revisitando a modernidade brasileira: nacionalismo e ... - Unimep
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REVISITANDO A<br />
MODERNIDADE<br />
BRASILEIRA:<br />
NACIONALISMO E<br />
DESENVOLVIMENTISMO<br />
Reviewing the Brazilian Modernity:<br />
nationalism and development<br />
Resumo Este artigo revisita a <strong>modernidade</strong> <strong>brasileira</strong>, salientando os fundamentos, as<br />
concepções e as prioridades que nortearam as ações construtoras do processo de desenvolvimento<br />
urbano-industrial como uma busca pela soberania e autonomia do<br />
Brasil em relação ao exterior. Procuramos evidenciar as contradições desse processo<br />
modernizador, que, ao mesmo tempo que dinamizava e redimensionava a economia<br />
e a sociedade, seguia reproduzindo seus principais limites: ingerência externa, instabilidade<br />
econômica e desigualdade social.<br />
Palavras-chave MODERNIDADE – NACIONALISMO – DESENVOLVIMENTO – CIDA-<br />
DE – INDUSTRIALIZAÇÃO.<br />
Abstract In this article we review Brazilian modernity focusing the basics, conceptions<br />
and priorities that guided the actions that started the industrial-urban development<br />
process, as a quest for Brazil’s sovereignty and autonomy regarding foreign<br />
countries. We tried to show the contradictions of such modernizing process, which<br />
made economy and society more dynamic, while reproducing their main limits: foreign<br />
influence, economic instability and social inequalities.<br />
Keywords MODERNITY – NATIONALISM – DEVELOPMENT – CITY – INDUSTRIALI-<br />
ZATION.<br />
impulso nº 29 137<br />
MARIA THEREZA MIGUEL PERES<br />
Doutora em história<br />
pela USP e professora de<br />
economia da Faculdade de<br />
Gestão e Negócios/UNIMEP<br />
mtmperes@unimep.br<br />
ELIANA TADEU TERCI<br />
Doutora em história pela USP,<br />
professora de economia<br />
da Faculdade de Gestão e<br />
Negócios/UNIMEP e<br />
pesquisadora do NPDR-UNIMEP<br />
etterci@unimep.br
INTRODUÇÃO<br />
s sociedades capitalistas nos anos recentes vêm, de modo<br />
geral, enfrentando mudanças significativas na vida cultural,<br />
social e econômica, que têm provocado intenso debate sobre<br />
os impactos da <strong>modernidade</strong>, chegando-se até a diagnosticar<br />
que uma nova sociedade vem se estruturando, fermentada<br />
pela análise pós-moderna. 1 A<br />
Nesse cenário de transformações,<br />
discute-se urbanização, democratização, abertura<br />
econômica, reforma do Estado, emprego, papel do<br />
consumo e do consumidor, globalização etc., subestimando muitas vezes o<br />
contexto da realidade nacional, o que demonstra o quanto ainda as experiências<br />
e/ou modelos europeus e norte-americanos fascinam intelectuais e políticos<br />
no trato da <strong>modernidade</strong> <strong>brasileira</strong>. Mediante um resgate histórico e<br />
econômico, entretanto, percebe-se que a construção da <strong>modernidade</strong> no Brasil<br />
apresentou certas especificidades, marcadas, em alguns períodos, por um<br />
grande apelo à autonomia socioeconômica e à soberania nacional.<br />
Como não se trata de buscar uma reflexão definitiva, a questão que inicialmente<br />
se coloca é compreender a própria <strong>modernidade</strong> como processo<br />
histórico no qual as transformações envolvem situações diversificadas de articulação<br />
entre interesses econômicos e políticos. São trajetórias variadas, capazes<br />
de desfazer a ilusão de um desenvolvimento socioeconômico racional<br />
e coerente, isento de perturbações, impulsionado por uma lógica universal.<br />
Pode-se também entender a <strong>modernidade</strong> como experiência que une e desune<br />
homens, mulheres, cidades, países, mercados, na sua convivência social.<br />
De fato, a <strong>modernidade</strong> é<br />
um tipo de experiência vital – experiência de tempo e espaço, de si mesmo<br />
e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada<br />
por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse<br />
conjunto de experiências como “<strong>modernidade</strong>”. Ser moderno é encontrar-se<br />
em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento,<br />
autotransformação e transformação das coisas em redor – mas<br />
ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo que sabemos,<br />
tudo que somos. A experiência ambiental da <strong>modernidade</strong> anula todas<br />
as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e<br />
ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a <strong>modernidade</strong> une a espécie<br />
humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade:<br />
ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e<br />
mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. 2<br />
As palavras de Berman são oportunas, pois possibilitam revisitar a <strong>modernidade</strong><br />
<strong>brasileira</strong> no seu processo de expansão urbano-industrial, identificando<br />
alguns marcos do seu crescimento econômico que, ao mesmo tempo,<br />
dinamizaram as cidades e redefiniram várias dimensões da economia e da so-<br />
1 HARVEY, 1993.<br />
2 BERMAN, 1996, p. 15.<br />
138 impulso nº 29
ciedade. Porém, foram incapazes de eliminar a ingerência<br />
externa, a instabilidade econômica e a desigualdade<br />
social, que têm, de forma geral, comprometido<br />
o alcance de seu projeto modernizador.<br />
Confrontando o cenário internacional com a<br />
experiência <strong>brasileira</strong>, pode-se dizer que a <strong>modernidade</strong><br />
aproximou essas fronteiras valendo-se de uma<br />
articulação de interesses comuns, sem, contudo,<br />
destruir a dimensão singular dos limites, problemas<br />
e contradições presentes no movimento de<br />
expansão das cidades <strong>brasileira</strong>s.<br />
BRASIL MODERNO:<br />
“A INSERÇÃO COMPULSÓRIA”<br />
Relacionar Brasil e <strong>modernidade</strong> significa tratar<br />
de uma inserção. Sim, pois o Brasil, e os demais<br />
países latino-americanos, em razão de seu passado<br />
colonial e suas decorrências – escravidão, latifúndio,<br />
dependência econômica e política – tiveram seus<br />
processos de desenvolvimento e formação econômica<br />
limitados e, em grande medida, controlados<br />
por esses estigmas que se cristalizaram na estrutura<br />
produtiva e social, perdurando mesmo depois de a<br />
industrialização tornar o sistema colonial vazio de<br />
sentido. Em outros termos, o Brasil chegava às décadas<br />
finais do século XIX com boa parcela de sua<br />
elite rural resistindo a abolir a escravidão, com sua<br />
estrutura produtiva monocultora e latifundista de<br />
base primário-exportadora.<br />
A esse tempo, o mundo assistia estarrecido à<br />
2.ª Revolução Industrial, ou Revolução Tecnocientífica,<br />
cujas características determinantes foram o<br />
advento da grande empresa monopolista, a mundialização<br />
da economia sob a regência do Estado e a<br />
utilização da ciência como instrumento para o desenvolvimento<br />
de técnicas e materiais industriais.<br />
Barracloug é firme em seu argumento: não há dúvida<br />
que o mundo já não era o mesmo a partir de<br />
1870! 3<br />
Era impossível ficar alheio ao turbilhão de novidades<br />
impostas pela revolução tecnológica, por-<br />
3 Cf. BARRACLOUG, 1983. É justamente o evento da 2.ª Revolução<br />
Industrial que Barracloug toma como referência para demarcar o início da<br />
história contemporânea. Mais precisamente a partir de 1890, quando os<br />
efeitos da revolução tecnológica e a nova divisão internacional do trabalho<br />
(novo imperialismo), que a acompanha, se fazem sentir no mundo inteiro.<br />
que as transformações que decorriam não se mostravam<br />
ocasionais, como tinham sido na 1.ª Revolução<br />
Industrial. Eram cientificamente planejadas:<br />
surgiram os novos materiais, o aço, a eletricidade e o<br />
petróleo substituíram o ferro e o vapor, e a medicina<br />
foi revolucionada com os avanços da indústria química<br />
e da farmácia, bem como com o advento das<br />
novas ciências – a microbiologia, a bioquímica e a<br />
bacteriologia –, que alteraram qualitativamente a<br />
prática médica. Sem contar a revolução na agricultura,<br />
provocada pela introdução dos fertilizantes artificiais,<br />
dos novos métodos de conservação dos alimentos<br />
– a refrigeração, a pasteurização e a esterilização<br />
– e, ainda, do aperfeiçoamento nos processos<br />
de embalagem de alimentos enlatados. Essas inovações<br />
permitiram o fornecimento regular e relativamente<br />
mais barato de alimentos para a crescente população<br />
mundial. 4<br />
Entretanto, essa revolução teve um endereço,<br />
assim como a sua antecessora. Localizou-se na Europa<br />
Ocidental e na América do Norte e estabeleceu<br />
a distinção entre as nações: o centro formado<br />
pelos países industrializados e a periferia composta<br />
pelos demais, basicamente de economia agrícola. O<br />
Brasil, conforme apontamos, pela sua condição<br />
agrário-exportadora, mantinha-se no segundo grupo.<br />
Por paradoxal que possa parecer à primeira vista,<br />
a condição primário-exportadora da periferia foi o<br />
que possibilitou a sua inserção na 2.ª Revolução Industrial<br />
por meio do comércio internacional. Aliás,<br />
como alertou Sevcenko, o comércio internacional<br />
foi a via dessa inserção compulsória, determinada por<br />
interesses mútuos: aos países industrializados interessava<br />
ter acesso às matérias-primas e alimentos<br />
produzidos nos países primários-exportadores, e,<br />
para estes últimos, essa era a única forma de obter<br />
crédito para financiar sua produção agrícola, bem<br />
como para poder consumir as novidades produzidas<br />
pela industrialização. 5<br />
A inserção compulsória, no entanto, se fazia de<br />
maneira subordinada: para ter acesso ao crédito internacional<br />
era preciso inspirar confiança nos grupos<br />
credores internacionais, era preciso modernizar<br />
4 Ibid.<br />
5 SEVCENKO, 1995.<br />
impulso nº 29 139
o país, construir uma imagem de respeitabilidade no<br />
exterior capaz de ser, por si mesma, a avalista dos<br />
devedores nacionais. E modernizar o país significava,<br />
para as elites pensantes <strong>brasileira</strong>s, tirar o Brasil<br />
do “atraso” em que ele se encontrava. Atraso identificado<br />
com base nos elementos formadores do<br />
povo ou da raça <strong>brasileira</strong>, atribuídos ao passado colonial<br />
e suas remanescências, e agravados pelo clima<br />
tropical – negritude, indolência, preguiça. É nesse<br />
sentido que Ribeiro e Cardoso identificam o deslocamento<br />
da ação reformadora e da construção da<br />
república no Brasil do social para a nação, a construção<br />
da nacionalidade: “Todos os discursos tendem,<br />
mais ou menos, a apresentar um país ‘sem povo’, ou<br />
melhor, sem uma sociedade organizada, organicamente<br />
constituída, capaz de, por si, estabelecer as<br />
dinâmicas constituidoras da nacionalidade”. 6<br />
Como alerta Renato Ortiz, a partir de então,<br />
inaugura-se uma linha de pensamento que busca<br />
“entender a questão da identidade nacional na sua<br />
alteridade com o exterior”, 7 excetuando-se, evidentemente,<br />
a antiga metrópole. Ou seja, ser moderno<br />
significava estar atualizado com o mundo, acompanhar<br />
a ordem urbano-industrial. Acompanhar é a palavra<br />
adequada, pois nem sempre nesse percurso<br />
modernizante, iniciado com a abolição da escravidão<br />
e o advento da república, urbanizar e industrializar<br />
revelaram-se prioridades para as elites empreendedoras<br />
<strong>brasileira</strong>s. Aliás, são bastante conhecidas<br />
as teses, especialmente a partir de Alberto Torres,<br />
que postulavam um destino agrícola para o Brasil, estabelecendo<br />
uma distinção entre a superioridade da<br />
agricultura em relação à artificialidade das atividades<br />
urbanas. 8 Dito de outra forma, pelo menos até os<br />
anos 30, não se pode dizer que houve uma proposição<br />
industrializante no Brasil, ainda que o mercado<br />
interno haja se intensificado e dinamizado. Ao contrário,<br />
a economia agrário-exportadora constituía o<br />
eixo dinâmico de sustentação do emprego e da renda,<br />
e as elites proprietárias, mais precisamente a oligarquia<br />
cafeeira alinhada com os círculos financeiros<br />
6 Cf. RIBEIRO, L. & CARDOSO, A. Da cidade à nação: gênese e evolução<br />
do urbanismo no Brasil, in: RIBEIRO et al., 1996, p. 57.<br />
7 ORTIZ, 1994, p. 182.<br />
8 SALIBA, 1981.<br />
internacionais construía o seu ideário de <strong>modernidade</strong><br />
no qual exportar café era o sentido.<br />
Isso não significou, entretanto, o desprezo às<br />
cidades. Em que pese o fato de elas não terem se<br />
consumado no eixo de intervenção das elites empreendedoras,<br />
acabaram canalizando boa parte dos<br />
recursos produtivos, seja em decorrência do crescimento<br />
das atividades urbanas subsidiárias do comércio<br />
de exportação cafeeira – bancos, indústrias<br />
de sacaria, casas de beneficiamento de café, ferrovia<br />
etc. –, seja porque as cidades constituíam pólos de<br />
atração para as populações pobres em busca de<br />
oportunidades, seja ainda em razão de as cidades se<br />
apresentarem como os locus privilegiados para<br />
sedimentação do poder político das elites. Em outros<br />
termos, se o campo era o espaço de sustentação<br />
econômica, de formação das fortunas e mesmo de<br />
sedimentação da base política das elites, a cidade era<br />
o lugar onde as atividades econômicas se realizavam<br />
e o poder político se materializava.<br />
Desse modo, tendo em vista as referências<br />
determinadas pela conjuntura aberta com a 2.ª Revolução<br />
Industrial, a modernização do Brasil passava,<br />
impreterivelmente, pela transformação das<br />
cidades, em especial as grandes cidades, as capitais,<br />
pois elas representariam os esforços modernizantes<br />
das elites <strong>brasileira</strong>s: verdadeiros cartões de visitas<br />
aos moldes do requintado gosto europeu. Essa,<br />
na verdade, não era uma peculiaridade nacional.<br />
A historiografia sobre as cidades aponta a formação<br />
do mercado de trabalho livre e a industrialização<br />
como os fenômenos baseados nos quais a cidade<br />
se problematiza e a questão urbana passa a ser<br />
pensada de forma racional. Surge a ciência urbana,<br />
cuja preocupação é o reordenamento dos espaços<br />
segundo métodos científicos de planejamento e<br />
saneamento, com vistas a transformar o “caos” em<br />
que as cidades se tornaram, com o advento do capitalismo<br />
e da industrialização, e a conseqüente desarticulação<br />
das sociedades rurais, em espaços higiênicos<br />
e civilizados, espaços modernos, controlados.<br />
9<br />
9 Cf. a respeito CHOAY, 1979 e 1994; BEGUIN, 1991; TOPALOV,<br />
1991; e RIBEIRO et al., 1996.<br />
140 impulso nº 29
A CONSTRUÇÃO DA CIDADE<br />
“PARA INGLÊS VER”<br />
Nas décadas iniciais da República no Brasil, a<br />
modernização das cidades se manifestou de forma<br />
emblemática no processo que a imprensa denominou<br />
“regeneração” e que tomou conta da capital do<br />
país. Sevcenko relata com riqueza de detalhes os requintes<br />
dessa intervenção, marcada pela busca obsessiva<br />
de se criar uma nova respeitabilidade republicana,<br />
e identifica quatro princípios norteadores,<br />
que vale a pena destacar:<br />
A condenação dos hábitos e costumes ligados<br />
pela memória à sociedade tradicional; a<br />
negação de todo e qualquer elemento de<br />
cultura popular que pudesse macular a imagem<br />
civilizada da sociedade dominante;<br />
uma política rigorosa de expulsão dos grupos<br />
populares da área central da cidade, que<br />
será praticamente isolada para o desfrute exclusivo<br />
das camadas aburguesadas; um cosmopolitismo<br />
agressivo, profundamente<br />
identificado com a vida parisiense. 10<br />
Constituiu-se, assim, um modelo de gestão<br />
pública para as cidades <strong>brasileira</strong>s que se torna<br />
referência demarcatória da distinção entre o Brasil<br />
“moderno” e o “atrasado”. O método era fornecido<br />
pela ciência urbana: os elementos higiene, estética e<br />
circularidade presidiam as ações dos reformadores<br />
urbanos. E seriam médicos, engenheiros sanitaristas<br />
e higienistas os primeiros reformadores. 11<br />
Além da capital do país, essa intervenção se<br />
traduziu numa série de planos de saneamento e<br />
expansão das cidades na virada do século XIX e, especialmente,<br />
na primeira década do século XX. 12 Foi<br />
o caso do plano do engenheiro sanitarista Saturnino<br />
de Brito para a cidade de Santos, tido como uma das<br />
primeiras obras do urbanismo moderno no Brasil,<br />
visto que suas medidas de saneamento, higienização<br />
e embelezamento nortearam-se pela capacidade de<br />
10 SEVCENKO, 1995, p. 30.<br />
11 LEME, 1991.<br />
12 Há divergência entre os diversos estudos relativamente à identificação<br />
das ações dos reformadores urbanos brasileiros na 1.ª República como<br />
manifestações que podem ser consideradas obras da ciência urbana ou de<br />
planejamento urbano, sobretudo quando a referência é o controle social.<br />
Cf. RIBEIRO et al., 1996.<br />
crescimento da cidade, antecipando o seu futuro. 13<br />
O projeto de Victor Freire, de remodelação do anel<br />
viário de São Paulo, também ilustra essa proposição,<br />
pois pressupõe a necessidade de preparar a cidade<br />
para a futura expansão. 14<br />
Inscreve-se aqui também o plano de Aarão<br />
Reis para construção de Belo Horizonte, de inspiração<br />
haussmanniana, tanto na sua concepção higienista<br />
quanto na idéia de organização, funcionalidade<br />
e monumentalidade do espaço urbano. 15 Finalmente,<br />
para não ficarmos apenas nos exemplos das capitais<br />
e grandes cidades, acrescente-se a esse quadro<br />
as medidas de administração pública do médico<br />
Paulo de Moraes Barros para Piracicaba. Não se<br />
sabe ao certo se elas obedeceram a um plano de ação<br />
previamente estabelecido, mas é possível afirmar<br />
que foram regidas pelos princípios norteadores do<br />
urbanismo – iluminação, higienização e estética. 16<br />
Ribeiro e Cardoso, no entanto, referindo-se<br />
às reformas urbanas na 1.ª República, chamam a<br />
atenção para uma característica comum a todas<br />
elas, a saber, a negação da apropriação do espaço<br />
público pelas camadas populares, a sua expulsão<br />
das áreas nobres da cidade, ou seja, a intenção de<br />
construir uma cidade “para inglês ver”. Os autores<br />
identificam nessa proposição absolutamente excludente<br />
o traço peculiar da intervenção urbana no<br />
Brasil relacionado com moderno urbanismo europeu:<br />
enquanto, na Europa, o urbanismo surgiu revestido<br />
da idéia de reforma social, cujas ações principais<br />
estão na origem de uma série de políticas do<br />
welfare state, no Brasil, a reforma urbana visava a<br />
afastar a todo preço as populações empobrecidas e<br />
incultas dos locais mais visíveis – ruas, praças, áreas<br />
centrais -, apoiando-se nas posturas e leis municipais,<br />
na destruição das velhas construções coloniais,<br />
que delineavam os centros urbanos, e nas leis contra<br />
a vadiagem e a mendicância, que proliferaram<br />
nesse período. 17<br />
13 ANDRADE, 1991.<br />
14 LEME, 1991.<br />
15 GUIMARÃES, B. A concepção e o projeto de Belo Horizonte: a utopia<br />
de Aarão Reis, in: RIBEIRO et al., 1996.<br />
16 Cf. TERCI, 1997.<br />
17 Cf. RIBEIRO, L. & CARDOSO, A. Da cidade à nação: gênese e evolução<br />
do urbanismo no Brasil, in: RIBEIRO et al., 1996.<br />
impulso nº 29 141
O DESPERTAR DE UM NOVO TEMPO<br />
O advento da 1.ª Guerra Mundial, porém, arrasa<br />
o cenário idílico da belle époque: ao romper com<br />
o mito do inter<strong>nacionalismo</strong> liberal, a guerra desnuda<br />
a acirrada rivalidade que marcava as relações entre<br />
as nações e desperta uma parcela dos políticos e intelectuais<br />
brasileiros para a necessidade de fortalecer<br />
a nação e preservar sua soberania. Além disso, os<br />
efeitos da guerra atingiam também o Brasil, seja por<br />
conta da dupla crise imposta ao setor exportador<br />
(retração das compras e do crédito internacional),<br />
pela carestia dos preços dos alimentos (acarretada<br />
pelo aumento das exportações desses gêneros e pelos<br />
mecanismos inflacionários de financiamento do<br />
café e do déficit público), seja ainda pela dificuldade<br />
de manter as exportações. 18<br />
A verdade é que a sociedade também era muito<br />
diferente dos anos iniciais daquele século. A<br />
industrialização, a urbanização e a constituição das<br />
grandes cidades trouxeram com elas a diversificação<br />
da população com o surgimento de novos grupamentos<br />
sociais, sobretudo a formação de um operariado<br />
urbano, que, embora ainda em estágio embrionário,<br />
dava nova movimentação às cidades. Essa<br />
nova diversidade social se construiu num clima de<br />
enormes tensões sociais, envolvendo trabalhadores,<br />
patronato e Estado, que se agudizaram no período<br />
da guerra, notadamente em razão da carestia dos alimentos,<br />
do desemprego, do arrocho salarial e da ausência<br />
de legislação trabalhista, contribuindo, por<br />
sua vez, para o fortalecimento do movimento operário.<br />
O desfecho dramático foram as greves gerais<br />
de 1917, 1918 e 1919, que, se de um lado, revelaram<br />
novas formas de ocupação das ruas e dos espaços<br />
públicos, bem distintos do que pretendiam as elites,<br />
de outro, revelaram também o grau de tolerância<br />
das classes dominantes e os limites do alargamento<br />
da esfera pública: as greves foram tratadas como “caso<br />
de polícia”, como sintetizou Washington Luiz, e<br />
reprimidas violentamente. 19<br />
18 Para uma análise dessa conjuntura e de suas conseqüências, cf., entre<br />
outros, SEVCENKO, 1992; MOREIRA, 1982; SALIBA, 1981; e LOVE,<br />
1989.<br />
19 Para maiores detalhes sobres as greves de 1917 a 1919, cf., entre outros,<br />
FAUSTO, 1977; e PINHEIRO, 1977.<br />
Os anos 20, entretanto, anunciavam o despertar<br />
de um novo tempo. A conjuntura catastrófica<br />
dos anos anteriores parecia superada. O fim da<br />
guerra acrescentara novos conteúdos ao vocábulo<br />
moderno, em virtude do caráter apocalíptico atribuído<br />
à transição para o novo, ou seja, despertava o<br />
mundo num chamamento místico para a construção<br />
do novo, saído do caos – o novo homem, a nova<br />
ordem, o espírito novo e, especificamente no Brasil,<br />
a nova nação. 20<br />
A conjuntura que se abria a partir de então<br />
constituiu um momento de grande reflexão para as<br />
elites <strong>brasileira</strong>s sobre os problemas nacionais, dando<br />
origem à campanha nacionalista, que tomaria<br />
conta do país. Esse movimento envolveu as principais<br />
capitais <strong>brasileira</strong>s, institucionalizando-se nas ligas<br />
nacionalistas estaduais, e, embora tivesse ainda<br />
como elemento irradiador as transformações no cenário<br />
das relações internacionais, diferia substancialmente<br />
do que fora o processo “regenerador” das<br />
décadas iniciais da República, como alerta Sevcenko.<br />
Tratava-se de um movimento introspectivo, e não<br />
cosmopolita como o anterior, o centro irradiador<br />
passou a ser São Paulo, não o Rio de Janeiro, e seu<br />
objetivo consistiu na busca de uma identidade nacional<br />
que permitisse ao Brasil integrar o mundo moderno<br />
e participar da divisão internacional do trabalho,<br />
preservando sua autonomia e soberania. Para<br />
tanto, o resgate do passado, das raízes tradicionais,<br />
da cultura popular, dos feitos de suas gentes desde<br />
os áureos tempos do período colonial representava<br />
uma âncora fundamental para a construção de um<br />
futuro alicerçado na justaposição do velho e do novo,<br />
do arcaico e do moderno. 21<br />
Ainda desta feita a estrutura social, política e<br />
econômica não seria tocada. Os problemas relativos<br />
ao modelo de desenvolvimento econômico voltado<br />
para fora, alicerçado no comércio internacional não<br />
seria questionado, visto que o processo de<br />
modernização do país levado a termo nos anos anteriores<br />
não tinha revertido a situação vigente: a<br />
industrialização e a urbanização se fizeram ancora-<br />
20 Sobre as várias fases do modernismo, cf., BRADBURY & McFAR-<br />
LANE, 1989. A respeito da construção da <strong>modernidade</strong> <strong>brasileira</strong>, cf.<br />
ORTIZ, 1994.<br />
21 SEVCENKO, 1992.<br />
142 impulso nº 29
das no setor de mercado externo, como atividades<br />
secundárias ou subsidiárias a ele, sendo incapazes de<br />
produzir novos grupos sociais com força suficiente<br />
para enfrentar a oligarquia cafeeira, ou mesmo constituir-se<br />
como alternativa a ela.<br />
Assim, o movimento modernizante instituído<br />
a partir de então reforçava a posição ruralista da economia<br />
<strong>brasileira</strong> e identificava, na esfera da política, os<br />
entraves aos sonhos de grandeza do país: eram as oligarquias<br />
regionais e as mazelas eleitorais que as perpetuavam<br />
no poder, impedindo a ascensão das<br />
“oposições redentoras”. A reforma do sistema eleitoral,<br />
com a introdução do voto secreto, constituía a<br />
principal bandeira do movimento nacionalista. 22<br />
São Paulo buscava galvanizar todas as possibilidades<br />
dessa ascensão redentora: depositário da<br />
maior riqueza nacional, o café, e de uma tradição<br />
desbravadora que era motivo de seu maior orgulho,<br />
o “bandeirantismo”, a unidade federativa emergente<br />
desencadeia um movimento inclusivo, atingindo todos<br />
os setores indistintamente, desde a imprensa,<br />
passando pela literatura e pelas artes, até o governo.<br />
Era a consagração do non ducor, duco, expressão largamente<br />
difundida na época, ou do “paulistismo”,<br />
no dizer de Elias T. Saliba. 23 Vale salientar que, em<br />
nome dessa missão redentora e modernizante atribuída<br />
a São Paulo e ao café, aprofundam-se nos anos<br />
20 as pressões da oligarquia cafeeira sobre o governo<br />
federal para o alargamento das políticas e medidas<br />
em defesa da lavoura cafeeira e de sua lucratividade,<br />
cuja produção seguiria crescendo e os riscos de uma<br />
superprodução crítica continuariam sem solução até<br />
o final da década. 24<br />
No que se refere à intervenção urbana, ainda<br />
que se mantenham as proposições saneadoras, higienizadoras<br />
e segregadoras, a elas vêm se somar outros<br />
conteúdos, contribuindo para uma nova forma de<br />
interação entre o público e o espaço urbano: o embelezamento<br />
e a monumentalidade. Além da valorização<br />
das construções suntuosas das habitações,<br />
sedes comerciais e instituições, a ereção dos monumentos<br />
alusivos a momentos ou personagens históricos<br />
são a marca do período do <strong>nacionalismo</strong>, gra-<br />
22 Cf. SALIBA, 1981.<br />
23 Ibid.<br />
24 Cf. FURTADO, 1982.<br />
ças à sua capacidade de, ao mesmo tempo, promover<br />
o culto ao passado, a imortalização dos personagens<br />
e seus feitos, a arte e os artistas nacionais.<br />
Segundo Sevcenko, mais significativos que os monumentos,<br />
entretanto, são os festivais modernos: as<br />
cidades tornam-se palco de uma série de rituais comemorativos<br />
aos grandes feitos nacionais, cujo efeito<br />
mais notável é o clima de comunhão nacional que<br />
promovem nos habitantes. 25<br />
Os anos iniciais da década de 20 são o corolário<br />
dessa euforia modernista, cuja maior expressão é<br />
a Semana de Arte Moderna de 1922. Esse ano de<br />
1922 é de fato um marco. Data do Centenário da<br />
Independência, proporciona o momento ideal para<br />
a grande confraternização nacional. Para as comemorações<br />
alusivas à data, o então presidente do Estado<br />
de São Paulo, Washington Luiz, promove um<br />
grande festival cívico, cujo ponto alto foi o concurso<br />
público criado para dar à sua capital uma série de<br />
monumentos alusivos à data, envolvendo artistas e<br />
associações mutuais, que, segundo Sevcenko, compuseram<br />
a mais sistemática campanha de embelezamento<br />
da cidade desde os tempos do prefeito Antonio<br />
Prado. 26<br />
Ao que tudo indica, esse não foi um evento localizado<br />
apenas na capital. O interior também acabou<br />
tocado pelo clima das comemorações e, na medida<br />
do possível, as elites buscaram trazer o festival<br />
moderno para as diversas localidades. Em Piracicaba,<br />
por exemplo, organizou-se uma grande quermesse<br />
cívica, cuja renda foi revertida para as obras da Santa<br />
Casa local, trocaram-se as nomenclaturas das ruas<br />
principais pelos nomes das personalidades ligadas à<br />
Proclamação da Independência e da República e erigiu-se<br />
um primeiro monumento histórico em homenagem<br />
ao dr. Paulo de Moraes Barros, o prefeito<br />
que conquistara o título de administração modelo<br />
para Piracicaba na primeira década do século XX. 27<br />
CONSERVADORISMO NACIONALISTA<br />
As tensões se avolumavam, apesar do clima<br />
de comoção geral patrocinado pela onda nacionalis-<br />
25 SEVCENKO, 1992.<br />
26 Ibid.<br />
27 TERCI, 1997.<br />
impulso nº 29 143
ta. A política de valorização do café praticada pelo<br />
governo federal promovia a “socialização das perdas”,<br />
provocando a carestia dos preços e o descontentamento<br />
das camadas urbanas. 28 Na verdade,<br />
eram as políticas de valorização o sustentáculo do<br />
modelo primário exportador e da economia cafeeira,<br />
a tal ponto que, ao final da década de 20, o receio<br />
de que o novo presidente pudesse não sustentar a<br />
política cafeeira levou Washington Luiz a defender o<br />
nome de um paulista para a sua sucessão presidencial.<br />
Dessa forma, rompeu o pacto que mantivera o<br />
regime oligárquico federativo desde que o governo<br />
de Campos Salles promulgou a legislação eleitoral<br />
que ficou conhecida como a “política dos governadores”<br />
ou a “política do café com leite”. 29 Essa atitude<br />
acabou empurrando a oligarquia mineira a aderir<br />
à Aliança Liberal e à revolução varguista.<br />
À crise política veio somar-se a derrocada fatal<br />
do modelo primário-exportador com a crise de<br />
1929. A queda vertiginosa das exportações cafeeiras<br />
desnudava a vulnerabilidade de um modelo de desenvolvimento<br />
tão dependente do mercado externo,<br />
de uma economia tão voltada para fora, como<br />
era a <strong>brasileira</strong>. Foi nesse ambiente de dupla crise<br />
política e econômica que a Aliança Liberal conduziu<br />
Getúlio Vargas ao poder e esse clima abriu espaço<br />
para a difusão de um novo projeto de modernização<br />
para o Brasil, totalmente avesso ao ideário liberal<br />
que vigorara até então, em que pesem os protestos<br />
e insubordinações dos liberais paulistas. 30<br />
O novo projeto de <strong>modernidade</strong> então inaugurado<br />
produziu dois deslocamentos em relação ao<br />
período anterior. O primeiro diz respeito ao diagnóstico<br />
do “atraso” – cuja formulação mais conhecida<br />
encontra-se nos escritos de Oliveira Vianna –<br />
28 O processo de socialização das perdas, expressão cunhada por Celso<br />
Furtado, ocorria pelo fato de a política de valorização do café contar fundamentalmente<br />
com o mecanismo de ajuste cambial: ao desvalorizar a<br />
moeda nacional, para manter a lucratividade do setor exportador, encarecia-se<br />
as importações e, portanto, quem delas dependia arcava com os prejuízos.<br />
Cf. FURTADO, 1982.<br />
29 Sobre o governo Campos Salles e a política dos governadores, cf.<br />
FAORO (1995). Como é sabido, desde a sua edição, São Paulo e Minas<br />
Gerais se alteravam no governo federal, garantidos pela política dos governadores.<br />
Em 1929, seria a vez de Minas na sucessão presidencial.<br />
30 Cf. CAPELATO, 1989. Segundo a autora, a facção liberal paulista, que<br />
dera apoio ao golpe que conduziu Vargas ao poder não demorou a perceber<br />
que os seus anseios estariam ameaçados com a centralização do poder<br />
e a ditadura vindoura; pegou em armas e fez a sua revolução em 1932.<br />
identificado com o latifúndio e a escravidão presentes<br />
nas bases da sociabilidade <strong>brasileira</strong>, centrada na<br />
autoridade pessoal do grande proprietário. Tal estrutura<br />
social, por sua vez, deu origem ao “caudilhismo”<br />
e ao “coronelismo”, que dominavam a política<br />
<strong>brasileira</strong> e fizeram do Estado um verdadeiro cartório<br />
em defesa dos interesses privados dos grandes<br />
proprietários rurais. Segundo Oliveira Vianna, daí<br />
teria resultado a inviabilidade do liberalismo no Brasil:<br />
“para enfrentar a força do ‘caudilhismo’, que era<br />
sempre uma ameaça à desintegração territorial e social,<br />
só um poder centralizador forte - metropolitano<br />
ou nacional –, que agisse como promotor da paz<br />
e da ampla proteção dos cidadãos”. 31<br />
É o que justifica a modernização conservadora:<br />
a realidade <strong>brasileira</strong> teria conseguido tornar defensável<br />
o que, até então, teria sido indesejável; o<br />
poder central, absoluto e autoritário teria se transformado<br />
na única via de construção do Estado moderno<br />
no Brasil, capaz de se orientar por mecanismos<br />
racionais. 32 Essa formulação, levada às últimas<br />
conseqüências, produziu o ideário do Estado Novo,<br />
cuja atenção voltou-se especialmente para a questão<br />
social e a proposição de criar uma sociedade harmônica<br />
sob a tutela do Estado. 33 Já o segundo deslocamento<br />
advinha do novo padrão de acumulação sustentado<br />
por grupos industriais e agrícolas emergentes<br />
da expansão das atividades urbanas, promovidas<br />
pelo crescimento do complexo cafeeiro centrado no<br />
mercado interno – no desenvolvimento para dentro. 34<br />
Nesse novo modelo, a industrialização foi priorizada<br />
como forma de tornar o Brasil o menos dependente<br />
possível do comércio internacional.<br />
A euforia nacionalista e defensiva que se instaurou<br />
com a modernização conservadora não foi<br />
capaz, no entanto, de promover um intenso processo<br />
de substituição de importações de modo a possibilitar<br />
a diversificação do parque industrial brasileiro,<br />
nem mesmo de romper a estrutura agrário-exportadora<br />
centrada na monocultura e no latifúndio.<br />
A tão almejada independência econômica, e conse-<br />
31 GOMES, 1998, p. 509.<br />
32 Ibid.<br />
33 Ibid.<br />
34 SINGER, 1968.<br />
144 impulso nº 29
qüentemente política, em relação ao mercado externo<br />
esbarrava na relativa carência de base técnica da<br />
economia <strong>brasileira</strong>, tornando o processo de<br />
industrialização dependente da importação de tecnologia.<br />
Sendo assim, no período que se estende entre<br />
as décadas de 30 e 50, a industrialização ficou<br />
“restringida”, de acordo com o termo empregado<br />
por Cardoso de Mello. 35 Ou seja, seguiu a estrutura<br />
previamente montada ou complementar a ela, com<br />
grande expansão do setor têxtil e um crescimento<br />
tímido da indústria de base emergente, especialmente<br />
borracha, cimento, mobiliário, papel e siderurgia.<br />
36<br />
Da mesma forma, o urbano também não assumiu<br />
o papel de destaque, como era de se esperar,<br />
sobretudo porque as pressões das oligarquias regionais<br />
presentes no pacto social de sustentação do<br />
novo governo fizeram reproduzir o antiurbanismo<br />
nos meios intelectuais e técnicos que formulavam<br />
as proposições e políticas sociais. 37 Assim, embora<br />
o antiurbanismo não fosse absoluto – é possível<br />
identificar a associação entre nacionalidade,<br />
industrialização e urbanização no pensamento de<br />
outros intelectuais influentes no governo, por<br />
exemplo, Azevedo Amaral –, o urbano nos anos<br />
30 ainda não era tematizado como questão. Prevaleciam<br />
as formulações que idealizavam a cidade,<br />
condenando a realidade e postulando uma intervenção<br />
pautada nos mesmos padrões produzidos<br />
nos países centrais e reproduzidos no Brasil no início<br />
do século XIX: embelezamento, monumentalidade<br />
e controle social.<br />
Sedimenta-se, portanto, a concepção dual do<br />
atraso brasileiro, traduzida na oposição campo versus<br />
cidade, que vinha sendo cunhada desde o início do<br />
século, conforme retratam as obras de Monteiro<br />
Lobato e Euclides da Cunha. Somente a partir dos<br />
anos 50, com a firme decisão de se industrializar o<br />
Brasil a qualquer custo, a industrialização é priorizada<br />
como o salto para a <strong>modernidade</strong> e a cidade passa<br />
a ser tematizada como questão.<br />
35 MELLO, 1982.<br />
36 SINGER, 1968.<br />
37 RIBEIRO, L. & CARDOSO, A. Da cidade à nação: gênese e evolução<br />
do urbanismo no Brasil, in: RIBEIRO et al., 1996.<br />
A INDUSTRIALIZAÇÃO COMO<br />
ESPELHO DA MODERNIDADE<br />
Certamente, a década de 50 foi um período<br />
marcado pelo clima de entusiasmo, oriundo das<br />
possibilidades que as modernas fábricas passaram a<br />
oferecer. Foi um dos grandes momentos da <strong>modernidade</strong><br />
<strong>brasileira</strong> e da sua inserção nos avanços tecnológicos<br />
provenientes da Revolução Industrial.<br />
Cresceu o ritmo da produção e aceleraram-se as<br />
oportunidades de emprego, de expansão do mercado<br />
e do consumo, com uma acentuada quantidade<br />
e variedade de bens produzidos. O Brasil compartilhava<br />
a euforia desenvolvimentista vivenciada em escala<br />
mundial, proveniente da tranqüilidade e da felicidade<br />
geral retomadas de um pós-guerra. A economia<br />
norte-americana se destacava e se expandia interna<br />
e externamente. A Europa também não<br />
perdeu lugar nesse movimento e enfrentou com radicalidade<br />
a reconstrução das suas economias.<br />
A presença internacional de dois blocos, com<br />
distintas características socioeconômicas, liderados<br />
pelos Estados Unidos e União Soviética, reforçou a<br />
tendência à internacionalização, na medida em que<br />
os demais países puderam e foram levados a estabelecer<br />
acordos e garantias de proteção mútua no<br />
campo político, econômico e militar. Em nome da<br />
democracia, ou da paz mundial, a intervenção americana<br />
ou soviética era justificada. O Brasil se mostrou<br />
seduzido pelo modo de vida norte-americano e<br />
as grandes cidades tornaram-se palco privilegiado<br />
para o desenvolvimento de novos hábitos de consumo.<br />
Consolidava-se, naquele momento, a sociedade<br />
urbano-industrial, com significativa repercussão<br />
no padrão de acumulação de capital no Brasil: de<br />
um padrão contido e subordinado à dinâmica do setor<br />
agrário-exportador, a economia <strong>brasileira</strong>, a partir<br />
do qüinqüênio 1956-1960, desenvolveria a indústria<br />
pesada e expandiria o seu processo de industrialização,<br />
diminuindo, assim, os entraves colocados até<br />
então.<br />
Os grandes centros urbanos, desde o início<br />
dos anos 50, começavam a expressar um crescimento<br />
marcado pela iniciativa de reformulação da estratégia<br />
econômica do Estado nacional.<br />
impulso nº 29 145
Entre 1950 e 1954 (2.º período Vargas), a<br />
economia explicitara a necessidade de converter<br />
sua restringida indústria num processo<br />
específico de industrialização, ou seja, de<br />
instalar a indústria pesada. Nesse sentido,<br />
foram importantes os estímulos estatais diretos<br />
e indiretos para os setores de infra-estrutura,<br />
indústria de base e autopeças, esta<br />
última como o embrião da futura indústria<br />
automobilística. 38<br />
A emergência de novos atores e instituições<br />
sociais estimulava a sociedade <strong>brasileira</strong> a valorizar,<br />
de forma deslumbrada, as novidades do momento,<br />
deixando de lado as mazelas sociais ainda presentes<br />
na realidade socioeconômica nacional. Em nome do<br />
novo ignoravam-se as continuidades. De fato, no<br />
campo econômico, a partir de meados da década de<br />
50, novas iniciativas eram realizadas, mediante um<br />
bloco de investimentos reconhecido por Cardoso<br />
de Mello como uma verdadeira “onda de inovações<br />
schumpeteriana”, quer pelo salto tecnológico atingido<br />
quer pela capacidade produtiva que se ampliava<br />
à frente da demanda preexistente. 39<br />
Vale a pena evidenciar o comportamento de<br />
alguns indicadores que, a partir dos anos 30, confirmam<br />
o quanto esse período foi importante para o<br />
desenvolvimento brasileiro. 40 O Produto Interno<br />
Bruto, entre 1928 e 1955, cresceu à taxa média anual<br />
de 4,1%. Mesmo diante da crise cafeeira, o setor<br />
agropecuário cresceu a uma taxa média anual de<br />
2,6%, enquanto a demografia cresceu 2%. A<br />
industrialização, a urbanização e a diversificação das<br />
culturas de exportação exerceram forte estímulo à<br />
expansão da fronteira agrícola com a corrida para o<br />
oeste brasileiro, impactando positivamente também<br />
o setor da construção, com a elevada taxa de crescimento<br />
de 6,5% ao ano, entre 1939 e 1955. Mesmo<br />
um setor pouco expressivo como o da mineração<br />
cresceu a média anual de 3,5% nesse período. En-<br />
38 CANO, 2000, pp. 169-170.<br />
39 MELLO, 1982, p. 117.<br />
40 Vários trabalhos vêm enfatizando o avanço da industrialização desde os<br />
anos 30 pela ação política e econômica do Estado Nacional. Sobre esse<br />
aspecto, afirma Sônia Draibe: “restam, hoje, poucas dúvidas sobre o fato de<br />
que, entre 1930 e 1945, no mesmo período em que se desencadeava a primeira<br />
fase da industrialização <strong>brasileira</strong> – a industrialização restringida –,<br />
amadurecia também um projeto de industrialização pesada” (DRAIBE,<br />
1983, p. 100). Cf. também CANO, 1993.<br />
quanto o setor de serviços diminuiu a sua participação<br />
no PIB – de 60% para 53%, dado o crescimento<br />
dos demais setores –, a indústria de transformação<br />
foi a que apresentou melhores resultados: com uma<br />
taxa anual de 6,3%, sua participação no PIB saltou de<br />
12,5% para 20%. 41<br />
O que esses resultados trazem de novo não é<br />
o fato de expressar apenas a expansão industrial,<br />
mas também uma nova concepção urbana, marcada<br />
por variáveis econômicas, culturais e políticas, entre<br />
outras, “que a cada momento histórico dão uma<br />
significação e um valor específico ao meio criado<br />
pelo homem”. 42 Para Henry Lefebvre, a<br />
industrialização interfere na cidade de modo negativo,<br />
arruinando a cidade antiga. Esta passa a se locomover<br />
“para os meios de produção e para os dispositivos<br />
da exploração do trabalho social por aqueles<br />
que detêm a informação, a cultura, os próprios<br />
poderes de decisão... A racionalidade dá um salto<br />
para frente”. 43 Realmente, a racionalidade administrativa<br />
passa a reger o padrão de intervenção urbana.<br />
Abandona-se aquela orientação idealizadora da cidade<br />
e adota-se uma proposição de gerir a cidade real,<br />
agindo sobre as “distorções” advindas das “disfuncionalidades”<br />
do crescimento econômico. 44<br />
No contexto dos anos 50, entretanto, a sociedade<br />
<strong>brasileira</strong> apoiou, de modo geral, as transformações<br />
em curso, mostrando-se fascinada pelas<br />
perspectivas progressistas, “mergulhada numa visão<br />
acrítica do mercado moderno”. 45 De fato, há uma<br />
vasta análise que evidencia os problemas e contrastes<br />
dessa modernização e/ou <strong>modernidade</strong>, notadamente<br />
no seu aspecto social. Mas, evidentemente,<br />
nos anos 50, a impressão que se tinha da cidade era<br />
bem diversa da que anos mais tarde se apresentaria.<br />
Algumas análises sociais confirmam o quanto a<br />
expansão urbano-industrial desse período amorteceu<br />
paradoxalmente as tensões sociais.<br />
Esse é um aspecto importante quando se<br />
constata que o desenvolvimento econômico brasileiro<br />
tem enfrentado graves tensões sociais para se<br />
41 CANO, 1993, pp. 170-171.<br />
42 SANTOS, 1996, p. 111.<br />
43 LEFEBVRE, 1991, p. 142.<br />
44 RIBEIRO, L. & CARDOSO, A. Da cidade à nação: gênese e evolução<br />
do urbanismo no Brasil, in: RIBEIRO et al., 1996.<br />
45 ORTIZ, 1994, p. 36.<br />
146 impulso nº 29
inserir internacionalmente na marcha da <strong>modernidade</strong>.<br />
O comportamento do PIB, nesse sentido, é revelador.<br />
Entre 1989 e 1998, o PIB cresceu à média<br />
anual de 1,9%, pouco abaixo da média dos anos 80<br />
(2,2%), reconhecida como a década perdida. Utilizando<br />
o Plano Real como referência, o quadro não<br />
se altera. De 1989 a 1994, registrou-se a taxa de<br />
1,3% e, entre 1994 e 1998, de 2,7%. Diante disso,<br />
poderíamos constatar que tais resultados expressam<br />
“o preço” da inserção do Brasil no cenário econômico<br />
internacional, ou “na década prometida, aquela<br />
em que rumaríamos ao Primeiro Mundo”. 46<br />
Adalto L. Cardoso esclarece, em certa medida,<br />
esse aspecto. Ele chama a atenção para o fato de a cidade,<br />
embora priorizada como foco da intervenção<br />
econômica, não ter perdido seu caráter simbólico,<br />
sobretudo considerando-se o papel atribuído à construção<br />
de Brasília, “a meta síntese”. Em que pesem<br />
todas as justificativas econômicas e estratégicas para<br />
a edificação da nova capital, é evidente que a sua concretização<br />
coroava de êxito o projeto nacional desenvolvimentista:<br />
a possibilidade de modernizar o país<br />
como ato de vontade política. Nas palavras do autor,<br />
Desde o governo Vargas parece se manifestar<br />
uma clara relação entre o espaço construído<br />
e os símbolos cívicos de constituição<br />
da nacionalidade. Brasília, todavia, levará<br />
esta relação ao extremo, ao criar um cenário<br />
ideal para a reafirmação dos elementos básicos<br />
da nacionalidade, por meio da visão do<br />
Estado, sob uma ótica modernizadora. O<br />
que estava em pauta, então, era essencialmente<br />
a construção do novo, do Brasil do<br />
futuro. 47<br />
Embora tal papel estivesse reservado a Brasília,<br />
é fácil imaginar a difusão que essa dimensão simbólica<br />
atribuída à cidade teve para as elites e os poderes<br />
públicos das mais diversas localidades <strong>brasileira</strong>s<br />
na definição dos planos de modernização das cidades.<br />
De fato, as cidades e as populações foram<br />
tomadas pela euforia modernizadora e industrializante,<br />
assistindo estarrecidas e deslumbradas a<br />
46 CANO, 1993, p. 266.<br />
47 CARDOSO, A.L. O urbanismo de Lúcio Costa: contribuição <strong>brasileira</strong><br />
ao concerto das nações, in: RIBEIRO et al., 1996, p. 112.<br />
elevação dos seus primeiros arranha-céus, a inovação<br />
tecnológica de suas indústrias e a estruturação<br />
dos seus comércios nas modernas magazines, abarrotadas<br />
pelas novas mercadorias. Chegara, enfim, a<br />
possibilidade de redenção do atraso.<br />
Assim, a consolidação da industrialização pesada<br />
no Brasil, no período compreendido entre 1956<br />
e 1960, possibilitou a realização de uma das grandes<br />
aspirações desenvolvimentistas presentes no Plano<br />
de Metas do então presidente da República, Juscelino<br />
Kubitschek. Um moderno aparato produtivo<br />
tornou-se não só desejo nacional, como também<br />
meta necessária para delegar ao Brasil uma outra<br />
inserção internacional, baseada no impacto que a<br />
mudança na estrutura econômica do país poderia<br />
provocar na integração do mercado nacional. O PIB<br />
cresceu à taxa média anual de 7,1%. Os investimentos<br />
foram os principais responsáveis, já que apresentaram<br />
também elevadas taxas de crescimento (de<br />
13,5% do PIB, em 1955, para 18%, em 1958-1959).<br />
Apesar de os anos recentes revelarem características<br />
diferentes da década de 50, não deixam de<br />
evidenciar a importância das políticas econômicas<br />
quando seus formuladores ambicionam o desenvolvimento<br />
econômico. Os 50 anos materializados em<br />
cinco, conforme as metas pretendidas por Kubitschek,<br />
mostraram que havia “uma brecha” para o<br />
crescimento econômico, não pela imposição dos interesses<br />
econômicos externos, mas pelos obstáculos<br />
colocados à continuidade de um desenvolvimento<br />
ditado pelo comportamento da exportação de seus<br />
produtos primários.<br />
A SOBERANIA PROMETIDA<br />
Para alguns analistas, a <strong>modernidade</strong> <strong>brasileira</strong>,<br />
como meta do governo JK expressa pela<br />
industrialização, não resulta de uma reação defensiva,<br />
meramente econômica, mas especialmente política,<br />
na qual a noção de soberania encontra-se de<br />
mãos dadas com a grandeza nacional.<br />
Pretende-se soberania e considera-se que<br />
aquilo que falta para tê-la é o enriquecimento.<br />
Por isso a soberania almejada se iguala à autonomia<br />
econômica, quando o país não dependerá<br />
de outros para solucionar seus problemas<br />
de carência de capital. Mas consegui-<br />
impulso nº 29 147
la envolve escolha entre alternativas, implica<br />
opções, é matéria de política, portanto. 48<br />
Compreendendo que o Plano de Metas foi,<br />
de modo geral, o momento de consagração da<br />
industrialização e do avanço da sociedade <strong>brasileira</strong>,<br />
no qual a direção econômica do Estado assumiu papel<br />
relevante, não pretendemos realizar uma análise<br />
exaustiva desse projeto, mas assinalar algumas transformações<br />
socioeconômicas fundamentais para o<br />
progresso então almejado. Inicialmente, vale reconhecer<br />
o mérito do Estado como agente fundamental<br />
na constituição plena das forças produtivas, especialmente<br />
capitalistas. 49 Elas foram também consolidadas<br />
pela iniciativa privada, tanto estrangeira<br />
como nacional. Nessa “aliança para o progresso”, é<br />
curioso observar que o Estado apostou no desenvolvimento<br />
sustentado pela atividade econômica,<br />
abandonando as preocupações com a estabilidade e<br />
as orientações ortodoxas. 50<br />
O Estado brasileiro reproduziu uma conduta<br />
para o crescimento econômico inspirada no keynesianismo,<br />
assumindo novos papéis e construindo<br />
novos poderes institucionais, recebendo em troca o<br />
apoio interno e externo dos capitais privados, nacionais<br />
e estrangeiros, e da própria sociedade <strong>brasileira</strong>.<br />
Desse modo, os rumos da modernização <strong>brasileira</strong><br />
distribuíram-se em 31 metas absorvidas em seis<br />
grandes grupos:<br />
• energia – metas de 1 a 5 – energia elétrica,<br />
energia nuclear, carvão, produção de petróleo,<br />
refinação de petróleo;<br />
• transportes – metas de 6 a 12 – reequipamento<br />
de estradas de ferro, construção de<br />
estradas de ferro, pavimentação de estradas<br />
de rodagem, construção de estradas de rodagem,<br />
de portos e de barragens, marinha<br />
mercante, transportes aéreos;<br />
• alimentação – metas de 13 a 18 – trigo,<br />
armazéns e silos, frigoríficos, matadouros,<br />
mecanização da agricultura, fertilizantes;<br />
• indústrias de base – metas de 19 a 29 – aço,<br />
alumínio, metais não-ferrosos, cimento, ál-<br />
48 CARDOSO, 1978, pp. 101-102.<br />
49 MELLO, 1982, p. 97.<br />
50 CANO, 1993, p. 172.<br />
calis, papel e celulose, borracha, exportação<br />
de ferro, indústria de veículos motorizados,<br />
indústria de construção naval, maquinaria<br />
pesada e equipamento elétrico;<br />
• educação – meta 30;<br />
• construção de Brasília – meta-síntese. 51<br />
Entre essas metas é incontestável a importância<br />
do automóvel. A penetração desse produto no<br />
mercado brasileiro aponta para outra direção. São<br />
evidentes os estímulos para a nacionalização de veículos<br />
e para a expansão da indústria mecânica. Caminhões,<br />
ônibus, jipes e, mais tarde, tratores foram<br />
sendo fabricados no Brasil numa escala crescente.<br />
Em 1955, havia no país 700 fábricas de autopeças e<br />
a Fábrica Nacional de Motores produzia 2.500 caminhões<br />
por ano, com índice de 54% de nacionalização.<br />
Em 1960, eram 1.200 fábricas de autopeças,<br />
com a substituição por peças nacionais de aproximadamente<br />
90% do peso dos veículos. Nas palavras de<br />
Lessa, a expansão automobilística “tinha um duplo<br />
aspecto: meta de produção e de índice de nacionalização”.<br />
Integrando verticalmente o parque industrial,<br />
as empresas mecânicas e de material elétrico na<br />
sua expansão constituíram um importante segmento<br />
produtor de bens de capital do país”. 52<br />
A soberania prometida seria aquela alcançada<br />
pelo desenvolvimento econômico, com a superação<br />
do atraso e a aceleração do crescimento econômico.<br />
Segundo Míriam Cardoso, Juscelino explorou nos<br />
seus discursos o termo soberania, extraindo dele<br />
grande parte do seu conteúdo político, privilegiando<br />
intensamente a sua dimensão econômica. Desse modo,<br />
a emancipação econômica não teria resultado de<br />
uma ação propriamente política, vinculada à emancipação<br />
política, mas simplesmente gerada pelo crescimento<br />
econômico. Essa liberação econômica, como<br />
garantia de prosperidade, fornece o elemento que falta<br />
aos países subdesenvolvidos para que, junto com a<br />
ordem democrática, alcancem plena soberania. 53<br />
Desde o início dos anos 50, estudiosos e políticos<br />
influenciados pela Comissão Econômica para<br />
a América Latina (Cepal) já se preocupavam com a<br />
construção de um projeto nacional para o Brasil. Na<br />
51 BENEVIDES, 1979, p. 210.<br />
52 LESSA, 1982, pp. 48-50.<br />
53 CARDOSO, 1978, p. 103.<br />
148 impulso nº 29
visão cepalina, as condições para o desenvolvimento<br />
da América Latina passavam pela superação da dependência<br />
econômica que esses países, considerados<br />
periferia, mantinham com os países capitalistas<br />
desenvolvidos. Para isso, seria fundamental dinamizar<br />
as atividades industriais como um desafio nacional<br />
encampado pelo Estado. Subordinação, dependência<br />
e atraso eram as características de um país cuja<br />
dinâmica econômica ainda se encontrava, significativamente,<br />
ancorada nas atividades primário-exportadoras.<br />
Com as metas do governo JK, a âncora da<br />
<strong>modernidade</strong> <strong>brasileira</strong> passou a sustentar-se na economia,<br />
com expansão industrial e soberania nacional,<br />
respondendo ao diagnóstico cepalino.<br />
Nesses termos, estava claro para as chamadas<br />
economias periféricas que o almejado desenvolvimento<br />
não seria alcançado pelas livres forças de<br />
mercado, e sim pela transformação em dois níveis:<br />
interno e externo. A estrutura interna dinamizada<br />
pela produção agrícola encontrava-se fortemente<br />
concentrada, provocando baixo efeito de integração<br />
com os demais setores produtivos e desemprego estrutural<br />
(as oportunidades de emprego não acompanhavam<br />
a rápida expansão demográfica). Ao lado<br />
desses limites, as relações com o exterior impediam<br />
que os países periféricos se apropriassem dos ganhos<br />
de produtividade, na medida em que a exportação de<br />
produtos primários comprava uma quantidade cada<br />
vez menor de produtos industriais. Em outras palavras,<br />
tanto a reforma agrária como a industrialização,<br />
sob planejamento e intervenção estatal, seriam<br />
capazes de sustentar um desenvolvimento com soberania<br />
nacional.<br />
A superação do atraso, nessa perspectiva, era<br />
vislumbrada pela industrialização e urbanização,<br />
abandonando-se aquelas concepções que buscavam<br />
a construção da nacionalidade na essência rural. No<br />
caso do Brasil, o ideário cepalino foi contemplado<br />
nos programas de governo e nas suas respectivas<br />
ações concretas, particularmente a partir da segunda<br />
metade dos anos 50. O pensamento econômico brasileiro<br />
esteve representado nas fileiras cepalinas, com<br />
nomes de relevante expressão, como Celso Furtado,<br />
Maria da Conceição Tavares, Fernando Henrique<br />
Cardoso, Carlos Lessa e A. Barros de Castro. 54<br />
54 MANTEGA, 1987, p. 32.<br />
NOVOS CENÁRIOS E OS<br />
LIMITES DE UMA NOVA CONDUÇÃO<br />
É inquestionável que a industrialização do período<br />
JK trouxe para a sociedade <strong>brasileira</strong> o otimismo<br />
e a esperança de um futuro que marchava no<br />
compasso da civilização moderna. O movimento de<br />
repensar o Brasil aprimorou ações e intervenções<br />
que recusavam a estabilidade e as orientações da ortodoxia<br />
econômica. Não se apregoava que as vantagens<br />
da <strong>modernidade</strong> seriam alcançadas como recompensa<br />
aos efeitos sociais e culturais destrutivos,<br />
como um mal necessário à inserção do Brasil numa<br />
nova posição econômica mundial. Pelo contrário,<br />
nesse período, “o calor” das discussões sobre o Brasil<br />
moderno podia ser constatado pela diversidade<br />
de propostas e opiniões presentes nos debates intelectuais<br />
e políticos, que convergiam com as análises<br />
da Cepal. Elas viabilizavam, por um lado, a luta antiimperalista<br />
(comunista) e, por outro, a defesa da<br />
industrialização ancorada no Estado (nacionalista).<br />
A Operação Panamericana, o rompimento<br />
com o FMI e a preocupação com o Nordeste brasileiro<br />
foram atitudes políticas que demonstrariam o<br />
quanto o desenvolvimento estivera apoiado num efetivo<br />
enfrentamento e controle de obstáculos à realização<br />
das metas delineadas. Se, de um lado, as atitudes<br />
políticas foram ousadas, de outro lado, as<br />
intervenções econômicas foram instrumentalizadas<br />
sem significativas inovações. Nas palavras de Lessa:<br />
“Não houve neste período, salvo raras exceções, preocupação<br />
com a reformulação instrumental à redefinição<br />
do papel do Estado (...). Persistiu e, de certa<br />
forma, acentuou-se o caráter não harmônico e improvisado<br />
do instrumental de política econômica”. 55<br />
Portanto, cabe destacar que a industrialização<br />
e o desenvolvimento foram alcançados a despeito da<br />
estabilização, da ortodoxia e com inadequações institucionais,<br />
que, apesar disso, mudaram radicalmente<br />
a estrutura econômica e social do país. 56 Os centros<br />
urbanos passaram a exercer forte atração sobre<br />
as populações rurais. A possibilidade de melhorar as<br />
condições de vida era oferecida, a partir de então,<br />
pelas cidades modernas, alterando a distribuição espacial<br />
da população. Em 1950, 36% dos brasileiros<br />
55 LESSA, 1982, p. 99.<br />
impulso nº 29 149
viviam nas cidades. Dez anos depois esse percentual<br />
se elevou para 45%, conforme dados do IBGE.<br />
Mesmo expandindo-se desordenadamente e<br />
já sinalizando para a precariedade da sua infra-estrutura,<br />
as cidades foram se transformando mais uma<br />
vez. Velhos bairros se descaracterizaram e redefiniram<br />
suas formas e funções. Moradores recém-chegados,<br />
edifícios e prédios ocuparam o lugar das antigas<br />
casas térreas; bairros residenciais cederam espaço<br />
a centros comerciais e instituições prestadoras<br />
de serviços. Nesse momento, a expansão urbana desencadeou<br />
uma série de oportunidades de emprego<br />
que diminuíram os prejuízos sociais da inflação e os<br />
efeitos do comportamento modesto do emprego<br />
industrial. A industrialização, nesse aspecto, veio já<br />
marcada pela ocorrência de dois movimentos<br />
contraditórios de expansão e contração: “a<br />
expansão decorrente da implantação (ou expansão)<br />
dos setores mais complexos, e a contração decorrente<br />
da modernização que ocorre nos setores de<br />
bens de consumo não-duráveis”. 57<br />
Como momento específico da expansão da<br />
sociedade de consumo no Brasil, o consumidor<br />
como sujeito social já se evidencia nesse processo de<br />
maturação dos investimentos econômicos. “Ator<br />
passivo”, o consumidor manifesta desejos e canaliza<br />
recursos para obter bens ou produtos, “transformando<br />
o poder aquisitivo e a exibição de bens materiais<br />
nos valores principais da sociabilidade”. 58<br />
Apesar da padronização do consumo atingir apenas<br />
parcelas da população, é significativa a participação<br />
das camadas médias urbanas no “desfrute” dos produtos<br />
modernos (automóvel, TV e geladeira).<br />
As perspectivas de ascensão social podem ser<br />
observadas tanto pelo comportamento dos salários<br />
como pela valorização profissional. Com exceção<br />
do salário mínimo legal, que em dezembro de 1958<br />
era, em termos reais, 52,5% mais elevado do que sua<br />
56 Como peças fundamentais do instrumental utilizado pelo Plano de<br />
Metas podemos identificar um setor público conjugando formas administrativas<br />
flexíveis (empresas estatais e autarquias) com vinculações de fundos<br />
financeiros não sujeitas a cortes orçamentários e um setor privado<br />
recebendo fortes estímulos das políticas, por meio de entidades e grupos<br />
executores específicos, como o BNDE (empréstimos a longo prazo e aval a<br />
créditos externos) e a SUMOC (que regulava o acesso a importação e recursos<br />
externos). Cf. Ibid., pp. 100-101.<br />
57 CANO, 1993, p. 177.<br />
58 SORJ, 2000, p. 50.<br />
base de 1940, caindo para 34,5% em outubro de<br />
1961, o movimento geral dos salários apresentou<br />
um desempenho favorável, não sendo pressionado<br />
para baixo. 59 A valorização profissional, promovida<br />
notadamente pelos padrões americanos de direção e<br />
gestão empresarial, estimulava a formação de mãode-obra<br />
mais especializada. Engenheiros, administradores,<br />
economistas e publicitários iam sendo formados,<br />
atendendo à valorização do mercado e às demandas<br />
das principais cidades <strong>brasileira</strong>s.<br />
Esse foi um importante momento de integração<br />
do mercado nacional brasileiro. Mesmo reconhecendo<br />
a posição privilegiada de São Paulo, que<br />
formou um verdadeiro cinturão industrial em torno<br />
da sua capital, com indústrias, estradas de rodagem<br />
(Anchieta e Dutra) e ferrovias, os demais estados<br />
brasileiros também registraram crescimento econômico.<br />
Nas palavras de Marly Rodrigues, a<br />
modernização do Brasil desencadeava nesse período<br />
a “modernização dos homens, tornando-os cada<br />
vez mais urbanos. Modernização de seus pensamentos<br />
e hábitos, tornando-os consumistas.<br />
Modernização do modo de vida, das cidades, da arquitetura,<br />
das artes, da técnica, da ciência”. 60<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
A <strong>modernidade</strong> <strong>brasileira</strong>, ao ser revisitada,<br />
demonstra claramente que sua análise passa pelas<br />
transformações das cidades. Os esforços modernizantes<br />
das elites <strong>brasileira</strong>s estiveram direcionados<br />
aos grandes centros urbanos, como se eles fossem<br />
capazes, de modo geral, de irradiar indistintamente<br />
para a população os efeitos fantásticos das<br />
intervenções políticas e inovações científico-tecnológicas,<br />
implementadas para a superação da condição<br />
de país atrasado.<br />
As tentativas históricas de intervenções urbanas,<br />
materializadas por ações específicas, tentavam<br />
esconder as imagens de deformação da sociedade<br />
<strong>brasileira</strong>. A partir dos anos 50, a modernização ganhou<br />
maior velocidade com a expansão industrial,<br />
desafiando, mais uma vez, as metas dos técnicos em<br />
planejamento urbano. As cidades foram expondo,<br />
59 CANO, 1993, p. 177.<br />
60 RODRIGUES, 1992, p. 31.<br />
150 impulso nº 29
sem controle, a sua “feiúra urbana”. Favelas e bairros<br />
de periferia avolumam-se em espaços físicos,<br />
mal estruturados e mal assistidos, cada vez mais distantes<br />
ou excluídos do mercado consumidor que se<br />
formara, desfazendo a crença no sucesso dessa face<br />
modernizadora.<br />
Em outros termos, a superação da concepção<br />
idealizadora da cidade e das intervenções higienistas<br />
e estéticas, bem como a adoção de posturas mais racionais<br />
buscando tematizar a cidade real não foram<br />
suficientes para problematizar a cidade e produzir<br />
ações satisfatórias, até mesmo em razão da complexidade<br />
que a sociedade urbano-industrial acabou assumindo.<br />
Na verdade, foi-se mais e mais perdendo<br />
o controle, o que, aliás, não se mostrou exclusividade<br />
<strong>brasileira</strong>. Num balanço resumido do percurso<br />
da <strong>modernidade</strong> <strong>brasileira</strong> e de suas realizações,<br />
pode-se constatar que a industrialização, na década<br />
de 50, provocou uma intensa movimentação política<br />
e social que animava o debate sobre o desenvolvimento<br />
socioeconômico brasileiro, pelo qual o país<br />
parecia haver conquistado sua autonomia. Os anos<br />
posteriores, entretanto, revelaram a fragilidade das<br />
medidas tomadas por força de circunstâncias que,<br />
efetivamente, não romperam com a “inserção compulsória”<br />
do Brasil na <strong>modernidade</strong>. Ao contrário,<br />
permaneceram na mesma rota, reproduzindo as velhas<br />
mazelas: dependência econômica e tecnológica,<br />
exclusão social e inchaço urbano.<br />
A economia <strong>brasileira</strong>, submetida na época<br />
ao anseio nacional-desenvolvimentista, se afastou<br />
das convicções liberais e dos princípios do laissezfaire.<br />
No lugar do livre jogo do mercado, a burguesia<br />
industrial <strong>brasileira</strong> se viu ao lado de um Estado<br />
que passou a realocar recursos econômicos e financeiros<br />
para viabilizar uma moderna infra-estrutura<br />
industrial, capaz de concorrer internacionalmente.<br />
Em que pese o fato de a industrialização<br />
acelerada e a rápida urbanização, empregando aqui<br />
os termos de Mello e Novaes, 61 terem sido cunhadas<br />
num clima democrático e de grande efervescência<br />
política, não resta dúvida de que o modelo<br />
de desenvolvimento adotado teve continuidade<br />
nas conjunturas posteriores, numa versão sofisti-<br />
61 MELLO & NOVAES, 1998.<br />
cada e arrojada das políticas e ações do Estado.<br />
Embora a propalada crise do padrão nacional-desenvolvimentista<br />
de intervenção tenha se feito presente<br />
nas décadas de 70 e 80, foi na de 90 que as<br />
medidas liberalizantes passaram a dar a tônica das<br />
agendas dos governos no Brasil.<br />
A relevância de tais forças socioeconômicas<br />
nas estruturas da sociedade <strong>brasileira</strong> ganha maior<br />
sentido quando nos deparamos, nos anos 90, com a<br />
economia <strong>brasileira</strong> abandonando, no campo econômico,<br />
a âncora estatal, com cortes radicais dos<br />
gastos públicos, acompanhados por medidas de desestatização<br />
econômica. A conseqüência é uma redefinição<br />
do setor público, que rompe com os padrões<br />
históricos do desenvolvimento brasileiro e<br />
tenta recomeçar uma trajetória marcada pela abertura<br />
do mercado às importações, motivado pelo impulso<br />
globalizador, em que vantagens são obtidas<br />
mediante as diferenças de produtividade e de custos<br />
de produção entre os países. Sob novas cores, o liberalismo<br />
econômico recoloca o mercado como<br />
um dos grandes baluartes da expansão econômica,<br />
capaz de orientar o intercâmbio mundial de produtos<br />
como uma imposição inelutável. Graças a esse<br />
cenário, a sociedade <strong>brasileira</strong> enfrenta o descompasso<br />
entre o crescimento econômico e as condições<br />
de vida de significativa parcela da população.<br />
Diante da perversa desigualdade social, a violência<br />
se propaga como instrumento de defesa e sobrevivência.<br />
As cidades, locus privilegiado da vida<br />
moderna, não conseguem cultivar a solidariedade<br />
social. Nesse quadro socioeconômico, é inevitável a<br />
constatação, de um lado, de um<br />
Brasil Moderno, a grande empresa, os pequenos<br />
e médios empresários eficientes,<br />
seus trabalhadores e a classe média; de outro<br />
os muito pobres e os miseráveis da agricultura<br />
e dos serviços, legais e ilegais. De um lado,<br />
São Paulo, seu espaço econômico e os<br />
enclaves modernos das regiões atrasadas; de<br />
outro, o resto do Brasil e as manchas de miséria<br />
das regiões desenvolvidas. 62<br />
62 MELLO, 1992, p. 64.<br />
impulso nº 29 151
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