a marquezinha de cabeleira negra, de garcía márquez - UFMT

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80 A Marquezinha De Cabeleira Negra, De García Márquez deslocar a busca imaginária do maravilhoso e avançar uma redefinição da sobre-realidade: esta deixa de ser um produto da fantasia – de um “dépaysement” que os jogos surrealistas perseguiam – para constituir uma região anexada à realidade ordinária e empírica, mas só apreensível por aquele que crê ( 1980, p.36). 1- O MARAVILHO DA AMÉRICA LATINA O cubano Alejo Carpentier, no prólogo do livro El reino de este mundo, definiu, claramente, por meio dos personagens, da inserção dos mitos, da oralidade dos haitianos e dos fatos religiosos, o que considera como Maravilhoso. Segundo Carpentier (2004), o aspecto religioso é de suma importância para se crer no Maravilhoso: “para empezar, la sensación de lo maravilloso presupone una fe. Los que no creen en santos no pueden curarse con milagros de santos(…)” (2004, p.10). Para o autor, o Realismo Maravilhoso é a essência da definição do que vem a ser o povo latino-americano, ou seja, povo mestiço, povo de várias raças, costumes, crenças, rituais. O mesmo autor afirma que o Realismo Maravilhoso é algo particular da América Latina, uma vez que somente aqui pode-se vivenciar, de fato, o maravilho; por assim dizer, não há falsificação da realidade, não é ilusão — como faziam os surrealistas — mas aquilo que há de verdadeiro na América, de singular, de único, de fantástico. Segundo o autor, Lo real maravilloso se encuentra a cada paso en las vidas de hombres que ins- cribieron fechas en la historia del Continente y dejaron apellidos aún llevados: desde los buscadores de la Fuente de la Eterna Juventud, la áurea cuidad de Manoa, hasta ciertos rebeldes de la primera hora o ciertos héroes modernos de nuestras guerras de independencia de tan mitológica traza como la coronela Juana de Azurduy (2004, p.12) Para Carpentier o realismo maravilhoso se distingue do fantástico europeu. Este é entendido como algo fantasioso, sem sentido, inverossímil, composto por elementos do cotidiano, todavia levado a uma at- mosfera de sonhos e ilusão, ou seja, é uma realidade artificial, produto da imaginação dos escritores. Aquele é a expressão literária do povo mestiço, do real latente, do cotidiano em estado bruto. A busca insaciável de uma identidade para a América Latina, bem como o desejo de romper com os modelos literários europeus da época, fez com que na região latino-americana surgisse o Maravilhoso, tendo como principais escritores e precursores Alejo Carpentier, Miguel Ángel Asturias, Jorge Luís Bor- ges, Gabriel Garcia Marquez . Imediatamente, viu-se o “boom” da ruptura com o esquema tradicional do discurso realista. O realismo maravilhoso é formado pela união de elementos díspares, procedentes de culturas he- terogêneas. Isso é o que gera uma nova realidade histórica, proporcionando o rompimento com os padrões convencionais da racionalidade ocidental. Segundo Chiampi, “o maravilhoso é, na criação literária, a in- tervenção de seres sobrenaturais, divinos ou legendários (deuses, deusas, anjos, demônios, gênios, fadas) na ação narrativa ou dramática” (1980, p. 49, ênfase acrescentada). A diferença entre o maravilhoso e o fantástico está em que este inventa os seres sobrenaturais em sua criação literária, uma vez que não existem, e aquele não o faz, não artificializa, uma vez que a intervenção dos seres legendários ocorre de fato, pois
LOPES no Maravilhoso acontece, de fato, uma intervenção desses seres divinos na vida cotidiana das pessoas. Tal fenômeno Carpentier considera como algo natural da América Latina, o que seria impossível ao contexto europeu. O escritor colombiano Gabriel García Márquez constrói maravilhosamente, em seus romances, o Maravilhoso, como em Cien años de Soledad, novela que o consagrou como um grande autor, dando-lhe reconhecimento literário e prestígio universal por parte da crítica e do público. García Márquez escreveu muitos romances e contos — El otoño del patriarca, Crónica de una muerte anunciada, El amor en los tiempos del cólera, Doce cuentos peregrinos — além de textos jornalísticos, o que lhe rendeu, em 1982, o prêmio Nobel de Literatura. Aqui irei tratar apenas da obra Del amor y otros demônios, na qual analisarei a manifestação do realismo maravilhoso. 2- UM POUCO SOBRE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ Gabriel García Márquez nasceu no dia 6 de março de 1927, em Aracataca, Colômbia (Ilhas do Cari- be). De seu nascimento até os dez anos, viveu no casarão com os avós maternos (Tranquilina e Nicólas), as três tias e primos. Aos nove anos, leu pela primeira vez As mil e uma noites e ficou maravilhado, porque as histórias eram semelhantes às que sua avó contava. Muitas de suas narrativas são frutos das histórias inventadas pela avó, bem como das Histórias reais que o avô lhe contava. O avô falava do mundo real, já a avó do fantástico, do supersticioso. 3- DE AMOR E OUTROS DEMÔNIOS: ONDE O MARAVILHOSO APARECE García Márquez narra a história de uma menina de 12 anos — Sierva María — que foi mordida por um cachorro raivoso e que vive um romance com um padre de 37 anos. Devido ao fato de os pais terem-na abandonado, ela é criada pelos escravos. Com isso, passa a absorver a cultura e os costumes dos escravos e a cultuar as divindades africanas. Nesse romance, García Márquez apresenta a dicotomia que há entre o mundo dos escravos e o dos brancos. Para o Santo Ofício, os rituais africanos eram considerados demoníacos, por isso o bispo afirmava que Sierva María estava possuída pelo demônio. Entretanto, o que ocorria era que a menina, por ter sido educada pelas negras da casa, fazia as mesmas coisas que seus moradores. Há a presença do maravilhoso, do insólito, do fantástico da América Latina. A realidade das personagens nos é transmitida com muita veracidade, uma vez que o autor aborda fatos do cotidiano mesclados com os rituais, as crenças, a religião, as danças, os escravos, os indígenas, os mestiços. Ou seja, mostra situações em que há uma intervenção das divindades na vida das pessoas. O plano espiritual exerce total e natural influência no plano terrestre. No prólogo, García Márquez inventa uma origem para a sua história. Diz que em 1949 foi ao convento de Santa Clara de Cartagena, onde encontrou a protagonista de sua novela: uma menina com uma cabeleira de 22 metros e 11 centímetros. 81
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