi<br />
preso. Os outros continuam livres.<br />
A violência ocorrida no mês passado não<br />
é um fato isolado. Em outubro de 2003, o<br />
cacique Zequinha Mendes Guajajara foi morto<br />
por atropelamento. Em 2004, um grupo<br />
armado invadiu a aldeia Bacurizinho e incendiou<br />
sete casas, fazendo ameaças e levando<br />
pânico a toda comunidade.<br />
Marcados para morrer<br />
Depois do assassinato do cacique João<br />
Araújo Guajajara, segundo moradores de<br />
Grajaú, outras 10 lideranças deste povo ainda<br />
fazem parte de uma lista de jurados de<br />
Fotos: Navarro<br />
morte pelo mesmo grupo de pistoleiros que<br />
assassinou o cacique.<br />
Além das lideranças Guajajara,<br />
missionárias do Conselho Indigenista Missionário<br />
(<strong>Cimi</strong>), que trabalham em Grajaú, também<br />
foram perseguidas e ameaçadas pelos<br />
homens que atentaram contra a vida dos indígenas.<br />
“Um dos criminosos identificado<br />
pelos índios nos perseguiu com um carro fazendo<br />
uma conversão de trânsito irregular”,<br />
diz a missionária Maria de Jesus Fernandes.<br />
Neste momento, os mais expostos à ação<br />
dos pistoleiros são os familiares de João Araújo.<br />
Quinze dias depois do assassinato do cacique<br />
encontramos as famílias da aldeia Kamihaw<br />
vivendo em malocas improvisadas a 200 metros<br />
da rodovia que liga o município de Grajaú a<br />
Balsas. “Os pistoleiros passam de carro por aqui<br />
e dizem que se a gente voltar para nossa terra<br />
vão matar todos nós”, afirma o genro do cacique<br />
Araújo, Antônio Guajajara, um dos que<br />
estariam na lista dos jurados de morte.
A situação das famílias à beira da estrada<br />
se agrava com a precariedade com a qual convivem.<br />
“Lá na aldeia ficou tudo que a gente<br />
tem. Nossa mandioca, nossa roça, nosso trabalho.<br />
Aqui não tem o que comer”, chama a<br />
atenção Damião Araújo Guajajara, pai do cacique<br />
e ancião mais idoso do povo do<br />
Bacurizinho, também sob ameaça.<br />
A reportagem do <strong>Porantim</strong> acompanhou,<br />
no início de junho, um grupo de 66 Guajajara<br />
que retornaram à aldeia Kamihaw pela primeira<br />
vez desde a invasão. No local onde o<br />
cacique Araújo foi assassinado havia marcas<br />
de sangue. As testemunhas fizeram uma<br />
reconstituição do crime que emocionou os<br />
presentes. Revoltado, o líder Maruzan<br />
Camoraí, um dos principais nomes na lista de<br />
ameaçados, exclamou: “este é o sangue que<br />
nosso parente derramou lutando pela terra.<br />
Se esses que querem nossa terra acham que<br />
nós vamos morrer feito cachorro, estão muito<br />
enganados”.<br />
Respostas do poder público<br />
O estudo técnico para revisão da identificação<br />
e delimitação da área foi concluído<br />
no ano passado pela antropóloga Leslye<br />
Bombonatto Ursini. Atualmente os Guajajara<br />
aguardam sua publicação no Diário Oficial, o<br />
que depende da assinatura do presidente da<br />
Funai, Mércio Gomes. Após este passo, o processo<br />
de demarcação segue para o Ministério<br />
da Justiça. No entanto, a Funai tem afirmado<br />
que os processos de revisão de limites<br />
não estão entre as suas prioridades. Ou seja,<br />
o órgão não pretende dar continuidade a eles.<br />
O chefe do posto indígena da terra<br />
Bacurizinho, Alderico Lopes Guajajara, afirma<br />
que já encaminhou pedidos com urgência<br />
para que a Funai agilize a demarcação da<br />
terra e para que a Polícia Federal faça a proteção<br />
das famílias e prenda os criminosos. No<br />
entanto, nem Funai, nem Polícia Federal responderam<br />
aos pedidos.<br />
Imparcialidade<br />
Em protesto contra a violência dos<br />
pistoleiros, os Guajajara destruíram a ponte<br />
que dá acesso à aldeia Kamihaw, destruíram<br />
alguns fornos das carvoarias que atuam de<br />
forma ilegal em suas terras e retiveram um<br />
trator, exigindo a prisão dos responsáveis e a<br />
presença de autoridades, sem que ninguém<br />
ficasse ferido.<br />
Isto foi o suficiente para a imprensa<br />
local transformar as vítimas em criminosos,<br />
taxando os Guajajara como “vândalos” e<br />
“selvagens”, e publicando sempre a versão<br />
do “produtor rural” Milton Alves. Em nenhum<br />
dos veículos de comunicação do estado do<br />
Maranhão foi publicada a versão dos<br />
Guajajara.<br />
Para o <strong>Cimi</strong>, que divulgou nota em apoio<br />
aos Guajajara no dia 30 de maio, “não restam<br />
dúvidas que a principal causa deste conflito<br />
não reside na “selvageria” e “crueldade” dos<br />
indígenas, como foi amplamente divulgado<br />
pelos jornais da Capital, e sim na incapacidade<br />
do Estado brasileiro de criar e executar<br />
políticas adequadas para os povos indígenas”.<br />
Não foi só a imprensa local que apresentou<br />
o tema desta forma. Outros setores da<br />
sociedade envolvente também se manifestaram.<br />
“Realizamos uma varredura geral na região<br />
e confirmamos que não havia mais nenhum<br />
foco de conflito envolvendo pessoas<br />
armadas. Contudo, foram encontradas marcas<br />
recentes e cruéis da passagem de índios<br />
naquela região”, declarou para um jornal local<br />
o delegado da Polícia Civil, Michel<br />
Sampaio.<br />
Somente nove dias após o assassinato<br />
foram ouvidas as testemunhas do crime contra<br />
os Guajajara.<br />
A primeira audiência do caso está marcada<br />
para o dia 14 de julho. Nesse dia serão ouvidos<br />
os indígenas que presenciaram os ataques<br />
e também Milton Careca, que está preso.<br />
Depois de 15 dias, mais de 60 guerreiros Guajajara<br />
retornam ao lugar do crime, aldeia Kamihaw.<br />
Senhor Damião (à direita) é pai de Antônio Araújo<br />
e uma das testemunhas do bárbaro crime<br />
Bispos questionam<br />
preconceito contra Guajajara<br />
O<br />
s participantes da 4 ª Semana<br />
Social Maranhense, que ocorreu<br />
de 2 a 4 de junho na cidade de<br />
Imperatriz, declaram sua solidariedade<br />
aos povos no estado. “No<br />
Maranhão e no Brasil que queremos não<br />
cabem a violência, o preconceito e o desrespeito<br />
às populações indígenas. Nós,<br />
da 4 ª Semana Social Maranhense, entendemos<br />
que somente por meio da regularização<br />
e defesa das terras indígenas será<br />
possível pagar a dívida histórica do Estado<br />
brasileiro com os povos indígenas”,<br />
afirmam em carta.<br />
Na carta dos participantes da reunião<br />
da 4a. Semana Social Maranhense, destaca-se<br />
que esta violência não é um fato<br />
isolado. “Em outubro de 2003, uma liderança<br />
foi morta por atropelamento. Em<br />
2004, um grupo armado invadiu aldeia<br />
Bacurizinho e incendiou sete casas, fazendo<br />
ameaças e levando pânico a toda<br />
a comunidade”, afirmam.<br />
Para chamar a atenção da sociedade<br />
para a realidade dos povos indígenas no<br />
Maranhão e esclarecer dúvidas ligadas<br />
sobre as questões que afligem o povo<br />
Guajajara da terra indígena Bacurizinho,<br />
o bispo de Imperatriz e presidente da<br />
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil<br />
(CNBB) da região Nordeste 5, Dom<br />
Afonso Gregori, o presidente do Conselho<br />
Indigenista Missionário (<strong>Cimi</strong>), Dom<br />
Franco Masserdotti, e o cacique Itamar<br />
Guajajara, que participavam do evento,<br />
também falaram.<br />
Os bispos questionaram o preconceito<br />
que ainda existe, no Brasil, contra os<br />
indígenas. “Dentro de um esquema de poder,<br />
muitas vezes se desqualificam estes<br />
seres humanos” afirmou Dom Afonso<br />
Gregori. “O nosso País deve reconhecer a<br />
sua grandeza, dentro da sua riqueza pluriétnica<br />
e pluricultural”, avaliou Dom Franco<br />
Masserdotti.<br />
O presidente do <strong>Cimi</strong> reafirmou as<br />
reivindicações dos indígenas pela abertura<br />
de inquérito pela Polícia Federal,<br />
para que as vítimas possam ser ouvidas<br />
e para que agressões físicas sejam<br />
examinadas. Até 15 de junho, apenas a<br />
Polícia Civil havia aberto inquérito.<br />
Solicitou também a punição e prisão dos<br />
executores e mandantes dos crimes e um<br />
maior envolvimento do Ministério Público<br />
Federal, através do acompanhamento<br />
do caso e de propostas de ações<br />
judiciais.<br />
Dom Franco reforçou a necessidade<br />
de proteção da Polícia Federal para os<br />
Guajajara. De acordo com os indígenas,<br />
isto poderia ser realizado através da colocação<br />
de um posto policial fixo na entrada<br />
da aldeia até que o processo<br />
demarcatório seja concluído.<br />
O cacique Itamar também referiu-se<br />
ao histórico da luta de seu povo pelo direito<br />
à terra: “Com o passar do tempo a<br />
gente vai ficando num beco sem saída,<br />
porque as autoridades não olham para a<br />
nossa causa, não tomam providência”,<br />
disse Itamar.<br />
9 Junho - 2005
Na escola<br />
Katu o<br />
abandono<br />
do estado<br />
traz a<br />
revolta para<br />
comunidade.<br />
Além da<br />
educação,<br />
Senhor Dico<br />
reivindica<br />
projetos de<br />
autosustentação<br />
para seu<br />
povo<br />
Junho - 2005 10<br />
Economia<br />
Guajajara da Araribóia,<br />
triste horizonte devastado<br />
e sem alternativas<br />
Cristiano Navarro<br />
Editor do <strong>Porantim</strong><br />
E<br />
nquanto a professora Maria da Conceição<br />
Ribeiro Guajajara vê pela<br />
janela da sala de aula um caminhão<br />
lotado de troncos de Ipê atravessar<br />
sua aldeia rumo à cidade, seus 28 alunos<br />
assistem as explicações atentamente<br />
sentados em tijolos de barro. Na escola Kari,<br />
que recebe o mesmo nome da aldeia, não<br />
existem cadeiras, mesas ou armários.<br />
O caminhão que Conceição vê partir da<br />
aldeia tem caminho certo. Depois que oito<br />
toras de 10 metros de Ipê são cortadas e<br />
colocadas no caminhão, o madeireiro paga<br />
a um Guajajara em média 25 reais por “carrada”<br />
(nome dado ao caminhão cheio de<br />
madeira). O madeireiro vende a tora de madeira<br />
para o serralheiro por mil reais o metro<br />
cúbico. O serralheiro repassa o ipê para fábricas<br />
de móveis e construção, principalmente<br />
dos estados da região Sul e de São<br />
Paulo, por 2 500 reais em média o metro<br />
cúbico. Considerando que em cada carrada<br />
é possível se aproveitar 80 metros cúbicos<br />
de Ipê, pode-se concluir que da floresta até<br />
a indústria de móveis, o ágio sobre o metro<br />
cúbico de Ipê é de 80.000 % sobre o valor<br />
pago ao Guajajara. O preço da “carrada”<br />
pode ser menor, variando de acordo com a<br />
necessidade que passa a comunidade indígena.<br />
Não são raras as vezes em que os<br />
Guajajara são pagos com alimentos como<br />
açúcar, óleo de soja e café. Em outras vezes,<br />
os madeireiros simplesmente não pagam<br />
e ameaçam de morte os Guajajara.<br />
Ipê, Camaru, Jatobá, Massaranduba,<br />
Sapucaia, Maracatiara, Amarelão. São muitos<br />
os tipos de madeiras consideradas “nobres”<br />
encontradas nesta terra indígena. Localizada<br />
no oeste do Maranhão, o território<br />
dos Guajajara do Araribóia, de 547 mil hectares,<br />
é uma área muito cobiçada por madeireiros<br />
que atuam de maneira ilegal na floresta<br />
Amazônica. Um levantamento feito<br />
pela Funai de Imperatriz constata que, nos<br />
últimos 20 anos, aproximadamente 70% de<br />
toda a terra indígena foi devastada pela ação<br />
dos madeireiros. Estima-se que existam cerca<br />
de 87 caminhões e 27 tratores derrubando<br />
árvores diariamente.<br />
Comércio maldito<br />
“A venda da madeira não trouxe benefício<br />
para nenhum Guajajara. Ninguém ganhou<br />
dinheiro ou ficou rico. Muito pelo contrário,<br />
o madeireiro trouxe para aldeia doença,<br />
bandidos, devastação, morte, prostituição,<br />
cachaça, ganância e inveja”, argumenta<br />
o cacique da aldeia Iporangatú, Itamar<br />
de Souza Guajajara.<br />
Depois da área devastada, muitos dos<br />
que trabalham no corte das árvores, como<br />
tratoristas, motoristas, serralheiros,<br />
catraqueiros, cozinheiros, passam a viver na<br />
terra indígena. Entre estes trabalhadores<br />
encontram-se muitos foragidos da polícia<br />
com mandado de prisão por crimes como<br />
assassinato e assalto à mão armada.<br />
No rastro do corte ilegal de madeira vêm<br />
as carvoarias, que se instalam dentro da terra<br />
indígena e em seu entorno. Para fazer o carvão,<br />
retira-se quase todo tipo de árvore.<br />
Sobre a madeira, de menor valor, as comunidades<br />
não recebem nada.<br />
Todo o carvão produzido nesta região<br />
vai para as indústrias do município de<br />
Açailândia, importante pólo siderúrgico<br />
onde se encontram empresas como a Vale<br />
do Rio Doce e a Ferroguza.<br />
Fotos: Navarro<br />
Itamar de Souza Guajajara denuncia: “a venda de madeira não trouxe benefício”<br />
O Centro de Defesa da Vida e dos Direitos<br />
Humanos de Açailândia (CDVDH), que há<br />
dez anos trabalha combatendo o trabalho<br />
escravo na região sul do Maranhão, denuncia<br />
que no trabalho do corte de madeira e<br />
nas carvorias existem trabalhadores em situação<br />
de escravidão.<br />
As equipes do <strong>Cimi</strong>, que trabalham há 27<br />
anos com os povos indígenas do Maranhão,<br />
confirmam que, para além da destruição da<br />
floresta, a ação dos carvoeiros e dos madeireiros<br />
sustenta o ciclo econômico do trabalho<br />
escravo e desestrutura completamente a<br />
dinâmica da sociedade dos Guajajara.<br />
Durante os dois dias em que a reportagem<br />
do <strong>Porantim</strong> esteve na terra<br />
Araribóia, no início de junho, correu a notícia<br />
de que uma grande operação, envolvendo<br />
o Exército, a Polícia Federal, o Ibama<br />
e Funai, seria realizada para prender nãoíndios<br />
foragidos da polícia e coibir a extração<br />
ilegal de madeira. Neste período,<br />
o movimento de extração esteve totalmente<br />
paralisado. Na área de maior fluxo da<br />
retirada de madeira não encontramos nenhum<br />
caminhão, arrrastão, tratores ou<br />
homens com moto-serra. No entanto, foram<br />
encontradas toras de Ipê e Jatobá cortadas<br />
e abandonadas.<br />
“Quando tem operação as autoridades<br />
só encontram os índios, parece até que os<br />
madeireiros já sabem. No fim sobra para nós<br />
passar pela humilhação de ser tratado feito<br />
bandido”, afirma o cacique da aldeia<br />
Angelim, Dico Rodrigues Guajajara.<br />
Isolados em risco<br />
Há pouco mais de um mês, os Guajajara<br />
do Araribóia contataram visualmente aproximadamente<br />
60 pessoas do povo Awá, que<br />
vive isolado e de maneira nômade,<br />
perambulando pelo que restou da floresta.<br />
Já houve, em outros períodos, vestígios da<br />
presença dos Awá nesta região. Este povo<br />
evita o contato com a sociedade envolvente<br />
e mesmo com os Guajajara.<br />
“Neste contexto de violência, os Awá<br />
são os mais vulneráveis à violência e às doenças<br />
transmitidas pelos ‘brancos’” diz José<br />
Pedro Luís, da Funai de Imperatriz. Segundo<br />
Pedro Luís, dentro do Maranhão, o estado<br />
mais pobre do Brasil, os Guajajara do<br />
Araribóia são o povo indígena com maior<br />
índice de tuberculose, e a principal causa<br />
da doença é a desnutrição.<br />
“Com a chegada do madeireiro, muita<br />
gente deixou de fazer roça e ficou dependente<br />
da derrubada. Agora que a mata vai<br />
se acabando, o povo vai passando necessidade.<br />
Antes não era assim, cada família<br />
vivia da sua roça e aqui tinha muita caça”<br />
comenta o cacique Itamar Guajajara.<br />
Doenças sexualmente transmissíveis<br />
também chamam atenção. Na terra indígena,<br />
três pessoas morreram infectadas pelo<br />
vírus da Aids e ainda há outro portador do<br />
vírus. “As doenças sexualmente transmissíveis,<br />
como a Aids, são um grande perigo.<br />
A falta de informação e atendimento pode<br />
levar a uma tragédia”, afirma Pedro Luís.<br />
A dificuldade no transporte dos doentes<br />
da floresta até a cidade e o fato de existir<br />
apenas uma equipe de saúde para cobrir<br />
as 49 aldeias da terra indígena coloca os<br />
Guajajara do Araribóia em total abandono<br />
no que se refere à saúde.<br />
Um futuro diferente?<br />
Além da falta de estrutura, a escola Kari<br />
não recebeu alimentos para merenda ou<br />
material didático. O salário de Conceição,<br />
a única professora, que leciona para alunos<br />
de 1ª a 4ª série, está atrasado há cinco meses.<br />
A partir da quinta série todos os alunos<br />
Guajajara precisam ir para a cidade estudar,<br />
o que na época de chuva torna-se impossível.<br />
“Que futuro nós vamos dar pra essas<br />
crianças nas condições em que vivemos?”,<br />
questiona Conceição.<br />
Sem projetos de exploração sustentável<br />
dos recursos naturais da floresta ou de financiamento<br />
público para a agricultura, neste<br />
momento não existem alternativas econômicas<br />
imediatas no horizonte dos<br />
Guajajara da Aribóia. “Ninguém fica feliz<br />
vendo a mata ir embora, mas sem nenhuma<br />
assistência, de remédio, de educação, e sem<br />
nenhum projeto do governo para plantar a<br />
nossa roça, o que é que a gente vai fazer<br />
para sobreviver? E esses homens do Ibama<br />
que criticam a gente, queria ver viver aqui<br />
abandonado na floresta como a gente vive”,<br />
desafia a liderança da aldeia Iporangatú,<br />
Vírgulino de Souza Guajajara.
Festa Junina<br />
A mais indígena das festas populares<br />
Benedito Prezia<br />
Toponimista<br />
N<br />
as festas juninas encontramos<br />
muitos elementos indígenas, das<br />
mais diversas origens.<br />
As festas de junho, quando<br />
são comemorados São João e São Pedro,<br />
possuíam, na Europa, elementos como<br />
fogueira, brincadeiras e danças típicas. Todos<br />
eles foram trazidos para o Brasil pelos<br />
colonos e missionários.<br />
A festa de São João coincidia, na Europa,<br />
com o solstício de verão (que marca o<br />
início do verão), quando eram relembrados<br />
antigos rituais agrícolas. Era “quando as<br />
populações do campo festejavam a proximidade<br />
das colheitas e faziam sacrifícios<br />
para afastar os demônios da esterilidade,<br />
pestes dos cereais, estiagens, etc”, observa<br />
Câmara Cascudo. (1)<br />
Transportada para o Novo Mundo, esta<br />
festa coincidiu com o solstício de inverno,<br />
isto é, com o início do inverno. Embora não<br />
tenhamos referências de comemorações<br />
indígenas no Brasil, ela tinha muita importância<br />
na região andina, sendo comemorado<br />
como a festa inca do Inti Raymi, no Peru,<br />
que homenageava o sol e era um momento<br />
de rituais de iniciação para os jovens<br />
guerreiros. (2)<br />
O fogo foi um elemento muito importante<br />
em antigos rituais. Os celtas celebravam<br />
uma festa no dia 1o . de maio, quando<br />
comemoravam o início do verão. Nessa<br />
ocasião eram acesas grandes fogueiras, no<br />
meio das quais os druidas, seus sacerdotes,<br />
faziam passar o gado, para livrá-los de<br />
doenças. (3)<br />
No Brasil, as festas juninas tiveram<br />
grande popularidade nas missões e nas vilas.<br />
O jesuíta Fernão Cardim observou, sobre<br />
os Tupi, que “três festas celebram estes<br />
índios [com grande alegria, applauso e<br />
gosto particular. A primeira é as fogueiras<br />
de S. João, porque suas aldeias ardem em<br />
fogos, e para saltarem as fogueiras não os<br />
estorva a roupa, ainda que algumas vezes<br />
chamusquem o couro. A segunda é a festa<br />
de ramos, (...) a terceira, que mais que todas<br />
festejam, é dia de cinza (...) e folgam<br />
que lhes ponha grande cruz na testa”. (4)<br />
Embora São João, entre os santos católicos<br />
seja um santo austero, rígido e até<br />
intolerante, com a introdução de rituais<br />
não-cristãos ele passou a ser festejado<br />
como “um deus amável e dionisíaco, com<br />
farta alimentação, danças, músicas, bebidas<br />
e uma marcada tendência sexual nas<br />
comemorações populares”, como afirma<br />
Câmara Cascudo, que elenca inumeráveis<br />
práticas populares “casamenteiras”. (5)<br />
Em São Pedro encontramos a figura de<br />
uma entidade indígena, Tupã, o dono da<br />
chuva e dos trovões. Com muita freqüência<br />
as pessoas falam “de pedir chuva a São<br />
Pedro” ou “que São Pedro está exagerando<br />
na chuva”. A expressão popular “manda-chuva”<br />
refere-se seguramente a esse<br />
chefe, que é o “príncipe dos apóstolos”.<br />
O Nordeste conservou mais a tradição<br />
portuguesa que o vê como “porteiro do<br />
céu”.<br />
Com o tempo, essas celebrações passaram<br />
a receber da cultura mestiça brasileira<br />
muitos elementos indígenas, provavelmente<br />
pela dimensão rural que conservaram.<br />
Eram festas rurais, comemoradas<br />
por pessoas da roça, chamadas de caboclas<br />
ou caipiras.<br />
Com a urbanização, essas celebrações<br />
foram levadas para a cidade, mas chegaram<br />
carregadas de preconceito, reproduzindo<br />
o estereótipo do “caipira”:<br />
aparência desajeitada e envergonhada,<br />
chapéu de palha, cigarro de<br />
fumo de corda, botina velha e, sobretudo,<br />
roupas coloridas e remendadas.<br />
Felizmente, em algumas regiões esta<br />
festa conseguiu cidadania, como é o caso<br />
do Nordeste, o que fez com que esses traços<br />
discriminatórios diminuíssem. As roupas<br />
velhas foram substituídas por vestes<br />
festivas e o que era “atrasado”, passou a<br />
ser referência nacional, como hoje são as<br />
comemorações juninas de Caruaru, em<br />
Pernambuco.<br />
Em cada região do Brasil, a festa foi<br />
incorporando elementos de suas bases indígenas.<br />
No Sul entrou o pinhão, alimento básico<br />
do povo Kaingang, e o famoso quentão,<br />
bebida quente com gengibre e pinga, provavelmente<br />
versão brasileira da bebida do<br />
Kiki, feita com mel fermentado e servida<br />
morna.<br />
Embora esse ritual fosse uma celebração<br />
fúnebre, possui traços que vão se cruzar<br />
com a festa junina, como a época em<br />
que é realizada. Segundo Alfred Métraux,<br />
realizava-se “quando o milho está verde<br />
e o pinhão maduro, isto é, um período<br />
entre a metade de abril e junho”. (6) Descrevendo<br />
o final do ritual, afirma que as<br />
duas “metades unem e misturam sons de<br />
flautas, risadas e choro. Os cantores e<br />
dançarinos recebem licor até ficarem completamente<br />
embriagados. Mais tarde as<br />
metades dançam em duplo círculo ao redor<br />
de fogueiras acesas na praça; finalmente<br />
todos bebem até satisfazer seu<br />
coração”. (7)<br />
É possível que outros grupos jês que<br />
viveram no Sudeste tivessem algo semelhante,<br />
para fixar esses elementos.<br />
No Sudeste e Nordeste foram igualmente<br />
incorporados elementos da festa do<br />
milho de tradição tupi-guarani, quando<br />
vão predominar pratos feitos à base de<br />
milho, como o bolo de fubá, a canjica, o<br />
curau, a pamonha, a pipoca e o milho verde<br />
cozido ou assado na brasa. O quentão<br />
vai lembrar também o cauim indígena. O<br />
que antigamente era feito com mandioca<br />
ou milho fermentado, hoje, na ausência<br />
da fermentação natural, faz-se com pinga<br />
e gengibre.<br />
A presença tupi é sinalizada pelos nomes<br />
desses pratos típicos: pamonha (do<br />
tupi pomonga= pegajoso), creme cozido<br />
na casca de milho, que faz lembrar pratos<br />
indígenas assados na folha de bananeira;<br />
curau (do tupi: kure= ralado + u= comida),<br />
é o creme de milho ralado; canjica (do<br />
guarani: kangy= mole + kaa= planta),<br />
mingau feito com milho seco despolpado<br />
e cozido. No Nordeste a influência africa-<br />
na passou a designar a canjica de munguzá,<br />
termo de origem bantu.<br />
Outros alimentos indígenas entraram<br />
na festa como a batata-doce assada, a mandioca<br />
assada e o famoso pé-de-moleque, feito<br />
com amendoim, também indígena.<br />
O lado dionisíaco da festa pode ser visto<br />
nos banhos coletivos da madrugada,<br />
hoje quase extintos, e que era um misto<br />
de purificação e busca de noivo. (8)<br />
Ele está sobretudo no famoso casamento<br />
caipira, que pode ser analisado de duas<br />
maneiras.<br />
Seria uma paródia do casamento católico,<br />
própria do teatro popular colonial,<br />
onde um padre bêbado tenta casar um<br />
noivo ingênuo e uma noiva sirigaita. Contra<br />
esse tipo de representação, a Igreja<br />
do século 18 foi muito severa. Em<br />
épocas mais recentes, ao casamento caipira<br />
adicionou-se a quadrilha, que faz paródia<br />
das danças aristocráticas do Império.<br />
Numa segunda abordagem, o casamento<br />
caipira seria uma espécie de contrato<br />
substituto, já que a presença do padre católico<br />
no interior do Brasil era bastante<br />
escassa. Falava-se de “casamento na fogueira”.<br />
Câmara Cascudo, citando Artur Neiva,<br />
narra esse tipo de casamento nos “gerais”<br />
do Piauí e Goiás, que ocorria na noite de<br />
São João. Era realizado “junto à fogueira,<br />
em presença dos pais dos noivos, padrinhos,<br />
pessoas da família e convidados e que<br />
é considerado válido para todos os efeitos”.<br />
(9)<br />
Havia também o compadrio de fogueira,<br />
quando alguém se tornava “padrinho”<br />
de alguma criança, como forma de<br />
comprometê-lo num futuro batizado a ser<br />
realizado posteriormente pelo padre.<br />
A própria maneira de fazer as fogueiras<br />
familiares, diante de cada casa, lembra<br />
a cultura tupi, onde as ações e a chefia são<br />
sempre uni-familiares. E os fogos, tão típicos<br />
dessa festa, não poderiam mais uma<br />
vez lembrar Tupã, senhor dos trovões?<br />
NOTAS:<br />
(1) CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro, Itatiaia/Edusp, 1988, p. 404.<br />
(2) Inti Raymi. Por la afirmación de nuestra cultura. Cayambi (Equador), 1991.<br />
(3) CHEVALIER & GHEERBRANT, Diccionario de símbolos, José Olympio, 1994, p. 441.<br />
(4) CARDIM, Tratados da terra e gente do Brasil, [1585], Ed. Nacional, 1978, p. 191.<br />
(5) CASCUDO, id., p. 404-406.<br />
(6) METRAUX, Os Kaingang,mimeo, 1979, p. 40.<br />
(7) Id., p. 41.<br />
(8) MELLO MORAES F o , Festas e tradições populares do Brazil, Garnier, s/d [1901], p. 190-1.<br />
(9) CASCUDO, id., p. 407.<br />
11 Junho - 2005
País<br />
Afora<br />
As sementes<br />
da luta<br />
Xukuru<br />
crescem a<br />
cada<br />
assembléia<br />
Junho - 2005 12<br />
ASSEMBLÉIA XUKURU<br />
Terra a chave da luta<br />
Roberto Saraiva<br />
<strong>Cimi</strong>-NE<br />
A<br />
pós seis anos do assassinato<br />
do seu grande<br />
líder, Xicão Xukuru,<br />
opovo se reuniu<br />
em mais uma assembléia, desta<br />
vez na aldeia Lagoa. Com a<br />
inspiração de mãe Tamain, do<br />
pai Tupã e a força dos invisíveis<br />
foi realizada a quarta Assembléia<br />
do povo Xukuru.<br />
A temática terra, desenvolvida<br />
em uma discussão de grupos<br />
continua sendo a chave dos<br />
problemas enfrentados pelos<br />
Xukuru. Tendo em vista que<br />
25% das terras ainda está nas<br />
mãos de posseiros e fazendeiros<br />
, dos 27.555 ha, ainda há<br />
muito o que fazer para terminar<br />
a desintrusão . “Nós temos<br />
que abrir o olho, não tem nada<br />
“Quando Deus criou a terra, não foi para exploração<br />
econômica, foi para todos os sobreviventes. Foi para que nós<br />
pudéssemos desfrutar das águas e das matas sem destruir”<br />
Xicão Xukuru<br />
ganho definitivamente ainda,<br />
temos muito a construir” falou<br />
a liderança da Aldeia Lagoa,<br />
Rinaldo.<br />
Para o povo Xukuru esse<br />
momento foi de redefinição de<br />
estratégias e de reforçar a crença<br />
de que estão no caminho<br />
certo, estruturando a participação<br />
de todas as aldeias em suas<br />
decisões. Assim a discussão<br />
sobre educação escolar, saúde,<br />
desenvolvimento sustentável e<br />
comunicação se deu de maneira<br />
ampliada.<br />
Um fato extremamente importante<br />
e novo nesta assembléia<br />
foi o debate sobre a participação<br />
dos jovens nas instâncias<br />
da organização social do<br />
povo, não como uma organização<br />
dos jovens, mas os jovens<br />
dentro das instâncias já existentes,<br />
fazendo assim um ciclo<br />
de participação que vai da<br />
criança ao ancião.<br />
Um dos pontos altos desta<br />
assembléia foi o testemunho<br />
de várias lideranças que<br />
acompanharam Xicão como<br />
Cecílio, liderança da aldeia<br />
Cana Brava, que afirmou<br />
“A luta está encravada na<br />
nossa vida”.<br />
No dia 20 a celebração na<br />
mata, com a presença da comunidade,<br />
de lideranças de vários<br />
povos da região, aliados dos<br />
povos indígenas e de uma representação<br />
significativa da cidade<br />
de Pesqueira, teve na figura<br />
do Bispo de Pesqueira,<br />
Dom Francisco, e de alguns aliados<br />
a manifestação de que<br />
Xicão e os que já tombaram<br />
pela vida, sejam e continuem<br />
sendo um instrumento de reunir<br />
as força do Ororubá.<br />
Foto: Mateus Sá Leão<br />
“São as causas<br />
que importam”<br />
Durante a homenagem na Câmara dos Deputados,<br />
em Brasília, Dom Luciano reafirma compromisso<br />
com as causas populares. Sem Terra participaram<br />
da Sessão Solene<br />
Priscila D. Carvalho<br />
Repórter<br />
D<br />
om Luciano Mendes de Almeida foi homenageado dia 17 de maio,<br />
em Brasília, através de uma Sessão Especial na Câmara dos<br />
Deputados. Arcebispo da Arquidiocese de Mariana, MG, há 16<br />
anos, Dom Luciano foi presidente da Conferência Nacional dos<br />
Bispos do Brasil do Brasil (CNBB) entre 1987 e 1994.<br />
Durante a homenagem em Brasília, com uma fala tranqüila e pausada,<br />
Dom Luciano afirmou que encontrou nas causas populares o sentido<br />
para a solenidade, que durou quatro horas. “Estava pensando no sentido<br />
do que estamos aqui fazendo. E eu vi são as causas que importam: terra,<br />
trabalho, as populações indígenas, os quilombolas”, disse o bispo. “Neste<br />
momento, sou alguém que ajuda para que estas causas estejam presentes<br />
nesta casa”, concluiu. Cerca de 200 trabalhadores rurais Sem Terra<br />
ligados ao MST participaram da Sessão. Também estiveram presentes fiéis<br />
e políticos da região de Mariana, Minas Gerais.<br />
“A presença de vocês me deu uma alegria muito especial e também<br />
suscitou um compromisso mais forte”, afirmou o bispo, agradecendo a<br />
presença dos participantes. Dom Luciano lembrou de amigos e militantes<br />
ausentes, entre eles o operário Santo Dias, o índio Guarani-Kaiowá Marçal<br />
de Souza e a irmã Dorothy Stang. Quando lembrou do menino Joilson,<br />
“morto a ponta-pés em São Paulo”, dom Luciano emocionou-se e chorou.<br />
“Estas pessoas nos incentivam a acreditar que, se nós somos destinados à<br />
felicidade, podemos experimentar um pouco disso aqui”. Para o bispo,<br />
no entanto, chegar à felicidade “exige de nós mudanças comportamentais,<br />
alterações no nosso modo de vida, e um outro regime sócio-políticoeconômico”.<br />
Nascido no Rio de Janeiro, ordenado em Roma, Dom Luciano teve<br />
intensa atuação com moradores em situação de rua e na Pastoral do Menor,<br />
pela qual ficou conhecido especialmente durante sua estada na Zona<br />
Leste de São Paulo, e quando foi bispo auxiliar da diocese de São Paulo.<br />
O bispo teve atuação decisiva no episódio das acusações do jornal O<br />
Estado de S.Paulo contra o <strong>Cimi</strong>. Em 1987, na época da Constituinte, o<br />
jornal publicou “reportagens” sobre a suposta atuação de missões religiosas<br />
como fachada de interesses de mineradoras estrangeiras. Após seis<br />
dias de matérias que acusavam diretamente o <strong>Cimi</strong>, e através da atuação<br />
da CNBB, o jornal O Estado de S. Paulo foi obrigado pela Justiça a publicar<br />
o direito de resposta da entidade.<br />
Quando a Sessão Solene foi encerrada, as pessoas que estavam na<br />
mesa da Câmara ao lado de Dom Luciano levantaram-se e foram saindo<br />
da mesa. Neste momento, os SemTerra entoaram uma música sempre<br />
presente em suas marchas (“este é o nosso país, esta é a nossa bandeira,<br />
e é por amor a esta pátria Brasil, que a gente segue em fileira”). Dom<br />
Luciano levantou-se, mas não virou para trás para cumprimentar os colegas<br />
da mesa. Parado, em pé, ouviu o canto dos Sem Terra até o fim.<br />
www.cimi.org.br<br />
O espaço renovado<br />
da luta indígena
Continua a luta pela demarcação das terras<br />
Tupinikim e Guarani<br />
M<br />
ais de 100 pessoas dos povos<br />
Tupinikim e Guarani de sete aldeias<br />
retomaram suas terras em meados<br />
do mês de maio e passaram<br />
a trabalhar na derrubada de eucalipto para<br />
iniciar a reconstrução da antiga aldeia<br />
Tupinikim Araribá, no município de Aracruz<br />
(ES), destruída na década de 60, quando<br />
ocorreu a invasão da empresa Aracruz<br />
Celulose .<br />
Os indígenas já iniciaram o plantio de<br />
árvores frutíferas e nativas, mudas de abacaxi<br />
e mandioca, preparando o local para<br />
as primeiras famílias que habitarão a nova<br />
aldeia.<br />
Após celebrarem a reconstrução desta<br />
primeira aldeia, os Tupinikim e Guarani<br />
continuaram com a reconstrução de outras<br />
aldeias na área de 11.009 hectares autodemarcada<br />
no dia 17 de maio.<br />
Em 1998, quando ocorreu a redução<br />
da terra indígena, os povos Tupinikim e<br />
Guarani realizaram a autodemarcação de<br />
suas terras. No entanto, após 8 dias, a Polícia<br />
Federal impediu a mobilização. De<br />
acordo com os indígenas, em carta enviada<br />
ao Ministro da Justiça, naquele momento<br />
a Polícia fechou o acesso às aldeias e os<br />
levou para Brasília “onde, sem o direito a<br />
assessoria e isolados das nossas comunidades,<br />
fomos obrigados a assinar um acordo<br />
com a empresa Aracruz Celulose, sob a<br />
ameaça de perder todas as terras, se não<br />
aceitássemos esta proposta”.<br />
A Aracruz Celulose justifica sua presença<br />
na terra indígena através deste acordo<br />
firmado em 1998. Para o Ministério Públi-<br />
Magali Neumann<br />
Coordenadora do Intercâmbio <strong>Cimi</strong>/CMC<br />
D<br />
urante os meses de abril e maio<br />
foram realizadas atividades na<br />
Holanda relacionadas com a causa<br />
indígena no Brasil. A iniciativa<br />
surge dentro do Projeto de Intercâmbio<br />
entre o <strong>Cimi</strong> e a CMC, uma organização<br />
missionária dos religiosos na Holanda.<br />
O intercâmbio tem como objetivo tornar<br />
conhecida a situação e a luta dos povos<br />
indígenas, buscar formas de apoio e aliados<br />
a esta causa e fazer presente o trabalho do<br />
<strong>Cimi</strong>. A base deste diálogo está na reciprocidade<br />
dos parceiros: em tempo de<br />
globalização, ver e analisar os problemas e<br />
possibilidades dela em ambos continentes.<br />
Nas atividades realizadas na Holanda<br />
durante a Semana dos Povos Indígenas<br />
destacam-se<br />
co Federal (MPF) “o acordo é nulo porque<br />
a Constituição Federal determina que todos<br />
os atos civis que tenham por objeto as<br />
terras indígenas são nulos. A parte do acordo<br />
em que os indígenas abriram mão de<br />
qualquer reivindicação de qualquer direito<br />
sobre as terras é inválida”, afirma a<br />
procuradora Luciana L.Oliveira.<br />
“Consideramos este acordo ilegal, já<br />
que através do mesmo tivemos que aceitar<br />
que a Aracruz Celulose continuasse a<br />
explorar 11.009 hectares das terras<br />
Tupinikim e Guarani, em troca de uma indenização<br />
em forma de projetos sociais,<br />
por um prazo de 20 anos. A ilegalidade da<br />
troca de terras indígenas por dinheiro foi<br />
confirmada pelo próprio Ministério Público<br />
Federal do Brasil, que retirou sua assinatura<br />
do Acordo ainda no ano de 1998”,<br />
afirmam os indígenas na carta.<br />
Em março de 2005, o MPF do estado do<br />
Espírito Santo instaurou um inquérito para<br />
apurar irregularidades no procedimento de<br />
identificação e homologação das terras in-<br />
o relatório da Anistia Internacional<br />
publicado em março 2005, chamado “Estrangeiros<br />
em nosso próprio país”, e a conjuntura<br />
do governo Lula em relação aos<br />
povos indígenas e a relação da Holanda<br />
com o tema.<br />
A Holanda é um país que tem influência<br />
no Brasil como importador de produtos<br />
como soja, café, açúcar. O país é distribuidor<br />
destes produtos para a Europa. O<br />
Projeto de Intercâmbio visa refletir junto<br />
com a sociedade holandesa e incentivá-la<br />
a tomar posição. Qual?<br />
Foi realizado um debate na cidade central<br />
de Utrecht. Participaram da organização<br />
<strong>Cimi</strong>, CMC, Solidaridad e a Anistia Internacional.<br />
Os temas centrais foram o Relatório<br />
da Anistia e a relaçao econômica entre<br />
Holanda e Brasil. Como debatedores, foram<br />
convidados o Ministério de Relações Exteriores<br />
da Holanda, empresas multinacionais<br />
dígenas Caieiras Velhas, Pau Brasil e Comboios,<br />
argumentando que o processo não<br />
levou em conta os estudos antropológicos<br />
realizados pela Funai. A Procuradoria pede<br />
a anulação do procedimento de identifica-<br />
Semana dos Povos Indígenas na Holanda<br />
como Rabobank e Unilever, e o Centro dos<br />
Povos Indígenas na Holanda (NCIV).<br />
Este debate mostrou à população holandesa<br />
a grande interferência de algumas<br />
empresas multinacionais no Brasil, como<br />
no caso o projeto de plantio de eucaliptos<br />
na região de Minas Gerais, apoiado pelo<br />
Banco Rabobank, e a produção de soja. Os<br />
representantes das empresas foram questionados<br />
sobre sua atuação e sobre como<br />
tratam os interesses dos atingidos, entre<br />
eles as populações indígenas.<br />
A multinacional Unilever negou-se a<br />
participar do debate, afirmando que cumpre<br />
muito bem com sua responsabilidade<br />
social.<br />
Do Sul ao Norte do país houve uma<br />
série de encontros com grupos de<br />
solidaridade internacional, grupos de Igreja,<br />
grupos da Anistia Internacional e estudantes<br />
especializados em América Latina.<br />
ção das três terras indígenas, para que elas<br />
sejam homologadas de forma integral.<br />
Ao nível do governo federal, o Ministro<br />
da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, ainda não<br />
se pronunciou sobre a recomendação do<br />
Ministério Público Federal do Espírito Santo<br />
para editar, até meados de junho, uma<br />
nova portaria de delimitação, garantindo a<br />
demarcação dos 18.070 hectares de terras<br />
indígenas Tupinikim e Guarani. Atualmente,<br />
apenas 7.061 hectares são oficialmente<br />
demarcados. Também a Funai de Brasília encaminhou<br />
um parecer ao Ministro, recomendando<br />
a edição de uma nova portaria que<br />
delimite as terras indígenas Tupinikim e<br />
Guarani, identificadas pelos estudos da própria<br />
Funai.<br />
A Aracruz Celulose, por sua vez, não<br />
tem reagido publicamente às ações de retomada<br />
dos indígenas. No entanto, ela tem<br />
divulgado informações distorcidas sobre o<br />
conflito, com o único objetivo de jogar a<br />
opinião pública contra os indígenas. (com<br />
informações da FASE)<br />
Todos os eventos tiveram cobertura em<br />
jornais locais e o debate teve cobertura<br />
pela Rádio Nederland Internacional.<br />
O programa de Cooperação<br />
País<br />
Afora<br />
Depois da<br />
reconstrução<br />
da aldeia, os<br />
Tupinikim e<br />
Guarani<br />
começaram a<br />
plantar<br />
árvores<br />
frutíferas<br />
Dois cooperantes da CMC atuam no<br />
Brasil, trabalhando junto ao <strong>Cimi</strong>. Geertje<br />
van der Pas trabalhando no Secretariado<br />
Nacional como assessora de comunicação<br />
internacional e Bettine Robers, engenheira<br />
agro- florestal, trabalha em Manaus. Na<br />
Holanda, Magali Neumann, do <strong>Cimi</strong>, coordena<br />
a relação entre os cooperantes e as<br />
organizações missionárias e liga os temas<br />
atuais da questão indígena com o público<br />
holandês.<br />
Os cooperantes dão retorno ao seu país<br />
de origem sobre as experiências vividas<br />
com os povos indígenas e mostram como<br />
estas têm relação com a vida e com as<br />
decisões tomadas na Europa. 13 Junho - 2005
País<br />
Afora<br />
Junho - 2005 14<br />
Povos reagem à paralisia com ocupação de<br />
prédios públicos e mobilizações por todo o País<br />
Presidente do órgão indigenista<br />
oficial mantém discurso de que<br />
questão fundiária no Brasil está<br />
quase resolvida<br />
Priscila Carvalho<br />
Repórter<br />
A<br />
penas uma terra indígena, a Raposa<br />
Serra do Sol, foi declarada pelo<br />
Ministério da Justiça em 2005. Grupos<br />
de trabalho para realizar estudos<br />
antropológicos não são criados e os processos<br />
voltam do Ministério da Justiça para<br />
a Funai sem explicações técnicas. A gestão<br />
da Funai é desarticulada e, por vezes,<br />
preconceituosa. A política indigenista oficial<br />
não atende às necessidades dos povos indígenas,<br />
não ouve suas reivindicações e não<br />
chega às comunidades. Talvez tenha, isto<br />
sim, chegado ao fundo do poço, pela total<br />
paralisia nos processos de demarcação. Sem<br />
aceitar o imobilismo oficial, povos e organizações<br />
indígenas respondem à paralisia com<br />
mobilizações país afora.<br />
No estado do Pará, indígenas Tembé Tenetehara<br />
ocupam o prédio da Funai em Belém.<br />
Eles querem estrutura e recursos para coibir<br />
o corte ilegal de madeira nobre por madeireiros,<br />
que ocorre com a conivência de políticos<br />
locais. A ocupação acontece desde o dia 14<br />
de junho e apesar de reuniões que já foram<br />
feitas com autoridades, os indígenas ainda não<br />
conseguiram garantia de atendimento às reivindicações<br />
de fiscalização ambiental.<br />
Na Bahia, após uma funcionária da Fundação<br />
Nacional de Saúde (Funasa) ter se recusado<br />
a dar atendimento a indígenas do povo<br />
Atikum, este povo ocupou o prédio da sede<br />
do órgão em Juazeiro. Somaram-se a eles na<br />
ocupação um grupo do povo Truká e os<br />
Tumbalalá. Os povos solicitam atendimento<br />
digno, equipes médicas, a contratação de<br />
agentes de saúde, saneamento básico e infraestrutura<br />
de saúde em Juazeiro. A Funasa afirma<br />
que pretende priorizar a região, mas ainda<br />
não tomou providências sobre as reivindicações<br />
por estar com dificuldade de atuar devido<br />
à greve de parte de seus funcionários.<br />
Do Amazonas, a Federação das Organizações<br />
Indígenas do Rio Negro, (Foirn), responsável<br />
pelo atendimento à saúde indígena<br />
através de um convênio com a Funasa afirma<br />
que todas as ações de atendimento estão<br />
comprometidas devido a um atraso no<br />
repasse de verbas.<br />
Também no Amazonas, o Ministério Público<br />
Federal deu um prazo de 30 dias para<br />
que o estado, a União e a Funai apresentem<br />
um diagnóstico da situação da educação escolar<br />
indígena, sob pena de pagarem uma<br />
multa diária de R$ 5 mil. A sansão vem porque<br />
não foi cumprido um acordo assinado<br />
em março de 2003, no qual as três instâncias<br />
assumiram compromissos para a criação<br />
Foto: <strong>Cimi</strong> GO/TO<br />
Lideranças Krahô Kanela que também sofrem com a total paralisação dos processos<br />
de demarcação por parte da Funai e Ministério da Justiça<br />
e regularização de escolas indígenas e formação<br />
de professores. Para completar, de<br />
acordo com informações da Agência Brasil,<br />
o Ministério Público Federal acusa a Procuradoria<br />
Geral do Estado de revelar “preconceito<br />
étnico”, já que ela questionou a decisão<br />
do MPF colocando em dúvida se teriam<br />
direito à educação diferenciada indivíduos “já<br />
perfeitamente inseridos no contexto político-social<br />
da comunidade ´civilizada´”.<br />
No estado de Rondônia, o Conselho<br />
Indigenista Missionário (<strong>Cimi</strong>) denuncia que<br />
povos isolados estão tendo o seu direito à<br />
sobrevivência negado pela Funai, que não<br />
Os processos administrativos de reconhecimento<br />
de terras estão parados em<br />
todo o país. Em 2005, não houve a criação<br />
de um único grupo de trabalho para<br />
estudos antropológico e fundiário. A<br />
Funai afirma abertamente que a revisão<br />
de limites de terras indígenas não será<br />
realizada porque não está entre as prioridades<br />
do órgão. A única portaria<br />
declaratória editada pelo Ministério da<br />
Justiça neste ano foi a de Raposa Serra<br />
do Sol. Nenhuma outra terra indígena<br />
teve seus limites declarados nos primeiros<br />
seis meses de 2005.<br />
Coerente com estas atitudes, Mércio<br />
Pereira Gomes afirma, na Câmara dos Deputados,<br />
que a demarcação de terras indígenas<br />
já está praticamente concluída. Para<br />
ele, falta pouco para o governo atingir a<br />
meta de destinar 12,5% de todo o território<br />
nacional a reservas indígenas. A demarcação<br />
de terras já estaria concluída no<br />
Acre, Rondônia, Maranhão e Tocantins.<br />
A “meta” estabelecida pelo presidente<br />
não tem nenhuma base de susten-<br />
reconhece sua existência e, por conseqüência,<br />
não adota as medidas de interdição das<br />
terras, tampouco encaminha os processos de<br />
demarcação. “Terra para que vivam e circulem<br />
é a única garantia para a sobrevivência<br />
dos povos sem contato”, afirma Frei Volmir<br />
Bavaresco, missionário do <strong>Cimi</strong>.<br />
Enquanto as mobilizações e denúncias<br />
acontecem por todo o Brasil, representantes<br />
do poder público que participaram de<br />
uma audiência pública na Câmara dos Deputados,<br />
no dia 22 de junho, citaram, entre<br />
outros temas, a existência de razoável verba<br />
orçamentária para os indígenas.<br />
Demarcações paralisadas<br />
tação. Sobre os estados que já teriam a demarcação<br />
de terras concluídas, em<br />
Rondônia vivem pelo menos oito povos sem<br />
contato que não têm terras demarcadas e<br />
sobre os quais a Funai não tem tomado atitude<br />
alguma.<br />
No Maranhão, um processo de revisão<br />
de limites parado na Funai abre espaço<br />
para a violência que tem estado presente<br />
no dia-a-dia dos Guajajara. Nas últimas<br />
semanas, este povo foi atacado por fazendeiros<br />
locais que causaram a morte de um<br />
indígena e o estupro de uma menina de<br />
16 anos.<br />
No Tocantins, o povo Krahô-Kanela foi<br />
brutalmente expulso de suas terras e obrigado<br />
a viver durante décadas em assentamentos<br />
do Incra. Este povo vive há mais de<br />
dois anos confinado na Casa do Índio, em<br />
Gurupi, lutando para que a Funai dê seguimento<br />
ao processo de reconhecimento de<br />
suas terras. O estudo antropológico foi concluído,<br />
mas não foi publicado pela Funai. A<br />
terra dos Apinajé, em Tocantinópolis, foi<br />
demarcada, mas a parte mais produtiva da<br />
O representante do Ministério da Educação,<br />
Ricardo Henrique, destacou o aumento<br />
dos recursos disponíveis para a área, que<br />
saltaram de R$ 1,2 milhão, em 2002, para<br />
R$ 10,7 milhões em 2005. O orçamento da<br />
saúde em 2004 foi de 186,5 milhões e subiu<br />
para 200 milhões em 2005.<br />
Porém segundo um levantamento feito<br />
pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos<br />
(Inesc), no último ano, houve uma diminuição<br />
dos recursos destinados à regularização<br />
fundiária. De 2004 a 2005 os recursos caíram<br />
de 43 milhões de reais para 36,73 milhões,<br />
corte de 15,6 %.<br />
Apesar das verbas, a atuação do Estado<br />
não se reflete em efetiva melhora da situação<br />
cotidiana dos povos indígenas no Brasil.<br />
Para o <strong>Cimi</strong>, isto se deve à falta de uma política<br />
indigenista coordenada, coerente com<br />
as necessidades dos povos e planejada com<br />
a participação deles.<br />
A Funai tem afirmado que a Conferência<br />
Nacional dos Povos Indígenas, programada<br />
para 2006, será espaço para debates sobre<br />
esta política e mesmo para uma nova versão<br />
do Estatuto dos Povos Indígenas. Durante a<br />
audiência na Câmara, o presidente do órgão<br />
indigenista, Mércio Pereira Gomes, voltou a<br />
citar a Conferência. No entanto, o processo<br />
de construção do encontro tem sido questionado<br />
pelo movimento indígena sobretudo<br />
pela pauta das discussões, baseada em temas<br />
colocados pelo governo, sem debate<br />
com o movimento e sem colocar em questão<br />
a política indigenista como um todo.<br />
terra ficou fora dos limites e ainda é<br />
reivindicada pelos indígenas. No estado<br />
é grande também a incidência dos grandes<br />
projetos nas terras que já estão<br />
demarcadas. No Acre, ao contrário do que<br />
afirma Gomes, sete terras ainda estão em<br />
processo de demarcação.<br />
A atitude do órgão indigenista oficial<br />
em relação aos direitos dos povos indígenas<br />
reforça a importância da criação<br />
do Conselho Nacional de Política<br />
Indigenista, que tem o objetivo de coordenar<br />
e supervisionar, dentro do governo<br />
federal, a elaboração e implementação<br />
de políticas públicas específicas e diferenciadas.<br />
O Conselho foi a principal reivindicação<br />
da Mobilização Nacional Indígena<br />
Terra Livre, no acampamento ocorrido<br />
em abril de 2005. Naquele momento,<br />
Mércio Pereira Gomes e o ministro da<br />
Justiça, Márcio Thomaz Bastos, comprometeram-se<br />
a levar a proposta ao presidente<br />
Lula ainda em maio de 2005. Até o<br />
momento, não houve encaminhamentos<br />
na questão.
Influência das<br />
Línguas Indígenas<br />
Português<br />
A<br />
no Benedito Prezia<br />
Toponimista<br />
As Línguas Gerais<br />
Amazônicas (II)<br />
ntes de falarmos sobre as variantes das Línguas Gerais Amazônicas,<br />
valeria a pena se perguntar quando e por que passou a ser<br />
chamada de nheengatu.<br />
Como vimos no artigo anterior, até 1870 era designada como língua<br />
geral. Alguns anos depois, já aparece a outra designação.<br />
Lendo a obra O Selvagem, do grande divulgador das cultura indígenas<br />
do Brasil, General Couto de Magalhães, deparei-me com um texto,<br />
transformado em introdução ao livro, que é uma memória apresentada à<br />
Comissão Superior da IV Exposição Nacional, a ser realizada naquele<br />
ano de 1878, no Rio de Janeiro, e que foi reproduzida na 2a . edição do<br />
livro.<br />
Ao referir-se às línguas indígenas, afirmava que há um grande equívoco<br />
em chamar uma língua com o nome do povo que a fala. Assim no<br />
Paraguai se pedirmos para falar em guarani “ninguém o entenderá, porque<br />
para eles o nome da língua é ava nhenhen, literal: língua de gente<br />
([1876]1913:36-37).<br />
O mesmo ocorre com o tupi. “Tupi era o nome de uma tribu. (...) Se<br />
dissermos a qualquer índio civilizado do Amazonas: fale em língua tupi<br />
– elle não entende o que lhe queremos dizer; para que elle entenda que<br />
queremos que se expresse na sua própria língua, mister é dizer-lhe:<br />
Renhenhen nhehengatu rupi, isto é, fale pela língua boa (Id., p. 37-38).<br />
Couto de Magalhães foi uma referência no final do século 19 e tudo<br />
que escrevia, era aceito. Estava, pois, lançado o novo nome da língua<br />
geral amazônica, que perdura até hoje.<br />
Foi ele também que lançou o vacábulo Pindorama, “região das palmeiras”,<br />
para designar o Brasil (Id., 270-3). Não diz de onde tirou tal expressão,<br />
que deveria ser pindoretama, como corretamente foi designado um<br />
distrito de Cascavel, cidade do Ceará, ou também Uruburetama, cidade do<br />
mesmo estado. Mesmo incorreta, Pindorama se tornou usual, sendo tema<br />
literário e nome de dois municípios brasileiros, perdurando até hoje.<br />
Assim o nheengatu passou a designar a Língua Geral Amazônica do<br />
Alto Rio Negro e Içana, tornando-se língua de comunicação entre várias<br />
etnias não só dessa região brasileira, como também em algumas regiões<br />
fronteiriças da Colômbia e Venezuela, onde é chamada lengua yeral<br />
(C.C.E.L.A . Mapa lenguas indígenas de la Amazônia colombiana; RUETTE.<br />
Mapa Lenguas indígenas de la Amazonia venezoelana, In: QUEIXALOS &<br />
RENAULT-LESCURE, 2000).<br />
No início doa anos 80, Aryon Rodrigues calculou em cerca de 3 mil<br />
os falantes dessa língua (1986: 39). Pela nossa estimativa, devem hoje<br />
ser pelo menos três vezes mais, como se pode ver pelo depoimento de<br />
Andréa, agente de saúde em São Gabriel da Cachoeira: “Minha profissão<br />
na rede municipal de Saúde exige essa língua como meio indispensável<br />
de comunicação com os Agentes Indígenas de Saúde e com a população<br />
em geral”.<br />
Não seria exagero afirmar que todos os falantes, incluindo os do<br />
lado venezuelano e colombiano, deverão passar de 20 mil.<br />
Durante muito tempo o nheengatu, para alguns povos dessa região,<br />
era visto como “língua de branco”, tal sua difusão entre a população<br />
local. Algumas etnias que perderam a língua nativa passaram a adotá-la<br />
como própria, tal foi o caso do povo Baré.<br />
Um sinal de seu ressurgimento na região do Alto Rio Negro foi a<br />
publicação do livro Noções de Língua Geral ou Nheengatu, elaborado pelo<br />
padre Afonso Casanovas (Diocese de S. Gabriel/Prefeitura Municipal,<br />
2000), contendo noções da língua, lendas e um pequeno vocabulário<br />
nheengatu-português, português-nheengatu.<br />
Na região de Santarém há também um grande interesse entre os<br />
povos emergentes ou resistentes em aprendê-la como forma de afirmação<br />
étnica.<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
MAGALHÃES, Couto de. O selvagem. São Paulo: Ed. Magalhães, s/d [1913].<br />
QUEIXALÓS & RENAULT-LESCURE (org.). As línguas amazônicas hoje. São<br />
Paulo: ISA/IRD/Museu P. E. Goeldi, 2000.<br />
RODRIGUES, Aryon . Línguas Brasileiras. São Paulo: Loyola, 1986.<br />
Queremos agradecer o missionário Fernando López, pela doação do livro Noções<br />
de Língua Geral ou Nheengatu, do Pe. Afonso Casanovas.<br />
Cultura<br />
Tikuna de Manaus lançam CD<br />
J. Rosha<br />
R<br />
epassar para as gerações futuras os valores<br />
e tradições culturais e manter os<br />
vínculos com suas aldeias de origem<br />
motivaram os Tikuna que moram no<br />
bairro Cidade de Deus, na periferia de Manaus<br />
(AM), a buscar parceira para produzir e gravar um<br />
CD com suas músicas tradicionais. No dia 5 de<br />
março, no Palácio Rio Negro, eles fizeram o lançamento<br />
do CD com 12 canções, fruto de um trabalho<br />
desenvolvido ao longo de quatro anos.<br />
Com apoio do Banco da Amazônia - Basa,<br />
“Cantigas Ticuna “Wochimaucü” – na língua desse<br />
povo a palavra significa coletividade, conjunto<br />
– é o primeiro disco gravado pelos indígenas e,<br />
conforme explica Aldenor Félix, novas músicas<br />
estão sendo produzidas com vistas a outro CD.<br />
O grupo musical é formado por 12 pessoas.<br />
Todos de oito famílias Tikuna que moram há vários<br />
anos numa parte da rua São Salvador, no bairro<br />
Cidade de Deus, onde ano passado foi construído<br />
um centro cultural com apoio do governo da Irlanda<br />
para que eles pudessem produzir artesanato e<br />
outras atividades próprias de sua cultura.<br />
O povo Tikuna é o mais numeroso do Brasil,<br />
com uma população superior a trinta mil pessoas<br />
e vive em várias terras espalhadas pela região do<br />
Alto Solimões, no oeste do Amazonas, entre os<br />
municípios de Tabatinga, Benjamin Constant, Fonte<br />
Boa, Uarini, Alvarães, Santo Antônio do Içá e<br />
Amaturá.<br />
Para adquirir o CD os interessados podem escrever para Domingos Tikuna, rua São Salvador, nº<br />
1216 – Cidade de Deus – Cep 69099-243 – Manaus – AM, ou ligar para (92) 681-0784 ou 9164-1731.<br />
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15 Junho - 2005
Junho - 2005<br />
16<br />
A resistência<br />
indígena no Leste<br />
P<br />
oucos conhecem os Guaitaká, que<br />
ocuparam o litoral Leste do Brasil, onde<br />
hoje é a região dos lagos, no estado do<br />
Rio de Janeiro. Deste povo, restou apenas<br />
o nome da cidade Campos dos Goitacazes,<br />
hoje conhecida como Campos.<br />
Benedito Prezia<br />
Eles se distinguiam dos Tupinikim por terem longa<br />
cabeleira e por serem caçadores de tubarões. Conta-se<br />
que um de seus desafios era matar tubarão colocando um<br />
pedaço de pau na terrível boca do peixe, no momento do<br />
ataque. Depois de imobilizado, o tubarão era morto a<br />
pauladas. Os dentes, parte mais apreciada do peixe, viravam<br />
mortíferas pontas de flechas.<br />
Foi a terra deles que um português, Pero de Góis, recebeu<br />
como capitania.<br />
Com muito entusiasmo, ele chegou em 1535 na foz do rio Paraíba<br />
do Sul, levantando vila e engenhos de açúcar. Seu sonho durou pouco<br />
pois, surpreendidos com a invasão de suas terras, os Guaitaká<br />
desencadearam uma longa guerra, que durou cinco anos.<br />
Os portugueses só não foram massacrados porque conseguiram fugir<br />
para a capitania vizinha, do Espírito Santo, com um navio enviado pelo<br />
“dono” daquela capitania, Vasco Fernandes Coutinho.<br />
Este senhor teve a mesma má sorte. Com seus sócios, Jorge de Menezes<br />
e Simão Castelo Branco – nobres que fizeram fortuna nas Índias –,<br />
conseguiu do rei de Portugal a capitania vizinha.<br />
O início parecia também promissor: instalou quatro engenhos e<br />
construiu um arraial, chamado Vila Velha. As construções foram<br />
marcadas por arbitrariedades e violência. Centenas de Tupinikim<br />
foram escravizados.<br />
Querendo buscar ouro no sertão, Vasco Fernandes<br />
foi a Portugal pedir ao rei uma carta de autorização.<br />
Aproveitando-se da ausência dele, os Tupinikim<br />
fizeram um grande levante. Em dois anos de luta<br />
destruíram os engenhos e mataram muitos<br />
portugueses, entre eles Jorge de Menezes.<br />
O mesmo teria ocorrido a Castelo<br />
Branco, se não se refugiasse, com seus<br />
homens, na capitania de Porto<br />
Seguro.<br />
Retornando de Portugal, Vasco<br />
Fernandes nunca mais conseguiu<br />
se reerguer, terminando seus<br />
dias na miséria. E, como diz Frei