Uma leitura da história pelas mãos de uma ... - Itaporanga.net
Uma leitura da história pelas mãos de uma ... - Itaporanga.net
Uma leitura da história pelas mãos de uma ... - Itaporanga.net
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>Uma</strong> <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>história</strong> <strong>pelas</strong> <strong>mãos</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> autobiografia: a <strong>história</strong> em forma <strong>de</strong> sons,<br />
cheiros e tons - a <strong>história</strong> dos <strong>de</strong>sejos. 1<br />
TELMA DIAS FERNANDES (UEPB)<br />
Afetado pelos <strong>de</strong>sejos e medos, <strong>pelas</strong> conquistas e recuos, pela solidão e pelo encontro<br />
Herbert Daniel perscruta o mundo através do seu corpo. Meu corpo <strong>da</strong>ria um romance, o<br />
corpo que se fez romance. Um romance que fala <strong>de</strong> um tempo <strong>de</strong> restrições, <strong>de</strong> interdições e<br />
que empreen<strong>de</strong> <strong>uma</strong> vivência dos <strong>de</strong>vires.<br />
[...] reunir sombras e elipses on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>lineiam noções <strong>de</strong> corpo – portanto<br />
<strong>de</strong> política.<br />
Visitar um porão <strong>de</strong> encantos e ferimentos, mas um porão com direito a<br />
janelas para assombros, banali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e novas linhas <strong>de</strong> fugas: para o<br />
horizonte. (DANIEL,1984. p.10)<br />
A narrativa <strong>de</strong> Daniel é autobiográfica, <strong>uma</strong> literatura <strong>de</strong> resistência no estilo que<br />
po<strong>de</strong>mos inserir no âmbito <strong>da</strong> ego <strong>história</strong>. A escrita <strong>de</strong> si se convertendo na escrita <strong>da</strong><br />
<strong>história</strong>(GOMES,2004), através <strong>da</strong> qual é possível dialogar com as multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>s falas,<br />
mesmo que estas não façam parte dos calendários oficiais e tratem <strong>de</strong> objetos ain<strong>da</strong> sujeitos à<br />
controvérsias como são os afetos.<br />
Daniel escreve para resistir. Seguindo trilhas <strong>de</strong> Deleuze(2005) quando este trabalha a<br />
obra <strong>de</strong> Foucault “escrever é lutar, resistir; escrever é vir-a-ser; escrever é cartografar”(p.53).<br />
Deleuziano, seu universo literário nos remete às linhas <strong>de</strong> fuga<br />
(GUATARRI&DELEUZE,1996). A experiência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> não é <strong>uma</strong> árvore que <strong>de</strong>ita e<br />
aprofun<strong>da</strong> raízes no solo, é um rizoma. São linhas, sempre linhas que se emaranham e<br />
fabricam os tecidos <strong>da</strong>s multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>s, que por sua vez são linhas <strong>de</strong> outras multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />
Um <strong>de</strong>vir permanente, porões com janelas para assombros.<br />
A problematização inci<strong>de</strong> sobre a percepção dos sentimentos como parte <strong>da</strong> experiência,<br />
<strong>da</strong> política, e <strong>da</strong>s ações. Afetando e sendo afetados, os sentimentos participam <strong>da</strong>s escolhas.<br />
Proponho um olhar <strong>da</strong> <strong>história</strong> sobre os ruídos muitas vezes inaudíveis dos movimentos<br />
h<strong>uma</strong>nos. O som <strong>de</strong> um choro contido, <strong>de</strong> um sorriso largo, <strong>de</strong> um coração palpitando, <strong>de</strong><br />
passa<strong>da</strong>s que recuam e avançam. O som <strong>de</strong> um beijo. Beijo <strong>de</strong> dois homens? Sim e não. Beijo<br />
<strong>de</strong> dois enamorados.<br />
Um beijo que aconteceu como a conversação: sem plano. Não nos bastaria<br />
então um aperto <strong>de</strong> mão, um tapinha nas costas, um gesto camuflado.<br />
Movimentos do amor namorando justificavam e exigiam um beijo. Simples,<br />
rápido, sensual. Sem audácia, sim, semi-clan<strong>de</strong>stino, sim; mas beijo e na<br />
boca. (DANIEL, 1984. p.13)<br />
A vivência dos sentimentos encontra sua historici<strong>da</strong><strong>de</strong>, participa <strong>de</strong> <strong>uma</strong> episteme. Ao<br />
entrar no ônibus, n<strong>uma</strong> madruga<strong>da</strong> <strong>de</strong> Copacabana, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um beijo enamorado, os olhares<br />
o acompanhavam. E como olhares cost<strong>uma</strong>m expressar-se em falas eloqüentes, aqueles<br />
pareceram gritar para Daniel: Bicha! Os carinhos e afagos permitidos, estimulados e<br />
1 Este texto é parte <strong>de</strong> <strong>uma</strong> pesquisa mais ampla sobre os afetos em literatos que produziram<br />
entre o final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 70 e início <strong>de</strong> 90 ou que fale <strong>de</strong>sse período. O meu objetivo neste artigo em<br />
particular é palmilhar, junto com <strong>uma</strong> escrita autobiográfica, diversos momentos <strong>da</strong> <strong>história</strong> dos<br />
Afetos, ou seja, caminhar pelos meandros dos sentimentos.
propagados entre pessoas <strong>de</strong> gênero diverso, são interditos para os gêneros iguais. O amor<br />
entre iguais não po<strong>de</strong> ser publicizado, apenas encontra espaços possíveis na clan<strong>de</strong>stini<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Movido pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> se a<strong>da</strong>ptar ao mundo <strong>de</strong> árvores <strong>de</strong> grossas raízes, Herbert Daniel<br />
tentou dizer pra si mesmo que “[...] A gente se acost<strong>uma</strong> com tudo nesse mundo, até com a<br />
natureza” (DANIEL,1984. P.77) Nessa busca, quis ser médico, filiou-se a movimentos <strong>da</strong><br />
esquer<strong>da</strong> arma<strong>da</strong> brasileira que combatiam a ditadura militar e se fez revolucionário,<br />
transformador <strong>de</strong> mundos. Após tempos <strong>de</strong> militância e clan<strong>de</strong>stini<strong>da</strong><strong>de</strong>, voou pro exílio.<br />
Exílios! O último em Paris <strong>de</strong> on<strong>de</strong> foi o último a retornar ao País quando <strong>da</strong> anistia. No livro<br />
objeto <strong>de</strong>ste artigo ele fala <strong>da</strong>s angústias <strong>da</strong> espera pelo visto custoso. Fala <strong>de</strong> várias<br />
angústias. De várias dores, amores e alegrias. De tudo fala com humor e com <strong>uma</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
inaudita <strong>de</strong> viver.<br />
A clan<strong>de</strong>stini<strong>da</strong><strong>de</strong> do tempo <strong>da</strong>s práticas políticas revolucionárias conviveu com a<br />
negação <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Daniel escon<strong>de</strong>u, alg<strong>uma</strong>s vezes até <strong>de</strong> si mesmo, os seus <strong>de</strong>sejos por<br />
homens. Era um mecanismo para ser aceito pelos companheiros. O mundo <strong>da</strong> militância<br />
política também exigia <strong>uma</strong> heterossexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Até os amores heteros <strong>de</strong>veriam<br />
secun<strong>da</strong>rizar-se em prol <strong>da</strong> causa revolucionária. Somente na igual<strong>da</strong><strong>de</strong> social seria possível<br />
aos ci<strong>da</strong>dãos conscientes o aflorar dos sentimentos, principalmente <strong>de</strong> quaisquer<br />
manifestações <strong>de</strong> afetos que pu<strong>de</strong>ssem ser aponta<strong>da</strong>s como sentimentalismos burgueses.<br />
A clan<strong>de</strong>stini<strong>da</strong><strong>de</strong> do amor homoerótico assumiu o lugar do amor interditado.<br />
Ain<strong>da</strong> no período que vivia em células revolucionárias, precisando escon<strong>de</strong>r-se <strong>da</strong><br />
polícia política, Daniel conheceu um companheiro que viria a construir-se como o amor <strong>de</strong><br />
muitos anos. Presos às convenções quanto ao querer e ao comportamento sexual, eles não se<br />
admitiam como homossexuais, mas não conseguiam calar completamente sobre os <strong>de</strong>sejos<br />
que alimentavam em segredo. As conversas eram inevitáveis. Do horror ao homossexualismo<br />
passaram a compor discursos que o justificassem.<br />
Juntos começaram a elaborar to<strong>da</strong> <strong>uma</strong> justificativa <strong>da</strong> homossexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
<strong>Uma</strong> justificativa apenas. Já não eram doentes ou monstruosos. Apenas<br />
<strong>de</strong>sviantes como todos os loucos. Capazes <strong>de</strong> ‘se a<strong>da</strong>ptarem’. E, um no<br />
outro, tiveram apoio para se sentirem livres <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong>s culpas.<br />
(DANIEL,1984.p.36)<br />
Para as relações <strong>de</strong> sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong> hetero, cristã e machista normativa, o corpo não tem<br />
vonta<strong>de</strong>, não participa <strong>de</strong> <strong>uma</strong> historici<strong>da</strong><strong>de</strong>. A alma que habita o corpo um simples invólucro,<br />
essa sim, coman<strong>da</strong> a vonta<strong>de</strong> h<strong>uma</strong>na. O h<strong>uma</strong>no existiria a partir <strong>de</strong> <strong>uma</strong> essência, <strong>uma</strong><br />
prerrogativa divina ou calca<strong>da</strong> na razão mo<strong>de</strong>rna. Mas “O corpo não quer existir além do<br />
corpo e assim obstinado quase parecia reformar contra a natureza” (DANIEL,1984.p.94).<br />
“Acreditar que o corpo é coisa, casca, habita<strong>da</strong> por ‘eu’ psicológico é a nossa mais preciosa<br />
mitologia civilizatória. Só os bárbaros e pervertidos não acreditam nessa fábula gloriosa”<br />
(I<strong>de</strong>m. p.38)<br />
Neste sentido, a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> não é ela também <strong>uma</strong> construção histórica <strong>da</strong> cultura<br />
h<strong>uma</strong>na, não é multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> construtora <strong>de</strong> <strong>de</strong>vires, mas apenas <strong>uma</strong> <strong>de</strong>rivação <strong>da</strong> essência<br />
que precisa ser reproduzi<strong>da</strong>. A genitália só um instrumento. “[...] o sexual será apreendido<br />
como aquela parte exclusiva: o genital. Divisão do corpo. Meu membro.” (DANIEL, 1984.<br />
p.60) O corpo instrumento <strong>de</strong>ve se manter puro para guar<strong>da</strong>r a alma, o espírito, o psicológico.<br />
A variante <strong>da</strong> concepção teórica não inibe o conceito fun<strong>da</strong>mental-, o corpo instrumento,<br />
lugar <strong>de</strong> moradia <strong>da</strong> essência será punido para que se purifique sempre que fugir do seu<br />
<strong>de</strong>stino, sempre que for apropriado pelo erro. A culpa inva<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as esferas dos <strong>de</strong>sejos,<br />
principalmente dos que concernem à sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Muito cedo se admoestam as crianças, lhes ensinam a ter medo, vergonha e culpa. O<br />
tempo do prazer “puro” é curto. Bem rápido o amanhecer <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> se converte em
culpa, medo, angústias. Viver os gozos do sexo apenas como <strong>uma</strong> experiência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> emoção<br />
está interditado. A cultura engessou o sexo na dor, através <strong>da</strong> reprodução, do amor<br />
romantizado ou <strong>da</strong>s religiões.<br />
O amor entre gêneros iguais, este é inadmissível. Não existe amor porque o amor seria<br />
um sentimento puro, divinizado, romantizado e reprodutivo<br />
O prazer sujo é o gozo estritamente sexual do corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito. Tal como o<br />
amor era um gozo <strong>de</strong>serotizado e sexualizado do corpo do Amor. Por isso<br />
mesmo, a transgressão propriamente erótica, o proibido prazer, sempre se<br />
realizaria analmente ou, secun<strong>da</strong>riamente, bucalmente. O Antiamor.<br />
(DANIEL, 1984. p.98)<br />
Daniel fala <strong>de</strong>sse corpo que inventa <strong>história</strong>, o corpo romance é o que incomo<strong>da</strong> por<br />
apontar para a historici<strong>da</strong><strong>de</strong> do corpóreo. Não há como fatiar em pe<strong>da</strong>ços distintos corpos e<br />
almas. “Tenho que avançar sem temor no meu incomo<strong>da</strong>nte corpo. [...] Vivo ai. Não posso<br />
escapar <strong>de</strong> mim” (I<strong>de</strong>m. p.114)<br />
Tampouco po<strong>de</strong>ria Daniel aceitar seu corpo como um mero instrumento, caixinha <strong>de</strong><br />
guar<strong>da</strong>r coisas, <strong>de</strong> guar<strong>da</strong>r raízes, pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong> eus. O corpo que para ele surgia muitas vezes<br />
diante dos seus olhos como a imagem <strong>da</strong> feiúra porque não se podia perceber como um<br />
natural, feito com <strong>uma</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> finali<strong>da</strong><strong>de</strong>, pronto para o executar <strong>de</strong> <strong>uma</strong> função.<br />
Não as altero, oh, não. Eu é que me alterei dia após dia e portanto não posso<br />
dizer o que foi sempre do mesmo jeito. Descubro no ido um quê <strong>de</strong><br />
inesperado, <strong>de</strong> disfarçado que se <strong>de</strong>sembuça um pouco. Quando penso que é<br />
já, logo me vejo enganado pelo ain<strong>da</strong>, e vem à recor<strong>da</strong>ção o fato novo, <strong>de</strong><br />
novo <strong>de</strong>scascado. Só <strong>de</strong> cascas se compõem as coisas: o caminho <strong>da</strong><br />
lembrança é sempre reinício. (DANIEL, 1984. p.180)<br />
História <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> Priva<strong>da</strong> (SCHWARCZ,1998), Almei<strong>da</strong> & Weis, no artigo Carro -<br />
zero e Pau-<strong>de</strong>-arara: o cotidiano <strong>da</strong> oposição <strong>de</strong> classe média ao regime militar, lembram<br />
a fala <strong>de</strong> um investigador do DOPS para quem havia no Brasil <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 70 um perigo<br />
iminente, <strong>uma</strong> mistura bombástica: sexo, marxismo e idéias exóticas. O exemplo, embora não<br />
diretamente relacionado à experiência <strong>de</strong> Daniel, contribui para pensarmos no texto do Meu<br />
corpo <strong>da</strong>ria um romance.<br />
O revolucionário que passara sete anos <strong>de</strong> abstinência sexual e que buscava trazer<br />
felici<strong>da</strong><strong>de</strong> para si e para o mundo através <strong>da</strong> luta arma<strong>da</strong>, <strong>da</strong> revolução socialista, não <strong>de</strong>ixara<br />
<strong>de</strong> pensar em sexo, em gênero, em sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, em prazer, em culpas, medos e vergonhas.<br />
Não abandonara as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, os <strong>de</strong>vires. Os sonhos o acompanhavam em noites<br />
solitárias. Os gritos, quase sempre silenciosos, não o permitiam se escon<strong>de</strong>r dos interesses<br />
amorosos por companheiros <strong>de</strong> militância, quando se imaginava sendo <strong>de</strong>smascarado em seus<br />
<strong>de</strong>sejos recônditos, contidos. Sobretudo, não cessava <strong>de</strong> se perguntar sobre seus sentimentos e<br />
sobre os sentimentos <strong>de</strong>sses companheiros.<br />
Talvez estivesse certo aquele investigador. Havia <strong>uma</strong> revolução nos subterrâneos <strong>da</strong><br />
clan<strong>de</strong>stini<strong>da</strong><strong>de</strong> militante. <strong>Uma</strong> revolução que não pensava apenas em alterar as bases<br />
econômicas e as ações políticas, mas resignificaria o próprio sentido <strong>de</strong> política e <strong>de</strong>sejava a<br />
negação <strong>da</strong>s estruturas, dos sujeitos, <strong>da</strong> natureza com suas funções pre<strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s e seus<br />
papéis pre<strong>de</strong>finidos.<br />
Desejei ser invisível, ou todo po<strong>de</strong>rosos. Tão po<strong>de</strong>roso que pu<strong>de</strong>sse estar<br />
acima <strong>da</strong> divisão homeniza<strong>da</strong> do social em macho e fêmea. [...] Como<br />
suportar vossa exigência <strong>de</strong> que minha atração me <strong>de</strong>sencape <strong>da</strong> minha pele<br />
h<strong>uma</strong>na para ter <strong>de</strong> usar o manto do estigmatizado? (DANIEL, 1984. P.117)
Ao compor a narrativa <strong>de</strong> <strong>uma</strong> época pelos meandros <strong>de</strong> <strong>uma</strong> vi<strong>da</strong>, Daniel resignifica as<br />
relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que se forjam no cotidiano <strong>da</strong>s vivências, aprisionando corpos. O corpo não<br />
mais resignado às amarras <strong>da</strong>s interdições. O po<strong>de</strong>r não tem essência, se efetiva através <strong>da</strong>s<br />
relações <strong>de</strong> forças (DELEUZE,2005). On<strong>de</strong> há po<strong>de</strong>r, há resistências. Ambos são nuances <strong>de</strong><br />
um mesmo perfil.<br />
O corpo romance esperneia contra os estereótipos, reclama por <strong>uma</strong> voz ativa, capaz <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>smistificar, capaz <strong>de</strong> engendrar reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s. O corpo romance discute a política partidária <strong>da</strong><br />
qual participou como constituinte tanto quanto participa do construir <strong>da</strong> negação, <strong>da</strong>s<br />
interdições e repressões oriun<strong>da</strong>s <strong>da</strong>quela prática política.<br />
Ao <strong>de</strong>snu<strong>da</strong>r o corpo sofrido pelos afetos reprimidos e punidos, Daniel não conta <strong>uma</strong><br />
<strong>história</strong> <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong>s déca<strong>da</strong>s apenas, não recupera somente instantes do passado, antes cria<br />
<strong>uma</strong> <strong>história</strong> do presente que dialoga com os tempos vividos. Escrever é resistir, é<br />
cartografar-se e o autor cartografa-se ao expor as linhas impressas no seu próprio corpo. O<br />
corpo político que faz e (<strong>de</strong>s)faz corpos.<br />
Diferente <strong>de</strong> muitos companheiros militantes dos diversos partidos e grupos armados,<br />
Daniel não sofreu as torturas pratica<strong>da</strong>s nos porões <strong>da</strong> ditadura militar brasileira. Nos<br />
aparelhos clan<strong>de</strong>stinos obrigava-se ao silêncio para não ser percebido pelos vizinhos. Em um<br />
<strong>de</strong>les chegou a permanecer mais <strong>de</strong> seis meses sem provocar ruídos e movimentos. Ao longo<br />
<strong>da</strong> militância, en<strong>de</strong>reços se suce<strong>de</strong>ram. Escapou sempre. Alg<strong>uma</strong>s vezes por um triz, quase<br />
por milagre.<br />
Torturas lhes vieram a partir do estranhamento por não se reconhecer nos<br />
agenciamentos que impunham regras normativas <strong>de</strong> como ser, do que querer e <strong>de</strong>sejar. “[...]<br />
Diante <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> feliz que po<strong>de</strong>ríamos ter sido um ataque feroz nos reduz à estreiteza<br />
<strong>de</strong> <strong>uma</strong> uniformi<strong>da</strong><strong>de</strong>. <strong>Uma</strong> unici<strong>da</strong><strong>de</strong>. <strong>Uma</strong> individuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />
i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> um: esta é a opção q somos obrigados a fazer. (DANIEL.1984.p.181)<br />
Passados os anos <strong>de</strong> chumbo, como se cost<strong>uma</strong> chamar os anos <strong>de</strong> ditadura militar no<br />
Brasil, Daniel retorna e se perfila diante <strong>de</strong> outras clan<strong>de</strong>stini<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>de</strong> outras interdições e<br />
punições.<br />
Daniel é ex-militante comunista, ex-seqüestrador <strong>de</strong> embaixadores. Mas Daniel é, e não<br />
ex gay, aidético, situado na periferia dos padrões morais. Era feio, era feio porque gordo,<br />
gordo porque feio, era feio porque bicha. Bicha gor<strong>da</strong>, bicha promíscua. Na noite <strong>de</strong><br />
Copacabana, um refugo <strong>da</strong> boemia carioca subia feio, num ônibus feio, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um beijo<br />
feio em outro homem na calça<strong>da</strong>. Esquecera a lição dos aparelhos clan<strong>de</strong>stinos e fizera ruídos<br />
e movimentos, <strong>de</strong>ixara-se ver. “[...]Ele n se queria um ato público ou <strong>uma</strong> <strong>de</strong>claração <strong>de</strong><br />
princípios ou petição <strong>de</strong> renovação. Simplesmente se queria beijo, somente carinho, coisa <strong>de</strong><br />
um amor qualquer amor (DANIEL, 1984. p.49). O livro Meu corpo <strong>da</strong>ria um Romance<br />
recorre insistentemente ao discurso <strong>da</strong> feiúra como forma <strong>de</strong> chamar atenção para a imagem<br />
do corpo que se envolve em agenciamentos repressores. O corpo i<strong>de</strong>ntificado como feio por<br />
questões estéticas quer falar <strong>da</strong> política <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos pre<strong>de</strong>terminados.<br />
Mas para que fosse possível um beijo ser apenas um beijo, Daniel se quis novamente<br />
militante. Ao saber que <strong>uma</strong> doença ceifava vi<strong>da</strong>s e era atrela<strong>da</strong> a <strong>uma</strong> opção homoerótica,<br />
Daniel, mesmo ain<strong>da</strong> não se sabendo portador <strong>de</strong> AIDS, apontava para algo pior do que o<br />
vírus. A doença que começava a encher manchetes na mídia era a doença do preconceito, <strong>da</strong><br />
interdição, <strong>da</strong>s restrições. Pensando nas questões relaciona<strong>da</strong>s à biopolítica, na perspectiva<br />
foucaultiana, a AIDS servia à política <strong>da</strong> eliminação. Era preciso manter a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> livre do<br />
vírus e para tanto, era necessário punir os aidéticos.<br />
Ao se saber soropositivo, Daniel fundou um grupo que propunha um trabalho <strong>de</strong><br />
soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> em torno <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos aidéticos. VIDDA-, Valorização,
Integração e digni<strong>da</strong><strong>de</strong> do Doente <strong>de</strong> AIDS. O olhar do militante se reterritorializa e se<br />
percebe buscando a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia na luta por atendimento médico, mas, sobretudo, na luta pelo<br />
respeito aos soropositivos e na resistência diante <strong>da</strong> utilização <strong>de</strong>sses como elementos<br />
perniciosos à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> sadia.<br />
O legado recente que Herbert Daniel <strong>de</strong>ixou para a h<strong>uma</strong>ni<strong>da</strong><strong>de</strong> foi<br />
sua luta para <strong>de</strong>sarmar e enten<strong>de</strong>r o pânico e, às vezes, a violência<br />
causa<strong>da</strong> pela complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural <strong>da</strong> linguagem distorci<strong>da</strong> associa<strong>da</strong><br />
à aids. Herbert Daniel imaginou outras possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s mais lúci<strong>da</strong>s e<br />
h<strong>uma</strong>nas sobre as relações sociais, médicas e trabalhistas. Sugeriu<br />
respostas solidárias para o <strong>de</strong>safio do convívio <strong>da</strong> h<strong>uma</strong>ni<strong>da</strong><strong>de</strong> com<br />
mais um vírus mortal, sobre viver com aids. Imaginou po<strong>de</strong>r difundir<br />
outras vertentes <strong>de</strong> se vivenciar a aids, <strong>de</strong> se promover a participação<br />
social e política em prol do redirecionamento <strong>da</strong> concepção i<strong>de</strong>ológica<br />
do estigma e do <strong>de</strong>sterro, <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se difundir a informação<br />
<strong>da</strong> prevenção e <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> participação governamental<br />
<strong>de</strong>fronte a <strong>uma</strong> epi<strong>de</strong>mia que coloca em risco a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong><br />
brasileiros. Seu discurso era também sua imagem. Usou sua coragem<br />
como poucos para mostrar seu rosto e dizer através dos meios <strong>de</strong><br />
comunicação que ser portador do vírus <strong>da</strong> aids, não significa<br />
necessariamente a morte civil. (ORSI, Biografia, fun<strong>da</strong>ção Herbert<br />
Daniel)<br />
Em outro livro <strong>de</strong> Herbert Daniel, escrito em parceria com Leila Micollis, Jacarés e<br />
Lobisomens(1983), <strong>uma</strong> fala <strong>de</strong>ste autor é emblemática e nos diz que sua escrita busca<br />
contribuir para que quando ouvimos a sentença – Não po<strong>de</strong>! Po<strong>de</strong>mos contrapor com: Mais<br />
eu quero!<br />
REFERÊNCIAS<br />
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Vol 1. Tradução <strong>de</strong> Ephraim F. Alves e Lúcia<br />
E. Orth. Petropólis, RJ: Vozes, 1996.<br />
DANIEL, Herbert. Meu corpo <strong>da</strong>ria um romance. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1984.<br />
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução <strong>de</strong> Claudia SantÁna Martins São<br />
Paulo:Brasiliense,2005.<br />
GUATTARI, félix & DELEUZE, Gilles. Mil Platôs.capitalismo e esquizofrenia. V 1,3.<br />
Tradução: Aurélio Guerra Neto Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora 34, 1995.<br />
NOVAIS, Fernando (dir.) SCHWARCZ, Lilia Moritz (org) História <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> Priva<strong>da</strong>. V. 4.<br />
Contrastes <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> contemporânea. São paulo: Cia. Das Letras, 2000.<br />
PRIORE, Mary Del. História do amor no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2006.<br />
RAGO, Margareth & VEIGA-NETO, Alfredo (orgs) figuras <strong>de</strong> Foucault. Belo Horizonte:<br />
Autênctica, 2006<br />
VENTURA, Zuenir. 1968 o ano que não terminou. São Paulo: Círculo do livro, 1988.<br />
INTERNET<br />
http//www.geocities.com/athens/acropolis/7051/fun<strong>da</strong>ção.html