84 A Marquezinha De Cabeleira Negra, De García Márquez mente, diz que sua mãe havia feito aquilo com uma faca. Então lhe perguntam o nome; ela dá o nome <strong>de</strong> <strong>negra</strong> – Maria Mandinga. Ela ajuda a <strong>de</strong>golar um cabrito que resistia a morrer — tira-lhe os dois olhos e corta-lhe os testículos; joga diabolô com os adultos e crianças e ganha <strong>de</strong> todos; canta em ioruba, em congo e em mandinga; no almoço, come os testículos e os olhos do cabrito. Sierva María era realmente uma branca-<strong>negra</strong>, uma menina que <strong>de</strong> branca tinha somente a cor. Quando ela chega ao convento e encontra os negros é como se tivesse encontrado os “seus”, o seu povo, a sua família. García Marquez nos mostra uma marquesinha completamente incomum para os padrões da socieda<strong>de</strong> cristã. É uma espécie <strong>de</strong> rompimento com os mo<strong>de</strong>los europeus, isto é, algo natural da América Latina, peculiar a esse povo mestiço. O belo, o maravilhoso, é notório nessa obra, ou seja, o autor <strong>de</strong>staca aquilo que é particular ao povo latino-americano. Aqui, no maravilhoso, o cavalo <strong>de</strong> cem anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, é real; uma menina branca-<strong>negra</strong> com uma <strong>cabeleira</strong> assustadora, com po<strong>de</strong>res sobrenaturais e que fala e canta em línguas africanas, que dança melhor que os nativos, e que consegue ficar “invisível” para os cristãos, é real. Tudo isso existe, não como algo falsificado, fruto da ilusão e sonhos dos escritores, da simples imaginação, mas como algo do real, do cotidiano, da intervenção <strong>de</strong> seres sobrenaturais e, por questão <strong>de</strong> fé, da crença em sua existência. Até aqui, po<strong>de</strong>-se observar que essa obra, <strong>de</strong>ntre tantas outras, expressa a mestiçagem que resultou na “formação” i<strong>de</strong>ológica do povo latino-americano, que buscava por meio da literatura sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. O realismo maravilhoso surgiu na tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar as peculiarida<strong>de</strong>s da América Latina, valorizar a mestiçagem, <strong>de</strong>finir a sua cultura no contexto oci<strong>de</strong>ntal, <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar-se perante as variadas formas <strong>de</strong> colonização e <strong>de</strong> criar um sentido para sua realida<strong>de</strong> histórica. Foi isso que García Márquez fez em todos os seus romances e contos: buscou significar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse povo, tanto no aspecto histórico-político- social, quanto religioso ou mítico. A igreja católica exerce um gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r sobre a família <strong>de</strong> Sierva María, assim como sobre toda a socieda<strong>de</strong>. A igreja, representada pelo padre ou bispo, <strong>de</strong>tém autorida<strong>de</strong>, prestígio e po<strong>de</strong>r nessa época. Sua função era evangelizar, levar os perdidos — nesse caso, os negros e índios — para a verda<strong>de</strong>ira fé, a salvação, o único caminho certo. Ou seja, levá-los para o Deus dos brancos, dos europeus, dos civilizados. E é aí que entra a gran<strong>de</strong> questão: os negros e índios não podiam cultuar os seus <strong>de</strong>uses, as suas divinda<strong>de</strong>s, pois eram con<strong>de</strong>nados por suas práticas, por sua fé mística, pelos seus rituais <strong>de</strong> macumbas e por suas oferendas aos orixás, pela prática <strong>de</strong> vodu. Então aconteceu que “muitos dos traços das religiões africanas ou indígenas foram integrados no catolicismo latino-americano” (LAMBERT, 1979, p.18). O povo latino-americano surgiu a partir <strong>de</strong> uma mestiçagem fortíssima: índios, espanhóis e africanos, cada qual com costumes, cultura e religião completamente distintos. No que tange ao campo religioso, todos os países latino-americanos têm como religião oficial o catolicismo; todavia, há práticas, como no vodu <strong>de</strong> Cuba, que são naturais dos rituais <strong>de</strong> macumba. Na obra Del amor e otros <strong>de</strong>mônios, as práticas <strong>de</strong> macumbas ocorrem em meio aos ritos católicos. Todavia, esses cultos africanos são con<strong>de</strong>nados pela igreja e é por isso que o bispo diz ao pai <strong>de</strong> Sierva María que ela está possuída pelo <strong>de</strong>mônio. Segundo o bispo, tal fenômeno era produto <strong>de</strong> ensinamentos que os escravos davam para a menina. O pai tenta cuidar da filha em casa, entretanto percebe que o bispo estava certo, que <strong>de</strong>ve obe<strong>de</strong>cer-lhe. Sendo assim, ele manda a menina para o convento, on<strong>de</strong> será muito maltratada, pois todos pensam que ela está possuída pelo “capeta”.
LOPES É no convento que Sierva María terá a sua primeira experiência amorosa. O padre Delaura fica res- ponsável por exorcizá-la. Todavia, quando chega à cela em que a marquesinha se encontrava, ele se assusta, pois é um lugar sujo, úmido, escuro e fedido: “(...) a cela <strong>de</strong> Sierva María exalou um bafo <strong>de</strong> podridão. A menina estava <strong>de</strong>itada <strong>de</strong> costas na cama <strong>de</strong> pedra sem colchão, amarrada <strong>de</strong> pés e mãos com correias <strong>de</strong> couro” (MÁRQUEZ, 1996, p.122). Ele se compa<strong>de</strong>ce da marquesinha e faz varias intervenções junto à aba<strong>de</strong>ssa para melhorar algumas coisas na cela da menina. Depois <strong>de</strong> alguns encontros, o padre percebe que está apaixonado por Sierva María: “retirou-se para a biblioteca mais cedo que <strong>de</strong> costume, pensando nela, e quanto mais pensava, mais aumentavam suas ânsias <strong>de</strong> pensar. Repetiu em voz alta os sonetos <strong>de</strong> amor <strong>de</strong> Garcilaso (...)” (MÁRQUEZ,1996, p.131). A relação entre os dois é uma mistura <strong>de</strong> amor cristão com o amor pagão, uma vez que Sierva María representava o “<strong>de</strong>mônio” e o padre, o “ sagrado”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do que foi comentado, posso dizer que o realismo maravilhoso até hoje é visível e vivenciado pelo povo latino americano: vivenciado, na medida em que as suas crenças, superstições, valores religiosos — a sua fé em algo divino — são ainda fortemente cultuados e respeitados. Tais crenças fazem parte da i<strong>de</strong>nti- da<strong>de</strong> e da cultura <strong>de</strong>sse povo, por isso, para se crer em seres sobrenaturais, é necessário ter fé. É isso que encontramos na personagem Sierva Maria, fé em santos, nos <strong>de</strong>uses africanos, nas superstições etc. Ela simboliza a formação híbrida do hispano-americanismo, do homem índio colonizado, do europeu sob o sol latino-americano. 85