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REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA volume 17 janeiro / junho - 2008<br />

ISSN: 1517-7599<br />

REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA<br />

volume 17<br />

janeiro / junho - 2008<br />

Pós-Graduação - <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong>


A missão <strong>de</strong> PER MUSI - Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

é publicar artigos científicos em português, inglês e<br />

espanhol bem estruturados e fun<strong>da</strong>mentados, que<br />

constituam contribuições relevantes para as diversas subáreas<br />

<strong>da</strong> música, incluindo as interfaces entre si e com<br />

outras áreas do conhecimento. Eventualmente, PER MUSI<br />

publica partituras, resenhas e entrevistas relaciona<strong>da</strong>s à<br />

pesquisa em música.<br />

PER MUSI está in<strong>de</strong>xa<strong>da</strong> no RILM (Répertoire International<br />

<strong>de</strong> Littérature Musicale), The Music In<strong>de</strong>x e Bibliografia<br />

Musical Brasileira (Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> <strong>Música</strong>). O título<br />

abreviado PER MUSI <strong>de</strong>ve ser utilizado em citações.<br />

PER MUSI é uma publicação semestral do Programa <strong>de</strong><br />

Pós-Graduação <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong> (Conceito<br />

4 na CAPES). A submissão <strong>de</strong> artigos é contínua, ao longo<br />

<strong>de</strong> todo o ano. Downloads gratuitos po<strong>de</strong>m ser feitos no<br />

site <strong>de</strong> PER MUSI ONLINE (www.musica.ufmg.br/permusi)<br />

e a versão impressa <strong>da</strong> revista po<strong>de</strong> ser adquiri<strong>da</strong> no<br />

en<strong>de</strong>reço abaixo.<br />

Os artigos submetidos para publicação em PER MUSI são<br />

avaliados no sistema <strong>de</strong> duplo cego por dois pareceristas<br />

<strong>de</strong> região/instituição diferente(s) <strong>da</strong>quela(s) do(s)<br />

autor(es). É consi<strong>de</strong>rado aprovado o artigo aprovado<br />

por dois pareceristas. No caso <strong>de</strong> conflito entre os<br />

avaliadores, o Editor po<strong>de</strong>rá intervir e enviar o artigo a<br />

um terceiro parecerista. O(s) autor(es) do artigo aceito<br />

para publicação automaticamente transfere(m) todos os<br />

direitos <strong>de</strong> publicação para PER MUSI. O primeiro autor<br />

é responsável pelo conteúdo do artigo, pela informação<br />

<strong>de</strong> que o artigo é original e inédito e por assegurar que<br />

os <strong>de</strong>mais autores do mesmo tenham conhecimento do<br />

conteúdo do artigo aprovado e <strong>de</strong> sua cessão <strong>de</strong> direitos<br />

<strong>de</strong> publicação. PER MUSI se reserva o direito <strong>de</strong> efetuar<br />

alterações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m normativa, ortográfica e gramatical<br />

nos originais com vistas à melhor compreensão do artigo<br />

pelos leitores.<br />

Normas <strong>de</strong> publicação <strong>de</strong> PER MUSI:<br />

1 - Os trabalhos <strong>de</strong>vem ser submetidos para publicação<br />

via e-mail ou em CR ROM e <strong>de</strong>verão estar em MS Word<br />

for Windows (arquivo tipo .doc ou .rtf), fonte Arial<br />

corpo 12, espaço simples em todo o artigo, sem recuo<br />

<strong>de</strong> parágrafo, com espaço entre parágrafos, justificado<br />

à esquer<strong>da</strong>, contendo <strong>de</strong> 8 a 25 páginas (exceções serão<br />

avalia<strong>da</strong>s caso a caso), incluídos aí o título/resumo/<br />

palavras-chave (em português e inglês), o nome do<br />

autor seguido <strong>de</strong> sua instituição entre parênteses e<br />

seu e-mail, o texto com exemplos musicais/figuras/<br />

tabelas, notas <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>pé, referências bibliográficas e<br />

currículo do autor (10 a 15 linhas). As citações literais<br />

com mais <strong>de</strong> três linhas <strong>de</strong>verão vir em um parágrafo<br />

formatado em fonte Arial corpo 10 com recuo <strong>de</strong> 3<br />

cm à esquer<strong>da</strong>. Citações com até três linhas <strong>de</strong>vem ser<br />

inseri<strong>da</strong>s no corpo do texto entre aspas (Arial 12).<br />

2 - Todos os exemplos musicais, figuras ou tabelas <strong>de</strong>vem<br />

ser abreviados como Ex. Devem ser numerados, ter uma<br />

legen<strong>da</strong> sucinta e eluci<strong>da</strong>tiva <strong>de</strong> no máximo 3 linhas<br />

(Arial 10, espaço simples, inseri<strong>da</strong> acima <strong>da</strong> ilustração)<br />

e ser referenciados no texto. As imagens dos mesmos<br />

<strong>de</strong>vem ser em gra<strong>da</strong>ções <strong>de</strong> preto e enviados também<br />

em arquivos gráficos separados (arquivo tipo .tif ou<br />

. jpg com mínimo <strong>de</strong> 300 dpi). As iniciais dos nomes<br />

<strong>da</strong>s notas musicais <strong>de</strong>verão vir sempre em maiúsculas<br />

(Ex: Dó , Ré , Mi etc.). Compasso ou compassos são<br />

abreviados como c. (Ex: c.15-19). Números <strong>de</strong> páginas<br />

<strong>de</strong>vem ser indica<strong>da</strong>s no texto como p. (Ex: p.122-129).<br />

3 - Para citações no texto, utilizar referências simples com<br />

sobrenome do autor em maiúsculas, por exemplo: “...<br />

como observou GRIFFITHS (1983, p.139)”. Utilizar notas<br />

<strong>de</strong> fim (fonte Arial tamanho 10, espaço simples) apenas<br />

para informações complementares e comentários. As<br />

referências bibliográficas completas (Arial 10) <strong>de</strong>verão<br />

vir somente no final do artigo, sob o título Referências<br />

(Arial 12, negrito), <strong>de</strong> acordo com as Normas <strong>da</strong> ABNT.<br />

Fontes bibliográficas não cita<strong>da</strong>s no texto só po<strong>de</strong>rão<br />

ser incluí<strong>da</strong>s à parte sob o título Leitura recomen<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

(Arial 12, negrito). Não utilizar ibid. no texto. Não<br />

utilizar espaços <strong>de</strong>snecessários após abreviaturas.<br />

4 - O título do artigo (Arial 14, negrito), nome do autor<br />

(Arial 12, itálico), o resumo do trabalho com cerca <strong>de</strong> 6<br />

a 12 linhas (Arial 10) e até cinco palavras-chave (Arial<br />

10) <strong>de</strong>vem ser apresentados no início, em português.<br />

Logo em segui<strong>da</strong>, em inglês, <strong>de</strong>vem vir o título do artigo<br />

(Arial 12, negrito), o abstract (Arial 10) e respectivas<br />

keywords (Arial 10). Caso o artigo se subdivi<strong>da</strong> em<br />

seções, os títulos <strong>da</strong>s mesmas <strong>de</strong>verão ser em negrito,<br />

fonte arial 12. Ao final do artigo, incluir um currículo<br />

sucinto do autor (10 a 15 linhas, Arial 12). Evitar<br />

sublinhados e negritos no texto.<br />

5 - Após rigorosa revisão gramatical, ortográfica e <strong>de</strong><br />

formatação (recomen<strong>da</strong>-se enfaticamente a leitura <strong>de</strong><br />

artigos publicados anteriormente em PER MUSI ONLINE<br />

como mo<strong>de</strong>los), os trabalhos <strong>de</strong>verão ser remetidos à<br />

revista PER MUSI via e-mail ou em CD-ROM para o<br />

en<strong>de</strong>reço abaixo, acompanhados <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>claração via<br />

e-mail em nome <strong>de</strong> todos os autores, contendo o título do<br />

trabalho e o(s) nome(s), en<strong>de</strong>reço(s) e e-mail(s) <strong>de</strong> todos<br />

os autores, autorizando o processo editorial e conce<strong>de</strong>ndo<br />

os direitos autorais dos trabalhos à revista PER MUSI.<br />

Para informações adicionais, favor consultar o site <strong>de</strong><br />

PER MUSI ONLINE www.musica.ufmg.br/permusi ou<br />

escreva para fborem@ufmg.br ou mestrado@ufmg.br<br />

PER MUSI - Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

<strong>UFMG</strong> - <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

Av. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha<br />

CEP 31-270-090 - Belo Horizonte, MG - BH<br />

The mission of PER MUSI - Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

is to publish scholarly articles in Portuguese, Spanish and<br />

English which make relevant contributions to the several<br />

sub-areas of music, including interfaces among them<br />

and with other scientific areas. Eventually, PER MUS<br />

publishes music scores, reviews and interviews related to<br />

music research.<br />

PER MUSI is in<strong>de</strong>xed by RILM (Répertoire International<br />

<strong>de</strong> Littérature Musicale) , The Music In<strong>de</strong>x e Bibliografia<br />

Musical Brasileira (Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> <strong>Música</strong>). The<br />

abbreviated title PER MUSI should be used in citations. PER<br />

MUSI is published twice a year by the Graduate Program of<br />

the Music School of the Fe<strong>de</strong>ral University of Minas Gerais<br />

(<strong>UFMG</strong>), Brazil. The submission of papers is continuous<br />

throughout the year. Previous printed issues can be acquired<br />

at the address below. Free downloads are available at<br />

PER MUSI ONLINE (www.musica.ufmg.br/permusi).<br />

Articles submitted to PER MUSI are double -blind<br />

peer-reviewed by two consultants from different area/<br />

institution than that of the author(s) and will be approved<br />

if it is approved by two consultants. In cases of reviewers’<br />

conflicts, the Editor may interfere in the review process and<br />

ask a third review. The author(s) of the articles accepted for<br />

publication automatically transfer(s) their copyrights to<br />

PER MUSI. The first author is responsible for the content<br />

of the article, for the information that the article is original<br />

and unpublished and that the other authors of the same<br />

article are informed about the content of the article and<br />

the transfer of copyright. PER MUSI holds the right to<br />

make format and grammatical changes in the article to<br />

ensure the rea<strong>de</strong>r’s best comprehension.<br />

PER MUSI ’s Editorial Gui<strong>de</strong>lines<br />

1 - The papers should be in MS Word for Windows or<br />

compatible (.doc or .rtf files), Arial font, size 12, single<br />

spaced, with 8 to 25 pages (exceptions will be evaluated<br />

by the Editorial Board) including title, author’s<br />

name (followed by the name of his/hers institution in<br />

parenthesis) and e-mail, abstract, keywords, musical<br />

examples/figures/tables, footnotes, bibliographic references<br />

and the author´s short vitae (10 to 15 lines). The<br />

paragraphs of the body of the text should be aligned to<br />

the left, with no in<strong>de</strong>ntation and separated by a single<br />

space. Literal quotations with more than 3 lines should<br />

constitute separate paragraphs (Arial10) and have a<br />

2-inch in<strong>de</strong>ntation on the left.<br />

2 - All musical examples, figures and tables must be in<br />

black and white, numbered and should be abbreviated<br />

as Ex. They should be presented (1) in the text and (2)<br />

in separate files ( .tif or .jpg, 300 dpi ), accompanied<br />

by a clear and concise heading with three lines at most<br />

(Arial 10), inserted above the figure. Within the text,<br />

measures and pages should be abbreviated as m. and p.<br />

(e.g., m.24-29 and p.213-218).<br />

3 - References to quotations should be placed in the text<br />

in abbreviated form with the author´s last name in<br />

upper case, for example, “... according to GRIFFITHS<br />

(1983, p.139)...” Or “...as aforementioned (GRIFFITHS,<br />

1983, p.139)...”. Endnotes (Arial 10) should be used only<br />

for additional information or comments. The complete<br />

bibliographical references (Arial 10) should be placed<br />

at the end of the text (e.g., GRIFFITHS, Paul. The String<br />

Quartet. New York: Thames & Hudson, 1983) un<strong>de</strong>r<br />

the heading References (Arial 12, bold). Sources not<br />

used directly in the text may be mentioned un<strong>de</strong>r the<br />

heading Suggested reading (Arial 12, bold). Avoid ibid.<br />

and unnecessary spaces within the text.<br />

4 - The title (Arial 14, bold), author’s name (Arial 12, italics),<br />

the abstract (from 6 to 12 lines, Arial 10) and keywords<br />

(up to five) should be presented at the beginning of the<br />

article. If the article is subdivi<strong>de</strong>d into sections, their titles<br />

should be in Arial, size 12, bold. A short vitae (10 to<br />

15 lines, Arial 10) should be inclu<strong>de</strong>d at the end of the<br />

paper. Avoid un<strong>de</strong>rlines and bold fonts within the text.<br />

5 - After being proofread and formatted (we strongly<br />

recommend the reading of articles previously published<br />

in PER MUSI ONLINE as mo<strong>de</strong>ls), the originals should<br />

be submitted to PER MUSI via e-mail or in CD ROM<br />

to the address below. It should be accompanied by an<br />

e-mail in the name of all authors, containing the title,<br />

the author(s)’s name(s), address(es), FAX(es), e-mail(s),<br />

agreeing with the editorial process as well as the<br />

concession of its copyright to PER MUSI.<br />

For further information, please access PER MUSI<br />

ONLINE´s site www.musica.ufmg.br/permusi or write to<br />

fborem@ufmg.br or mestrado @musica.ufmg.br<br />

PER MUSI - Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

<strong>UFMG</strong> - <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

Av. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha<br />

CEP 31.270-090 - Belo Horizonte, MG - Brazil


ISSN: 1517-7599<br />

REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA<br />

volume 17<br />

janeiro/junho - 2008


Editorial<br />

Temos o prazer <strong>de</strong> apresentar os números 17 e 18 <strong>de</strong> Per Musi - Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong>, inteiramente <strong>de</strong>dicados<br />

à teoria e prática <strong>da</strong> música antiga, especialmente a música colonial e imperial brasileira e a música barroca européia.<br />

A motivação para estas duas edições temáticas <strong>de</strong> Per Musi <strong>de</strong>corre <strong>da</strong> realização, <strong>de</strong> 19 a 25 novembro <strong>de</strong> 2007 em<br />

Belo Horizonte, <strong>da</strong> I Semana <strong>de</strong> <strong>Música</strong> Antiga <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>. Um marco na história <strong>da</strong> música antiga brasileira, este evento<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte, que teve à frente <strong>de</strong> sua organização o violinista e teórico Prof. André Cavazotti, congregou brasileiros e<br />

estrangeiros em concertos, encenação <strong>de</strong> ópera, palestras, mesas-redon<strong>da</strong>s, comunicações, cursos, lançamento <strong>de</strong> livros<br />

e CDs, exposição <strong>de</strong> manuscritos raros e visitas contextualiza<strong>da</strong>s a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s históricas <strong>de</strong> Minas Gerais.Per Musi 17 e 18<br />

publicam alguns dos melhores trabalhos ali apresentados. Dois artigos <strong>da</strong> pesquisadora norte-americana Suzanne Cusick<br />

sobre contexto e gênero no Barroco serão traduzidos e publicados nos números 19 e 20 <strong>de</strong> Per Musi.<br />

Per Musi 17 privilegia a música antiga do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> musicologia <strong>da</strong> performance e <strong>da</strong> teoria acerca <strong>da</strong> retórica<br />

e <strong>da</strong>s práticas musicais do barroco.<br />

Evguenia Roubina, em primorosa tradução <strong>de</strong> Paulo Castagna e a partir <strong>de</strong> recentes pesquisas, nos atualiza sobre a<br />

música orquestral do período colonial mexicano, especialmente sobre a influência <strong>da</strong> realização <strong>de</strong> sinfonias, aberturas,<br />

marchas e concertos espanhóis e italianos e sua repercussão sobre o novo repertório dos principais compositores ali<br />

atuantes: Sumaya, Nicolini, Lamain, Jerusalém, Delgado e Villoni.<br />

Alexandra van Leeuwen e Edmundo Hora trazem novas informações sobre a música dramática produzi<strong>da</strong> no final no<br />

século XVIII e início do século XIX, abor<strong>da</strong>ndo especialmente sua localização e a trajetória <strong>da</strong> cantora Joaquina Lapinha,<br />

o que permite compreen<strong>de</strong>r aspectos musicais e sociais como a presença <strong>de</strong> mulheres, mulatos e negros na cena musical<br />

e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> ópera com influência italiana.<br />

Ligiana Costa revela a instigante presença <strong>da</strong>s velhas mulheres e amas <strong>de</strong> leite do teatro falado e sua entra<strong>da</strong> nos libretos<br />

<strong>da</strong>s óperas venezianas do século XVII, sua interpretação por homens e suas práticas <strong>de</strong> performance.<br />

Lucia Becker Carpena abor<strong>da</strong> a introdução <strong>da</strong> ópera na Alemanha a partir dos mo<strong>de</strong>los florentino, veneziano e francês<br />

e, especialmente, o papel do Teatro do Mercado dos Gansos na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XVII em Hamburgo.<br />

Stella Almei<strong>da</strong> Rosa compara três <strong>da</strong>s mais remotas fontes italianas sobre baixo contínuo – Via<strong>da</strong>na, Agazzari e Bianciardi<br />

– analisando semelhanças e diferenças <strong>de</strong> idéias e procedimentos <strong>de</strong> realização <strong>de</strong>ssa técnica (o discurso horizontal,<br />

a condução <strong>de</strong> vozes, a instrumentação) que permeou todo o período barroco.<br />

Maya Suemi Lemos se <strong>de</strong>bruça sobre a viabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s e possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s do emprego <strong>da</strong>s teorias <strong>da</strong> retórica <strong>da</strong><br />

palavra na abor<strong>da</strong>gem dos objetos musicais, presente em tratados sistematizados nos séculos XVI e XVII e a abor<strong>da</strong>gem<br />

musical <strong>de</strong> Caccini, Monteverdi, Kircher, Burmeister, Mattheson e Quantz, <strong>de</strong>ntre outros.<br />

Marina Massimi estu<strong>da</strong> a conexão <strong>da</strong> arte retórica com a arte <strong>de</strong> educar a partir <strong>de</strong> dois manuais do século XVI (Luís <strong>de</strong><br />

Grana<strong>da</strong> e Cipriano Soares) e, em particular, trata <strong>da</strong> prática missionária dos jesuítas no Brasil e do caráter oral <strong>da</strong> cultura<br />

e do po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> palavra nas tradições culturais indígenas.<br />

Confrontando os conceitos seiscentistas poético e musical <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za e stravaganza, Thiago César Viana Lopes Saltarelli<br />

prescreve uma realização mais bem fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> <strong>da</strong> música barroca, <strong>de</strong>sperta<strong>da</strong> na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960 por músicos<br />

como Nikolaus Harnoncourt, Gustav Leonhardt, Sigiswald Kuijken e Frans Brüggen.<br />

Júlio Versolato e Dorotea Machado Kerr analisam a literatura sobre análise e teoria musical disponíveis na língua portuguesa<br />

no Brasil, abor<strong>da</strong>ndo autores como Dunsby, Whittall, Bent e Buelow.<br />

Finalmente, lembramos que todos os conteúdos e <strong>capa</strong>s <strong>de</strong> Per Musi estão disponíveis para download ou impressão gratuitamente<br />

no site <strong>de</strong> Per Musi Online, no en<strong>de</strong>reço www.musica.ufmg.br/permusi. As versões impressas <strong>de</strong> quase todos<br />

os números <strong>da</strong> revista ain<strong>da</strong> po<strong>de</strong>m ser adquiri<strong>da</strong>s através do e-mail mestrado@musica.ufmg.br.<br />

Fausto Borém<br />

Editor <strong>de</strong> Per Musi<br />

Silvana Scarinci<br />

Co-Editora <strong>de</strong> Per Musi n.17 e 18<br />

Coord. Científica <strong>da</strong> I Semana <strong>de</strong> <strong>Música</strong> Antiga <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>


PER MUSI - Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> é um espaço <strong>de</strong>mocrático para a reflexão intelectual na área <strong>de</strong> música, on<strong>de</strong> a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> e o <strong>de</strong>bate são<br />

bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião <strong>da</strong> Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo. PER MUSI está in<strong>de</strong>xa<strong>da</strong> nas bases RILM<br />

Abstracts of Music, Literature The Music In<strong>de</strong>x e Bibliografia <strong>da</strong> <strong>Música</strong> Brasileira <strong>da</strong> ABM (Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> <strong>Música</strong>).<br />

Fun<strong>da</strong>dor e Editor Científico<br />

Fausto Borém (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Corpo Editorial Internacional<br />

Aaron Wilkinson (Royal College of Music, Londres, Inglaterra)<br />

Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA)<br />

Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra)<br />

Denise Pelusch (University of Colorado, Boul<strong>de</strong>r, EUA)<br />

Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Porto, Portugal)<br />

Jean-Jacques Nattiez (Université <strong>de</strong> Montreal, Montreal, Canadá)<br />

João Par<strong>da</strong>l Barreiros (Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, Lisboa, Portugal)<br />

Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA)<br />

Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA)<br />

Lucy Green (University of London, Institute of Education, London, Inglaterra)<br />

Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica)<br />

Melanie Plesch (Univ. Católica, Univ. <strong>de</strong> Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina)<br />

Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra)<br />

Silvina Mansilla (Universi<strong>da</strong>d Católica, Buenos Aires, Argentina)<br />

Xosé Crisanto Gán<strong>da</strong>ra (Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Coruña, Corunha, Espanha)<br />

Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA)<br />

Corpo Editorial no Brasil<br />

André Cavazotti (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Cecília Cavalieri (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Cristina Capparelli Gerling (UFGRS, Porto Alegre)<br />

Diana Santiago (UFBA, Salvador)<br />

Fernando Iazetta (USP, São Paulo)<br />

José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa)<br />

Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio <strong>de</strong> Janeiro)<br />

Márcia Tabor<strong>da</strong> (UFSJR, São João <strong>de</strong>l Rey)<br />

Maurício Alves Loureiro (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Maurílio Nunes Vieira (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Norton Du<strong>de</strong>que (UFPR, Curitiba)<br />

Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas)<br />

Rosane Cardoso <strong>de</strong> Araújo (UFPR, Curitiba)<br />

Salomea Gan<strong>de</strong>lman (UNIRIO, Rio <strong>de</strong> Janeiro)<br />

Sônia Ray (UFG, Goiânia)<br />

Van<strong>da</strong> Freire (UFRJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro)<br />

Conselho Científico<br />

Acácio Ta<strong>de</strong>u <strong>de</strong> Camargo Pie<strong>da</strong><strong>de</strong> (UDESC, Florianópolis)<br />

Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas)<br />

André Cardoso (UFRJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro)<br />

Ângelo Dias (UFG, Goiânia)<br />

Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte)<br />

Beatriz Salles (UNB, Brasília)<br />

Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas)<br />

Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas)<br />

Fabiano Araújo (FAMES, Vitória)<br />

Flávio Apro (UNESP, São Paulo)<br />

Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte)<br />

José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas)<br />

Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba)<br />

Lincoln Andra<strong>de</strong> (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Luciana Del Ben (UFRGS, Porto Alegre)<br />

Manoel Câmara Rasslan (UFMTS, Campo Gran<strong>de</strong>)<br />

Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador)<br />

Patrícia Furst Santiago (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Sandra Loureiro <strong>de</strong> Freitas Reis (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Vladimir Silva (UFPI, Teresina)<br />

O Corpo <strong>de</strong> Pareceristas <strong>de</strong> Per Musi e seus pareceres são sigilosos<br />

Revisão Geral<br />

Fausto Borém (<strong>UFMG</strong>)<br />

Maria Inêz Lucas Machado (<strong>UFMG</strong>)<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais<br />

Reitor Prof. Dr Ronaldo Tadêu Pena<br />

Vice-Reitora Profa. Dra. Heloisa Maria Murgel Starling<br />

Pró-Reitoria <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />

Prof. Dr Jaime Arturo Ramirez<br />

Pró-Reitoria <strong>de</strong> Pesquisa<br />

Prof. Dr Carlos Alberto Pereira Tavares<br />

<strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong><br />

Prof. Dr. Lucas José Bretas dos Santos, Diretor<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong><br />

Prof. Dr. Maurício Loureiro, Coor<strong>de</strong>nador<br />

Prof. Dr. Fausto Borém, Sub-Coor<strong>de</strong>nador<br />

Planejamento e Produção<br />

Iara Veloso - CEDECOM/<strong>UFMG</strong><br />

Luana Castro (estagiária) - CEDECOM/<strong>UFMG</strong><br />

Projeto Gráfico<br />

Capa e miolo: Sérgio Lemos - CEDECOM/<strong>UFMG</strong><br />

Diagramação: Romero H. Morais - CEDECOM/<strong>UFMG</strong><br />

Tiragem<br />

250 exemplares<br />

PER MUSI: Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> - n.17, janeiro / junho, 2008 -<br />

Belo Horizonte: <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>, 2008 –<br />

n.: il.; 29,7x21,5 cm.<br />

Semestral<br />

ISSN: 1517-7599<br />

ABM<br />

1. <strong>Música</strong> – Periódicos. 2. <strong>Música</strong> Brasileira – Periódicos.<br />

I. <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>


Sumário<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

“Sonoros concertos ao estilo italiano”: música orquestral novohispana no<br />

<strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> sua história ...................................................................................................................7<br />

“Sonorous concerts in Italian style”: the new Hispanic orchestral music in the beginnings of its history<br />

Evguenia Roubina<br />

Tradução <strong>de</strong> Paulo Castagna<br />

Um olhar sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicais nos teatros do Rio <strong>de</strong> Janeiro em fins do<br />

século XVIII e início do XIX: a atuação <strong>da</strong> cantora Joaquina Lapinha ..................................... 18<br />

A look at musical activities in Rio <strong>de</strong> Janeiro theaters in the late eighteenth century and early<br />

nineteenth century: the performance of the singer Joaquina Lapinha<br />

Alexandra van Leeuwen<br />

Edmundo Hora<br />

As velhas amas <strong>da</strong>s óperas venezianas seiscentistas: um elo entre o teatro falado e cantado ....26<br />

Old wet nurses in Seventeenth Century Italian Opera: a link between the spoken and the musical theatre<br />

Ligiana Costa<br />

Origens <strong>da</strong> ópera barroca alemã e o Teatro do Mercado dos Gansos em<br />

Hamburgo nos séculos XVII e XVIII ................................................................................................32<br />

Origins of the German baroque opera and the Goose Market Theatre in Hamburg in the<br />

seventeenth and eighteenth centuries<br />

Lucia Becker Carpena<br />

Primeiros tratados italianos do século XVII sobre baixo contínuo:<br />

uma análise comparativa .................................................................................................................41<br />

First Italian treatises from the seventeenth century about thorough-bass: a comparative analysis<br />

Stella Almei<strong>da</strong> Rosa<br />

Retórica e elaboração musical no período barroco: condições e problemas<br />

no uso <strong>da</strong>s categorias <strong>da</strong> retórica no discurso crítico .................................................................48<br />

Rhetoric and musical elaboration in the baroque period: conditions and problems of the use<br />

of rhetorical categories in the critical discourse<br />

Maya Suemi Lemos<br />

Delectare, movere et docere: retórica e educação no Barroco ..................................................54<br />

Delectare, movere et docere: rhetoric and education in the Baroque<br />

Marina Massimi<br />

Agu<strong>de</strong>za e Stravaganza: diálogo oblíquo entre a música e as letras seiscentistas ...................60<br />

Agu<strong>de</strong>za and Stravaganza: oblique dialog between music and literature from the seventeenth century<br />

Thiago César Viana Lopes Saltarelli<br />

A teoria e a análise musical sob o influxo <strong>da</strong> retórica no período Barroco ..............................64<br />

Musical analysis and theory un<strong>de</strong>r the rhetorical influx during the Baroque<br />

Júlio Versolato<br />

Dorotea Machado Kerr


ROUBINA, E. “Sonoros concertos ao estilo italiano”... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 7-17<br />

“Sonoros concertos no estilo italiano”:<br />

música orquestral novo-hispana no<br />

<strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> sua história<br />

Evguenia Roubina (Universi<strong>da</strong>d Nacional Autónoma <strong>de</strong> México, Escuela Nacional <strong>de</strong> <strong>Música</strong>, Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

México, México)<br />

difa@prodigy.net.mx<br />

Tradução <strong>de</strong> Paulo Castagna (UNESP, São Paulo)<br />

brsp@uol.com.br<br />

Resumo: A música orquestral <strong>da</strong> Nova Espanha constitui um dos aspectos <strong>da</strong> história <strong>da</strong>s artes no México que até<br />

agora não havia sido suficientemente abor<strong>da</strong>do em publicações especializa<strong>da</strong>s. O presente artigo expõe alguns avanços<br />

<strong>da</strong> investigação em torno <strong>de</strong>sse fenômeno cultural e artístico, realiza<strong>da</strong> por sua autora ao longo <strong>de</strong> quase <strong>de</strong>z anos,<br />

<strong>de</strong>dicando-se a localizar o período inicial do movimento sinfônico no vice-reinado e assinalar seus principais protagonistas.<br />

A relação dos diferentes gêneros para os conjuntos instrumentais <strong>de</strong> âmbito catedralício, teatral e palaciano, bem como<br />

suas funções específicas em ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les, investiga<strong>da</strong>s com o auxílio <strong>de</strong> fontes primárias e fi<strong>de</strong>dignas, em sua maioria,<br />

inéditas, contribuem para eluci<strong>da</strong>r os significados e as funções sociais que no século XVIII a música orquestral teve na<br />

Nova Espanha e em outros países do mundo ibero-americano.<br />

Palavras-chave: Nova Espanha, música orquestral, R. Lamain, I. Jerusalem<br />

“Sonorous concerts in Italian style”: the new Hispanic orchestral music in the beginnings<br />

of its history<br />

Abstract: The Orchestral Music of the Viceroyalty of New Spain constitutes one of the aspects of Mexico’s Art History that<br />

until now has not been brought to light by specialized publications. This paper presents some of the research advances<br />

around this cultural and artistic phenomena obtained by the author during almost a <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>. This work places the<br />

inaugural period of the Symphonic Movement in the Viceroyalty and points to its principal protagonists. The relationship<br />

between different gen<strong>de</strong>rs for instrumental ensembles with the cathedral, theatrical and palatial environments and the<br />

specific functions in each of them are established with the help of authentic primary sources, mostly not published,<br />

contributes to the un<strong>de</strong>rstanding of the meanings and social roles that the Orchestral Music in the 18th Century had in<br />

New Spain, Spain and in other Latin American Countries.<br />

Keywords: New Spain, orchestral Music, R. Lamain, I. Jerusalem<br />

A atenção que os diferentes ramos do saber humanístico<br />

<strong>de</strong>ram nas últimas déca<strong>da</strong>s à arte <strong>da</strong> Nova Espanha tem<br />

repercutido favoravelmente no campo <strong>da</strong> musicologia<br />

histórica. Estudiosos mexicanos e estrangeiros<br />

respon<strong>de</strong>ram a esse renovado interesse com um<br />

consi<strong>de</strong>rável número <strong>de</strong> publicações que esclarecem<br />

diversos aspectos <strong>da</strong> música virreinal 1 e seus principais<br />

protagonistas. Mas apesar do auge singular que a<br />

investigação musicológica atualmente vivencia no<br />

México, não são poucos os temas nos quais as brechas<br />

no conhecimento ain<strong>da</strong> superam em extensão os<br />

terrenos explorados, enquanto as incógnitas irresolutas<br />

ultrapassam as questões pontualmente esclareci<strong>da</strong>s.<br />

A situação <strong>de</strong>scrita é a que caracteriza o atual estado<br />

<strong>de</strong> estudo <strong>da</strong> música orquestral do vice-reinado, à qual<br />

até o presente não se <strong>de</strong>dicou publicação alguma que<br />

propusesse avaliar seu significado como fenômeno<br />

artístico e cultural, <strong>de</strong>finir seu papel social, evi<strong>de</strong>nciar<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.17, 68 p., jan. - jun., 2008<br />

suas origens, estabelecer sua diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> genérica e<br />

<strong>de</strong>screver o processo <strong>de</strong> sua evolução, nem observar as<br />

particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua estética ou analisar as diferenças<br />

nas práticas <strong>de</strong> execução próprias <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um dos<br />

períodos <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento. Tudo isso, apesar <strong>de</strong><br />

a primeira – ou, melhor dizendo - a mais sonora <strong>da</strong>s<br />

notícias que anunciou a existência do repertório novohispano<br />

2 <strong>de</strong>stinado ao conjunto instrumental ter sido<br />

publica<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> na primeira meta<strong>de</strong> do século XX.<br />

Corria o ano <strong>de</strong> 1939, quando o organista e compositor<br />

Miguel Bernal Jiménez, do estado mexicano <strong>de</strong> Michoacán,<br />

tornou pública sua localização, em um dos arquivos<br />

coloniais, <strong>de</strong> duas aberturas que, “<strong>da</strong><strong>da</strong> sua estrutura e<br />

importância”, i<strong>de</strong>ntificou como “pequenas sinfonias”. 3 O<br />

impacto que esta boa nova produziu foi equiparável à<br />

relevância que teve para o estudo <strong>da</strong> música virreinal: as<br />

duas obras orquestrais não somente foram transcritas e<br />

Recebido em: 13/07/2007 - Aprovado em: 17/02/2008<br />

7


8<br />

ROUBINA, E. “Sonoros concertos ao estilo italiano”... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 7-17<br />

interpreta<strong>da</strong>s em Morélia (Michoacán) e posteriormente<br />

em Madrid, sob a batuta <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>scobridor, mas também<br />

se tornaram objeto <strong>de</strong> interesse para musicólogos e<br />

regentes <strong>de</strong> orquestra, 4 especialmente a obra <strong>de</strong> Sarrier,<br />

então consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> “mais interessante”, “mais original e<br />

mais orquestral”. 5<br />

Por outro lado, após o estabelecimento <strong>da</strong> origem<br />

espanhola dos autores <strong>de</strong> ambas as obras - Antonio<br />

Rodil (?-1787), músico <strong>da</strong> Real Câmara do rei Dom José<br />

I <strong>de</strong> Portugal, e Antonio Sarrier (?-c.1762), integrante <strong>da</strong><br />

Real Capela <strong>de</strong> Madrid - foi evi<strong>de</strong>nte que o entusiasmo<br />

do investigador <strong>de</strong> Michoacán, que acreditou haver<br />

encontrado frutos do sinfonismo “criollo”, 6 era um tanto<br />

exagerado. Entretanto, no tempo transcorrido entre a feliz<br />

<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> Bernal Jiménez e o final do século passado,<br />

sua idéia sobre a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que as “sinfonias” <strong>de</strong><br />

Sarrier e Rodil constituíssem a manifestação mais antiga<br />

<strong>da</strong> música orquestral no continente americano e que<br />

eram composições únicas em sua espécie, permaneceu<br />

virtualmente inaltera<strong>da</strong>. Como tampouco se modificaram<br />

em essência as opiniões sobre a representativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />

aberturas do arquivo <strong>de</strong> Valladolid para a cultura novohispana,<br />

antes mesmo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scartar a relação <strong>de</strong>stas obras<br />

com a produção musical do vice-reinado, guar<strong>da</strong>vam-se<br />

distintos graus <strong>de</strong> reserva a esse respeito. Des<strong>de</strong> uma<br />

postura precavi<strong>da</strong> que assumiu Otto Mayer-serra, para<br />

quem o achado <strong>de</strong> Bernal Jiménez levou à conclusão <strong>de</strong><br />

que “ao amparo <strong>da</strong> Igreja interpretaram-se, no século XVII<br />

[sic], pelo menos na Morélia, alguns exemplares muito<br />

valiosos do sinfonismo italiano”, 7 até o extremo ceticismo<br />

que fez Jesus C. Romero evitar tais “exemplares”,<br />

asseverando que “a música sinfônica não foi cultiva<strong>da</strong> no<br />

México na época novo-hispana”. 8<br />

Tais pronunciamentos soavam tão uníssonos com as<br />

publicações que, mais <strong>de</strong> meio século após a época <strong>de</strong><br />

Bernal Jiménez, as manifestações do sinfonismo novohispano<br />

eram qualifica<strong>da</strong>s como precárias e, assinalando<br />

“a origem <strong>da</strong> música orquestral mexicana” nos versos<br />

“para orquestra ou grupo instrumental”, 9 sugeriam,<br />

inclusive, que este “singular repertório orquestral<br />

bem pu<strong>de</strong>sse substituir o <strong>da</strong>s sinfonias no classicismo<br />

mexicano”, 10 parecendo não haver razões para se pôr em<br />

juízo a certeza <strong>de</strong>ssas conclusões.<br />

As noções sobre a música orquestral novo-hispana<br />

tomaram um rumo distinto e o juízo preconcebido sobre<br />

esta começou a adquirir outras formas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro<br />

<strong>de</strong> 1997, quando o Arquivo Eclesiástico <strong>da</strong> Catedral <strong>de</strong><br />

Durango ofereceu a esta autora o inesperado encontro<br />

com o que restava <strong>de</strong> uma vasta e diversifica<strong>da</strong> coleção<br />

<strong>de</strong> partituras orquestrais. Após um largo e paciente<br />

trabalho nessa catedral, foi possível or<strong>de</strong>nar as folhas<br />

pauta<strong>da</strong>s dispersas em seu arquivo e assim i<strong>de</strong>ntificar<br />

algumas <strong>da</strong>s obras orquestrais que antigamente<br />

faziam parte <strong>de</strong> seu acervo musical, além <strong>de</strong> reagrupar<br />

inteiramente as partes instrumentais <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong>las. O<br />

número consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong>ssas obras - sinfonias, aberturas e<br />

concertos <strong>de</strong> autores italianos, espanhóis e umas tantas<br />

<strong>de</strong> indiscutível origem virreinal - e sua própria presença<br />

em um arquivo catedralício e outrora no repertório <strong>de</strong> sua<br />

capela provocaram uma avalanche <strong>de</strong> perguntas que não<br />

podiam satisfazer-se a não ser por meio <strong>de</strong> um exaustivo<br />

estudo <strong>da</strong> música orquestral pratica<strong>da</strong> na Nova Espanha.<br />

Des<strong>de</strong> então, a partir <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> perguntas sem<br />

respostas, surgiu a presente investigação, que em sua etapa<br />

inicial procurou saber se a coleção <strong>de</strong> música orquestral<br />

sob a custódia <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> Durango não se relacionava<br />

com alguma espécie <strong>de</strong> tradição musical endêmica<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> somente naquela região, aparta<strong>da</strong> dos<br />

principais centros culturais do vice-reinado. As pesquisas<br />

realiza<strong>da</strong>s em diferentes arquivos históricos sobre o<br />

período <strong>da</strong> República permitiram documentar a presença<br />

do repertório orquestral nas capelas catedralícias <strong>da</strong>s<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Zacatecas, Tulancingo e Morélia, na Catedral<br />

Metropolitana do México, na Basílica do Gua<strong>da</strong>lupe e no<br />

Colégio <strong>da</strong>s Vizcaínas, <strong>de</strong>positário do arquivo do Colégio<br />

<strong>de</strong> São Miguel <strong>de</strong> Belém, e não apenas eliminaram <strong>de</strong><br />

imediato essa hipótese, mas também satisfizeram outra<br />

<strong>da</strong>s inquietantes questões: quais foram as funções que<br />

tiveram essas obras naquele período?<br />

Ricardo Miran<strong>da</strong>, já anteriormente mencionado entre os<br />

autores que estu<strong>da</strong>ram a abertura <strong>de</strong> Sarrier, expressouse<br />

no sentido <strong>de</strong> que, se esta obra “foi executa<strong>da</strong> pela<br />

capela do Colégio <strong>da</strong> Santa Rosa, o mais provável é que<br />

isso ocorresse em alguma <strong>da</strong>s funções extraordinárias que<br />

<strong>de</strong> vez em quando tinham lugar”. 11 Tal sugestão não foi<br />

totalmente <strong>de</strong>sacerta<strong>da</strong>, <strong>de</strong>vido ao fato <strong>de</strong> que o Arquivo<br />

do Cabido <strong>da</strong> Catedral Metropolitana do México guar<strong>da</strong><br />

testemunhos <strong>da</strong> execução <strong>de</strong> aberturas nos serviços<br />

festivos ou fúnebres, como, por exemplo, 12 “na gran<strong>de</strong><br />

festa que se celebrou nesta Santa Igreja Metropolitana<br />

[...] em ação <strong>de</strong> graças ao Todo-Po<strong>de</strong>roso, pela restituição<br />

ao Trono <strong>da</strong>s Espanhas do Nosso Católico Monarca o<br />

Senhor Dom Fernando Sétimo”. 13 O mencionado <strong>de</strong>stino, é<br />

óbvio, não foi o único que se atribuía à música orquestral<br />

nas tarefas <strong>da</strong> Igreja virreinal.<br />

Gerard Decormé, cronista jesuítico na Nova Espanha,<br />

comunicou a presença <strong>de</strong> “sonoros concertos <strong>de</strong> violinos”<br />

nos colóquios celebrados em louvor dos santos padroeiros<br />

<strong>da</strong> Companhia; 14 fontes hemerográficas contribuíram<br />

com informação sobre a participação <strong>de</strong> conjuntos<br />

instrumentais para distração do alto clero virreinal, 15 e<br />

um documento do último <strong>de</strong>cênio do século XVIII informa<br />

que a consagração <strong>da</strong> igreja <strong>de</strong> Santo Antonio <strong>da</strong> Pádua<br />

em Córdova (Veracruz) foi celebra<strong>da</strong> com “um esplêndido<br />

e <strong>de</strong>licado banquete [...], no qual o bom gosto e a boa<br />

or<strong>de</strong>m luziram à porfia, <strong>da</strong>ndo-lhe maior realce as gratas<br />

sensações <strong>de</strong> umas aberturas concertantes, executa<strong>da</strong>s<br />

com <strong>de</strong>streza a gran<strong>de</strong> orquestra”. 16<br />

Muito embora não sejam escassas as fontes que registrem<br />

a presença <strong>de</strong> música orquestral em diferentes tipos <strong>de</strong><br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>ntro e fora <strong>da</strong> Igreja novo-hispana, o caráter<br />

eventual <strong>de</strong> tais funções não explica a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>


ROUBINA, E. “Sonoros concertos ao estilo italiano”... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 7-17<br />

Ex.1 - “Inventario <strong>de</strong> los Papeles <strong>de</strong> Musica <strong>de</strong> esta Santa Iglesia cath.l <strong>de</strong> Valladolid hecho el año <strong>de</strong> 1796 siendo Chantre<br />

<strong>de</strong> ella el S.r D.r D.n Ramon Perez”, Arquivo do Cabido <strong>da</strong> Catedral <strong>de</strong> Morélia, leg. 3.4-135, F. 79r (<strong>de</strong>talhe), 1796.<br />

<strong>de</strong> reunir uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> tão consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> obras<br />

orquestrais em diferentes arquivos virreinais: 12 aberturas<br />

e 26 sinfonias na Catedral Metropolitana do México, meia<br />

centena <strong>de</strong>stas no Colégio <strong>da</strong>s Vizcaínas e mais <strong>de</strong> 100<br />

títulos que representam tais gêneros no “Inventário dos<br />

papéis <strong>da</strong> <strong>Música</strong>” elaborado no final do século XVIII na<br />

catedral <strong>de</strong> Valladolid do Estado <strong>de</strong> Michoacán (Ex.1). 17<br />

Cabe assinalar que, na Espanha, on<strong>de</strong> vários acervos<br />

catedralícios integram abun<strong>da</strong>ntes coleções <strong>de</strong> música<br />

orquestral, tampouco se conseguiu esclarecer totalmente a<br />

razão <strong>de</strong> sua presença, ou se chegar a uma uniformi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> opiniões sobre o assunto. Assim, José López-Calo<br />

sugere que as partituras sinfônicas se <strong>de</strong>stinavam às<br />

siestas, tradição que nunca existiu no vice-reinado; Roger<br />

Alier afirma que tal música se interpretava nos concertos<br />

realizados nas catedrais espanholas, mas não nas virreinais;<br />

Joseph Vilar, por sua vez, chega a uma solução salomônica,<br />

afirmando que, se obras <strong>de</strong> diferentes gêneros sinfônicos<br />

foram “produzi<strong>da</strong>s, copia<strong>da</strong>s ou adquiri<strong>da</strong>s” pelas catedrais<br />

peninsulares, é porque eram requisita<strong>da</strong>s para o uso <strong>da</strong><br />

Igreja. 18<br />

Ao cabo <strong>de</strong> alguns anos <strong>de</strong> estudo em torno <strong>da</strong> música<br />

orquestral novo-hispana, pu<strong>de</strong>mos reunir comprovações<br />

documentais provenientes dos arquivos <strong>de</strong> diferentes<br />

catedrais e colégios virreinais que, com certa clareza,<br />

<strong>de</strong>monstraram que no século XVIII as composições escritas<br />

para conjunto instrumental e assinala<strong>da</strong>s como sinfonias,<br />

aberturas, concertos ou marchas eram efetivamente<br />

requisita<strong>da</strong>s para o serviço religioso e tomavam parte<br />

na celebração <strong>da</strong> missa, executando-se no ofertório<br />

(Ex.2). Havendo-se estabelecido isto, surgia e <strong>de</strong>veria ser<br />

respondi<strong>da</strong> a pergunta referente à origem <strong>de</strong>ssa tradição e<br />

Ex.2. “Apunte <strong>de</strong> los papeles <strong>de</strong> Musica”, Arquivo Eclesiástico <strong>da</strong> Catedral <strong>de</strong> Durango, f.2r,<br />

fundo musical, s.n., 13 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1818.<br />

9


10<br />

ROUBINA, E. “Sonoros concertos ao estilo italiano”... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 7-17<br />

o período no qual começou sua recepção no vice-reinado.<br />

A “Razão <strong>da</strong> <strong>Música</strong>”, que pertencia ao arquivo <strong>da</strong><br />

catedral <strong>de</strong> Durango, revelou que, no período anterior a<br />

1771, ano em que se realizou o mencionado inventário,<br />

além dos “sete ca<strong>de</strong>rnos forrados com <strong>capa</strong> encarna<strong>da</strong>,<br />

com a sexta ópera <strong>de</strong> Corelli”, encontravam-se neste<br />

acervo “<strong>de</strong>z concertos <strong>de</strong> violinos” e outros <strong>de</strong>zesseis “<strong>de</strong><br />

violinos e trompas”. 19 Em 1769, ao repertório <strong>da</strong> capela<br />

<strong>de</strong> música <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> Valladolid, integraram-se “66<br />

sinfonias <strong>de</strong> vários autores [...] / 12 sinfonias do Alberti<br />

[...] / 12 concertos <strong>de</strong> Huielmi [...] / 3 ditos <strong>de</strong> Corelli [...] /<br />

5 concertos <strong>de</strong> Tesarin”, entre outras obras “dos primeiros<br />

mestres <strong>da</strong> Europa”, que pôs ao seu dispor o italiano<br />

Dom Carlos Pêra, ao assumir o magistério <strong>de</strong>sse conjunto<br />

catedralício. 20 Na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1770 as aberturas formavam<br />

parte do repertório <strong>da</strong> escoleta 21 do colégio feminino <strong>de</strong><br />

São Miguel <strong>de</strong> Belém na Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do México. 22 Embora os<br />

citados testemunhos documentais e ain<strong>da</strong> outros que<br />

se po<strong>de</strong>riam reunir a esta relação apontavam a segun<strong>da</strong><br />

meta<strong>de</strong> do século XVIII como um período cronológico<br />

no qual as práticas instrumentais houvessem florescido<br />

à proteção do po<strong>de</strong>r eclesiástico, ficava perfeitamente<br />

claro que esse período, no qual a música orquestral<br />

já se consi<strong>de</strong>rava “útil e necessária à Santa Igreja”, 23<br />

não po<strong>de</strong>ria equivaler ao momento histórico no qual a<br />

catedral novo-hispana inaugurava o costume <strong>de</strong> executar<br />

os gêneros sinfônicos no ofertório <strong>da</strong> missa.<br />

Sugerimos então que, no primeiro terço do século XVIII,<br />

o fiel apego à estética <strong>da</strong> mãe pátria que a arte virreinal<br />

guar<strong>da</strong>va fez o gosto musical <strong>da</strong> Nova Espanha transitar<br />

do “estilo rigoroso <strong>da</strong> Espanha” ao “estilo italiano”, 24 o<br />

qual, nos domínios transatlânticos <strong>da</strong> coroa espanhola,<br />

foi representado tanto pela “nova mo<strong>da</strong> <strong>de</strong> cantar”, 25<br />

como pelas obras orquestrais que <strong>de</strong> maneira indistinta se<br />

<strong>de</strong>nominavam “concertos”. Provas disso oferecem algumas<br />

notas jornalísticas que na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1730 informavam,<br />

como <strong>de</strong>liciosa novi<strong>da</strong><strong>de</strong>, as ocasiões nas quais, em templos<br />

e conventos <strong>da</strong> metrópole novo-hispana, se po<strong>de</strong>riam<br />

ouvir composições forja<strong>da</strong>s “à mo<strong>da</strong> italiana” e <strong>de</strong>screviam<br />

o singular efeito que causavam nos assistentes aquela<br />

“música italiana <strong>de</strong> vários instrumentos [...] segundo o estilo<br />

<strong>de</strong> Roma” e os “doces concertos <strong>da</strong> música italiana”. 26<br />

A informação localiza<strong>da</strong> nas Gazetas <strong>de</strong> México<br />

permitiu vincular, a essa primeira etapa <strong>da</strong> história <strong>da</strong><br />

música orquestral no vice-reinado, três compositores<br />

ativos na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do México. Em primeira instância, é<br />

importante assinalar o “insigne Sumaya, 27 primeiro<br />

mestre <strong>de</strong> capela” <strong>da</strong> Catedral Metropolitana do<br />

México, <strong>de</strong> quem se sabe que, a pedido <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

catedralícias, estava acostumado a “dispor” para as<br />

funções religiosas “as novas obras e música italiana”. 28<br />

Em segui<strong>da</strong> po<strong>de</strong>mos recor<strong>da</strong>r o compositor Nicolini,<br />

certamente <strong>de</strong> origem italiana, a cujo sobrenome as<br />

Gazetas <strong>da</strong> Nova Espanha sempre anexavam o epíteto<br />

“célebre”, como se fora seu nome próprio, 29 e <strong>de</strong> quem<br />

hoje não se preservam mostras <strong>de</strong> seu talento, além<br />

<strong>da</strong>s sete peças para violino que integram um ca<strong>de</strong>rno<br />

pautado do século XVIII sob custódia <strong>da</strong> Biblioteca<br />

Nacional do México. 30 Finalmente, como o principal<br />

protagonista <strong>da</strong> difusão <strong>da</strong> música orquestral européia<br />

no vice-reinado e indiscutível precursor do sinfonismo<br />

novo-hispano, <strong>de</strong>vemos citar o músico francês Antonio<br />

Joseph Ricardo <strong>de</strong> Lamain, na época conhecido como La<br />

Main, e que nas déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1720 a 1740 sobressaiuse<br />

como um dos personagens mais conspícuos <strong>da</strong> arte<br />

musical no vice-reinado. Suas obras eram executa<strong>da</strong>s<br />

em diferentes templos na capital e na província, sendo<br />

inclusive, publica<strong>da</strong>s pela incipiente imprensa musical<br />

<strong>da</strong> Nova Espanha em meados do século XVIII. Lamain<br />

é também autor <strong>da</strong> composição orquestral mais antiga<br />

que até agora pu<strong>de</strong>mos localizar no México: o Concerto<br />

para dois violinos e baixo (Ex.3).<br />

Ex.3. Joseph Antonio Ricardo <strong>da</strong> Main, Concierto. A 2 Viol[ine]s y Baxo (frontispício), Arquivo Eclesiástico <strong>da</strong> Catedral <strong>de</strong><br />

Durango, fundo musical, s.n.


Dos esparsos <strong>da</strong>dos que as fontes documentais <strong>da</strong> época<br />

proporcionam sobre a estadia do músico francês na capital<br />

do vice-reinado, é <strong>de</strong> especial importância para o presente<br />

estudo a “Memória <strong>da</strong>s pessoas <strong>de</strong> que se compõe a<br />

companhia para as representações <strong>de</strong> comédia”, elabora<strong>da</strong><br />

em 1727, na qual consta a contratação <strong>de</strong> Lamain como<br />

“mestre <strong>da</strong> música” do Teatro do Coliseu <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

México. 31 Este documento não permite <strong>de</strong>sprezar a idéia<br />

<strong>de</strong> que o movimento orquestral pu<strong>de</strong>sse ter se iniciado<br />

na Nova Espanha simultaneamente em dois âmbitos:<br />

na catedral e no teatro. Ou, em outras palavras, esboça<br />

uma pergunta obrigatória sobre a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que o<br />

Concerto <strong>de</strong> Lamain e, possivelmente, suas outras peças<br />

para conjunto instrumental, que hoje <strong>de</strong>sconhecemos,<br />

po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>stinar-se a ser executa<strong>da</strong>s antes ou durante<br />

algumas <strong>da</strong>s funções teatrais.<br />

A resposta a essa questão provavelmente <strong>de</strong>veria ser<br />

formula<strong>da</strong> em sentido negativo, uma vez que, por menor<br />

que seja o número <strong>de</strong> instrumentos que indica a partitura<br />

do Concerto <strong>de</strong> Lamain, este, ao que parece, supera as<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s do conjunto musical ao serviço <strong>da</strong> principal casa<br />

<strong>de</strong> comédias do vice-reinado. Sabemos comprova<strong>da</strong>mente<br />

que o grupo que aí se ocupava <strong>da</strong> musicalização <strong>da</strong>s funções<br />

teatrais em 1727 constava <strong>de</strong> apenas duas mulheres<br />

“musicistas” - enten<strong>da</strong>-se aqui cantoras - e dois músicos,<br />

um dos quais era o próprio Lamain. 32 O mais seguro é que<br />

a “orquestra” do Coliseu consistisse, na época, apenas <strong>de</strong><br />

um violino e uma guitarra, conjunto instrumental que, <strong>de</strong><br />

ROUBINA, E. “Sonoros concertos ao estilo italiano”... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 7-17<br />

acordo com diferentes fontes novo-hispanas, acompanhava<br />

costumeiramente a apresentação <strong>da</strong>s comédias na primeira<br />

meta<strong>de</strong> do século XVIII (Ex. 4).<br />

É preciso acreditar que não seja a Lamain que pertença<br />

o mérito <strong>de</strong> incluir a música orquestral aos domínios<br />

<strong>da</strong> Talia virreinal, mas sim a Ignazio Domenico Orontio<br />

Giuseppe Pascuale Gerusalemme y Stella, mais conhecido<br />

no Novo Mundo como Dom Ignacio Jerusalem (1707-<br />

1769), outro eminente estrangeiro resi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Nova<br />

Espanha. Ignacio Jerusalem, violoncelista e compositor<br />

originário <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> italiana <strong>de</strong> Lecce, chegou à metrópole<br />

novo-hispana em 1743, à cabeça <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> músicos<br />

contratados na Espanha para a orquestra do Coliseu <strong>da</strong><br />

capital. Em 1749 Jerusalem entrou para o serviço <strong>da</strong><br />

Catedral Metropolitana do México como violoncelista e,<br />

em 1750, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> passar com êxito por um rigoroso<br />

exame, foi <strong>de</strong>signado mestre <strong>de</strong> capela <strong>da</strong> Catedral, cargo<br />

do qual somente o apartou sua morte, ocorri<strong>da</strong> em 1769.<br />

As obras cria<strong>da</strong>s por Jerusalem ao longo <strong>de</strong> quase duas<br />

déca<strong>da</strong>s em sua função catedralícia põem em relevo seu<br />

extraordinário talento como compositor, razão pela qual<br />

eram abun<strong>da</strong>ntemente copia<strong>da</strong>s para serem integra<strong>da</strong>s<br />

às coleções particulares dos músicos virreinais e para<br />

completar o repertório <strong>de</strong> várias capelas <strong>de</strong> música nas<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do México, Puebla <strong>de</strong> los Angeles, Valladolid,<br />

Durango, Guatemala e missões californianas, para<br />

mencionar somente alguns dos arquivos históricos on<strong>de</strong><br />

se preservam as obras <strong>de</strong>sse insigne compositor.<br />

Ex.4. Anônimo, século XVIII, Alegoría <strong>de</strong> la Nueva España, biombo (<strong>de</strong>talhe), óleo sobre tela, Coleção Banco Nacional do México.<br />

11


12<br />

ROUBINA, E. “Sonoros concertos ao estilo italiano”... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 7-17<br />

O estudo <strong>da</strong> música orquestral novo-hispana tornou<br />

possível ampliar o catálogo <strong>da</strong>s obras <strong>de</strong> Ignacio Jerusalem<br />

e, em 1999, tornamos pública a existência <strong>de</strong> várias <strong>de</strong><br />

suas composições anteriormente <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s, entre elas<br />

duas marchas e três aberturas recupera<strong>da</strong>s do <strong>de</strong>sdém e <strong>da</strong><br />

dispersão em que se encontravam suas partes instrumentais<br />

no arquivo <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> Durango. A estas posteriormente<br />

se acrescentou uma abertura, pertencente ao acervo<br />

histórico-musical <strong>da</strong> Basílica do Gua<strong>da</strong>lupe.<br />

Infelizmente, em nenhum dos manuscritos <strong>da</strong>s obras<br />

orquestrais do compositor italiano constavam indicações<br />

que contribuíssem para esclarecer o ano <strong>de</strong> sua<br />

composição, salvo o frontispício <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s aberturas,<br />

no qual, mesclando grosseiramente elementos <strong>da</strong>s<br />

línguas castelhana e italiana, com erros ortográficos em<br />

ambas, anunciava que a obra em questão era do “mestre<br />

<strong>de</strong> capela <strong>da</strong> Igreja Catedral <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do México” (Ex.5).<br />

Tais informações permitiram atribuir a composição <strong>da</strong><br />

abertura a um período posterior a 1750 e sugerir que,<br />

como esta, as <strong>de</strong>mais peças orquestrais <strong>de</strong> Jerusalem<br />

foram cria<strong>da</strong>s para cobrir as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do serviço <strong>da</strong><br />

Catedral Metropolitana do México.<br />

Divulga<strong>da</strong> em um estudo <strong>de</strong>dicado às obras instrumentais<br />

<strong>de</strong> Ignacio Jerusalem publicado em uma respeita<strong>da</strong><br />

revista musicológica, 33 esta tese teve <strong>de</strong> ser modifica<strong>da</strong><br />

quase imediatamente após sair à luz o artigo em questão.<br />

Tal necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>veu-se ao fato <strong>de</strong> que a investigação<br />

sobre a música orquestral novo-hispana que se seguiu<br />

<strong>de</strong>parou-se com um documento nunca antes citado, no<br />

qual, especificando as condições do compromisso que<br />

tinha com o Coliseu <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do México, o grupo <strong>de</strong><br />

músicos encabeçado por Jerusalem fazia saber que os<br />

integrantes <strong>da</strong> orquestra estavam obrigados a:<br />

Concorrer com o referido mestre Ignacio <strong>de</strong> Jerusalem e outros<br />

dos músicos que seja necessário, a ensaiar a música que se<br />

apresentar e [todos] os dias <strong>de</strong> comédias, especialmente os dias<br />

<strong>de</strong> festa, [... antes <strong>de</strong>] começar a comédia (tempo <strong>de</strong> meia hora),<br />

os ditos mestre e músicos <strong>de</strong>vem tocar os referidos instrumentos<br />

todos os dias em to<strong>da</strong>s e quaisquer comédias. 34<br />

O documento em questão não requisitava ao “mestre”<br />

<strong>da</strong> orquestra a composição <strong>da</strong>s peças instrumentais<br />

que <strong>de</strong>veriam ser executa<strong>da</strong>s durante meia hora<br />

antes do começo <strong>da</strong>s funções teatrais, porém pô<strong>de</strong>-se<br />

perceber niti<strong>da</strong>mente que o caráter festivo e pomposo<br />

<strong>da</strong>s marchas e aberturas <strong>de</strong> Jerusalem, em perfeita<br />

consonância com a soleni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> celebração <strong>da</strong> missa,<br />

tampouco estava em conflito com o objetivo <strong>de</strong> “atrair a<br />

gente à comédia” e <strong>de</strong>sta maneira proporcionar “o maior<br />

aumento do Coliseu”. 35<br />

No curso <strong>da</strong> investigação, a localização <strong>de</strong> fontes<br />

primárias <strong>de</strong> distinta índole em mais <strong>de</strong> uma ocasião<br />

fizeram reconsi<strong>de</strong>rar os enfoques adotados e <strong>de</strong>rrubaram<br />

mais <strong>de</strong> uma hipótese que parecia estar soli<strong>da</strong>mente<br />

fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>. O maior impacto, entretanto, foi<br />

provocado pelos documentos que subverteram o prévio<br />

juízo sobre a função que a música orquestral havia<br />

possuído nas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais e <strong>de</strong> entretenimento em<br />

meio à nobreza virreinal. Para se enten<strong>de</strong>r a natureza<br />

Ex.5. Ignacio Jerusalem (atribuição), Ouvertura Con due Violín, due Corni <strong>da</strong> Cacia é Basso Del Sig Maestr di Cappela <strong>de</strong>la<br />

Chiesa Katedrale <strong>de</strong>la Citta <strong>de</strong>l México (frontispício), Arquivo Eclesiástico <strong>da</strong> Catedral <strong>de</strong> Durango, fundo musical, s.n.


<strong>de</strong>sta mu<strong>da</strong>nça, será necessário recor<strong>da</strong>r que, em 1941,<br />

Otto Mayer-Serra já havia externado sua visão sobre<br />

o papel que <strong>de</strong>sempenharam os governadores <strong>da</strong> Nova<br />

Espanha no que se refere às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturais do<br />

país, assinalando que o “tempo muito reduzido” no qual<br />

permaneciam no po<strong>de</strong>r, além <strong>de</strong> sua preocupação por<br />

resolver, em primeira instância, “os árduos problemas<br />

sociais e econômicos <strong>de</strong> sua administração”, não lhes<br />

permitia aten<strong>de</strong>-las e nem mesmo i<strong>de</strong>ntificar-se com<br />

elas”. 36 Tais condições, uni<strong>da</strong>s à <strong>de</strong>ficiente formação que,<br />

segundo este autor, em geral distinguia os emissários<br />

<strong>da</strong> coroa espanhola, resultaram no fato <strong>de</strong> que “a vi<strong>da</strong><br />

musical no palácio virreinal não foi nunca, e menos ain<strong>da</strong><br />

durante o século XVIII, muito intensa”. 37<br />

Por um período <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> meio século, esta sentença<br />

pronuncia<strong>da</strong> por um dos pilares <strong>da</strong> musicologia<br />

nacional não foi refuta<strong>da</strong> por investigadores mexicanos<br />

ou estrangeiros. Seu peso ou, possivelmente, o<br />

<strong>de</strong>sconhecimento <strong>da</strong>s fontes primárias que po<strong>de</strong>riam<br />

modificar essa visão, fez com que não fosse aprofun<strong>da</strong>do<br />

o estudo <strong>de</strong>sse campo e, até mesmo no <strong>de</strong>spertar do<br />

século XXI, o conhecimento sobre a presença <strong>da</strong> música<br />

no palácio virreinal virtualmente se reduzia à divulgação<br />

<strong>de</strong> duas obras <strong>de</strong> Sumaya escritas em princípios do<br />

século XVIII.<br />

No suce<strong>de</strong>r <strong>da</strong> investigação em torno <strong>da</strong> música<br />

orquestral novo-hispana nos foi possível estabelecer que<br />

os governantes <strong>da</strong> Nova Espanha não estavam <strong>de</strong> todo<br />

ensur<strong>de</strong>cidos por sua avareza, nem tão imersos em suas<br />

tarefas administrativas, a ponto <strong>de</strong> não prestarem atenção<br />

aos “sonoros concertos” <strong>de</strong> música orquestral que se<br />

“organizavam” pelo Ayuntamiento ou Cabildo <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do México nos primeiros dias <strong>de</strong> sua chega<strong>da</strong> à metrópole<br />

novo-hispana. 38 A música <strong>da</strong>s melhores orquestras dotava<br />

<strong>de</strong> soleni<strong>da</strong><strong>de</strong> as festas que se faziam em presença <strong>de</strong><br />

suas excelências; acompanhava-os durante suas visitas<br />

anuais à Real e Pontifícia Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>; distraía-os nas<br />

inspeções que realizavam na Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong> e também,<br />

<strong>de</strong> modo habitual, estava presente nas recepções que<br />

tinham lugar no salão principal do palácio ou no quarto<br />

do governante em questão <strong>da</strong> Nova Espanha.<br />

A meados do século XVIII, época <strong>de</strong> Dom Juan Francisco<br />

<strong>de</strong> Güemes e Horcacitas, con<strong>de</strong> do Revillagigedo, 39<br />

correspon<strong>de</strong> a notícia sobre<br />

um festejo que se fez no salão principal [do palácio do vice-rei], ao<br />

qual assistiram suas excelências, senhoras principais e pessoas <strong>de</strong><br />

distinção; durou até uma hora <strong>da</strong> noite, com esmero dos principais<br />

músicos, que ofereciam o restante <strong>de</strong> suas habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, 40<br />

Pouco tempo <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> cita<strong>da</strong> nota, o cronista <strong>da</strong> metrópole<br />

narrou os <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> outro “primoroso festejo” oferecido<br />

“no real palácio”, no qual se escutaram “vários concertos<br />

<strong>de</strong> música, que terminaram à meia noite” 41 e alguns anos<br />

mais tar<strong>de</strong> ofereceu um informe sobre “a concorrência <strong>de</strong><br />

salão” que teve lugar “no real palácio”, acompanhando-se<br />

com “vários concertos <strong>de</strong> música”. 42<br />

ROUBINA, E. “Sonoros concertos ao estilo italiano”... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 7-17<br />

À pauta assinala<strong>da</strong> pelos altos dignitários, seguiam-se<br />

os representantes <strong>da</strong> linhagem criolla, em cujo círculo a<br />

música orquestral era consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> um aditamento quase<br />

indispensável aos “esplêndidos e custosos refrescos” que<br />

se ofereciam em seus palácios em ocasiões <strong>de</strong> núpcias,<br />

aniversário e nascimentos, próprios e alheios. 43 O interesse<br />

musical <strong>de</strong> alguns os impelia a gastar fortunas em<br />

partituras e instrumentos trazidos <strong>de</strong> além-mar e a ter a<br />

seu serviço músicos e até compositores. Temos notícias <strong>de</strong><br />

obras instrumentais - sonatas, divertimentos e aberturas<br />

- que para o âmbito palaciano haviam composto Ignacio<br />

Jerusalem, Santiago Villoni (?-c.1763), também italiano<br />

e resi<strong>de</strong>nte na Nova Espanha, e José Manuel Delgado<br />

(1750-1816), um dos músicos <strong>de</strong> maior renome ao final<br />

do período do vice-reinado.<br />

Uma gran<strong>de</strong> parte <strong>da</strong> produção sinfônica novo-hispana<br />

<strong>de</strong>sapareceu entre as transformações históricas e as<br />

velei<strong>da</strong><strong>de</strong>s estéticas que condicionaram as particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> arte musical mexicana. Testemunhos<br />

disso oferecem os inventários dos acervos musicais que<br />

antigamente se encontravam em mãos <strong>da</strong> Igreja ou <strong>de</strong><br />

particulares. Essas “memórias” ou “razões <strong>de</strong> papéis <strong>de</strong><br />

música” elabora<strong>da</strong>s no século XVIII revelaram, por exemplo,<br />

que ao legado artístico <strong>de</strong> Ignacio Jerusalem pertence uma<br />

coleção <strong>de</strong> doze aberturas, <strong>da</strong>s quais hoje se conhecem<br />

apenas quatro. Os empréstimos <strong>de</strong> manuscritos musicais<br />

dos arquivos catedralícios, em que pese to<strong>da</strong>s as proibições,<br />

nunca <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser uma prática recorrente dos integrantes<br />

<strong>da</strong>s capelas, a enorme luta empreendi<strong>da</strong> no século XIX pela<br />

Igreja mexicana na tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sarraigar do repertório<br />

dos conjuntos catedralícios a chama<strong>da</strong> “música teatral”,<br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> “abominável”, 44 o saque dos templos na época <strong>da</strong><br />

Revolução (1810-1821) e as subtrações dos últimos tempos 45<br />

são apenas alguns dos fatores que contribuíram para o<br />

<strong>de</strong>saparecimento dos concertos, aberturas e sinfonias <strong>de</strong><br />

autores novo-hispanos. Uma <strong>da</strong>s conclusões às quais se pô<strong>de</strong><br />

chegar <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> quase <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> insistentes in<strong>da</strong>gações<br />

referentes aos arquivos virreinais é que atualmente já é muito<br />

remota a esperança <strong>de</strong> um encontro fortuito com algum dos<br />

exemplares do sinfonismo novo-hispano cuja existência até<br />

agora permaneça <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>, a menos, é obvio, que se<br />

consiga atribuir à pena dos compositores virreinais algumas<br />

<strong>da</strong>s partituras manuscritas que jazem nos acervos históricos<br />

ain<strong>da</strong> no anonimato.<br />

O hermetismo em relação ao ano <strong>de</strong> composição que<br />

usualmente guar<strong>da</strong>m os manuscritos musicais novohispanos<br />

foi <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>do com o auxílio <strong>de</strong> fontes<br />

documentais, hemerográficas e iconográficas. É por isso<br />

que hoje, apenas pela menção dos nomes <strong>de</strong> Lamain,<br />

Jerusalem e José Manuel Delgado, po<strong>de</strong>-se visualizar<br />

com simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> as etapas pelas quais transitou o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> música orquestral novo-hispana e as<br />

correntes estilísticas que marcaram sua evolução, ou seja:<br />

as déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1720 e 1730, que pertencem à estética do<br />

barroco, os anos 1740 a 1770 que representam o período<br />

pré-clássico e o último período do vice-reinado, no qual a<br />

produção sinfônica filiou-se ao classicismo.<br />

13


14<br />

ROUBINA, E. “Sonoros concertos ao estilo italiano”... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 7-17<br />

O Concerto para dois violinos e baixo <strong>de</strong> Lamain, que no<br />

momento é o único vestígio <strong>da</strong> música orquestral novohispana<br />

do período inaugural <strong>de</strong> sua história, não é,<br />

entretanto, mostra única do repertório em voga no vicereinado<br />

no primeiro terço do século XVIII. As obras <strong>de</strong><br />

Vivaldi, Alberti e do indispensável “Corelio”, que então<br />

conquistaram o gosto <strong>da</strong> audiência virreinal e ocuparam<br />

o mesmo lugar <strong>de</strong> privilégio que na época do classicismo<br />

musical se atribuiu o Haydn, Mozart e Pleyel, permitem<br />

emitir julgamentos inequívocos sobre as características<br />

genéricas, estilísticas e estruturais <strong>da</strong> produção orquestral<br />

novo-hispana <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1720 e 1730, a qual,<br />

segundo um testemunho <strong>da</strong> época, imitava a italiana. 46<br />

A pesquisa em torno <strong>da</strong> música orquestral do vice-reinado<br />

ain<strong>da</strong> está em processo. Propôs-se dá-la por termina<strong>da</strong> e<br />

tornar pública a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> suas conclusões assim que<br />

to<strong>da</strong>s e ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las fossem <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong>s <strong>de</strong> maneira<br />

irrefutável a partir <strong>de</strong> fontes primárias e fi<strong>de</strong>dignas e na<br />

medi<strong>da</strong> em que se esgotasse a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se ampliar<br />

a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> genérica e acrescentar o corpus <strong>da</strong>s obras<br />

orquestrais cria<strong>da</strong>s na Nova Espanha e recupera<strong>da</strong>s do<br />

olvido <strong>da</strong> história no curso <strong>de</strong>ste estudo. Este momento já<br />

parece estar muito próximo, planejando-se que a publicação<br />

em que terá lugar incluirá algumas obras sinfônicas<br />

por hora totalmente <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s, <strong>de</strong> compositores<br />

<strong>da</strong> Nova Espanha, Espanha e Portugal que, no século<br />

XVIII, integravam o repertório <strong>da</strong>s orquestras virreinais<br />

e se podiam ouvir no templo, no palácio, na praça ou na<br />

casa <strong>de</strong> comédias. Po<strong>de</strong>-se esperar que essas partituras,<br />

testemunho mais fiel e tangível do esplendor musical do<br />

vice-reinado, não apenas serão <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse para os<br />

aficionados <strong>da</strong>s artes e <strong>da</strong> música do México, mas também<br />

impulsionarão as buscas dos antece<strong>de</strong>ntes do movimento<br />

sinfônico em outros países <strong>da</strong> América Latina, cuja prática<br />

e sabedoria musicais no século XVIII, como no caso do<br />

vice-reinado, foram <strong>de</strong>senvolvidos à imagem e semelhança<br />

dos vigentes na Península Ibérica. Acreditamos que os<br />

resultados <strong>da</strong> investigação realiza<strong>da</strong> po<strong>de</strong>rão estimular os<br />

estudiosos <strong>da</strong> área a seguir o caminho do <strong>de</strong>svelamento<br />

<strong>de</strong>sse mundo pleno <strong>de</strong> engenho e beleza do sinfonismo<br />

setecentista ibero-americano.


ROUBINA, E. “Sonoros concertos ao estilo italiano”... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 7-17<br />

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Evguenia Roubina, violoncelista e pesquisadora mexicana <strong>de</strong> origem bielorrussa, Philosophy Doctor in Sciences of Art<br />

pelo Conservatório Estatal <strong>de</strong> São Petersburgo (Rússia), é Professora Titular <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> Nacional <strong>de</strong> <strong>Música</strong> (Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Nacional Autônoma do México), on<strong>de</strong> compõe o grupo <strong>de</strong> formação interdisciplinar. É integrante do Sistema Nacional<br />

<strong>de</strong> Investigadores e membro fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia Mexicana <strong>de</strong> Ciências, Arte, Tecnologia e Humani<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Seu trabalho<br />

no campo <strong>da</strong> história <strong>da</strong> música no México foi laureado com o Prêmio Robert Stevenson <strong>de</strong> Musicologia e Investigação<br />

em <strong>Música</strong> Latino-americana 2000-2001 (Washington), com menção no I Concurso Internacional Gourmet Musical <strong>de</strong><br />

Investigação sobre <strong>Música</strong> <strong>da</strong> América Latina (Buenos Aires, 2003), com menção honrosa na nona edição do Prêmio <strong>de</strong><br />

Musicologia Casa <strong>da</strong>s Américas (Havana, 2003) e com o Prêmio <strong>de</strong> Musicologia Latino-americana Samuel Claro Valdés<br />

2004 (Chile).<br />

Paulo Castagna é Graduado e mestre pela ECA/USP e Doutor pela FFLCH/USP. Foi bolsista do CNPq, <strong>da</strong> FUNARTE, <strong>da</strong><br />

FAPESP e <strong>da</strong> VITAE, sendo atualmente Bolsista em Produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do CNPq. Vem produzindo partituras, livros e artigos<br />

na área <strong>de</strong> musicologia histórica, além <strong>de</strong> cursos, conferências, programas <strong>de</strong> rádio e televisão, também coor<strong>de</strong>nando<br />

a pesquisa musicológica para a gravação <strong>de</strong> CDs. É professor e pesquisador do Instituto <strong>de</strong> Artes <strong>da</strong> UNESP <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

1994, atuando no Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em <strong>Música</strong> e coor<strong>de</strong>nando o grupo <strong>de</strong> pesquisa “Musicologia Histórica<br />

Brasileira”, ca<strong>da</strong>strado no CNPq. Coor<strong>de</strong>nou a Equipe <strong>de</strong> Organização e Catalogação <strong>da</strong> Seção <strong>de</strong> <strong>Música</strong> do Arquivo<br />

<strong>da</strong> Cúria Metropolitana <strong>de</strong> São Paulo (1987-1999), a Equipe Musicológica do projeto Acervo <strong>da</strong> <strong>Música</strong> Brasileira /<br />

Restauração e Difusão <strong>de</strong> Partituras (Fun<strong>da</strong>rq/Santa Rosa Bureau Cultural/Petrobras, Belo Horizonte - MG) e o projeto<br />

Patrimônio Arquivístico-Musical Mineiro (Secretaria <strong>de</strong> Estado <strong>da</strong> Cultura <strong>de</strong> Minas Gerais, 2007-2008), tendo sido tutor<br />

do Programa Especial <strong>de</strong> Treinamento (PET) do IA/UNESP (2000-2004). Participou <strong>de</strong> encontros <strong>de</strong> musicologia na América<br />

Latina, Europa e Estados Unidos e atuou na coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z encontros internacionais <strong>de</strong> musicologia.<br />

15


16<br />

ROUBINA, E. “Sonoros concertos ao estilo italiano”... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 7-17<br />

Notas<br />

1 Refere-se ao Vice-Reino <strong>da</strong> Nova Espanha (Virreinato <strong>de</strong> la Nueva España, 1535-1821). N. do T.<br />

2 Refere-se à Nova Espanha. N. do T.<br />

3 BERNAL JIMÉNEZ, Miguel. El archivo musical <strong>de</strong>l Colegio <strong>de</strong> Santa Rosa <strong>de</strong> Santa María <strong>de</strong> Valladolid, siglo XVIII. Morelia:<br />

Ediciones <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d Michoacana <strong>de</strong> San Nicolás, 1939. p.24. (Morelia Colonial)<br />

4 Além <strong>de</strong> Miguel Bernal Jiménez, sobre a abertura <strong>de</strong> Sarrier, escreveram Gerard Behague em 1979, Jorge Velazco em 1988 e<br />

Ricardo Miran<strong>da</strong> em 1997, para citar algumas publicações. Ver: BEHAGUE, Gerard. Music in Latin America: An Introduction. New<br />

Jersey: Prentice Hall, 1979. p.62; VELAZCO, Jorge. La Sinfonía <strong>de</strong> Sarrier, La música por <strong>de</strong>ntro. México: UNAM, 1983. p.483-<br />

486; MIRANDA, Ricardo. Antonio Sarrier, sinfonista y clarín. Morelia: Conservatorio <strong>de</strong> las Rosas, 1997. 30p.). Esta abertura,<br />

também conheci<strong>da</strong> como a “Sinfonia <strong>de</strong> Sarrier”, foi grava<strong>da</strong> por regentes como Luis Herrera <strong>de</strong> la Fuente, Jorge Velazco e<br />

Eduardo Mata; este último também editou a partitura, impressa em 1983.<br />

5 BERNAL JIMÉNEZ, Miguel. op. cit., p.27; I<strong>de</strong>m. La música en Valladolid <strong>de</strong> Michoacán; Morelia: Ediciones <strong>de</strong> Schola Cantorum,<br />

1962. p.37.<br />

6 BERNAL JIMÉNEZ, Miguel. La música en Valladolid, p.28.<br />

7 MAYER-SERRA, Otto. Panorama <strong>de</strong> la música en México. Des<strong>de</strong> la In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia hasta la actuali<strong>da</strong>d. México: El Colegio <strong>de</strong><br />

México, 1941. p.29.<br />

8 ROMERO, Jesús C. La primera orquesta sinfónica <strong>de</strong> México. Carnet musical, Ciu<strong>da</strong>d <strong>de</strong> México, v.10, n.126, ago. 1955, p.415.<br />

9 BELLINGHAUSEN, Kart. El verso: primera manifestación orquestal en México. Heterofonía, Ciu<strong>da</strong>d <strong>de</strong> México, v.25, n.107, jul./<br />

<strong>de</strong>z. 1992, p.4.<br />

10 MIRANDA, Ricardo. Reflexiones sobre el clasicismo en México (1770-1840). Heterofonía, Ciu<strong>da</strong>d <strong>de</strong> México, v.30, n.116-117,<br />

jul./<strong>de</strong>z. 1995, p.47.<br />

11 MIRANDA, Ricardo. Antonio Sarrier., p.21.<br />

12 Daqui em diante transcreve-se em ro<strong>da</strong>pé as citações <strong>de</strong> documentos históricos com sua ortografia original.<br />

13 “la gran<strong>de</strong> fiesta que se celebró en esta Sta. Metropolitana Iglesia [...] en accion <strong>de</strong> gracias al Todopo<strong>de</strong>roso por la restitución al<br />

Trono <strong>de</strong> las Españas <strong>de</strong> Ntro. Catolico Monarca el Sr. Dn Fernando Septimo”. Archivo <strong>de</strong>l Cabildo <strong>de</strong> la Catedral Metropolitana<br />

<strong>de</strong> México, E14.24/C2/Leg. Inventarios/AM1594, f.77v, 8 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1814.<br />

14 DECORMÉ, Gerard. La obra <strong>de</strong> los jesuitas mexicanos durante la época colonial (1572-1767): compendio histórico. México:<br />

Antigua Librería Robredo <strong>de</strong> José Porrúa, 1941. v.1, p.293. A referi<strong>da</strong> notícia correspon<strong>de</strong> ao ano <strong>de</strong> 1728.<br />

15 CASTRO SANTA-ANNA, José Manuel <strong>de</strong>. Diario <strong>de</strong> sucesos notables. México: s.ed., 1752-1754. v.2, 1º <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1754, p.241.<br />

16 “un esplendido y <strong>de</strong>licado banquete [...] en que el buen gusto y bello ór<strong>de</strong>n lucieron á porfia, dándole mayor realce las gratas<br />

sensaciones <strong>de</strong> unas oberturas concertantes, ejecuta<strong>da</strong>s con <strong>de</strong>streza á gran<strong>de</strong> orquesta”. VALDÉS, Manuel Antonio. Gazetas <strong>de</strong><br />

México. México: Felipe <strong>de</strong> Zúñiga y Ontiveros, 1794. v.6, p.378-379.<br />

17 Archivo <strong>de</strong>l Cabildo <strong>de</strong> la Catedral <strong>de</strong> Morelia, leg. 3.4-135, f.79r, 1796.<br />

18 VILAR I TORRENS, Joseph M. The Symphony in Catalonia, c. 1760-1808. In: BOYD Malcolm; CARRERAS, Juan José (orgs.).<br />

Music in Spain during the Eighteenth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p.168-169.<br />

19 Archivo Eclesiástico <strong>de</strong> la Catedral <strong>de</strong> Durango, Inventarios, ff.4r y v, 8 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1771.<br />

20 Carlos Pera (?-1798), “natural <strong>da</strong> República <strong>de</strong> Luca na Itália”, recebeu sua instrução musical “no Colégio <strong>de</strong> Bolonha”, foi músico<br />

<strong>da</strong> corte <strong>de</strong> Portugal e posteriormente primeiro tiple <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> Sevilha. Radicou-se na Nova a Espanha em 1768, on<strong>de</strong>, após<br />

a fracassa<strong>da</strong> intenção <strong>de</strong> tornar-se mestre <strong>de</strong> capela interino <strong>da</strong> Catedral <strong>da</strong> Oaxaca, foi admitido na Catedral <strong>de</strong> Valladolid,<br />

também <strong>de</strong>sempenhando nesse templo as funções <strong>de</strong> primeiro tiple e mestre <strong>de</strong> escoleta até o ano <strong>de</strong> 1796, quando recebeu sua<br />

aposentadoria. Ver: Archivo Histórico <strong>de</strong>l Arzobispado <strong>de</strong> Oaxaca, AC 6, f.302r/v, 1º <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1768; ACCM, leg. 3.1-108,<br />

f.101r-102r, [c.16 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1769]; AC 39, f.140r, 8 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1796.<br />

21 Neste caso, trata-se <strong>de</strong> uma instituição <strong>de</strong> ensino musical. N. do T.<br />

22 Archivo Histórico <strong>de</strong>l Colegio <strong>de</strong> San Ignacio Loyola (Vizcaínas), 13-IV-I, f.141r, 20 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1777.<br />

23 AECD, Correspondência, leg. 10, s.f., 10 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1773.<br />

24 MURPHY, Paul (ed.). José <strong>de</strong> Torres’s Treatise of 1736 General Rules for Accompanying on the Organ, Harpsichord, and the Harp,<br />

by Knowing Only How to Sing the Part, or a Bass in Canto Figurado. Bloomington e Indianápolis: Indiana University Press, 2000,<br />

p.97-98 [211-212].<br />

25 ACCMM, AC 42, f. 238r, 16 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1756 (ou AC 45, f.76r, 24 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1761).<br />

26 SAHAGÚN DE ARÉVALO, Juan Francisco. Gacetas <strong>de</strong> México: Testimonios mexicanos. México: SEP, 1950. v.1 (1722 e 1728-<br />

1731), n.31, junho <strong>de</strong> 1730, p.255; v.3 (1737-1742), n.135, fevereiro e março <strong>de</strong> 1739, p.159 e 168. (Historiadores, v.4 e 6)<br />

27 Juan Manuel <strong>de</strong> Sumaya (1676-1755), nascido na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do México, é consi<strong>de</strong>rado um dos compositores mais representativos do<br />

barroco virreinal. Foi organista e posteriormente mestre <strong>de</strong> capela <strong>da</strong> Catedral Metropolitana do México. Em 1736 prestou serviço<br />

à Catedral <strong>de</strong> Oaxaca, on<strong>de</strong>, ao cabo <strong>de</strong> alguns anos, tornou-se renomado mestre <strong>de</strong> capela. Ver: TELLO, Aurelio. Sumaya<br />

[Zumaya], Manuel <strong>de</strong>. In: RODICIO, Emilio Casares (coord.). Diccionario <strong>de</strong> la música española e hispánoamericana. Madrid:<br />

Socie<strong>da</strong>d General <strong>de</strong> Autores y Editores, 1999. v.10, p.94-95. Não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>scartar a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que a música <strong>de</strong> sua ópera<br />

La Parténope (1711) - hoje perdi<strong>da</strong> - oferecesse mostras mais antigas do sinfonismo novo-hispano.<br />

28 SAHAGÚN DE ARÉVALO, Juan Francisco. op. cit., v.1, n.33, agosto <strong>de</strong> 1730, p.266.<br />

29 SAHAGÚN DE ARÉVALO, Juan Francisco. op. cit., v.2 (1732 a 1736), n.70, setembro <strong>de</strong> 1733, p.128. (Historiadores, v.5).<br />

30 Biblioteca Nacional <strong>de</strong> México, fundo reservado, Ms 1560, ff. 5, 14, 15, 17, 20, 25 y 50.<br />

31 Archivo General <strong>de</strong> Notarías <strong>de</strong>l Distrito Fe<strong>de</strong>ral, Notaría 702, v.4750, Registro José Vasconcelos, f.37r, 27 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1727.<br />

32 Ibid.<br />

33 ROUBINA, Evguenia. Aportes para el estudio <strong>de</strong> la música orquestal en la Nueva España: obras instrumentales <strong>de</strong> Ignacio<br />

Jerusalem. Resonancias, Santiago <strong>de</strong> Chile, n.15, nov. 2004. p.88.<br />

34 “concurrir con el referido Maestro Ignacio <strong>de</strong> Jerusalem, y otros <strong>de</strong>los Musicos que sea necesario, a ensaiar la Musica que se les<br />

pusiere y [todos] los dias <strong>de</strong> Comedias, especialm.te los dias <strong>de</strong> fiesta [... antes <strong>de</strong>] comenzar la comedia (tiempo <strong>de</strong> media ora)<br />

los dichos Maestro y Musicos han <strong>de</strong> tocar los referidos Instrum[en]tos todos los dias en to<strong>da</strong>s y quales quiera Comedias.” AGNDF,<br />

Registro Balbuena, f.35v-38r, 11 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1743.<br />

35 Ibid.


36 MAYER-SERRA, Otto. op. cit., p. 30.<br />

37 Ibid.<br />

ROUBINA, E. “Sonoros concertos ao estilo italiano”... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 7-17<br />

38 VÁZQUEZ MELÉNDEZ, Miguel Ángel. Fiesta y teatro en la Ciu<strong>da</strong>d <strong>de</strong> México (1750-1910), Dos ensayos. México: Conaculta-<br />

INBA, 2003. p.139.<br />

39 Juan Francisco <strong>de</strong> Güemes y Horcasitas, con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Revillagigedo, governou a Nueva España entre 1746 e 1755. Ver: SOLER<br />

ALONSO, Pedro. Virreyes <strong>de</strong> la Nueva España. México: SEP, 1945. p.52. (Biblioteca Enciclopédica Popular, v.63)<br />

40 “un festejo que se hizo en el salón principal [<strong>de</strong>l palacio <strong>de</strong> virrey] al que asistieron SS.EE., señoras principales y sujetos <strong>de</strong><br />

distinción; duró hasta la una <strong>de</strong> la noche, con esmero <strong>de</strong> los mas principales músicos, echando el resto <strong>de</strong> sus habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s”.<br />

CASTRO SANTA-ANNA, José Manuel <strong>de</strong>. op. cit., v.1, 11 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1753, p.158.<br />

41 Ibid., v.2, 24 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1754, p.8.<br />

42 Ibid., 6 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1756, p.204.<br />

43 Ibid., julho <strong>de</strong> 1754, p.17.<br />

44 ACCMM, Edictos, caja 6, exp.39, s.f., 6 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1813.<br />

45 É preciso assinalar que as aberturas <strong>de</strong> Rodil e Sarrier já não se encontram mais no arquivo histórico que os preservou durante<br />

quase duzentos anos, como tampouco se encontra no mesmo uma abertura <strong>de</strong> Jomelli consigna<strong>da</strong> no catálogo <strong>de</strong> 1939. Ver:<br />

BERNAL JIMÉNEZ, Miguel. El archivo musical, p.44.<br />

46 SAHAGÚN DE ARÉVALO, Juan Francisco. op. cit, v.1, n.33, agosto <strong>de</strong> 1730, p.268.<br />

17


18<br />

LEEUWEN, A. van; HORA, E. Um olhar sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicais nos teatros do Rio <strong>de</strong> Janeiro... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 18-25<br />

Um olhar sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicais<br />

nos teatros do Rio <strong>de</strong> Janeiro em fins do<br />

século XVIII e início do XIX: a atuação <strong>da</strong><br />

cantora Joaquina Lapinha<br />

Alexandra van Leeuwen (UNICAMP, Campinas)<br />

alexandra.van@iar.unicamp.br<br />

Edmundo Hora (UNICAMP, Campinas)<br />

ephora@iar.unicamp.br<br />

Resumo: Observamos atualmente uma crescente manifestação sobre os estudos <strong>da</strong> música no Período Colonial e após<br />

a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> Corte Portuguesa em 1808. Ain<strong>da</strong> assim, as informações são reduzi<strong>da</strong>s quando nos referimos à música<br />

dramática. Nesta comunicação, procuramos esclarecer aspectos historiográficos baseados em estudos mais recentes e<br />

<strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente documentados, organizando informações quanto aos teatros em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> no Rio <strong>de</strong> Janeiro no século XVIII<br />

e no início do XIX. Pela trajetória <strong>da</strong> cantora Joaquina Lapinha, procuramos compreen<strong>de</strong>r aspectos musicais e sociais do<br />

período. Destacamos ain<strong>da</strong> a importância do acervo musical <strong>da</strong> Biblioteca do Paço Ducal <strong>de</strong> Vila Viçosa em Portugal, <strong>de</strong><br />

acordo com as recentes pesquisas relaciona<strong>da</strong>s ao Brasil.<br />

Palavras-chave: Joaquina Lapinha, música dramática, ópera em fins do século XVIII, teatro no Brasil colônia, canto.<br />

A look at musical activities in Rio <strong>de</strong> Janeiro theaters in the late eighteenth century and early<br />

nineteenth century: the performance of the singer Joaquina Lapinha<br />

Abstract: We observe currently an increased manifestation about music studies in Colonial Brazil and after the<br />

arrival of the Portuguese Royal Family in 1808. But the informations are still reduced regarding dramatic music. In<br />

this communication, we try to eluci<strong>da</strong>te historiographic aspects based on recent and documented studies, organizing<br />

information about theaters in activity in the late eighteenth century and early nineteenth century in Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Trough the life and career of the singer Joaquina Lapinha, we try to un<strong>de</strong>rstand social and musical aspects of the period.<br />

We also emphasize the importance of the musical collection in the Library of the Ducal Palace in Vila Viçosa, Portugal,<br />

according to recent researches related to Brazil.<br />

Keywords: Joaquina Lapinha, dramatic music, opera in the late eighteenth century, theater in colonial Brazil, singing.<br />

1- Introdução<br />

O nosso trabalho <strong>de</strong> pesquisa concentra-se na existência<br />

<strong>de</strong> repertório para a voz <strong>de</strong> soprano coloratura entre o<br />

final do século XVIII e início do XIX no Brasil. Iniciamos<br />

nossas investigações pelas peças profanas 1 do Pe. José<br />

Maurício Nunes Garcia (1767-1830): o Coro em 1808,<br />

que contém uma <strong>de</strong>dicatória para a cantora Joaquina<br />

Lapinha 2 e os dramas Ulissea e O triunfo <strong>da</strong> América,<br />

ambas <strong>de</strong> 1809. 3<br />

Assim, é a partir <strong>da</strong>s referências à atuação <strong>de</strong>ssa cantora<br />

que iniciamos nosso trabalho <strong>de</strong> pesquisa, procurando<br />

i<strong>de</strong>ntificar evidências <strong>da</strong> prática musical no período<br />

acima mencionado.<br />

Joaquina Maria <strong>da</strong> Conceição <strong>da</strong> Lapa, conheci<strong>da</strong> como<br />

Lapinha, foi uma cantora fluminense que atuou no Brasil<br />

e em Portugal. Segundo afirma ANDRADE (1967, v.2,<br />

p.164) e até o presente momento, esta cantora é “a única<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.17, 68 p., jan. - jun., 2008<br />

<strong>de</strong> quem a história guardou o nome”. O relato do viajante<br />

Ru<strong>de</strong>rs mostra ain<strong>da</strong> sua condição <strong>de</strong> mulata:<br />

A terceira actriz chama-se Joaquina Lapinha. É natural do Brasil e<br />

filha <strong>de</strong> uma mulata, por cujo motivo tem a pele bastante escura.<br />

Este inconveniente porém reme<strong>de</strong>ia-se com cosméticos. Fora<br />

disso tem uma figura imponente, boa voz e muito sentimento<br />

dramático. (apud BRITO, 1989, p.182)<br />

PACHECO (2006) nos fornece mais informações sobre a<br />

mesma lembrando que pouco se sabe sobre suas origens<br />

e tampouco sobre suas influências musicais e dramáticas.<br />

Este mesmo autor nos remete às notícias <strong>da</strong> Gazeta<br />

<strong>de</strong> Lisboa para comprovar sua atuação em Portugal. 4<br />

Transcrevemos a seguir a notícia <strong>de</strong> 1795, na qual<br />

<strong>de</strong>stacamos o prestígio artístico <strong>da</strong> cantora e o fato <strong>de</strong><br />

ela ter fixado residência em Lisboa:<br />

A 24 do corrente mês fará no Real Teatro do S. Carlos um<br />

Concerto <strong>de</strong> Musica vocal e instrumental Joaquina Maria <strong>da</strong><br />

Conceição Lapinha, natural do Brasil, on<strong>de</strong> se fizeram famosos os<br />

Recebido em: 16/08/2007 - Aprovado em: 15/03/2008


LEEUWEN, A. van; HORA, E. Um olhar sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicais nos teatros do Rio <strong>de</strong> Janeiro... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 18-25<br />

seus talentos músicos, que têm já sido admirados pelos melhores<br />

avaliadores <strong>de</strong>sta capital. Os bilhetes e chaves dos camarotes se<br />

acharão em sua casa na rua dos Ourives <strong>da</strong> Prata na véspera, e na<br />

noite do indicado dia no mesmo Teatro. (Suplemento à Gazeta <strong>de</strong><br />

Lisboa, n. II, 16 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1795 apud PACHECO, 2006, p.177)<br />

Sobre a música executa<strong>da</strong> neste concerto, BRITO (1989,<br />

p.181) reproduz um programa, constando a execução <strong>de</strong><br />

árias e duetos <strong>de</strong> Sarti, Leal e Paisiello. Posteriormente,<br />

concertos foram realizados com sua participação no<br />

teatro do Porto a 29 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro do mesmo ano e 3 <strong>de</strong><br />

janeiro <strong>de</strong> 1796.<br />

Anos mais tar<strong>de</strong>, em 1808, encontramos notícias <strong>de</strong> sua<br />

atuação no Brasil, executando as obras <strong>de</strong> Nunes Garcia<br />

e também obras <strong>de</strong> Marcos Portugal (1762-1830), 5 além<br />

<strong>de</strong> atuar como atriz no Teatro Régio <strong>de</strong> Manuel Luís<br />

(ANDRADE, 1967, v.2, p.185).<br />

Consi<strong>de</strong>rando a trajetória profissional <strong>de</strong> Lapinha i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong><br />

até o presente, salientamos os seguintes itens:<br />

a. a participação <strong>de</strong> negros e mulatos no teatro e música<br />

do período; 6<br />

b. a presença <strong>da</strong>s mulheres em oposição à prática<br />

corrente em Portugal dos castrati; 7<br />

c. a evolução <strong>da</strong> ópera no país por meio <strong>da</strong> música<br />

dramática presente nas representações teatrais,<br />

<strong>de</strong>stacando-se no século XVIII a presença <strong>da</strong>s obras<br />

<strong>de</strong> Antônio José <strong>da</strong> Silva, o “Ju<strong>de</strong>u”;<br />

d. a relação entre o teatro e a música, principalmente no<br />

período do Brasil Colonial, evi<strong>de</strong>nciando as influências<br />

<strong>da</strong>s práticas em Portugal que por sua vez sofrem forte<br />

influência italiana;<br />

e. a localização <strong>de</strong> repertório dramático nacional ou <strong>de</strong><br />

obras estrangeiras executa<strong>da</strong>s no país, contribuindo<br />

para os estudos <strong>de</strong> cronologia <strong>da</strong> ópera.<br />

Nesta comunicação, propomo-nos a fornecer subsídios<br />

que colaborem para estudos futuros. Assim, em um<br />

estágio inicial <strong>de</strong> nossa pesquisa, julgamos ser <strong>de</strong><br />

relevante importância a organização <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos relativos<br />

ao funcionamento <strong>da</strong>s Casas <strong>de</strong> Ópera na colônia e início<br />

do reinado e a relação <strong>de</strong>stas com a atuação <strong>de</strong> Lapinha.<br />

2- O Desenvolvimento <strong>da</strong>s “Casas <strong>de</strong> Ópera”<br />

Nas capitanias-gerais <strong>da</strong> Bahia e <strong>de</strong> Pernambuco<br />

encontramos algumas <strong>da</strong>s referências mais antigas <strong>da</strong><br />

produção musical brasileira. Em Salvador, no que se refere<br />

aos espaços físicos, po<strong>de</strong>mos citar a existência do Teatro<br />

<strong>da</strong> Câmara Municipal (1729) e <strong>da</strong> Casa <strong>da</strong> Ópera <strong>da</strong> Praia<br />

(1760), além <strong>da</strong> construção do Teatro São João ain<strong>da</strong> no<br />

período colonial. 8 Também temos evidências <strong>de</strong> uma Casa<br />

<strong>de</strong> Ópera no Recife (MARIZ, 2005, p.36).<br />

Já em Minas Gerais, encontramos uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> maior<br />

<strong>da</strong>s casas <strong>de</strong> ópera no período áureo <strong>da</strong> mineração.<br />

Destacamos a atuação do Pe. João <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong> Castro Lobo<br />

(1794-1832) que, em 1811, foi o responsável pela direção<br />

<strong>da</strong> Ópera <strong>de</strong> Vila Rica. 9<br />

Sobre os espetáculos nesses teatros, BUDASZ (2006, p.20)<br />

afirma que:<br />

Durante o século XVII, não se tem notícia na colônia <strong>da</strong><br />

apresentação <strong>de</strong> óperas no sentido mo<strong>de</strong>rno do termo, ou seja,<br />

a encenação <strong>de</strong> um enredo integralmente posto em música.<br />

Mesmo no século XVIII, além do mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong>s óperas <strong>de</strong> Antônio<br />

José <strong>da</strong> Silva, com diálogos falados e poucos números musicais,<br />

não era incomum encenarem-se libretos operísticos sem<br />

qualquer emprego <strong>da</strong> música, funções que eram mesmo assim<br />

<strong>de</strong>nomina<strong>da</strong>s “óperas”.<br />

Ain<strong>da</strong> segundo este mesmo autor, as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicais<br />

e teatrais apresentavam doutrina i<strong>de</strong>ológica, promovendo<br />

uma “educação cívica paralela à educação religiosa <strong>da</strong><br />

Igreja” (2006, p.20), o que possibilitou <strong>de</strong> forma mais rápi<strong>da</strong><br />

a disseminação <strong>da</strong>s casas <strong>de</strong> ópera, locais <strong>de</strong>stinados à<br />

representação <strong>de</strong> dramas, comédias e entremezes em<br />

música. Tais teatros, que costumavam ter <strong>capa</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

para 350 a 400 pessoas, podiam ser encontrados em<br />

locali<strong>da</strong><strong>de</strong>s como Minas Gerais, Salvador, Goiás, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro e, até mesmo, em locais distantes como Cuiabá.<br />

De acordo com CAVALCANTI (2004, p.172), para esse<br />

período, a palavra “ópera” “[...] significava também peça <strong>de</strong><br />

teatro, quer fosse dramática, cômica-trágica, ou comédia;<br />

e “casa <strong>de</strong> ópera”, o mesmo que teatro, ou melhor, casa <strong>de</strong><br />

teatro público”. Corroborando as idéias <strong>de</strong> Bu<strong>da</strong>sz (2006),<br />

o autor indica que o termo não era necessariamente<br />

usado para obras essencialmente musicais.<br />

O teatro setecentista celebrizou as obras <strong>de</strong> Antônio José<br />

<strong>da</strong> Silva (1705-1739), o Ju<strong>de</strong>u. Tais obras vieram substituir<br />

os autos e entremezes, baseados em uma tradição que<br />

vinha <strong>de</strong> Gil Vicente (1465-1536) e que perdurou no<br />

Brasil até 1733 (SILVA, 1938, p.19). Havia também a<br />

representação <strong>de</strong> comédias (em sua maioria, em idioma<br />

espanhol), escritas segundo os mo<strong>de</strong>los dos autos ibéricos<br />

seiscentistas e <strong>da</strong>s zarzuelas (BUDASZ, 2006).<br />

Além <strong>de</strong>ssas obras, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar a presença <strong>da</strong>s<br />

peças <strong>de</strong> Pietro Metastásio (1698-1782), 10 que, em Vila<br />

Rica, receberam tradução do poeta Cláudio Manoel <strong>da</strong><br />

Costa (1729-1789). 11 Este inconfi<strong>de</strong>nte foi autor <strong>de</strong> uma<br />

obra dramática original brasileira e também <strong>de</strong> óperas<br />

ou “dramas para música”, subsistindo a peça <strong>de</strong> 1768, O<br />

Parnaso Obsequioso (PRADO, 1993, p.65).<br />

3 - O Rio <strong>de</strong> Janeiro em Tempos <strong>de</strong> Brasil<br />

Colônia<br />

Dirigimo-nos agora, mais especificamente, à produção<br />

artística na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, no período que<br />

compreen<strong>de</strong> meados dos setecentos até as primeiras<br />

déca<strong>da</strong>s do século XIX.<br />

Em 1763, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Sebastião do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

tornou-se a capital do vice-reino do Brasil, em<br />

substituição a Salvador na Bahia, vivendo a partir <strong>de</strong><br />

então um momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e renovação,<br />

que se intensificou também com o <strong>de</strong>clínio <strong>da</strong> mineração<br />

em Minas Gerais.<br />

19


20<br />

LEEUWEN, A. van; HORA, E. Um olhar sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicais nos teatros do Rio <strong>de</strong> Janeiro... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 18-25<br />

Com o crescimento <strong>da</strong> população, a expansão econômica<br />

e as <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s culturais no Rio <strong>de</strong> Janeiro – além <strong>da</strong><br />

acolhi<strong>da</strong> a missões e visitantes estrangeiros por ser a<br />

se<strong>de</strong> do vice-reino – tornou-se visível a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

acompanhar as mu<strong>da</strong>nças estabeleci<strong>da</strong>s na Europa e<br />

criar ambientes fechados para a representação <strong>da</strong>s obras<br />

artísticas. Assim, as encenações antes realiza<strong>da</strong>s sobre<br />

palcos improvisados em terrenos abandonados, praças e<br />

ruas teriam um local próprio: o teatro público.<br />

É nesse período que, no governo do vice-rei Con<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

Cunha (1763-1767), 12 temos registros do que seria o teatro<br />

carioca mais antigo: o teatro do Padre Ventura. Segundo<br />

AZEVEDO (1956, p.18), esse teatro teria funcionado entre<br />

1767 e 1776, estas <strong>da</strong>tas coinci<strong>de</strong>m com as informações<br />

<strong>de</strong> autores como Lafayette SILVA (1938, p.19-20) e Ayres<br />

<strong>de</strong> ANDRADE (1967, v.1, p.63), entre outros. Entretanto,<br />

pelos estudos <strong>de</strong> Luiz EDMUNDO (1932) e Múcio <strong>da</strong><br />

Paixão (1936), temos divergências com relação ao tema.<br />

“A Opera dos Vivos será a mesma Casa <strong>da</strong> Opera ou Teatro<br />

do Padre Ventura?” (PAIXÃO, 1936, p.71).<br />

Paixão já se remete à existência <strong>da</strong> Ópera dos Vivos, em<br />

1748, referindo-se a este teatro também como Theatro do<br />

Padre Ventura. Estudos mais recentes <strong>de</strong> Nireu CAVALCANTI<br />

(2004, p.170-179) trazem novas informações com relação<br />

aos teatros <strong>de</strong>sse período, esclarecendo muitos aspectos 13<br />

por meio dos documentos inéditos aos quais teve acesso.<br />

Segundo CAVALCANTI (p.171), pela “escritura <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>ção<br />

<strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> para gerir um teatro <strong>de</strong> marionetes” ou<br />

“presépio”, torna-se possível alterar para 1719 a <strong>da</strong>ta do<br />

início <strong>da</strong> história do teatro no Rio <strong>de</strong> Janeiro, com local<br />

próprio para representação.<br />

Um outro relato <strong>de</strong> 1748 do viajante Pierre, <strong>da</strong> nau<br />

francesa L’Arc-en-Ciel, coinci<strong>de</strong> com uma escritura <strong>de</strong><br />

empréstimo toma<strong>da</strong> pela mãe <strong>de</strong> Boaventura Dias Lopes, 14<br />

<strong>da</strong>ta<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1749; tais <strong>da</strong>dos permitiriam relacionar a<br />

existência <strong>da</strong> Casa <strong>de</strong> Ópera do Pe. Boaventura já nesses<br />

anos, e ain<strong>da</strong> que esse estabelecimento seria o mesmo<br />

que a “Ópera dos Vivos”, chama<strong>da</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Ópera Velha.<br />

Outros documentos <strong>de</strong> arren<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

confirmariam a existência <strong>de</strong> mais um teatro também do<br />

Pe. Boaventura, que veremos a seguir se tratar <strong>da</strong> Ópera<br />

Nova (CAVALCANTI, 2004, p.172-3).<br />

O viajante Pierre faz referência a um espetáculo com<br />

marionetes em tamanho natural, o que seria uma evolução<br />

do presépio <strong>de</strong> tempos anteriores, adotando mais tar<strong>de</strong><br />

a representação com atores “<strong>de</strong> carne e osso”, <strong>da</strong>í a<br />

<strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> “Ópera dos Vivos”. Além disso, na <strong>de</strong>scrição<br />

<strong>de</strong>sse viajante, notamos um elemento importante, qual seja,<br />

a presença <strong>da</strong>s mulheres no teatro. Ele se refere a lugares<br />

distintos para acomo<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> homens e mulheres:<br />

O quadrado servia <strong>de</strong> platéia [...] on<strong>de</strong> os homens tomavam lugar<br />

indistintamente porque as senhoras ficavam nos camarotes, [...]<br />

don<strong>de</strong> viam como<strong>da</strong>mente o espetáculo e olhavam <strong>de</strong> soslaio<br />

os espectadores, brincando indolentemente com as cortinas<br />

<strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s a escondê-las. (CAVALCANTI, 2004, p.173)<br />

Foi provavelmente na representação <strong>de</strong> Os Encantos <strong>de</strong><br />

Medéia, uma ópera do Ju<strong>de</strong>u, que a Ópera Velha teria se<br />

incendiado em 1769. 15 Já o teatro <strong>da</strong> Ópera Nova, com<br />

construção geralmente atribuí<strong>da</strong> a Manoel Luiz Ferreira 16<br />

em 1776, também pertenceria ao Pe. Boaventura e teria<br />

existido antes <strong>de</strong> 1758. De acordo com o folheto Epanafora<br />

Festiva e um mapa <strong>da</strong>tado entre 1758 e 1760, temos<br />

registros <strong>da</strong> construção do edifício ao lado do Paço e <strong>da</strong><br />

representação <strong>de</strong> três óperas (CAVALCANTI, 2004, p.174).<br />

Em 1772, ao final <strong>de</strong> um arren<strong>da</strong>mento para o empresário<br />

Luís Marques Fernan<strong>de</strong>s, a Casa <strong>da</strong> Ópera Nova é doa<strong>da</strong> pelo<br />

Pe. Boaventura a seu irmão Luís Dias <strong>de</strong> Souza. A partir <strong>de</strong><br />

1775, durante o governo do Marquês do Lavradio, a casa<br />

passa a ser administra<strong>da</strong> exclusivamente por Manoel Luiz<br />

Ferreira, funcionando sob sua direção até 1812.<br />

Entre os <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> governo (1769 e 1779), o vice-rei<br />

Marquês do Lavradio, que havia sido transferido para o<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro após uma gestão <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s realizações<br />

em Salvador, privilegiou o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>s artes. 17<br />

MATTOS (1997, p.24) nos mostra que ele:<br />

[...] procurou embelezá-lo [o Rio <strong>de</strong> Janeiro], abriu novas ruas,<br />

construiu chafarizes novos, e restituiu à ci<strong>da</strong><strong>de</strong> lazeres condizentes<br />

com a sua própria personali<strong>da</strong><strong>de</strong> festeira. Passando a viver em<br />

ambiente on<strong>de</strong> as celebrações religiosas eram particularmente<br />

importantes no contexto social, não esquecia o marquês <strong>da</strong>s<br />

realizações profanas a que se habituara em Salvador.<br />

Em 1813, a Ópera Nova é substituí<strong>da</strong> pelo Real Teatro <strong>de</strong><br />

São João, 18 bem maior, mais imponente e inspirado no<br />

Teatro São Carlos <strong>de</strong> Lisboa, pois o Teatro Régio 19 já não<br />

era suficiente para as <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Corte. Destacamos<br />

ain<strong>da</strong> que a localização <strong>da</strong> Ópera Nova próxima ao Paço,<br />

ou seja, próxima ao centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, reflete a nova<br />

organização do espaço urbano, com uma importância<br />

ca<strong>da</strong> vez maior do centro político, religioso e econômico<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, que culmina com a chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> D. João VI.<br />

4 - A Produção Artística nos Teatros do<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Acerca <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s na época do Pe. Boaventura temos<br />

poucas informações. Uma <strong>de</strong>las é o relato do viajante<br />

Bougainville que, em 1766 20 a convite do vice-rei Con<strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> Cunha, assistiu a um espetáculo no teatro do Pe.<br />

Boaventura. Segundo informações <strong>de</strong> CAVALCANTI (2004,<br />

p.176), tal relato se reportava à Ópera Nova, que nessa<br />

época ain<strong>da</strong> era <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> do referido padre. 21 De<br />

acordo com Bougainville:<br />

Em uma sala bastante bonita pu<strong>de</strong>mos ver as obras-primas <strong>de</strong><br />

Metastásio, representa<strong>da</strong>s por uma companhia <strong>de</strong> mulatos, e<br />

ouvir vários trechos dos gran<strong>de</strong>s mestres <strong>da</strong> Itália, executados<br />

por uma orquestra regi<strong>da</strong> por um padre corcun<strong>da</strong> em vestes<br />

sacerdotais. (ANDRADE, 1967, v.1, p.63) 22<br />

Por outro lado, em 1747, <strong>da</strong>ta anterior às primeiras<br />

referências aos teatros do padre Boaventura, encontramos<br />

informações quanto à realização <strong>da</strong> ópera Felinto exaltado,<br />

no Mosteiro <strong>de</strong> São Bento no Rio <strong>de</strong> Janeiro, basea<strong>da</strong>s


LEEUWEN, A. van; HORA, E. Um olhar sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicais nos teatros do Rio <strong>de</strong> Janeiro... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 18-25<br />

em relato que indica a excelência <strong>da</strong> música executa<strong>da</strong><br />

(MATTOS, 1997, p.206). 23<br />

No teatro <strong>da</strong> Ópera Velha, po<strong>de</strong>mos citar as constantes<br />

referências à presença <strong>da</strong>s obras do Ju<strong>de</strong>u. De acordo<br />

com AZEVEDO (1956, p.19), o Pe. Boaventura “nutria<br />

fanática paixão” por tais obras. SILVA (1938, p.20)<br />

ain<strong>da</strong> nos fornece uma lista <strong>da</strong>s peças representa<strong>da</strong>s:<br />

O labirinto <strong>de</strong> Creta, As varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Proteu, As guerras<br />

do Alecrim e <strong>da</strong> Mangerona, A vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> D. Quixote, O<br />

precipício <strong>de</strong> Faetonte e Os encantos <strong>de</strong> Medéia. BUDASZ<br />

(2005) faz a comparação <strong>de</strong>sse teatro com o teatro do<br />

Bairro Alto em Lisboa, segundo ele, “semelhantes em<br />

tamanho e repertório”. 24<br />

Já no teatro que foi assumido por Manoel Luiz Ferreira<br />

em 1775, permanece a referência às representações <strong>da</strong>s<br />

obras do Ju<strong>de</strong>u, mas também são cita<strong>da</strong>s as óperas Pietà<br />

d’Amore, <strong>de</strong> Giuseppe Milico (1739-1802) e L’Italiana in<br />

Londra, <strong>de</strong> Domenico Cimarosa (1749-1801), traduzi<strong>da</strong>s<br />

para o português (AZEVEDO, 1956, p.19). MATTOS (1997,<br />

p.27) ain<strong>da</strong> acrescenta o nome <strong>da</strong> ópera Il matrimonio<br />

segreto também <strong>de</strong> Cimarosa e cita a presença <strong>de</strong> obras<br />

<strong>de</strong> outros compositores como Niccolò Jomelli (1714-<br />

1774), muito apreciado em Portugal.<br />

Ferreira 25 contava com a simpatia do vice-rei Marquês<br />

do Lavradio, tendo-o acompanhado já em Salvador.<br />

Mostrando-se um gran<strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>dor, enriqueceu<br />

como diretor do teatro, alugando-o, por exemplo, para a<br />

soleni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> posse <strong>de</strong> vice-reis. SILVA (1938, p.23) cita a<br />

<strong>de</strong>scrição que Melo Morais Filho faz do teatro:<br />

De um vasto salão, formando a platéia, circulado <strong>de</strong> duas or<strong>de</strong>ns<br />

<strong>de</strong> camarotes que terminavam na boca <strong>de</strong> cena, constituia-se o<br />

famoso teatro <strong>da</strong> colonia, iluminado por aran<strong>de</strong>las e lustres <strong>de</strong><br />

cristal, <strong>de</strong>stacando-se à direita, ampla e ornamenta<strong>da</strong>, a tribuna<br />

do vice-rei, cujas cortinas, <strong>de</strong> <strong>da</strong>masco e ouro, eram encima<strong>da</strong>s<br />

pelo escudo real e os dragões <strong>de</strong> Bragança. Adornado <strong>de</strong> vistosas<br />

bambinelas, sobressaía no acanhado palco um riquíssimo pano <strong>de</strong><br />

boca, pintado pelo pardo Leandro Joaquim, artista <strong>de</strong> reputação<br />

célebre e seu principal cenógrafo. 26<br />

PACHECO (2007) menciona os estudos <strong>de</strong> MATTOS<br />

(1997), indicando alguns artistas que atuaram no Teatro<br />

<strong>de</strong> Manuel Luiz, entre eles: Luís Inácio Pereira, Geraldo<br />

Inácio Pereira e a Lapinha.<br />

No governo do vice-rei Luís <strong>de</strong> Vasconcelos (1779-<br />

1790), encontramos ain<strong>da</strong> referências a uma companhia<br />

<strong>de</strong> teatro sob a direção do tenente-coronel <strong>de</strong> milícias,<br />

Antônio Nascentes Pinto, que teria estu<strong>da</strong>do na Itália<br />

(ANDRADE, 1967, v.1, p.67). Dessa companhia fariam<br />

parte os três artistas citados anteriormente e ain<strong>da</strong> o<br />

baixo João dos Reis Pereira. MATTOS (1997, p.27) afirma<br />

que esses artistas e músicos teriam atuado em um<br />

pequeno teatro <strong>de</strong> “amadores”, localizado em frente à<br />

Rua do Passeio. 27 Neste local, ouvia-se Cimarosa, Paisiello<br />

(1740-1816) e compositores com os quais Nascentes<br />

Pinto entrara em contato na Itália, tais obras seriam<br />

encena<strong>da</strong>s posteriormente na Ópera Nova.<br />

PAIXÃO (1936, p.82) cita entre os artistas do tempo <strong>de</strong><br />

Ferreira:<br />

[...] os actores Lobato, Manoel Rodrigues, Ladislau Benevenuto,<br />

o gracioso mais festejado <strong>da</strong> época, notavel pelas suas<br />

facécias, José Ignacio <strong>da</strong> Costa, conhecido pelo Capacho, e<br />

as actrizes Joaquina Maria <strong>da</strong> Conceição, mais conheci<strong>da</strong><br />

pela Lapinha, Francisca <strong>de</strong> Paula, Luisa, Rosinha, que <strong>da</strong>nsava<br />

na perfeição o Miudinho, o Sorongo e o Corta-jaca, Maria<br />

Joaquina ou Jacyntha, por antonomazia a Marucas, e outros<br />

cujos nomes cahiram em olvido.<br />

Sobre a atuação <strong>de</strong> Lapinha nos teatros do período,<br />

po<strong>de</strong>mos relacioná-la às ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do poeta árca<strong>de</strong><br />

Manuel Inácio <strong>da</strong> Silva Alvarenga (1749-1814). 28<br />

Encontramos referências quanto à incorporação à<br />

Biblioteca Nacional, em 1815, <strong>de</strong> um acervo comprado<br />

<strong>da</strong> “preta Joaquina, her<strong>de</strong>ira e testamenteira” do<br />

poeta (SCHWARCZ, 2002, p.278). A esta informação,<br />

acrescentamos a afirmação <strong>de</strong> que “[...] o poeta<br />

consagrava os seus ocios aos folguedos <strong>da</strong> musa”<br />

(PAIXÃO, 1936, p.82). Diante <strong>de</strong>sses fatos, citamos ain<strong>da</strong><br />

a atuação <strong>de</strong> Alvarenga nos teatros <strong>da</strong> época:<br />

Silva Alvarenga era o mestre, os seus collegas se sujeitavam à<br />

sua critica, ao seu bom gosto e conhecimentos profissionaes;<br />

e os dramas passaram <strong>de</strong> seu gabinete a ser ensaiados sob a<br />

sua direção em um pequeno theatro e do palco dos amadores<br />

iam então ostentar-se publicamente aos olhos dos espectadores<br />

<strong>da</strong> Casa <strong>da</strong> Opera, cuja entra<strong>da</strong> só era ve<strong>da</strong><strong>da</strong> aos estrangeiros.<br />

(PAIXÃO, 1936, p.81)<br />

Segundo Múcio <strong>da</strong> Paixão, Silva Alvarenga era estimado<br />

pelo Marquês do Lavradio, o que nos leva a admitir<br />

sua provável colaboração com os artistas do Teatro <strong>de</strong><br />

Manoel Luiz, confirmando sua participação no cenário<br />

artístico carioca. Lembramos também que no teatro <strong>de</strong><br />

amadores, 29 em que atuou o poeta, foram leva<strong>da</strong>s à cena<br />

peças como Enéas no Lacio <strong>de</strong> Alvarenga Peixoto, assim<br />

como a versão traduzi<strong>da</strong> por este autor <strong>da</strong> tragédia<br />

Mérope, <strong>de</strong> Scipione Maffey (1675-1755).<br />

Tais informações nos levam a especular sobre as<br />

eventuais influências <strong>de</strong> Silva Alvarenga na carreira<br />

artística <strong>de</strong> Joaquina Lapinha. Po<strong>de</strong>mos supor ain<strong>da</strong><br />

que o fato <strong>de</strong> não termos mais informações sobre suas<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s artísticas, após 1811, esteja relacionado ao<br />

seu enriquecimento pela condição <strong>de</strong> her<strong>de</strong>ira dos bens<br />

do poeta. Contudo, estas são questões que <strong>de</strong>vem ser<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s em estudos futuros.<br />

Diante <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> corte, a Ópera Nova passa<br />

por reforma, ganhando camarotes e nova iluminação e<br />

passando à <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> Teatro Régio (MATTOS, 1997).<br />

Em sua produção, vigorariam então obras <strong>de</strong> Marcos<br />

Portugal. Dentre as importantes estréias, <strong>de</strong>stacamos a<br />

ópera L’oro non compra amore (1811), <strong>de</strong>ste compositor,<br />

e a provável representação <strong>da</strong> ópera perdi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Nunes<br />

Garcia, Le due gemelle. 30 Porém, logo fica evi<strong>de</strong>nte a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> construção <strong>de</strong> um novo teatro e, em<br />

1813, com a abertura do Real Teatro <strong>de</strong> São João, Ferreira<br />

encerra as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu teatro.<br />

21


22<br />

LEEUWEN, A. van; HORA, E. Um olhar sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicais nos teatros do Rio <strong>de</strong> Janeiro... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 18-25<br />

É então que encontramos Fernando José <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> à<br />

frente do projeto e <strong>da</strong> direção do Real Teatro. Para sua<br />

inauguração, encenou-se O Juramento dos Numes <strong>de</strong><br />

Bernardo José <strong>de</strong> Souza Queiroz, 31 autor <strong>de</strong> importantes<br />

entremezes que restaram como documentação do estilo<br />

musical-dramático <strong>da</strong> época.<br />

Quanto à atuação <strong>de</strong> negros e mulatos na música e no<br />

teatro, BUDASZ (2005) relata como norma a presença<br />

<strong>de</strong> atores e cantores negros nas companhias <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />

meta<strong>de</strong> do século XVIII. Afirmando que, um século<br />

antes, os escritos <strong>de</strong> Gregório <strong>de</strong> Mattos (1633-1696) já<br />

mostravam que as artes eram negócios <strong>de</strong> artistas negros<br />

e mulatos. Destacamos ain<strong>da</strong> a participação feminina nas<br />

representações artísticas no Brasil Colonial e no período<br />

joanino. A esse respeito, CAVALCANTI (2004, p.413-4)<br />

oferece uma lista <strong>de</strong> pelo menos <strong>de</strong>z mulheres atuantes<br />

no final do século XVIII e início do XIX, <strong>de</strong>ntre as quais<br />

i<strong>de</strong>ntificamos a presença <strong>de</strong> Lapinha.<br />

5 - As Novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do Acervo do Palácio Ducal<br />

<strong>de</strong> Vila Viçosa<br />

Para estu<strong>da</strong>rmos o repertório <strong>de</strong>sse período, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mos<br />

<strong>de</strong> uma análise criteriosa do acervo <strong>de</strong> bibliotecas e<br />

arquivos nacionais. Consi<strong>de</strong>rando a estreita relação entre<br />

Brasil e Portugal no período colonial e <strong>da</strong> permanência<br />

<strong>da</strong> corte, <strong>de</strong>paramo-nos com a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> estudo<br />

do material presente também em arquivos e acervos<br />

portugueses.<br />

Desta forma, encontramos informações essenciais para<br />

nossa pesquisa no acervo <strong>da</strong> Biblioteca do Paço Ducal<br />

<strong>de</strong> Vila Viçosa, em Portugal. 32 Os fundos musicais <strong>de</strong>sta<br />

biblioteca foram catalogados pelo Pe. José Augusto<br />

ALEGRIA (1989), porém o musicólogo David Cranmer 33 tem<br />

realizado um estudo mais aprofun<strong>da</strong>do <strong>de</strong>sse material,<br />

corrigindo eventuais problemas quanto à catalogação.<br />

Por meio <strong>da</strong> colaboração <strong>de</strong> Cranmer, 34 chegamos a<br />

informações inéditas para nossa pesquisa e encontramos<br />

um espólio pertencente à cantora Joaquina Lapinha. Os<br />

seus estudos mais recentes possibilitam o acréscimo<br />

<strong>de</strong> diversas obras executa<strong>da</strong>s por Lapinha com relação<br />

à lista anteriormente forneci<strong>da</strong> por Pacheco, que<br />

reproduzimos a seguir:<br />

Sem <strong>da</strong>tas – Parte solista em “Le Donne Cambiate” <strong>de</strong> Marcos<br />

Portugal.<br />

- Primeiro soprano do “Elogio <strong>da</strong> Senhora Rainha” <strong>de</strong> Marcos<br />

Portugal.<br />

1804 – Participação na farsa “Gatto por Lebre” <strong>de</strong> António José<br />

do Rego, em Lisboa.<br />

1808 – Parte solista no “Coro em 1808” do Pe José Maurício.<br />

Sem <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> estréia – Gênio <strong>de</strong> Portugal no drama eróico “Ulissea”<br />

do Pe José Maurício, composto em 1809.<br />

1810 - Parte solista em “O Triunfo <strong>da</strong> América” do Pe José Maurício,<br />

escrita em 1809.<br />

1811 – Carlotta em “L´Oro non compra amore” <strong>de</strong> Marcos Portugal,<br />

no Teatro Régio, no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

- Parte solista no “Elogio <strong>de</strong> 17 <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1811” <strong>de</strong> Marcos<br />

Portugal.<br />

1811(?) – A Ver<strong>da</strong><strong>de</strong> em “A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> triunfante” <strong>de</strong> autor<br />

in<strong>de</strong>terminado, no Real Theatro <strong>da</strong> Corte do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

(PACHECO, 2006, p.182, citação como no original)<br />

Contudo, Cranmer não confirma a atuação <strong>de</strong> Lapinha em<br />

Le Donne Cambiate e acrescenta a sua participação nas<br />

seguintes obras. 35<br />

a. Paisiello - Il barbiere di Siviglia<br />

b. Paisiello - La molinara<br />

c. Paisiello - Il fanatico in Berlina<br />

d. Cimarosa - L’italiana in Londra<br />

e. Paisiello - La modista raggiratrice no papel <strong>de</strong><br />

Ma<strong>da</strong>ma Perlina.<br />

Tais <strong>da</strong>dos são muito importantes, uma vez que parecem<br />

confirmar as informações <strong>de</strong> Ayres <strong>de</strong> ANDRADE (1967,<br />

p.67) e <strong>de</strong> Cleofe Person <strong>de</strong> MATTOS (1997, p.209), entre<br />

outros autores, que indicam a representação <strong>de</strong> L’italiana<br />

in Londra <strong>de</strong> Cimarosa. 36 Outrossim, i<strong>de</strong>ntificamos ain<strong>da</strong><br />

a participação <strong>de</strong> Lapinha no papel <strong>de</strong> América no drama<br />

A União Venturosa, com música <strong>de</strong> Fortunato Maziotti<br />

(1782-1855), encenado em 1811, no Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

(KÜHL, 2003).<br />

Apesar <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>rmos afirmar ain<strong>da</strong> a procedência<br />

do acervo <strong>de</strong> Vila Viçosa, é provável que algumas <strong>de</strong>ssas<br />

cópias sejam material brasileiro. Assim, é importante notar<br />

que a i<strong>de</strong>ntificação <strong>da</strong>s partituras <strong>de</strong> Cimarosa e Paisiello,<br />

como parte integrante do repertório <strong>da</strong> cantora Lapinha,<br />

colabora com o estudo <strong>de</strong> cronologia <strong>da</strong> ópera no Brasil e<br />

<strong>da</strong>s influências do repertório italiano sobre os compositores<br />

brasileiros, possibilitando a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> aspectos<br />

interpretativos, <strong>de</strong> ornamentação e, provavelmente,<br />

características <strong>da</strong> técnica vocal do período.<br />

Lembramos ain<strong>da</strong> a existência nesse acervo <strong>de</strong> trechos<br />

<strong>da</strong>s óperas <strong>de</strong> Antônio José <strong>da</strong> Silva (o Ju<strong>de</strong>u): Guerra<br />

do Alecrim e <strong>da</strong> Mangerona e Varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Proteo,<br />

ambas com música <strong>de</strong> Antonio Teixeira (ALEGRIA,<br />

1989, p.164-5).<br />

Assim, esperamos que este texto tenha contribuído <strong>de</strong><br />

alguma forma para estudos concernentes ao assunto.<br />

Procuramos, a princípio, por meio <strong>da</strong> consulta a fontes<br />

disponíveis, organizar <strong>da</strong>dos do período para aqueles<br />

que têm interesse nas artes do final do século XVIII,<br />

sobre o qual nos <strong>de</strong>tivemos mais <strong>de</strong>talha<strong>da</strong>mente.<br />

Esse estudo também possibilita um aprofun<strong>da</strong>mento<br />

com relação a nosso objeto <strong>de</strong> pesquisa, que se remete<br />

à música dramática e à atuação <strong>da</strong> cantora Joaquina<br />

Lapinha, <strong>de</strong>stacando a importância do acervo existente<br />

na Biblioteca <strong>de</strong> Vila Viçosa, em Portugal.


LEEUWEN, A. van; HORA, E. Um olhar sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicais nos teatros do Rio <strong>de</strong> Janeiro... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 18-25<br />

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SILVA, Lafayette. Historia do Teatro Brasileiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Serviço Gráfico do Ministério <strong>da</strong> Educação e Saú<strong>de</strong>, 1938.<br />

Alexandra van Leeuwen é mestran<strong>da</strong> em Fun<strong>da</strong>mentos Teóricos (Musicologia Histórica) no Departamento <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

<strong>da</strong> UNICAMP, sob a orientação do Prof. Dr. Edmundo Hora. Bacharel em Regência, também pela UNICAMP. Atua como<br />

regente <strong>de</strong> coros e cantora, recebendo orientação <strong>da</strong> Prof.ª Dr.ª Márcia Guimarães e <strong>da</strong> Prof.ª Dr.ª Niza Tank. Participou<br />

<strong>da</strong>s Oficinas <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>de</strong> Curitiba-PR (2002 e 2004), dos Festivais <strong>de</strong> <strong>Música</strong> Colonial e <strong>Música</strong> Antiga <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora-<br />

MG (2005 e 2006), dos Festivais Nacionais <strong>de</strong> Canto em Piracicaba-SP (2002-2004 e 2007), <strong>da</strong> I Semana <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

Antiga <strong>UFMG</strong>, 2007. É integrante <strong>da</strong> Camerata “Anima Antiqua”, especializa<strong>da</strong> em repertório renascentista e sob direção<br />

<strong>de</strong> Carlos Fiorini. Atua também junto ao coro “Armonico Tributo”, dirigido por Edmundo Hora e em um trio <strong>de</strong>dicado ao<br />

repertório barroco para soprano, trompete e continuo (com instrumentos históricos).<br />

Edmundo Hora é Doutor em música, Cravo - <strong>de</strong>senvolve o seu trabalho baseado na interligação <strong>da</strong>s técnicas dos<br />

instrumentos antigos <strong>de</strong> teclado: Cravos, Órgão <strong>de</strong> Câmara, Clavicórdio e Fortepianos. Em Amsterdã-Holan<strong>da</strong>, <strong>de</strong> 1984 a<br />

1993, graduou-se como “Solista <strong>de</strong> Cravo” pela <strong>Escola</strong> Superior <strong>de</strong> Artes <strong>de</strong> Amsterdã e pós graduou-se na Hogeschool<br />

Stichting Amster<strong>da</strong>m - Sweelinck Conservatorium, orientado respectivamente por J. Ogg, A. Uittenbosch e presi<strong>de</strong>nte do<br />

júri Gustav Leonhardt. Des<strong>de</strong> 1984 tem participado como professor e palestrante nos Festivais <strong>de</strong> Londrina PR <strong>de</strong> 1984<br />

23


24<br />

LEEUWEN, A. van; HORA, E. Um olhar sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicais nos teatros do Rio <strong>de</strong> Janeiro... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 18-25<br />

a 1991, nos Encontros <strong>de</strong> <strong>Música</strong> Antiga e nas Oficinas <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>de</strong> Curitiba-PR <strong>de</strong> 1994 a 2002 e 2005, nos Festivais<br />

<strong>de</strong> <strong>Música</strong> Colonial Brasileira e <strong>Música</strong> Antiga <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora-MG <strong>de</strong> 1990 a 2002, no I e V Encontro <strong>de</strong> Musicologia<br />

Histórica J. <strong>de</strong> Fora-MG, no I Simpósio <strong>de</strong> Musicologia <strong>da</strong> UNIRIO-RJ, no I, II, III e IV Simpósio Internacional Todos os<br />

Teclados Mariana-MG, no I, II, e IV Simpósio Latino Americano <strong>de</strong> Musicologia <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Cultural <strong>de</strong> Curitiba-PR, I<br />

Festival Internacional <strong>de</strong> <strong>Música</strong> Latino Americana SESC-Ipiranga <strong>de</strong> São Paulo 1999, e no I Festival ITAÚ <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

Colonial Brasileira - São Paulo 2000, no XV Seminários Internacionais <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> UFBA – Salvador 2003, Semana<br />

<strong>de</strong> <strong>Música</strong> Antiga <strong>de</strong> Recife, 2007. Pesquisador <strong>da</strong> <strong>Música</strong> Colonial Brasileira, apresenta-se com a Orquestra Barroca<br />

“Armonico Tributo” <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1994. Atua ain<strong>da</strong> no programa <strong>de</strong> Pós-Graduação do IA – UNICAMP.<br />

Notas<br />

1 Tais obras foram transcritas pelo musicólogo Sérgio Dias e se encontram disponíveis em edição <strong>da</strong> Funarte <strong>de</strong> 2002, organiza<strong>da</strong>s por Ricardo<br />

Bernar<strong>de</strong>s.<br />

2 No manuscrito se encontram as seguintes informações: Coro em 1808/ Para o Benefício/ De Joaquina Lapinha/ Pello insigne Pe Mestre/ José Maurício<br />

N.G./ Para o Entremez <strong>de</strong> Manoel Men<strong>de</strong>s.<br />

3 Cleofe P. <strong>de</strong> Mattos (1997) nos informa a <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> 1810 para a representação do drama O triunfo <strong>da</strong> America, o que é confirmado por KÜHL (2003)<br />

em seus estudos baseados nas informações forneci<strong>da</strong>s pelo Padre Perereca, um dos mais importantes cronistas <strong>da</strong> época e pela Gazeta do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Entretanto, DIAS (2004) não vê motivos claros para contestar a <strong>da</strong>ta indica<strong>da</strong> em manuscrito autógrafo <strong>de</strong>positado na Biblioteca do Paço<br />

Ducal <strong>de</strong> Vila Viçosa: 24 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1809.<br />

4 Ao transcrever estas notícias, Pacheco <strong>de</strong>sfaz os erros <strong>de</strong> cronologia que encontramos com relação aos concertos realizados pela Lapinha em<br />

Portugal (p. 177-8). Tais erros são encontrados em Vieira (1900) e reproduzidos por autores como Andra<strong>de</strong> (1967) e Silva (1938).<br />

5 Marcos Portugal chega ao Brasil somente em 1811.<br />

6 Destacamos o ensino <strong>de</strong> música na Fazen<strong>da</strong> <strong>de</strong> Santa Cruz (cita<strong>da</strong>, muitas vezes, como “conservatório”), on<strong>de</strong> os jesuítas formavam instrumentistas<br />

e cantores escravos. Entretanto, não temos documentação que nos permita relacionar Lapinha nessa tradição <strong>de</strong> músicos escravos.<br />

7 Os castrati só chegam ao Brasil em <strong>da</strong>ta posterior à vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> Corte em 1808.<br />

8 Alguns autores apresentam a <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> 1812 para a inauguração <strong>de</strong>ste teatro, ain<strong>da</strong> que Mariz mencione como período colonial. Po<strong>de</strong>mos nos referir<br />

a esse período - que compreen<strong>de</strong> a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> Corte em 1808 até o Império (1822) - como transição, já com a presença <strong>de</strong> um príncipe regente<br />

em terras brasileiras, ou seja, período do Reinado.<br />

9 Representa o teatro mais antigo <strong>da</strong> América do Sul ain<strong>da</strong> em funcionamento.<br />

10 Tais peças podiam ser simplesmente li<strong>da</strong>s como libretos ou alternar trechos falados e cantados.<br />

11 Eram também comuns as traduções e representações <strong>de</strong> peças <strong>de</strong> Molière (1622-1673).<br />

12 Nas Memórias (1981, tomo I, p. 69) do Pe. Perereca encontramos referências aos vice-reinados no Rio <strong>de</strong> Janeiro: 1763-1767 – Con<strong>de</strong> <strong>da</strong> Cunha,<br />

D. Antônio Álvares <strong>da</strong> Cunha; 1767-1769 – Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Azambuja, D. Antonio Rolim <strong>de</strong> Moura Tavares; 1769-1779 – Marquês <strong>de</strong> Lavradio, D. Luiz<br />

<strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> Portugal Soares d’Eça Alarcão Silva e Melo Mascarenhas; 1779-1790 – Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Figueiró, D. Luiz <strong>de</strong> Vasconcelos e Souza; 1790-1801<br />

– Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rezen<strong>de</strong>, D. José Luiz <strong>de</strong> Castro; 1801-1806 – Marquês <strong>de</strong> Aguiar, D. Fernando José <strong>de</strong> Portugal e Castro; 1806-1808 – Con<strong>de</strong> dos Arcos,<br />

D. Marcos <strong>de</strong> Noronha e Brito.<br />

13 Para uma publicação direciona<strong>da</strong> a estudos musicais, a organização dos <strong>da</strong>dos informados por Cavalcanti foi intencionalmente consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> relevância. Lembramos ain<strong>da</strong> que, curiosamente, publicações recentes como o livro <strong>de</strong> Antonio d’Araujo (2006) mantêm informações dos<br />

historiadores mais antigos.<br />

14 Cavalcanti cita o estudo do genealogista Gilson Nazareth que fornece <strong>da</strong>dos biográficos do chamado padre Ventura, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Boaventura Dias<br />

Lopes, nascido em 1710 e falecido entre 1772 e 1775. Em nosso trabalho, consi<strong>de</strong>ramos a informação mais recente e nos referimos a ele como Pe.<br />

Boaventura.<br />

15 Encontramos a <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> 1769 para o incêndio na nota XXXVII do Prefácio <strong>de</strong> Noronha Santos às Memórias do Pe. Perereca (1981) e em outros autores<br />

que se remetem à Ópera Velha (SANTOS, 1981, tomo I, p. 85). Curiosamente, BUDASZ (2005) menciona o ano <strong>de</strong> 1776 para este evento, apesar <strong>de</strong><br />

ter se baseado nas informações <strong>de</strong> Cavalcanti, que também informa a <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> 1769.<br />

16 É comum encontrarmos também a grafia <strong>de</strong> Manuel Luís, ou ain<strong>da</strong>, Manuel Luiz.<br />

17 Manoel Luiz Ferreira, graças também ao apoio do vice-rei, amealhou fortuna, “acumulando um patrimônio significativo <strong>de</strong> 21 imóveis, <strong>de</strong>ntre os<br />

quais o prédio do teatro” (CAVALCANTI, 2004, p. 174).<br />

18 Ressaltamos aqui que este teatro é inaugurado no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Não confundir com seu homônimo, o Teatro São João <strong>de</strong> Salvador, no mesmo<br />

período.<br />

19 Denominação posterior <strong>da</strong> Casa <strong>de</strong> Ópera ou Teatro <strong>de</strong> Manuel Luiz.<br />

20 CAVALCANTI nos dá a <strong>da</strong>ta exata <strong>da</strong> visita <strong>de</strong>sse francês ao país entre 28 <strong>de</strong> junho e 15 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1766.<br />

21 Apesar <strong>da</strong> maior parte dos autores afirmarem que este relato se <strong>de</strong>stina a um espetáculo na Ópera Velha, o que nos interessa no momento é <strong>de</strong>stacar<br />

o que diz Bougainville.<br />

22 O padre Boaventura costumava arren<strong>da</strong>r seus teatros e reservar lugares para si, para que pu<strong>de</strong>sse apreciar os espetáculos. Além disso, também<br />

participava como regente <strong>de</strong> orquestra e “<strong>de</strong> quando em quando subia ao palco para cantar lundús e <strong>da</strong>nsar o fado” (SILVA, 1938, p. 20).<br />

23 Isidoro <strong>da</strong> Fonseca, Júbilos <strong>da</strong> América, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1747, p. 21 apud Mattos.<br />

24 The opera velha was similar in size and repertory to Lisbon’s Bairro Alto theatre (BUDASZ, 2005).<br />

25 Segundo os relatos, ele chega a receber os títulos militares <strong>de</strong> coronel e briga<strong>de</strong>iro (MATTOS, 1997), informações estas que confirmam o seu <strong>de</strong>staque<br />

na história.<br />

26 De acordo com os estudos <strong>de</strong> ANDRADE (1967, p. 67), lembramos que após a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> Corte, o teatro passa por reformas, ganhando mais camarotes,<br />

<strong>de</strong>coração mais luxuosa e um pano <strong>de</strong> boca pintado pelo artista português José Leandro <strong>de</strong> Carvalho (representando a Baía <strong>de</strong> Guanabara). Assim,<br />

adquire o status <strong>de</strong> Teatro Régio.<br />

27 ARAÚJO (2006) confirma a existência <strong>de</strong>sse teatro na Rua do Passeio e cita outro menor, localizado no campo <strong>da</strong> Aju<strong>da</strong> (atual Cinelândia), on<strong>de</strong> se


LEEUWEN, A. van; HORA, E. Um olhar sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicais nos teatros do Rio <strong>de</strong> Janeiro... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 18-25<br />

representou um drama <strong>de</strong> Alvarenga Peixoto (1744-1793), Enéias no Lácio.<br />

28 Alvarenga formou-se em direito pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra e foi um dos fun<strong>da</strong>dores <strong>de</strong> uma Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Literária brasileira aos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Arcádia<br />

Romana. A biblioteca <strong>de</strong>ste advogado era composta <strong>de</strong> 1576 volumes.<br />

29 Esse teatro é provavelmente aquele a que se referiu Cleofe <strong>de</strong> Mattos, on<strong>de</strong> possivelmente atuou o elenco dirigido por Nascentes Pinto.<br />

30 ANDRADE (1967) nos informa a <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> 1809 para a representação, entretanto não cita a fonte.<br />

31 Segundo BUDASZ (2005), “the last notice about Souza Queiroz appeared in 1829” (a última vez que se ouviu falar sobre Souza Queiroz foi em 1829).<br />

32 As transcrições <strong>da</strong>s obras dramáticas <strong>de</strong> Nunes Garcia (Ulissea e Triunfo <strong>da</strong> America), por exemplo, foram possíveis graças à existência dos manuscritos<br />

nesse acervo.<br />

33 David Cranmer é professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Nova <strong>de</strong> Lisboa, a quem agra<strong>de</strong>cemos as valiosas informações.<br />

34 Informações pessoais envia<strong>da</strong>s por meio eletrônico em setembro <strong>de</strong> 2007.<br />

35 Segundo ele, a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>ssas obras é feita com base na existência <strong>da</strong> anotação do nome <strong>da</strong> cantora Lapinha nas partituras analisa<strong>da</strong>s.<br />

36 A ópera teria sido encena<strong>da</strong> pelo elenco <strong>de</strong> Nascentes Pinto, durante o governo do vice-rei Luís <strong>de</strong> Vasconcelos (1779-1790).<br />

25


26<br />

COSTA, L. As velhas amas <strong>da</strong>s óperas venezianas seiscentistas... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 26-31<br />

As velhas amas <strong>da</strong>s óperas venezianas<br />

seiscentistas: um elo entre o teatro falado<br />

e cantado<br />

Ligiana Costa (Université François-Rabelais, Tour, França; e Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estatal <strong>de</strong> Milão, Milão, Itália)<br />

ligianac@gmail.com<br />

Resumo: A partir <strong>da</strong> análise dos personagens <strong>de</strong> velhas amas <strong>de</strong> leite e <strong>de</strong> velhas em geral se <strong>de</strong>finirão as relações e<br />

os limites <strong>de</strong> convergência entre o teatro falado e cantado do século XVII. Depois <strong>de</strong> traçar um breve histórico <strong>de</strong>stes<br />

personagens no teatro falado, examinaremos a entra<strong>da</strong> <strong>de</strong>stes nos libretos <strong>de</strong> ópera italianos, concluindo com algumas<br />

observações relativas a questões musicais e <strong>de</strong> práticas performáticas. A presença <strong>de</strong> velhas amas nos libretos venezianos<br />

em torno <strong>de</strong> 1660 era consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mental para o sucesso <strong>da</strong> ópera, ao lado <strong>de</strong> outros topoi fixos. A tradição<br />

<strong>de</strong>stes personagens, no teatro falado e cantado, <strong>de</strong>monstra que eram interpretados por homens “en travesti”. Este é um<br />

ponto crucial que nos oferece a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> refletir sobre questões <strong>de</strong> performance, mas também sobre a percepção<br />

seiscentista <strong>da</strong>s velhas mulheres.<br />

Palavras-chave: ópera veneziana, teatro, commedia <strong>de</strong>ll’arte.<br />

Old wet nurses in Seventeenth Century Italian Opera: a link between the spoken and the<br />

musical theatre<br />

Abstract: Through the analysis of the characters of nursemaids, nurses and “vecchie” we will <strong>de</strong>fine the boun<strong>da</strong>ry but<br />

also the shared features of spoken and sung seventeenth-century theatre. After tracing a brief history of these roles in<br />

the spoken theatre, we will examine their arrival into the Italian opera librettos, to end with some observations relating<br />

to musical matters and performance practice. The presence of a nurse in a 1660s Venetian libretto was consi<strong>de</strong>red<br />

necessary for the success of an opera. This role’s tradition, both in spoken and sung theatre, <strong>de</strong>monstrates that it was<br />

mostly assigned to men “en travesti”. This is a crucial point as not only it gives us a chance to reflect on matters of<br />

performance practice, but also on seventeenth-century perception of ol<strong>de</strong>r women.<br />

Keywords: venetian opera, theatre, commedia <strong>de</strong>ll’arte.<br />

1 - As velhas amas <strong>da</strong>s óperas venezianas<br />

seiscentistas: um elo entre o teatro falado<br />

e cantado.<br />

Este artigo preten<strong>de</strong> contribuir para o conhecimento <strong>da</strong><br />

formação <strong>da</strong> dramaturgia operística italiana que tem<br />

um marco fun<strong>da</strong>mental no ano <strong>de</strong> 1637, quando em<br />

Veneza foi encena<strong>da</strong> a primeira representação <strong>de</strong> um<br />

drama musical em um teatro público. Esta in<strong>da</strong>gação<br />

será <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> afirmação <strong>de</strong> Pirrotta<br />

(PIRROTTA, 1955) no artigo seminal “Opera e Commedia<br />

<strong>de</strong>ll’arte”, sobre a dinâmica <strong>da</strong>s relações <strong>de</strong> intercâmbio<br />

entre os dois gêneros:<br />

“A <strong>de</strong>finição <strong>da</strong> ópera musical era muito incerta e muito recente<br />

para não se ren<strong>de</strong>r e acolher todo tipo <strong>de</strong> elementos novos que<br />

fossem consi<strong>de</strong>rados idôneos para acrescentar ao sucesso do<br />

espetáculo”. (tradução livre <strong>da</strong> autora)<br />

Na análise <strong>de</strong> como o teatro <strong>de</strong> ópera recria certas<br />

tradições e lugares do teatro renascentista em seu sentido<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.17, 68 p., jan. - jun., 2008<br />

lato sob a perspectiva do acolhimento dos elementos<br />

novos, i<strong>de</strong>ntificam-se muitas evidências <strong>de</strong>ste encontro.<br />

Destaca-se assim a tradição dos canovacci (roteiros)<br />

que passam <strong>da</strong> comédia improvisa<strong>da</strong> ao drama musical,<br />

com uma nova função (STAFFIERI, 1995). Se na prática<br />

<strong>da</strong> Commedia <strong>de</strong>ll’arte (ou Commedia all’improvviso) “a<br />

escrivaninha chega sempre atrasa<strong>da</strong>” (FERRONE, 2003)<br />

sendo a escritura somente uma aju<strong>da</strong> ao ator para<br />

memorizar a ação, na ópera o canovaccio é criado para o<br />

público, que o utiliza como hoje em dia são utilizados os<br />

libretos <strong>de</strong> ópera.<br />

Uma outra possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> análise comparativa entre<br />

o teatro do século XVI e XVII e o drama em música é<br />

o estudo dos topoi e dos personagens. Paolo Fabbri<br />

(FABBRI, 2003) em seu livro Il secolo cantante enumera<br />

uma série <strong>de</strong> situações cênicas que são transpostas <strong>da</strong><br />

comédia fala<strong>da</strong> ao drama musical. Entre estas situações,<br />

encontramos o travestismo, as cenas <strong>de</strong> cartas, <strong>de</strong><br />

Recebido em: 02/09/2007 - Aprovado em: 22/02/2008


loucura e <strong>de</strong> reconhecimento. Da mesma forma, é<br />

incorpora<strong>da</strong> no drama musical uma série <strong>de</strong> personagens<br />

secundários ou personagens <strong>de</strong> acompanhamento, que<br />

provêm <strong>da</strong> tradição <strong>da</strong> Commedia <strong>de</strong>ll’arte, como os<br />

servos masculinos e femininos, velhos tutores e pajens.<br />

Para atingir o objetivo <strong>de</strong>ste artigo, que é i<strong>de</strong>ntificar o fio<br />

<strong>de</strong> convergência e <strong>de</strong> intersecção entre o teatro falado e<br />

teatro cantado, serão utilizados os personagens <strong>de</strong> amas,<br />

governantas e velhas.<br />

Em uma primeira abor<strong>da</strong>gem faz-se necessário esboçar<br />

uma breve história <strong>da</strong> presença <strong>de</strong>stes personagens no<br />

teatro falado, para em segui<strong>da</strong> analisar a presença <strong>de</strong>stes<br />

personagens nos libretos operísticos italianos. Esta<br />

análise tem como referência algumas questões musicais<br />

e <strong>da</strong> prática cênica <strong>de</strong>stes personagens. Sua tradição e<br />

a história <strong>da</strong> representação, seja no teatro falado ou no<br />

teatro musical, <strong>de</strong>monstra que em sua maioria, eram<br />

representados por homens en travesti. Este é um dos<br />

pontos <strong>de</strong> apoio adotados para esta reflexão, pois oferece<br />

indicações não somente sobre a prática <strong>de</strong> execução,<br />

como também sobre o imaginário seiscentista relacionado<br />

à velhice feminina.<br />

A relação entre os canovacci e o teatro escrito é <strong>de</strong><br />

constante troca e se expan<strong>de</strong> também aos libretos <strong>de</strong><br />

ópera. Textos teatrais eram transformados em canovacci,<br />

como é o caso <strong>de</strong> I Suppositi <strong>de</strong> Ariosto 1 . Da mesma<br />

forma os canovacci eram transformados em textos para<br />

teatro e os libretos em canovacci. O exemplo mais célebre<br />

<strong>de</strong>ste fato é o <strong>da</strong> ópera La Finta Pazza <strong>de</strong> Giulio Strozzi,<br />

assim como La Finta Savia do mesmo autor. No prefácio<br />

<strong>de</strong> La Finta Savia está assinalado que muitos dos versos<br />

originais serão cortados para permitir que a mesma seja<br />

representa<strong>da</strong> sem canto.<br />

Se esta troca acontecia para os textos, o mesmo ocorria<br />

entre as companhias <strong>de</strong> atores. As companhias <strong>de</strong>ll’Arte<br />

tinham em seus repertórios títulos <strong>de</strong> comédias, fábulas<br />

pastorais, tragédias e tragicomédias e, para aprofun<strong>da</strong>r<br />

as características <strong>da</strong>s máscaras, os topoi usados em cena,<br />

os lazzi, se nutriam do teatro escrito e <strong>de</strong> textos literários<br />

em geral. Em um segundo momento, essas companhias<br />

incluíam em seus repertórios os novos dramas em música<br />

produzidos em Veneza, como constatam Lorenzo Bianconi<br />

e Thomas Walker (BIANCONI - WALKER, 1975) no<br />

importante artigo “Dalla “Finta pazza” alla “Veremon<strong>da</strong>:<br />

storie di Febiarmonici”.<br />

2 - Detto la Franceschina<br />

Como é sabido, as máscaras fixas na Commedia <strong>de</strong>ll’Arte<br />

são os dois velhos, os servos e os apaixonados. As outras<br />

são as máscaras móveis, como é o caso <strong>da</strong> serva, a<br />

acompanhante <strong>da</strong> apaixona<strong>da</strong> que em alguns canovacci<br />

é uma versão feminina dos zanni (os servos cômicos)<br />

e, em outros é uma velha ama ou conselheira. Entre os<br />

diferentes nomes <strong>da</strong>dos a esta máscara, o <strong>de</strong> Franceschina<br />

talvez tenha sido o mais usado durante o século XVI.<br />

A sua primeira aparição acontece na Compagnia <strong>de</strong>gli<br />

COSTA, L. As velhas amas <strong>da</strong>s óperas venezianas seiscentistas... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 26-31<br />

Uniti em 1548 e o ator que a interpreta nesta ocasião<br />

é Battista <strong>de</strong>gli Amorevoli Trevisano, o qual se mantem<br />

nesta máscara pelo menos até 1584, quando seu nome<br />

ain<strong>da</strong> aparece vinculado à Franceschina em uma carta<br />

coletiva dos Comici Uniti.<br />

Um outro ator que interpretou esta máscara a partir<br />

<strong>de</strong> 1591 foi Carlo De Vecchi <strong>de</strong>tto la Franceschina <strong>da</strong><br />

companhia <strong>de</strong> Tristano Martinelli. É interessante observar<br />

a incorporação do nome <strong>da</strong> máscara feminina ao nome<br />

artístico do cômico, expondo assim, uma ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

gênero. A preferência <strong>de</strong> um homem para esta tipologia<br />

<strong>de</strong> máscara po<strong>de</strong>ria caracterizar uma escolha cênica, já<br />

que as atrizes ocupavam livremente os palcos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1566.<br />

O fato <strong>de</strong> estas servas serem representa<strong>da</strong>s por homens<br />

é <strong>de</strong>terminante <strong>de</strong> sua i<strong>da</strong><strong>de</strong>, já que o gestual masculino<br />

limita a representação <strong>de</strong> servas jovens e <strong>de</strong> gestos ágeis.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, as máscaras como a Colombina e as <strong>de</strong>riva<strong>da</strong>s<br />

goldonianas que se caracterizam como servas jovens serão<br />

representa<strong>da</strong>s por atrizes. Reforçando esta argumentação<br />

o dramaturgo e ator Paolo Grassi (GRASSI, 1983) em seu<br />

artigo “Le maschere <strong>de</strong>lla Commedia <strong>de</strong>ll’Arte” observa:<br />

“Inicialmente, na comédia do século XVII, Franceschina é velha<br />

e tosca e rejuvenesce no século seguinte ao invés <strong>de</strong> envelhecer,<br />

como ocorre aos comuns mortais (eis uma outra prova, se ain<strong>da</strong><br />

fosse necessária, <strong>da</strong> natureza diabólica <strong>da</strong>s máscaras)”. (tradução<br />

livre <strong>da</strong> autora)<br />

Ain<strong>da</strong> na tradição <strong>da</strong> Commedia <strong>de</strong>ll’Arte encontramos<br />

outras máscaras que po<strong>de</strong>m <strong>da</strong>r idéias para uma<br />

consi<strong>de</strong>ração sobre as amas: a Ruffiana (alcoviteira) e<br />

a Pasquella. Estas duas máscaras se assemelham e têm<br />

no personagem <strong>de</strong> Celestina (do texto homônimo <strong>de</strong><br />

Fernando <strong>de</strong> Rojas) uma raiz comum. Celestina, assim<br />

como a Dipsas <strong>de</strong> Ovidio, é uma velha maga e alcoviteira.<br />

Ela se sustenta graças a seu po<strong>de</strong>r mágico <strong>de</strong> juntar casais,<br />

o que lhe assegura acesso a todos os ambientes e meios<br />

sociais. As pre<strong>de</strong>cessoras <strong>de</strong>ste papel são, no teatro <strong>de</strong><br />

Plauto, Cleareta (na Asinaria) e Staphyla (na Aulularia).<br />

No teatro em prosa renascentista a figura <strong>da</strong> ama é o<br />

fio condutor <strong>da</strong> trama dramática, e ocasionalmente po<strong>de</strong><br />

ocupar uma posição central. Este é o caso <strong>da</strong> peça La<br />

Fantesca <strong>de</strong> Giambattista Della Porta, La Balia <strong>de</strong> Giovanni<br />

Razzi e La Fantesca <strong>de</strong> Girolamo Parabosco. As amas<br />

<strong>de</strong>stes textos têm algumas características em comum:<br />

são extremamente fiéis aos patrões, vivem em uma<br />

profun<strong>da</strong> nostalgia <strong>da</strong> juventu<strong>de</strong> e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> amorosa e seus<br />

conselhos po<strong>de</strong>m ser fun<strong>da</strong>mentais no <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>da</strong> trama dramática. Po<strong>de</strong>-se dizer que estes personagens<br />

estão entre os “papéis codificados” e os “personagens<br />

indivíduos”. Segundo a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Anne Ubersfeld<br />

(UBERSFELD, 1977), os primeiros são prevalentemente as<br />

máscaras <strong>da</strong> comédia latina e <strong>de</strong>ll’Arte e os segundos têm<br />

traços que caracterizam um indivíduo comum, ou seja,<br />

uma i<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma família e um nome.<br />

Na seqüência será analisado como estes papéis oriundos<br />

<strong>da</strong> tradição do teatro escrito e improvisado renascentista<br />

migram para os libretos <strong>de</strong> ópera. Nestes, a presença <strong>de</strong><br />

27


28<br />

COSTA, L. As velhas amas <strong>da</strong>s óperas venezianas seiscentistas... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 26-31<br />

personagens secundários já conhecidos no teatro falado,<br />

permite um processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação por parte do novo<br />

público <strong>de</strong> teatro musical. Esta i<strong>de</strong>ntificação é realiza<strong>da</strong><br />

sob dois aspectos, cênico e cotidiano, permitindo<br />

que o público reconheça em cena, os personagens<br />

anteriormente conhecidos no teatro <strong>da</strong>s praças públicas e,<br />

ao mesmo tempo, se reconheça na trama, por meio <strong>de</strong>stes<br />

personagens que pertencem ao cotidiano seiscentista.<br />

Ocorre então o encontro <strong>da</strong> praça e do Olimpo, pois estes<br />

personagens divi<strong>de</strong>m a cena com semi<strong>de</strong>uses <strong>da</strong> mitologia<br />

e protagonistas históricos, o que já ocorria no próprio teatro<br />

antigo e sucessivamente na comédia pastoral teoriza<strong>da</strong> por<br />

Giambattista Guarini no tratado Il Verrato.<br />

Apesar <strong>da</strong> escassa quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> partituras musicais<br />

remanescentes em relação à gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> libretos<br />

disponíveis, po<strong>de</strong>mos constatar que o papel <strong>da</strong> ama era,<br />

normalmente, representado en travesti por um tenor ou<br />

contralto, refletindo a origem <strong>de</strong>stes personagens no teatro<br />

falado. Observa-se que estas duas vozes são medianas e, por<br />

conseguinte, têm possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s sonoras ambíguas. Sabese<br />

que a voz <strong>de</strong> tenor era pouco privilegia<strong>da</strong> na escritura<br />

<strong>de</strong> ópera seiscentista e a associação <strong>de</strong>ste timbre com<br />

um personagem <strong>de</strong> ama ou <strong>de</strong> alcoviteira, po<strong>de</strong> oferecer<br />

argumentos para a análise dramatúrgica, tanto sob o ponto<br />

<strong>de</strong> vista <strong>da</strong> prática cênica e musical, como a relaciona<strong>da</strong> à<br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero e vocal dos personagens.<br />

No tratado L’art du Théâtre, Luigi Riccoboni (RICCOBONI,<br />

1750) <strong>de</strong>screve as caracteristicas requeri<strong>da</strong>s para<br />

representar um velho recomen<strong>da</strong>ndo que os movimentos<br />

<strong>de</strong>vem ser lentos e limitados e a voz não <strong>de</strong>ve ter<br />

plenitu<strong>de</strong> sonora. Em uma outra passagem do mesmo<br />

tratado, Riccoboni <strong>de</strong>screve o “baixo cômico”, relacionado<br />

aos papéis <strong>de</strong> servos, velhos, e outros, oferecendo outros<br />

indícios sobre a prática teatral que po<strong>de</strong>m ter repercussões<br />

na prática musical. Ele recomen<strong>da</strong> que, para encenar<br />

papéis cômicos, o ator <strong>de</strong>ve abandonar a graciosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

física e a afinação vocal, como:<br />

“Quanto menos nós somos obrigados a ter nobreza e graça no<br />

personagem, e afinação e flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong> na voz, tanto mais a ação<br />

se torna fácil. São até mesmo quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s a serem abandona<strong>da</strong>s<br />

quando se interpreta o baixo cômico”. Riccoboni (1750) (tradução<br />

livre <strong>da</strong> autora)<br />

O travestismo em cena é um dos recursos essenciais do<br />

teatro falado e cantado dos séculos XVI e XVII. Verificamse<br />

travestismos em personagens <strong>de</strong> distintas classes<br />

sociais e sexos e ele se manifesta no disfarce <strong>de</strong> servos<br />

em patrões, <strong>de</strong> homens em mulheres ou <strong>de</strong> mulheres em<br />

homens. Wendy Heller (HELLER, 2003) reforça a influência<br />

do carnaval na tendência veneziana do travestismo:<br />

“A ópera apren<strong>de</strong>u com o carnaval muito sobre o po<strong>de</strong>r<br />

do disfarce e do travestimento – como incitar o <strong>de</strong>sejo<br />

escon<strong>de</strong>ndo o sexo biológico e adotando roupas e hábitos<br />

<strong>de</strong> outro gênero”. (tradução livre <strong>da</strong> autora)<br />

Na mesma direção Wolfgang Osthoff (OSTHOFF, 1967)<br />

afirma que se não tivesse ocorrido a migração <strong>da</strong> ópera<br />

para Veneza, ela hoje seria somente uma curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

cultural do século XVII. No caso especifico <strong>da</strong>s amas,<br />

este travestismo é fixo e inerente pois o ator entra e sai<br />

<strong>de</strong> cena en travesti e tem o público como seu cúmplice<br />

no reconhecimento <strong>de</strong> seu gênero. As amas, assim<br />

como na tragédia grega, são apresenta<strong>da</strong>s em i<strong>da</strong><strong>de</strong> já<br />

avança<strong>da</strong>, em um momento <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> on<strong>de</strong> já não exercem<br />

mais a função <strong>de</strong> amas <strong>de</strong> leite. Elas ain<strong>da</strong> vivem com<br />

os patrões e são governantas ou servas pessoais, o que<br />

era freqüente no cotidiano <strong>da</strong> Veneza seiscentista.<br />

São mulheres em fase <strong>de</strong> pós-menopausa, com a voz<br />

modifica<strong>da</strong> pelas mu<strong>da</strong>nças <strong>de</strong> hormônios, o que reduz<br />

a espessura <strong>da</strong>s cor<strong>da</strong>s vocais, tornando o timbre mais<br />

masculino. Esta característica vocal conduz à escolha<br />

<strong>de</strong> um homem para encenar o papel, <strong>de</strong> certa forma,<br />

obe<strong>de</strong>cendo a lei <strong>da</strong> verossimilhança.<br />

3 - “Non per tutto l’età m’aggrinza”. 2<br />

A primeira ama a aparecer em cena no teatro cantado<br />

é a velha ama <strong>de</strong> Il Santo Alessio, obra <strong>de</strong> Giulio<br />

Rospigliosi musica<strong>da</strong> por Stefano Landi em Roma,<br />

em 1631. A ama <strong>de</strong> Santo Alessio é <strong>de</strong>sprovi<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

comici<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong>senvolve uma função essencialmente<br />

<strong>de</strong> conselheira, seguindo o mo<strong>de</strong>lo clássico <strong>da</strong> velha<br />

Euriclea, personagem <strong>da</strong> Odissea <strong>de</strong> Homero. Já na<br />

cena veneziana, a primeira <strong>de</strong> uma longa série <strong>de</strong> amas,<br />

velhas e alcoviteiras a aparecer é Scarabea que é ama <strong>da</strong><br />

maga Artusia, na ópera <strong>de</strong> Bene<strong>de</strong>tto Ferrari e Francesco<br />

Manelli, La Maga Fulminata, <strong>de</strong> 1638. Esta é a segun<strong>da</strong><br />

ópera representa<strong>da</strong> em Veneza e foi encena<strong>da</strong> no Teatro<br />

San Cassiano pela mesma trupe que, no ano prece<strong>de</strong>nte,<br />

havia representado Androme<strong>da</strong>, dos mesmos autores.<br />

O papel <strong>de</strong> Scarabea foi confiado ao tenor Francesco<br />

d’Assisi Angeletti, que havia cantado o papel <strong>da</strong> <strong>de</strong>usa<br />

Giunone na produção <strong>de</strong> Androme<strong>da</strong>. Infelizmente,<br />

assim como to<strong>da</strong> a obra para teatro musical <strong>de</strong> Manelli,<br />

a partitura <strong>da</strong> Maga Fulminata foi perdi<strong>da</strong>.<br />

A trama <strong>da</strong> Maga Fulminata é similar a <strong>de</strong> um romance<br />

<strong>de</strong> cavalaria. Nela, duas princesas entram em um castelo<br />

e passam por gran<strong>de</strong>s aventuras para salvar seus amados<br />

príncipes, que foram seqüestrados por uma maga terrível.<br />

Na trama, os quatro personagens unidos conseguem<br />

eliminar a maga, fulminando-a e <strong>de</strong>struindo seu reino.<br />

A governanta Scarabea não faz parte <strong>da</strong> trama e as<br />

duas únicas vezes em que aparece em cena sob forma<br />

<strong>de</strong> monólogo, são nas primeiras cenas do terceiro e do<br />

quarto ato. Nas duas vezes Scarabea inicía o ato como um<br />

intermezzo cômico e <strong>de</strong>sta forma po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong><br />

não somente como um protótipo <strong>da</strong> tipologia <strong>de</strong> papéis<br />

<strong>de</strong> velhas amas cômicas, mas também como protótipo<br />

dos futuros intermezzi comici. É importante observar<br />

que existe também um aspecto prático para esta escolha<br />

dramatúrgica relacionado às trocas <strong>de</strong> cenário que eram<br />

feitas exatamente nos momentos <strong>de</strong> cenas cômicas.<br />

Nestas cenas era utiliza<strong>da</strong> somente a parte anterior do<br />

palco, permitindo que a cortina pu<strong>de</strong>sse ficar fecha<strong>da</strong><br />

para possibilitar a troca <strong>de</strong> cenário.<br />

Depois <strong>de</strong> Scarabea, as velhas amas passam a integrar a


trama a ponto <strong>de</strong> tornarem-se fun<strong>da</strong>mentais para o seu<br />

<strong>de</strong>senvolvimento. Mas com a reforma li<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> por Apostolo<br />

Zeno no início do século XVIII, estes papéis cômicos e<br />

secundários, são excluídos <strong>da</strong> trama e passam a ocupar<br />

somente o espaço do intermezzo. Desta forma, verificase<br />

que a história dos personagens grotescos nos libretos<br />

venezianos começa e termina com a função <strong>de</strong> intermezzo,<br />

abrindo e fechando os atos, seguindo a tradição clássica do<br />

Valete et plaudite, dito pelo servo para concluir o espetáculo,<br />

anunciando seu término e solicitando aclamação.<br />

É interessante notar a repercussão que Scarabea<br />

tem na história do libreto veneziano, mesmo que em<br />

diversos prefácios seja questiona<strong>da</strong> a legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>stes personagens secundários no interior <strong>da</strong> trama.<br />

A fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> às regras aristotélicas era a or<strong>de</strong>m do dia<br />

nas discussões entre literatos, sobretudo na famosa<br />

Acca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong>gli Incogniti, que abrigava um gran<strong>de</strong><br />

número <strong>de</strong> libretistas venezianos.<br />

Na publicação do libreto <strong>da</strong> Maga Fulminata, o editor<br />

Giovanni Battista Ferroni comenta sobre a importância<br />

<strong>de</strong> Scarabea na obra, salientando seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sedução:<br />

“[...] Scarabea, velha caduca, contou tão brilhantemente<br />

os seus amores que não teve Juno nem velho que não<br />

se apaixonasse”. No ano seguinte à representação <strong>da</strong><br />

Maga Fulminata, Giulio Strozzi e Francesco Manelli<br />

apresentaram a ópera La Delia. Esta ópera contém uma<br />

homenagem à Scarabea por meio do personagem <strong>de</strong><br />

Ermafrodito, um outro tipo <strong>de</strong> papel cômico que passará a<br />

compor as tramas seiscentistas. No prefácio <strong>de</strong>sta ópera,<br />

o libretista esclarece aos leitores a função e a origem do<br />

personagem Ermafrodito tal como segue:<br />

“Introduzi aqui o hílare dos gregos, e este será o jocoso<br />

Ermafrodito, personagem novo, entre a severi<strong>da</strong><strong>de</strong> do trágico<br />

e o gracejo do cômico, que se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> muito bem nos nossos<br />

palcos”. (tradução livre <strong>da</strong> autora)<br />

Nesta obra, em seu primeiro solilóquio, Ermafrodito se<br />

apresenta e faz referência à sua origem popular associa<strong>da</strong><br />

a Scarabea, que <strong>de</strong> forma curiosa é referi<strong>da</strong> como ama <strong>de</strong><br />

leite, quando antes sua condição era a <strong>de</strong> governanta:<br />

Con lusinghe ladre<br />

Mercurio mio padre<br />

Venere assaggiò<br />

Nacqui di bella Dea<br />

E la nutrice mi fu Scarabea.<br />

L’han già molti udita<br />

Vecchia rimbambita<br />

D’amore cantar,<br />

Ma non è maraviglia<br />

D’una Tiorba, e d’un poeta è<br />

figlia.<br />

Latte Scarabeo<br />

Mi fece un Orfeo<br />

Si lungo, e sottil<br />

Son di Venere figlio<br />

Ma nel restate a Scarabea<br />

simiglio.<br />

COSTA, L. As velhas amas <strong>da</strong>s óperas venezianas seiscentistas... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 26-31<br />

Com ladras lisonjas<br />

Mercúrio meu pai<br />

Provou Vênus<br />

Nasci <strong>de</strong> bela Deusa<br />

E minha ama foi Scarabea<br />

Muitos a ouviram<br />

Velha caduca<br />

Sobre o Amor cantar<br />

Mas não é <strong>de</strong> se maravilhar<br />

De uma Teorba e <strong>de</strong> um poeta é<br />

filha<br />

Leite Scarabesco<br />

Me fez um Orfeo<br />

Tão longo e tão fino<br />

Sou filho <strong>de</strong> Vênus<br />

Mas no resto é a Scarabea que me<br />

assemelho<br />

(tradução livre <strong>da</strong> autora)<br />

As duas aparições <strong>de</strong> Scarabea na Maga Fulminata são<br />

contrastantes. A primeira <strong>de</strong>las é uma auto-apresentação,<br />

que po<strong>de</strong> ser vista como um protótipo <strong>da</strong>s futuras árias<br />

típicas <strong>da</strong>s velhas amas, caracteriza<strong>da</strong>s por uma primeira<br />

parte on<strong>de</strong> se discorre sobre o momento atual <strong>de</strong> velhice.<br />

Na segun<strong>da</strong> parte ela evoca lembranças e saudosismos<br />

<strong>de</strong> uma juventu<strong>de</strong> apaixona<strong>da</strong>. Este mesmo esquema<br />

será utilizado até o final do século XVII, quando este<br />

tipo <strong>de</strong> personagem começa a <strong>de</strong>saparecer. Esta ária <strong>de</strong><br />

Scarabea, <strong>de</strong> oito estrofes, era provavelmente musica<strong>da</strong><br />

como uma simples ária estrófica, mo<strong>de</strong>lo muito utilizado<br />

para personagens cômicos. Neste mo<strong>de</strong>lo, a melodia se<br />

repete a ca<strong>da</strong> estrofe. A primeira estrofe dá idéia do tom<br />

libertino e burlesco <strong>de</strong>sta personagem e permite imaginar<br />

o que esta aparição <strong>de</strong>ve ter representado à percepção do<br />

público seiscentista:<br />

Ciascun mi burla, perché si<br />

vecchia<br />

Io fò l’amor;<br />

Perché la chioma, ch’il tempo<br />

invecchia<br />

Orno di fior,<br />

Cancher vi venga, se ben son<br />

grinza<br />

Io voglio amar;<br />

Che non per tutto l’età<br />

m’aggrinza<br />

Chi vuol giocar?<br />

Todos zombam <strong>de</strong> mim, porque<br />

mesmo tão velha<br />

Eu faço amor;<br />

Porque as mechas,<br />

que o tempo envelhece<br />

Eu orno <strong>de</strong> flores,<br />

Que sejam malditos,<br />

Apesar <strong>de</strong> enruga<strong>da</strong><br />

Eu quero amar;<br />

Que a i<strong>da</strong><strong>de</strong> não me enruga<br />

por inteiro<br />

Quem quer brincar?<br />

(tradução livre <strong>da</strong> autora)<br />

Não se preten<strong>de</strong> esgotar aqui as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s analíticas<br />

sobre as aparições <strong>de</strong> Scarabea. No entanto po<strong>de</strong>-se<br />

afirmar que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Scarabea torna-se quase impossível<br />

encontrar um libreto veneziano no qual esta tipologia<br />

<strong>de</strong> papéis não apareça. Um dos motivos que po<strong>de</strong> ter<br />

colaborado para a proliferação <strong>de</strong>stes personagens nas<br />

cenas venezianas, além <strong>da</strong>s relações entre teatro cantado e<br />

falado, é a afirmação <strong>de</strong>stes personagens na vi<strong>da</strong> cotidiana<br />

veneziana e européia. Como afirma Elisabeth Badinter<br />

(BADINTER, 1980) em seu livro L’amour en plus: “(...) segundo<br />

os numerosos testemunhos, foi no século XVII que o uso <strong>de</strong><br />

amas <strong>de</strong> leite se expandiu entre a burguesia”. Em reforço a<br />

este argumento, o autor Dennis Romano (ROMANO, 1996)<br />

apresenta diversos documentos que comprovam a prática<br />

do uso <strong>de</strong> amas <strong>de</strong> leite e <strong>da</strong> manutenção <strong>da</strong>s velhas servas<br />

por parte <strong>da</strong>s famílias patrícias <strong>da</strong> Sereníssima.<br />

Em meados <strong>de</strong> 1660, a existência <strong>de</strong> uma velha ama entre os<br />

personagens dos libretos venezianos era tão fun<strong>da</strong>mental,<br />

que as óperas que originalmente não as possuíam eram<br />

praticamente conduzi<strong>da</strong>s a complementarem a lista <strong>de</strong><br />

personagens com uma velha ama ou similar. Um exemplo<br />

é a ópera Eritrea do libretista Giovanni Faustini que, em<br />

sua representação <strong>de</strong> 1661, transforma em “camareira e<br />

velha” a personagem Misena, que era na versão original<br />

uma “<strong>da</strong>ma”, a<strong>de</strong>rindo assim ao gosto e à mo<strong>da</strong> <strong>da</strong> época.<br />

Catherine Kintzler (KINTZLER, 2004) em seu livro<br />

Théâtre et opéra à l’âge classique: Une familière<br />

étrangeté, ao analisar a personagem <strong>de</strong> Filaminta, <strong>da</strong><br />

29


30<br />

COSTA, L. As velhas amas <strong>da</strong>s óperas venezianas seiscentistas... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 26-31<br />

peça As Sabichonas <strong>de</strong> Molière, oferece interessantes<br />

argumentos que po<strong>de</strong>m ser estendidos para o caso <strong>da</strong>s<br />

velhas amas operísticas. Por se tratar <strong>de</strong> uma mulher<br />

na menopausa, Filaminta, que também foi representa<strong>da</strong><br />

pela primeira vez por um homem, tem um status viril.<br />

A autora a <strong>de</strong>fine como “quasi-homme”, e traça uma<br />

relação direta entre a infecundi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a sabedoria.<br />

As velhas amas nos libretos operisticos seiscentistas são<br />

as vozes <strong>da</strong> experiência e em parte são ouvi<strong>da</strong>s graças<br />

a este status <strong>de</strong> “quasi-homme”. O auto-conhecimento<br />

e a transmissão do saber estão associados à velhice<br />

<strong>da</strong> mulher e esta fase é também uma ocasião para as<br />

mulheres aceitarem a efemeri<strong>da</strong><strong>de</strong> e a finitu<strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

<strong>de</strong>svinculando-se dos mo<strong>de</strong>los enaltecidos impostos<br />

na juventu<strong>de</strong>. Entre as árias <strong>de</strong> velhas amas verificamse<br />

temáticas <strong>de</strong>sconcertantes como, por exemplo,<br />

o aconselhamento às jovens para que possuam dois<br />

amantes, um pelo prazer e outro por puro interesse, ou<br />

ain<strong>da</strong> cenas on<strong>de</strong> elas se dispõem claramente a pagar<br />

pelo prazer <strong>de</strong> um homem, pelo fato <strong>de</strong> serem velhas<br />

e não atraírem mais amantes. Assim sendo, as velhas<br />

amas cria<strong>da</strong>s por Badoaro, Aureli, Busenello e outros,<br />

são personagens não gratuitamente cômicos que na<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, representam uma tradição <strong>de</strong> teatro popular<br />

e cumprem ao mesmo tempo uma função quase<br />

didática, falando diretamente ao público, sem filtros<br />

e sem preconceitos. O gosto do público transformará<br />

no século seguinte estas velhas amas em jovens<br />

servas, exatamente como ocorreu com a máscara <strong>de</strong><br />

Franceschina. Desta forma <strong>de</strong> Scarabea o mo<strong>de</strong>lo evolui<br />

até a Serva Padrona <strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>rico e Pergolesi, <strong>de</strong>pois à<br />

Zerlina e ain<strong>da</strong> mais tar<strong>de</strong> à Zerbinetta <strong>de</strong> Richard<br />

Strauss. Com o rejuvenescimento do mo<strong>de</strong>lo, o timbre<br />

<strong>da</strong> voz também mu<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma à outra extremi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

como é o caso <strong>de</strong> Zerbinetta.


COSTA, L. As velhas amas <strong>da</strong>s óperas venezianas seiscentistas... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 26-31<br />

Referências<br />

BADINTER, Elisabeth. L’ amour en plus: histoire <strong>de</strong> l’amour maternel (17.-20. siècle),<br />

Paris, Flammarion, 1980.<br />

BIANCONI, Lorenzo; WALKER, Thomas. Dalla Finta pazza alla Veremon<strong>da</strong>: Storie di febiarmonici, Rivista Italiana di<br />

Musicolgia, Florença, Olschki, Vol. 10, p. 380-454, 1975.<br />

FABBRI, Paolo. Il secolo cantante: per una storia <strong>de</strong>l libretto d’Opera nel Seicento, Roma, Bulzoni Editore, 2003.<br />

FERRONE, Siro. Il metodo compositivo <strong>de</strong>lla Commedia <strong>de</strong>ll’Arte. In_ Commedia <strong>de</strong>ll’Arte e spettacolo in musica tra Sei e<br />

Settecento, org. A.Lattanzi e P. Maione, Napoles, I turchini Saggi, 2003.<br />

GRASSI, Paolo. Le maschere <strong>de</strong>lla Commedia <strong>de</strong>ll’Arte. In_ Arte <strong>de</strong>lla maschera nella commedia <strong>de</strong>ll’arte, org. Donato<br />

Sartori e Bruno Lanata, Florença, Usher, 1983.<br />

KINTZLER, Catherine. Théâtre et opéra a l’age classique: une familière étrangeté, Paris, Fayard, 2004.<br />

OSTHOFF, Wolfgang. Maschera e musica, Nuova Rivista Musicale Italiana, Turim, Eri,<br />

vol.1, 1967.<br />

PIRROTTA, Nino. Commedia <strong>de</strong>ll’arte and opera, The Musical Quarterly, Nova Iorque, Schimer, Vol. 41, n. 3, p. 305-324,<br />

1955.<br />

ROMANO, Dennis. Housecraft and statecraft : domestic service in Renaissance Venice, 1400-1600, Baltimore, The Johns<br />

Hopkins University Press, 1996.<br />

STAFFIERI, Gloria. Lo scenario nell’opera in musica <strong>de</strong>l XVII secolo. In_ Le parole <strong>de</strong>lla musica, org. M. T. Muraro, Florença,<br />

Olschki, 1995, p. 3-31.<br />

UBERSFELD, Anne. Lire le theatre, Paris, Editions sociales, 1977.<br />

Ligiana Costa, bolsista <strong>da</strong> CAPES, é doutoran<strong>da</strong> em musicologia no Centro <strong>de</strong> Estudos Superiores <strong>da</strong> Renascença (CESR)<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Tours e <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estatal <strong>de</strong> Milão. Sua formação inclui um bacharelado em canto lírico na UnB<br />

e um mestrado em filologia <strong>de</strong> textos musicais <strong>da</strong> renascença e <strong>da</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> média na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Pavia, Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Musicologia <strong>de</strong> Cremona.<br />

Notas<br />

1 Coleção <strong>de</strong> canovacci Correr.<br />

2 A i<strong>da</strong><strong>de</strong> não me enruga todo o corpo », frase dita pelo personagem <strong>de</strong> Scarabea em La Maga fulminata <strong>de</strong> Bene<strong>de</strong>tto Ferrari.<br />

31


32<br />

CARPENA, L. B. Origens <strong>da</strong> ópera barroca alemã e o Teatro do Mercado dos Gansos... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 32-40<br />

Origens <strong>da</strong> ópera barroca alemã e o<br />

Teatro do Mercado dos Gansos em<br />

Hamburgo nos séculos XVII e XVIII<br />

Lucia Becker Carpena (UFRGS, Porto Alegre)<br />

lcarpena@terra.com.br<br />

Resumo: o artigo apresenta as condições sob as quais o gênero “ópera” foi assimilado pela cultura germânica em meados<br />

do século XVII e <strong>de</strong> que modo os mo<strong>de</strong>los vigentes (a saber: o florentino, o veneziano e o francês) sofreram influências <strong>da</strong><br />

cultura local. Preten<strong>de</strong> ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>monstrar a difusão <strong>da</strong> ópera nos territórios germânicos e, mais especificamente, salientar<br />

a importância <strong>da</strong> criação do Teatro do Mercado dos Gansos (Theater am Gänsemarkt) <strong>de</strong> Hamburgo e sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre<br />

1678 e 1738, como representante exemplar <strong>da</strong> maturi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste processo.<br />

Palavras-chave: ópera barroca, ópera barroca alemã, Theater am Gänsemarkt (Teatro do Mercado dos Gansos).<br />

Origins of the German baroque opera and the Goose Market Theatre in Hamburg in the<br />

seventeenth and eighteenth Centuries<br />

Abstract: this article presents the ways of assimilation of the gen<strong>de</strong>r “opera” by the german culture in the middle<br />

of the seventeenth century and how the local culture influenced contemporary stan<strong>da</strong>rds, to say: the Florentine, the<br />

Venetian and the French operatic styles. Besi<strong>de</strong>s, it tries to show the diffusion of opera in the German territories and<br />

more specifically, to emphasize the importance of the opening of the Theater am Gänsemarkt (Goose Market Theater) in<br />

Hamburg, 1678, as a culmination of this process.<br />

Keywords: baroque opera, German baroque opera, Theater am Gänsemarkt (Goose Market Theatre).<br />

1- As origens e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> ópera<br />

na Alemanha<br />

Se comparado a outros países <strong>da</strong> Europa, o início <strong>da</strong> ópera<br />

na Alemanha ocorreu <strong>de</strong> modo peculiar: não foi o resultado<br />

<strong>da</strong> evolução <strong>de</strong> um gênero, como havia ocorrido na Itália,<br />

nem teve um <strong>de</strong>senvolvimento unificado e centralizado,<br />

como na França. Este processo diferenciado ocorreu em<br />

função <strong>da</strong> estrutura política fragmenta<strong>da</strong> que havia no<br />

território germânico 1 e também, <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s diferenças<br />

culturais entre os territórios, cortes e regiões.<br />

Des<strong>de</strong> muito cedo a ópera <strong>de</strong>spertou gran<strong>de</strong> interesse<br />

nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s e cortes germânicas do sul (região contrareforma<strong>da</strong>),<br />

especialmente na Áustria, on<strong>de</strong> o arcebispo<br />

<strong>de</strong> Salzburgo, Marcus Sitticus von Hohenems havia<br />

contratado o italiano Francesco Rasi em 1612 2 . Como<br />

fruto <strong>de</strong>sta iniciativa, a primeira ópera encena<strong>da</strong> em<br />

território germânico foi apresenta<strong>da</strong> em Salzburgo em 27<br />

<strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1614 (num palco especialmente construído<br />

para este fim), pouco tempo após o surgimento do<br />

dramma per musica em Florença 3 . Logo em segui<strong>da</strong>, no<br />

dia 10 <strong>de</strong> fevereiro, foi apresenta<strong>da</strong> uma versão <strong>de</strong> Orfeo,<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.17, 68 p., jan. - jun., 2008<br />

que WARRACK acredita que tenha sido a <strong>de</strong> Monteverdi,<br />

<strong>de</strong>vido à presença <strong>de</strong> Rasi na corte (2001, p.17). Depois<br />

<strong>de</strong> Salzburgo, a ópera trilhou um caminho em direção<br />

ao centro e ao norte <strong>da</strong> Alemanha, passando por Viena<br />

(1626), Praga (1627) e Torgau (1627), nas regiões contrareforma<strong>da</strong>s<br />

na Alemanha.<br />

“Enquanto Viena já começou com óperas italianas [em<br />

italiano], algumas <strong>da</strong>s cortes do norte fizeram esforços<br />

no sentido <strong>de</strong> apresentar óperas em alemão” (DENT,<br />

1944, p.221). Em geral, tratava-se <strong>de</strong> óperas italianas<br />

traduzi<strong>da</strong>s para o alemão, como a Dafne (1627) <strong>de</strong> Martin<br />

Optiz 4 (1597-1639) e Heinrich Schütz (1585-1672),<br />

a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> do libreto <strong>de</strong> Ottavio Rinuccini (1562-1621).<br />

Entretanto, este processo <strong>de</strong> difusão <strong>da</strong> ópera, assim<br />

como to<strong>da</strong> e qualquer ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> artística, foi praticamente<br />

interrompido pela Guerra dos Trinta Anos (1618-1648),<br />

que atingiu profun<strong>da</strong>mente os territórios germânicos.<br />

Além <strong>de</strong> ter reduzido a população <strong>de</strong> 30 para 20 milhões<br />

<strong>de</strong> habitantes, a guerra <strong>de</strong>struiu a economia <strong>da</strong> região.<br />

Recebido em: 02/09/2007 - Aprovado em: 22/02/2008


CARPENA, L. B. Origens <strong>da</strong> ópera barroca alemã e o Teatro do Mercado dos Gansos... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 32-40<br />

Termina<strong>da</strong> a guerra, várias cortes germânicas (especialmente<br />

Viena, Munique e Dres<strong>de</strong>n) se reestruturaram e passaram a<br />

se interessar pela ópera italiana e pela criação <strong>de</strong> óperas em<br />

território germânico, e com isso, ao redor <strong>de</strong> 1675, iniciouse<br />

em várias cortes e ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s comercialmente importantes<br />

um movimento em direção à criação <strong>de</strong> óperas em alemão,<br />

sem que contudo houvesse um projeto político para isso<br />

ou mesmo um gran<strong>de</strong> centro produtor e difusor <strong>de</strong> óperas<br />

(como o eram Paris ou Londres). O que se viu foram várias<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s e cortes que cultivaram a ópera <strong>de</strong> forma mais ou<br />

menos autônoma: no sul havia a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Nurembergue<br />

e as cortes <strong>de</strong> Ansbach, Durlach e Bayreuth; na região<br />

central, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Leipzig (importante pólo comercial) e as<br />

cortes <strong>de</strong> Weiâenfels, Altenburg e Meiningen. Entretanto,<br />

segundo GROUT (1946, p.577), por estarem mais distantes<br />

“do po<strong>de</strong>r imperial [sediado em Viena] e <strong>da</strong> influência<br />

cultural italiana”, as regiões central e norte foram as que<br />

li<strong>da</strong>ram <strong>de</strong> forma mais criativa e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte com os<br />

mo<strong>de</strong>los musicais <strong>da</strong> época.<br />

O mapa abaixo mostra to<strong>da</strong>s as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s e cortes germânicas<br />

que possuíam teatros <strong>de</strong> ópera ou apresentaram óperas<br />

ao longo dos séculos XVII e XVIII, e permite i<strong>de</strong>ntificar a<br />

concentração <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> operística na região centronorte<br />

<strong>da</strong> Alemanha.<br />

Foi ao norte <strong>da</strong> Alemanha, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Hamburgo e nas<br />

cortes <strong>de</strong> Braunschweig-Wolfenbüttel e Hannover que<br />

a ópera teve melhores condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

autônomo e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. As duas cortes mostraramse<br />

receptivas ao novo gênero, principalmente por sua<br />

orientação <strong>de</strong>clara<strong>da</strong>mente francófila (que as levou<br />

a encenar muitas óperas francesas) e pela presença<br />

<strong>de</strong> Agostino Steffani (1654-1728) como compositor e<br />

diplomata em Hannover.<br />

Vários mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> ópera <strong>de</strong> diferentes períodos chegaram<br />

à Alemanha na meta<strong>de</strong> do século XVII, não mais tão<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do mo<strong>de</strong>lo original e pioneiro criado em<br />

Florença ao final do século XVI, do recitar cantando.<br />

Apresentava mais momentos cantados, elaborados e<br />

extensos, como a ópera Il Pari<strong>de</strong>, <strong>de</strong> Giovanni Bontempi<br />

(c.1624-1705), estrea<strong>da</strong> em 1662, em Dres<strong>de</strong>n, e que tinha<br />

características venezianas e também <strong>da</strong> escola romana <strong>de</strong><br />

Domenico Mazzocchi (1592-1665) (NGDO, 1997).<br />

Fig.1: ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s e cortes alemãs com ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> operística ao longo dos séculos XVII e XVIII (BROCKPÄHLER, 1964, p.25).<br />

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34<br />

CARPENA, L. B. Origens <strong>da</strong> ópera barroca alemã e o Teatro do Mercado dos Gansos... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 32-40<br />

2- A Dafne <strong>de</strong> Schütz – a primeira ópera<br />

alemã?<br />

Foi em Torgau, residência do duque <strong>da</strong> Saxônia, que<br />

surgiu aquela que é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> por muitos como<br />

a primeira ópera alemã: Dafne, <strong>de</strong> Optiz e Schütz,<br />

encomen<strong>da</strong><strong>da</strong> para celebrar o casamento <strong>da</strong> princesa<br />

Sophie Eleonore <strong>da</strong> Saxônia com o Landgraf Georg II <strong>de</strong><br />

Hessen-Darmstadt e encena<strong>da</strong> em 13 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1627,<br />

no castelo <strong>de</strong> Hartenfels. A pedido do eleitor Georg I, pai<br />

<strong>da</strong> noiva, foi provi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong> uma cópia do libreto <strong>da</strong> Dafne<br />

<strong>de</strong> Peri 5 e, apesar <strong>de</strong> o libreto <strong>de</strong> Torgau ser uma tradução<br />

<strong>de</strong> Optiz para o alemão do texto original <strong>de</strong> Rinuccini,<br />

houve alguma contribuição original do tradutor para o<br />

libreto (como se comprova pelo frontispício do libreto) 6<br />

(WARRACK, 2001, p.18).<br />

A música era totalmente original, composta por um<br />

músico alemão e canta<strong>da</strong> em alemão, mas infelizmente<br />

a partitura foi perdi<strong>da</strong>, <strong>de</strong> modo que não po<strong>de</strong>mos saber<br />

como era esta primeira ópera escrita na Alemanha, mas<br />

WARRACK afirma que a narrativa era acompanha<strong>da</strong> por<br />

canções estróficas, <strong>da</strong>nças e coros e “como ópera, não<br />

parece ter representado um avanço qualitativo em relação<br />

ao exemplo germânico pré-existente” 7 (2001, p.18-19).<br />

Outro fator a ser levado em consi<strong>de</strong>ração foi que a<br />

segun<strong>da</strong> estadia <strong>de</strong> Schütz em Veneza ocorreu apenas<br />

a partir do ano seguinte à estréia <strong>de</strong> Dafne, o que é<br />

Fig.2: frontispício <strong>de</strong> Dafne.<br />

muito relevante, uma vez que foi apenas nesta época<br />

que Schütz conheceu Monteverdi e tomou contato com<br />

seus processos <strong>de</strong> composição e a ópera contemporânea.<br />

Como o próprio Schütz afirmou mais tar<strong>de</strong>, em uma carta<br />

escrita em 1633 a seu amigo Frie<strong>de</strong>rich Lezpzelter:<br />

Em minha recente viagem à Itália, tive contato com um tipo especial<br />

<strong>de</strong> composição, a saber, como uma comédia [Comedi] a muitas<br />

vozes po<strong>de</strong>ria ser traduzi<strong>da</strong> para o estilo recitativo [re<strong>de</strong>n<strong>de</strong> Stylo]<br />

e como po<strong>de</strong>ria ser encena<strong>da</strong> no palco <strong>de</strong> forma canta<strong>da</strong>, coisas<br />

as quais (<strong>de</strong>ste tipo, penso eu) são totalmente <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s na<br />

Alemanha [Teutschland 8 ] e que, por conta dos tempos difíceis 9<br />

não pu<strong>de</strong>ram até agora ser pratica<strong>da</strong>s nem ser encoraja<strong>da</strong>s<br />

aqui, e portanto eu consi<strong>de</strong>ro uma pena que estas invenções<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente majestosas e principescas (entre as quais a<br />

minha música não contaria (...)) tenham sido negligencia<strong>da</strong>s, não<br />

sejam conheci<strong>da</strong>s e pratica<strong>da</strong>s por outros <strong>de</strong> melhor engenho [que<br />

o próprio Schütz] (in: WARRACK, 2001, p.19).<br />

Em 1638 seguiu-se a esta outra ópera <strong>de</strong> inspiração<br />

florentina, Orpheus und Euridice: tratava-se <strong>de</strong> uma<br />

ópera-balé em cinco atos (igualmente perdi<strong>da</strong>), com<br />

música <strong>de</strong> Schütz sobre uma tradução feita por Optiz a<br />

partir do libreto <strong>de</strong> mesmo nome <strong>de</strong> Rinuccini. Entretanto,<br />

apesar <strong>de</strong>stas e <strong>de</strong> outras tentativas, foi apenas em 1644<br />

que estreou em Nurembergue a obra intitula<strong>da</strong> Seelewig,<br />

<strong>de</strong> Georg Phillip Harsdörfer (1607-1658) e Sigismund<br />

Theophil (Gottlieb) Sta<strong>de</strong>n (1607-1655), consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> por<br />

parte <strong>da</strong> historiografia a primeira ópera com características<br />

diferentes do mo<strong>de</strong>lo italiano em voga e que seriam


CARPENA, L. B. Origens <strong>da</strong> ópera barroca alemã e o Teatro do Mercado dos Gansos... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 32-40<br />

representativas <strong>da</strong> tradição alemã, como o uso <strong>de</strong> canções<br />

estróficas 10 e o fato <strong>de</strong> a obra ser totalmente canta<strong>da</strong>,<br />

sem os recitativos à italiana. Seguiram-se a ela outras<br />

óperas, entre elas: Armelin<strong>de</strong> (“Singe-spiel”, 1657), com<br />

libreto do Duque <strong>de</strong> Braunschweig 11 e música <strong>de</strong> Johann<br />

Jakob Löwe (1629-1703) (música perdi<strong>da</strong>); Orpheus aus<br />

Tracien (“Tragisches Gedicht”, 1659), mesmos autores<br />

(música perdi<strong>da</strong>) e A<strong>da</strong>m und Eva (“Singe-spiel”, 1678)<br />

com libreto <strong>de</strong> Christian Richter (?-?) e música <strong>de</strong> Johann<br />

Theile (1646-1724) (obra que inaugurou o Theater am<br />

Gänsemarkt <strong>de</strong> Hamburgo).<br />

Ao contrário do que ocorreu na França, os territórios<br />

germânicos não conheceram o balé como espetáculo<br />

autônomo, que foi um dos elementos que contribuíram<br />

para o estabelecimento do padrão francês <strong>de</strong> ópera.<br />

To<strong>da</strong>via os balés franceses foram incorporados à ópera<br />

alemã, tornando-se parte importante do espetáculo, tão<br />

importante que a maior parte dos teatros contratava<br />

Balletmeister franceses para criar coreografias e treinar<br />

os bailarinos. HANS-JOACHIM MOSER (1922) consi<strong>de</strong>ra<br />

que uma <strong>da</strong>s origens <strong>da</strong> ópera alemã po<strong>de</strong> ter sido a<br />

presença <strong>de</strong> atores ingleses em terras germânicas no<br />

começo do século XVII (especialmente no norte), “com<br />

seus jigs and drolls” (farsas canta<strong>da</strong>s com canções<br />

populares) (DENT, 1944, p.221), além <strong>da</strong>s apresentações<br />

<strong>de</strong> peças <strong>de</strong> Shakespeare e <strong>de</strong> dramas elisabetanos.<br />

Também concorreram para a criação <strong>da</strong> ópera na<br />

Alemanha as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s literárias <strong>da</strong> época, espécie <strong>de</strong><br />

cameratas, como as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s italianas dos séculos<br />

XVI e XVII. Estas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, ou aca<strong>de</strong>mias, tinham por<br />

objetivo estruturar a língua alemã (ain<strong>da</strong> em processo<br />

<strong>de</strong> normatização), estimular a produção literária neste<br />

idioma (especialmente no tocante à quali<strong>da</strong><strong>de</strong>) e<br />

estu<strong>da</strong>r a literatura estrangeira (francesa e italiana)<br />

(JAACKS, 1989, p.12-14). Este talvez fosse o objetivo<br />

mais importante <strong>de</strong>stas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, que, a partir<br />

dos mo<strong>de</strong>los estrangeiros (especialmente <strong>da</strong> poesia<br />

italiana), procuraram <strong>de</strong>finir formas e procedimentos<br />

para a poesia alemã, incluí<strong>da</strong>s aí a normatização<br />

<strong>da</strong> métrica e <strong>da</strong> rima. Em Hamburgo existiram duas<br />

<strong>da</strong>s mais importantes aca<strong>de</strong>mias alemãs <strong>da</strong> época,<br />

que se revelaram <strong>de</strong> importância crucial para o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> ópera na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Os dramas religiosos <strong>de</strong> tom moralizante, fossem eles<br />

os mistérios medievais ou os dramas escolásticos <strong>da</strong><br />

Reforma e <strong>da</strong> Contra-Reforma (principalmente os<br />

jesuítas), também foram muito importantes para a<br />

criação <strong>da</strong> ópera alemã e sua contribuição para o novo<br />

gênero se <strong>de</strong>u através do uso <strong>de</strong> canções estróficas<br />

<strong>de</strong> melodias simples, populares, fáceis <strong>de</strong> memorizar.<br />

Muitos <strong>de</strong>stes dramas do século XVI incluíam <strong>da</strong>nças<br />

instrumentais, canções solo e peças corais, que<br />

também seriam aproveita<strong>da</strong>s nas primeiras óperas.<br />

A partir do século XVII a parte musical dos dramas<br />

passaria a ser mais extensa, <strong>de</strong>sempenhando um papel<br />

mais importante no espetáculo.<br />

3- Consi<strong>de</strong>rações sobre a ópera “alemã”<br />

As condições que proporcionaram o surgimento <strong>da</strong><br />

ópera na Alemanha fazem com que seja difícil <strong>de</strong>finir o<br />

que tenha sido a ópera alemã em seu princípio. Como<br />

diz GROUT (1988, p.129), do ponto <strong>de</strong> vista teórico, uma<br />

ópera genuinamente alemã seria aquela composta por<br />

alemães, com tema e libreto originais em alemão, para<br />

uma platéia alemã, canta<strong>da</strong> em alemão, com músicos e<br />

cantores alemães, <strong>de</strong> acordo com o estilo musical vigente<br />

na Alemanha, assim como havia ocorrido em maior ou<br />

menor grau na Itália e na França 12 .<br />

O que se tem é um quadro diferente do proposto por Grout:<br />

a incipiente música dramática secular alemã envolveu, em<br />

sua maior parte, compositores e cantores estrangeiros,<br />

apresentando-se para um público alemão cujo gosto era<br />

baseado em mo<strong>de</strong>los franceses e italianos; havia ain<strong>da</strong><br />

os libretos, quase todos em italiano ou em traduções do<br />

italiano para o alemão. E ain<strong>da</strong> no caso dos compositores<br />

alemães, estes escreviam em estilo italiano ou francês. Uma<br />

<strong>da</strong>s explicações possíveis para esta situação complexa é a<br />

Guerra dos Trinta Anos, que <strong>de</strong>struiu a estrutura política,<br />

econômica e cultural dos estados que compunham o<br />

Sacro Império Romano Germânico, tornando-o, como<br />

já referimos, suscetível à influência <strong>da</strong> música <strong>de</strong> outras<br />

tradições européias (GROUT, 1946, p.575). Esta influência<br />

se manifestou no gran<strong>de</strong> uso <strong>de</strong> estrangeirismos na língua<br />

alemã, na adoção do francês como língua culta em muitas<br />

<strong>da</strong>s cortes, no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> imitação do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Versalhes,<br />

que representava a glória e o esplendor <strong>de</strong> uma nação<br />

unifica<strong>da</strong>. Este comportamento não foi exclusivamente<br />

germânico; manifestou-se <strong>de</strong> modo semelhante em outras<br />

cortes européias. Porém, ao contrário <strong>da</strong> ópera francesa,<br />

cuja existência estava liga<strong>da</strong> única e exclusivamente ao<br />

rei, a ópera alemã também seguiu o caminho burguês<br />

<strong>da</strong> ópera veneziana, orienta<strong>da</strong> para o público pagante.<br />

Diferentemente <strong>da</strong> ópera francesa, que buscou a criação <strong>de</strong><br />

um gênero universalmente aceito, difusor e representante<br />

do po<strong>de</strong>r absoluto <strong>de</strong> Luís XIV, a ópera na Alemanha,<br />

principalmente a burguesa, trilhou o caminho <strong>da</strong><br />

originali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> inovação e <strong>da</strong> renovação permanentes.<br />

De modo geral, a incipiente ópera alemã baseou-se no<br />

mo<strong>de</strong>lo florentino <strong>de</strong> dramma per musica, em cinco atos,<br />

mas rapi<strong>da</strong>mente incorporou influências venezianas,<br />

resultando na estrutura “abertura-segui<strong>da</strong>-<strong>de</strong>-três-atos”.<br />

Aliás, a ópera <strong>de</strong> Hamburgo foi especialmente influencia<strong>da</strong><br />

pelo gênero veneziano, além <strong>de</strong> ter em comum com a<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Veneza o fato <strong>de</strong> também ser um porto, uma<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> cosmopolita e um importante pólo comercial.<br />

O material musical <strong>de</strong>sta ópera alemã era constituído<br />

basicamente por canções silábicas, em geral estróficas, <strong>de</strong><br />

origem popular, e também por Lie<strong>de</strong>r (canções) solo, nos<br />

mol<strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvidos por Heinrich Albert (1604-1651)<br />

e A<strong>da</strong>m Krieger (1644-1666) na meta<strong>de</strong> do século XVII.<br />

De modo geral, as canções tinham caráter popular, em<br />

padrões rítmicos regulares, sem ornamentação melódica.<br />

Havia também muitos exemplos <strong>de</strong> canções na chama<strong>da</strong><br />

Barform (AAB), padrão típico <strong>da</strong> época dos Minnesänger.<br />

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36<br />

CARPENA, L. B. Origens <strong>da</strong> ópera barroca alemã e o Teatro do Mercado dos Gansos... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 32-40<br />

A partir do final do século XVII, a ária <strong>da</strong> capo seria o<br />

padrão adotado, com predominância <strong>da</strong>s árias para voz<br />

solo e raros duetos (o que rapi<strong>da</strong>mente passaria a gerar<br />

monotonia para o público, motivando a criação <strong>de</strong> árias<br />

com mais vozes) (GROUT, 1946, p.584).<br />

Como foi dito, no início foram muito comuns as traduções<br />

<strong>de</strong> libretos italianos originais, com a criação apenas <strong>de</strong><br />

nova música (como no caso <strong>da</strong> Dafne <strong>de</strong> Schütz), mas com<br />

o passar do tempo, rapi<strong>da</strong>mente este aspecto foi sendo<br />

modificado: os libretos eram escritos diretamente em<br />

alemão e, apesar <strong>de</strong> manterem a mitologia greco-romana<br />

como fonte importante, os temas <strong>da</strong>s óperas passaram a<br />

ser extraídos também <strong>da</strong> história alemã ou <strong>da</strong> Bíblia, ao<br />

contrário do mo<strong>de</strong>lo estabelecido na ópera italiana (cujos<br />

temas eram em sua maioria mitológicos 13 ) 14 . A influência<br />

francesa manifestou-se especialmente através <strong>da</strong> abertura<br />

triparti<strong>da</strong> (lento-rápido-lento) e <strong>da</strong> inclusão <strong>de</strong> <strong>da</strong>nças ou<br />

movimentos <strong>de</strong> <strong>da</strong>nça durante os atos e no final <strong>da</strong>s óperas.<br />

Outra herança francesa foi a importância <strong>da</strong><strong>da</strong> ao coro e<br />

o trabalho musical mais elaborado na música instrumental<br />

(dissocia<strong>da</strong> <strong>da</strong> ação), em sinfonias, balés e divertimentos.<br />

Entre os fatos mais importantes que marcaram a fase inicial<br />

<strong>da</strong> ópera alemã estão a criação <strong>de</strong> Seelewig, em 1644, e<br />

a presença do compositor italiano Agostino Steffani na<br />

Alemanha, principalmente na corte Hannover.<br />

4- Seelewig<br />

Intitula<strong>da</strong> Die geistliche Waldgedicht o<strong>de</strong>r Freu<strong>de</strong>nspiel,<br />

gennant Seelewig, Gesangsweis auf Italienische Art<br />

gesetzt (Pastoral espiritual ou alegre peça, intitula<strong>da</strong><br />

Seelewig, escrita à maneira italiana <strong>de</strong> cantar), a obra foi<br />

fruto do trabalho <strong>de</strong> Harsdörfer e Sta<strong>de</strong>n e apresenta<strong>da</strong><br />

em Nurembergue em 1644. Sua importância resi<strong>de</strong> no<br />

fato <strong>de</strong> ser o mais antigo dos libretos <strong>de</strong> música dramática<br />

secular alemã cuja partitura também sobreviveu 15 . Ao que<br />

se sabe, é também a tentativa mais antiga <strong>de</strong> criação <strong>de</strong><br />

uma ópera com traços <strong>de</strong> originali<strong>da</strong><strong>de</strong> em relação aos<br />

mo<strong>de</strong>los italianos vigentes, por meio <strong>da</strong> introdução <strong>de</strong><br />

elementos germânicos, como o uso do idioma alemão,<br />

<strong>da</strong>s canções estróficas (<strong>de</strong> uso corrente e extremamente<br />

populares na Alemanha), <strong>de</strong> gêneros poéticos <strong>da</strong> poesia<br />

alemã e também, <strong>da</strong> instrumentação em uso na época (<strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> conjunto instrumental misto). A partitura indica<br />

uma orquestra renascentista, composta por três violinos,<br />

três flautas doces, três Schalmeyen 16 (sopros <strong>de</strong> palheta<br />

dupla), um grobes Horn (trompa) e uma teorba.<br />

A publicação <strong>da</strong> obra aconteceu <strong>de</strong> forma curiosa, em<br />

1644, no quarto volume <strong>de</strong> um periódico chamado<br />

Frauenzimmer Gesprächspiele. Nele o poeta apresenta<br />

sua obra acompanhando-se ao alaú<strong>de</strong> e a interrompe<br />

continuamente para analisar e comentar ca<strong>da</strong> trecho<br />

com seus companheiros <strong>de</strong> conversa 17 . Na discussão<br />

estão temas como a poesia e o drama alemão<br />

contemporâneos e a a<strong>de</strong>quabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> língua alemã<br />

para o drama pastoral, bastante atuais em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />

aca<strong>de</strong>mias literárias, tão em voga na época 18 . Trata-se<br />

<strong>de</strong> uma iniciativa totalmente original para a época, uma<br />

vez que “quaisquer afirmações <strong>de</strong> caráter teórico sobre<br />

ópera são uma rari<strong>da</strong><strong>de</strong> antes <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> ópera <strong>de</strong><br />

Hamburgo, em 1678” (HUFF, 1998, p.346). Por trás <strong>de</strong>sta<br />

atitu<strong>de</strong> inédita, <strong>de</strong> análise do conjunto, po<strong>de</strong>-se perceber<br />

uma postura algo in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do autor, normalmente<br />

inviável por causa <strong>da</strong> estreita ligação entre o mecenato<br />

privado e a produção <strong>de</strong> óperas. Um dos motivos para esta<br />

atitu<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser que, uma vez que a criação <strong>de</strong> Seelewig<br />

não esteve diretamente relaciona<strong>da</strong> ao patrocínio <strong>de</strong><br />

príncipes, Harsdörfer possivelmente sentiu-se livre para<br />

tecer seus próprios comentários <strong>de</strong> forma in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.<br />

Huff <strong>de</strong>fine as inovações propostas por Harsdörfer e que<br />

po<strong>de</strong>m ser caracteriza<strong>da</strong>s como “quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s alemãs” (e<br />

que por isso fariam <strong>de</strong> Seelewig uma ópera alemã): escolha<br />

do nome <strong>da</strong> peça como Singspiel (termo em alemão) e<br />

não opera ou dramma per musica (em italiano); todos os<br />

personagens são alegóricos, têm nomes germanizados<br />

e não são tirados <strong>da</strong> mitologia greco-latina, como, por<br />

exemplo, Sinnigun<strong>da</strong> (a Sensuali<strong>da</strong><strong>de</strong>) e Gwissul<strong>da</strong> (a<br />

Consciência); o tema é claramente protestante: a salvação<br />

<strong>da</strong> alma escraviza<strong>da</strong> (no caso, a <strong>de</strong> Seelewig pela volúpia)<br />

ocorre pela intercessão divina e há a inclusão <strong>de</strong> um coral<br />

luterano no <strong>de</strong>correr <strong>da</strong> ação.<br />

5- Agostino Steffani<br />

No século XVII havia no norte <strong>da</strong> Alemanha um número<br />

relativamente pequeno <strong>de</strong> compositores alemães<br />

envolvidos na composição <strong>de</strong> música dramática (secular<br />

ou não), concentrados nas cortes <strong>de</strong> Braunschweig e<br />

Hannover e nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Hamburgo e Leipzig. Sabe-se<br />

que havia muito contato entre eles; prova disso é o fato<br />

<strong>de</strong> uma mesma ópera ser apresenta<strong>da</strong> em várias ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

o que gerou a rápi<strong>da</strong> difusão <strong>de</strong>ste novo gênero. Entre<br />

estes pioneiros, estavam os primeiros compositores do<br />

teatro <strong>de</strong> ópera <strong>de</strong> Hamburgo: Johann Theile, Nikolaus<br />

A. Strungk e Johann Franck (1644-1710). Como já<br />

mencionado, os compositores que se <strong>de</strong>dicavam à ópera<br />

eram em sua maioria italianos e escreviam no estilo<br />

vigente e conhecido, sem promover inovações ou trazer<br />

novo impulso ao <strong>de</strong>senvolvimento do gênero em território<br />

germânico. O único italiano a contribuir significativamente<br />

para a transição <strong>da</strong> ópera do século XVII para o XVIII foi<br />

Steffani 19 , contemporâneo <strong>de</strong> Arcangelo Corelli (1653-<br />

1713), Johann Pachelbel (1653-1706), Henry Purcell<br />

(1659-1695) e Alessandro Scarlatti (1660-1725).<br />

A importância <strong>de</strong> Steffani para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong><br />

ópera na Alemanha resi<strong>de</strong> principalmente no fato <strong>de</strong><br />

que, apesar <strong>de</strong> ter usado o mo<strong>de</strong>lo italiano <strong>de</strong> ópera<br />

em voga no tocante à forma e à estrutura, ele utilizou<br />

preferencialmente libretos cujos temas eram extraídos<br />

<strong>da</strong> história germânica, como Alarico in Baltha (1687)<br />

e Henrico Leone (1689). Naturalmente também foram<br />

utilizados temas mitológicos, mas a escolha <strong>de</strong> temas<br />

germânicos indica um passo importante em direção<br />

à criação <strong>da</strong> ópera com raízes alemãs. Do ponto <strong>de</strong><br />

vista <strong>da</strong> estrutura formal <strong>de</strong> suas óperas, nota-se o uso<br />

regular do binômio recitativo-ária, com poucos duetos


CARPENA, L. B. Origens <strong>da</strong> ópera barroca alemã e o Teatro do Mercado dos Gansos... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 32-40<br />

e recitativos acompanhados. Entretanto, é do ponto <strong>de</strong><br />

vista interno dos processos <strong>de</strong> composição que Steffani<br />

trouxe maiores inovações ao transformar o caráter<br />

homofônico do acompanhamento em direção a um<br />

mo<strong>de</strong>lo mais contrapontístico, com o baixo contínuo<br />

mais in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, numa textura semelhante à <strong>da</strong> futura<br />

trio-sonata. Também o canto adquiriu maior refinamento<br />

por causa do tratamento instrumental <strong>da</strong>do à voz, mais<br />

cheia <strong>de</strong> coloraturas e passagens virtuosísticas, <strong>de</strong>riva<strong>da</strong>s<br />

não apenas <strong>de</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s dramáticas, mas também<br />

<strong>de</strong> idéias puramente musicais. Entre outros elementos<br />

inovadores atribuídos a Steffani, o compositor indica a<br />

participação <strong>de</strong> um instrumento obbligato; é <strong>de</strong>le, por<br />

exemplo, a ária mais antiga para oboé obbligato <strong>de</strong> que<br />

se tem notícia, em 1673. A novi<strong>da</strong><strong>de</strong> está não apenas na<br />

participação <strong>de</strong> instrumentos em uma ária inteira (ao<br />

invés <strong>da</strong>s participações fragmenta<strong>da</strong>s encontra<strong>da</strong>s nas<br />

óperas <strong>de</strong> Lully, por exemplo), mas também em <strong>de</strong>finir os<br />

instrumentos, especificando-os.<br />

6 - O Teatro do Mercado dos Gansos <strong>de</strong><br />

Hamburgo<br />

Fun<strong>da</strong>do em 12 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1678, o Theater am<br />

Gänsemarkt foi o primeiro teatro <strong>de</strong> ópera público <strong>da</strong><br />

Europa fora <strong>de</strong> Veneza e gerou uma fusão interessante<br />

<strong>da</strong> aristocracia com a burguesia. Entre o público<br />

freqüentador do teatro estavam não somente nobres,<br />

políticos, diplomatas e ricos comerciantes, mas também<br />

confeiteiros, cervejeiros, ourives, livreiros, cocheiros e<br />

aprendizes, entre outros, e para ca<strong>da</strong> categoria havia<br />

um lugar <strong>de</strong>terminado no teatro. A distribuição dos<br />

lugares era rígi<strong>da</strong>, conforme a profissão e classe social do<br />

público 20 , e é uma mostra <strong>da</strong> estratificação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

hamburguesa <strong>da</strong> época.<br />

O mo<strong>de</strong>lo adotado pela recém-cria<strong>da</strong> Ópera <strong>de</strong> Hamburgo<br />

foi o <strong>da</strong> ópera italiana, basea<strong>da</strong> no contraste entre<br />

recitativo e ária, mas não aquele <strong>da</strong> monodia apresenta<strong>da</strong><br />

em caráter privado, cria<strong>da</strong> em Florença e já em <strong>de</strong>suso,<br />

nem os oratórios (óperas religiosas) romanos e sim, o<br />

mo<strong>de</strong>lo veneziano, burguês e também mais mo<strong>de</strong>rno.<br />

Entre as principais características copia<strong>da</strong>s do sistema<br />

veneziano <strong>de</strong> administração temos, segundo WOLFF<br />

(1971, p.10), o sistema <strong>de</strong> empreendimento autônomo,<br />

encabeçado por um administrador (profissional ou não)<br />

e a entra<strong>da</strong> do público mediante pagamento. No que diz<br />

respeito às óperas propriamente ditas, aparecem os i<strong>de</strong>ais<br />

<strong>da</strong> corte misturados a temas populares, a influência <strong>de</strong><br />

commedia <strong>de</strong>ll´arte (com a presença <strong>de</strong> um personagem<br />

cômico, geralmente um criado do personagem principal),<br />

um “aburguesamento” dos i<strong>de</strong>ais aristocráticos e um maior<br />

realismo no tratamento dos problemas amorosos. No caso<br />

dos personagens cômicos, <strong>de</strong> caráter popular, a influência<br />

não é apenas italiana; reflete igualmente os personagens<br />

que faziam tanto sucesso nas trupes <strong>de</strong> comediantes<br />

ingleses, holan<strong>de</strong>ses e alemães que passavam pela<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Os tipos populares tinham imenso apelo junto ao<br />

público do Theater am Gänsemarkt, principalmente por se<br />

expressarem no dialeto <strong>da</strong> região, o Platt<strong>de</strong>utsch. Além<br />

disso, seu humor baixo, freqüentemente vulgar, agra<strong>da</strong>va<br />

pelo gran<strong>de</strong> contraste que fazia com os personagens<br />

aristocratas, letrados.<br />

A partir do padrão em cinco atos <strong>da</strong> ópera que inaugurou<br />

o teatro, A<strong>da</strong>m und Eva, os compositores <strong>de</strong> Hamburgo<br />

<strong>de</strong>senvolveram uma intrinca<strong>da</strong> arquitetura musical, cuja<br />

estrutura era <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> pela disposição <strong>de</strong> recitativos e árias,<br />

somados a balés, coros e música instrumental inci<strong>de</strong>ntal,<br />

que possuíam entre si relações temático-motívicas e<br />

tonais. Destas relações resultaram obras coesas do ponto<br />

<strong>de</strong> vista dramático, on<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> ação é cui<strong>da</strong>dosamente<br />

planeja<strong>da</strong>, valorizando o libreto (WOLFF, 1957, p.19).<br />

É importante ressaltar que este conceito <strong>de</strong> relação<br />

temático-melódica entre recitativo e ária é praticamente<br />

uma novi<strong>da</strong><strong>de</strong> na época. Os recitativos <strong>de</strong> Hamburgo<br />

partiram inicialmente do mo<strong>de</strong>lo italiano eram, porém,<br />

mais melódicos e ariosos do que o mo<strong>de</strong>lo secco italiano,<br />

transformando-se mais tar<strong>de</strong> em seções mais fala<strong>da</strong>s que<br />

canta<strong>da</strong>s. As árias tiveram como precursoras as coleções<br />

<strong>de</strong> canções edita<strong>da</strong>s em Hamburgo por Johann Rist (em<br />

1651), Jacob Schweiger (em 1654), Johann Schopp (em<br />

1655) e Caspar Stielen (em 1660), que tinham por base<br />

as <strong>da</strong>nças alemãs <strong>de</strong> forma em geral binária, com textos<br />

silábicos e estróficos 21 .<br />

Os temas <strong>da</strong>s óperas <strong>de</strong> Hamburgo eram inicialmente<br />

religiosos (por causa <strong>da</strong> severa censura <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

religiosas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>) ou tomados <strong>da</strong> mitologia e <strong>da</strong> história<br />

antiga (Babilônia, Pérsia, Egito, Roma, Grécia). No caso<br />

<strong>da</strong>s primeiras óperas, <strong>de</strong> temática bíblica, estas na<strong>da</strong><br />

mais eram do que os antigos dramas religiosos medievais<br />

a<strong>da</strong>ptados ao novo gênero. Eventualmente eram escolhidos<br />

temas <strong>da</strong> história (recente ou não), como Cara Mustapha<br />

(Bostel/Franck, 1686), Störtebecker (Hotter/Keiser, 1701)<br />

e Masaniello furioso (Feind/Keiser, 1706). Depois <strong>de</strong> certo<br />

tempo, também as cenas cômicas passaram a ter um<br />

papel mais importante, eventualmente gerando intermezzi<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes como Der geduldige Sokrates (O paciente<br />

Sócrates, König/Telemann, 1721) e Pimpinone (Pariatti/<br />

Praetorius/Telemann, 1725). Wolff (1957, p.29) nota que há<br />

também elementos do teatro popular, <strong>da</strong> canção religiosa<br />

e do drama barroco holandês, principalmente do autor<br />

Joost van <strong>de</strong>n Von<strong>de</strong>l, por meio dos gran<strong>de</strong>s coros <strong>de</strong> anjos<br />

em cenas longas, ao contrário do que ocorria na época na<br />

ópera italiana, que tinha pouca ou nenhuma participação<br />

do coro. Também contribuíram para a escolha <strong>da</strong> temática<br />

bíblica a gran<strong>de</strong> tradição e populari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s peças <strong>de</strong><br />

Natal (cita<strong>da</strong>s por Wolff, 1957, p.30, como precursoras dos<br />

oratórios <strong>de</strong> Natal) e os muitos oratórios encenados por<br />

Matthias Weckmann no Collegium Musicum <strong>de</strong> Hamburgo,<br />

entre 1660 e 1674.<br />

Outro elemento presente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início nas óperas <strong>de</strong><br />

Hamburgo foi o que WOLFF chamou <strong>de</strong> “queixa social”<br />

(1957, p.31), causa<strong>da</strong> principalmente pela situação <strong>de</strong><br />

penúria dos camponeses alemães em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> Guerra<br />

dos Trinta Anos. Como exemplo, cita a queixa <strong>de</strong> José,<br />

na ópera Der Geburt Christi (1681), <strong>de</strong> Postel, pressionado<br />

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38<br />

CARPENA, L. B. Origens <strong>da</strong> ópera barroca alemã e o Teatro do Mercado dos Gansos... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 32-40<br />

pelo implacável coletor <strong>de</strong> impostos, que ameaça jogálo<br />

na prisão, caso não pague o que <strong>de</strong>ve. Com muita<br />

agu<strong>de</strong>za, Wolff chama a atenção para o fato <strong>de</strong> que<br />

este tipo <strong>de</strong> manifestação pública <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontentamento<br />

só era possível graças ao fato <strong>de</strong> o teatro <strong>de</strong> Hamburgo<br />

não ser cortesão ou mantido exclusivamente por nobres.<br />

Entretanto, como no mo<strong>de</strong>lo veneziano, em geral eram<br />

representados o enaltecimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais cortesãos, o amor<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro posto a diferentes provas e aspectos gerais <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> cortesã. Embora não fosse uma corte, Hamburgo<br />

abrigou alguns habitantes nobres e ilustres, entre eles<br />

a rainha Cristina <strong>da</strong> Suécia e o Duque <strong>de</strong> Schleswig-<br />

Hollstein, que vivia exilado na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

7- O <strong>de</strong>clínio do teatro<br />

No caso dos teatros <strong>de</strong> corte <strong>de</strong> regimes absolutistas, o<br />

seu fechamento<br />

foi a conseqüência inevitável <strong>de</strong> seu florescimento [...], que po<strong>de</strong><br />

ser caracterizado por nomes <strong>de</strong> compositores como Johann S.<br />

Kusser, Reinhard Keiser, Agostino Steffani, [...]. Suas produções<br />

[...] buscavam principalmente <strong>de</strong>monstrar a glória <strong>de</strong> seus<br />

respectivos príncipes patrões (STROHM, 1997, p.86).<br />

Mesmo que o teatro <strong>de</strong> Hamburgo não fosse <strong>de</strong><br />

corte, seu padrão <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> era o mesmo, assim<br />

como sua função <strong>de</strong> representação. No caso, era a<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Hamburgo que era representa<strong>da</strong> em sua<br />

glória comercial e política por meio <strong>da</strong> existência e<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> do teatro. STROHM afirma que a concepção<br />

“eclética e bombástica” <strong>de</strong> ópera originou uma crise<br />

financeira que se manifestou mais fortemente ao<br />

longo <strong>de</strong>stes quarenta anos porque, durante este<br />

período, ocorreram sucessões dinásticas em diversas<br />

cortes, nas quais o novo soberano percebia os enormes<br />

prejuízos acumulados e, como conseqüência, or<strong>de</strong>nava<br />

o fechamento dos teatros (1997, p.86-88).<br />

ARNOLD SCHERING disse em 1941:<br />

os motivos [<strong>da</strong> crise nos teatros <strong>de</strong> ópera alemães] são mais<br />

profundos, e, se eu não estiver totalmente equivocado, <strong>de</strong>vem<br />

ser relacionados a mu<strong>da</strong>nças capitalistas e <strong>de</strong> caráter social na<br />

classe média alemã [<strong>da</strong> época] (in: STROHM, 1997, p.82-83).<br />

É com base neste ponto <strong>de</strong> vista que STROHM <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />

que as óperas <strong>de</strong> Hamburgo e Leipzig (teatros mantidos a<br />

partir <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> dos espetáculos) assim como cultivaram o<br />

mesmo “conceito universal” <strong>de</strong> ópera barroca <strong>da</strong>s cortes,<br />

sofreram os mesmos problemas econômicos que estas.<br />

Outro motivo apontado por ele é o número <strong>de</strong> guerras<br />

que ocorreu, como a <strong>da</strong> Sucessão Espanhola (1700-<br />

1713) e a Guerra Nórdica (1700-1718); além do custo <strong>de</strong><br />

guerras <strong>de</strong>sta proporção, havia ain<strong>da</strong> a falta <strong>de</strong> ambiente<br />

psicológico para divertimentos cortesãos, ain<strong>da</strong> mais tão<br />

magnificentes como a ópera <strong>da</strong> época (1997, p.87-89).<br />

8- Conclusões<br />

Na conclusão <strong>de</strong> seu brilhante e fun<strong>da</strong>mental estudo<br />

sobre o teatro <strong>de</strong> Hamburgo, WOLFF (1957) nos apresenta<br />

uma visão muito completa do peculiar estilo operístico<br />

<strong>de</strong>senvolvido na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, que representou o apogeu e a<br />

maturi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ópera barroca alemã:<br />

(...) a ópera <strong>de</strong> Hamburgo produziu algo <strong>de</strong> próprio e novo em<br />

todos os sentidos. Mais que tudo, mostrou-se que naquela<br />

época em Hamburgo <strong>de</strong>senvolveu-se uma forma popular <strong>de</strong><br />

ópera [grifo do autor], que era muito diferente <strong>da</strong> maioria<br />

<strong>da</strong>s óperas <strong>de</strong> corte <strong>da</strong> época barroca. (...) houve esforços<br />

em todos os sentidos para encontrar um estilo <strong>de</strong> ópera <strong>de</strong><br />

alto valor artístico [i<strong>de</strong>m] com formas <strong>de</strong> expressão e regras<br />

<strong>de</strong> apresentação alemãs [i<strong>de</strong>m]. Estas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s não foram<br />

reconheci<strong>da</strong>s <strong>de</strong> modo correto até agora, foram inclusive<br />

freqüentemente avalia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> modo <strong>de</strong>preciativo 22 . Pelo<br />

contrário, aqui pu<strong>de</strong>mos provar que tanto os libretistas como<br />

compositores e cenógrafos <strong>da</strong> Ópera <strong>de</strong> Hamburgo não apenas<br />

pertenciam às principais personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua época, como<br />

também <strong>de</strong>ixaram à sombra, no que diz respeito à quali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

artística, muitos autores <strong>de</strong> ópera bastante posteriores a<br />

eles. A ópera barroca <strong>de</strong> Hamburgo, até agora uma entea<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> história <strong>da</strong> música e do teatro, que sofreu com a crítica<br />

injusta do Racionalismo e do Naturalismo, pertence às fases<br />

mais brilhantes do teatro alemão.<br />

Este trecho revela uma mu<strong>da</strong>nça importante na avaliação<br />

do que foi o fenômeno <strong>da</strong> ópera em Hamburgo. Antes<br />

simplesmente ignora<strong>da</strong> ou <strong>de</strong>precia<strong>da</strong> em seu valor<br />

histórico e estético (fosse pela crítica mal fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong><br />

e ignorante do fenômeno como um todo ou pela leitura<br />

moralista do final do século XIX), a ópera <strong>de</strong> Hamburgo<br />

revelou-se um mo<strong>de</strong>lo bem sucedido <strong>de</strong> ópera burguesa<br />

que não encontrou similares na história alemã.<br />

O texto <strong>de</strong> WOLFF também apresenta outra informação<br />

relevante: sua ênfase no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um idioma<br />

alemão, no sentido <strong>de</strong> “formas <strong>de</strong> expressão e regras<br />

<strong>de</strong> apresentação alemãs”. Não vemos nem aqui, nem<br />

na própria história <strong>da</strong> ópera <strong>de</strong>/em Hamburgo traços<br />

nacionalistas, intenções como as que seriam vistas no<br />

teatro alemão falado, a partir <strong>de</strong> Lessing e Goethe ou<br />

mesmo na própria ópera alemã do século XIX. Muito<br />

menos que um projeto político, a ópera em Hamburgo<br />

parece ter seguido um caminho orientado pela procura<br />

<strong>de</strong> expressão original, <strong>de</strong>svincula<strong>da</strong> do sentido <strong>de</strong><br />

nação, no qual foram acolhi<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as influências<br />

culturais existentes na época, fossem elas o mo<strong>de</strong>lo<br />

formal <strong>da</strong> ópera italiana, o já existente drama falado<br />

e cantado em alemão (Singspiel), as <strong>da</strong>nças francesas<br />

ou a orquestração francesa e italiana, resultando numa<br />

espécie <strong>de</strong> goûts reúnis operístico, antecipando-se ao<br />

fenômeno que se verificaria na música instrumental<br />

européia a partir <strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XVIII. A história do<br />

teatro nos mostra, por meio <strong>de</strong> sua busca por renovação<br />

permanente, a percepção agu<strong>da</strong> <strong>da</strong>s transformações<br />

pelas quais a ópera passou entre o final do século XVII e<br />

o começo do XVIII.


CARPENA, L. B. Origens <strong>da</strong> ópera barroca alemã e o Teatro do Mercado dos Gansos... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 32-40<br />

Referências<br />

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SPITZER, John e ZASLAW, Neal. The Birth of the Orchestra. History of an Institution, 1650-1815. Nova Iorque: Oxford,<br />

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The New Grove Dictionary of Opera. Nova Iorque: Macmillan Publishers, 1997.<br />

Lucia Becker Carpena é professora <strong>de</strong> Flauta Doce e <strong>Música</strong> <strong>de</strong> Câmara do Departamento <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (UFRGS), mestre em Flauta Doce pela Staatliche Hochschule für Musik <strong>de</strong> Stuttgart/<br />

Alemanha (1995) e doutora em <strong>Música</strong> pela UNICAMP/SP (2007). Dedica-se principalmente à prática <strong>de</strong> música antiga<br />

historicamente orienta<strong>da</strong> e à pesquisa e divulgação do repertório brasileiro contemporâneo para flauta doce. Atua como<br />

solista, camerista e professora convi<strong>da</strong><strong>da</strong> em eventos no Brasil e no exterior e participou <strong>da</strong> gravação <strong>da</strong> obra completa<br />

<strong>de</strong> Bruno Kiefer (1923-1987) para flauta doce, no CD “Poemas <strong>da</strong> Terra” (2003), que obteve acolhi<strong>da</strong> calorosa pela crítica<br />

musical brasileira. Sua tese <strong>de</strong> doutorado, intitula<strong>da</strong> “Caracterização e uso <strong>da</strong> flauta doce nas óperas <strong>de</strong> Reinhard Keiser<br />

(1674-1739)” trata, entre outros tópicos, <strong>da</strong>s origens <strong>da</strong> ópera barroca alemã, seu <strong>de</strong>senvolvimento e apogeu com o<br />

teatro do Mercado dos Gansos <strong>de</strong> Hamburgo e a participação <strong>da</strong> flauta doce no repertório operístico, abor<strong>da</strong>ndo temas<br />

ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>sconhecidos pela pesquisa acadêmica brasileira.<br />

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40<br />

CARPENA, L. B. Origens <strong>da</strong> ópera barroca alemã e o Teatro do Mercado dos Gansos... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 32-40<br />

Notas<br />

1 Para se ter uma idéia <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> estrutura política nos territórios germânicos, durante os séculos XVII e XVIII, o Sacro Império Romano<br />

Germânico era formado por mais <strong>de</strong> 300 enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s políticas, entre reinos, ducados, ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s livres, principados eclesiásticos e seculares (SPITZER,<br />

204, p.213).<br />

2 Segundo WARRACK (2001, p.17) o arcebispo tinha origem italiana e queria manter laços com a Itália, especialmente com a corte <strong>de</strong> Mântua (Rasi<br />

havia servido na corte dos Gonzaga). Além <strong>de</strong> poeta, cantor e compositor, Rasi havia sido um dos membros fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> Camerata <strong>de</strong> Bardi em<br />

Florença, cantou o papel <strong>de</strong> Aminta na ópera Euridice <strong>de</strong> Peri (em 1600) e possivelmente também o papel-título do Orfeo <strong>de</strong> Monteverdi (1607).<br />

3 Não se conhece o nome <strong>da</strong> ópera encena<strong>da</strong> em Salzburgo nem o <strong>de</strong> seus autores, mas sabe-se que foi uma Hoftragicomoedia (tragicomédia <strong>de</strong> corte)<br />

italiana (WARRACK, 2001, p.17).<br />

4 Optiz era um teórico <strong>de</strong> formação humanista, organizador <strong>de</strong> edições e tradutor <strong>de</strong> obras <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> clássica e tinha por meta a<strong>de</strong>quar a<br />

produção literária alemã às normas clássicas. Observou a métrica natural <strong>da</strong> língua alemã e fez tentativas no sentido <strong>de</strong> estabelecer normas <strong>de</strong><br />

versificação para a poesia germânica (ROSENFELD, 1993, p.49-53). Publicou em 1624 um livro intitulado Buch von <strong>de</strong>r <strong>de</strong>utschen Poeterey (Livro<br />

<strong>da</strong> Poesia Alemã) no qual sistematizou suas conclusões e sugeriu que o Hoch<strong>de</strong>utsch (alto alemão) fosse adotado como a língua culta corrente, ao<br />

invés do latim. Em outro livro (uma versão <strong>de</strong> Judith, 1635), ele afirmou a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> os poetas alemães se afastarem dos cânones clássicos e<br />

dos princípios estabelecidos pela Camerata <strong>de</strong> Bardi, alegando “motivos didáticos e patrióticos” (WARRACK, 2001, p.20).<br />

5 Não se sabe se foi encomen<strong>da</strong><strong>da</strong> também uma cópia <strong>da</strong> partitura <strong>de</strong> Marco <strong>da</strong> Gagliano, pois, uma vez que a partitura <strong>de</strong> Schütz se per<strong>de</strong>u, não<br />

po<strong>de</strong>mos fazer comparações entre as duas partituras.<br />

6 “Em muitas partes escrita por invento próprio <strong>de</strong> Martin Optiz” (Aus mehrentheils eigener erfindung geschrieben von Martin Spizen, linhas 19 a 21 do<br />

frontispício). Entre estas contribuições, BIANCONI (1982, p.205) ressalta, por exemplo, a transformação <strong>da</strong> ninfa em loureiro, que ocorre no palco,<br />

contrariando (talvez com propósitos morais e religiosos) a tradição italiana (<strong>de</strong> origem aristotélica).<br />

7 O autor não cita exemplos, mas po<strong>de</strong>mos supor que ele se referisse ao Singspiel, teatro falado acompanhado <strong>de</strong> música, presente na Alemanha <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

pelo menos o século XV. Ver SCHLETERER, 1863.<br />

8 Literalmente, “terra teutônica/dos teutônicos”.<br />

9 Referindo-se provavelmente à Guerra dos Trinta Anos.<br />

10 A métrica alemã é basea<strong>da</strong> nos pés, e não na contagem <strong>de</strong> sílabas, como nas línguas latinas. Para maiores informações a respeito, ver AIKIN (2002),<br />

WAGENKNECHT (1999, p.1-77), BUSCH (1992) e SCHMITZ (1910, p.254-277).<br />

11 Trata-se provavelmente <strong>de</strong> Augusto, o Jovem (1634-1666).<br />

12 Enten<strong>de</strong>mos ser esta uma <strong>de</strong>finição impossível <strong>de</strong> ser concretiza<strong>da</strong>, quase uma sugestão irônica do autor, <strong>da</strong><strong>da</strong> a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua realização<br />

em face à complexa cena social e musical na Alemanha do século XVII.<br />

13 A primeira ópera a ter tema histórico foi L´Incoronazione di Poppea, <strong>de</strong> Monteverdi (1642).<br />

14 Lamentavelmente, não dispomos <strong>da</strong> maior parte <strong>da</strong>s partituras <strong>de</strong>stas primeiras obras escritas na Alemanha, combinando música e drama, o que<br />

torna complexa a tarefa <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>r esta fase <strong>da</strong> história <strong>da</strong> música alemã. As partituras completas mais antigas existentes são Seelewig (1644), Die<br />

drey Töchter Cecrops (1679) e Ariadne (1691). Não se po<strong>de</strong> saber com precisão como os compositores absorveram o mo<strong>de</strong>lo italiano e o a<strong>da</strong>ptaram.<br />

Através do material disponível (libretos, partituras e relatos), po<strong>de</strong>mos perceber que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, houve uma a<strong>da</strong>ptação do termo italiano<br />

dramma per musica, enfatizando o uso dramático <strong>da</strong> música. Na <strong>capa</strong> <strong>de</strong> Dafne aparece a instrução “musikalisch in <strong>de</strong>n Schauplaz zu bringen” (a<br />

ser apresentado no palco <strong>de</strong> forma musical, linhas 17 e 18 do frontispício). Há uma gran<strong>de</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> termos para nominar a música dramática<br />

secular em alemão, entre eles: Sing-Spiel, Singe-Spiel, Singe- und Lustspiel, Musikalisches Schau-Spiel, Musikalisches Trauer-Spiel, Drama musicale.<br />

Sabe-se também que, pelo menos até 1721, ano <strong>da</strong> criação <strong>de</strong> Der geduldige Sokrates, <strong>de</strong> Georg Phillip Telemann (1681-1767), ain<strong>da</strong> se usava o<br />

termo Singspiel para <strong>de</strong>signar este tipo <strong>de</strong> espetáculo. “O termo opera não aparece em partituras alemãs antes <strong>de</strong> 1720” (GROUT, 1988, p.131).<br />

Após esta <strong>da</strong>ta, com a adoção integral e <strong>de</strong>finitiva do padrão italiano <strong>de</strong> ópera, a discussão per<strong>de</strong> seu sentido, pois o uso do termo em italiano é<br />

totalmente a<strong>de</strong>quado.<br />

15 A primeira edição mo<strong>de</strong>rna <strong>da</strong> partitura (e a única existente até hoje) foi realiza<strong>da</strong> por Robert Eitner, em 1881 (in: MMG, Heft 8, p.55-150).<br />

16 Substituídos gra<strong>da</strong>tivamente pelos oboés a partir dos anos 1670/80.<br />

17 Ao longo <strong>da</strong> apresentação, o autor faz questão <strong>de</strong> sempre lembrar que esta não é a forma <strong>de</strong> apresentação i<strong>de</strong>al <strong>da</strong> obra, que conta com mais<br />

cantores/personagens.<br />

18 No que diz respeito a suas preleções sobre a ópera, Harsdörfer a <strong>de</strong>clara “uma forma una, com a música atuando como a força que mescla a pintura<br />

consigo, em um novo todo”. Harsdörfer também discute técnicas que po<strong>de</strong>riam atingir este i<strong>de</strong>al e qualifica a ópera italiana como sendo “afeta<strong>da</strong>,<br />

artificial, e (pior que tudo), estrangeira: a ópera alemã <strong>de</strong>veria apresentar ações heróicas e instrução moral” (WARRACK, 2001, p.21).<br />

19 Compositor, diplomata e padre (mais tar<strong>de</strong> nomeado bispo), foi um importante difusor <strong>da</strong> ópera italiana na Alemanha. Escreveu <strong>de</strong>zoito óperas entre<br />

1681 e 1709 e atuou <strong>de</strong> forma muito intensa, especialmente em Munique e Hannover. Sua <strong>de</strong>dicação e produção foram tão diretamente liga<strong>da</strong>s ao<br />

território germânico que muitas <strong>de</strong> suas óperas foram encena<strong>da</strong>s apenas na Alemanha e permaneceram <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s na Itália. Sua obra mescla<br />

elementos <strong>da</strong> ópera veneziana, napolitana e francesa, e, <strong>de</strong> todos os compositores italianos atuantes na Alemanha, GROUT o consi<strong>de</strong>ra “o principal<br />

intermediário entre a ópera italiana do final do século XVII e as óperas alemãs <strong>de</strong> Keiser e Hän<strong>de</strong>l“ (1988, p.120-121). Enviado em 1678 a Paris<br />

para estu<strong>da</strong>r com Lully e apren<strong>de</strong>r o estilo francês, novi<strong>da</strong><strong>de</strong> e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira febre musical <strong>da</strong> época, aplicou seus conhecimentos quando, em 1688,<br />

mudou-se para a francófila corte <strong>de</strong> Hannover, on<strong>de</strong> o Duque Ernst August (regente <strong>de</strong> 1679 a 1698) havia criado uma orquestra nos mol<strong>de</strong>s dos<br />

24 Violons du Roi (composta em boa parte por músicos franceses, inclusive oboístas, uma novi<strong>da</strong><strong>de</strong> para a época) e contratado cantores italianos.<br />

Por outro lado, segundo CARSE, a adoção do padrão italiano <strong>de</strong> orquestração (a quatro vozes) é um sinal <strong>da</strong> sintonia fina <strong>de</strong> Steffani em relação aos<br />

novos processos <strong>de</strong> composição então em <strong>de</strong>senvolvimento, especialmente com Purcell e Scarlatti (1964, p.105).<br />

20 Para <strong>de</strong>talhes sobre a distribuição <strong>de</strong> lugares no teatro, ver KOCH, 1999, p.23.<br />

21 A canção alemã foi estu<strong>da</strong><strong>da</strong> em profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> por WALTHER VETTER em Das früh<strong>de</strong>utsche Lied, 2 vols., Münster, 1928.<br />

22 Aqui o autor provavelmente se refere a Kretzschmar, que <strong>de</strong>clarou que “antes do século XIX não existe uma ópera amplamente reconheci<strong>da</strong> como<br />

sendo alemã, e po<strong>de</strong>mos nos referir aos séculos XVII e XVIII apenas como uma história <strong>da</strong> ópera na Alemanha, que, <strong>de</strong> modo geral, não é mais do<br />

que um apêndice <strong>da</strong> história <strong>da</strong> ópera italiana” (KRETZSCHMAR, 1902, p.270-271).


ROSA, S. A. Primeiros tratados italianos do século XVII sobre baixo contínuo... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 41-47<br />

Primeiros tratados italianos do<br />

século XVII sobre baixo contínuo:<br />

uma análise comparativa<br />

Stella Almei<strong>da</strong> Rosa (UNICAMP, Campinas)<br />

stellaalmei<strong>da</strong>rosa@gmail.com<br />

Resumo: Baseando-se no prévio estudo <strong>de</strong> três <strong>da</strong>s primeiras fontes históricas primárias sobre Baixo Contínuo, publica<strong>da</strong>s<br />

na Itália do início do século XVII, o seguinte texto apresenta uma análise comparativa entre os trabalhos <strong>de</strong> Lodovico <strong>da</strong><br />

Via<strong>da</strong>na (1602), Agostino Agazzari (1607) e Francesco Bianciardi (1607), partindo <strong>da</strong>s recomen<strong>da</strong>ções conti<strong>da</strong>s no primeiro<br />

<strong>de</strong>les para apontar semelhanças e diferenças entre as idéias e procedimentos encontrados nos primórdios <strong>de</strong>ssa técnica.<br />

Palavras-chave: baixo contínuo, melodia acompanha<strong>da</strong>, harmonia, história <strong>da</strong> música.<br />

First Italian treatises from the seventeenth century about thorough-bass: a comparative analysis<br />

Abstract: Based on the previous study from three of the first historical sources on Thorough-Bass, plublished in Italy during<br />

the beginning of the XVIIth century, this paper presents a comparative analysis between the works by Lodovico <strong>da</strong> Via<strong>da</strong>na<br />

(1602), Agostino Agazzari (1607) and Francesco Bianciardi (1607), starting from the instructions <strong>de</strong>scribed in the first one to<br />

point out similarities and differences between the i<strong>de</strong>as and procedures observed in the origins of this technique.<br />

Keywords: thorough-bass, figured-bass, accompaniment, harmony, music history.<br />

1- Objetivos<br />

Este trabalho preten<strong>de</strong> sintetizar e expor os<br />

conhecimentos obtidos através do estudo aprofun<strong>da</strong>do<br />

<strong>de</strong> três importantes documentos históricos sobre as<br />

origens <strong>da</strong> técnica <strong>de</strong> execução musical conheci<strong>da</strong> por<br />

Baixo Contínuo: Prefácio aos Cento Concerti Eclesiastici<br />

[Cem Concertos Eclesiásticos], <strong>de</strong> 1602, trabalho <strong>de</strong><br />

Lodovico <strong>da</strong> Via<strong>da</strong>na; Del Sonare sopra il basso com tutti<br />

stromenti e uso loro nel conserto [Do tocar sobre um baixo<br />

com todos os instrumentos e seu uso no conjunto], <strong>de</strong><br />

1607, <strong>da</strong> autoria <strong>de</strong> Agostino Agazzari e Breve Regola Per<br />

Imparar A Sonare Il Basso Com Ogni Sorte D’Istrumento<br />

[Breve Regra Para Apren<strong>de</strong>r a Tocar O Baixo Com Ca<strong>da</strong><br />

Tipo <strong>de</strong> Instrumento], publicado também em 1607, <strong>de</strong><br />

Francesco Bianciardi. Busca também traçar um painel<br />

<strong>de</strong>sse momento <strong>de</strong> surgimento <strong>de</strong> uma nova técnica<br />

musical, que permita ao leitor visualizar o contexto e<br />

as idéias <strong>de</strong> autores que foram os primeiros a produzir<br />

trabalhos específicos sobre o assunto.<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.17, 68 p., jan. - jun., 2008<br />

2- Fun<strong>da</strong>mentação teórica<br />

Para a elaboração <strong>de</strong>ste trabalho foram utiliza<strong>da</strong>s as traduções<br />

dos originais para o inglês (STRUNK, 1998 e ARNOLD,<br />

1965), e os textos em italiano (LANG, 2004) do prefácio aos<br />

Cento Concerti Eclesiastici <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na 1 , <strong>de</strong> Del Sonare... <strong>de</strong><br />

Agazzari 2 e Breve Regola...<strong>de</strong> Bianciardi 3 . Contou-se também<br />

com a transcrição <strong>de</strong> uma cópia do fac-símile do Tratado <strong>de</strong><br />

Bianciardi traduzi<strong>da</strong> por ROCHA (2005).<br />

3- Procedimentos metodológicos<br />

O trabalho iniciou-se com a revisão bibliográfica sobre<br />

História <strong>da</strong> <strong>Música</strong> enfocando a Itália do início do século<br />

XVII, e a conseqüente <strong>de</strong>terminação dos textos a serem<br />

especificamente trabalhados. A seguir proce<strong>de</strong>u-se a uma<br />

transcrição e posterior tradução do fac-símile do Tratado<br />

<strong>de</strong> Bianciardi com fins <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar a grafia do texto, e então<br />

o estudo <strong>de</strong>talhado dos trabalhos <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na e Agazzari,<br />

culminando com o processo analítico e comparativo sobre<br />

os resultados a que chegaram os três autores.<br />

Recebido em: 27/10/2007 - Aprovado em: 12/01/2008<br />

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ROSA, S. A. Primeiros tratados italianos do século XVII sobre baixo contínuo... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 41-47<br />

4 - Discussão e resultados<br />

Ao analisarmos as primeiras fontes italianas que trazem<br />

instruções para a realização <strong>de</strong> baixo contínuo, a primeira<br />

constatação a que chegamos é que Via<strong>da</strong>na, com seus<br />

Cento Concerti Eclesiastici, foi <strong>de</strong> fato um <strong>de</strong>sbravador,<br />

possuidor <strong>de</strong> uma idéia inovadora, num contexto em que<br />

<strong>de</strong>lineava-se a tendência <strong>de</strong> sistematizar os procedimentos<br />

<strong>de</strong> acompanhamento, surgi<strong>da</strong> <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

compreensão e valorização do texto cantado.<br />

A prática <strong>de</strong> se tocar uma linha melódica acompanhando<br />

a voz mais grave <strong>da</strong> obra já era encontra<strong>da</strong> em fins do<br />

século XVI, como <strong>de</strong>monstrado, por exemplo, numa obra<br />

coral polifônica <strong>de</strong> Allessandro Striggio a 40 vozes 4 , <strong>de</strong><br />

1568, on<strong>de</strong> aparece a indicação Basso Cavato <strong>da</strong>lla parte più<br />

bassa [baixo extraído <strong>da</strong> voz mais grave] para uma 41ª voz.<br />

Assim, era trabalho do organista - ou do instrumentista que<br />

executasse a voz mais grave - extrair uma linha <strong>de</strong> baixo<br />

contínua 5 , pois numa obra polifônica esta não se encontrava<br />

numa única voz, po<strong>de</strong>ndo saltar <strong>de</strong> uma à outra, sendo<br />

possível haver muitas vozes <strong>de</strong> registro grave. Essa prática<br />

foi ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>scrita por Praetorius (apud ARNOLD, 1965, v.1,<br />

p.93) em sua enciclopédia Syntagma Musicum, publica<strong>da</strong><br />

em 1619, on<strong>de</strong> ele também nos dá uma <strong>de</strong>finição <strong>da</strong> técnica<br />

que sintetiza o pensamento dos que se preocuparam com o<br />

assunto na época: assim se chama porque segue do começo<br />

ao fim. Praetorius esclarece, assim, a razão <strong>da</strong> palavra<br />

continuo, no termo que <strong>de</strong>nomina a nova técnica, indicando<br />

que, ao contrário do que se praticava até então, a linha mais<br />

grave <strong>da</strong> música <strong>de</strong>veria ser ininterrupta.<br />

A gran<strong>de</strong> idéia <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na teria sido, então, a <strong>de</strong><br />

acrescentar essa linha ininterrupta à composição,<br />

<strong>de</strong>finindo funções diferentes para vozes e instrumentos.<br />

Seu baixo contínuo emerge como uma improvisação sobre<br />

uma linha <strong>de</strong> baixo, on<strong>de</strong> se anotavam os aci<strong>de</strong>ntes, mas<br />

não os números que representam as harmonias, numa<br />

textura ain<strong>da</strong> polifônica. O basso continuo <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na faz<br />

parte do todo, sem o qual o resto <strong>da</strong> composição não teria<br />

sentido (Arnold, 1965), um gran<strong>de</strong> avanço em relação<br />

aos baixos <strong>de</strong> órgão <strong>de</strong>scritos no parágrafo anterior, que<br />

serviam para unir segmentos <strong>da</strong> música, que estava, no<br />

entanto, completa sem essa linha do baixo.<br />

Segundo LANG (2007), a estrutura dos Concerti <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na<br />

ain<strong>da</strong> remete à tradição polifônica. Nesse sentido, <strong>de</strong><br />

acordo com o mesmo autor, sua inovação é comparável a<br />

uma reforma ortográfica que a<strong>da</strong>ptou a antiga maneira <strong>de</strong><br />

anotar e compor à nova prática <strong>de</strong> execução, escrevendo<br />

diretamente o que <strong>de</strong>veria ser tocado. Embora admitisse<br />

o uso <strong>da</strong> partitura, Via<strong>da</strong>na preferia claramente o sistema<br />

<strong>de</strong> intavolatura 6 , como expressado no sexto <strong>de</strong> seus doze<br />

conselhos para execução dos Concerti, o que o situa antes<br />

do completo estabelecimento do baixo contínuo. Alguns<br />

anos mais tar<strong>de</strong>, Agazzari enfatiza a não obrigatorie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> se fazer uma tablatura como uma <strong>da</strong>s vantagens do<br />

novo método, e assim como Bianciardi, abandona esse<br />

sistema, encontrando-se ambos, então, além <strong>da</strong> fronteira<br />

entre a polifonia e a melodia acompanha<strong>da</strong>.<br />

Por tratar-se <strong>de</strong> uma nova maneira <strong>de</strong> escrever<br />

música, Via<strong>da</strong>na consi<strong>de</strong>rou necessário acrescentar ao<br />

prefácio dos Concerti o que ele chamou <strong>de</strong> conselhos<br />

(Avertimenti). A preocupação com o estilo fica bem clara<br />

no primeiro item, que recomen<strong>da</strong> discrição na execução<br />

e parcimônia no uso dos ornamentos, e é evi<strong>de</strong>ntemente<br />

mais voltado aos cantores que ao organista, ou seja, não<br />

se refere à elaboração do baixo contínuo propriamente<br />

dita. Como já mencionado, Via<strong>da</strong>na admite que o<br />

organista toque simplesmente a Partitura 7 , enquanto<br />

Agazzari e Bianciardi iriam colaborar no gradual<br />

abandono <strong>da</strong> tablatura, embora ain<strong>da</strong> recomen<strong>da</strong>ndo<br />

domínio completo <strong>da</strong>s duas técnicas - a execução do<br />

baixo contínuo e a leitura <strong>de</strong> tablatura - indispensáveis<br />

para uma boa execução.<br />

Num conselho muito prático, Via<strong>da</strong>na comenta que não<br />

seria mal o organista <strong>da</strong>r uma olha<strong>da</strong> na música antes <strong>de</strong><br />

executá-la, para uma melhor compreensão <strong>da</strong> natureza<br />

<strong>de</strong>sta: “Sarà se non bene, che l’Organista habbia prima<br />

<strong>da</strong>ta un’occhiata à quel Concerto, che si ha <strong>da</strong> cantare,<br />

perche inten<strong>de</strong>ndo la natura di quella Musica, farà sempre<br />

meglio gli accompagnamenti”.<br />

Já Agazzari e Bianciardi são bem mais <strong>de</strong>talhistas quanto<br />

à preparação do instrumentista, e, tanto um quanto outro<br />

discorrem longamente sobre os conhecimentos musicais e<br />

as habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s necessárias para se tocar sobre um baixo.<br />

Ambos mencionam o domínio do contraponto, <strong>da</strong> harmonia,<br />

<strong>da</strong> leitura <strong>de</strong> partitura ou tablatura e apuro do ouvido.<br />

Na quarta recomen<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na encontramos<br />

um assunto algo polêmico e que não é abor<strong>da</strong>do<br />

especificamente por seus sucessores: ele nos diz que o<br />

organista <strong>de</strong>ve executar as cadências sempre à i lochi loro<br />

[no seu próprio lugar] (LANG, p. 2). Essa informação po<strong>de</strong><br />

ser interpreta<strong>da</strong> como uma referência simplesmente à<br />

altura, ou mais especificamente à voz on<strong>de</strong> acontecem<br />

as cadências. Contudo, <strong>de</strong>ve-se também consi<strong>de</strong>rar, como<br />

observado por LANG (2007) que a cadência que Via<strong>da</strong>na<br />

tinha em mente não era uma progressão harmônica no<br />

seu sentido mais recente conhecido pela teoria musical,<br />

mas uma típica progressão <strong>da</strong> voz que conduz a linha<br />

melódica, também chama<strong>da</strong> “cláusula” 8 , que acontece<br />

ao final <strong>de</strong> períodos ou frases musicais, e que serve para<br />

quebrar o fluxo contínuo <strong>da</strong> música <strong>da</strong>quele período. Os<br />

outros dois autores são menos específicos quanto à altura<br />

do acompanhamento, mencionando apenas o cui<strong>da</strong>do<br />

para não encobrir os cantores.<br />

Outro assunto abor<strong>da</strong>do por Via<strong>da</strong>na, e que não aparece<br />

nos outros textos, é a questão <strong>da</strong> entra<strong>da</strong> do organista<br />

quando a música é “à maneira <strong>de</strong> fuga”. Ele recomen<strong>da</strong><br />

que o organista toque somente uma voz (Tasto solo) 9 , e<br />

que <strong>de</strong>pois, com a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais vozes, faça seu<br />

acompanhamento como quiser. Esse procedimento segue<br />

por todo o período do baixo contínuo, que se esten<strong>de</strong><br />

do início do século XVII até fins do século XVIII, e não<br />

encontramos menção a ele no trabalho <strong>de</strong> Agazzari.


ROSA, S. A. Primeiros tratados italianos do século XVII sobre baixo contínuo... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 41-47<br />

Bianciardi tece apenas um comentário sobre o estilo<br />

fugato, dizendo que ele não é próprio para ser executado<br />

com baixo contínuo.<br />

No sétimo item <strong>da</strong>s recomen<strong>da</strong>ções <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na, encontramos<br />

uma <strong>da</strong>s unanimi<strong>da</strong><strong>de</strong>s para os três tratadistas, a preocupação<br />

com o volume <strong>de</strong> som. Via<strong>da</strong>na recomen<strong>da</strong> tocar os ripieni<br />

ao órgão com mãos e pés, porém sem acrescentar outros<br />

registros, e <strong>de</strong>vemos lembrar que no seu primeiro conselho,<br />

alerta para o estilo gentil dos Concerti; já Agazzari referese<br />

ao tamanho do coro como um critério para <strong>de</strong>finir os<br />

registros a serem usados; Bianciardi, sempre mais sucinto,<br />

apenas recomen<strong>da</strong> plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> vozes quando o texto assim<br />

exigir. Ao atentar-se também para a preocupação quanto<br />

à altura em que são realiza<strong>da</strong>s as cadências, nota-se que<br />

o ponto realmente crucial a que se chega, é o cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong><br />

não encobrir e nem dificultar a execução dos cantores.<br />

Essa conduta percorrerá <strong>de</strong>pois todo o período <strong>de</strong> prática<br />

do baixo contínuo e <strong>de</strong> todo estilo acompanhado <strong>da</strong> música<br />

dos séculos seguintes, e, se hoje essa observação nos parece<br />

um tanto evi<strong>de</strong>nte, o fato <strong>de</strong> encontrarmos essa citação em<br />

três dos primeiros autores a se preocuparem com o assunto,<br />

<strong>de</strong>monstra claramente que não o era na época.<br />

Na questão <strong>da</strong> cifragem, observamos que Via<strong>da</strong>na, num<br />

contexto estilístico ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> Renascença, preocupa-se em<br />

Fig.1: Exemplo do trabalho <strong>de</strong> Agazzari (símbolos).<br />

Fig.2: Exemplo do trabalho <strong>de</strong> Agazzari (sinais).<br />

anotar somente os aci<strong>de</strong>ntes, recomen<strong>da</strong>ndo sua estrita<br />

observância. O assunto provavelmente <strong>de</strong>senvolveu-se<br />

rapi<strong>da</strong>mente na época, pois Agazzari já é bem enfático<br />

quanto ao uso dos símbolos (Fig.1):<br />

... concluo que nenhuma regra po<strong>de</strong> ser posta para tocar essas<br />

obras se não houver sinais <strong>de</strong> nenhum tipo, sendo necessário<br />

ser guiado na intenção do compositor, que é livre e po<strong>de</strong>, se<br />

lhe parece bem, colocar sobre a primeira meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma nota<br />

uma quinta ou uma sexta, ou vice-versa, maior ou menor, como<br />

lhe parecer mais a<strong>de</strong>quado ou pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s palavras.<br />

(Agazzari. In: STRUNK, 1998, p. 623).<br />

Fig.3: Exemplo do trabalho <strong>de</strong> Bianciardi (condução <strong>de</strong> vozes).<br />

Agazzari é o primeiro, então, a recomen<strong>da</strong>r literalmente o<br />

uso <strong>de</strong> números acima <strong>da</strong>s notas do baixo para indicar as<br />

consonâncias e dissonâncias, e menciona especificamente as<br />

ocorrências 6-5 e 4-3. É o primeiro, também, <strong>de</strong>ntre os três<br />

autores estu<strong>da</strong>dos, a explorar a questão dos sinais (Fig.2).<br />

Quanto à condução <strong>da</strong>s vozes, encontramos preocupações<br />

semelhantes nos três autores. No entanto, verificamos<br />

que Via<strong>da</strong>na ain<strong>da</strong> é con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte quanto ao uso <strong>de</strong><br />

quintas e oitavas paralelas, recomen<strong>da</strong>ndo apenas que<br />

sejam evita<strong>da</strong>s nas partes canta<strong>da</strong>s. Pouco mais tar<strong>de</strong>,<br />

já encontramos em Agazzari, e, com mais ênfase em<br />

Bianciardi, instruções para se evitar a ocorrência <strong>de</strong>sses<br />

intervalos em movimento paralelo, embora exista um<br />

exemplo no trabalho <strong>de</strong>ste último (Fig.3).<br />

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ROSA, S. A. Primeiros tratados italianos do século XVII sobre baixo contínuo... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 41-47<br />

Utilizando explicações sobre como enca<strong>de</strong>ar as partes em<br />

relação ao movimento do baixo, os autores nos indicam o<br />

movimento contrário como o mais apropriado, procedimento<br />

este que será um dos pilares <strong>de</strong> todo o <strong>de</strong>senvolvimento do<br />

baixo contínuo e <strong>da</strong> harmonia por mais <strong>de</strong> três séculos 10 .<br />

Também ensinam como conduzir a mão direita em casos<br />

<strong>de</strong> notas pontua<strong>da</strong>s, tiratas e diminuições, <strong>de</strong>notando uma<br />

inflexão didática e técnica. Esse tipo <strong>de</strong> posicionamento<br />

nos leva a concluir que, apesar <strong>da</strong>s dimensões pequenas<br />

<strong>de</strong>sses trabalhos 11 , esses autores tinham a intenção <strong>de</strong><br />

produzir manuais, métodos <strong>de</strong> execução musical, e assim<br />

torna-se compreensível serem <strong>de</strong>nominados <strong>de</strong> “tratados”,<br />

como o faz Arnold (1965, p. 67).<br />

Notamos que na décima recomen<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na,<br />

ele nos diz que esses concertos não soarão bem se<br />

<strong>de</strong>sacompanhados, fazendo-nos <strong>de</strong>duzir que na época<br />

ain<strong>da</strong> se pensaria tal tipo <strong>de</strong> música sem acompanhamento,<br />

num alongamento do estilo próprio <strong>da</strong> Renascença. Na<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, nesse período, encontramos raras indicações<br />

<strong>de</strong> como os instrumentos eram utilizados, e apenas<br />

contamos com a evidência <strong>de</strong> que eram utilizados, como<br />

observa LANG (2007) em seu comentário estilístico sobre<br />

os Concerti <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na. Desse modo, po<strong>de</strong>mos perceber<br />

a rápi<strong>da</strong> aceitação e evolução que teve a nova maneira<br />

<strong>de</strong> executar música, pois poucos anos mais tar<strong>de</strong> nem<br />

encontramos mais citação <strong>de</strong>ssa possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Agazzari<br />

e Bianciardi sempre se referem ao acompanhamento<br />

ao órgão, provavelmente se esten<strong>de</strong>ndo aos <strong>de</strong>mais<br />

instrumentos <strong>de</strong> teclado. Nesse contexto, é notável a<br />

enorme atenção que Agazzari <strong>de</strong>dica em seu trabalho<br />

aos instrumentos que executam o acompanhamento:<br />

classifica-os come fon<strong>da</strong>mento [<strong>de</strong> base] – aqueles<br />

que embasam todo o grupo <strong>de</strong> vozes e instrumentos -<br />

ou come ornamento [<strong>de</strong> ornamentação] – aqueles que,<br />

num estilo contrapontístico, enriquecem a harmonia. No<br />

primeiro grupo o autor coloca o órgão e o cravo, e em<br />

situações on<strong>de</strong> há menos vozes solistas, o alaú<strong>de</strong>, a tiorba<br />

e a harpa. No segundo grupo enumera alaú<strong>de</strong>, tiorba,<br />

harpa, lirone 12 , cetera 13 , espineta, chitarrina 14 , pandora.<br />

Discorrendo longamente sobre essas funções e <strong>de</strong>dicandose<br />

pormenoriza<strong>da</strong>mente a ca<strong>da</strong> instrumento, ele disserta<br />

sobre a maneira <strong>de</strong> tocá-los, suas particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s e o<br />

comportamento do músico no conjunto. Nesse aspecto,<br />

po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar que Agazzari produziu um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<br />

tratado estilístico <strong>da</strong> época, <strong>de</strong>ixando-nos algumas <strong>da</strong>s<br />

raras indicações <strong>da</strong>s características do acompanhamento<br />

instrumental na Itália dos primeiros anos do século XVII.<br />

No último conselho <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na, verificamos uma<br />

menção ao cui<strong>da</strong>do que se <strong>de</strong>ve ter com a textura do<br />

acompanhamento, e conseqüentemente com a massa<br />

sonora que ele representará. Sugere-nos evitar o registro<br />

agudo ao trabalhar a voci pari 15 , e propõe utilizá-lo ao<br />

acompanhar vozes agu<strong>da</strong>s - a não ser nas cadências,<br />

on<strong>de</strong> se dobra a oitava - procedimento que, segundo ele,<br />

faz a música soar melhor. Encontramos aqui um ponto<br />

conflitante entre os autores, apesar <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificarmos<br />

preocupação semelhante em Agazzari, quando ele nos fala<br />

especificamente dos instrumentos <strong>de</strong> base, salientando o<br />

cui<strong>da</strong>do que se <strong>de</strong>ve ter para não encobrir as vozes; ao<br />

contrário <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na, recomen<strong>da</strong>-nos, quando o soprano<br />

canta, tocar num registro mais grave, a fim <strong>de</strong> não<br />

obscurecê-lo. Essa parece ser uma atitu<strong>de</strong> mais sensata<br />

em termos <strong>de</strong> resultado sonoro, porém <strong>de</strong>vemos observar<br />

que a colocação <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na está em acordo com o que ele<br />

nos havia dito no seu quarto parágrafo, quando nos falou<br />

sobre a altura em que se realizam as cadências.<br />

Um assunto que não chegou a ser abor<strong>da</strong>do por Via<strong>da</strong>na,<br />

mas o foi por seus sucessores, é o <strong>da</strong> transposição. Cita<strong>da</strong><br />

como uma <strong>da</strong>s técnicas que o músico <strong>de</strong>ve dominar para<br />

acompanhar com proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>, Bianciardi chega a inserir<br />

em seu trabalho uma tabela <strong>de</strong> transposição a todos os<br />

tons (Fig.4). Foi provavelmente criticado por Agazzari, que<br />

recomen<strong>da</strong> a transposição à 4ª ou à 5ª, algumas vezes um<br />

tom abaixo ou acima, examinando pelas consonâncias<br />

naturais quais as transposições apropria<strong>da</strong>s, e segundo<br />

suas próprias palavras “não como é feito por alguns que<br />

preten<strong>de</strong>m tocar em todos os tons”.<br />

5 - Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

Através do estudo <strong>de</strong>talhado <strong>da</strong>s primeiras fontes<br />

históricas sobre Baixo Contínuo, fica claro que os primeiros<br />

compositores a se <strong>de</strong>bruçarem sobre o assunto o fizeram<br />

imbuídos <strong>da</strong> intuição - ou talvez mesmo <strong>da</strong> convicção - <strong>de</strong><br />

que estavam li<strong>da</strong>ndo com idéias novas, porém profun<strong>da</strong>s,<br />

modificando aspectos estruturais <strong>da</strong> linguagem musical<br />

e, portanto, inovando com a indicação <strong>de</strong> novas direções<br />

para a música. Ain<strong>da</strong> que estas não sejam constatações<br />

inéditas, são importantes e necessárias para uma total<br />

compreensão <strong>da</strong> essência do assunto.<br />

Os aspectos teóricos estu<strong>da</strong>dos <strong>de</strong>monstram que a<br />

música <strong>da</strong>quele período necessitava ser compreendi<strong>da</strong><br />

como discurso horizontal. As linhas musicais, vocais<br />

ou instrumentais, é que produzem a harmonia, e não o<br />

contrário. Portanto, a linha do baixo <strong>de</strong>ve ser entendi<strong>da</strong><br />

como direcionadora, tanto quanto a linha do cantor ou<br />

do instrumento melódico solista. Os números colocados<br />

indicando a harmonia que preenche o espaço entre as duas<br />

linhas <strong>de</strong>vem expressar o caminho lógico e claro para que<br />

o conjunto soe compreensível, ou seja, bem resolvido <strong>de</strong><br />

acordo com as regras harmônicas que começavam a se<br />

estruturar. Des<strong>de</strong> o princípio, como expressado por Via<strong>da</strong>na,<br />

Agazzari e Bianciardi, é evi<strong>de</strong>nte a preocupação com a<br />

condução <strong>da</strong>s vozes e com os dobramentos <strong>de</strong> notas.<br />

A fun<strong>da</strong>mentação teórica e os ensinamentos contidos<br />

nos textos dos três autores abor<strong>da</strong>dos po<strong>de</strong>m atualmente<br />

parecer muito singelos, se comparados às publicações<br />

mo<strong>de</strong>rnas sobre baixo contínuo ou mesmo aos gran<strong>de</strong>s<br />

tratadistas do século XVIII. Contudo, se analisados<br />

sob uma ótica histórica e didática, tornam-se úteis<br />

para o entendimento dos princípios que nortearam o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sta prática, fazendo com que se<br />

possa encarar com mais simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> seu aprendizado e<br />

aplicação. Tal análise levou à conclusão <strong>de</strong> que o princípio


ROSA, S. A. Primeiros tratados italianos do século XVII sobre baixo contínuo... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 41-47<br />

que <strong>de</strong>terminou o surgimento <strong>de</strong> uma nova técnica <strong>de</strong><br />

composição musical foi o <strong>de</strong> criar condições favoráveis<br />

para um perfeito acompanhamento e conseqüente<br />

entendimento <strong>da</strong>s idéias musicais. Os principais pontos<br />

em comum entre os autores, tais como a introdução<br />

<strong>da</strong> linha contínua do baixo como elemento essencial, a<br />

preocupação em evitar movimentos paralelos entre as<br />

Fig.4: Exemplo do trabalho <strong>de</strong> Bianciardi (transposição).<br />

vozes, a recomen<strong>da</strong>ção do uso do movimento contrário,<br />

a unanimi<strong>da</strong><strong>de</strong> em torno dos instrumentos consi<strong>de</strong>rados<br />

mais aptos ao acompanhamento, o cui<strong>da</strong>do com o volume<br />

sonoro e acima <strong>de</strong> tudo a preocupação com a evi<strong>de</strong>nciação<br />

e clareza <strong>da</strong> linha melódica, mostraram-se sólidos e<br />

pertinentes, atravessando um longo período <strong>da</strong> história e<br />

abrindo caminho para quase dois séculos <strong>de</strong> música.<br />

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Referências<br />

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ARNOLD, F.T. The Art of Accompaniment from a Thorough-Bass. Nova Iorque: Dover, 1965, vol.1.<br />

BASSUS GENERALIS. Organizado por B. Lang. Mantido pelo Conservatório <strong>de</strong> Genebra. 2004, atualizado em 2007.<br />

Apresenta traduções e textos sobre fontes históricas <strong>de</strong> baixo contínuo. Disponível em: . Acesso em: 23/05/2005, 28/10/2007.<br />

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DONINGTON, R. The Interpretation of Early Music. 2 ed. Londres: Faber &Faber, 1975.<br />

GROUT, D. J.; PALISCA, C. V. História <strong>da</strong> <strong>Música</strong> Oci<strong>de</strong>ntal. 2.ed. Lisboa: Gradiva, 2001.<br />

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Publishers Limited, 1989, vol. 23, p.458/467.<br />

LANG, B. On the Stylistic Context of the Preface to the Organ Voice Book of the “Cento Concerti Ecclesiastici” by Lodovico<br />

Grossi <strong>da</strong> Via<strong>da</strong>na. In: BASSUS GENERALIS. Organizado por B. Lang. Mantido pelo Conservatório <strong>de</strong> Genebra. Apresenta<br />

traduções e textos sobre fontes históricas <strong>de</strong> baixo contínuo. 2007. Disponível em: .<br />

Acesso em 24/10/2007.<br />

O’REAGAN, N. Lodovico <strong>da</strong> Via<strong>da</strong>na and the Origins of the Roman Concerto Eclesiastico. The Journal of Seventeenth-<br />

Century Music. University of Illinois Press, vol. 6 (2000), n.1.Disponível em: . Acesso<br />

em: 25/05/2005.<br />

VIADANA, L. Preface to One Hundred Sacred Concertos op.12, in Source Readings in Music History. Ed. by Oliver Strunk,<br />

Nova Iorque: W.W. Norton & Company, N.Y. 1998.<br />

Stella Almei<strong>da</strong> Rosa, pianista e cravista, graduou-se em piano pela UNESP (1987) e é mestre em música (cravo) pela<br />

UNICAMP (2007). É a pianista <strong>da</strong> Ban<strong>da</strong> Sinfônica do Estado <strong>de</strong> São Paulo, liga<strong>da</strong> à divulgação <strong>da</strong> música brasileira<br />

contemporânea, além <strong>de</strong> musicista regularmente convi<strong>da</strong><strong>da</strong> junto à Orquestra Sinfônica do Estado <strong>de</strong> São Paulo. Como<br />

cravista, é membro fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Orquestra <strong>de</strong> Câmara Engenho Barroco, com a qual gravou os CDs “Engenho Barroco”,<br />

com repertório do barroco europeu, e uma coleção <strong>de</strong> três CDs que contemplam o “Acervo Musical <strong>de</strong> Mariana” pelo<br />

Projeto Petrobrás <strong>de</strong> Restauração e Difusão <strong>de</strong> Partituras, e também <strong>da</strong> Bachiana Chamber Orchestra, cujo primeiro<br />

CD é <strong>de</strong>dicado às Suítes Orquestrais <strong>de</strong> J.S.Bach. Dedica-se à execução <strong>da</strong> música antiga historicamente orienta<strong>da</strong>,<br />

participando <strong>de</strong> várias formações camerísticas com instrumentos <strong>de</strong> época ou mo<strong>de</strong>rnos. Foi professora <strong>de</strong> “Iniciação ao<br />

Baixo Contínuo” no V Festival “<strong>Música</strong> nas Montanhas”, realizado em Poços <strong>de</strong> Cal<strong>da</strong>s e leciona música <strong>de</strong> câmara no<br />

Conservatório Souza Lima em São Paulo.


ROSA, S. A. Primeiros tratados italianos do século XVII sobre baixo contínuo... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 41-47<br />

Notas<br />

1 Compositor italiano, também fra<strong>de</strong> menorita, viveu <strong>de</strong> c. 1560 a 1627. Foi maestro di capella (mestre <strong>de</strong> capela) <strong>da</strong>s catedrais <strong>de</strong> Roma, Concórdia e<br />

Fano. Professor e compositor principalmente <strong>de</strong> obras sacras, também escreveu canzonetas e obras para conjunto instrumental, <strong>de</strong>stacando-se na<br />

época por sua escrita expressiva. Tornou-se conhecido por seus Cento Concerti Eclesiastici.<br />

2 Vivendo entre 1578 e 1640, foi compositor e escritor, tendo ocupado os cargos <strong>de</strong> maestro di capella em Roma e provavelmente em Siena. De sua<br />

obra <strong>de</strong>staca-se o valioso tratado sobre baixo contínuo, mas também sobreviveram 17 livros <strong>de</strong> música sacra, cinco <strong>de</strong> madrigais e um drama<br />

pastorale, Eumelio, cuja primeira apresentação ocorreu em 1606 (Johnson, M.F. In The Musical Quarterly, Vol. 57, No. 3 Jul., 1971, pp. 491-505.<br />

Disponível em https://access.oxfordjournals.org/oup/login/local.do).<br />

3 Compositor nascido em Casole d’Elsa, Itália em 1570 (1/2). Foi organista e mestre <strong>de</strong> capela <strong>da</strong> Catedral <strong>de</strong> Siena, on<strong>de</strong> faleceu em 1607. Sua obra<br />

mais conheci<strong>da</strong> é a Missa Octo Vocum.<br />

4 Alessandro Striggio, compositor e instrumentista italiano, nasceu em Mântua em c.1536-7, e morreu na mesma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> em 1592. Foi um dos mais<br />

importantes compositores <strong>de</strong> madrigais e música para palco na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XVI. A obra em questão é Ecce beatam lucem, moteto a<br />

40 vozes, para 4 coros <strong>de</strong> 8,10,16 e 6 vozes e órgão contínuo; foi executa<strong>da</strong> provavelmente em 1568, mas a cópia do manuscrito que sobreviveu é<br />

<strong>de</strong> 1587. (The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Nova Iorque. Macmillan Publishers. 1980, vol. 18, p. 271-274).<br />

5 Essa prática ficou conheci<strong>da</strong> como “baixos <strong>de</strong> órgão”, e freqüentemente servia <strong>de</strong> base para dois ou mais grupos harmônicos ou coros. (Arnold, 1965,<br />

p.6 ).<br />

6 Ou “Tablatura”, que é um sistema <strong>de</strong> notação que utiliza outros sinais que não as notas musicais, tais como letras e algarismos, indicando como<br />

produzir uma nota ou acor<strong>de</strong> e sua duração. Nesse caso, porém, interpreta-se a tablatura como uma espécie <strong>de</strong> arranjo que o instrumentista <strong>de</strong><br />

teclado ou alaú<strong>de</strong> <strong>de</strong>via fazer <strong>da</strong> parte vocal <strong>de</strong> uma obra que fosse acompanhar.<br />

7 No contexto a palavra partitura significava uma “parte” <strong>de</strong> órgão, que consistia basicamente em dispor as vozes <strong>da</strong> obra em dois pentagramas;<br />

algumas vezes a palavra também po<strong>de</strong>ria referir-se ao processo <strong>de</strong> colocar barras <strong>de</strong> compasso.<br />

8 Em 1553 foi publicado em Roma o Tratado <strong>de</strong> glosas sopra clausulas y otros generos <strong>de</strong> puntos em la musica <strong>de</strong> violones, <strong>de</strong> Diego Ortiz, abor<strong>da</strong>ndo<br />

esse assunto, e mostrando também que a prática <strong>de</strong> improvisar sobre um baixo já era conheci<strong>da</strong> cerca <strong>de</strong> cinquenta anos antes <strong>da</strong> publicação dos<br />

Concerti <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na. Vale lembrar também a tradição <strong>da</strong>s melodias populares com baixos ostinatti.<br />

9 O termo italiano tasto significa tecla, e a expressão tasto solo refere-se à execução <strong>de</strong>sacompanha<strong>da</strong> <strong>da</strong> linha do baixo ao teclado, sem harmonização.<br />

No caso específico do texto acima, po<strong>de</strong> <strong>de</strong>signar o procedimento colla parte, <strong>de</strong> acordo com a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong>s vozes <strong>da</strong> fuga.<br />

10 Vale lembrar que as obras em questão foram publica<strong>da</strong>s em 1607, portanto mais <strong>de</strong> um século antes <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> do Traité <strong>de</strong> l’harmonie réduite à<br />

ses príncipes naturels <strong>de</strong> Rameau (1722), que veio sintetizar e organizar todo o pensamento harmônico <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>da</strong> Renascença. (N.A.)<br />

11 Como já mencionado, as instruções <strong>de</strong> Via<strong>da</strong>na são na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> um prefácio aos Concerti, constando <strong>de</strong> três páginas entre a <strong>de</strong>dicatória e os doze<br />

conselhos. Breve Regola... <strong>de</strong> Bianciardi encontra-se todo numa única folha, chama<strong>da</strong> pelo editor Falcini <strong>de</strong> “carta”. O tratado <strong>de</strong> Agazzari é dos três<br />

o que possui dimensões um pouco maiores, não ultrapassando, no entanto, sete ou oito páginas nas traduções.<br />

12 O lirone é uma lira <strong>da</strong> braccio grave, usado para tocar principalmente acor<strong>de</strong>s sustentados.<br />

13 A cetera (cítara) é um instrumento <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s metálicas, tocado com um plectro.<br />

14 Chitarrina é uma pequena guitarra.<br />

15 Em pares <strong>de</strong> vozes, ou seja, soprano e contralto, tenor e baixo.<br />

47


48<br />

LEMOS, M. S. Retórica e elaboração musical no período barroco... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 48-53<br />

Retórica e elaboração musical no período<br />

barroco: condições e problemas no uso <strong>da</strong>s<br />

categorias <strong>da</strong> retórica no discurso crítico<br />

Maya Suemi Lemos (UERJ; FUNARTE, Rio <strong>de</strong> Janeiro)<br />

mayasuemi@gmail.com<br />

Resumo: A teoria musical quinhentista e seiscentista buscou sistematizar em diversos tratados aquilo que seria uma retórica<br />

musical, estabelecendo relações e analogias entre as categorias <strong>da</strong> retórica <strong>da</strong> palavra e os dispositivos composicionais<br />

intrínsecos ao campo musical. Instrumentos incontornáveis, sem dúvi<strong>da</strong>, para compreen<strong>de</strong>r a penetração <strong>da</strong> arte <strong>da</strong><br />

eloqüência no pensamento e na prática musicais do período, estes tratados não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> causar um <strong>de</strong>sconforto quando<br />

se trata <strong>de</strong> empregá-los como subsídio analítico: abor<strong>da</strong>ndo a retórica clássica <strong>de</strong> maneira parcial ou redutora muitas<br />

vezes, ou apresentando discordâncias significativas entre si, eles nos obrigam a uma interrogação sobre a viabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, as<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s e as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s do emprego <strong>da</strong>s teorias <strong>da</strong> retórica na abor<strong>da</strong>gem dos objetos musicais, tanto no âmbito<br />

<strong>da</strong> elaboração crítica quanto <strong>da</strong> praxis interpretativa.<br />

Palavras-chave: Barroco, retórica musical, análise musical, teoria musical.<br />

Rhetoric and musical elaboration in the baroque period: conditions and problems of the use of<br />

rhetorical categories in the critical discourse<br />

Abstract: Musical theory in the 16th and 17th centuries sought to systematize in several treatises what could be called<br />

musical rhetoric, establishing relationships and analogies between literary rhetorical categories and the composition<br />

mechanisms inherent to music. These treatises are inevitable tools to un<strong>de</strong>rstand the <strong>de</strong>pth of the influence of the<br />

eloquence’s art on the period’s musical discourse and practice and cause a certain discomfort when employed as<br />

analytical subsidies: addressing classical rhetoric only partially or often superficially, or with significant disagreement<br />

among treatises, they force us to question the viability, the difficulties and the possibilities of employing rhetorical<br />

theories to approach musical objects, both in the critic sphere and in interpretive praxis.<br />

Keywords: Baroque, musical rhetoric, musical analysis, musical theory.<br />

É sob a tutela <strong>da</strong> palavra, bem sabemos, que se elabora<br />

e se realiza o projeto seiscentista <strong>de</strong> uma “nova musica”,<br />

<strong>de</strong> uma “segun<strong>da</strong> prática”, <strong>de</strong> uma “musica poética”–<br />

evocando aqui os termos, respectivamente, <strong>de</strong> Caccini<br />

(1601), Monteverdi (1605) 1 e Burmeister (1606). Projeto<br />

que se configura como uma mu<strong>da</strong>nça radical <strong>de</strong> paradigma<br />

no campo musical, e que lança as bases <strong>de</strong> uma nova<br />

estética musical que nós hoje <strong>de</strong>nominamos barroca.<br />

A influência <strong>da</strong> linguagem verbal sobre as <strong>de</strong>mais formas<br />

<strong>de</strong> expressão não é então, contudo, algo novo. Ela está<br />

longe <strong>de</strong> ser um atributo exclusivo <strong>da</strong> cultura <strong>de</strong>ste<br />

período. Po<strong>de</strong>ríamos dizer mesmo que o discurso verbal,<br />

a oratória e suas categorias mo<strong>de</strong>laram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo<br />

a nossa própria maneira <strong>de</strong> pensar. Pois o pensamento<br />

e sua expressão são faces indissociáveis <strong>de</strong> um único<br />

processo que envolve <strong>de</strong>terminados critérios e maneiras<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.17, 68 p., jan. - jun., 2008<br />

<strong>de</strong> recortar, distinguir, classificar, or<strong>de</strong>nar, hierarquizar e<br />

opor dialeticamente os <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> experiência. A influência<br />

é assim recíproca entre a maneira <strong>de</strong> pensar um objeto e<br />

a maneira <strong>de</strong> exprimir ou <strong>de</strong> sustentar persuasivamente<br />

(no caso <strong>da</strong> retórica) aquilo que do objeto se pensa. Na<strong>da</strong><br />

mais natural, então, que o discurso verbal, intrinsecamente<br />

ligado ao próprio sistema <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> sentido, tenha<br />

sempre marcado to<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> expressão<br />

humanas. Acrescente-se a isto, naquilo que se refere<br />

à arte oratória, o fato <strong>de</strong> que esta aparece, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus<br />

primórdios, como uma disciplina <strong>de</strong> natureza pe<strong>da</strong>gógica,<br />

associa<strong>da</strong> à necessária formação do indivíduo social e,<br />

consequentemente, conformadora <strong>de</strong>ste mesmo indivíduo:<br />

segundo seu mito <strong>de</strong> origem, que remete à Sicília do século<br />

V a.C, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos ci<strong>da</strong>dãos <strong>de</strong> Siracusa <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />

seus direitos <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> diante <strong>da</strong>queles que teriam<br />

sido talvez os primeiros tribunais públicos, teria levado<br />

Recebido em: 15/10/2007 - Aprovado em: 13/02/2008


Corax, discípulo <strong>de</strong> Empédocles, o inventor <strong>da</strong> retórica<br />

segundo Aristóteles, a ensinar as técnicas <strong>da</strong> elaboração<br />

e <strong>da</strong> elocução do discurso persuasivo 2 . Quando, entre os<br />

séculos V e VI já <strong>da</strong> nossa era, se consoli<strong>da</strong> um programa<br />

completo <strong>de</strong> ensino escolar <strong>de</strong>stinado aos homens livres 3 ,<br />

essa mesma retórica já se encontra inseri<strong>da</strong> no trivium,<br />

junto à gramática e a dialética, <strong>de</strong>ntro do conjunto <strong>da</strong>s<br />

sete assim chama<strong>da</strong>s artes liberais. Matéria assim, <strong>de</strong><br />

formação e, po<strong>de</strong>ríamos dizer, <strong>de</strong> conformação básica<br />

do indivíduo social, a técnica <strong>de</strong> elaboração do discurso<br />

verbal não po<strong>de</strong>ria ter senão penetrado to<strong>da</strong>s as formas e<br />

meios <strong>de</strong> expressão, e entre elas, por que não, a música.<br />

No entanto, a influência <strong>da</strong> linguagem verbal e <strong>da</strong> oratória<br />

sobre a música nunca foi tão afirma<strong>da</strong>, <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong> e<br />

teoriza<strong>da</strong> quanto no período barroco. Os compositores e<br />

os teóricos são unânimes, entre o final do século XVI e o<br />

final do século XVII, em afirmar a ascendência <strong>da</strong> palavra<br />

sobre os sons. Caccini <strong>de</strong>clara expressamente, no prefácio<br />

<strong>de</strong> sua coletânea Nuove Musiche, ater-se “àquele estilo<br />

tão louvado por Platão e outros filósofos, que afirmaram<br />

não ser a música outra coisa senão o texto, o ritmo, e por<br />

último o som, e não o contrário”. Um pouco mais adiante<br />

ele afirma: “ocorreu-me a idéia <strong>de</strong> introduzir um gênero <strong>de</strong><br />

música que pu<strong>de</strong>sse quase que falar através <strong>da</strong> harmonia”<br />

(CACCINI, 1601) 4 .<br />

A necessária e efetiva expressão do conteúdo textual<br />

aparece então em todo discurso sobre a música vocal<br />

como sendo a função primeira <strong>de</strong>sta, e acaba por se<br />

imprimir na própria música instrumental. De fato, a música<br />

instrumental her<strong>da</strong> esta orali<strong>da</strong><strong>de</strong>, se mo<strong>de</strong>lando sobre as<br />

formas literárias e poéticas, e termina por carregar também<br />

em si, implicitamente e necessariamente, um discurso, um<br />

discurso dos sons (Klangre<strong>de</strong>), segundo a formulação <strong>de</strong><br />

Johann Mattheson. O mesmo Mattheson se exprime a este<br />

respeito, em 1739, num trecho bastante representativo<br />

<strong>de</strong>sta maneira <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a música, trecho hoje bastante<br />

difundido no âmbito <strong>da</strong> musicologia histórica:<br />

Aquele (...) que preten<strong>de</strong> tocar os outros <strong>de</strong>ve saber exprimir<br />

to<strong>da</strong>s as inclinações do coração por meio <strong>de</strong> simples sons, por<br />

uma associação hábil <strong>de</strong>stes, sem palavras, <strong>de</strong> tal maneira que<br />

o ouvinte possa entendê-los perfeitamente e compreen<strong>de</strong>r<br />

claramente sua inclinação, seu sentido, seu pensamento, sua<br />

intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>, como se se tratasse <strong>de</strong> um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro discurso,<br />

com to<strong>da</strong>s as suas partes e cesuras correspon<strong>de</strong>ntes. 5<br />

(MATTHESON, 1739, II, cap. 12, §31)<br />

Que se faça aqui uma rápi<strong>da</strong> observação contextualizando<br />

a insistência que se observa na tratadística musical <strong>de</strong><br />

então sobre a arte oratória: tendo sido restaura<strong>da</strong> pela<br />

filologia quatrocentista italiana com o intuito <strong>de</strong> fazer<br />

face ao hermetismo e ao enclausuramento <strong>da</strong> linguagem<br />

escolástica, a retórica vive um momento <strong>de</strong> apogeu já<br />

nas primeiras déca<strong>da</strong>s do século XVI. Ela é toma<strong>da</strong> pelos<br />

humanistas cristãos 6 como o instrumento por excelência<br />

<strong>da</strong> criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> literária e <strong>da</strong> comunicação do saber.<br />

E o contexto <strong>da</strong>s reformas religiosas só faz reforçar<br />

a sua importância na cultura <strong>de</strong>ste século: a disputa<br />

contenciosa entre as diferentes confissões impunha, por<br />

LEMOS, M. S. Retórica e elaboração musical no período barroco... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 48-53<br />

si só, uma teologia entendi<strong>da</strong> e vivi<strong>da</strong> como uma teologia<br />

<strong>da</strong> palavra, <strong>da</strong> predicação, do sermão. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é que<br />

uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> extraordinária <strong>de</strong> tratados <strong>de</strong> eloqüência<br />

<strong>de</strong> diferentes naturezas e horizontes surge e é publica<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> meados do século XVI até o final do século XVIII.<br />

A relativa abundância <strong>de</strong> textos no âmbito musical que<br />

abor<strong>da</strong>m os preceitos e as categorias <strong>da</strong> retórica aparece<br />

assim como um reflexo lógico <strong>de</strong>ste contexto.<br />

Mas voltemos à afirmação <strong>de</strong> Mattheson: ela é uma<br />

apenas entre as tantas que sustentam a afini<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

entre a arte <strong>da</strong> eloqüência e a musica prática. Johann<br />

Joachim Quantz afirma, aproximativamente na mesma<br />

época que Mattheson:<br />

A expressão na música po<strong>de</strong> ser compara<strong>da</strong> àquela <strong>de</strong> um orador.<br />

O orador e o músico têm ambos a mesma intenção, tanto no que<br />

tange as suas composições quanto no que se refere à própria<br />

expressão. Eles querem, ambos, se apo<strong>de</strong>rar dos corações, excitar<br />

ou apaziguar os movimentos <strong>da</strong> alma e levar o ouvinte <strong>de</strong> um<br />

sentimento a outro. 7 (QUANTZ, 1752, XI, §1)<br />

Diante <strong>de</strong> afirmações <strong>de</strong>sta natureza, na<strong>da</strong> mais natural<br />

então do que tentar procurar, hoje, nas categorias <strong>da</strong><br />

expressão verbal e <strong>da</strong> retórica, chaves para compreen<strong>de</strong>r<br />

as manifestações musicais do período barroco, seja isto<br />

com finali<strong>da</strong><strong>de</strong> analítica ou interpretativa. E na<strong>da</strong> mais<br />

natural, igualmente, do que buscar as referências feitas<br />

a estas disciplinas na tratadística musical <strong>de</strong> então.<br />

No entanto, a abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong>stes ensaios teóricos que<br />

chegaram até nós, sejam eles tardo-quinhentistas,<br />

seiscentistas ou setecentistas, não se faz sem alguma<br />

perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong>, sem algum embaraço. Pois elas não só<br />

parecem, primeiramente, abor<strong>da</strong>r a retórica <strong>de</strong> maneira<br />

parcial ou redutora muitas vezes, mas também parecem<br />

frequentemente discor<strong>da</strong>r entre si.<br />

De fato, <strong>de</strong> maneira geral, os poucos aspectos <strong>da</strong> retórica<br />

dos quais os teóricos <strong>da</strong> música costumam tratar são<br />

a dispositio e aspectos <strong>da</strong> elocutio, sobretudo naquilo<br />

que concerne as figuras <strong>de</strong> linguagem, associa<strong>da</strong>s a<br />

dispositivos musicais <strong>de</strong> natureza melódica, rítmica ou<br />

contrapontística. Eles estabelecem ain<strong>da</strong>, algumas vezes,<br />

analogias entre as tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e os diferentes afetos que<br />

elas seriam <strong>capa</strong>zes <strong>de</strong> transmitir, e, mais raramente,<br />

analogias entre os estilos <strong>de</strong> discurso (simples, gran<strong>de</strong>,<br />

médio) e os tipos <strong>de</strong> composição musical.<br />

Tomemos como exemplo uma <strong>da</strong>s obras teóricas notáveis<br />

do início do século XVII, hoje uma referência importante<br />

para o estudo <strong>da</strong> retórica na música, a Musica Poetica<br />

<strong>de</strong> Joachim Burmeister, <strong>de</strong> 1606. Já <strong>de</strong> início o título<br />

subenten<strong>de</strong> que é sob a ótica <strong>da</strong> linguagem verbal que<br />

Burmeister vai exibir a sua sistematização dos princípios<br />

<strong>da</strong> composição musical. E, <strong>de</strong> fato, é muitas vezes com<br />

um léxico emprestado ao campo <strong>da</strong>s letras que ele vai<br />

enunciar os conteúdos: Burmeister falará, por exemplo,<br />

<strong>de</strong> uma “sintaxe <strong>da</strong>s consonâncias” quando se trata <strong>de</strong><br />

abor<strong>da</strong>r as regras contrapontísticas <strong>de</strong> consonância<br />

(título do capítulo IV); ou <strong>de</strong> uma “ortografia” 8 , ou seja,<br />

<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma correta notação musical (título do<br />

49


50<br />

LEMOS, M. S. Retórica e elaboração musical no período barroco... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 48-53<br />

capítulo XI). Mas, uma vez percorrido todo o tratado, nos<br />

<strong>da</strong>mos conta <strong>de</strong> que naquilo que diz respeito às relações<br />

propriamente ditas entre a composição musical e a<br />

linguagem verbal, os únicos aspectos ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente<br />

<strong>de</strong>senvolvidos são, <strong>de</strong> fato, as figuras <strong>de</strong> elocução, objeto<br />

do capítulo XII 9 , e a organização <strong>da</strong>s partes do discurso 10 ,<br />

rapi<strong>da</strong>mente abor<strong>da</strong><strong>da</strong> em parte do capitulo XV.<br />

Outros autores serão ain<strong>da</strong> mais parcimoniosos em<br />

explicitar estas relações. No entanto, mais do que a<br />

exigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos conteúdos <strong>de</strong> fato operacionais, talvez<br />

a razão maior do <strong>de</strong>sconforto que sentimos quando<br />

tentamos lançar mão <strong>de</strong>stes tratados como instrumento<br />

analítico seja a freqüente discordância entre as diversas<br />

teorias. Como exemplo: embora alguns autores enten<strong>da</strong>m<br />

que a inventio <strong>da</strong> retórica correspon<strong>da</strong>, em música, à<br />

escolha dos motivos musicais, <strong>da</strong> instrumentação, do<br />

número <strong>de</strong> vozes <strong>de</strong> uma composição, e que a dispositio<br />

diga respeito à or<strong>de</strong>nação <strong>da</strong>s partes <strong>de</strong>sta composição,<br />

Athanasius Kircher, diferentemente, na sua Musurgia<br />

Universalis, vai sustentar que “a inventio retórica, na<br />

composição musical não é outra coisa senão a construção<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> <strong>da</strong>s formas rítmicas que convém às palavras”, e<br />

que “a dispositio é a expressão agradável <strong>de</strong>stas fórmulas<br />

rítmicas por meio <strong>de</strong> notas exatamente a elas apropria<strong>da</strong>s”<br />

(KIRCHER,1650, livro VIII, capítulo VIII).<br />

Concepções, assim, fun<strong>da</strong>mentalmente discor<strong>da</strong>ntes. As<br />

próprias analogias feitas pelos autores entre os afetos<br />

e os modos ou tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>s – objeto <strong>de</strong> uma relativa<br />

convergência entre as diferentes formulações – não<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> apresentar incongruências que imprimem<br />

necessariamente certa artificiali<strong>da</strong><strong>de</strong> quando se trata<br />

<strong>de</strong> empregá-las 11 .<br />

A isto se acrescenta ain<strong>da</strong> certa perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong> quando<br />

nos <strong>de</strong>frontamos com analogias tipicamente précartesianas<br />

que satisfazem com bastante dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> as<br />

nossas exigências (ou ao menos as nossas habitudines)<br />

epistemológicas mo<strong>de</strong>rnas, mesmo quando se trata <strong>de</strong><br />

um autor <strong>da</strong> envergadura <strong>de</strong> um Kircher, citado acima.<br />

Kircher afirmará, no oitavo livro <strong>de</strong>sta extraordinária<br />

suma humanista que é a sua Musurgia Universalis,<br />

sem esclarecimento ou <strong>de</strong>senvolvimento algum, que<br />

aos três gêneros <strong>de</strong> discurso (<strong>de</strong>liberativo, judiciário e<br />

<strong>de</strong>monstrativo, tal como distinguiu Aristóteles, na sua<br />

Rhetorica), correspon<strong>de</strong>m, respectivamente, os três<br />

gêneros <strong>de</strong> melodia: enarmônico, cromático e diatônico<br />

(KIRCHER, 1650, livro VIII, capítulo VIII). Do como e do<br />

porquê permanecemos nós ignorantes, mas uma amostra<br />

ain<strong>da</strong> mais notável <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> analogia se encontra<br />

no trecho on<strong>de</strong> Kircher trata <strong>da</strong>s figuras ou tropos (ibid).<br />

Depois <strong>de</strong> confessar certo mal-estar na a<strong>da</strong>ptação do<br />

conceito retórico <strong>de</strong> tropo ao campo <strong>da</strong> composição<br />

musical, ele afirma que <strong>da</strong>rá a este conceito uma outra<br />

acepção: “as figuras ou tropos”, diz ele, “não são para nós<br />

mais do que trechos precisos <strong>de</strong> uma melodia acentua<strong>da</strong>,<br />

conotando um sentimento particular. Colocando-as<br />

em relação à diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos doze tons, nós vamos<br />

<strong>de</strong>terminá-las no número <strong>de</strong> doze igualmente” 12 . Assim,<br />

num enca<strong>de</strong>amento causal absolutamente surpreen<strong>de</strong>nte,<br />

é pelo fato <strong>de</strong> as figuras exprimirem sentimentos<br />

particulares, e pelo fato <strong>de</strong> os tons, que também o fazem,<br />

serem doze, que ele sustentará não só que os sentimentos<br />

são <strong>de</strong> número doze (porque a eles correspon<strong>de</strong>m doze<br />

tons), mas também que as figuras são <strong>de</strong> número <strong>de</strong> doze<br />

igualmente, pela mesma razão. E assim, <strong>de</strong> fato, Kircher<br />

vai enumerar doze figuras (pausa, anaphora, clímax ou<br />

gra<strong>da</strong>ção, symploke ou enca<strong>de</strong>amento, homoioploton,<br />

antítese, anabase, catabase, ciclosis, fuga, homoiosis, e<br />

passagem ex abrupto), procurando associar a elas afetos<br />

tais como: o amor, a alegria, a exultação, o distanciamento,<br />

a ira, a feroci<strong>da</strong><strong>de</strong>, a espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong>, a gravi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a<br />

modéstia, a temperança, a religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a compaixão,<br />

o luto, a lamentação e a tristeza. Uma taxionomia que<br />

certamente não recobre nem bem o conjunto <strong>da</strong>s figuras<br />

<strong>da</strong> retórica, nem tampouco, nos parece, o universo <strong>da</strong>s<br />

paixões humanas.<br />

Difícil, <strong>de</strong> fato, enten<strong>de</strong>r e saber como li<strong>da</strong>r com<br />

este conjunto <strong>de</strong> tratados heterogêneo, muitas vezes<br />

contraditório em suas formulações e teorizações, e a nós<br />

frequentemente estranho do ponto <strong>de</strong> vista epistemológico.<br />

No entanto, não é difícil apontar explicações ou arriscar<br />

hipóteses justificativas para este panorama teórico. As<br />

analogias <strong>de</strong> Kircher cita<strong>da</strong>s, que nós hoje percebemos<br />

praticamente como uma barbari<strong>da</strong><strong>de</strong> epistemológica são,<br />

na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, absolutamente coerentes com um esquema<br />

<strong>de</strong> pensamento e <strong>de</strong> apreensão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, em vigor até<br />

o final do século XVI, que se fun<strong>da</strong>menta num sistema<br />

<strong>de</strong> similitu<strong>de</strong>s, concordâncias e afini<strong>da</strong><strong>de</strong>s sucessivas,<br />

or<strong>de</strong>nadoras do mundo e garantia <strong>de</strong> sua coerência. Por<br />

meio <strong>de</strong>ste sistema se enca<strong>de</strong>iam as coisas do mundo umas<br />

às outras, as coisas do céu às <strong>da</strong> terra, as coisas visíveis<br />

às invisíveis. “O mundo forma ca<strong>de</strong>ia com ele mesmo”<br />

- como se exprime Michel Foucault a este respeito <strong>de</strong><br />

forma lapi<strong>da</strong>r – “pela força <strong>de</strong>sta harmonia que avizinha o<br />

semelhante e assimila os próximos ” (FOUCAULT, 1966, p.<br />

34). Não é então <strong>de</strong> se estranhar, num esforço teórico cuja<br />

finali<strong>da</strong><strong>de</strong>, em última análise, parece ser menos investigar<br />

as causas do que justificar os efeitos, que os três tipos <strong>de</strong><br />

discurso retórico se assimilem quase que gratuitamente<br />

aos três gêneros melódicos, ou ain<strong>da</strong> que o conjunto dos<br />

doze tons musicais simpatize simetricamente com uma<br />

coleção <strong>de</strong> doze figuras musicais, pelo simples fato <strong>de</strong><br />

que eles dizem respeito, ambos, aos afetos humanos.<br />

Mas outras razões po<strong>de</strong>m ser aponta<strong>da</strong>s para justificar<br />

as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s que encontramos em aplicar estas<br />

teorizações <strong>da</strong> retórica musical. O aspecto fragmentário e<br />

parcial que elas apresentam talvez reflita, pensamos, uma<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> real em abor<strong>da</strong>r um fenômeno excessivamente<br />

amalgamado ao sistema <strong>de</strong> pensamento e representação<br />

<strong>da</strong> época; a uma certa impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> recuo diante <strong>de</strong><br />

uma disciplina talvez por <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>terminante <strong>da</strong>s formas<br />

<strong>de</strong> expressão. A retórica, <strong>de</strong> tão implícita na maneira <strong>de</strong><br />

pensar e <strong>de</strong> dizer, constituiria <strong>de</strong> certa maneira um ponto<br />

cego na visão do homem barroco, um a priori muito mais


entranhado na cultura <strong>de</strong>ste homem do que ele próprio<br />

po<strong>de</strong>ria pensar e, consequentemente, exprimir.<br />

Talvez seja, ain<strong>da</strong>, igualmente lícito enten<strong>de</strong>r estas<br />

teorizações menos como um esforço <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong><br />

conceitos <strong>de</strong> fato operacionais do que como uma tentativa<br />

artificial <strong>de</strong> conferir um estatuto mais positivo à praxis<br />

musical, na época <strong>de</strong>svaloriza<strong>da</strong> eticamente. É preciso<br />

lembrar que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a alta i<strong>da</strong><strong>de</strong> média, a música, enquanto<br />

disciplina especulativa, pertence ao quadrivium – estágio<br />

culminante do programa <strong>de</strong> formação dos homens<br />

livres. A música prática, no entanto, contrariamente, se<br />

inscreve não entre as artes liberais, mas entre as belasartes.<br />

Ela estaria, assim, volta<strong>da</strong> não para a busca <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas tão simplesmente para a contemplação<br />

estética, sofrendo já <strong>de</strong> uma certa negativi<strong>da</strong><strong>de</strong> ética. A<br />

mesma música prática é ain<strong>da</strong> assimila<strong>da</strong> aos prazeres<br />

sensuais por um lado, e, por outro, aponta<strong>da</strong> como<br />

instrumento por excelência <strong>da</strong> manipulação dos afetos,<br />

aparecendo, portanto como potencialmente perniciosa.<br />

Não são poucos os testemunhos <strong>de</strong>ste estatuto ético<br />

no mínimo ambíguo <strong>da</strong> arte musical 13 . A assimilação<br />

<strong>da</strong> música prática à arte <strong>da</strong> eloqüência teria assim uma<br />

finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> redimi-la eticamente, elevando-a também,<br />

como a retórica, à categoria <strong>de</strong> arte liberal: o po<strong>de</strong>r que<br />

a música teria <strong>de</strong> manipular os afetos do homem, <strong>de</strong><br />

incliná-lo aos mais diversos sentimentos, repeti<strong>da</strong>mente<br />

afirmado pelos autores <strong>da</strong> época, es<strong>capa</strong>ria ao campo<br />

dos prazeres sensuais culposos e entraria no campo<br />

do discurso, necessário ao conhecimento e portanto<br />

consi<strong>de</strong>ravelmente mais positivo.<br />

Estas seriam algumas <strong>da</strong>s possíveis razões que justificariam<br />

certa insuficiência <strong>da</strong> tratadística <strong>da</strong> época naquilo que<br />

concerne a retórica musical – origem <strong>de</strong>ste mal-estar<br />

quase inevitável que sentimos ao tentar empregá-la no<br />

trabalho crítico ou interpretativo. Ora, seja a tratadística<br />

contemporânea mais ou menos suficiente, isto não altera<br />

em na<strong>da</strong> o fato <strong>de</strong> que a oratória é, sim, absolutamente<br />

<strong>de</strong>terminante na elaboração musical do barroco, e que a<br />

sua influência se faz sentir inegavelmente em to<strong>da</strong>s as<br />

formas <strong>da</strong> expressão na época. O que fazer disto então?<br />

Até que ponto e <strong>de</strong> que maneira lançar mão <strong>de</strong>ste material<br />

teórico em nossas tentativas <strong>de</strong> análise?<br />

Pensamos que o conjunto dos tratados <strong>de</strong> retórica musical<br />

<strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado no trabalho analítico, uma vez que<br />

ele não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser, em nenhum momento, uma prova<br />

LEMOS, M. S. Retórica e elaboração musical no período barroco... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 48-53<br />

cabal <strong>da</strong> pertinência <strong>da</strong>s relações existentes então entre<br />

retórica e música. Mais do que isso, estes tratados são, <strong>de</strong><br />

fato, um testemunho precioso e insubstituível <strong>da</strong> maneira<br />

que se teve então <strong>de</strong> conceber a música, em todos os seus<br />

aspectos. No entanto, parece se fazer necessária a luci<strong>de</strong>z<br />

<strong>de</strong> não tomá-los em primeiro grau <strong>de</strong> leitura, sob risco<br />

<strong>de</strong> um trabalho analítico fragmentário e possivelmente<br />

redutor. Pensamos que a análise <strong>da</strong> estrutura retórica <strong>de</strong><br />

um texto musical não <strong>de</strong>va se reduzir à i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong><br />

figuras <strong>de</strong> elocutio no texto musical, ao recorte <strong>de</strong>ste texto<br />

em partes correspon<strong>de</strong>ntes às <strong>da</strong> dispositio retórica, ou à<br />

verificação <strong>da</strong> escolha <strong>da</strong>s tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>s na expressão dos<br />

afetos. Tomados isola<strong>da</strong>mente, estes exercícios talvez não<br />

passem <strong>de</strong> exercícios formais. Pensamos que eles po<strong>de</strong>m<br />

e <strong>de</strong>vem ser empreendidos, sim, mas como consequência<br />

final <strong>de</strong> uma tentativa <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar a estratégia<br />

persuasiva subjacente ao texto musical – estratégia que<br />

<strong>de</strong>termina a estrutura <strong>de</strong> seu edifício retórico, on<strong>de</strong> as<br />

tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e a forma são apenas conseqüências lógicas,<br />

e do qual as figuras não são mais que os ornamentos<br />

visíveis e superficiais.<br />

Enten<strong>de</strong>mos que, justamente <strong>de</strong> modo a fazer jus à<br />

influência tão marcante <strong>da</strong> retórica sobre a música neste<br />

período, seja preciso ir além <strong>da</strong>s fontes contemporâneas a<br />

ela e tentar enxergar aquilo que o homem <strong>de</strong> então talvez<br />

não tenha tido condições <strong>de</strong> enxergar, tão mo<strong>de</strong>lado e<br />

conformado que ele provavelmente esteve pelas categorias<br />

retóricas. É preciso sem dúvi<strong>da</strong> escrutar diretamente as<br />

fontes maiores <strong>da</strong> retórica clássica, fontes <strong>da</strong>s fontes<br />

seiscentistas e setecentistas: a Rhetorica <strong>de</strong> Aristóteles, o<br />

De Oratore <strong>de</strong> Cícero, a Institutio Oratoria <strong>de</strong> Quintiliano,<br />

pra citar apenas o mínimo essencial, po<strong>de</strong>m <strong>da</strong>r sem<br />

dúvi<strong>da</strong> inúmeras pistas <strong>de</strong> leitura, fun<strong>da</strong>mentos para a<br />

construção <strong>de</strong> um instrumental analítico a<strong>de</strong>quado, que<br />

está ain<strong>da</strong> por ser criado. Esta constatação carrega em<br />

si a provocação, o convite e a promessa <strong>de</strong> um processo<br />

<strong>de</strong> construção, <strong>de</strong> elaboração que, pensamos, tem<br />

to<strong>da</strong>s as chances <strong>de</strong> acontecer justamente a partir <strong>da</strong><br />

convergência <strong>de</strong> esforços dos estudiosos por um lado e<br />

dos intérpretes por outro. Esta convergência é a marca<br />

do presente encontro e a razão <strong>da</strong> escolha <strong>de</strong>ste assunto<br />

e <strong>de</strong>ste recorte. Assim como se po<strong>de</strong> dizer, no campo <strong>da</strong><br />

semiótica, que há muito mais sentido numa obra do que o<br />

seu criador pense estar nela imprimindo, diríamos que há<br />

muito mais retórica na música barroca do que os músicos<br />

e teóricos <strong>da</strong> época talvez pensassem. Cabe a nós querer<br />

e <strong>de</strong>scobrir como procurar por ela.<br />

51


52<br />

LEMOS, M. S. Retórica e elaboração musical no período barroco... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 48-53<br />

Referências<br />

BURMEISTER, Joachim. Musica Poetica. Rostock, 1606.<br />

CACCINI, Giulio. Le Nuove Musiche. Firenze, 1601.<br />

CHARPENTIER, Marc-Antoine. Règles <strong>de</strong> Composition. Paris, 1690.<br />

FINCK, Hermann. Musica Pratica. Wittenberg, 1556.<br />

FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses – Une archéologie <strong>de</strong>s sciences humaines. s.l., Ed. Gallimard, 1966.<br />

KIRCHER, Athanasius. Musurgia universalis sive ars magna consoni et dissoni. Roma, 1650.<br />

MATTHESON, Johann. Das Neu-eröffnete Orchester, Hamburg, 1713.<br />

______. Der vollkommene Capellmeister. Hamburg, 1739.<br />

MONTEVERDI, Claudio. Quinto libro <strong>de</strong> madrigali a cinque voci. Venezia, 1605.<br />

QUANTZ, Johann. Versuch einer Anweisung die Flöte traversière zu spielen. Berlin, 1752.<br />

SCHUBART, Christian Friedrich Daniel. I<strong>de</strong>en zu einer Ästhetik <strong>de</strong>r Tonkunst. Wien, 1806.<br />

ZARLINO, Gioseffo. Istitutioni Harmonici. Venezia, 1558.<br />

Maya Suemi Lemos é Doutora em História <strong>da</strong> <strong>Música</strong> e Musicologia pela Université <strong>de</strong> Paris IV-Sorbonne; Mestre<br />

em História <strong>da</strong> <strong>Música</strong> e Musicologia pela mesma universi<strong>da</strong><strong>de</strong>; gradua<strong>da</strong> em Licenciatura Plena – Habilitação<br />

em <strong>Música</strong> pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro (UNIRIO); Professora Assistente na área <strong>de</strong> Artes na Educação na<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro (UERJ); Técnico em Assuntos Culturais na Fun<strong>da</strong>ção Nacional <strong>de</strong> Artes<br />

(FUNARTE, MinC); pesquisadora junto ao Centre <strong>de</strong> Recherches sur les Langages Musicaux – CRLM (Université <strong>de</strong><br />

Paris IV – Sorbonne). Áreas <strong>de</strong> atuação e pesquisa: história <strong>da</strong> música, estética, estética musical, análise musical,<br />

retórica, séculos XVI e XVII, música barroca.


Notas<br />

1 No prefácio do Quinto libro <strong>de</strong> madrigali a cinque voci.<br />

LEMOS, M. S. Retórica e elaboração musical no período barroco... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 48-53<br />

2 A tradição conta que, por volta <strong>de</strong> 485 a.C, os tiranos Gelon et Hieron, afim <strong>de</strong> povoar Siracusa, teriam feito <strong>de</strong>portações, expropriações e<br />

transferências <strong>de</strong> habitantes. Quando eles são <strong>de</strong>stituídos do po<strong>de</strong>r em 466 a.C. por um levante <strong>de</strong>mocrático, aqueles que haviam sido expoliados se<br />

vêem obrigados a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r seus direitos à proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> em ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros processos judiciais, diante <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s júris populares. Corax teria ensinado<br />

aos ci<strong>da</strong>dãos as técnicas <strong>de</strong> persuasão, que teriam sido compila<strong>da</strong>s por Tisias, seu discípulo, naquilo que teria sido o primeiro manual <strong>de</strong> arte<br />

oratória, com preceitos práticos acompanhados <strong>de</strong> exemplos utilisáveis nos <strong>de</strong>bates públicos e nos litígios. O nascimento <strong>da</strong> retórica se configura<br />

assim como um marco simbólico <strong>da</strong> passagem <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> interação social baseado na submissão pela força física a um modo civilizado,<br />

propriamente dito, baseado na persuasão pela força somente <strong>da</strong> palavra.<br />

3 Primeiro ensaio <strong>de</strong> sistematização por Martianus Capella (séc. V). Cassiodoro <strong>de</strong>fine o trivium (séc. VI) e Boécio, o quadrivium (séc. VI).<br />

4 No prefácio <strong>de</strong> Le Nuove Musiche.<br />

5 Nossa tradução.<br />

6 Por exemplo, Thomas More na Inglaterra (Carta para a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Oxford), Juan Luis Vivès na Espanha (Pseudodialectus), Guillaume Budé<br />

na França (La Philologie; L’Etu<strong>de</strong> <strong>de</strong>s lettres), Castiglione na Itália (Il libro <strong>de</strong>l Cortigiano), Mélanchthon na Alemanha (Dispositiones Rhetoricae) e<br />

Erasmo (O Eclesiaste; Dialogus Ciceronianus) nos Países Baixos.<br />

7 Nossa tradução.<br />

8 Que não é mais, segundo ele, do que uma correta disposição gráfica <strong>da</strong>s sílabas sob as notas correspon<strong>de</strong>ntes, um espaçamento a<strong>de</strong>quado entre as<br />

sílabas do texto, e o respeito à integri<strong>da</strong><strong>de</strong> do tactus.<br />

9 Figuris seu ornamentis.<br />

10 Burmeister enten<strong>de</strong> que o discurso comporta três partes : 1. Exordium 2. Ipsum corpus carminis 3. Finis.<br />

11 Se tomarmos as <strong>de</strong>scrições dos afetos próprios ao modo dórico, por exemplo, tais como elas constam nos tratados quase contemporâneos <strong>de</strong><br />

Hermann Finck (FINCK, 1556) e Gioseffo Zarlino (ZARLINO, 1558), teremos, no primeiro: « Ele (o modo dórico) tem a melodia mais ligeira, que<br />

<strong>de</strong>sperta os adormecidos e alegra os melancólicos. Como o sol, cuja natureza é a <strong>de</strong> secar o húmido e <strong>de</strong> tudo aquecer com o seu calor, este modo<br />

espanta a moleza e a sonolência. Ele convém aos textos brillantes ». E, na concepção <strong>de</strong> Zarlino, bastante distinta, o mesmo modo aparecerá como<br />

sendo « um pouco triste », po<strong>de</strong>ndo-se « empregá-lo para palavras cheias <strong>de</strong> gravi<strong>da</strong><strong>de</strong>, eleva<strong>da</strong>s e sentenciosas». Os tratados mais tardios, <strong>de</strong> M. A.<br />

Charpentier (1690), Johann Mattheson (1713) e Chr. Fr. D. Schubart (1806) também divergem, por exemplo sobre o ethos <strong>da</strong> tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Mi M:<br />

o primeiro a <strong>de</strong>screve como « briguenta e gritona », o segundo como o tom <strong>da</strong> « tristeza <strong>de</strong>sespera<strong>da</strong> e mortal, do amor <strong>de</strong>sesperado ; separação<br />

fatal do corpo e <strong>da</strong> alma ; cortante, opressor », enquanto o último fala <strong>de</strong> uma « felici<strong>da</strong><strong>de</strong> ruidosa », <strong>de</strong> uma « alegria sorri<strong>de</strong>nte, porém sem gozo<br />

completo ».<br />

12 Nossa tradução.<br />

13 Po<strong>de</strong>ríamos citar inúmeras pinturas contemporâneas <strong>de</strong> caráter moralizante que o expressam, ou bem inúmeros textos como, por exemplo, o prefácio<br />

do Libro <strong>de</strong>lle laudi spirituali (…) Stampata ad instanza <strong>de</strong>lli Reverendi Padri <strong>de</strong>lla Congregatione <strong>de</strong>ll’Oratorio (Roma, 1589): “Não há dúvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> que<br />

o homem, por ser temperado como ele é, não sei <strong>de</strong> que maneira, se impregna, se transforma, se modifica e se <strong>de</strong>ixa tomar pelos diversos afetos<br />

quando ouve música, a poesia e outras coisas similares que contém ritmo e proporção; e é assim que alguns se esforçam, com suas composições e<br />

poemas, em exprimir com graça uma história <strong>de</strong> amor lascivo, ou bem em louvar os cabelos ou os olhos <strong>de</strong> uma mulher, ou ain<strong>da</strong> em urdir outras<br />

inépcias amorosas, travestindo-as com a doçura e a harmonia <strong>da</strong> música. Não se conseguiria dizer a que ponto estes prejudicaram e continuam a<br />

prejudicar a casti<strong>da</strong><strong>de</strong> dos hábitos cristãos, tendo exercido sua arte inoportunamente. Pois o homem se per<strong>de</strong>, invadido pela suavi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> música e<br />

pelo metro <strong>da</strong> poesia, se <strong>de</strong>ixando cair nos prazeres dos sentidos. É como se ele bebesse avi<strong>da</strong>mente veneno em um cálice <strong>de</strong> ouro, tendo sua nobreza<br />

macula<strong>da</strong> e seu vigor primitivo perdido, levado suavemente à morte, por meio <strong>de</strong>sta ilusão.” (Nossa tradução)<br />

53


54<br />

MASSIMI, M. Delectare, movere et docere: retórica e educação no Barroco ... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 54-59<br />

Delectare, movere et docere: retórica e<br />

educação no Barroco<br />

Marina Massimi (Departamento <strong>de</strong> Psicologia e Educação- FFCLPR-USP, São Paulo)<br />

mmassimi3@yahoo.com<br />

Resumo: A articulação entre <strong>de</strong>lectare, movere et docere que <strong>de</strong>fine o objetivo <strong>da</strong> retórica antiga e mo<strong>de</strong>rna implica<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as origens uma concepção do uso <strong>da</strong> palavra volta<strong>da</strong> para a formação do homem e portanto uma estreita conexão<br />

<strong>da</strong> arte retórica com a arte <strong>de</strong> educar. A análise <strong>de</strong> manuais que se constituíram em instrumentos essenciais <strong>de</strong>sta<br />

formação aponta a existência <strong>de</strong>ssa conexão que se realiza pela <strong>capa</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> palavra mobilizar a pessoa em seu<br />

dinamismo corporal, psíquico e espiritual. No Brasil, a concepção <strong>da</strong> função educativa <strong>da</strong> palavra fun<strong>da</strong>menta to<strong>da</strong> a<br />

prática missionária dos jesuítas. Esta função é enfatiza<strong>da</strong> levando em conta o caráter oral <strong>da</strong> cultura e <strong>de</strong> sua transmissão<br />

e a relevância atribuí<strong>da</strong> ao po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> palavra pelas tradições culturais indígenas.<br />

Palavras-chave: retórica e educação; Barroco; história dos saberes psicológicos; cultura brasileira na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna<br />

Delectare, movere et docere: rhetoric and education in the Baroque<br />

Abstract: The articulation between <strong>de</strong>lectare, movere et docere, which <strong>de</strong>fines the objective of ancient and mo<strong>de</strong>rn<br />

rhetoric has always implied a concept regarding the use of words in the formation of man, and, therefore, it established<br />

a close connection between rhetoric art and the art of education. The analysis of handbooks that became essential<br />

instruments for this education shows the existence of this connection, which occurs through the ability that words<br />

have to mobilize people regarding their body, psychic, and spiritual dynamism. In Brazil, the concept of the educational<br />

function of words is the foun<strong>da</strong>tion for the complete missionary practice of the Jesuits. Emphasis on this function takes<br />

into consi<strong>de</strong>ration the oral character of culture and its transmission, and the relevance assigned to the power of words<br />

by indigenous cultural traditions.<br />

Keywords: rhetoric and education; Baroque; history of psychological knowledge; Brazilian culture in Mo<strong>de</strong>rn Ages.<br />

1 - Introdução<br />

A articulação entre <strong>de</strong>lectare, movere et docere que <strong>de</strong>fine<br />

o objetivo <strong>da</strong> retórica antiga e mo<strong>de</strong>rna implica <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />

origens uma concepção do uso <strong>da</strong> palavra volta<strong>da</strong> para a<br />

formação do homem e portanto uma estreita conexão <strong>da</strong><br />

arte retórica com a arte <strong>de</strong> educar. Não por acaso estas<br />

competências foram amplamente valoriza<strong>da</strong>s e atualiza<strong>da</strong>s<br />

pelo Humanismo <strong>de</strong> modo a constituir-se em importantes<br />

alicerces do universo cultural <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna.<br />

Na “i<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> eloquência” - como foi <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> a I<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Mo<strong>de</strong>rna por Marc Fumaroli 1 - um papel <strong>de</strong>terminante<br />

no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sta área foi realizado pela retórica<br />

sagra<strong>da</strong>. Com efeito, o Concílio <strong>de</strong> Trento atribuíra<br />

ao ministério <strong>da</strong> palavra uma função importante na<br />

renovação <strong>da</strong> Igreja como um todo: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os inícios do<br />

Concílio em 1545 2 , o tema <strong>da</strong> pregação tornou-se central<br />

nas discussões dos padres conciliares (RUSCONI, 1981),<br />

sendo reconheci<strong>da</strong> como o principal meio <strong>de</strong> doutrinação<br />

do povo. Em <strong>de</strong>corrência disto, insiste-se também<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.17, 68 p., jan. - jun., 200x<br />

na formação pe<strong>da</strong>gógica em retórica nos colégios e<br />

seminários 3 , pois a aquisição <strong>de</strong>sta competência é ti<strong>da</strong><br />

como fator <strong>de</strong>terminante para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />

uma eloqüência cristã realmente eficaz e culturalmente<br />

significativa enquanto instrumento <strong>de</strong> transmissão<br />

doutrinária junto a populações na maioria <strong>da</strong>s vezes<br />

marca<strong>da</strong>s pela orali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O estudo <strong>da</strong> retórica espalha-se na Europa, através <strong>de</strong><br />

várias obras <strong>de</strong>ste gênero, <strong>de</strong>ntre os quais o Ecclesiasticae<br />

Rhetoricae sive <strong>de</strong> ratione concionandi libri tres (1576)<br />

<strong>de</strong> Luís <strong>de</strong> Grana<strong>da</strong> é o mais importante. Na Europa<br />

entre 1500 e 1700 foram publica<strong>da</strong>s cerca <strong>de</strong> 200 obras<br />

<strong>de</strong>dica<strong>da</strong>s à retórica sagra<strong>da</strong>, mas estes conhecimentos<br />

serão <strong>de</strong>terminantes também no que diz respeito à<br />

prática <strong>da</strong> pregação na América Latina (PAWLING,<br />

2004) e nota<strong>da</strong>mente no Brasil. O tratado <strong>de</strong> Grana<strong>da</strong>,<br />

por exemplo, comparece com freqüência nas bibliotecas<br />

eclesiástica e <strong>da</strong>s or<strong>de</strong>ns religiosas brasileiras.<br />

Recebido em: 27/10/2007 - Aprovado em: 12/01/2008


MASSIMI, M. Delectare, movere et docere: retórica e educação no Barroco ... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 54-59<br />

2 - Breve análise <strong>de</strong> dois manuais<br />

A análise <strong>de</strong>sses manuais, que se constituíram em<br />

instrumentos essenciais <strong>da</strong> formação na arte do discurso,<br />

tais como o <strong>de</strong> Luís <strong>de</strong> Grana<strong>da</strong> OP (1576) e o <strong>de</strong> Cipriano<br />

Soares SI (1580) aponta com clareza a existência <strong>da</strong>s<br />

relações entre retórica e educação.<br />

A relação entre retórica e educação é estabeleci<strong>da</strong> por<br />

Grana<strong>da</strong> já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras páginas do manual <strong>de</strong><br />

sua autoria concebido para uso didático. Com efeito,<br />

na <strong>de</strong>dicatória <strong>da</strong> obra, <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> aos estu<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora, lê-se que sua finali<strong>da</strong><strong>de</strong> preten<strong>de</strong><br />

ser a <strong>de</strong> “tornar seus alunos, insignes pregadores”<br />

(GRANADA, 1945, p. 489, trad. nossa). Grana<strong>da</strong> refere-se<br />

à autori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um autor cristão Agostinho (De Doctrina<br />

cristã, lib. 4, cap. 3 ) e <strong>de</strong> um autor pagão Cícero (De<br />

Oratoribus, lib. 1, cap. 3), para fortalecer a afirmação <strong>de</strong><br />

que “a arte do bem falar <strong>de</strong>ve ser aprendi<strong>da</strong> na juventu<strong>de</strong>”<br />

e será assimila<strong>da</strong> com maior facili<strong>da</strong><strong>de</strong> “quanto mais<br />

os alunos estiverem imbuídos pelas ciências dialéticas e<br />

filosóficas” (ibi<strong>de</strong>m).<br />

O livro trata <strong>da</strong>s quatro partes <strong>da</strong> retórica: a invenção, a<br />

disposição, a elocução, a pronúncia ou ação - parte esta,<br />

muito importante pois, sem ela, as <strong>de</strong>mais seriam ineficazes.<br />

Quanto à invenção, à qual cabe “o falar sentenças<br />

esclareci<strong>da</strong>s e significativas, acomo<strong>da</strong><strong>da</strong>s a um <strong>de</strong>terminado<br />

<strong>de</strong>signo”, Grana<strong>da</strong> refere-se à importância dos lugares<br />

comuns disponibilizados pelas artes dialéticas (extraídos dos<br />

livros aristotélicos dos Tópicos) e como exemplo <strong>de</strong> uma rica<br />

fonte a ser consulta<strong>da</strong> cita o livro Institutiones dialecticae <strong>de</strong><br />

Pedro <strong>da</strong> Fonseca. Por sua vez, à elocução “cabe explicar <strong>de</strong><br />

modo conveniente to<strong>da</strong> a força <strong>da</strong> sentença e <strong>de</strong>clarar com<br />

as palavras os sentimentos do ânimo, <strong>de</strong> modo que aquilo que<br />

ele mesmo concebe, ao falar o transfon<strong>da</strong> para os ânimos dos<br />

ouvintes”. À pronúncia cabe “acomo<strong>da</strong>r a voz, o gesto, e o<br />

rosto à coisa dita” (GRANADA, 1945, p. 490, tradução nossa),<br />

sendo que a relevância <strong>de</strong>ste recurso é evi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong> por uma<br />

observação <strong>de</strong> teor autobiográfico, escrita no Prólogo, on<strong>de</strong><br />

Grana<strong>da</strong> <strong>de</strong>clara que, tendo <strong>de</strong>dicado <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> à<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever sermões, avaliou o fruto <strong>de</strong>ste trabalho<br />

como escasso por <strong>de</strong>scui<strong>da</strong>r <strong>de</strong> uma parte importante <strong>da</strong>s<br />

funções do pregador: a pronúncia. Sendo a pregação no mais<br />

<strong>da</strong>s vezes dirigi<strong>da</strong> à multidão inculta, a qual não concebe as<br />

coisas pelo conhecimento intelectual direto, mas conforme<br />

o modo em que elas são explica<strong>da</strong>s e pronuncia<strong>da</strong>s, é<br />

necessário que os pregadores fiquem atentos ao fato <strong>de</strong> que<br />

“os ouvintes ru<strong>de</strong>s e imperitos, se você diz a eles algo com<br />

força e veemência, também com veemência comovem-se;<br />

e <strong>de</strong>ste modo concebem o mesmo afeto que você expressar<br />

com palavras, voz e semblante” (ibi<strong>de</strong>m). Pois, o povo “não<br />

apenas <strong>de</strong>ve ser convencido com razões, mas também <strong>de</strong>ve<br />

ser comovido com afetos, e atraído bran<strong>da</strong>mente com vários<br />

modos <strong>de</strong> dizer e com a elegância <strong>da</strong> oração” (GRANADA,<br />

1945, p. 491, tradução nossa).<br />

Segundo Grana<strong>da</strong>, a facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “dizer” apren<strong>de</strong>se<br />

pela arte, pela imitação e pelo exercício, sendo a<br />

<strong>capa</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> discorrer <strong>da</strong><strong>da</strong> pela natureza à criatura<br />

racional e aperfeiçoa<strong>da</strong> pela prática. Alguns homens<br />

são mais dotados pela natureza <strong>de</strong>sta <strong>capa</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas<br />

pela imitação todos po<strong>de</strong>m alcançar o conhecimento<br />

<strong>da</strong> arte do bem dizer. A retórica é <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> como “uma<br />

arte <strong>de</strong> bem falar ou uma ciência <strong>de</strong> falar com prudência<br />

e adorno acerca <strong>de</strong> qualquer assunto” (ibi<strong>de</strong>m), sendo<br />

que seu conhecimento proporciona os mo<strong>de</strong>los a imitar.<br />

A aprendizagem <strong>da</strong> arte retórica no tempo converterse-á<br />

em hábito, <strong>de</strong> modo que se tornará uma “segun<strong>da</strong><br />

natureza” do orador.<br />

No caso do pregador, o ofício é vivificado pelo sentimento<br />

do “divino ardor”, ou seja, pela tenção ao objetivo, que<br />

é ain<strong>da</strong> mais <strong>de</strong>terminante quanto à eficácia do que<br />

to<strong>da</strong>s as escolas e os preceitos <strong>da</strong> retórica: aquele que<br />

possui este afeto discorre <strong>de</strong> modo tal que “imprime nos<br />

ânimos dos ouvintes aquele afeto que antecipa<strong>da</strong>mente<br />

manifesta nele mesmo, com a voz, com o semblante, com<br />

o gesto, com a acrimônia e valentia no dizer” (GRANADA,<br />

1945, p. 503, trad. nossa).<br />

Grana<strong>da</strong> retoma a divisão dos gêneros <strong>da</strong> retórica proposta<br />

por Aristóteles e confirma<strong>da</strong> por Cícero: “<strong>de</strong>monstrativo”<br />

(utilizado para louvor ou vitupério <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong><br />

pessoa); “<strong>de</strong>liberativo” (a favor ou contra a pronúncia <strong>de</strong><br />

uma sentença); “judicial” (<strong>de</strong> acusação ou <strong>de</strong>fesa); omite-se<br />

o “judicial”, por não ser <strong>de</strong> competência dos pregadores.<br />

Sendo que o objetivo do discurso é persuadir pela<br />

energia do dizer, é necessário que o discurso ensine,<br />

incline e <strong>de</strong>leite.<br />

As três dimensões <strong>da</strong> retórica como <strong>capa</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> atingir<br />

o entendimento (ensinar), <strong>de</strong> mover os afetos e a vonta<strong>de</strong><br />

(inclinar), <strong>de</strong> estimular os sentidos (<strong>de</strong>leitar) realizam-se<br />

nas três partes que compõem to<strong>da</strong> oração: exposição,<br />

argumentação e amplificação. Com efeito, a prática<br />

discursiva ou expõe algo, ou comprova algo, ou o amplifica<br />

para comover os ânimos. A exposição consiste na narração<br />

<strong>de</strong> acontecimentos reais ou possíveis; a argumentação<br />

busca persuadir com argumentos e razões ao tornar crível<br />

o que era duvidoso; a amplificação visa excitar o ânimo dos<br />

ouvintes à ira, compaixão, tristeza, ódio, amor, esperança,<br />

medo, admiração, ou qualquer outro afeto 4 .<br />

Outro compêndio muito utilizado para a formação<br />

retórica na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna, especialmente nos colégios<br />

<strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus, a partir do fim do século XVI,<br />

foi elaborado pelo jesuíta português Cipriano Soares: o<br />

De arte rhetorica libri tres (Coimbra, 1580) é uma espécie<br />

<strong>de</strong> resumo <strong>de</strong> passos <strong>de</strong>rivados <strong>de</strong> Aristóteles, Cícero, e<br />

Quintilião. O pequeno compêndio, <strong>de</strong>vido ao seu caráter<br />

sintético, teve centenas <strong>de</strong> reedições, alcançando<br />

uma ampla difusão na Europa (consta nos currículos<br />

<strong>de</strong> colégios jesuítas italianos, portugueses, espanhóis,<br />

flamengos, alemães).<br />

O compêndio que <strong>de</strong>via ser <strong>de</strong>corado- conforme preceitos<br />

<strong>da</strong> Ratio Studiorum – propõe o método <strong>da</strong> imitação. Nele,<br />

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56<br />

MASSIMI, M. Delectare, movere et docere: retórica e educação no Barroco ... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 54-59<br />

o ensino <strong>da</strong> retórica é realizado em chave pe<strong>da</strong>gógica: não<br />

se trata <strong>de</strong> técnica em quanto tal, mas <strong>de</strong> um “instrumento<br />

<strong>de</strong> formação no qual a palavra com sua potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

comunicação po<strong>de</strong> alcançar o ser humano colocando nele<br />

sementes <strong>de</strong> transformação” (ZANLONGHI, 2002, p. 199,<br />

trad. nossa), baseando-se na concepção ciceroniana <strong>da</strong><br />

língua, enquanto forma transmiti<strong>da</strong> na qual é preservado<br />

o conteúdo her<strong>da</strong>do <strong>da</strong> civilização. Segundo Soares, a<br />

concepção <strong>da</strong> palavra - coloca<strong>da</strong> a serviço <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

seja no nível do conhecimento, seja no nível ético, -<br />

fun<strong>da</strong>menta um projeto <strong>da</strong> oratória sagra<strong>da</strong> rumo à<br />

tradição inicia<strong>da</strong> por Agostinho no De doctrina christiana<br />

e apoiado na tradição patrística e humanista 5 .<br />

Em seu conjunto, a estrutura do projeto retórico proposto<br />

pelo autor jesuíta, tem como alicerces a antropologia<br />

filosófica e a teoria do conhecimento aristotélica tomista<br />

que inspira o ensino dos Colégios e a formação dos membros<br />

<strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus. Trata-se <strong>de</strong> uma antropologia<br />

unitária, contrária ao dualismo entre forma e substância e<br />

comporta uma psicologia atenta a <strong>de</strong>screver e reconhecer<br />

as múltiplas interações entre o intelecto e a paixão, entre a<br />

racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> e a afetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

3 - Delectare, movere et docere: retórica,<br />

educação e dinamismo pessoal<br />

A conexão entre o uso <strong>da</strong> palavra educado pela retórica<br />

e a formação do ser humano em sua integri<strong>da</strong><strong>de</strong> realizase<br />

pela <strong>capa</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> palavra em mobilizar a pessoa<br />

em seu dinamismo corporal, psíquico e espiritual. O ser<br />

humano é concebido pela antropologia filosófica <strong>da</strong><br />

época nortea<strong>da</strong> pela visão aristotélico-tomista, como<br />

ser corpóreo formado pela alma na sua tripla dimensão<br />

<strong>de</strong> alma vegetativa, sensorial e racional. Em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> alma com o corpo, a esfera pré-racional dos<br />

sentidos e dos afetos (pertencente à alma sensorial)<br />

interfere profun<strong>da</strong>mente, seja no entendimento, seja<br />

na vonta<strong>de</strong>; mas estes, por sua vez, po<strong>de</strong>m agir sobre<br />

sentidos e afetos, para orientá-los e discipliná-los.<br />

Desse modo, o <strong>de</strong>lectare atinge a sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong>sperta<br />

um primeiro nível <strong>de</strong> intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> do <strong>de</strong>stinatário, ao<br />

afetar as potências sensoriais externas e internas (conforme<br />

à categorização aristotélico-tomista), o movere põe em jogo<br />

os afetos e a vonta<strong>de</strong> e o docere envolve o entendimento e o<br />

livre arbítrio. Nesta concepção, gran<strong>de</strong> importância é atribuí<strong>da</strong><br />

à esfera do sensível, do corporal, e do pre-conceitual, ou seja,<br />

dos assim chamados sentidos internos compostos pelo senso<br />

comum, a memória, a potência cogitativa (ou imaginativa) e<br />

a fantasia. Estes sentidos constituem-se em lugar interior no<br />

qual razão e afetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> se unem.<br />

Segundo Soares, a articulação entre palavras e potências<br />

anímicas evi<strong>de</strong>ncia-se pela própria estrutura <strong>da</strong> arte<br />

retórica, sendo organiza<strong>da</strong> por ele em cinco partes:<br />

inventio, dispositio, elocutio, memória, actio. 6<br />

A inventio e a dispositio mobilizam a potência cognitiva<br />

(docere) e dizem respeito à competência do orador<br />

<strong>de</strong> escolher e dispor as palavras em discurso <strong>de</strong> forma<br />

racional e a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> ao auditório. Estes dois atos do<br />

orador fun<strong>da</strong>mentam-se no postulado <strong>da</strong> semelhança<br />

entre os objetos e as palavras <strong>de</strong>rivado <strong>da</strong> concepção<br />

<strong>da</strong> inteligência humana própria <strong>da</strong> filosofia escolástica,<br />

segundo a qual a inteligência conhece num duplo plano:<br />

o <strong>da</strong>s espécies sensíveis e o <strong>da</strong>s espécies inteligíveis<br />

(impressas e expressas). Neste dinamismo psíquico, a<br />

transformação do objeto em palavra acontece segundo<br />

certa or<strong>de</strong>m: o objeto suscita na inteligência do sujeito a<br />

espécie sensível impressa; esta origina a espécie sensível<br />

expressa, ou seja, a imagem (ou fantasma) <strong>da</strong> coisa.<br />

Tal reprodução representativa do objeto, por sua vez,<br />

cria a espécie inteligível impressa, ou seja, proporciona<br />

a assimilação intelectual do objeto pelo intelecto<br />

agente, que po<strong>de</strong> assim reconhece-lo. Finalmente, este<br />

reconhecimento produz a espécie inteligível expressa: a<br />

formulação do conceito pelas palavras. 7 A palavra (oratio)<br />

leva à luz o conceito: verbum mentis 8 .<br />

O ato <strong>da</strong> elocutio mobiliza as potências sensoriais e<br />

afetivas (<strong>de</strong>lectare) sendo concebi<strong>da</strong> como a operação<br />

que confere cor e em geral dimensão sensorial à<br />

linguagem, no sentido <strong>de</strong> propiciar a inteligibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

a intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> palavra através <strong>da</strong> valorização <strong>da</strong><br />

componente sensorial do significante. Na perspectiva<br />

aristotélico-tomista, o verbum mentis humano necessita<br />

sempre <strong>de</strong> um veículo sensível: a imagem. Portanto, a<br />

retórica enfatiza a função <strong>de</strong> sinal assumi<strong>da</strong> pela imagem,<br />

através <strong>de</strong> processos analógicos e imaginativos 9 .<br />

A palavra encarna<strong>da</strong> na elocução penetra os ânimos e<br />

atinge o plano moral, tornando-se assim ética (movere) 10 .<br />

Portanto, a elocutio não <strong>de</strong>ve cui<strong>da</strong>r do uso <strong>da</strong> palavra<br />

apenas do ponto <strong>de</strong> vista estético, mas também <strong>de</strong> sua<br />

função moral. Com efeito, a retórica, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> suas raízes<br />

clássicas e medievais retoma<strong>da</strong>s pelo humanismo,<br />

visa <strong>de</strong> modo integrado a eficácia no plano estético,<br />

gnoseológico, ético e político. A palavra eloqüente não<br />

apenas veicula a coisa e maravilha pela beleza e pelo<br />

engenho <strong>da</strong>s composições metafóricas, mas sugere<br />

também comportamentos diante <strong>de</strong>la. A retórica assim<br />

associa a palavra aos sentidos, aos afetos, à razão, à<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e à morali<strong>da</strong><strong>de</strong>, chamando em causa a liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

como condição <strong>de</strong> tal associação.<br />

No que diz respeito à memória, cabe lembrar a existência<br />

<strong>de</strong> uma longa tradição retórica <strong>de</strong> uso <strong>da</strong> memória como<br />

acervo <strong>de</strong> recursos para a elaboração do discurso: trata-se<br />

<strong>de</strong> fixar, no pensamento, lugares imaginários on<strong>de</strong> colocar<br />

aquilo que <strong>de</strong>ve ser lembrado, <strong>de</strong> modo que a or<strong>de</strong>m dos<br />

lugares guar<strong>de</strong> a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s coisas, a partir <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m<br />

<strong>da</strong>s imagens em seu acervo. Estabelece-se assim uma<br />

correspondência entre coisa, lugar e imagem. A noção <strong>de</strong><br />

or<strong>de</strong>m faz com que a memória não seja entendi<strong>da</strong> apenas<br />

como mero armazém passivo, mas seja reconheci<strong>da</strong> como<br />

facul<strong>da</strong><strong>de</strong> ativa, dota<strong>da</strong> <strong>de</strong> função organizadora, agindo<br />

assim em sintonia com a intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> mente<br />

humana (BOLZONI, 2000).


MASSIMI, M. Delectare, movere et docere: retórica e educação no Barroco ... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 54-59<br />

A actio é <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> como “eloquentia corporis” e é nela<br />

que acontece a conjunção entre objetos (assimilados<br />

pela inventio e dispositio) e palavras (pronuncia<strong>da</strong>s pela<br />

elocutio). Segundo Quintilião e Cícero, voz e gesto são<br />

importantes canais <strong>de</strong> comunicação. À voz é reconheci<strong>da</strong><br />

a <strong>capa</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> movere. Tal relação entre eloquência<br />

e comportamento fun<strong>da</strong>-se no pressuposto <strong>de</strong> uma<br />

continui<strong>da</strong><strong>de</strong> entre a interiori<strong>da</strong><strong>de</strong> e os gestos exteriores,<br />

numa antropologia que postulando, como vimos a uni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

entre a alma e o corpo, acredita que a educação <strong>da</strong> alma<br />

envolva também o corpo 11 . A retórica propicia assim uma<br />

espécie <strong>de</strong> teatralização <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong><strong>de</strong>, em conformi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

com uma tendência comum na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> codificar<br />

os comportamentos sociais, documenta<strong>da</strong> pela proliferação<br />

dos manuais <strong>de</strong>dicados à conversação civil, às boas<br />

maneiras e ao comportamento <strong>de</strong>coroso.<br />

Em síntese, a articulação entre retórica e educação aqui<br />

proposta, fun<strong>da</strong>menta-se na psicologia e na teoria do<br />

conhecimento aristotélico tomista, pela qual “Nihil est in<br />

intellectu quod prius non fuerit in sensu”, po<strong>de</strong>ndo o homem<br />

conhecer somente a partir dos <strong>da</strong>dos sensíveis, obtidos<br />

pelos sentidos externos. O <strong>da</strong>do percebido é processado<br />

pelos sentidos internos e, por estes, transformado numa<br />

representação (fantasma); ao mesmo tempo, mobiliza-se<br />

a esfera dos afetos, no sentido <strong>de</strong> atração, ou <strong>de</strong> repulsa<br />

com relação ao objeto representado.<br />

4 - Delectare, movere et docere em práticas<br />

culturais no Brasil <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna<br />

No Brasil colonial, a concepção <strong>da</strong> função educativa <strong>da</strong><br />

palavra fun<strong>da</strong>mentou a prática missionária dos jesuítas,<br />

tendo como pilar o exercício do ministério <strong>da</strong> pregação,<br />

o teatro, os rituais em festas, procissões, cerimônias<br />

religiosas e civis. Esta função é enfatiza<strong>da</strong> no contexto<br />

brasileiro, levando em conta o caráter oral <strong>da</strong> cultura <strong>da</strong><br />

população e a relevância atribuí<strong>da</strong> ao po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> palavra<br />

pelas tradições culturais indígenas.<br />

Ao consi<strong>de</strong>rarmos a difusão <strong>da</strong> prática <strong>da</strong> oratória<br />

sagra<strong>da</strong> e seus agentes no Brasil colonial, e incluindo-se<br />

a extensa produção <strong>de</strong> Padre Antônio Vieira, os jesuítas se<br />

<strong>de</strong>stacam como a or<strong>de</strong>m mais ativa <strong>de</strong> pregadores, mas<br />

não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar a presença ativa <strong>de</strong> outras<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s religiosas, tais como carmelitas, fra<strong>de</strong>s<br />

menores, capuchinhos, beneditinos. Gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sermões são proferidos em Salvador, mas também<br />

em outras regiões do país: São Vicente, Espírito Santo,<br />

Pernambuco, Maranhão, Paraíba, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Minas<br />

Gerais, São Paulo, Paraná (MASSIMI, 2005). Retomando<br />

uma perspectiva comum a Aristóteles, Cícero e Agostinho,<br />

os missionários fazem <strong>da</strong>s práticas oratórias juntos aos<br />

índios e aos <strong>de</strong>mais moradores <strong>da</strong> Terra <strong>de</strong> Santa Cruz, o<br />

gran<strong>de</strong> laboratório <strong>de</strong> experimentação do projeto retórico<br />

que acima <strong>de</strong>screvemos.<br />

Além <strong>da</strong> pregação, outro lugar <strong>de</strong> atuação <strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gogia<br />

<strong>da</strong> palavra promovi<strong>da</strong> pela retórica é o teatro. Os vinte<br />

autos escritos por José <strong>de</strong> Anchieta <strong>de</strong> 1564 até a sua<br />

morte, <strong>de</strong>stinados aos nativos e aos colonos, foram<br />

redigidos nos três idiomas: português, castelhano e tupi.<br />

O teatro apresenta-se assim como um espaço <strong>de</strong>stinado<br />

a evi<strong>de</strong>nciar e persuadir: nele, o gesto é unido à palavra<br />

visando amplificar sua eficácia e proporcionar uma<br />

cena on<strong>de</strong> o envolvimento entre ouvinte (<strong>de</strong>stinatário)<br />

e locutor (ator) seja favorecido. A própria coreografia<br />

e a representação tornam-se um ‘discurso’, <strong>capa</strong>z <strong>de</strong><br />

comunicar pelos gestos, imagens etc...para além <strong>da</strong>s<br />

diferenças <strong>de</strong> idiomas e <strong>de</strong> formação cultural.<br />

Celebrações (festas, exéquias e procissões) ocorriam<br />

com certa freqüência no Brasil colonial, tendo por<br />

objetivo a afirmação do corpo social, político e religioso.<br />

Os dispositivos retóricos utilizados nas coreografias,<br />

nas <strong>da</strong>nças, na construção <strong>de</strong> aparatos efêmeros, na<br />

exposição <strong>da</strong>s imagens em andores, nos carros alegóricos,<br />

visam suscitar a vivência <strong>de</strong> sensações, sentimentos,<br />

pensamentos e posicionamentos que <strong>de</strong> alguma forma<br />

realizam em ca<strong>da</strong> um e no corpo social os efeitos políticos,<br />

culturais e religiosos visados. To<strong>da</strong>s as potências psíquicas<br />

dos presentes são mobiliza<strong>da</strong>s pela apresentação do Corpo<br />

protagonista <strong>da</strong> celebração, <strong>de</strong> modo a captar a<strong>de</strong>são e<br />

integração, po<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>ste modo ca<strong>da</strong> um reconhecer-se<br />

a si mesmo como parte do organismo material, anímico e<br />

espiritual que é a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> barroca.<br />

5 - Conclusão<br />

Na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna, os objetivos <strong>da</strong> retórica, <strong>de</strong>lectare,<br />

movere et docere são concebidos na perspectiva <strong>de</strong> uma<br />

antropologia unitária que estabelece a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> entre<br />

alma e corpo, entre voz e gesto, entre pessoa e socie<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

entre dimensão estética e dimensões ética e cognitiva.<br />

Desse modo, a prática retórica em suas diversas aplicações<br />

(sermões, teatro, representações escolásticas, religiosas e<br />

sociais) é entendi<strong>da</strong> como instrumento <strong>de</strong> estimulação e<br />

controle <strong>de</strong> vivências sensoriais e emocionais, <strong>de</strong> evocação<br />

<strong>da</strong> memória, <strong>de</strong> cultivo <strong>da</strong> prudência e <strong>da</strong>s virtu<strong>de</strong>s, <strong>de</strong><br />

transmissão do conhecimento.<br />

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58<br />

MASSIMI, M. Delectare, movere et docere: retórica e educação no Barroco ... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 54-59<br />

Referências<br />

BOLZONI, L. La stanza <strong>de</strong>lla memoria. Torino, Einaudi, 2000.<br />

FUMAROLI, M., L’age <strong>de</strong> l’eloquence, Rhétorique et res literaria <strong>de</strong> la Renaissance au seuil <strong>de</strong> l’époque classique, Genève,<br />

Droz, 1980.<br />

GIOMBI, S. Retorica sacra in età tri<strong>de</strong>ntina. Un capitolo per la storia <strong>de</strong>i dibattiti sull’imitazione e il ciceronianismo nel<br />

Cinquecento religioso italiano, Rivista di Storia e Letteratura Religiosa, Firenze, Olskchki, a. 35, n. 2, (1999), pp. 279-308.<br />

GRANADA, L., Obras completas. Em: ARIBAU, B.C., Biblioteca <strong>de</strong> autores espanoles, Obras <strong>de</strong> fray Luis <strong>de</strong> Grana<strong>da</strong>, tomo 2,<br />

Madrid, Real Acca<strong>de</strong>mia espanola,1945, pp.371-376<br />

MASSIMI, M. Palavras, almas e corpos no Brasil colonial. São Paulo: Loyola, 2005.<br />

PAWLING, Perla Chinchilla, De la compositio loci a la Republica <strong>de</strong> las Letras, Predicación jesuita en el siglo novo hispano.<br />

México, El mundo sobre el papel, 2004.<br />

RAIMONDI, E., Trattatisti e narratori <strong>de</strong>l seicento, in: La Letteratura Italiana, volume 36 , Milano-Napoli, Ricciardi,<br />

1965<br />

RUSCONI, R. Predicatori e predicazione, in: VIVANI, C. org. Storia d’Italia, Annale 4, Einaudi, Torino, 1981 pp. 995-112,<br />

(itens 6 e 7).<br />

SOARES, CIPRIANO, De arte retorica libri III, ex Aristotele, Cicerone et Quintiliano precipue <strong>de</strong>prompti, nunc ab eo<strong>de</strong>m<br />

recogniti et multis in locis locupletis, Roma, F. Zanettum, 1580.<br />

ZANLONGHI, G. Teatri di formação, Actio, parola e immagine nella scena gesuitica <strong>de</strong>l Sei/settecento a Milano, Milano,<br />

Vita e Pensiero, 2002.<br />

Marina Massimi , forma<strong>da</strong> em psicologia pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Padova (Itália) em 1979, mestra e doutora em Psicologia<br />

pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, docente junto ao Departamento <strong>de</strong> Psicologia e Educação <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia<br />

Ciências e Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, Campus <strong>de</strong> Ribeirão Preto; especialista em história <strong>da</strong> psicologia e <strong>da</strong>s<br />

idéias psicológicas. Entre os livros mais recentes, publicou: Palavras, almas e corpos no Brasil colonial ( São Paulo, Loyola,<br />

2005); Um incendido <strong>de</strong>sejo <strong>da</strong>s Índias (em colaboração com André Barreto Pru<strong>de</strong>nte; São Paulo: Loyola, 2002); e Os olhos<br />

vêem pelo coração: Conhecimento psicológico <strong>da</strong>s paixões na história <strong>da</strong> cultura brasileira dos séculos XVI a XVII (com<br />

Paulo José Carvalho <strong>da</strong> Silva; Ribeirão Preto: Holos Editora, 2001). Co-editora <strong>da</strong> revista eletrônica Memorandum (Qualis<br />

Internacional B; in<strong>de</strong>xa<strong>da</strong> pela Psycho-Info ) e Lí<strong>de</strong>r do Grupo <strong>de</strong> pesquisa do CNPq Estudos em Psicologia e Ciências<br />

Humanas: História e Memória.


MASSIMI, M. Delectare, movere et docere: retórica e educação no Barroco ... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 54-59<br />

Notas<br />

1 Autor do clássico L’age <strong>de</strong> l’eloquence. Rhétorique et res literaria <strong>de</strong> la Renaissance au seuil <strong>de</strong> l’époque classique (1980).<br />

2 Quanto à <strong>de</strong>finição do período tri<strong>de</strong>ntino, Giombi (1999) estabelece alguns marcos cronológicos: o término é indicado no texto De sacris nostrorum<br />

temporum orationibus libri quinque (Milão, 1632) <strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>rigo Borromeo.<br />

3 Na Biblioteca Apostólica Vaticana pu<strong>de</strong>mos encontrar os referidos <strong>de</strong>cretos do Concílio <strong>de</strong> Trento. Vi<strong>de</strong> especificamente, o Decretum secundum<br />

publicatum in quinta sessione super lectione et praedicatione aos 17 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1546 e os artigos 9 e 10 do Decreto.<br />

4 Outros textos <strong>de</strong> Grana<strong>da</strong> importantes para nosso tema são: Del conoscimento <strong>de</strong> si mesmo, em: Memorial <strong>de</strong> la vi<strong>da</strong> cristiana, in: ARIBAU, B.C.,<br />

Biblioteca <strong>de</strong> autores espanoles, Obras <strong>de</strong> fray Luis <strong>de</strong> Grana<strong>da</strong>, tomo 2, Madrid, Real Acca<strong>de</strong>mia espanola,1945, pp.371-376; La fabbrica y partes<br />

principales <strong>de</strong>l mondo menor, que es el hombre, em: Del simbolo <strong>de</strong> la fè, Aribau, 1945, pp.242-271; Dottrina Spirituale, Roma, Vulliet, 1608.<br />

5 Liber I, Quod sit Rhetorica, quod eius officium et finis: Capítulo I, p. 1: “Rhetorica est vel ars, vel doctrina dicendi. Ars est, quae <strong>da</strong>t rationes certas,<br />

et praecepta faciendi aliquid, quae habent ordinem, et quas<strong>da</strong>m errare in faciendo non patientes vias. Dicere est, ornate, graviter, et copiose loqui.<br />

Rhetoricae officium est, dicere apposite ad persuasionem: finis persua<strong>de</strong>re dictione. Ut enim gubernatori cursus secundus; medicus salus, imperatori<br />

victoria; ut mo<strong>de</strong>ratori Reipublicae beata civium vita proposita est, ut opibus firma, copiis locuples, gloria ampla, virtute honesta sit; sic oratori aliud<br />

propositum est, nisi ut dicendo persua<strong>de</strong>at.”<br />

6 “Oportet enim primum invenire quid dicas, inventa disponere, <strong>de</strong>in<strong>de</strong> ornare verbis, post memoriae man<strong>da</strong>re, tum ad extremum agere. Inventio<br />

est excogitatio rerum verarum, aut verisimilium, quae quaestionem probabilem red<strong>da</strong>nt. Dispositio est rerum inventarum in ordinem distributio.<br />

Eloquutio est idoneorum verborum et sententiarum ad inventionem accomo<strong>da</strong>tio. Memoria est firma orationis perceptio. Pronunciatio est ex rerum,<br />

et verborum dignitate, corporis et vocis mo<strong>de</strong>ratior.” (Soares, 1580, pp.5-6)<br />

7 No manual <strong>de</strong> Soares, no proêmio, encontra-se a afirmação <strong>de</strong> que “oratio est quasi imago rationis quae<strong>da</strong>m”: <strong>de</strong>clara-se, portanto, o nexo<br />

estreitíssimo entre ratio e oratio, a partir <strong>da</strong> etimologia comum <strong>da</strong>s duas palavras na língua grega. Como a língua latina utiliza os termos oratio e<br />

ratio, Soares, coerente com a tradição, <strong>de</strong>fine a oratio como rationis imago: a imagem é o nexo analógico que une conceito e palavra.<br />

8 Existem alguns importantes pressupostos <strong>de</strong>sta doutrina, assinalados por Zanlonghi (2002): a afini<strong>da</strong><strong>de</strong> entre a imagem e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> (<strong>de</strong>vi<strong>da</strong> ao fato<br />

<strong>de</strong> que ela tem uma função mediadora <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>); e o valor objetivo do conhecimento sendo as espécies sempre intencionais, ou seja referi<strong>da</strong>s a<br />

uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> exterior à alma. Para ser comunicável, o conceito necessita encarnar-se <strong>de</strong> novo, num meio sensível: voz, gesto, música.<br />

9 Zanlonghi explica também o motivo do quasi <strong>da</strong> frase <strong>de</strong> Soarez: o conhecimento estabelece uma relação <strong>de</strong> semelhança entre a coisa e a palavra<br />

nunca totalmente a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> (isto <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> finitu<strong>de</strong> do humano conhecimento). Uma expressão do limite do conhecimento humano é<br />

a fórmula: intelligere multiplicer. São Tomás afirma haver uma multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> atos <strong>de</strong> conhecimento, pois a intelecção varia conforme os sujeitos<br />

e os objetos do conhecimento: “A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> entendi<strong>da</strong>, no sentido <strong>da</strong> Escolástica, como a<strong>de</strong>quatio intelectus ad rem, reconhece a multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos<br />

pontos <strong>de</strong> vista. O proce<strong>de</strong>r do conhecimento humano a partir do sensível, conforme um percurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento gradual, fun<strong>da</strong> a varie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>s perspectivas propostas pela retórica” (2002, p.206).<br />

10 “Quid enim admirabilius esse potest, per tenuissimos aurium meatus singulari opere artificioque perfectos in alienos animos introire, atque in eis<br />

tam perfecte tam insigniter imprimere speciem suam ut moerentes consoletur, torpentes excitet, afflictos erigat, inani laetitia elatos cohibeat et in<br />

quamvis <strong>de</strong>nique motum auditorem impellat?” (Soares, 1580, p. 207)<br />

11 Um exemplo disto é a pregação <strong>de</strong> Paulo Segneri: SEGNERI, P., Quaresimale, Em: RAIMONDI, E., Trattatisti e narratori <strong>de</strong>l Seicento, in: La Letteratura<br />

Italiana, volume 36 , Milano-Napoli, Ricciardi, 1965, pp-656-690. TESAURO, R., Il giudizio, 1625. Em: RAIMONDI, i<strong>de</strong>m, pp. 10-18.<br />

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60<br />

SALTARELLI, T. C. V. L.. Agu<strong>de</strong>za e Stravaganza: diálogo oblíquo... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 60-63<br />

Agu<strong>de</strong>za e Stravaganza: diálogo oblíquo<br />

entre a música e as letras seiscentistas<br />

Thiago César Viana Lopes Saltarelli (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

hifvonbiber@yahoo.com.br<br />

Resumo: Este artigo procura i<strong>de</strong>ntificar semelhanças entre os conceitos <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za e stravaganza, oriundos<br />

respectivamente <strong>da</strong> poética e <strong>da</strong> música do século XVII, e mostrar como eles são importantes para evitar anacronismos<br />

na leitura <strong>de</strong> obras <strong>de</strong>sse período.<br />

Palavras-chave: agu<strong>de</strong>za; stravaganza; fantástico; Barroco; retórica<br />

Agu<strong>de</strong>za and Stravaganza: oblique dialog between music and literature from the seventeenth<br />

century<br />

Abstract: This paper intends to i<strong>de</strong>ntify similarities between concepts of agu<strong>de</strong>za and stravaganza, <strong>de</strong>rived respectively<br />

from poetics and music of seventeenth century, and to show how they are important to avoid anachronisms in<br />

interpretation of works from this period.<br />

Keywords: agu<strong>de</strong>za; stravaganza; fantastic; Baroque; rhetoric<br />

1- Introdução<br />

O objetivo principal <strong>de</strong>ste artigo é ensaiar uma<br />

primeira aproximação entre os conceitos <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za<br />

e stravaganza, oriundos respectivamente <strong>da</strong> literatura<br />

e <strong>da</strong> música ditas barrocas, no intuito <strong>de</strong> ratificá-los<br />

como operadores <strong>de</strong> leitura <strong>da</strong> poética do século XVII.<br />

Procuramos realizar essa aproximação com base nas<br />

semelhanças <strong>de</strong> cunho i<strong>de</strong>ológico, filosófico, estético<br />

e/ou retórico por trás dos conceitos. Enten<strong>de</strong>mos que,<br />

fruto <strong>de</strong> uma mesma preceptiva retórico-estética, a<br />

agu<strong>de</strong>za e a stravaganza, entretanto, se diferenciam<br />

quando postas em prática, <strong>de</strong>vido às idiossincrasias <strong>de</strong><br />

suas respectivas estruturas, ou seja, a linguagem verbal<br />

e poética e a linguagem musical. Dessa forma, buscamos<br />

fugir <strong>da</strong>s grosseiras e errôneas aproximações estruturais<br />

que, rotulando a arte <strong>de</strong> todo o período compreendido<br />

entre o século XVII e a primeira meta<strong>de</strong> do XVIII sob<br />

a etiqueta <strong>de</strong> “barroco”, são <strong>capa</strong>zes <strong>de</strong> encontrar as<br />

mais inacreditáveis (e <strong>de</strong>scabi<strong>da</strong>s) semelhanças entre<br />

a estrutura <strong>de</strong> um poema <strong>de</strong> Gregório <strong>de</strong> Matos e <strong>de</strong><br />

uma fuga <strong>de</strong> Bach, por exemplo. Não queremos, com<br />

isso, negar que essas semelhanças possam existir, mas a<br />

maneira com que se tenta i<strong>de</strong>ntificá-las muitas vezes nos<br />

parece força<strong>da</strong> e artificiosa, além <strong>de</strong> estimula<strong>da</strong> menos<br />

por uma cui<strong>da</strong>dosa análise dos objetos artísticos do que<br />

por uma ânsia <strong>de</strong> estabelecer paralelos intersemióticos<br />

entre tudo aquilo que possa ser tachado <strong>de</strong> “barroco”.<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.17, 68 p., jan. - jun., 2008<br />

A base teórica <strong>de</strong> nosso trabalho é tributária dos estudos<br />

historicamente orientados sobre a arte e a poética dos<br />

séculos XVI, XVII e XVIII. Acreditamos ser necessário tentar<br />

abolir ao máximo os anacronismos na abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> obras<br />

surgi<strong>da</strong>s sob uma epistéme diversa <strong>da</strong>quela em que nos<br />

encontramos. No caso <strong>da</strong> música, tal abor<strong>da</strong>gem começou<br />

a se sistematizar a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960, com o trabalho<br />

<strong>de</strong> músicos como Nikolaus Harnoncourt, Gustav Leonhardt,<br />

Sigiswald Kuijken e Frans Brüggen, <strong>de</strong>ntre outros. No<br />

Brasil, essas pesquisas recentemente começaram a ganhar<br />

espaço, embora ain<strong>da</strong> encontrem um terreno dividido<br />

entre gran<strong>de</strong>s entusiastas e sisudos conservadores, em<br />

geral <strong>de</strong>sinformados, que as rejeitam. No âmbito <strong>da</strong>s letras,<br />

po<strong>de</strong>mos reconhecer tentativas isola<strong>da</strong>s <strong>de</strong> revalorização<br />

<strong>da</strong> arte dita barroca ao longo do século XX, como os<br />

trabalhos <strong>de</strong> Dámaso Alonso sobre Góngora e outros poetas<br />

do siglo <strong>de</strong> oro. Mas é também recentemente que vêm se<br />

<strong>de</strong>stacando, no Brasil, as pesquisas dos professores João<br />

Adolfo Hansen, <strong>da</strong> USP, e Alcir Pécora, <strong>da</strong> Unicamp. Ambos<br />

propõem uma relativização <strong>de</strong> nossa visão <strong>de</strong> mundo e <strong>de</strong><br />

nossas categorias estéticas e epistemológicas e a adoção<br />

<strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista livre na leitura <strong>de</strong> obras dos séculos<br />

XVI, XVII e XVIII, para assim tentarmos nos aproximar ao<br />

máximo, ain<strong>da</strong> que nunca <strong>de</strong> modo completo, <strong>da</strong> visão <strong>de</strong><br />

mundo e <strong>da</strong>s categorias contemporâneas dos receptores<br />

aos quais as obras foram originalmente <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s.<br />

Recebido em: 18/08/2007 - Aprovado em: 06/02/2008


Assim, ao abor<strong>da</strong>rmos a poética seiscentista, fazse<br />

necessária uma profun<strong>da</strong> investigação histórica<br />

acerca <strong>da</strong>s condições sociais, políticas e institucionais<br />

<strong>de</strong> produção artística e cultural do século XVII. Faz-se<br />

também necessário o abandono <strong>de</strong> uma visão teleológica<br />

<strong>da</strong> história, segundo a qual uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> época<br />

constitui apenas um estágio evolutivo do tempo histórico<br />

que caminha para um progresso contínuo. De acordo com<br />

essa visão, um período anterior a outro é analisado com<br />

as categorias <strong>de</strong>ste último e será sempre menos evoluído<br />

do que ele. A mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> perspectiva histórica nos<br />

permitirá, então, evitar – ou ao menos diminuir – o uso<br />

<strong>de</strong> categorias anacrônicas na leitura e no estudo <strong>de</strong> obras<br />

<strong>de</strong> arte do século XVII. Logo, buscamos consultar, sempre<br />

que possível, os tratados e preceptivas retórico-poéticas<br />

<strong>da</strong> época, como Il Cannocchiale aristotelico, <strong>de</strong> Emanuele<br />

Tesauro, e a Agu<strong>de</strong>za y arte <strong>de</strong> ingenio, <strong>de</strong> Baltasar<br />

Gracián. Em se tratando <strong>da</strong> stravaganza, ela parece ter<br />

sido menos teoriza<strong>da</strong> pelos artistas <strong>da</strong> época do que a<br />

agu<strong>de</strong>za. Em todo caso, <strong>de</strong>paramos com uma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

para encontrar material teórico sobre o assunto, ain<strong>da</strong><br />

mais em bibliotecas brasileiras, muitas vezes bastante<br />

precárias. Por essa razão, reiteramos que este trabalho<br />

tem um caráter <strong>de</strong> ensaio, configurando-se como uma<br />

primeira tentativa <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>gem e aproximação <strong>da</strong>queles<br />

dois conceitos. Essa é uma pesquisa que preten<strong>de</strong>mos,<br />

pois, levar adiante.<br />

Tal pesquisa, que forneceu subsídios para este estudo, é<br />

<strong>de</strong> natureza teórica, consistindo no exame <strong>da</strong> bibliografia<br />

indica<strong>da</strong> na última parte <strong>de</strong>ste trabalho. A partir <strong>de</strong>sse<br />

exame, buscamos conceituar a agu<strong>de</strong>za e em segui<strong>da</strong><br />

a stravaganza, resguar<strong>da</strong>ndo nesse percurso as suas<br />

especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s estruturais, que remetem às diferenças<br />

entre a literatura e a música. A partir <strong>da</strong> conceituação <strong>de</strong><br />

ca<strong>da</strong> um dos termos, então, procuramos encontrar o melhor<br />

modo <strong>de</strong> aproximá-los, a saber, pelo seu viés i<strong>de</strong>ológico e<br />

<strong>de</strong> efeito nos leitores/ouvintes <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte.<br />

2 - Agu<strong>de</strong>za e Stravaganza: um diálogo<br />

oblíquo<br />

Na Itália, o principal tratado retórico-poético do século<br />

XVII é o Cannocchiale aristotelico, do con<strong>de</strong> Emanuele<br />

Tesauro. A agu<strong>de</strong>za, ali chama<strong>da</strong> argutezza, é <strong>de</strong>fini<strong>da</strong><br />

formalmente como uma facul<strong>da</strong><strong>de</strong> do pensamento<br />

<strong>capa</strong>z <strong>de</strong> encontrar relações inespera<strong>da</strong>s e artificiosas<br />

entre conceitos distantes. Essa mesma <strong>de</strong>finição nos<br />

é apresenta<strong>da</strong> por Baltasar Gracián, na Agu<strong>de</strong>za y arte<br />

<strong>de</strong> ingenio, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> retiramos a palavra espanhola, que<br />

também passou ao português, e por Francisco Leitão<br />

Ferreira, na Nova arte <strong>de</strong> conceitos. Assim, o engenho<br />

do artista <strong>de</strong>ve se valer <strong>da</strong> perspicácia para captar as<br />

possíveis i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s entre dois ou até mais conceitos<br />

em princípio distantes, e <strong>da</strong> versatili<strong>da</strong><strong>de</strong>, para exprimir<br />

essa i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> a partir do código retórico disponível. A<br />

imagem resultante <strong>de</strong>ssa analogia engenhosa, ou seja, <strong>da</strong><br />

aplicação consciente do engenho, é a agu<strong>de</strong>za. Oriun<strong>da</strong><br />

dos maneirismos poéticos do século XVI, ela <strong>de</strong>sloca<br />

a noção clássica e tradicional <strong>de</strong> mímesis enquanto<br />

SALTARELLI, T. C. V. L.. Agu<strong>de</strong>za e Stravaganza: diálogo oblíquo... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 60-63<br />

imitação transparente <strong>da</strong> natureza ou emulação <strong>de</strong> um<br />

mo<strong>de</strong>lo para a idéia <strong>de</strong> emulação <strong>de</strong> vários mo<strong>de</strong>los<br />

e, sobretudo, <strong>de</strong> imitação verossímil <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado<br />

gênero poético. Isso significa que, no século XVII, o mais<br />

importante não é tanto a imitação ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira <strong>da</strong> natureza,<br />

mas o respeito à verossimilhança interna <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado<br />

gênero, com base em regras estabeleci<strong>da</strong>s pelo <strong>de</strong>coro. 1<br />

A <strong>de</strong>sobrigação <strong>de</strong> um equilíbrio entre arte (tékhne ou<br />

artifício) e natureza faz com que a poética seiscentista se<br />

permita um transbor<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> linguagem, que se torna<br />

maior que a natureza. Por essa razão po<strong>de</strong>mos dizer que a<br />

agu<strong>de</strong>za cria imagens fantásticas, verossímeis em relação<br />

ao gênero <strong>de</strong>ntro do qual ocorrem, porém não idênticas<br />

à natureza. Um ótimo exemplo é a seguinte <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />

“papagaio”, presente num soneto anônimo do terceiro<br />

volume <strong>da</strong> Fênix Renasci<strong>da</strong> 2 :<br />

Iris parlero, Abril organizado,<br />

Ramillete <strong>de</strong> plumas con sentido,<br />

Hybla com habla, 3 irracional florido.<br />

Primavera con pies, jardin alado.<br />

(CIDADE, 1968, p. 19)<br />

Além <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rarmos a agu<strong>de</strong>za no que tange à sua<br />

produção, ou seja, <strong>de</strong>fini-la como a imagem resultante<br />

<strong>da</strong> associação <strong>de</strong> conceitos contrastivos pelo engenho,<br />

também é possível abordá-la no âmbito <strong>de</strong> seu efeito<br />

ou <strong>da</strong> sua recepção. Assim, João Adolfo Hansen a<br />

<strong>de</strong>fine como “... a metáfora resultante <strong>da</strong> facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

intelectual do engenho, que a produz como ‘belo eficaz’<br />

ou efeito inesperado <strong>de</strong> maravilha que espanta, agra<strong>da</strong><br />

e persua<strong>de</strong>” (HANSEN, 2000, p. 317). Nesse aspecto,<br />

é muito importante o efeito <strong>de</strong> <strong>de</strong>leite e maravilha<br />

– ou meraviglia, nos termos <strong>de</strong> Giambattista Marino<br />

– produzido no leitor ou ouvinte <strong>da</strong> obra.<br />

Acreditamos que a abor<strong>da</strong>gem do efeito provocado pela<br />

agu<strong>de</strong>za e pela stravaganza sobre o leitor/ouvinte <strong>da</strong>s<br />

obras artísticas seja a principal via <strong>de</strong> aproximação entre<br />

os dois conceitos. Afinal, em termos estruturais, a música<br />

e a literatura <strong>de</strong>param com um gran<strong>de</strong> abismo quando<br />

compara<strong>da</strong>s pelo fato <strong>de</strong> a linguagem verbal possuir<br />

significação, enquanto a música não. Ain<strong>da</strong> que se possam<br />

consi<strong>de</strong>rar e discutir sutilezas <strong>de</strong>ssa afirmação, em termos<br />

gerais não se po<strong>de</strong> dizer que as notas musicais possuam<br />

um significado prévio como as palavras. Logo, se a<br />

agu<strong>de</strong>za é o resultado <strong>de</strong> uma aplicação do engenho sobre<br />

conceitos, a stravaganza não o po<strong>de</strong>ria ser, pois a música<br />

não trabalha, em princípio, com conceitos, significados<br />

ou referentes. To<strong>da</strong>via, há uma concepção platônica <strong>da</strong><br />

música, retoma<strong>da</strong> pelos humanistas <strong>de</strong> fins do século XVI,<br />

segundo a qual essa arte realizaria a mímesis ou imitação<br />

dos afetos humanos, po<strong>de</strong>ndo inclusive <strong>de</strong>spertá-los nos<br />

ouvintes. Mas ain<strong>da</strong> aqui há uma relação com a linguagem<br />

verbal, pois, <strong>de</strong> acordo com essa concepção platônica e<br />

humanista <strong>da</strong> música, esta não <strong>de</strong>veria simplesmente<br />

<strong>de</strong>leitar pelo prazer <strong>da</strong>s consonâncias do som puramente<br />

musical (música instrumental), mas instruir e mover os<br />

afetos a partir dos conceitos suscitados pelas palavras. A<br />

música vocal, portanto, é a mais valoriza<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa<br />

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SALTARELLI, T. C. V. L.. Agu<strong>de</strong>za e Stravaganza: diálogo oblíquo... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 60-63<br />

visão pragmática <strong>da</strong> música como instrumento educativo,<br />

e o “instrumento” mais sublime e a<strong>de</strong>quado é a voz<br />

humana, a qual representa <strong>de</strong> modo mais fiel os conceitos<br />

<strong>da</strong>s palavras e mimetiza os afetos <strong>da</strong> harmonia universal.<br />

Estamos diante do velho equilíbrio entre arte e natureza.<br />

Ora, se conceituarmos a stravaganza como uma imagem<br />

ou um efeito fantástico presente em peças sem forma<br />

específica, com feições melódicas, harmônicas, rítmicas<br />

ou <strong>de</strong> outro tipo <strong>de</strong> cunho extraordinário, po<strong>de</strong>remos dizer<br />

que esse procedimento retórico, assim como a agu<strong>de</strong>za,<br />

promoverá uma mu<strong>da</strong>nça na categoria <strong>de</strong> mímesis<br />

subjacente às obras musicais do século XVII, passando <strong>da</strong><br />

imitação <strong>da</strong> natureza à permissão <strong>de</strong> imagens fantásticas,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que respeitando a organização verossímil do<br />

gênero no qual se encontra. Isso ocorreu a partir do<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> música instrumental, sobretudo para<br />

violino, na alvora<strong>da</strong> do século XVII, em solo italiano. Esse<br />

instrumento, tendo se <strong>de</strong>senvolvido rapi<strong>da</strong>mente nesse<br />

período, passou a ser consi<strong>de</strong>rado um gran<strong>de</strong> imitador <strong>da</strong><br />

voz humana, ganhando ca<strong>da</strong> vez mais espaço em árias<br />

e outros gêneros originários <strong>da</strong> música vocal. Com o<br />

tempo, ganhou in<strong>de</strong>pendência, e gran<strong>de</strong>s compositores<br />

como Marini, Farina, Merula e Castello, <strong>de</strong>ntre outros,<br />

passaram a pesquisar e <strong>de</strong>senvolver um discurso próprio<br />

para o violino, já livre em muitos momentos <strong>da</strong> obrigação<br />

<strong>de</strong> mimetizar a voz humana. Exemplos disso são as novas<br />

técnicas expressivas próprias do violino e estranhas<br />

à voz, utiliza<strong>da</strong>s por Farina no Capriccio stravagante,<br />

como o glissando, o pizzicato, o tremolo, o col legno e<br />

o sul ponticello. Esses efeitos imprimiram ao discurso<br />

musical voltado para o violino solista uma sonori<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

inteiramente nova e fantástica. É justamente essa nova<br />

sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>, alia<strong>da</strong> às novas técnicas instrumentais e <strong>de</strong><br />

improvisação, que caracterizam a stravaganza, a qual<br />

está explicita<strong>da</strong> mais pelo título <strong>da</strong>s composições: além<br />

do já citado Capriccio stravagante, <strong>de</strong> Carlo Farina, há<br />

as Consonanze stravaganti, <strong>de</strong> Giovanni <strong>de</strong> Macque,<br />

obra esta para órgão; a Stravagance, <strong>de</strong> Nicola Matteis;<br />

La stravaganza, <strong>de</strong> Vivaldi, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Carlo Tessarini,<br />

que se serviu do mesmo título, emulando o gran<strong>de</strong><br />

compositor veneziano; e as Stravaganze d’amore, <strong>de</strong><br />

Bene<strong>de</strong>tto Marcello. Esses são alguns exemplos <strong>de</strong>ssa<br />

nova poética musical <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> pelos italianos. Essa<br />

literatura para o violino solista, também oriun<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

maneirismos harmônicos como os empregados por Carlo<br />

Gesualdo e que gerou peças, como dissemos, <strong>de</strong> feições<br />

extraordinárias concernentes a aspectos melódicos,<br />

harmônicos, rítmicos e <strong>de</strong> outros tipos, foi <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> stylus phantasticus. Nesse ponto estamos seguros <strong>da</strong><br />

semelhança <strong>da</strong> stravaganza com a agu<strong>de</strong>za. Assim como<br />

esta, aquela substitui a mímesis <strong>da</strong> natureza por imagens<br />

fantásticas que, pelo caráter <strong>de</strong> surpresa e meraviglia,<br />

provocam o <strong>de</strong>leite do leitor, do ouvinte e, nesse caso,<br />

ain<strong>da</strong>, do intérprete <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. Ressaltamos assim<br />

nosso enfoque sobre o efeito retórico <strong>da</strong> stravaganza e <strong>da</strong><br />

agu<strong>de</strong>za sobre o receptor <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte na tentativa <strong>de</strong><br />

relacionarmos ambos os conceitos.<br />

3 - Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

Ao longo <strong>de</strong> nossa pesquisa inicial, pu<strong>de</strong>mos observar que<br />

tanto as agu<strong>de</strong>zas poéticas como a stravaganza musical,<br />

do ponto <strong>de</strong> vista i<strong>de</strong>ológico, são frutos <strong>de</strong> uma crença do<br />

homem seiscentista na facul<strong>da</strong><strong>de</strong> do engenho artístico,<br />

que, com sua perspicácia e versatili<strong>da</strong><strong>de</strong>, sabe se servir do<br />

repertório retórico preestabelecido por condicionamentos<br />

institucionais para criar imagens fantásticas, agu<strong>da</strong>s,<br />

engenhosas, artificiosas ou extravagantes nas obras <strong>de</strong><br />

arte. Essas imagens agu<strong>da</strong>s e extravagantes, seguindo<br />

as regras do <strong>de</strong>coro <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> gênero poético ou musical,<br />

exercem sobretudo a função retórica do <strong>de</strong>lectare,<br />

causando um prazer sensual, sensorial, e <strong>de</strong>spertando a<br />

maravilha <strong>de</strong> quem as produz e <strong>de</strong> quem as lê ou escuta.<br />

No caso <strong>da</strong> música, há ain<strong>da</strong> o fato interessante <strong>de</strong> que,<br />

pela sua necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> mediação, surge a figura do<br />

intérprete, que é tanto criador quando leitor <strong>da</strong> obra.<br />

Este, certamente, participa ativamente <strong>de</strong>sse processo<br />

do <strong>de</strong>lectare, ao improvisar e ornamentar a obra, criando<br />

suas próprias agu<strong>de</strong>zas ou stravaganze. Acreditamos<br />

assim que, embora guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as suas especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

estruturais, esses dois conceitos trazem uma semelhança<br />

que <strong>de</strong>svela algumas categorias retóricas, poéticas e<br />

estéticas do século XVII, constituindo-se numa eficiente<br />

chave <strong>de</strong> leitura <strong>da</strong> arte e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa época.


SALTARELLI, T. C. V. L.. Agu<strong>de</strong>za e Stravaganza: diálogo oblíquo... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 60-63<br />

Referências<br />

CIDADE, Hernani. A poesia lírica cultista e conceptista. Lisboa: Seara Nova, 1968.<br />

CUNHA, Cyran Costa Carneiro <strong>da</strong>. Un ferito cavaliero: a música afetuosa em Luigi Rossi. 2004. Dissertação (Mestrado em<br />

<strong>Música</strong>) – Instituto <strong>de</strong> Artes, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas, Campinas.<br />

GRACIÁN, Baltasar. Agu<strong>de</strong>za y arte <strong>de</strong> ingenio. Buenos Aires: Espasa-Calpe Argentina, 1942.<br />

GROVE Dictionary of Music. Oxford: Oxford University Press, 2003. 1 CD-ROM.<br />

HANSEN, João Adolfo. “Retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za”. In: Letras Clássicas, Revista do Departamento <strong>de</strong> Letras Clássicas <strong>da</strong> USP,<br />

n.4, p.317-342, 2000.<br />

TESAURO, Emanuele. Il Cannocchiale aristotelico. Savigliano: L’Artistica Piemontese, 2000. Edição fac-similar.<br />

Leitura recomen<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

CARVALHO, Maria do Socorro Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong>. Poesia <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za em Portugal. 2004. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto<br />

<strong>de</strong> Estudos <strong>da</strong> Linguagem, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas, Campinas.<br />

CHASIN, Ibaney. O canto dos afetos: um dizer humanista. São Paulo: Perspectiva, 2004.<br />

HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons: caminhos para uma nova compreensão musical. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge<br />

Zahar, 1990.<br />

LUCAS, Mônica Isabel. Humor e agu<strong>de</strong>za nos quartetos <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s op. 33 <strong>de</strong> Joseph Haydn. 2005. Tese (Doutorado em<br />

<strong>Música</strong>) – Instituto <strong>de</strong> Artes, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas, Campinas.<br />

TEIXEIRA, Ivan. A poesia agu<strong>da</strong> do engenhoso fi<strong>da</strong>lgo Manuel Botelho <strong>de</strong> Oliveira. In: OLIVEIRA, Manuel Botelho <strong>de</strong>.<br />

<strong>Música</strong> do Parnaso. Cotia: Ateliê Editorial, 2005. Edição fac-similar. p.7-96.<br />

TEIXEIRA, Ivan. Mecenato pombalino e poesia neoclássica. São Paulo: Edusp, 1999.<br />

Thiago Saltarelli é graduado em Letras (licenciatura em Português) pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais e<br />

atualmente cursa Mestrado em Teoria <strong>da</strong> Literatura pela mesma instituição. Tem experiência na área <strong>de</strong> Literatura,<br />

com ênfase em literatura medieval, renascentista e barroca, e, recentemente, na área <strong>de</strong> Filologia Românica e<br />

Lingüística Histórica. É violinista <strong>da</strong> Orquestra <strong>de</strong> Câmara Jovem Sesiminas há <strong>de</strong>z anos, e também já foi membro<br />

<strong>da</strong> Orquestra Jovem do Palácio <strong>da</strong>s Artes. Desenvolve pesquisas no campo <strong>da</strong> <strong>Música</strong> e <strong>de</strong> sua interface com a<br />

Literatura, atuando principalmente nas áreas <strong>de</strong> música e literatura barrocas e <strong>de</strong> música medieval e renascentista<br />

e sua herança brasileira <strong>de</strong> tradição oral, incluindo aí a pesquisa com rabecas brasileiras. Nesse âmbito, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2006<br />

é membro <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> pesquisa sobre as Cantigas <strong>de</strong> Santa Maria <strong>de</strong> Alfonso X, o Sábio, cujo projeto, intitulado<br />

“Problemas <strong>da</strong> Cultura Medieval Ibérica”, é <strong>de</strong>senvolvido pelo Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Letras <strong>da</strong> PUC Minas<br />

e coor<strong>de</strong>nado pela Profa. Dra. Ângela Vaz Leão.<br />

Notas<br />

1 A noção <strong>de</strong> <strong>de</strong>coro po<strong>de</strong> ser entendi<strong>da</strong> como o respeito à uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra promovi<strong>da</strong> pela conveniência <strong>de</strong> suas partes entre si e em relação à matéria<br />

discorri<strong>da</strong>, à finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra, à audiência e ao próprio poeta. Em suma, é a boa medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> verossimilhança e <strong>da</strong> conveniência.<br />

2 Este é o título do mais rico e mais significativo cancioneiro <strong>da</strong> poesia portuguesa seiscentista, no qual se recolheram as composições mais estima<strong>da</strong>s<br />

dos engenhos poéticos do século XVII. A Fênix Renasci<strong>da</strong> foi edita<strong>da</strong> em cinco volumes, por Matias Pereira <strong>da</strong> Silva, e teve duas impressões: a<br />

primeira <strong>de</strong> 1716 a 1728, e a segun<strong>da</strong> em 1746.<br />

3 “Hybla se chamava um monte <strong>da</strong> Sicília que por seus jardins era <strong>de</strong> ameni<strong>da</strong><strong>de</strong> muito celebra<strong>da</strong> pelos poetas. Hybla con habla repete, pois,<br />

essencialmente, o sentido <strong>de</strong> ramillete con sentido”. Nota presente em CIDADE, Hernani. A poesia lírica cultista e conceptista. Lisboa: Seara Nova,<br />

1968. p. 19.<br />

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64<br />

VERSOLATO, J.; KERR. D. M. A teoria e a análise musical sob o influxo <strong>da</strong> retórica no período Barroco... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 64-68<br />

A teoria e a análise musical sob o influxo<br />

<strong>da</strong> retórica no período Barroco<br />

Júlio Versolato (UNESP, São Paulo)<br />

julioversolato@ig.com.br<br />

Dorotea Machado Kerr (UNESP, São Paulo)<br />

dorotea@ia.unesp.br<br />

Resumo: O forte impacto do ‘pensamento retórico clássico’ sobre o contexto cultural Europeu – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o advento do<br />

Humanismo Renascentista até o período Barroco – acabou por <strong>de</strong>terminar uma mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> paradigma a partir <strong>da</strong> qual a<br />

música passou a ser classifica<strong>da</strong> mais propriamente como uma <strong>da</strong>s belas-artes do que como uma ciência. Neste estudo,<br />

investiga-se a configuração <strong>da</strong><strong>da</strong> à análise e à teoria musical sob o influxo dos princípios retóricos em voga no Barroco,<br />

consi<strong>de</strong>rando as idéias musicais mais representativas do período com relação a suas inovações técnicas e estéticas, às<br />

transformações metodológicas que suscitaram, e a seus <strong>de</strong>sdobramentos em direção aos dias <strong>de</strong> hoje.<br />

Palavras chave: análise musical; teoria musical; retórica musical; música barroca.<br />

Musical analysis and theory un<strong>de</strong>r the rhetorical influx during the Baroque<br />

Abstract: The great impact of “the classical rhetorical thinking” on European culture – since the birth of Renaissance<br />

Humanism until the Baroque – has <strong>de</strong>termined a change of paradigm from what music has been classified as one of the<br />

fine arts rather than a science. This paper presents an investigation on the interpretation of musical theory and analysis<br />

un<strong>de</strong>r the movement of the rhetorical principles most valid on the Baroque. It also investigates the configuration given<br />

to musical theory and analysis consi<strong>de</strong>ring the most representative i<strong>de</strong>a of the period form its technical and aesthetical<br />

innovations, the methodological transformation it provi<strong>de</strong>d, its consequences through the times until to<strong>da</strong>y.<br />

Keywords: musical analysis; musical theory; musical rhetoric; baroque music.<br />

1- Introdução<br />

Este artigo tem o propósito <strong>de</strong> apresentar parte dos<br />

resultados <strong>da</strong> pesquisa Rumos <strong>da</strong> Análise Musical no<br />

Brasil - Livros Publicados, cujo objetivo é investigar<br />

textos <strong>de</strong> análise musical escritos em língua portuguesa<br />

por autores brasileiros ou aqui radicados, e publicados<br />

no Brasil em forma <strong>de</strong> livro. Essa pesquisa <strong>de</strong>riva <strong>de</strong><br />

uma pesquisa mais ampla, Rumos <strong>da</strong> Análise Musical<br />

no Brasil, realiza<strong>da</strong> no Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em<br />

<strong>Música</strong> <strong>da</strong> Unesp, na qual se estudou a produção <strong>de</strong> teses,<br />

dissertações, memoriais e artigos, oriun<strong>da</strong> dos Programas<br />

<strong>de</strong> Pós-graduação <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s brasileiras, e que se<br />

norteou por algumas questões como: quais os caminhos<br />

tomados pelas disciplinas <strong>de</strong> análise musical no Brasil?<br />

Quais são suas tendências e propósitos?<br />

Rumos <strong>da</strong> Análise Musical no Brasil - Livros Publicados<br />

tem Rumos <strong>da</strong> Análise Musical no Brasil por mo<strong>de</strong>lo,<br />

adotando o mesmo tipo <strong>de</strong> pesquisa – estado <strong>da</strong> arte – e<br />

nutrindo as mesmas intenções <strong>de</strong> avaliação e explicação<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.17, 68 p., jan. - jun., 2007<br />

<strong>da</strong> produção <strong>de</strong> análise musical brasileira, mas com a<br />

diferença <strong>de</strong> estar foca<strong>da</strong> apenas sobre o objeto “livro”.<br />

Entre as diferenças que o objeto “livro” apresenta, po<strong>de</strong>se<br />

citar a sua ocorrência ao longo <strong>de</strong> um maior <strong>de</strong>curso <strong>de</strong><br />

tempo – visto que só a partir <strong>de</strong> 1977, com a publicação<br />

<strong>de</strong> Villa-Lobos, o Choro e os Choros, <strong>de</strong> José Maria Neves, é<br />

que passaram a surgir publicações <strong>de</strong> teses e dissertações,<br />

em forma <strong>de</strong> livro –, a concorrência <strong>de</strong> autores <strong>de</strong> outros<br />

meios que não apenas o acadêmico, e o fato <strong>de</strong> estar no<br />

mercado e passar por esse crivo. Po<strong>de</strong>-se observar, ain<strong>da</strong>,<br />

que o livro parece ser o suporte material mais propício<br />

para comunicar à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> o conhecimento <strong>de</strong>senvolvido<br />

na universi<strong>da</strong><strong>de</strong>, embora hoje já se possa contar com a<br />

perspectiva dos acervos on-line.<br />

Essa pesquisa tem sua realização concebi<strong>da</strong> em duas<br />

fases. A primeira refere-se à coleta e <strong>de</strong>scrição do material<br />

para pesquisa, realiza<strong>da</strong> por meio <strong>de</strong> um levantamento<br />

bibliográfico a partir do qual foi feita uma <strong>de</strong>scrição<br />

Recebido em: 27/10/2007 - Aprovado em: 12/01/2008


VERSOLATO, J.; KERR. D. M. A teoria e a análise musical sob o influxo <strong>da</strong> retórica no período Barroco... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 64-68<br />

evi<strong>de</strong>nciando os aspectos quantitativos <strong>de</strong>ssa produção.<br />

Nesse levantamento foram coletados, até o momento,<br />

quarenta e dois livros por meio <strong>de</strong> consultas via internet<br />

à base <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos RILM e aos sites <strong>da</strong> Biblioteca Nacional e<br />

<strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> <strong>Música</strong>; por contato telefônico<br />

junto às editoras Annablume, Ateliê Editorial, Musa Editora,<br />

Editora Perspectiva, Via Lettera, Fun<strong>da</strong>ção Editora Unesp,<br />

Editora <strong>da</strong> Unicamp, EDUSP, e ao Museu Villa-Lobos; e,<br />

ain<strong>da</strong>, por meio <strong>de</strong> coleta in loco nas Bibliotecas do IA/<br />

UNESP, <strong>da</strong> ECA/USP, e na Discoteca “Oney<strong>da</strong> Alvarenga”<br />

do Centro Cultural São Paulo.<br />

A segun<strong>da</strong> fase consiste na análise <strong>de</strong> aspectos qualitativos<br />

tais como as tendências analíticas, os métodos aplicados,<br />

as metodologias propostas, os objetivos almejados,<br />

aspectos esses que contribuem para respon<strong>de</strong>r perguntas<br />

como: Quais conhecimentos fun<strong>da</strong>mentam a análise<br />

musical no Brasil? Como se dá sua aplicação? Qual sua<br />

contribuição para o <strong>de</strong>senvolvimento musical entre nós?<br />

Os resultados apresentados neste artigo fazem menção<br />

aos estudos <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mentação <strong>de</strong>ssa pesquisa, que<br />

consistem em tomar ciência do conhecimento existente<br />

sobre metodologia <strong>da</strong> análise musical, com a intenção<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver referências para a leitura e <strong>de</strong>scrição<br />

dos tipos <strong>de</strong> análise realizados na bibliografia analíticomusical<br />

brasileira.<br />

Em relação ao interesse pelo estudo <strong>da</strong> teoria no período<br />

Barroco, nessa pesquisa adotam-se as idéias <strong>de</strong> Dunsby<br />

e Whittall, concor<strong>da</strong>ndo com os autores no fato <strong>de</strong> que<br />

muitos escritos teóricos antigos contêm um elemento<br />

técnico prático que os torna, se não realmente, ao<br />

menos potencialmente, analíticos; e uma vez que “a<br />

história <strong>da</strong> análise está presente na história <strong>da</strong> teoria<br />

musical” (DUNSBY e WHITTALL, 1988, p.13), seu<br />

estudo, mesmo que apenas como fun<strong>da</strong>mentação para<br />

o estudo <strong>de</strong> técnicas mo<strong>de</strong>rnas, é <strong>de</strong> inestimável valor.<br />

Esse potencial analítico po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificado numa<br />

sucessão <strong>de</strong> trabalhos que parte dos escritos teóricos<br />

<strong>de</strong> Aristoxeno, antecipando o trabalho classificatório<br />

na compilação dos tonaries pelo clero Carolíngio<br />

que, por sua vez, liga-se às discussões dos teóricos<br />

renascentistas sobre mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> na composição, e<br />

estas, por fim, conectam-se aos comentários mo<strong>de</strong>rnos<br />

sobre a linguagem musical <strong>de</strong> compositores específicos,<br />

e aos registros <strong>de</strong> linguagens particulares como as <strong>de</strong><br />

Schenker, Schoenberg, Hin<strong>de</strong>mith e Piston.<br />

A partir <strong>da</strong>s idéias <strong>de</strong> Ian Bent, cumpre atentar para o<br />

fato <strong>de</strong> que o olhar analítico contemporâneo sobre os<br />

escritos teóricos do passado justifica-se, também, por<br />

instaurar uma percepção que não seria possível antes<br />

do estabelecimento <strong>da</strong> autonomia <strong>da</strong> análise, a saber, a<br />

percepção <strong>da</strong> teoria como precursora <strong>da</strong> análise.<br />

“A análise, como uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> autônoma, veio a ser estabeleci<strong>da</strong><br />

somente no final do século <strong>de</strong>zenove; seu aparecimento como<br />

abor<strong>da</strong>gem e método po<strong>de</strong> ser traçado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1750. Contudo,<br />

ela existiu como uma ferramenta <strong>de</strong> estudo, ain<strong>da</strong> que auxiliar,<br />

a partir <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média em diante. Os precursores <strong>da</strong> análise<br />

mo<strong>de</strong>rna po<strong>de</strong>m ser vistos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> no mínimo dois ramos<br />

<strong>da</strong> teoria musical, a saber, o estudo dos sistemas mo<strong>da</strong>is e <strong>da</strong><br />

retórica musical” (BENT, 1980, p.343).<br />

Outro foco <strong>de</strong> interesse no estudo <strong>da</strong> teoria musical<br />

do Barroco, relaciona-se com o fato <strong>de</strong> que a nova<br />

categorização musical que naquele momento surgiu, liga<strong>da</strong><br />

à linguagem verbal e à arte oratória, fez <strong>de</strong>spertar pela<br />

primeira vez o questionamento sobre a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

música como meio expressivo <strong>de</strong> significados semânticos<br />

para além do discurso sintático e, logo, dirigindo-se<br />

para uma mu<strong>da</strong>nça conceitual em seu propósito que, na<br />

esteira do mo<strong>de</strong>lo retórico, apontou para a “persuasão”<br />

e <strong>de</strong>sta para sua classificação como uma <strong>da</strong>s belas-artes<br />

mais propriamente do que como uma ciência.<br />

O objetivo <strong>de</strong>ste trabalho é investigar a história <strong>da</strong><br />

análise e <strong>da</strong> teoria musical no Barroco, <strong>de</strong> modo a<br />

perceber a configuração que lhes foi <strong>da</strong><strong>da</strong> sob o influxo<br />

do mo<strong>de</strong>lo retórico vigente nesse período, bem como<br />

i<strong>de</strong>ntificar o surgimento <strong>de</strong> linhas metodológicas e seus<br />

<strong>de</strong>sdobramentos em direção aos dias <strong>de</strong> hoje.<br />

2- Teoria, análise musical e a retórica do<br />

Barroco<br />

Segundo George Buelow (1980) e Ian Bent (1980) todos<br />

os conceitos musicais relacionados à retórica têm como<br />

origem a literatura sobre oratória e retórica proveniente<br />

<strong>da</strong> Grécia antiga e <strong>de</strong> Roma, enfatizando-se os textos <strong>de</strong><br />

Aristóteles, Cícero e Quintiliano. A re<strong>de</strong>scoberta, em 1416,<br />

<strong>da</strong> Institutio Oratoria, <strong>de</strong> Quintiliano, constituiu uma <strong>da</strong>s<br />

principais fontes para o <strong>de</strong>senvolvimento do processo <strong>de</strong><br />

simbiose entre a retórica e a música ocorri<strong>da</strong>s no século<br />

<strong>de</strong>zesseis. Nesse texto, assim como em Aristóteles, são<br />

enfatiza<strong>da</strong>s as similari<strong>da</strong><strong>de</strong>s entre música e oratória, e<br />

tem-se por meta a mesma <strong>de</strong> todos os outros estudos <strong>de</strong><br />

oratória <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>, a saber:<br />

“[...] instruir o orador nos meios <strong>de</strong> controlar e dirigir a resposta<br />

emocional <strong>de</strong> sua platéia ou, na linguagem <strong>da</strong> retórica clássica<br />

e também dos antigos tratados <strong>de</strong> música, <strong>capa</strong>citar o orador<br />

(i.e. o compositor ou o performer) a mover os ‘Afetos’ (i.e. as<br />

emoções) <strong>de</strong> seus ouvintes” (BUELOW,1980, p.793).<br />

O gran<strong>de</strong> impacto do ‘pensamento retórico clássico’ na<br />

cultura européia <strong>de</strong>u-se a partir do advento do Humanismo<br />

Renascentista, tornando-se uma <strong>da</strong>s bases do currículo<br />

educacional <strong>da</strong>s escolas e universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> época e,<br />

conseqüentemente, <strong>de</strong>terminando uma nova atitu<strong>de</strong><br />

composicional, tanto na música sacra quanto secular, que<br />

levou a novos estilos e formas musicais, sendo o madrigal<br />

e a ópera os mais notórios. A associação <strong>da</strong> música com<br />

os princípios <strong>da</strong> retórica constitui, talvez, o traço mais<br />

marcante do racionalismo musical barroco, mo<strong>de</strong>lando<br />

o pensamento teórico e estético do período, e <strong>de</strong>finindo<br />

o pensamento musical seja quanto ao estilo, forma,<br />

expressão, métodos composicionais e performance.<br />

“Des<strong>de</strong> que a orientação prepon<strong>de</strong>rantemente retórica <strong>da</strong><br />

música barroca evoluiu a partir <strong>da</strong>s preocupações renascentistas<br />

quanto ao impacto dos estilos musicais sobre o significado e<br />

inteligibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s palavras (como, por exemplo, nas discussões<br />

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66<br />

VERSOLATO, J.; KERR. D. M. A teoria e a análise musical sob o influxo <strong>da</strong> retórica no período Barroco... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 64-68<br />

teóricas <strong>da</strong> Camerata Fiorentina), praticamente todos os<br />

elementos <strong>da</strong> música que po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados tipicamente<br />

barrocos, seja na música italiana, alemã, francesa ou inglesa;<br />

estão ligados direta ou indiretamente a conceitos retóricos”<br />

(BUELOW,1980, p.793).<br />

Devido a essas mu<strong>da</strong>nças os teóricos <strong>da</strong> música tiveram<br />

que se confrontar com problemas totalmente estranhos<br />

à teoria musical tradicional – que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

havia sido tão somente <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>s disciplinas<br />

matemáticas do quadrivium – vendo-se forçados a<br />

<strong>de</strong>senvolver referências teóricas que pu<strong>de</strong>ssem abarcar<br />

esses novos estilos musicais retoricamente orientados. A<br />

própria idéia <strong>de</strong> “forma” foi um dos conceitos introduzidos<br />

na teoria a partir do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> retórica musical.<br />

Em 1537, com Listenius, foi introduzi<strong>da</strong> a idéia <strong>de</strong><br />

musica poética, <strong>de</strong>rivando-a <strong>da</strong> duali<strong>da</strong><strong>de</strong> entre musica<br />

theoretica e musica prattica proposta por Boethius. Mais<br />

tar<strong>de</strong>, entre os anos <strong>de</strong> 1599 e 1601, Joachim Burmeister<br />

apresentou uma base retórico-musical sistemática para<br />

essa musica poética, realizando a primeira tentativa <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>codificação <strong>de</strong> “figuras musicais”, e propondo que<br />

essas podiam ser trata<strong>da</strong>s <strong>de</strong> forma análoga às figuras<br />

<strong>de</strong> retórica. Algum tempo <strong>de</strong>pois, em 1606, Burmeister,<br />

apresentou também a primeira <strong>de</strong>scrição e interpretação<br />

<strong>de</strong> uma composição completa com a aplicação <strong>de</strong> sua<br />

terminologia retórica num estudo sobre o moteto In<br />

me transierunt <strong>de</strong> Orlando Di Lasso – portanto não sem<br />

propósito visto que, este último, foi reconhecido mesmo<br />

por seus contemporâneos renascentistas como “o maior<br />

orador musical” (BUELOW,1980, p.794) –, cujo interesse<br />

composicional se faz patente na medi<strong>da</strong> em que, mesmo<br />

circunscrito a priori<strong>da</strong><strong>de</strong>s literárias, apresenta-se<br />

uma <strong>de</strong>finição <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> obra e uma explicação<br />

dos métodos composicionais. Como se não bastasse,<br />

Burmeister foi ain<strong>da</strong> o primeiro teórico a formular uma<br />

<strong>de</strong>finição para a análise musical.<br />

“A análise <strong>de</strong> uma composição é a <strong>de</strong>composição <strong>de</strong>ssa<br />

composição em um <strong>de</strong>terminado modo e uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong><br />

espécie <strong>de</strong> contraponto [antiphonorum genus], e em seus afetos<br />

ou períodos... A análise consiste <strong>de</strong> cinco partes: 1. Determinação<br />

do modo; 2. <strong>da</strong>s espécies <strong>de</strong> tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>; 3. do contraponto; 4.<br />

Consi<strong>de</strong>ração <strong>da</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>; 5. <strong>de</strong>composição <strong>da</strong> composição em<br />

afetos ou períodos” (BURMEISTER in BENT, 1980, p.343).<br />

Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao longo <strong>de</strong> todo o período renascentista e<br />

barroco, os princípios <strong>de</strong> retórica tiveram mais a tendência<br />

<strong>de</strong> serem prescritivos e fornecer referências técnicas para a<br />

composição, do que propiciarem o surgimento <strong>de</strong> técnicas<br />

<strong>de</strong>scritivas para análise, não obstante, cumpriram um<br />

importante papel no <strong>de</strong>senvolvimento do conhecimento<br />

<strong>da</strong> estrutura formal, particularmente quanto à conexão<br />

e contraste entre diferentes seções. Lippius, em 1612,<br />

sugeriu que a retórica musical não fosse apenas a base<br />

para um vocabulário musical efetivo, mas também para o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> forma e <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> composição.<br />

Nesse domínio encontram-se evidências <strong>de</strong> analogias<br />

entre retórica e música a partir <strong>de</strong> 1563 quando Gallus<br />

Dressler referiu-se à organização formal <strong>da</strong> música<br />

adotando a divisão <strong>de</strong> uma oração – exordium, medium e<br />

finis. O interesse por esse tipo <strong>de</strong> teorização fica notório<br />

ao constatar-se que muitos anos mais tar<strong>de</strong>, em 1739,<br />

Mattheson <strong>de</strong>senvolveu idéias similares ao apresentar um<br />

plano racional <strong>de</strong> composição musical relacionado aos<br />

conceitos <strong>da</strong> teoria retórica concernentes à <strong>de</strong>terminação<br />

e apresentação <strong>de</strong> argumentos. O plano <strong>de</strong> Mattheson<br />

constou <strong>de</strong> quatro tópicos:<br />

• inventio (invenção <strong>de</strong> uma idéia).<br />

• dispositio (organização <strong>da</strong> idéia nos termos <strong>de</strong> uma<br />

oração).<br />

• <strong>de</strong>coratio (elaboração ou <strong>de</strong>coração <strong>da</strong> idéia).<br />

• pronuntiatio (a performance ou pronunciamento <strong>da</strong><br />

oração).<br />

Uma outra e mais usual formulação <strong>de</strong>ssa natureza foi a<br />

divisão em seis partes do dispositio que, tanto na retórica<br />

clássica quanto numa enumeração feita por Mattheson,<br />

consistiu em:<br />

• exordium (introdução).<br />

• narratio (narração).<br />

• propositio (sumarização do significado e propósito<br />

do discurso musical).<br />

• confirmatio (fortalecimento <strong>da</strong>s proposições).<br />

• confutatio (contraste ou oposição <strong>de</strong> idéias<br />

musicais).<br />

• peroratio (conclusão <strong>da</strong> oração musical).<br />

Um exemplo <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>gem a partir <strong>de</strong>ssas referências<br />

foi o estudo do próprio Mattheson sobre uma Ária <strong>de</strong><br />

Marcelo, no qual também foram apresentados exemplos<br />

musicais, e novos termos técnicos foram introduzidos.<br />

A mais complexa e sistemática transformação <strong>de</strong> conceitos<br />

retóricos em equivalentes musicais está relaciona<strong>da</strong> ao<br />

<strong>de</strong>coratio ou elaboração <strong>da</strong> idéia. Este é o ponto em que<br />

entra em questão a articulação <strong>da</strong>s “figuras” musicais, ou<br />

seja, recursos musicais análogos às ‘figuras <strong>de</strong> retórica’<br />

que na oratória cumprem a função <strong>de</strong> intensificar o<br />

conteúdo emocional do discurso. No contexto <strong>da</strong> música<br />

tais figuras surgiram a partir <strong>da</strong>s tentativas <strong>de</strong> justificar<br />

a utilização irregular, se não incorreta, <strong>da</strong>s leis do<br />

contraponto em <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s passagens composicionais<br />

com o fito <strong>de</strong> dramatizar a expressão <strong>de</strong> “afetos”. A esse<br />

respeito é reveladora a conten<strong>da</strong> entre Giovanni Maria<br />

Artusi e Claudio Monteverdi, que se iniciou a partir <strong>de</strong> uma<br />

<strong>de</strong>scrição negativa <strong>da</strong>s características do novo estilo, por<br />

parte <strong>de</strong> Artusi. Monteverdi, por sua vez, revi<strong>da</strong>ndo à crítica,<br />

usou o termo secon<strong>da</strong> prattica em seu prefácio ao Quinto<br />

Libro <strong>de</strong> Madrigali, 1605, referindo-se a uma abor<strong>da</strong>gem<br />

mais livre <strong>da</strong> escrita contrapontística e diferenciando-a<br />

<strong>da</strong> prima prattica preconiza<strong>da</strong> na Institutioni <strong>de</strong> Zarlino,<br />

na qual as dissonâncias eram estritamente controla<strong>da</strong>s.<br />

Giulio Cesare Monteverdi, irmão <strong>de</strong> Claudio, explicando<br />

essa <strong>de</strong>claração, e fazendo menção ao i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> mover os<br />

“afetos”, afirmou que “na secon<strong>da</strong> prattica a harmonia<br />

é uma serva do texto, enquanto na prima prattica a<br />

harmonia é a patroa do texto” (PALISCA, 1980, p.755).


VERSOLATO, J.; KERR. D. M. A teoria e a análise musical sob o influxo <strong>da</strong> retórica no período Barroco... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 64-68<br />

Gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>ssas inovações tem sua origem na música<br />

improvisa<strong>da</strong> ou na improvisação sobre música escrita,<br />

amplamente difundi<strong>da</strong>s na época, e que contavam, entre<br />

outros, com práticas como a do embelezamento <strong>de</strong> melodias<br />

por parte dos cantores. Po<strong>de</strong>-se concluir, portanto, que um<br />

dos diferenciais trazidos por Monteverdi foi a sua escrita<br />

musical influencia<strong>da</strong> pela música feita <strong>de</strong> forma prática, fato<br />

esse que exigiu uma outra compreensão e a consequente<br />

superação <strong>da</strong>s regras composicionais <strong>da</strong> época.<br />

“Assim, muitas <strong>da</strong>s inovações <strong>de</strong> Monteverdi foram<br />

freqüentemente ouvi<strong>da</strong>s antes, mas raramente escritas. Nesse<br />

sentido a teoria do contraponto escrito foi simplesmente<br />

ajusta<strong>da</strong> às reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> performance prática” (PALISCA,<br />

1980, p.755).<br />

A plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> terminológica referente a essas figuras<br />

musicais, variando <strong>de</strong> região para região e <strong>de</strong> autor<br />

para autor, tem impedido, mesmo nos dias <strong>de</strong> hoje, a<br />

realização <strong>de</strong> uma categorização convincente e efetiva.<br />

Não obstante, Buelow (1980) apresenta uma lista,<br />

ain<strong>da</strong> que forçosamente arbitrária, <strong>da</strong>s figuras musicais<br />

mais freqüentemente cita<strong>da</strong>s agrupando-as em sete<br />

categorias:<br />

• Figuras <strong>de</strong> repetição melódica.<br />

• Figuras basea<strong>da</strong>s sobre imitação fugal.<br />

• Figuras forma<strong>da</strong>s por estruturas <strong>de</strong> dissonâncias.<br />

• Figuras <strong>de</strong> intervalos.<br />

• Figuras<strong>de</strong> hypotyposis, esta normalmente reconheci<strong>da</strong><br />

por “madrigalismos” em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> serem freqüentes<br />

no madrigal italiano do século XVI.<br />

• Figuras <strong>de</strong> som.<br />

• Figuras forma<strong>da</strong>s por silêncio.<br />

Ain<strong>da</strong> que a secon<strong>da</strong> prattica estivesse soli<strong>da</strong>mente<br />

estabeleci<strong>da</strong>, isso não implicou no abandono <strong>da</strong> prima<br />

prattica tanto por parte dos compositores que a utilizavam<br />

no contexto <strong>da</strong> música sacra, quanto pelos teóricos – a<br />

exemplo <strong>de</strong> Girolamo Diruta que teceu consi<strong>de</strong>rações<br />

tanto sobre o contraponto estrito quanto sobre o estilo<br />

livre como alternativas para o compositor mo<strong>de</strong>rno; ou<br />

Adriano Banchieri e Marco Sccachi que apresentaram<br />

normas para a distinção entre os dois estilos; ou, ain<strong>da</strong>,<br />

o próprio Scacchi que juntamente com seu aluno Ângelo<br />

Berardi e, também, Cristoph Bernhard, empreen<strong>de</strong>ram os<br />

primeiros esforços <strong>de</strong> teorização do estilo musical. Além<br />

disso, a prima prattica tornou-se um estilo pe<strong>da</strong>gógico,<br />

passando, então, a ser conheci<strong>da</strong> como stile antico, e<br />

servindo para as primeiras experiências dos aprendizes<br />

<strong>de</strong> composição que, <strong>de</strong>pois, passariam a compor no<br />

estilo mo<strong>de</strong>rno. “A prima prattica é, assim, o primeiro<br />

exemplo <strong>de</strong> um estilo histórico que se tornou a base<br />

<strong>de</strong> uma teoria pe<strong>da</strong>gógica, um fenômeno que marcou o<br />

ensino <strong>da</strong> teoria ao longo dos séculos <strong>de</strong>zenove e vinte”<br />

(PALISCA, 1980, p.756).<br />

Entre as práticas <strong>de</strong> improvisação contempla<strong>da</strong>s pela<br />

teoria está a <strong>da</strong> elaboração <strong>de</strong> floreios sobre uma linha<br />

escrita ou um esquema harmônico. Essa é uma prática<br />

que remonta ao século <strong>de</strong>zesseis e que consistiu na<br />

realização <strong>de</strong> arranjos e variações improvisa<strong>da</strong>s seja<br />

na recitação <strong>de</strong> poesia ou em <strong>da</strong>nças toca<strong>da</strong>s ao<br />

alaú<strong>de</strong> ou outro instrumento. O acompanhamento a<br />

partir <strong>de</strong> um baixo, provavelmente, também constituiu<br />

uma prática improvisatória até o surgimento <strong>da</strong><br />

primeira partitura para baixo contínuo, ocorri<strong>da</strong><br />

com a Rappresentatione di Anima et di Corpo <strong>de</strong><br />

Cavalieri em 1600. Daí em diante, surgiram diversos<br />

tipos <strong>de</strong> publicações versando sobre esse gênero <strong>de</strong><br />

acompanhamento, chegando à teorização do baixo<br />

contínuo, primeiramente numa acepção improvisatória<br />

com Lorenzo Penna e, <strong>de</strong>pois, em sua ligação com a<br />

composição com Johan David Heinichen.<br />

Quanto à estrutura harmônica <strong>da</strong> música, vê-se ao<br />

longo do período Barroco a evolução do mo<strong>da</strong>lismo à<br />

tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> em to<strong>da</strong>s as suas nuances <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Zarlino, que<br />

já havia assinalado a divisão dos modos em duas classes<br />

– com terça maior e com terça menor –, passando por<br />

Jean Rousseau que radicalizou afirmando que havia<br />

somente os modos maior e menor, ain<strong>da</strong> que agarrandose<br />

aos conceitos <strong>de</strong> escala natural e transposta e, <strong>de</strong>pois,<br />

Charles Masson que, <strong>de</strong>scartando esses últimos conceitos,<br />

reconheceu oito escalas maiores e menores – omitindo<br />

as escalas maiores <strong>de</strong> Gb, Ab, Db e Eb, e as menores <strong>de</strong><br />

Gb, Ab, Bb e Db – para, então, chegar a Rameau que<br />

concebeu as notas e acor<strong>de</strong>s como a emanação <strong>de</strong><br />

uma única fun<strong>da</strong>mental. A partir <strong>da</strong>s seis primeiras<br />

subdivisões <strong>de</strong> uma cor<strong>da</strong>, Rameau, promoveu a geração<br />

dos intervalos consoantes e dissonantes, dos acor<strong>de</strong>s,<br />

bem como <strong>da</strong>s leis <strong>de</strong> seu entrelaçamento. A partir <strong>de</strong>sse<br />

momento uma progressão <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s passou a po<strong>de</strong>r ser<br />

vista como o movimento <strong>de</strong> uma linha fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong><br />

baixos que po<strong>de</strong>m ou não estar soando. “Assim, Rameau<br />

marcou um retorno ao naturalismo e ao racionalismo<br />

após a teoria pragmática <strong>da</strong> escola do baixo contínuo”<br />

(PALISCA, 1980, p.756).<br />

3- Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

O que mais chama a atenção no <strong>de</strong>senvolvimento musical<br />

ao longo <strong>de</strong> todo o período Barroco é o aspecto <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scoberta e <strong>de</strong> novi<strong>da</strong><strong>de</strong> promovido por uma mu<strong>da</strong>nça no<br />

paradigma estético e teórico, que tira <strong>de</strong> foco uma música<br />

fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> pelo conhecimento científico, e abre<br />

espaço para uma música humana, afetiva. O surgimento<br />

<strong>de</strong> um novo estilo que coexiste com o antigo coloca em<br />

questão a função <strong>de</strong> ambos. Até que ponto o “novo” estilo<br />

não foi mais propriamente um “outro” estilo com suas<br />

respectivas aplicações e funções? Será que a persistência<br />

do antigo diminuiu em algo o vigor e a realização do<br />

novo? Todo o <strong>de</strong>senvolvimento do conhecimento musical<br />

indo do mo<strong>da</strong>lismo à tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>, implica<strong>da</strong>s aí to<strong>da</strong>s as<br />

transformações formais, estilísticas e poéticas que foram<br />

necessárias, faz com que o período Barroco se pareça mais<br />

com um umbral entre dois mundos musicais. Um período<br />

<strong>de</strong> constante mutação e talvez por isso tão refratário a<br />

<strong>de</strong>finições. Talvez assim como o Humano.<br />

67


68<br />

VERSOLATO, J.; KERR. D. M. A teoria e a análise musical sob o influxo <strong>da</strong> retórica no período Barroco... Per Musi, Belo Horizonte, n.17, 2008, p. 64-68<br />

Referências<br />

BENT, Ian D. Analysis. In: SADIE, Stanley (Org.) The New Grove Dictionary of Music and Musicians Vol.1, p.340-388.<br />

London: Macmillan Publishers Limited, 1980.<br />

BUELOW, George J. Rhetoric and music. In: SADIE, Stanley (Org.) The New Grove Dictionary of Music and Musicians Vol.16,<br />

p.793-803. London: Macmillan Publishers Limited, 1980.<br />

DUNSBY, Jonathan; WHITTALL, Arnold. Music Analysis in Theory and Practice. London and Boston: Faber Music, 1988.<br />

NEVES, José Maria. Villa-Lobos, o choro e os choros. 1ed. São Paulo: Edições Ricordi, 1977.<br />

PALISCA, Clau<strong>de</strong> V. Theory, theorists. In: SADIE, Stanley (Org.) The New Grove Dictionary of Music and Musicians Vol.18,<br />

p.741-762. London: Macmillan Publishers Limited, 1980.<br />

SAMSON, Jim. Analysis in Context. In: COOK, Nicholas; EVERIST, Mark. Rethinking Music, p. 35-54. Oxford: Oxford<br />

University Press, 2001 (1ed 1999).<br />

Dorotéa Kerr é organista, regente coral e professora adjunta do Instituto <strong>de</strong> Artes <strong>da</strong> UNESP. Livre-docente em órgão<br />

e história <strong>da</strong> música pelo IA/UNESP, doutora em música pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Indiana, Estados Unidos, e mestre em<br />

música/órgão pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Foi coor<strong>de</strong>nadora do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em <strong>Música</strong><br />

do Instituto <strong>de</strong> Artes <strong>da</strong> UNESP e é presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Comissão <strong>de</strong> Pesquisa <strong>de</strong>ssa instituição.<br />

Júlio Versolato é bacharel em violão formado pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual Paulista “Júlio <strong>de</strong> Mesquita Filho” – UNESP.<br />

Atualmente realiza o curso <strong>de</strong> mestrado em musicologia no Programa <strong>de</strong> Pós-graduação do Instituto <strong>de</strong> Artes <strong>da</strong> UNESP.<br />

Professor <strong>de</strong> violão, baixo-elétrico, teoria e análise, e educação sonora; atua no Centro <strong>de</strong> Formação Musical Viva <strong>Música</strong>,<br />

em SBCampo, e em Oficinas Culturais do estado e <strong>da</strong>s prefeituras <strong>da</strong> região do ABCD.

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