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sexualidade(s) - PPGE

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO<br />

CENTRO DE EDUCAÇÃO<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO<br />

ALEXSANDRO RODRIGUES<br />

SEXUALIDADE(S) E CURRÍCULO(S): PRÁTICAS<br />

COTIDIANAS QUE NOS ATRAVESSAM PRODUZINDO<br />

EXPERIÊNCIAS<br />

Vitória<br />

2009<br />

0


Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)<br />

(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)<br />

Rodrigues, Alexsandro, 1970-<br />

R696s Sexualidade(s) e currículo(s) : práticas cotidianas que nos<br />

atravessam produzindo experiências / Alexsandro Rodrigues. –<br />

2009.<br />

280 f. : il.<br />

Orientador: Carlos Eduardo Ferraço.<br />

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito Santo,<br />

Centro de Educação.<br />

1. Currículos. 2. Subjetividade. 3. Educação. I. Ferraço, Carlos<br />

Eduardo, 1959-. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro<br />

de Educação. III. Título.<br />

CDU: 37<br />

1


UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO<br />

CENTRO DE EDUCAÇÃO<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO<br />

SEXUALIDADE(S) E CURRÍCULO(S):<br />

PRÁTICAS COTIDIANAS QUE NOS ATRAVESSAM<br />

PRODUZINDO EXPERIÊNCIAS<br />

por<br />

ALEXSANDRO RODRIGUES<br />

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação,<br />

do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito<br />

Santo – UFES, como requisito parcial à obtenção do grau de<br />

Doutor em Educação.<br />

Professor Orientador: Profº Drº Carlos Eduiardo Ferraço<br />

Linha de Pesquisa: Currículo, Cultura e Formação de Educadores.<br />

Vitória<br />

2009<br />

II<br />

2


ALEXSANDRO RODRIGUES<br />

SEXUALIDADE(S) E CURRÍCULO(S): PRÁTICAS<br />

COTIDIANAS QUE NOS ATRAVESSAM PRODUZINDO<br />

EXPERIÊNCIAS<br />

Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação,<br />

Doutorado em Educação do Centro de Educação da Universidade<br />

Federal do Espírito Santo, como requisito parcial à obtenção do<br />

grau de Doutor em Educação.<br />

COMISSÃO EXAMINADORA<br />

Prof Dr Carlos Eduardo Ferraço<br />

Universidade Federal do Espírito Santo<br />

Profª Drª Mitsi Pinheiro de Lacerda Leite Benedito<br />

Universidade Federal Fluminense<br />

Prof Dr Marco Aurélio Máximo Prado<br />

Universidade Federal de Minas Gerais<br />

Profª Drª Maria Elizabeth Barros de Barros<br />

Universidade Federal do Espírito Santo<br />

Profª Drª Janete Carvalho Magalhães<br />

Universidade Federal do Espírito Santo<br />

Prof Dr Hiran Pinel<br />

Universidade Federal do Espírito Santo<br />

III<br />

Vitória, 31 de agosto de 2009<br />

3


Apesar da importância que possa haver<br />

conhecer os autênticos motivos que guiaram<br />

até hoje ações humanas, talvez seja mais<br />

importante ainda, para quem procura o<br />

conhecimento, saber qual crença está ligada a<br />

este ou aquele motivo, quero dizer, conhecer o<br />

que a humanidade supôs e imaginou até o<br />

presente como sendo a verdadeira alavanca de<br />

seus atos. De fato, a felicidade e a miséria<br />

interior dos homens vieram-lhe de sua crença<br />

neste ou naquele motivo – e não daquilo que<br />

foi o motivo verdadeiro! Este tem apenas um<br />

motivo secundário. (Nietzsche, 2006. p71)<br />

IV<br />

4


AGRADECIMENTOS:<br />

Pessoas e instituições que implicados com a pesquisa e com o conhecimento<br />

nos permitem viver as aventuras do desconhecimento e de continuar<br />

acreditando na potência do desejo, que transforma projetos em realizações.<br />

Ao professor e amigo professor Dr. Carlos Eduardo Ferraço que em todo<br />

momento dessa trajetória de pesquisa ocupou a condição de mestre em minha<br />

vida e que de um lugar cuidadoso permitiu e provocou um caminhar por terras<br />

desconhecidas.<br />

Aos amigos/autores desse trabalho, professores e alunos que ao narrarem à<br />

vida produziram outros sentidos para se pensar currículo, corpo, <strong>sexualidade</strong> e<br />

a amizade.<br />

A Escola Estadual Emília Esteves Marques, que de forma carinhosa me<br />

permitiu de seu cotidiano fazer parte.<br />

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da<br />

Universidade Federal do Espírito Santo.<br />

No campo pessoal, por isso político, agradeço a ajuda irrestrita dos<br />

Professores: Maria Elizabeth Barros de Barros, Janete Magalhães Carvalho,<br />

Regina Helena Silva Simões, Hiran Pinel, Mitsi Pinheiro de Lacerda Leite<br />

Benedito, pelos incansáveis incentivos e pelas leituras cuidadosas do textotese.<br />

A amiga de toda hora: Maria da Conceição Silva Soares.<br />

Aos secretários do <strong>PPGE</strong>/CE/UFES, pelo apoio tantas vezes solicitado e nunca<br />

negado.<br />

Aos meus amigos e familiares que souberam me abraçar nos momentos de<br />

solidão.<br />

Ao apoio da Faculdade do Vale do Carangola- FAVALE/UEMG<br />

A FAPEMIG pelo investimento financeiro.<br />

V<br />

5


RESUMO<br />

Esta pesquisa problematiza a partir da experiência empírica, constituída por<br />

práticas de si, a produção do sujeito da modernidade nos seu entrelaçamento com<br />

os discursos pedagógicos da escola, da <strong>sexualidade</strong>, do currículo e com o corpo<br />

que se recusa assumir uma forma de identidade, traduzida e capturada pelas<br />

biopolíticas de inclusão e exclusão. Entretece nesse debate, nesse texto<br />

conversante, o estranhamento de alguns dispositivos morais que sempre nos<br />

pareceu estarem aí e que sutilmente, pelas tramas dos currículos nos agenciam, e<br />

nos convidam a assumir uma forma de vida a mesma. As pessoas exercitando<br />

sua liberdade, de forma imanente, ao circular pelas redes do poder se recusam<br />

quando podem, quase sempre, vestir os mesmos trajes e reiterar os discursos a<br />

favor da mesmidade. Buscamos pensar a vida como obra de arte a partir de uma<br />

demanda ética, estética e política praticada na publicidade das relações de<br />

amizade e com as diferenças que são nossas. Esse trabalho se justifica por ir<br />

percebendo, de forma implicativa que o mundo não está pronto e que outras<br />

possibilidades de expansão da vida são cotidianamente inventadas, contestadas e<br />

ressignificadas, tendo no terreno da vida social o seu fermento. Num diálogo<br />

implicante com as muitas histórias contadas e das redes de conhecimentos que<br />

nos tramam como narradores da vida foi possível fazer a crítica como cuidado<br />

epistemológico e metodológico a cientificidade de um paradigma que foi se<br />

tornando hegemônico nas atitudes da modernidade. Buscou-se neste trabalho<br />

compreender a produção dos sujeitos escolares com os discursos do currículo e<br />

da <strong>sexualidade</strong>, com os modos de falar, narrar, escrever, julgar, ver e transformar.<br />

Acredito, a partir dos muitos enredamentos deste texto-tese, termos feito a crítica<br />

de alguns pares binários desiguais, que objetiva positivar um lado e negativar o<br />

outro, e que posicionam o sujeito entre isso ou aquilo. Buscou-se problematizar a<br />

tolerância das diferenças como construção cultural. Esse trabalho movimenta<br />

numa metodologia que busca nas redes de conhecimentos dos praticantes com a<br />

escola e com o currículo a sua aposta política na publicidade da amizade como<br />

potência na expansão da vida.<br />

Palavras-chave: currículo; <strong>sexualidade</strong>; cotidiano.<br />

VI<br />

6


Abstract<br />

This research inquiry from to split on empirical experience, constitute for<br />

practice of himself. The production of modern person in your entangle with the<br />

school education speech of sexuality, of curriculum and with the body that<br />

refuse to accept a identity form, translated and captured from include and<br />

exclude biopolitcs. Mix in this debate, to suspect of some moral device that<br />

always seem us to be there and that subtle form through plots of curriculum<br />

further us, and invite us to accept a standard way of live. People practice their<br />

freedom, of inseparable form in going by power net refuse themselves to wear<br />

the same dress and to reiterate the speech in behalf of the same. We search in<br />

this work to think the life with work of art from ethics, esthetics and politics<br />

prosecution practiced in publicity of friendship roll and with our difference. This<br />

work justify itself to have knowledge of the word that is not prepared and that<br />

others possibilities of live expansion quotidian are invented and contested kept<br />

in the terrain of social life its ferment. Among a large quantity of histories<br />

narrated that plot us with life narrators was possible to review carefully<br />

epistemology and methodology the science specialization of paradigm that‟s<br />

was turned itself dominion in the attitudes in modern time. We search in this<br />

work understand the production of scholars citzen with the curriculum and with<br />

the sexuality, with manners to speak, to tell, to write, to judge, to see and to<br />

transform. I believe to go way from a lot of inquiries in this text-thesis, we had<br />

done the criticism of some pairs, with the objective that to make positive a side<br />

and negative the other. It searched inquiry the tolerance of difference like<br />

cultural construction. This work implies a methodology that search in the<br />

knowledge nets its politic bet as potency in life expansion.<br />

Key-words: curriculum; sexuality; quotidian.<br />

VII<br />

7


Resumen<br />

Esa pesquisa indaga a partir de La experiência empírica constituída por<br />

practicas de si mesma, la creación del sujeito de la modernidade em su<br />

enredarse com los discursos pedagógicos de la escuela, de la sexualidad, del<br />

currículum y com el cuerpo que se nega a asumir uma forma de indetidad,<br />

traducida y capturada por las biopolítcas de inclusion y exclusion. Se mezcla<br />

em esse debate el sospechar de algunos dispositivos Morales que siempre nos<br />

parecieron estar ahí y que de manera sutil, por las tramas de los curriculums<br />

nos representan y nos invitam a asumir uma maneira de nível de via. Las<br />

personas practicando su libertad, al circular por las redes del poder se negam,<br />

cuando pueden, a vestir los mismos trajes y a reiterar los discursos a favor del<br />

mismo. Buscamos em esse trabajo pensar la vida como una obra de arte a<br />

partir de uma demanda ética, estética y política practicada em la publicidade<br />

des las relaciones de amistad y com las diferencias que son nuestras. Ese<br />

trabajo se justifica al darse cuenta de que el mundo no está listo y que otras<br />

posibildades de expasión de la vida em el cotidiano son inventadas y<br />

constestadas, teniendo em ele terreno de la vida social su fermento. De entre<br />

las muchas historias contadas que nos traman como nararadores de la vida fue<br />

posible hacer la crítica como cuidado epsitemológico y metológico, la<br />

especialización del pensamiento científico que fue tornándose hegemônico en<br />

las actitudes em los tiempos modernos. Se busco em esse trabajo comprender<br />

la creación de los sujeitos escolares com los discursos de los currículums e de<br />

la <strong>sexualidade</strong>, com las maneras de hab lar, narrar, escribir, juzgar, ver y<br />

transformar. Creo, a partir de las muchas indagaciones de este texto-basis, que<br />

hemos hecho la crítica de algunos pares de pensamento que tienem por<br />

objetivo positivar um lado y negativar el outro. Se busco convertir em problema<br />

La tolerância as las diferencias em esse estúdio como constrcción cultural.<br />

Esse trabajo se mueve em uma metodologia que busca em las redes de<br />

conocimientos y em las relaciones de amistad su apuesta política.<br />

Palabras-llave: currículum; <strong>sexualidade</strong>; cotidiano.<br />

VIII<br />

8


Lista de ilustrações.<br />

1. Amizade .............................................................................................................. 47<br />

2. Uso do boné ......................................................................................................... 48<br />

3. Anjos .................................................................................................................. 120<br />

4. Árvore da felicidade........................................................................................... 141<br />

5. Intervenções implicantes................................................................................... 144<br />

6. Desfile de 7 de setembro.................................................................................... 148<br />

7. Escola Estadual Emília Esteves Marques........................................................... 149<br />

8. Olhares............................................................................................................... 167<br />

9. Curiosidade........................................................................................................ 169<br />

10. Rebeldia e visibilidade....................................................................................... 171<br />

11. Usos da fila....................................................................................................... 174<br />

12. Praticando o lugar............................................................................................... 175<br />

13. Agenda............................................................................................................... 176<br />

14. Agenda............................................................................................................... 177<br />

15. Praticando o espaçotempo escolar................................................................ 178<br />

16. Artistagem....................................................................................................... 178<br />

17. Fluxos.............................................................................................................. 179<br />

18. Desavisados.................................................................................................... 179<br />

19. Dribles.............................................................................................................. 180<br />

20. Estilizando........................................................................................................ 181<br />

21. Permissão.......................................................................................................... 181<br />

22. Dispositivos morais.......................................................................................... 188<br />

23. Atravessamentos ............................................................................................ 189<br />

24. Cuidados com o corpo..................................................................................... 189<br />

25. Investimentos .................................................................................................. 206<br />

26. Quer ler um livro? ............................................................................................ 206<br />

27. Reuniões.......................................................................................................... 209<br />

28. Cinema na escola ........................................................................................... 211<br />

29. Em cartaz......................................................................................................... 212<br />

30. Um corpo.......................................................................................................... 217<br />

IX<br />

9


31. Mais um corpo.............................................................................................. 217<br />

32. Comunicações paralelas............................................................................... 219<br />

33. Certificando os protagonistas do PEAS........................................................ 226<br />

34. Mudanças ..................................................................................................... 228<br />

35. Coisas de meninas?...................................................................................... 230<br />

36. Sonhos e utopias............................................................................................. 232<br />

37. Não é só isso................................................................................................... 233<br />

38. Atravessamentos culturais............................................................................... 234<br />

39. O que vale num conversa................................................................................ 249<br />

40. Conselheiros.................................................................................................... 250<br />

X<br />

10


SUMÁRIO:<br />

SEXUALIDADE(S) E CURRÍCULO(S): PRÁTICAS COTIDIANAS QUE NOS<br />

ATRAVESSAM PRODUZINDO EXPERIÊNCIAS.<br />

1. Pensamentos provocativos e introdutórios: anunciando a pesquisa ................ 13<br />

1.1. A importância do outro em nossos temas e invenções de pesquisa ............. 34<br />

1.2. Sexualidade(s), biopolíticas e currículos: invenções e problematizações de<br />

saberes e fazeres cotidianos ................................................................................. 51<br />

2. Ressonâncias de muitos outros, potências e convites de pesquisa .................. 69<br />

2.1.Memórias galopantes: aproximações possíveis com o desejo do fazer<br />

pesquisar ............................................................................................................... 79<br />

2.2. Fios de conversas interrogativas que justificam o ato sempre aberto de<br />

pesquisar ............................................................................................................... 83<br />

2.3. Conversas que puxam conversas, que tecem e retecem redes de<br />

conhecimentos narrativos e nos aproximam dos diferentes sentidos que a vida<br />

com a pesquisa em seus fluxos pode ter .............................................................. 89<br />

2.4. Nas malhas narrativas de professores e professoras: um encontro<br />

provisório com a produção e deslocamentos dos efeitos de linguagens ............. 100<br />

3. Escolhas, anunciações e possibilidade de encontro com alguns narradores<br />

da escola ............................................................................................................. 110<br />

3.1. Lançando fios embolados de interesses: abrindo a conversa que puxa<br />

conversas ............................................................................................................ 112<br />

3.2. Anjos não têm sexo, mas quando tem: chamem o ortopedista ................... 120<br />

3.3. Brincando de pique: onde está o problema .................................................. 124<br />

3.4. Ninguém quer ser colocado como a bola da vez .......................................... 130<br />

3.5. Boca-de-forno... forno................................................................................... 133<br />

4. Problematizações em torno da produção do sujeito escolar ........................... 137<br />

4.1. Entre poli-valentes e emílias: uma escola? Muitas escolas .......................... 146<br />

4.2. Orientação do olhar na captura do outro ...................................................... 163<br />

4.3. Narrações inventivas de nós mesmos: em quem estamos nos tornando<br />

com tanta conversa? ........................................................................................... 183<br />

XI<br />

11


4.4. Não só de palavras fabrica-se o humano: é preciso muito mais .................. 193<br />

4.5. Eu e o outro como referência do mesmo ...................................................... 210<br />

5. Tempos e práticas embolados nas políticas de educação e nos Parâmetros<br />

Curriculares Nacionais: a <strong>sexualidade</strong> e a cidadania como campo de<br />

problematização e investimento educativo .......................................................... 217<br />

6. Entrelaçamento implicante e a incapacidade afetiva de concluir uma pesquisa<br />

..............................................................................................................................241<br />

6.1. Para não concluir...........................................................................................252<br />

7. Referências.............................................................. ......................................259<br />

8. Anexo 1. Conversas com narradores/praticantes da escola........................... 265<br />

8.1. Anexo 2. Autorização da escola....................................................................280<br />

XII<br />

12


SEXUALIDADE(S) E CURRÍCULO(S): PRÁTICAS COTIDIANAS QUE NOS<br />

ATRAVESSAM PRODUZINDO EXPERIÊNCIAS<br />

1- Pensamentos provocativos e introdutórios: anunciando a pesquisa<br />

13<br />

A <strong>sexualidade</strong> faz parte de nossa conduta. Ela faz parte da liberdade<br />

em nosso usufruto deste mundo. A <strong>sexualidade</strong> é algo que nós<br />

mesmos criamos – ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é<br />

descoberta de aspecto secreto de nossos desejos. Nós devemos<br />

compreender que, com nossos desejos, através deles, se instauram<br />

novas formas de relações, novas formas de amor e novas formas de<br />

criação. (FOUCAULT, apud GALLAGHER; WILSON, 1982)<br />

Este trabalho de pesquisa, que se desenha numa escrita polifônica, vai<br />

ao encontro do exercício de me experimentar, experimentando a estranheza e<br />

a liberdade do pensamento! Vivendo e praticando pequenas transgressões<br />

cotidianas, ou, achando que as praticava e também as transgredia nas<br />

relações estabelecidas com a <strong>sexualidade</strong> e com o uso que se faz do sexo, vou<br />

descobrindo ao me inquietar com as leituras de Foucault, experienciar um<br />

mundo inventado sobre os pilares de uma “Scientia sexualis” disciplinar. Essa<br />

“Scientia sexualis”, como ensina Foucault, não intenciona excluir, e sim<br />

identificar, normatizar e normalizar. Para seu feito e efeito, obsessivamente<br />

seus enunciadores [proprietários dos discursos e da vontade de verdade] se<br />

debruçam sobre uma idéia planificada de conhecimento, objetivando, no<br />

edifício de seu poder, controlar o sujeito do conhecimento em relação aos jogos<br />

de verdades que tanto lhes interessam como realidade representativa em seus<br />

esquemas de identificação e classificação.<br />

A <strong>sexualidade</strong> e o sexo, como estou compreendendo, atuam apenas<br />

como mais um dispositivo discursivo das muitas tecnologias de produção de<br />

subjetividades que foram e estão sendo tramadas entre técnicas de dominação<br />

[poder] e técnicas discursivas [saber], desenvolvidas nas atitudes de<br />

modernidade, visando ao controle do sujeito desses discursos em suas<br />

articulações com a população e com a vida. Aprendo com Foucault (1982) que<br />

precisamos reaprender e desejar o sexo não como uma fatalidade, mas como<br />

uma possibilidade de aceder a uma vida criativa. Nesse sentido, vou<br />

compreendendo que o sexo e a <strong>sexualidade</strong> podem potencializar novas formas<br />

relacionais de estar no mundo e com o outro, se não capturados for pelos


discursos e práticas de separação que instituem e normatizam um tipo de<br />

sujeito na circularidade de seus discursos e de suas práticas.<br />

Ainda que os estudos e trabalhos de Foucault anteriores aos anos 80 do<br />

século passado, tenham problematizado o uso do poder e do saber no edifício<br />

das instituições de separação [hospitais, presídios, escolas, indústrias e<br />

narrativas teóricas], sua preocupação sempre esteve atrelada com a<br />

emergência do sujeito por dentro dessas tecnologias inventadas e amarradas<br />

nas muitas atitudes da modernidade. É no projeto de estudo sobre a História da<br />

Sexualidade que Foucault, com outras lentes e interesses, cuidadosamente<br />

vasculha os escritos disponíveis da Antiguidade Ocidental e dos primeiros<br />

séculos da era cristã. Nesses estudos, considerando-os como saberes,<br />

discursos, práticas filosóficas, e não só, Foucault vai se deparando com o que<br />

sempre esteve lá: as diferentes e transfiguradas técnicas de produção de<br />

subjetividades do cuidado de si. Essas técnicas, ainda que ligadas a privilégios<br />

econômicos, políticos e sociais, por isso a relações de poder, conferiam um<br />

estatuto relacional e transversal do „eu‟ no cuidado de si com outro, diferente<br />

das representações que temos para pensar o sujeito da modernidade, em suas<br />

formas egocêntricas e individualizantes. Foucault (2004: p. 599) nos explica<br />

que “seria um erro crer que o cuidado de si foi uma invenção do pensamento<br />

filosófico e constitui um preceito próprio à vida filosófica. Era de fato um<br />

preceito de vida, de modo geral, altamente valorizado na Grécia!”.<br />

Com Foucault (2004: p.15) podemos saber que “o tema do cuidado de<br />

si, uma formulação precoce, por assim dizer, que aparece claramente desde os<br />

séculos V a.C. e até os séculos IV-V d.C. percorre toda a filosofia grega,<br />

helenística e romana, assim como na espiritualidade cristã”. O tema do cuidado<br />

de si, ou as técnicas de existência na produção de subjetividades, começam a<br />

se configurar no trabalho de Foucault com outras pontuações a partir desta<br />

referência de estudos com a antiguidade. A partir desse momento, em seus<br />

trabalhos começa a aparecer um sujeito, não mais isolado e constituído por<br />

tecnologias de poder e saber, mas constituindo-se também através de práticas<br />

regradas, do sujeito consigo. Gros (2004: p.552) afirma que “o sujeito<br />

encontrado no cuidado [...] é um cidadão do mundo. O cuidado de si é, pois um<br />

14


princípio regulador da atividade, de nossa relação com o mundo e com o<br />

outro”.<br />

Constituído e me constituindo pelos saberes da modernidade e supondo<br />

não haver espaços vazios para outras maneiras de pensar e agir sobre o<br />

sujeito da vontade de verdade, durante certo tempo [grande parte de minha<br />

vida] correspondi aos desejos e as objetivações de suas projeções teóricas<br />

entre suas práticas discursivas e instituições de separação. Almejava<br />

encontrar, no âmago desses saberes institucionais, a força de uma verdade<br />

única sobre a identidade do sexo. Não buscava uma identidade qualquer para<br />

esse sujeito, mas uma identidade que pensava poder, com sua força nos<br />

discursos da <strong>sexualidade</strong>, nos libertar e/ou me libertar das representações<br />

binárias reducionistas que nos fizeram e me fizeram acreditar durante certo<br />

tempo como realidade aprisionável em esquemas científicos. Nessa busca pela<br />

verdade racionalizada do eu, reduzia meus movimentos e as condições<br />

possíveis, ainda não criadas da experiência do cuidado de si e com o outro e<br />

de me ter como cidadão do mundo.<br />

A racionalidade que buscava encontrar para pensar a identidade do<br />

sujeito de uma forma de <strong>sexualidade</strong> me indicava um „caminho de investigação‟<br />

que eliminava a complexidade dos saberes e das práticas que teceram esses<br />

discursos de separação moral sócio-histórica, reprimindo as paixões e desejos<br />

que afirmam a vida. Nesse movimento que se retroalimentava de<br />

discursividades racionalizadas, aproximava-me cada vez mais do imperativo<br />

adotado por Sócrates do conhece-te a ti mesmo (o que sou) e me distanciava<br />

do cuidado de si (em que estou me tornando nas relações políticas, comigo,<br />

com o outro e com o mundo).<br />

Em busca de uma essência para uma identidade sexual e para o sujeito<br />

de uma forma de <strong>sexualidade</strong>, caminhava na requalificação das forças<br />

objetivas do momento cartesiano [penso, logo existo], imprimindo, a partir de<br />

algumas narrativas disponíveis, a certeza de que somente o conhecimento<br />

fincado numa certa racionalidade científica nos libertaria das forças opressoras<br />

e nos aproximaria da verdade. Segundo Foucault (2004: p. 22): “a história da<br />

15


verdade entrou no seu período moderno no dia em que admitimos que o que<br />

dá acesso à verdade, às condições segundo as quais o sujeito pode ter acesso<br />

à verdade, é o conhecimento e tão-somente o conhecimento”.<br />

Sem questionar, a princípio, as armadilhas desses conhecimentos,<br />

dessa racionalidade [Sum ergo cogito: cogito, ergo sum 1 ], mas sentindo seus<br />

efeitos disciplinadores, fui sendo enquadrado e me enquadrei numa pretensa<br />

normatividade e num sistema de verdade que se organiza numa perspectiva<br />

binária do isso ou aquilo. Contribuía também para isso ao qualificar<br />

demasiadamente essa vontade de saber. Ainda que buscando uma verdade<br />

para a satisfação de minhas curiosidades, ia me deparando com o desconforto<br />

das respostas moralmente produzidas e, nesse desconforto, percebia a<br />

existência de fronteiras que dificultavam experiências com os processos de<br />

criação, com o outro e com o mundo. Enquadrava-me nesses discursos<br />

disciplinares e escapava aos seus ditames quando sentia os limites impostos<br />

em suas explicações, especulações e possibilidades. Escapava por não me<br />

conformar com lugares em que algumas pessoas eram colocadas/<br />

trancafiadas/identificadas/nomeadas, ao viverem de forma diferente de alguns<br />

suas experiências sexuais e a <strong>sexualidade</strong>.<br />

Sou filho das muitas atitudes de identificação da modernidade, mas não<br />

só, pois outros saberes menores e desqualificados coabitam em meu corpo.<br />

Com Nietzsche (2003, p.49) aprendo que “o nosso corpo não é senão uma<br />

coletividade de muitas almas”. Por mais que as atitudes de modernidade<br />

tenham-se esforçado para produzir um sujeito de certo tipo, traçando-o a partir<br />

de uma certa racionalidade/ cientificidade, “os saberes menores, intensidades<br />

micropolíticas, multiplicidade dispersa”, como nos diria Barros (2000: p.33), não<br />

deixaram de se mover, de existir, resistir e criar outras tantas formas de<br />

processos de subjetividades por dentro desse paradigma. Barros e Oliveira<br />

(2009) compreendem que são das relações que estabelecemos com esses<br />

processos, como vontade de potência, que se “dão a produção do sujeito e a<br />

constituição de outros estratos de vida”. Inebriados por uma racionalidade que<br />

1 Expressão latina que significa: “existo, logo penso: penso, logo êxito”, desenvolvimento por René<br />

Descartes, filósofo e matemático francês.<br />

16


despreza as dispersividades das multiplicidades que são políticas, o que não<br />

tínhamos/temos, eram/são olhos de ver e ouvidos de ouvir o que de menor e<br />

de múltiplo nos habita e constituem uma vida. Cantávamos e desejávamos<br />

fortificar a condição de sujeito, rezando as ladainhas morais que nos ensinaram<br />

ao longo de muitos séculos.<br />

Os conhecimentos com os quais podia contar buscando uma validade<br />

científica para pensar o sexo e a <strong>sexualidade</strong> como força de libertação e de<br />

experiência não se apresentavam definitivos no crescente de minhas<br />

indagações com alguns discursos racionalizados [muitos deles do campo da<br />

psicologia]. Nessas insatisfações que se abriam em experiências de<br />

aprendizagens sempre incompletas com o outro e comigo, me deparava com<br />

os limites das repostas e acertividades disponíveis nesses campos de<br />

conhecimentos racionalizados e me colocava novamente a caminho, a meio<br />

caminho, em outros caminhos, seduzido pela experiência de caminhante.<br />

Aprendo com Barros (2000, p.34) que a experiência do caminhante que se<br />

deixa tocar pelo desconhecido “faz crescer o desconhecimento como parte do<br />

conhecer”<br />

Percebia sem saber, mas sentindo, que as repercussões desses<br />

discursos e dessas práticas de separação produziam limites em minha<br />

presença com o mundo e com o outro, mas, nem por isso eliminava a potência<br />

da experiência. Com os limites dessas discursividades e com os meus limites<br />

para produzir e criar um campo potencial de possíveis na experiência com o<br />

outro, me experimentava. Nesse querer experimentar, tendo meu corpo e os<br />

meus desejos como força, não posso negar que também, a meio caminho,<br />

aconteceram enquadramentos, identificações e, por vezes, algumas<br />

transgressões com os discursos e práticas de separação.<br />

Nesses caminhos, andei por terras instituídas que me davam/doavam a<br />

palavra dos procedimentos de representação dos discursos de verdade que<br />

estamos habituados a ouvir, dizer, escrever, ler e, por terras instituintes que me<br />

permitiam/permitem problematizar o uso da palavra que é de todos na<br />

construção de outro mundo, implicado, que estou e estamos cada um a seu<br />

17


modo, político e socialmente com a construção desse mundo. Nietzsche<br />

(2006, p.169) talvez, nesse momento, nos dissesse como provocação: “Há<br />

ainda outro mundo a descobrir – e mais de um!”. Lourau (2004, p. 47) ainda<br />

assevera que “Por instituinte entenderemos, ao mesmo tempo, a contestação,<br />

a capacidade de inovação e, em geral, a prática política como significante da<br />

prática social”.<br />

Hess (2004, p.31) valendo-se de Prost para dizer da importância da<br />

experiência instituinte de René Lorau, sociólogo e analista institucional francês,<br />

diz que “A criação do mundo não teve lugar no começo, tem lugar todos os<br />

dias”. Proust, assim como Foucault, me ensina que, enquanto estamos presos<br />

à ideia de começo, de origem, de uma verdade, de uma identidade, vamos<br />

esquecendo, pois não faltaram esforços para nos fazer esquecer que a vida<br />

tem seu início todos os dias em nossa prática social e política com outro e com<br />

o mundo.<br />

Vivendo a vida de todos os dias e sentindo-a naquilo que me tocava,<br />

enquadrava-me e era enquadrado a meio caminho nas projeções discursivas<br />

que anseiam pela normalização e normatização e que não para de inventar<br />

novas formas de controle. Experimentando-me com o outro como campo de<br />

potência, transgredia algumas normas morais na estilização de uma vida<br />

criativa, não codificada, atualizável nos encontros com as possibilidades que<br />

processam modos de subjetividades e que dinamizam a arte da vida. Esses<br />

encontros, que pareciam mais desencontros, produziam reviravoltas no<br />

conhecimento que se pretende único, num embate permanente com a „fixidez‟<br />

do eu. Essas reviravoltas, encontros e, por ora, desencontros, vão se tecendo e<br />

formando tramas a partir de fios dos muitos pensamentos e de muitas práticas<br />

que foram se entrelaçando nas relações instituintes e instituídas estabelecidas<br />

com o outro, nos muitos jogos de afeto, desejo, prazer, com saberes da<br />

erudição e com os saberes desqualificados pelas atitudes da modernidade.<br />

Esses sentimentos, sensações e saberes que passam pela imanência<br />

do sujeito, num campo de luta permanente com as dobras do eu, não se<br />

deixam capturar tão facilmente pelos domínios dos conhecimentos eruditos ou<br />

18


das ciências clássicas, por serem fugidios, atualizáveis e por se constituírem<br />

com outras lógicas que escapam a um “regime de verdade”. Enfim, transgredia<br />

com os saberes empíricos não conceituais e desqualificados pelas „ciências<br />

tendenciosamente totalizadoras‟, mas essas transgressões, por mais que<br />

buscassem outras possibilidades de compreensão, retornavam como força<br />

movente ao campo da identidade [Qual é a verdade do meu eu? O que preciso<br />

fazer para conhecer essa verdade? Que catálogos discursivos preciso então<br />

acionar/praticar para ter acesso à verdade? Que conhecimentos científicos<br />

serão necessários para atingir a apropriação dessa verdade? De posse dela, o<br />

que farei?]<br />

Insistentemente achava que precisava conhecer-me de „forma<br />

consciente‟, como o camelo das histórias de Zaratustra‟, para libertar-me de<br />

minhas ignorâncias em relação ao fardo das histórias contadas ao eu. Não<br />

poderia ser muito diferente dessa forma previsível de se pensar e querer o<br />

sujeito como individualidade liberta e força vivente autônoma, uma vez que<br />

historicamente “Dois enunciados, articulados entre si, explicam, a noção de<br />

liberdade: tomada de consciência e algo que cada um possui individualmente”<br />

(Barros: 2009). Minha busca pela identidade e pela verdade dessa identidade<br />

torna-se consciente do peso da bagagem carregada pelo animal de carga<br />

[camelo] “que traz em si todo valor que foi criado e no reconhecimento como<br />

dever que todo valor criado sou eu” (Nietzsche: 2000, p.52). Na condição de<br />

animal de carga, ansiando por se livrar do peso dessa carga como dever e<br />

obrigação de manutenção de seus valores, o sujeito das histórias de Zaratustra<br />

experimenta no exercício de sua liberdade a metamorfose de camelo em leão.<br />

Essa metamorfose como força subjetiva não se dá como força redentora de<br />

uma liberdade definida numa forma cristalizada de sujeito, mas como potência<br />

e risco da caça do leão em “criar para si a liberdade de novas criações”. (Idem)<br />

Parece que, se experimentando na pujança de um leão, na conquista do<br />

direito de criar novos valores, o personagem Sócrates, vivendo a ambiguidade<br />

da condição de camelo e de leão, estabelece para si e para o outro uma<br />

relação de causalidade entre o cuidado de si e conhecimento de si. Nesse<br />

encontro socrático, o conhecimento de si, sobrepõe ao cuidado de si, uma vez<br />

19


que acredita ser preciso cuidar de si porque se é ignorante, responder a<br />

ignorância, ou por um fim a ela. (FOUCAULT, 2004, p.309) Nesse<br />

esquema/exercício socrático da falta e da carência do conhecimento, só se é<br />

possível a prática da liberdade e do cuidado de si, quando se conhece a si<br />

mesmo.<br />

Ao refletir acerca das transgressões como forma de criação de outras<br />

experiências ainda não instituídas, posso compreender nesse momento que<br />

não experimentava o que considerava a arte das transgressões de um lugar<br />

inaugural, de um lugar vazio. Trazia, em meus movimentos arteiros com a vida,<br />

o camelo como dever, e o leão como liberdade. As possibilidades de<br />

transgressões estavam colocadas na condição de leão nas realidades que me<br />

eram disponíveis, no campo dos possíveis onde me construo como sujeito de<br />

história, produzindo inquietações e sentidos para minha existência. Só não me<br />

era possível sozinho, dizer sim, “como criança em seu sagrado ato de dizer<br />

sim” e sair dos limites de algumas discursividades, para sentir como nos ensina<br />

Prost, citado por Lourau (2004), “que a vida tem seu início todos os dias”.<br />

Essas transgressões, esquecimentos ou, novo começo, como nos diria<br />

Nietzsche (2000: p. 53), produziam movimentos atualizantes no que me é<br />

próximo, [meu corpo] eclipsando discursos e práticas [linguagem] que não<br />

entendia, mas que me chegavam em meias palavras, gestos e olhares dos<br />

muitos combates dos jogos de verdades que perpassam os jogos de<br />

representações e que precisam ser mantidos sobre tutela, vigiados, para que eles<br />

não contassem uma outra história e muito menos, revelassem seus segredos<br />

menores. Marcas de outros discursos e práticas abriam o caminho da<br />

experiência da amizade e apontavam possibilidades de outros devires para a<br />

existência, singularizando-se em forças políticas dos acontecimentos<br />

cotidianos. Essas transgressões, novos começos, esquecimentos, resistências,<br />

rupturas, escapes, se atualizavam permanentemente no campo dos possíveis<br />

que criamos e que também são criados todos os dias. A idéia de transgressão<br />

e de exercício de liberdade que imprimo nesse texto tem por suporte o desejo<br />

de ultrapassar as normas, reconhecendo-as de certa forma. As normas e os<br />

engessamentos dos sujeitos dessa moral serão sempre o ponto de partida para<br />

20


nossas metamorfoses. A ideia de exercício de liberdade joga sem poder<br />

capturar a multiplicidade de possíveis e as normas são uma tentativa de<br />

engessá-los e de contê-los. A liberdade não seria negar as normas, a liberdade<br />

precede as normas.<br />

Essas produções/criações/transgressões, exercício de liberdade não se<br />

explicam com a objetividade de algumas palavras e com o consentimento de<br />

algumas práticas com seus jogos de verdades. Não se explica esse encontro<br />

com a criação, com a <strong>sexualidade</strong>, com as transgressões dessa experiência.<br />

Nessas relações, só nos é permitido sentir, enredados que estamos pelos<br />

múltiplos fios que produzem um acontecimento que não nos pertence, que não<br />

tem estrutura, muito menos forma, não tem início e nem fim.<br />

Por acontecimento Foucault (2003, p.339) diz ser a ruptura das<br />

“evidências sobre as quais se apóiam nosso saber, nossos consentimentos,<br />

nossas práticas”. Nesse encaminhamento vou compreendendo que a idéia de<br />

acontecimento pode nos servir como uma ferramenta de problematização da<br />

vida e de nossa presença no mundo, na medida em que nos permite<br />

“reencontrar as conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de<br />

força, as estratégias etc., que, em um dado momento, formaram o que em<br />

seguida, funcionará como evidência, universalidade, necessidade”. (Idem)<br />

Trabalhar com a noção de „acontecimentos‟, pode nos ajudar a<br />

desconstruir a naturalização e engessamento da vida e das práticas sociais<br />

que produziram e produzem certos regimes de verdade e que, para sua<br />

manutenção, desqualificam tantos outros. Investir nos acontecimentos como<br />

marca política pode nos apontar caminhos de problematizações, deslocando<br />

evidências, no sentido limitante que se tentou imprimir com o uso que se faz<br />

das ciências, justificando dessa forma à barbárie que desqualifica o homem<br />

comum, reduzindo-o a uma tendência de história estrutural, factual, mecânica,<br />

contínua e desacontecimentalizada. Sobre a desacontecimentalização da<br />

história, Foucault (2003: p. 341) nos fala que “Há muito tempo que os<br />

historiadores não gostam muito dos acontecimentos, e fazem da<br />

desacontecimentalização o princípio da inteligibilidade histórica”.<br />

21


Estou entendendo que perseguir esses acontecimentos como<br />

insurgência de forças que foram colonizadas, institucionalizadas, apagadas,<br />

trancafiadas ou esquecidas, pode nos ajudar a subverter alguns códigos de<br />

condutas disciplinares e de controle, colocadas sob a forma do pensamento<br />

único e produzir o sentido de alerta político em nossas vidas. Foucault nos fala<br />

que durante seu trabalho, não teve a pretensão de subverter todos os códigos,<br />

muito menos de produzir anestesia em seus interlocutores. Seu projeto de<br />

trabalho como acontecimento esteve intimamente ligado ao devir humano,<br />

tendo na sensibilidade uma constância que o encorajava. Sua pretensão,<br />

enquanto programa vazio, era fazer a crítica de certos discursos como<br />

instrumento de luta, resistência e como prática de liberdade. Penso que ao<br />

fazer a crítica política, Foucault se aproximava cada vez mais de seu problema<br />

de pesquisa.<br />

Segundo Foucault (2003, p. 347), as problematizações de suas<br />

pesquisas sempre estiveram enlaçadas à crítica de “como os homens se<br />

governam [...] através da produção de verdade”. Seu projeto político de vida<br />

não apontava para o lugar dos mártires da história, muito menos para as<br />

grandes revoluções. Seu trabalho assumia o sentido político de aposta na<br />

diferença, “onde juntamente com muitos outros”, pudessem produzir o<br />

estranhamento de alguns alicerces do pensamento que se esforça em ser<br />

unanimidade, de modo que “certas frases não possam mais ser ditas tão<br />

facilmente, ou que certos gestos não mais sejam feitos sem, pelo menos,<br />

alguma hesitação: contribuir para que algumas coisas mudem nos modos de<br />

perceber e nas maneiras de fazer”.<br />

Este é o convite de Foucault, o de estranhar e exercitar a nossa<br />

liberdade! Foucault, assim como Nietzsche, compreende que liberdade não é<br />

fazer o que quero, autonomia absoluta, e sim, não deixar que os outros façam<br />

comigo o que eles querem. O convite de Nietzsche e de Foucault nos provoca<br />

a estranhar pensamentos, modos de ser, de fazer, de ver, de narrar etc.<br />

Precisamos cada vez mais estranhar a ordem das coisas, os lugares em que a<br />

multiplicidade fora trancafiada em saberes forçosamente assujeitados, investir<br />

22


em outras formas de lutas e de elaborar perguntas com os conceitos que<br />

dispomos e ultrapassar seus sentidos.<br />

O que seria o tempo presente? Que tempo é esse que se abre a tantas<br />

interrogações e que de certa forma nos incomoda, uma vez que não aponta<br />

para um futuro promissor das metanarrativas, traçado pelos desejos das<br />

continuidades, positividade e pela desacometantalização da história. Sousa<br />

Dias (1995), na perspectiva do acontecimento, nos diz que, passado e futuro,<br />

“tende a cindir num tempo cósmico (Cronos e Aiôn) como unidade de um todo”.<br />

A perspectiva adotada no cuidado de si, no que diz respeito ao tempo, ou, o<br />

que conhecemos como porvir é um pensamento desqualificado pela filosofia<br />

antiga. Foucault (2004, p.563) nos indica que para os gregos da antiguidade “o<br />

que se tem diante dos olhos não é o porvir, mas o passado, de sorte que é de<br />

costas que se entra no porvir”<br />

Só podemos compreender o presente e outras possibilidades de<br />

existência se nos interessarmos por outras perspectivas de pensamentos e<br />

outros modos de vida, compreendendo também que o presente nos toca muito<br />

rapidamente. Vou compreendendo com a ajuda de Foucault, que estando de<br />

costa, na ordem do presente, poderemos entender as lutas travadas no campo<br />

dos saberes baixos, saberes das pessoas comuns, por isso, sem unanimidade,<br />

mas que nem por isso é menos importante numa estética de existência e para<br />

o exercício de uma vida criativa.<br />

Busco, nos rastros de Foucault, a compreensão de conteúdos “históricos<br />

sepultados, mascarados em coerências funcionais” e que nos permitem fazer a<br />

crítica sobre os discursos que se produzem em meio às lutas no campo do<br />

currículo e da <strong>sexualidade</strong>. Esses conteúdos históricos estão sendo pensados<br />

e enredados com os diferentes campos de saberes que se organizam em<br />

séries, nas práticas educativas no interior da escola. Segundo Foucault (2005,<br />

p. 11), apenas os conteúdos históricos, os saberes que foram sujeitados,<br />

desqualificados, que lutam pela não unanimidade pode nos contar outra<br />

história e com ela podemos deixar reaparecer o cuidado de si, como prática e<br />

política de vida. Por saberes sujeitados, Foucault (op, cit,) entende ser:<br />

23


24<br />

toda uma série de saberes que estavam desqualificados como<br />

saberes não conceituais, como saberes insuficientemente<br />

elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores,<br />

saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade<br />

requeridos.<br />

As pistas lançadas por Foucault sobre a força dos saberes sujeitados<br />

[das pessoas que foram identificadas e catalogadas nas instituições de<br />

separação] me ajudam a problematizar alguns limites na construção da ideia de<br />

tempos modernos e das ciências modernas como racionalidade única. Ainda<br />

que os saberes sem unanimidade, “das pessoas, local, regional, particular,<br />

diferencial”, tenham sido forçosamente abafados pelas atitudes de<br />

modernidade, eles nunca deixaram de existir e de reaparecer nas relações<br />

entre as pessoas, produzindo formas de vida e formas de estar no mundo<br />

como presença atualizante e como força política. Nesse encaminhamento<br />

apontado por Foucault (2005), vou compreendendo que as ciências modernas<br />

não se constituem de um lugar pacífico e unitário como parece ser. As ciências<br />

modernas se constituem e se constituíram em conjuntos de práticas diferentes,<br />

que se interligam a fios diferentes, fios outros, fios soltos, produzindo efeitos de<br />

realidades também diferentes. Essa história desacontecimentalizada não<br />

capturou todos e tudo, longe disso!<br />

Movimentos socioculturais insurgentes ligados à raça, à religião, à etnia,<br />

ao gênero, à terra, ao trabalho, à nacionalidade, à <strong>sexualidade</strong> e muitos outros<br />

não cessam resistentemente no exercício de sua liberdade de brotar e de<br />

abalar o pretenso sentido de universalidade e de ordem. A modernidade não<br />

representou e não representa a união de todas as formas de ser e estar no<br />

mundo, de ver, sentir e desejar um mundo outro. Esse mundo, fabricado por<br />

homens, linguagens e imagens, se desponta num campo desejante com forças<br />

nascedouras dos possíveis e com as possibilidades de mudanças. A<br />

modernidade se mantém entre muitas lutas, disputas, jogos de poder e cada<br />

vez mais, com os movimentos que nascem da multidão como forma de<br />

contestação à formatação desse mundo, que sempre nos pareceu estar aí. Faz<br />

se necessário “Acontecimentalizar conjuntos singulares de saberes, de<br />

práticas, de desejos, de modos de estar sendo para fazê-los aparecer como<br />

regimes diferentes de jurisdição e de veredicto”. (FOUCAULT: 2003, p.343).


Reascender práticas e saberes desqualificados pelos caprichos, ilusão e<br />

miopia de um paradigma, como poeticamente fala Drummond (1987), valorar<br />

essas práticas e saberes como possibilidades de criação, dos lugares que<br />

somos tocados ao estranharmos o que sempre nos pareceu estar aí, com as<br />

lentes de compreensão de que dispomos, me parece ser o convite como<br />

prática de liberdade, perseguido por Nietzsche e Foucault. Barros (2009) atenta<br />

a política da liberdade, enfatiza que “Nossa liberdade se encontra não em<br />

nossa natureza transcendental, mas em nossa capacidade de contestar e<br />

mudar aquelas práticas que constituem nossa natureza”. Esse exercício de<br />

estranhamento de regras que antecedem a prática de liberdade da experiência<br />

subjetiva se processa sem forma, ao caminharmos nos lugares cotidianos que<br />

nos são próximos e íntimos. Caminhar alerta por esses lugares da vida<br />

cotidiana, valorar os negligenciados, o abandono dos saberes baixos, indo<br />

além do já dado, para, quem sabe, a partir de atitudes singulares, do saber<br />

diferencial, incapaz de unanimidade, desfazer o jogo que se instaurou sobre a<br />

produção do desejo de verdade, no qual, muitos denominaram tempos<br />

modernos.<br />

25<br />

VERDADE<br />

Carlos Drummond de Andrade<br />

A porta da verdade estava aberta,<br />

mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.<br />

Assim não era possível atingir toda a verdade,<br />

porque a meia pessoa que entrava<br />

só trazia o perfil de meia verdade.<br />

E sua segunda metade<br />

voltava igualmente com meio perfil.<br />

E os meios perfis não coincidiam.<br />

Arrebataram a porta. Derrubaram a porta.<br />

Chegaram no lugar luminoso<br />

onde a verdade esplendia seus fogos.<br />

Era dividida em metades<br />

diferentes uma da outra.<br />

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.<br />

Nenhuma das duas era totalmente bela.<br />

E carecia optar.<br />

Cada um optou conforme seu capricho,<br />

sua ilusão, sua miopia.<br />

Foucault (2005a, p.341) em seu texto, „O que são as luzes‟ apresenta<br />

um esboço do que historicamente se convencionou chamar por modernidade.


Tradicionalmente podemos pensar a modernidade “como um conjunto de<br />

traços característicos de uma época, no qual seria precedida de uma pré-<br />

modernidade, mais ou menos ingênua ou arcaica, e seguida de uma<br />

enigmática e inquietante pós-modernidade”. Não é desse lugar binário, que<br />

marca um antes e um depois, um dentro e um fora, que fixa um tempo histórico<br />

[pré-modernidade ou pós-modernidade] e que busca a tão desejada<br />

tranqüilidade, como forma de consciência sem qualquer duvida possível que se<br />

movimenta o pensamento de Foucault. Apostando nas contingências e nas<br />

lutas, Foucault (idem) encara a modernidade como atitude, e:<br />

Por atitude, quero dizer um modo de relação que concerne à<br />

atualidade: uma escolha voluntária que é feita por alguns: enfim: uma<br />

maneira de pensar e sentir, uma maneira também de agir e de se<br />

conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca pertinência e se apresenta<br />

como uma tarefa.<br />

Ainda que as atitudes de modernidade ou o conjunto disperso de<br />

práticas possa ter sido uma atitude, tarefa, momento de crise e de conflitos,<br />

ainda que possa ser situada em uma data, não podemos negar que sua<br />

produção se ergue numa perspectiva eurocêntrica do desejo pela soberania de<br />

conquista. Essa perspectiva, esse projeto, entrelaçando-se a uma lógica<br />

espacial e temporal, em nome de uma perseguida racionalidade colonizadora e<br />

desacontecimentalizada, justifica práticas e atitudes de poderes que esmagam<br />

o discordante, cria o incivilizado, nega a outreidade em nome da mesmidade,<br />

escraviza o outro, produz epistemicídios e genocídios. Mas, o outro, o<br />

discordante, que produz insistentemente resistência ao princípio da<br />

unanimidade, é posto e tido como referência para as diferentes tentativas de<br />

captura e controle. Hardt e Negri (2005, p.88) pensando sobre o conceito<br />

dominante de soberania e modernidade, falam que:<br />

26<br />

A soberania moderna é um conceito europeu, no sentido de que se<br />

desenvolveu basicamente na Europa em coordenação com a<br />

evolução da própria modernidade. [...] Apesar de a soberania<br />

moderna ter emanado da Europa, ela nasceu e se desenvolveu em<br />

grande parte por intermédio das relações da Europa com o exterior,<br />

e particularmente por intermédio do seu projeto colonial e da<br />

resistência do colonizado.


Produzindo conflitos e crises dentro e fora da Europa, num cenário<br />

cambiante de mudanças políticas, econômicas, nas artes, na filosofia, na<br />

teologia, etc, a radicalidade desse projeto vai-se justificando e fortalecendo-se<br />

por dentro de seu território, instaurando, pelo menos em alguns, uma lógica<br />

binária de conceitualização do homem europeu como o centro da ordem, dono<br />

da vida, criando hierarquias que justificassem a superioridade dessas práticas<br />

e discursos. Tendo a modernidade como uma atitude de soberania, vamos<br />

percebendo que seus esforços contribuíram para a produção de um paradigma,<br />

que vai permitindo e deixando como herança a tentativa de controle e<br />

dominação sobre muitos homens. O homem, como mesmidade, passa a ser o<br />

objeto de perseguição desse projeto e diferentes áreas do saber disciplinar<br />

(teologia, psiquiatria, psicologia, pedagogia, geografia, estatística, medicina,<br />

etc.) vai-se aproximando desse projeto cultural, expansionista, econômico e<br />

bélico, como mais uma das tantas investidas de captura do outro. Nesse<br />

sentido “Corpos e cérebros foram transformados e por outras vias, continuam<br />

em transformações”. (idem, 2005, p.92).<br />

Esse modelo de ciência estava e ainda está preocupada com a essência<br />

que as coisas podem ter e com a crença inabalável de desvendar a origem de<br />

todas as coisas. Vou compreendendo que para essa atitude se legitimar, foi<br />

preciso, como tarefa, inventar outra marca representacional para se pensar o<br />

tempo, o espaço e o humano. O tempo cósmico, que cinde Cronos e Aiôn, vai<br />

sendo recortado por um antes e um depois. O espaço também não mais<br />

poderá ser o mesmo. Para a legitimação desse paradigma e da soberania<br />

europeia, vai-se tendo a necessidade da geometrização do espaço, da criação<br />

de fronteiras, da imposição de limites, produzindo o interior e o exterior, os que<br />

ficam dentro e os que ficam fora. Essa atitude contribuiu para que alguns<br />

herdassem:<br />

27<br />

[...] uma consciência dualista, uma visão hierárquica da sociedade,<br />

uma idéia metafísica de ciência; mas passaram adiante, para as<br />

gerações futuras, uma idéia experimental de ciência, uma concepção<br />

constituinte de história e de cidades e propuseram o ser como<br />

terreno imanente de conhecimento e ação. (idem, p.89)


Essa herança, ou, essa forma de racionalidade que se esforça por<br />

manter herméticas as transformações, ultrapassa os limites do tempo e de<br />

muitas fronteiras territoriais, mantendo de forma explicita ou velada a<br />

continuidade de muitas práticas de guerras, carregadas de juízos de valores,<br />

de preceitos, preconceitos e estereótipos. Herdeiros de um poder soberano<br />

sobre a produção da vida e da morte, pelo céu, terra, mar e no ciberespaço,<br />

continuam inventando e (des)inventando pátrias, patrializando e<br />

(des)patrializando, racializando e (des) racializando, sexualizando e<br />

(des)sexualizando. Essa herança dualista, colonizadora, carregada de<br />

representações binárias, se enlaça nas práticas de guerra e de paz, de<br />

inclusão e exclusão.<br />

Skliar (2003, p. 52), aproximando de algumas questões colocadas por<br />

Habermas, Foucault, Bauman e Lyotarde, para pensar a modernidade, tece<br />

questões que complementam algumas das conceitualizações já anunciadas<br />

nesse texto. Nesse sentido, Skliar (idem) pensa a modernidade como<br />

“experiência consciente de si mesma” e imprime um sentido muito próximo da<br />

idéia de “atitude e tarefa”, defendida por Foucault. Segundo ele, “é possível<br />

considerar a modernidade como uma experiência que se torna consciente de si<br />

mesma, ou uma vontade de existir em relação a uma necessidade ou um<br />

esforço para definir e classificar absolutamente todas as coisas”.<br />

Com todas as tentativas de fixidez para um tempo e para um espaço da<br />

ordem, insistentemente propondo o ser como terreno imanente de<br />

conhecimento e da ação, numa tentativa obsessiva de transformar o outro no<br />

mesmo, ficaram fissuras que não conseguiram trancafiar modos-formas de<br />

subjetividades não pensadas. Esse fracasso vai se dando mediante as<br />

diferentes formas de resistências e de práticas de liberdade (cuidado de si)<br />

produzidas cotidianamente nas relações com os jogos de poder e com o outro.<br />

Essas resistências, práticas de liberdade, que acontecimentalizam outros<br />

devires instituintes, se configuram sem forma e sem medida por dentro das<br />

relações de poder que estão postas no campo dos possíveis, redesenhando<br />

linhas de fugas potenciais. O outro e o mesmo, com todo seu mistério, nunca<br />

são o que pensávamos que fossem. Podem ser e vir a ser, sempre outro. De<br />

28


acordo com Foucault (2004), para que essas práticas de liberdade,<br />

transgressões e resistência se efetivem como possível, faz se necessário o uso<br />

e exercício de uma ética que utiliza o prescrito de uma forma inventiva,<br />

impedindo a formatação do real a partir de um padrão de medida. Entretanto, o<br />

cuidado de si não se separa do cuidado com o outro. O cuidado de si, que se<br />

desdobra na abertura à diferença, no qual esse si não pode ser um dentro<br />

impermeável ao fora, nas dobras do eu e do outro sempre em movimento.<br />

As ciências ditas modernas banalizaram as subjetividades, as dobras do<br />

eu em sua processualidade, por não conseguirem hierarquicamente classificar<br />

o que nos humananiza, campos de imanências, tramas de muitos tempos, de<br />

muitos lugares das muitas histórias e dos muitos combates. Machado (1999)<br />

faz um convite para pensar o campo das subjetividades contemporâneas de<br />

um lugar histórico, diferente da perspectiva intimista adotada por alguns, que<br />

reduzem a subjetividade ao campo do privado. A autora realça em sua análise,<br />

que o campo do privado vem sendo cada vez mais valorado, mas, não constitui<br />

“a única possibilidade de forma para a subjetividade” e, nos propõe pensar a<br />

subjetividade aos “modos de subjetivação e formas-subjetividade enquanto<br />

aspectos presentes na constituição da subjetividade”. Para ela:<br />

29<br />

Os modos de subjetivação referem-se à própria força das<br />

transformações, ao devir, ao intempestivo, aos processos de<br />

dissolução das formas dadas e cristalizadas, uma espécie de<br />

movimento instituinte que, ao se instituir, ao configurar um território,<br />

assumiria uma dada forma-subjetividade. Os modos de subjetivação<br />

também são históricos, contudo, têm para com a história uma<br />

relação de processualidade e por isso não cessam de engendrar<br />

outras formas. (MACHADO,1999, p. 212)<br />

Sinto que as tentativas de formatação do homem-desejante, homem-<br />

forma, pela atitude de fixidez da modernidade, no que diz respeito à sua<br />

procura pela história desacomentalizada, fracassaram. Somos tocados por<br />

forças desejantes em movimento, permeados pelo o que nos é interior<br />

(desejos, ainda que de unidade) e pelo exterior (nossa multiplicidade). Essas<br />

forças, produzindo acontecimentos, redesenham em sua processualidade<br />

alguns territórios e desterritorializam tantos outros. Não somos uma imprecisão<br />

constante. Assumimos modos de subjetividades e em alguns momentos,<br />

podemos assumir formas padronizadas, pois, nem tudo que nos atravessa


produz experiência, como nos diria Larrosa (2004). Mas, o que nos atravessa,<br />

na perspectiva do pensamento de Machado (1999) posiciona-nos numa<br />

processualidade aberta com formações subjetivas sempre provisórias.<br />

Machado ( idem, p. 214) sinaliza que, na contemporaneidade, vamos tendo o<br />

tempo achatado e o espaço reduzido, pois estamos sendo “atravessados por<br />

toda uma complexa teia de aspectos desejantes, políticos, econômicos,<br />

científicos, tecnológicos, familiares, culturais, afetivos, televisivos [...].”<br />

O homem-desejante, processualidade aberta que não se captura em<br />

categorias fixas, assume formas e modos marcados por emergências sempre<br />

epocais dos acontecimentos. O homem processualidade, sempre um outro em<br />

si, entrelaçado por diferentes fios dos modos de subjetivação, desqualifica, pela<br />

prática da existência e tendo a vida como obra de arte a brutalidade de uma<br />

certa racionalidade, que a todos busca incluir. O homem processualidade<br />

desqualificando essa racionalidade, de um lugar arteiro, singular e diferencial,<br />

incapaz de ser aprisionado em categorias definitivas, passa a ser visto como<br />

menor e desprezível. Perigoso, o campo da subjetividade e da vida cotidiana<br />

para as ciências modernas. A vida cotidiana, aquela que tem por início todos os<br />

dias, com suas efemeridades e seu caráter contingencial, torna se um perigo<br />

para esse paradigma, pois abala os binarismos e as condições cristalizadas<br />

para se pensar o sujeito que este modelo cultural de vida institucionalizada<br />

tentou e ainda tenta absolutizar.<br />

Com toda a força desse paradigma, produzindo saber, poder e verdade,<br />

nos sobraram os espaços e os tempos em nossos modos-formas de<br />

subjetividades desejantes, que se tecem nas relações com o outro para sermos<br />

e no exercício das práticas de liberdade para vivermos e sentirmos as coisas<br />

menores. Desvalorizando, no humano, sua subjetividade, suas formas de<br />

atualização, seus desejos, afetos e percepções, vamos percebendo que essa<br />

processualidade de um devir humano menor revela em si outras<br />

potencialidades e outras formas possíveis de se pensar e desejar a vida. Essas<br />

atualizações vão sendo tecidas com as emergências dos acontecimentos, no<br />

sentido da experiência humana, naquilo que possuem de provisório e<br />

surpreendente. Para este modelo de ciências que se processam nas atitudes<br />

30


de modernidade, como nos ensinam Foucault (2005) e Sckliar (2003), instaura<br />

interpelações disciplinares e formatações para se desejar um ideal de sujeito,<br />

de nação, de identidade, de cultura e de formas de governo.<br />

Contrariando este ideário, atitude, tarefa de formatação de uma história<br />

desacontecimentalizada, os desdobramentos da subjetividade humana<br />

apresenta como a „consciência‟ da fraqueza desse projeto que absolutiza seu<br />

poder de produção de realidades e verdades. O humano, sempre outro em si,<br />

em suas travessias, abre-se ao mistério de criança, ao perigo e a ameaça,<br />

bagunça as regras desse jogo, colocando outros saberes sobre a mesa. Para<br />

esse modelo de racionalidade as surpresas precisam ser evitadas. Estas<br />

surpresas produzem confusão, abalam a calmaria buscada pelo pensamento<br />

da racionalidade única que se julga capaz de classificar, identificar todas as<br />

coisas em nome de uma única forma de pensar, desejar e agir.<br />

Quero que meu pensamento continue nesta „confusão‟, estilo das<br />

cartografias, quero me experimentar nesse lugar que não conheço, ou, se o<br />

conheço, conheço na contingência do presente. Quero continuar abrindo<br />

caminhos de passagens na aventura da experiência, lugar provocativo e<br />

provisório e que me apresenta carregado do sentido estético e formativo de<br />

uma viagem. A força que me influencia nesse momento se aproxima do sentido<br />

de experiências defendido por Larrosa. Larrosa (2004, p. 53) nos propõe<br />

pensar a experiência como uma viagem, pois “uma viagem não pode ser<br />

antecipada, é uma viagem interior, uma viagem na qual alguém se deixa<br />

influenciar a si próprio, se deixa seduzir e solicitar por quem vai ao seu<br />

encontro [...]”.<br />

Não quero me distanciar desta possibilidade de me experimentar como<br />

viajante ao sabor do encontro. Nesses encontros, não se pode definir quem e o<br />

que vem ao nosso encontro. O que conta nessa viagem são as surpresas do<br />

encontro, provocando, se abertos estivermos, a desestabilização dos saberes<br />

históricos, modos de ver, narrar, sentir e perceber o outro e o mundo! O que se<br />

produz nesse encontro, com a força do acontecimento é o que interessa.<br />

Encontro com algo que nos passe e nos toque. Encontro com o não pensado,<br />

31


com a contingência do presente, no seu devir outro, abrindo-nos a<br />

transformações possíveis que se atualizam na experiência. Por experiência,<br />

estou percorrendo os sentidos defendidos por Larrosa (2004, p.162). Para ele:<br />

“A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não<br />

tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente existe de uma<br />

forma sempre singular, finita, imanente, contingente”.<br />

Não consigo, nem sei se é possível, pensando-me como sujeito da<br />

experiência, enlaçado pelas forças dos acontecimentos, ver e me ter fora das<br />

forças do projeto da modernidade, que sutilmente lança seus fios nas<br />

instituições e nos saberes que nos atravessam. Consigo me ver no quadro<br />

pintado pelas mãos de ferro das ciências modernas disciplinares, mas quero<br />

alterar as formas, as cores, os tons, misturar as linhas e me misturar.<br />

Confusão, acontecimento, experiência e provisoriedade me impulsionam neste<br />

momento e talvez me aproximem de uma vida criativa, numa vida-arte, arte-<br />

vida como nos diria Foucault.<br />

Não quero neste momento encontrar a tranquilidade tão cara ao<br />

pensamento ocidental e presente no discurso hegemônico da modernidade.<br />

Quero continuar com as veias quentes, incomodado com os limites de minhas<br />

compreensões. Quero experimentar, experimentando-me. Estou<br />

compreendendo que o pensamento é do tamanho da terra em que piso. Essa<br />

terra traz consigo ambiguidade [isto e aquilo]. Não passamos por debaixo do<br />

arco-íris, não estamos imunes a nada, não fomos vacinados e não precisamos<br />

ser. O que me interessa é ser contagiado, contaminado e viver as<br />

metamorfoses possíveis! Às vezes, a impressão que tenho é que a terra que<br />

piso se apresenta sempre outra, formada por um terreno que não tem forma,<br />

arenoso, alterando-se mediante as forças dos ventos, dunas, miragens,<br />

movimentos, surpresa, tempo presente!<br />

Como não fui imunizado à presença do outro e do mesmo, piso nos<br />

rastros de muitos jogos de poder e saber. Com as ambiguidades que nos são<br />

próprias, meus pensamentos configuram-se também com a certeza dos<br />

caminhos já conhecidos e mapeados, com seus relevos fixos, com seus<br />

32


territórios definidos e aparentemente livres das surpresas. Precisamos ficar<br />

atentos ao presente e à sua atualização; e nos deixar seduzir pelo pensamento<br />

que não aprisione uma moral. Carlos Drummond de Andrade (1987),<br />

poeticamente, nos ensina que “[...] o mundo não é o que pensamos”, ele pode<br />

ser tantas outras coisas ainda não pensadas, mas que se configura como<br />

possibilidades reais nas experimentações de diferentes pessoas, num tempo<br />

vivido.<br />

Esse é o tempo que me movimenta, tempo cosmos, como nos diria<br />

Sousa Dias (1995). É nesse tempo da experiência e do acontecimento, tempo<br />

confuso e caótico, que cinde passado e futuro que me encontro. É nesse tempo<br />

vertiginoso e efêmero que vou abrindo as conversas para as questões que<br />

tanto me interessam, no que diz respeito à escola, à <strong>sexualidade</strong>, ao corpo e<br />

ao currículo. É nesse tempo cósmico, que não se preocupa com „um‟ amanhã e<br />

nem com „um‟ ontem, é que vou aproximando-me do cotidiano da escola, com<br />

os sujeitos da escola.<br />

Aproximo-me da escola, como espaço e tempo para pensar o público e<br />

para apostar na amizade como força política que está em permanente<br />

gestação. Aproximo-me da escola, querendo pensar a amizade como força de<br />

vida, tendo na <strong>sexualidade</strong> mais uma possibilidade de acesso a novas formas<br />

de amor, de prazer, de cooperações, de comunicação, de solidariedade e de<br />

política. Aproximo-me da escola e das pessoas que fazem a escola, em suas<br />

relações instituintes apostando na amizade como modo de relação não<br />

instituída e aprisionável, de modo que em sua força, como potência criativa,<br />

possa desnaturalizar as formas de regulamentação da vida. E é me<br />

aproximando da escola, que, neste momento, a polissemia do texto em<br />

questão começa a aparecer com a força do encontro com os discursos e<br />

práticas da escola.<br />

Apresentando nessas primeiras páginas algumas questões que me<br />

tocam para pensar a vida e a escola, aviso aos supostos interlocutores, que os<br />

sujeitos da pesquisa [alunos, professores, amigos e tantos outros] aparecem,<br />

desapareceram e reapareceram na narrativa do texto, como autores<br />

33


imprescindíveis na produção dos sentidos que essa pesquisa possa vir a ter.<br />

Suas presenças no texto não respeitarão uma ordem previsível de um<br />

encaminhamento metodológico. Farão, sempre que presentes, presenças<br />

desordeiras. Esses sujeitos pensados, na condição de autores, se misturaram<br />

às narrativas que compõem o texto, trançado por experiências da vida e do<br />

viver escola. Busco assi, na companhia de Foucault (2005; p. 303) existir<br />

potencialmente nos encontros desordeiros, como “uma abundância de coisas,<br />

a saber: essenciais ou terríveis, ou maravilhosas, ou cômicas, ou minúsculas e<br />

capitais simultaneamente”<br />

1.1- A importância do outro em nossos temas e invenções de pesquisa<br />

34<br />

O OUTRO<br />

Carlos Drummond de Andrade<br />

Como decifrar pictogramas de há dez mil anos<br />

se nem sei decifrar minha escrita interior?<br />

Interrogo signos dúbios<br />

e suas variações calidoscópicas<br />

a cada segundo de observação.<br />

A verdade essencial<br />

é o desconhecido que me habita<br />

e a cada amanhecer me dá um soco.<br />

Por ele sou também observado<br />

com ironia, desprezo, incompreensão.<br />

E assim vivemos, se ao confronto se chama viver,<br />

unidos, impossibilitados de desligamento,<br />

acomodados, adversos,<br />

roídos de infernal curiosidade.<br />

Encontros estão acontecendo-me neste tempo-vida. Nesses encontros<br />

estou sendo provocado por acontecimentos que me tiram o chão, me<br />

convocam à responsabilidade e me inquietam no exercício do praticar a<br />

curiosidade com as pesquisas com o cotidiano. Segundo Foucault (2006) a<br />

curiosidade foi estigmatizada e depreciada pela moral do cristianismo como<br />

futilidade, por uma certa concepção de ciências e até mesmo pela filosofia,<br />

tomando-a, como coisa nociva, da qual deveríamos nos afastar, pois poderia,<br />

como diria Nietzsche (2006, p.63) nos “prejudicar com aquilo que temos de<br />

melhor”. Os pensamentos, as sensações, as emoções, as paixões que nos<br />

tocam caoticamente a vontade de conhecer, contrariando a perspectiva do


apaziguamento e do „deixe as coisas como estão‟, muito têm a nos ensinar<br />

quando perseguimos nossas curiosidades entrelaçando-as aos nossos desejos<br />

de infância do saber mais ou de saber da „mesma coisa‟ de forma diferente.<br />

Precisamos voltar a ser criança, movidos por uma curiosidade<br />

substancialmente nova.<br />

Aliás, se fazemos perguntas em nosso paradoxal viver cotidiano e se<br />

nos lançamos ao exercício do querer fazer pesquisa com o cotidiano [com a<br />

vida que tem início todos os dias], é porque não nos deixamos apaziguar com<br />

as muitas respostas que estão colocadas de forma aparentemente definitiva<br />

em nossas realidades e em nossos campos de representações. Somos<br />

movidos por uma curiosidade vital que nos vicia e nos faz desejar a presença<br />

do outro, sem nome, com toda sua força, nos tirando da familiaridade habitual<br />

da mesmidade e nos lançando a outros lugares e devires. Foucault (2005, p.<br />

304), sonha com outra era da curiosidade. Para ele, a curiosidade pode ser<br />

compreendida como obstinação, como experiência de vida, como paixão e<br />

desse lugar fascinante, poderemos, quem sabe:<br />

35<br />

[...] nos desfazermos de nossas familiaridade e de olhar de maneira<br />

diferente as mesmas coisas; uma paixão de aprender o que se<br />

passa e aquilo que passa: uma desenvoltura, em relação às<br />

hierarquias tradicionais , entre o importante e o essencial. (Idem)<br />

Nesse tempo confuso, tão caro à curiosidade, que nos convida a olhar<br />

as coisas que nos são familiares com outras lentes, ou a olhar bem o que<br />

sempre pareceu aí estar, estou sendo provocado por leituras instigantes que<br />

produzem efeitos de conhecimentos e de desconhecimento na ideia<br />

hegemônica de modernidade e do sujeito dessa atitude de modernidade. Estou<br />

valendo-me de escolhas de certos textos/discursos que me ajudam a<br />

problematizar a noção do sujeito da modernidade, no que ele tem de essência<br />

e origem. Estou usando de textos/discursos que me ajudam a pensar o sujeito<br />

processualidade, sujeito de um certo tipo, envolto nas relações de poder, saber<br />

e por técnicas de si. O sujeito processualidade, marcado por experiências,<br />

tocado por acontecimento, é o resultado aberto de invenções culturais, sociais<br />

e por práticas de si.


Estou recorrendo a diferentes matrizes de pensamento, para<br />

compreender currículo e <strong>sexualidade</strong> no campo aberto da subjetivação. Busco<br />

ajuda nos textos/discursos dos estudiosos do currículo, dos cotidianistas, dos<br />

estudos feministas, dos estudos culturais, pós-estruturalistas e pós-coloniais,<br />

ou seja, leituras plurais que questionam e problematizam alguns valores morais<br />

e seus dogmatismos. Estou usando de diferentes referencias teóricos, para<br />

melhor compreender as questões por mim inventadas como objeto/tema/<br />

curiosidade/discurso/atos de pesquisa das muitas razões de ser com o mundo<br />

que aparentemente são minhas. Juntamente com Ferraço (2006, p. 38), vou<br />

assumindo que:<br />

[...]nossos objetos de estudo são tão-somente criações subjetivas. Não<br />

existem isolados de nós. Se acreditamos que só conhecemos da<br />

realidade o que nela introduzimos, nossas próprias criações e<br />

inserções, então nos damos conta de que todo conhecimento é<br />

autoconhecimento.<br />

Lourau (2004, p. 267) de forma muito parecida com a Ferraço (2006),<br />

nos diria que “O pesquisador, além de seu corpo e de seus instrumentos, não<br />

se pode furtar a utilizar tudo o que lhe passa pela cabeça”.<br />

Nossos objetos de pesquisa/de discursos [autoconhecimento-<br />

autogoverno], e com ele o exercício da curiosidade estão intimamente<br />

conectados às condições históricas que permitem sua formação, estão<br />

conectados a temposespaços acontecimentalizados, por isso, praticados.<br />

Ainda que fragmentos do passado venham ao nosso encontro, permitindo-nos<br />

problematizar e alinhavar em sua dispersão sua formação e seus empréstimos,<br />

nossos temas e objetos de pesquisa não preexistem por si só. Guardados em<br />

livros, laboratórios, escolas, não dizem nada. O que nos permite pensar<br />

nossos temas e atos de pesquisa, são as emergências dos acontecimentos<br />

que nos sacodem no presente. Um objeto de pesquisa é movido por formações<br />

discursivas e subjetivas que ao serem colocados em relações, produzem<br />

efeitos de realidade. Foucault (2005, p. 50) a esse respeito, nos alerta que o<br />

objeto de pesquisa só existe sob as condições históricas de um feixe complexo<br />

de relações.<br />

Isto significa que não se pode falar de qualquer coisa em qualquer<br />

época: não é fácil dizer alguma coisa nova: não basta abrir os olhos,<br />

36


prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo<br />

se iluminem e, na superfície do solo, lancem sua primeira claridade.<br />

Nessas condições históricas que trazem à tona nossos temas/textos/<br />

discursos/práticas de pesquisa, o exercício da escrita, como prática de si,<br />

materializa somente aquilo que conseguimos traduzir por palavras, o dizível,<br />

não toda a sua potência. Somos muito mais que aquilo que conseguimos<br />

deixar transparecer com a escrita. De tudo que somos e pensamos, não<br />

materializamos em escrita tudo o que desejamos. Materializamos somente<br />

aquilo que nossas condições, no uso das palavras, com todo limite, nos<br />

permitem. Faltam palavras, não por que elas não existam, mas porque<br />

perdemos a chave da reputação da certeza do ato de criar e de seu poder de<br />

abrir todas as portas e de nomear todas as coisas. Nietzsche (2006, p.80),<br />

perplexo com o ato de nomear as coisas e as pessoas, nos diz:<br />

37<br />

Se há uma coisa que me custou muito a compreender e sempre<br />

me deixa perplexo é que o nome das coisas importa infinitamente<br />

mais do que saber o que elas são. A reputação, o nome, o<br />

aspecto, a importância, a medida tradicional e o peso de uma coisa<br />

– na origem, na maioria das vezes um erro, uma qualificação<br />

arbitrária, colocadas em coisas como um traje e profundamente<br />

estranhas ao seu espírito, até mesmo a sua superfície – pela<br />

crença que se tinha em tudo isso, por seu desenvolvimento de<br />

geração em geração, aos poucos isso se apegou à coisa, se<br />

identificou com ela, para se tornar seu próprio corpo; a aparência<br />

primitiva acaba quase sempre por se tornar a essência e faz o<br />

efeito de ser a essência.<br />

As palavras e o seu poder autoritário de nomear as coisas e as pessoas<br />

erram o alvo, fracassam. O alvo não é mais permanente, o alvo sofre<br />

mutações. Assim, não são as palavras que fracassam, e sim a nossa<br />

dificuldade em abandonar um modelo cartesiano de as dispor de forma a<br />

materializar, por escrito, uma linguagem emergente. Fracassam, porque<br />

estamos compreendendo com Niestzche (2006), que as coisas e as pessoas<br />

são muito mais do que conseguimos em nossas atos de criação pesquisantes,<br />

produzirmos como sendo a essência verdadeira das coisas. As palavras e com<br />

elas, o poder de nomear o que compreendemos por realidade estão em crise.<br />

Precisamos como nos ensina Larrosa (2001) inventar palavras porvir, palavras<br />

nascedouras, palavras milagres, parturientes e outras maneiras de nos<br />

valermos da potência das palavras para desconstruir algumas invenções que


nomeiam, identificam e reduzem a vida ao limite da aparência, produzida com<br />

crença que materializa e fixa no corpo, um traje. As pessoas mudam, trocam,<br />

recusam-se quase sempre, a vestir os mesmos trajes. Nietzsche (2006, p. 80)<br />

lança um alerta como forma de cuidado “Só podemos destruir criando! - Mas<br />

não esqueçamos também isto: basta criar nomes novos, apreciações e<br />

probabilidades novas para criar com o tempo coisas novas”<br />

Nossos temas/textos/discursos/atos de pesquisa, são invenções que se<br />

entrelaçam com a(s) crise(s) e com as diferentes redes de significados que<br />

vamos estabelecendo com aquilo que nos toca e com aquilo que com nossas<br />

crenças, nos apegamos. Alargando sentidos e cuidado, vamos percebendo que<br />

as invenções de nossos temas/textos/discursos trazem as marcas de um<br />

coletivo que se dispersa num tempo cósmico, no espaço praticado, enlaçando-<br />

nos aos acontecimentos. Esse coletivo disperso mistura-se com nossas muitas<br />

memórias: memórias olfativas, auditivas, gustativas, etc., das quais muitas<br />

lembramos e esquecemos. E, se não nos esquecêssemos, como nos fala<br />

Drummond (1987), seríamos homem-espanto! Essas memórias das práticas<br />

vividas produzem imagens e posições de sujeito ao estilo dos caleidoscópios e<br />

nos permitem assumir temporariamente formas editadas, apagadas e reeditas<br />

de um palimpsesto.<br />

38<br />

Oh se me lembro e quanto.<br />

E se não me lembrasse?<br />

Outra seria minh’alma,<br />

bem diversa minha face.<br />

Oh como esqueço e quanto.<br />

E se não esquecesse?<br />

Seria homem-espanto,<br />

ambulando sem cabeça [...].<br />

Carlos Drummond de Andrade<br />

Vamos compreendendo com ajuda de Larrosa (2004, p. 25) que somos,<br />

“[...] como um desses antigos pergaminhos que eram apagados para se<br />

escrever em cima, mas nos quais ainda eram legíveis os restos das escritas<br />

anteriores”. Valorando a ideia de palimpsesto, começo a perceber que a<br />

trajetória que percorri no Programa de Pós-graduação em Educação da<br />

Universidade Federal Fluminense, especificamente no campo de pesquisa do


Cotidiano Escolar, ajudou-me a suspeitar do sentido único de ver a vida, as<br />

escolas e as pessoas, diferentes pessoas que constroem e se reconstroem<br />

nesses espaços. Começo a compreender, com ajuda e provocação de<br />

diferentes interlocutores, que as pessoas, porém nunca iguais, ao agirem no<br />

mundo, afetando e sendo afetadas, são capazes de desejar, por se indignarem<br />

com os processos discursivos que nomeiam e classificam o outro como fonte<br />

de todo mal. Essa tentativa de classificação do outro, fonte de inspiração de<br />

ideologias estruturantes, funcionou e ainda funciona como forma de regulação<br />

e de controle dos muitos que não se deixaram e não se deixam enquadrar<br />

nessas narrativas. Nietzsche (2006, p. 144) diria, nesse momento, que nos<br />

alegramos e desejamos muito a “nossa própria companhia”, uma vez que<br />

aprendemos sem muita dificuldade a gostar e desejar o eu como companheiro.<br />

Pois, aprendemos sem muita dificuldade a apreciar “Tudo aquilo que é de<br />

minha espécie, na natureza e na sociedade, me fala, me elogia, me encoraja,<br />

me consola: o resto não o entendo ou me apresso em esquecê-lo”.<br />

Refletindo sobre algumas narrativas da modernidade em seu projeto<br />

cultural de captura do outro como tradução e do mesmo como companhia,<br />

Duschatzy e Skliar (2001, p. 121) sinalizam-nos que estratégias não faltaram<br />

de institucionalização das diferenças como marca de todo o mal. Dentre as<br />

muitas fontes de inspiração dessas narrativas, os autores citam que, como nas<br />

tramas dessas discursividades, foram sendo produzidos estereótipos de<br />

indivíduos [normais e anormais], buscando. com esse ato de fabricação,<br />

assegurar e garantir “identidades fixas, centradas, homogêneas, estáveis etc.”.<br />

Seguindo Duschatzy e Skliar (2001), vou percebendo que também<br />

contribui, caindo e sendo tragado pelas redes da mesmidade, fortalecendo os<br />

discursos das marcações de territórios, realçando as diferenças em processos<br />

contínuos e crescentes de classificação e hierarquização. Contribui com esse<br />

paradigma cultural e para os processos de subalternização de muitos e nesse<br />

„muito‟ me incluo, uma vez que na maior parte das vezes aplicamos a nós<br />

próprios as classificações, assumindo o discurso de colonizador e os efeitos de<br />

suas classificações. Estou pensando por subalternização os processos de<br />

subjetivações que descaracterizam a alteridade, pelas formas sutis de<br />

39


enquadramento, nomeação, classificação, construindo o outro como fonte de<br />

todo mal, como o estranho, como a diferença classificada, na perspectiva de um<br />

olhar, que só consegue ver o isso ou o aquilo.<br />

Louro (2004, p. 89), apostando seus estudos no campo do currículo e da<br />

<strong>sexualidade</strong>, na tentativa de desconstruir algumas discursividades<br />

hegemônicas, problematiza as narrativas que insistem em nos posicionar<br />

dentro dos limites das normas e das identidades que nos são dadas e datadas<br />

culturalmente: homem/mulher, heterossexuais/homossexuais, professor/<br />

professora, mãe/pai, filho/filha, aluno/aluna, criança, adolescentes, adultos, etc.<br />

Louro (Idem) alerta-nos para o fato de que as pessoas, vivendo seus processos<br />

de subjetivações, em meio a diferentes redes de relações e de disputas que<br />

processam significações e nomeações, identificações e rejeições, reiteram,<br />

reforçam, repetem, reagem e desconstroem essas narrativas, a partir das<br />

fissuras e das relações de forças que são abertas na experiência com o outro e<br />

consigo mesmo. Nesse sentido ao nomear e classificar o outro, faz se<br />

necessário um exercício exaustivo de produção de normas regulatórias, e que<br />

precisam constantemente ser refeitas e reiteradas em seus processos de<br />

significação, uma vez que “Essas normas como quaisquer outras são<br />

invenções sociais”.<br />

Nas resistências produzidas ao sabor dos acontecimentos e na<br />

fecundidade da experiência com o outro, começo fragilmente a reconhecer e<br />

valorar a potencialidade de um devir comum cotidiano, nascido nos encontros<br />

com o outro, mas que por ser sempre diferente, não pode ser nomeado, muito<br />

menos enumerado. Diferenças que não podem ser negadas, muito menos<br />

mascaradas no seu devir comum diferente, porque foram nomeadas, mas que<br />

nem por isso “podem ser reduzidas a uma unidade e a uma identidade única”.<br />

(HARDT & NEGRI, 2005, p. 12) Nomear é, pois, só mais uma maneira de fazer<br />

existir nos atos de criação o que até então não possuía uma realidade<br />

representativa e palpável para as atitudes de governo. Lourau (2004, p. 213), a<br />

esse respeito no ensina que “o devir potencializa existências atuais e atualiza<br />

existências potenciais”. Estar vivo é uma condição de potência<br />

40


permanentemente atualizável. Assim, a condição do devir humano atualizável,<br />

produzirá sempre efeitos de fracasso nas intenções de nomeação.<br />

A ideia de „comum‟ perseguida aproxima-se com o que Hardt e Negri<br />

(2005, p. 12) vêm apostando na contemporaneidade para se pensar uma<br />

democracia desejante. Segundo os autores, essa forma de democracia<br />

desejante se faz presente nos movimentos de resistência da multidão frente às<br />

forças das biopolíticas na fortificação do império. Para eles, a multidão vem-se<br />

construindo de forma reticular, aparecendo em diferentes lugares do planeta,<br />

como tentativa de oposição às formas materializadas e subalternizantes no uso<br />

e exercício da soberania das biopolíticas. Esses movimentos desejantes da<br />

multidão indicam forças insurgentes comunicativas, com características<br />

singulares de relação e de contestações com o mundo que fora construído.<br />

Para esses autores “o desafio apresentado pelo conceito de multidão consiste<br />

em fazer com que a multiplicidade social seja capaz de se comunicar e agir em<br />

comum, ao mesmo tempo em que se mantém internamente diferente”.<br />

A partir da perspectiva da multidão e da vida que tem seu início todos os<br />

dias, no seu agir comum, com suas formas de partilha, conservação e<br />

comunicação podemos compreender que é possível desejar outro mundo, sem<br />

necessariamente ser preciso de um projeto para a multidão, como temos vistos<br />

nas políticas de educação que apostam numa pedagogia da e para a<br />

diversidade. Exemplos cotidianos de movimentos de contestação não<br />

pensados por um poder central, por um líder, ou um representante heroificado<br />

em uma ação, não nos faltam. A multidão e a vida cotidiana se organizam no<br />

encontro, no conflito, na sensibilização e na amorosidade. Esse encontro não<br />

está programado, ele acontece, juntam-se um mais um, e vão se processando<br />

redes vida de maneira indeterminadas, sem centro, sem comando. Na multidão<br />

e na vida cotidiana não existe centro, e sim pontos de contatos e encontros.<br />

Podemos pensar esses movimentos insurgentes da multidão e da vida de<br />

todos os dias que nos colocam no agir comum, tendo a escola por referência.<br />

Não podemos esquecer muito menos negligenciar que o cotidiano é paradoxal,<br />

espaçotempo de resistências, de controle, de governo e de formatização. Por<br />

isso analisamos esse espaçotempo de criação e valorizamos as táticas de<br />

41


esistências, que ao serem praticadas no exercício de liberdade dos sujeitos<br />

desejantes, denunciam e driblam as estratégias de governabilidade, indicando<br />

outros possíveis.<br />

Na escola, com todos os dispositivos disciplinares inventados, porém em<br />

crise, podemos presenciar grupos e pessoas que se identificam dos lugares<br />

que são tocados pela experiência, ainda que em alguns momentos possam<br />

indicar pertença, sensibilizando e sendo capturados com causas que<br />

aparentemente são dos outros. Ao se sensibilizarem, por se reconhecerem em<br />

alguns lugares que tentam subalternizar a vida e os modos de ser, multiplicam<br />

forças na luta por direitos, uma vez que acreditam não serem determinados a<br />

essa condição de existência.<br />

Ferre (2001) nos faz um convite para olharmos bem os usos que a<br />

educação atual, com suas práticas democráticas de inclusão tem feito de<br />

algumas palavras, que, em sua repetição, parecem dizer a mesma coisa. A<br />

autora, problematizando os usos que temos feito dos conceitos, identidade<br />

[Quem sou?], diferença [não idêntico] e diversidade [grupos minoritários],<br />

pontua sobre esses, ampliando-os ao que se convencionou institucionalmente<br />

denominar por Pedagogia da Diversidade. Os discursos e as práticas dessa<br />

política educacional, desejando uma realidade disciplinar, planificada e<br />

estruturada, tenta capturar modos-formas de subjetividades, independente da<br />

condição de sujeito e do grupo de seu reconhecimento. A ideia de diversidade<br />

como estou compreendendo na companhia de Ferre, aprisiona em guetos e<br />

categoriza a diferenciação. A idéia de diferir como processo atualizante nos<br />

remete à diferença como afirmação e não negação, a vida afirmativa e<br />

expansiva, como já havia proposto Nietzsche (2006) e ao caminho da<br />

multiplicidade, no lugar da formatização dos modos de existência.<br />

Foucault (2003a) problematizando a noção de sociedade disciplinar e da<br />

obediência como efeito de continuidade de seu poder, nos fala de uma crise<br />

nas sociedades industriais, com o aumento da população e com as novas<br />

tecnologias. A disciplina perdeu uma parte de sua eficácia, mas nem por isso<br />

deixou de produzir efeitos disciplinadores. Por dentro dessa crise, a classe dos<br />

42


dirigentes e suas políticas educacionais de governo continuam impregnadas de<br />

técnicas disciplinares.<br />

43<br />

Nesses últimos anos, a sociedade mudou e os indivíduos também;<br />

eles são cada vez mais diversos, diferentes e independentes. Há<br />

cada vez mais categoria de pessoas que não estão submetidas à<br />

disciplina, de tal forma que somos obrigados a pensar uma<br />

sociedade sem disciplinas. (Idem, p. 268)<br />

Nesse encaminhamento que estou perseguindo, vou compreendendo<br />

que o diverso, a diversidade e a diferença só podem ganhar significações nas<br />

políticas de governo mediante uma lógica disciplinar da mesmidade, o que me<br />

parece ser o desejo da tão famosa política de educação para a diversidade.<br />

Para Ferre (2001, p.197), identidade, diferença e diversidade<br />

[...] são palavras que falam de tudo e do nada dos seres humanos;<br />

três palavras que, em educação, acabam hoje resultando tópicos<br />

vazios ao mesmo tempo em que conformam uma realidade<br />

disciplinar.<br />

Percebemos que a Pedagogia da Diversidade pretensiosamente joga<br />

com marcas identitárias que possam compor formas de governo da diferença<br />

que são dos outros [mulheres, jovens, deficientes, enfermos crônicos, anciãos,<br />

homossexuais, doentes mentais, negros, índios, imigrantes], no que elas<br />

apresentam de comum em suas formas de agir, existir, coexistir, de<br />

comunicação, de partilha e de proximidade. Durante certo tempo e ainda hoje,<br />

as diferenças são representadas principalmente pelas marcas produzidas na<br />

materialidade do corpo, corpo biológico. Esse corpo, corpo físico, corpo<br />

disciplinar não é mais suficiente ao slogan da pedagogia multicultural do século<br />

XX que buscava/busca contemplar e incluir o diverso, o não idêntico em suas<br />

políticas de cidadania.<br />

O corpo social e suas marcas de classe, materializado pelas distinções<br />

econômicas também está sendo pensado. Muitos não idênticos vêm sendo<br />

pensados nos discursos da pedagogia de inclusão da diversidade que são dos<br />

outros. Essa biopolítica, construída com a chancela do acolhimento e em nome<br />

da paz, tem por obsessão, como palavra de ordem, a aproximação das<br />

diferenças pelo viés da cultura. Sobre o guarda-chuva das palavras identidade,


diferença e diversidade, há espaço também para “uma crescente massa<br />

humana dos sem-emprego, dos sem-teto, dos sem terras, dos sem-cidadania,<br />

dos sem-nada”. (VEIGA-NETO: 2001, p.107). Como podemos perceber, são<br />

muitos os outros que são arrastados pela biopolítica.<br />

A diversidade [grupos minoritários], sem forma e sempre outra, pertence<br />

ao outro e não a nós. Não sei se seria necessário inventar outro termo para<br />

pensarmos os processos de diferenciação das relações humanas no campo da<br />

cultura, com suas proximidades. Compreendendo com Nietzsche (2006), que<br />

ao criarmos coisas novas, também criamos realidades novas e, essas, nem<br />

sempre substituem uma idéia anterior. Aposto nesse momento numa<br />

pedagogia com a multiplicidade, compreendendo que a idéia de múltiplo, com<br />

seus processos de diferenciação, ultrapassa os limites da diversidade [grupos<br />

minoritários]. Hard & Negri (2005), enfaticamente dizem que “a multidão é<br />

colorida, sem centro e sem forma”.<br />

Olhando bem essas alteridades, com seus mistérios e em suas<br />

singularidades/subjetividades ariscas que se entremostram aos nossos olhos<br />

nas práticas de praticantes docentes e discentes no cotidiano escolar, a<br />

<strong>sexualidade</strong>, como elemento do currículo realizado e institucionalizado pelas<br />

biopolíticas oficiais de educação, vem me chamando atenção nos seus<br />

processos de significação. Ainda que tentem aprisionar a <strong>sexualidade</strong> no limite<br />

do modelo heterossexista que se busca vigente e dos usos que fazemos do<br />

sexo, estamos também presos aos discursos normatizantes da <strong>sexualidade</strong>,<br />

nos quais muitos tentam se incluir e exigir sua fatia de participação política e de<br />

reconhecimento das diferenças e de seus direitos civis. Nessas atitudes, vamos<br />

oferecendo às políticas de governo da diversidade o encampamento das lutas<br />

como fermento político de que tanto necessitam para sua continuidade.<br />

Estamos com essa atitude política em prol dos direitos civis e humanos que<br />

produzem os discursos da tolerância da diversidade nos esquecendo que a<br />

multiplicidade, por ser múltipla sempre demanda e demandará novas lutas.<br />

Louro (2003, p. 48) chama nossa atenção para os usos que as políticas<br />

educativas oficiais vêm fazendo da palavra tolerância. Nessas políticas oficiais,<br />

44


tolerância, remete-nos a uma ideia limitante de diálogo. Fica subentendido que<br />

é no diálogo, que não quer dizer interação, relação entre as diferenças, possa<br />

daí, emergir o respeito e o cuidado de si e do outro. O diálogo pode se tornar<br />

monólogo! Pelas malhas das políticas da diversidade, o outro como diferença,<br />

vem sendo traduzido e capturado. É preciso desconfiar e exercitar nossa<br />

liberdade, pois muitas vezes tolerar, aceitar ou respeitar se ligam “a atitudes<br />

que são exercidas, quase sempre, por aqueles que se percebe superior”. É<br />

preciso, como exercício de vida, “uma atenção crítica que desconfia da<br />

inocência das palavras e que põe em questão a suposta neutralidade dos<br />

discursos”. (Idem)<br />

Estamos sendo tolerantes! Tolerar não é suficiente para produzir<br />

processos de arte e expandirmos a vida. Precisamos subverter a ordem, ou,<br />

como nos diria Foucault (1982), realizar, experimentar tantas outras criações<br />

culturais, que, por serem outras, ainda não pensadas, mas potências,<br />

trouxessem para cenário da vida diferentes linguagens, diferentes emoções,<br />

diferentes possibilidades de uma estética e de uma ética da existência, sem<br />

com isso cair nas armadilhas dos programas instituídos pelas políticas de<br />

acolhimento do multiculturalismo. Dessa forma,<br />

45<br />

Quando examinamos as diferentes maneiras pelas quais as pessoas<br />

têm vivenciado sua liberdade sexual – maneira que elas têm criado<br />

suas obras de arte, forçosamente constatamos que a <strong>sexualidade</strong> tal<br />

qual conhecemos hoje torna-se uma das fontes mais produtivas de<br />

nossa sociedade e de nosso ser. (FOUCAULT apud GALLAGHER;<br />

WILLSON. 1982).<br />

Foucault pensa a <strong>sexualidade</strong>, em primeiro lugar, como política sobre o<br />

sexo, portanto como dispositivo “subjetivante”, “normatizante”, que opera por<br />

meio dos discursos da medicina, da psiquiatria, da psicologia, do direito, da<br />

pedagogia, da religião, do currículo etc... em uma relação saber/poder, que<br />

mais do que reprimir os desvios, atua produzindo verdades e normalidades em<br />

relação às escolhas e práticas sexuais. É por isso que ele nos diz que o<br />

saber/poder é produtivo. Produz nomeando aquilo que vamos considerar<br />

normal (positivo, identidade), no que deveríamos nos encaixar e, ao mesmo<br />

tempo, produz seu oposto (negativo, diferença), do que deveríamos fugir.


Lembro-me, nesse momento, de um aluno da quinta série que,<br />

observando uma aula de educação física de meninas, demonstrando interesse<br />

em participar, via seu desejo barrado por uma norma que fora sendo instituída<br />

na escola, criando habitualidade e convenção. A ambiguidade e a força da fala<br />

desse aluno trazem elementos que me ajudam a compreender como os<br />

discursos da <strong>sexualidade</strong> atuam cotidianamente sobre os sujeitos escolares<br />

[alunos e alunas, professores e professores] com a intenção definir lugares nas<br />

condições de gênero e evitar seus desvios. Indagando esse aluno a respeito de<br />

ele não estar fazendo educação física com as meninas, pude ouvir:<br />

_Eu acho que a educação física é separada para dar mais respeito. Menino com menina<br />

não da certo. Os meninos zoam as meninas e passam a mão. Eu acho que as meninas<br />

querem o canto delas. Eu tenho um monte de amigas e de vez enquanto a gente mata<br />

aula para brincarmos juntos, para jogarmos queimada. Eu sou bissexual, eu tenho<br />

vergonha por causa do preconceito. Já está passando a minha bis<strong>sexualidade</strong>, já estou<br />

sentindo atração por mulheres. Quando eu olhava para os meninos, eu os achava<br />

bonitos e sentia desejo. Eu me sinto..... Mês passado eu fui ao psicólogo. Eu disse a meu<br />

pai que precisava de psicólogo e ele me apoiou. O ano passado eu decidi que iria<br />

controlar a minha <strong>sexualidade</strong>. Mas..., se o meu desejo por meninos tiver de voltar, que<br />

volte.<br />

Assim, esses discursos nos produzem e ficamos querendo, de acordo<br />

com eles, descobrir o que “somos”, isso ou aquilo, nos encaixando em algum<br />

dos modelos binários e agindo conforme uma forma de subjetivação produzida<br />

como valor por uma determinada sociedade, nos impedindo de avançar num<br />

processo de singularização da própria diferença. Ou seja, o modo de viver a<br />

diferença seria pré-determinado, formatado, contido, controlado e gerenciado<br />

por esses discursos de saber/poder que cada vez mais vai sendo reiterado<br />

pelas práticas e discursos da pedagogia de acolhimento do multiculturalismo.<br />

Se seguirmos o que prescrevem esses discursos, nós seremos produzidos pelo<br />

poder-saber, aceitando as condições que ele nos coloca, ser a identidade,<br />

maioria, modelo vazio. Mas, com todos os seus esforços para a fixação de um<br />

traje corpóreo, de classe e cultural, as pessoas cotidianamente trocam suas<br />

vestimentas.<br />

Foucault (1981) recusa que seja esse o papel da diferença. Para ele, a<br />

diferença como prática de liberdade, como experiência de si, como cuidado de<br />

si precede a identidade. São as possibilidades de liberdade e de diferenciação<br />

46


como movimento essencial do vivo que levam aqueles que querem estar no<br />

poder a controlar os demais e inventarem a identidade. Foucault até entende<br />

que um certo saber/poder seja necessário para que haja vida social, mas<br />

observa que ele [saber/poder] não deve interromper a vida criativa como obra<br />

de arte. Nesta perspectiva, não só os objetos são vistos como obra de arte,<br />

mas também as pessoas e suas vidas.<br />

Foucault ainda nos diz que, através da invenção e singularização do<br />

sexo, cada um pode construir espaços de liberdade para cuidar de si,<br />

[autogoverno], escapando das fôrmas e das formas de subjetividades já<br />

colocadas. Para escapar disso, ele vai propor que cada um procure<br />

problematizar os processos de subjetivação vividos como experiências nas<br />

relações estabelecidas consigo e com o outro. Nesse encaminhamento,<br />

podemos perceber que não devemos sofrer demasiadamente pela busca de<br />

uma origem para o que sou e sim, compreender em que estamos nos tornando<br />

nas relações com os jogos de saberes e poderes. Uma questão que Foucault<br />

(1982) coloca como necessária aos processos de subjetivações, não como<br />

programa, não como lei, mas como criações culturais, vazias, subversivas e<br />

inventivas, é o redescobrir da amizade. A meu ver, a amizade como programa<br />

vazio não se limita a nenhuma forma de subjetividade já conhecida nos<br />

dispositivos da <strong>sexualidade</strong> [heteros e homos, masculino e feminino, homem e<br />

mulher, menino e menina etc.], pelo contrário, se expande nas redes de<br />

relações de cada um, que procura escapar aos preceitos ditados como norma.<br />

47<br />

No decorrer dos séculos que se seguiram à Antiguidade, a amizade<br />

se constitui em uma relação social muito importante: uma relação<br />

social no interior da qual os indivíduos dispõem de uma certa<br />

liberdade, e uma certa forma de escolha (limitada, claramente), que<br />

lhes permitiam viver relações afetivas muito intensas. A amizade<br />

tinha também implicações econômicas e sociais – o indivíduo devia<br />

auxiliar seus amigos, etc. Eu penso que, no séc. XVI e no séc. XVII,<br />

viu-se desaparecer esse tipo de amizade, no meio da sociedade<br />

masculina. E a amizade começa a tornar-se outra coisa. A partir do<br />

séc. XVI, encontram-se textos que criticam explicitamente a<br />

amizade, que é considerada como algo perigoso (FOUCAULT, apud<br />

GALLAGHER, 1982)


Ilustração 1- Amizade<br />

Produzindo interlocuções com o pensamento de Foucault (1982), vamos<br />

percebendo que o que consideramos problema nada mais é que uma invenção<br />

das atitudes de modernidade. A amizade, como nos diria Chauí (2008), estava<br />

entre as virtudes enunciadas por Aristóteles e passou a ser problema,<br />

inicialmente com a expansão da cultura judaico-cristã que a substituiu pela<br />

caridade, em relação com o outro, com o que nos é próximo e passa a ser<br />

mediada pela relação com Deus. Depois a ideia e as possibilidades da amizade<br />

foram afetadas e regulamentadas pelo discurso institucional jurídico, da<br />

medicina, da pedagogia, etc., que normatizaram e privilegiaram outros modos<br />

de relações sociais.<br />

Estes discursos produziram os binarismos que conhecemos,<br />

realimentando e marcando as diferenças que estão na ordem do discurso, que<br />

se materializam nas práticas e nas instituições de separação. Tais discursos<br />

movimentam desejos de separação, e estrutura a partir dos espaços<br />

institucionalizados uma política da identidade. Foucault (2004a, p.239) nos diria<br />

que “a amizade nada mais é que uma das formas do cuidado de si. Todo<br />

48


homem que tem realmente cuidado de si deve fazer amigos”. A educação que<br />

se institucionaliza, distanciando do cuidado de si como obra de arte, impõe<br />

para si como tarefa, “[...] o dever de fazer de cada um de nós alguém; alguém<br />

com uma identidade bem definida pelos cânones da normalidade, os cânones<br />

que marcam aquilo que deve ser habitual, repetido, reto, em cada um de nós”.<br />

(FERRE; 2001, p.196)<br />

Não obedecendo e muito menos correspondendo aos princípios e aos<br />

limites da identidade, meninos e meninas, por querer estar com o outro, não<br />

como tradução [conhecer para agir], bagunçam essa estrutura que tenta definir<br />

lugares para uma forma de identidade. Marcos, ao chegar à escola usando um<br />

boné rosa e sendo zoado por alguns colegas, diz:<br />

Ilustração 2- Uso do boné<br />

_Os meninos zoam, mas quem foi que disse que rosa é cor de mulher. Quero nem<br />

saber, eu quero é usar!<br />

Ferre (2001, p. 196), problematizando os limites da identidade assim se<br />

posiciona: “Na verdade, a diferença, o desvio, a inclinação até o não idêntico<br />

que conforma a intimidade de cada um, nos afasta da identidade que os outros<br />

nos dão e, no mais intimo de cada qual, talvez todos saibamos que não somos<br />

ninguém”.<br />

49


O perigo das políticas e da polícia em prol da identidade que<br />

insistentemente tentam reduzir os processos de subjetivações e seus<br />

deslocamentos num produto de identificação e de classificação está na base<br />

dos programas de governo que limitam a potência política das diferenças e das<br />

relações de amizade ao que nos é próximo, ou seja, aos que se reconhecem e<br />

se identificam como iguais. Vale ressaltar que a(s) identidade(s) e as formas<br />

assumidas de identificação e significação, no que possuem de provisoriedade,<br />

são dobras de muitas dobras que se atualizam numa relação permanente entre<br />

eu e o outro, produzindo significações. Silva (1999, p.106), em seus estudos<br />

sobre currículo, sinaliza que “A identidade é sempre uma relação: o que eu sou<br />

se define pelo que não sou. Além disso, a identidade não é uma coisa da<br />

natureza; ela é definida num processo de significação”.<br />

No lugar da oposição binária heterossexual/homossexual, que se<br />

associa à identidade/diferença, positivo/negativo, sendo ambos pré-formatados,<br />

teríamos algo como multidões queer. Neste encaminhamento produzido pela<br />

teoria queer, que se pretende sempre nas fronteiras, num deslocamento<br />

permanente de poder e de saber, vamos compreendendo que podemos ser isto<br />

mais aquilo/isto e aquilo, sempre abertos a trocas e negociações. Se a<br />

<strong>sexualidade</strong> é resultado de devires, negociações e interpelações, persigo a<br />

ideia de que os praticantes do cotidiano escolar com orientações sexuais não<br />

idênticas, fazendo também usos diversos de seus prazeres, vivendo seus<br />

anonimatos e suas presenças, vão-se descobrindo e se fazendo sempre um<br />

outro de si, num cuidado permanente de si e do outro.<br />

O cuidado de si não se reduz a um eu do princípio da identidade, mas<br />

nos remete ao lugar da alteridade e às tramas socioafetivas das relações.<br />

Ortega (1999, p.126) complementa com os dizeres: “O outro é indispensável na<br />

cultura de si”. Esses praticantes, produzindo e sendo produzidos pelas<br />

circunstâncias da criação e dos acontecimentos, herdeiros de um saber<br />

milenar, jogam sem saber contabilizar o que vão conquistar na arte do fazer e<br />

de seus devires outros. Falo de um devir, numa relação com um porvir, por<br />

isso, sem intenções projetivas. Falo de um devir nascido das possibilidades<br />

50


que podem acontecer nos encontros com as diferenças, pois, penso o devir no<br />

que ele possui de infância e contingência.<br />

Larrosa (2001, p. 289) pensa educação, relacionando porvir e<br />

fecundidade. Para ele a educação só poderá ser considerada um porvir,<br />

quando ela puder abrir mão das continuidades para “dar uma vida que não será<br />

a nossa vida nem a continuação da nossa vida, porque será uma outra vida, a<br />

vida do outro”. A vida do outro, do outro que está em mim, que está aqui e<br />

acolá, que nasce nos encontros, nos conflitos, fecundando um talvez para os<br />

nossos pensamentos, nossas palavras e nossa humanidade. Sendo assim, o<br />

que está em jogo nos encontros com os discursos da <strong>sexualidade</strong> e do<br />

currículo? Invenções, governo, normatizações, contradições, alteridade,<br />

mesmidade, obras de arte...<br />

1.2 Sexualidade(s), biopolíticas e currículo(s): invenções e<br />

problematizações de saberes e fazeres cotidianos<br />

51<br />

Meu corpo não é meu corpo,<br />

é ilusão de outro ser.[...]<br />

Quero romper com meu corpo,<br />

quero enfrentá-lo,<br />

acusá-lo por abolir minha essência,<br />

mas ele sequer me escuta e vai pelo rumo oposto.<br />

Carlos Drummond de Andrade<br />

A <strong>sexualidade</strong>, conectada a uma determinada condição histórica, vai ser<br />

inventada e instituída através de dispositivos de saber/poder, construindo um<br />

„conhecimento sobre a verdade do sexo‟ que opera por nomeação,<br />

classificação, identificação, análise, explicação e constatação. Essa pretensa<br />

verdade sobre o sexo, envolta em muitas relações de poder e saber contribuiu<br />

e contribui significativamente para uma determinada representação de<br />

<strong>sexualidade</strong> heterossexual, que vai tornando-se dominante. Essa <strong>sexualidade</strong><br />

dominante constitui-se historicamente a partir dos limites da referência<br />

inventada [sexo biológico/procriação/população], instituindo uma forma<br />

desejada para o disciplinamento do corpo sexualizado e nesse encadeamento,<br />

o governo da população. Essa representação dominante de se querer a<br />

<strong>sexualidade</strong> e de impor uma norma para os usos que se faz do sexo, vai sendo


perseguida a partir de uma lógica binária, que ao constatar, explicar e<br />

diferenciar produz o outro como desviante, como falta, como diferença.<br />

Construindo o outro como desviante, vê se formar uma política sobre o sexo,<br />

que pretende administrar o que é permitido e o que é proibido, certo e errado,<br />

normal e anormal. Nessas invenções que marcam o corpo, carregadas de<br />

binarismos, o desvio, pode se tornar alvo de correção.<br />

Tentativas de correção não faltaram nas atitudes de modernidade, não<br />

faltam e, continuam sendo inventadas e disputadas! E na escola essa prática<br />

continua sendo corroborada a partir de estratégias e formas de governo.<br />

Nesses encontros na escola, daqueles que fazem suas práticas pedagógicas<br />

com os dispositivos que possuem, ouvi de um professor:<br />

_ Hoje eu pedi aos meus alunos para fazerem uma cópia de um ponto do livro de<br />

história. À medida que iam escrevendo eu ia passando e dizendo para os alunos: Olha:<br />

a escrita bonita é como conquistar uma menina, ela é cheia de detalhes. Cadê os<br />

detalhes? Você está esquecendo os detalhes, letra maiúscula, vírgula, ponto. E para as<br />

meninas dizia que elas não estavam ligadas aos detalhes e assim poderia não<br />

conquistar os meninos. Para mim, os detalhes, as coisas pequenas são extrema<br />

importância na vida e na escola.<br />

Para Foucault (2004, p.29), a <strong>sexualidade</strong> enquanto dispositivo<br />

disciplinador é um trançado das muitas experiências discursivas e de disputas<br />

do tempo que se convencionou pensar por modernidade e “das abordagens<br />

médicas desenvolvidas a partir do século XIX”. Essa abordagem médica<br />

“intensifica esforços para incluir todas as manifestações do sexo em um<br />

discurso da <strong>sexualidade</strong>”. Isso não quer dizer, que as pessoas, vivendo seu<br />

tempo, com as classificações temporais que conhecemos [pré-modernidade,<br />

modernidade e pós-modernidade], não faziam sexo ou que não era/seja<br />

possível existir várias maneiras de fazer sexo. O que ele quer dizer é que, o<br />

que as pessoas faziam como faziam e com quem faziam, não era problema,<br />

não era visível, não era prática normatizada, regulamentada. O que existia na<br />

antiguidade era uma ars erótica, que tinha por objetivo aumentar e intensificar<br />

as relações e os prazeres dos atos sexuais. Não era uma política racionalizada,<br />

antes de qualquer coisa, era uma escolha. As pessoas não eram classificadas<br />

ou rotuladas a partir de suas práticas sexuais.<br />

52


Nos estudos de Foucault, os conceitos: biopoder [poder sobre corpo] e<br />

biopolítica [poder sobre a população] vão aparecendo em seus textos nos<br />

diferentes movimentos de problematização que foram acontecendo das<br />

pesquisas arqueológicas [ser-saber] para um princípio genealógico [ser-poder].<br />

Veiga Neto (2005, p.52) nos fala que foi na fase arqueológica que Foucault<br />

mais investiu na compreensão de “como nos tornamos, na Modernidade, o que<br />

somos como sujeitos de conhecimento e como sujeitos assujeitados ao<br />

conhecimento”. Foucault entrelaça a seus estudos sobre o ser-saber e ser-<br />

poder, domínios epistemológicos e metodológicos que vão possibilitando-o,<br />

problematizar as técnicas racionalizadas de poder que atuam sobre os sujeitos<br />

[corpo e espécie] produzindo efeitos de verdades. Podemos perceber nos<br />

trabalhos de Foucault, uma incansável curiosidade frente essas<br />

tecnologias/práticas de visibilidade que objetivam o disciplinamento do homem-<br />

corpo. Foucault (2005a, p. 289) nos fala que nos séculos XVII e XVIII se<br />

formaram técnicas de poder, centradas no corpo individual. Essas técnicas de<br />

disciplinamento “eram todos aqueles procedimentos pelos quais se assegurava<br />

a distribuição espacial dos corpos individuais (...) e a organização, em torno<br />

desses corpos individuais, de todo um campo de visibilidade”.<br />

Segundo Foucault (2005a, p.290) no decorrer do século XVII, viu-se<br />

aparecer outra tecnologia de poder. Não um poder do mesmo tipo disciplinar,<br />

que agia sutilmente sobre o corpo, individualizando-o, mas, um tipo de poder<br />

que pensa e atua sobre a espécie. Essa tecnologia, denominada por Foucault<br />

por biopolítica, não excluía os dispositivos do poder disciplinar [uns sobre<br />

outros], pelo contrário, reforçava-o, tendo em vista que esse poder plural é de<br />

outro nível de atuação [conjunto] e que seus instrumentos de exercícios são de<br />

outra natureza [especialistas]. Sua aplicabilidade é no conjunto, uma vez que “<br />

Diferentemente da disciplina que se dirige ao corpo – a vida dos homens, ou,<br />

ainda, se vocês preferirem, ela se dirige não ao homem-corpo, mas ao homem<br />

vivo, ao homem ser vivo; no limite, se vocês quiserem, ao homem-espécie”.<br />

Se a vida do homem fecunda-se nas relações de poder e saber, vamos<br />

(re)afirmando em nossas relações e conflitos com os diferentes dispositivos<br />

das biopolíticas, ser possível, por dentro da história, com a emergência do<br />

53


tempo flexível e móvel da vida cotidiana, existir possibilidades de resistências,<br />

micro-resistências a essas formas de poder. E quem sabe, a partir de<br />

engajamentos múltiplos, possamos provocar alterações e modulações nessas<br />

realidades. Foucault vem desafiando-nos a pensar a vida como obra arte, mas,<br />

não afirma com essa proposição, que estaremos imunizados as práticas de<br />

governamentalização das biopolíticas. Ainda que sofrendo formas de governo e<br />

de autogoverno [experiência de si e o reconhecimento do individuo como<br />

sujeito], a vida em sua processualidade, vista como obra de arte, latente em<br />

uma ética/estética referida, não pode ser materializada em projetos ou<br />

planificações, características típicas das políticas de governo da população.<br />

Larrosa (2002, p.76), fala-nos sobre uma ética referida, uma ética pessoal, que<br />

não é uma obrigação, que não é um dever, é antes de tudo uma atitude<br />

pessoal, uma prática de si na elaboração de um estilo de vida. Compreendendo<br />

que “As artes da existência, não estão ligadas ao obrigatório. [...] não<br />

pretendem universalização. [...] não estão ligadas à identidade do sujeito.<br />

Trata-se, pois, de uma ética configurada em si mesmo.”<br />

Estou pensando experiência de si [governo de si], atrelada aos modos<br />

de falar-se, narrar-se, ver-se, julgar-se, examinar-se, praticar-se, transformar-<br />

se e, nessas práticas de si, a presença do outro se torna indispensável. Estou<br />

entendendo que a referência para o governo de si está enlaçada aos<br />

enunciados dos muitos discursos produzidos nas interações com o outro, com<br />

o saber e com o poder. Bujes (2003), problematizando essas técnicas do<br />

governo de si alerta-nos para o fato de que, essas técnicas/práticas de si,<br />

podem também nos formatar a modelos já conhecidos. Tendo em vista que, as<br />

subjetividades podem tornar herméticas as transformações. “As técnicas de si<br />

vão constituir as práticas que incitam os sujeitos tanto a decifrar-se quanto a<br />

transformar-se. [...] buscando efetuar em si mesmos as transformações<br />

necessárias para viver melhor. (Idem, p.184)<br />

Por isso, viver a vida como obra de arte, como processualidade, como<br />

modos de subjetividades, multiplicidades, é a aposta de Foucault. Foucault<br />

(2003a) alerta-nos para o fato de que a vida como obra de arte, artes da<br />

existência ou, experiência de si, perderam parte de sua importância no projeto<br />

54


da modernidade, mas não toda. A experiência de si não foi de tudo capturada,<br />

ao incorporar ao exercício de um poder pastoral e, mais tarde, em práticas do<br />

tipo educativa, médico e psicológico a diferentes pedagogias culturais que<br />

interpelam o sujeito. Deve-se entender a vida como obra de arte, ou<br />

experiência de si, como:<br />

55<br />

[...] práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não<br />

somente se fixam regras de conduta, como também procuram se<br />

transformar, modificar-se em seu singular e fazer da vida uma obra<br />

que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos<br />

critérios de estilo. (Idem, p. 15).<br />

A vida como obra de arte se efetiva a partir de uma determinada<br />

condição ética, estética e política. Barros (2000, p.32) procurando outros<br />

paradigmas para a educação, nos ensina que:<br />

Guattari propõe a expressão paradigma ético-estético-político para<br />

se contrapor ao paradigma científico. Estético porque criação<br />

permanente, subvertendo a pretensa unidade do mundo capitalista;<br />

ético porque potência ativa que surge na imanência das práticas<br />

para coordenar a vida e escolher a forma de vivê-la, e político porque<br />

implica a escolha de modos de mundo que se quer viver. (idem:<br />

p.41)<br />

A vida como obra de arte não é um desejo, mas desejável, não é forma,<br />

mas, sem forma, não é algo de artistas, mas de arteiros. Arte de arteiros<br />

entremeada aos saberes e fazeres performativos que serão e são articulados<br />

no ato da experiência enredada ao acontecimento. Esses saberes e fazeres<br />

não capturadas pelas técnicas disciplinares permitem-nos viver de forma ética,<br />

estética e politicamente a experiência de si. Esses saberes e fazeres também<br />

estão enredados por poderes que se distendem no tempoespaço, remetendo-<br />

nos ao poder disciplinar, as biopolíticas e as práticas de governo. O paradigma<br />

ético, estético e político de Guattari, não nos afastam dessa relação, muito<br />

menos nos torna imune aos seus efeitos.<br />

Foucault nos ensina a positividade do poder, ao nos dizer que “o poder<br />

produz”. Não só os que vivem de programar formas de governamentalidade<br />

[institucionalidade] se alimentam de maneira vampiresca das demandas das<br />

subjetividades. Veiga Neto (2002, p.31) nos esclarece, a título de defesa, o<br />

sentido que vem imprimindo no uso da palavra governamentalidade e diz que


Foucault no o curso de 1978: falava da governamentalização do Estado sobre<br />

o corpo, salientando que “esse processo de governamentalização só pode<br />

ocorrer porque estabeleceram algumas condições de possibilidade, [...], entre<br />

as quais o desenvolvimento de técnicas de disciplinamento, docilidade e<br />

autogoverno”.<br />

A massa dispersa transformada em população [homem-espécie],<br />

impossível de ser controlada em sua totalidade transformando-se em multidão,<br />

como nos diriam Hardt e Negri (2005), dispersam-se, aparecem e<br />

desaparecem por dentro das malhas desse controle. As malhas, como as<br />

redes, deixam espaços de escapes. Esse controle não abrange tudo e a todos.<br />

Fissuras são deixadas e abertas nas artes de existência e resistência com a<br />

vida que tem início todos os dias.<br />

Nas redes do poder, que não possuem um centro, mas centros de<br />

conexão, o poder é exercitado por todos. Nesse exercício de poder, podem<br />

redesenhar-se, com linhas de fugas, novas formas políticas de estar no mundo,<br />

de se autogovernar e de governamentalidade. Paralelo ao exercício e uso do<br />

poder dos que nos governam [experts], otimizando a vida, é produzido de<br />

forma contestatória um saber comum, particular, local, mas um saber que se<br />

expande, contamina e contagia. Esse saber vai indicando-nos em suas<br />

emergências nascedouras de um bom momento, formas inventivas de<br />

comunicação, solidariedade e singularidade que contrapondo a algumas<br />

atitudes de governamentalização, podem produzir efeitos de realidades não<br />

pensadas, impulsionando formas de governo e autogoverno conhecidos a se<br />

tornarem outra coisa. Foucault nos fala que a dobradiça entre o corpo e a<br />

população é o sexo e os discursos/práticas da <strong>sexualidade</strong>. Para ele, se o sexo<br />

está entretecido por formações discursivas da <strong>sexualidade</strong> [práticas/técnicas/<br />

enunciados], sexo e <strong>sexualidade</strong> estão entrelaçados também por redes de<br />

saberes e fazeres dos praticantes com os diferentes entrecruzamentos no uso<br />

do poder e do saber.<br />

O reconhecimento dos fazeres e dos saberes como tecnologias da<br />

experiência de si, como autogoverno, nunca antes a mim permitido pensá-los<br />

56


como forma de governo, provoca em minha engessada forma de compreensão<br />

sobre a <strong>sexualidade</strong> e currículo um enorme estranhamento, que aguça meus<br />

objetivos de atos de pesquisa na procura de compreender o sentido plural que<br />

possa ter: a(s) <strong>sexualidade</strong>(s) na efetivação de práticas educativas e dos<br />

currículos realizados/praticados/ experienciados. A não problematização de<br />

currículo(s) e <strong>sexualidade</strong>(s), por naturalizá-los, me leva a outra questão que<br />

passa pelo campo da linguagem e de imagens estabelecidas nas relações com<br />

a escola, com os sujeitos que são produzidos pela escola e com os limites<br />

representativos do ver, narrar, falar e nomear as pessoas. Apoio-me em<br />

Larrosa (2002, p. 63) no que ele concebe sobre o poder da estrutura da<br />

linguagem na efetivação de tecnologias do eu: Segundo o autor, “A linguagem<br />

apresenta de uma forma repetida, representa, duplica em um meio exterior o<br />

que já estava apresentado, tornando visível, no interior.”<br />

Se a linguagem representa/produz conceitos, imagens, o visto, o<br />

sentido, a percepção das significações, do como imagino que me veem e de<br />

como me vejo, lanço perguntas que a princípio poderão apresentar-se como<br />

maneiras de nomear e representar singularidades, particularidades,<br />

subjetividades, multiplicidades e realidades. Foerster (1996, p.65), em seu<br />

texto: Visão e conhecimento: disfunções de segunda ordem, sinaliza que<br />

linguagem e realidades estão conectadas e nos sugere a pensar “que o mundo<br />

é uma imagem da linguagem. A linguagem vem primeiro; o mundo é uma<br />

consequência dela.”<br />

Se a linguagem é o instrumento que constrói o mundo que conhecemos,<br />

só poderemos ver esse mundo de forma diferente, conhecendo e desconfiando<br />

de alguns dispositivos que nos agenciam em nossos modos de ver e falar<br />

desse mundo. A desconstrução das imagens que nos fixam a um único sentido<br />

para esse mundo, só será possível, por dentro do já inventado e representado<br />

pelos dispositivos de linguagens e imagens que dão formas a esse mundo.<br />

Nesse sentido, se buscamos a desconstrução desses instrumentos<br />

representativos, a aposta de von Foerster (p.71) é que “Devemos começar a<br />

compreender o que vemos ou, do contrário, não vemos.” É preciso, como<br />

atitude, compreender o que vemos, pois se não compreendemos, não vemos.<br />

57


Durante a escrita deste trabalho, lanço perguntas que me chegam dos<br />

diferentes fios que tecem minha rede-vida. São questões que se valoram como<br />

potências para pensarmos a relação entre <strong>sexualidade</strong>(s) e currículo(s)<br />

praticados/realizados/vividos/experienciados e não como questões que terão<br />

uma explicação final num capítulo tradicionalmente definido como conclusão.<br />

Correndo o risco de cair em ciladas, no uso da linguagem e de imagens que<br />

me são familiares (ver e dizer o que vejo), me lanço ao exercício permanente<br />

de fazer perguntas! Sei que essas perguntas estão miradas por formas de ver,<br />

narrar, falar e praticar. Nesse sentido, me lanço ao exercício da pergunta como<br />

prática constituídora da experiência de si. Será que a chegada na escola de<br />

um(a) professor(a) ou aluno(a) mirado pelo olhar que fecha a multiplicidade no<br />

uso das convenções sexuais e que insiste em produzir o estranho, o diferente,<br />

sabendo que <strong>sexualidade</strong>, docência se hibridizam, facilita ou dificulta os<br />

espaços discursivos dos currículos realizados na escola?<br />

Ninguém vai para escola pela metade. Não precisamos nos defender de<br />

nada, muito menos do que nos tornamos ou vamos nos tornar [obra de arte<br />

sem forma – coisas de arteiros] no que diz respeito à <strong>sexualidade</strong>. Que<br />

problemas isso pode trazer para a escola? Por que isso deve ser problema?<br />

Qual perigo? Qual ameaça? Como professores e professoras, alunos e alunas<br />

lidam com isso? É possível desconstruir esses discursos-práticas-discursos<br />

produtores de realidades, problematizando relações que produzem espaços<br />

estigmatizantes e fixantes nos currículos realizados? Na fala de um aluno<br />

podemos ver as armadilhas dos discursos da <strong>sexualidade</strong> e sua materialização<br />

e problematização na prática educativa e aproximações com o princípio<br />

socrático do conhece-te a ti mesmo.<br />

_ Eu não gosto de futebol, eu passei a escola primaria toda inventando desculpas. Eu<br />

gosto de escrever poesias! Foi uma luta provar na escola que eu não era gay. Meu tio<br />

não gosta de esportes e não é gay. Ele tem cinco filhos. Eu tenho uma raiva do meu<br />

ex-professor. Uma vez eu caí no chão e ele disse assim: levanta aí. Você não é<br />

diferente de ninguém, tem que jogar futebol. Depois ele disse pra minha mãe que me<br />

achava fraquinho, pequeno e me fez ser seu aluno nas aulas de natação do clube.<br />

Os discursos produzem/induzem formas subjetividades, lugares de<br />

identificação e produção de si e do outro, incluídas aí as corporalidades, as<br />

58


diferenças físicas ao mesmo tempo produzidas e fixadas, que serão depois<br />

usadas na produção discursiva da naturalização e justificação das diferenças.<br />

Bujes (2003, p. 149), problematizando os efeitos das instituições disciplinares e<br />

suas tentativas de enclausuramento sobre a produção de sujeitos e de formas<br />

de <strong>sexualidade</strong>s conhecidas, diz que o que estas “instituições pretendem é a<br />

inclusão e a normalização, ainda que estes processos tenham como seu<br />

correlato e no seu limite um outro efeito que é a exclusão.” Essa pretensão de<br />

inclusão, pela normalização de formas de subjetividades, não é alcançada com<br />

sucesso por essas instituições de enclausuramento. É preciso a articulação<br />

com diferentes mecanismos e formas de policiamento dessas subjetividades.<br />

Os especialistas dos assuntos do comportamento são convocados a se<br />

fazerem presentes no interior da escola e de fazer uso de seu conhecimento<br />

especializado a favor de uma normalização, porém uma normalização<br />

capenga, sempre a meio caminho. Na fala abaixo, vamos percebendo que as<br />

subjetividades migram, multiplicam, metamorfoseiam e escapam. Nesse<br />

espaço aberto pela experiência com a escola, e com suas formas de<br />

disciplinamento, os alunos problematizam as estratégias de disciplinamento<br />

colocadas nas escolas com os saberes especializados.<br />

_Aqui na escola acontecem muitas brigas. O maior motivo é por causa de namoro e por<br />

chamar a gente de piranha. Aí a gente vai para a porrada. Tem meninas que até saem<br />

machucadas. Se eu não gosto de apanhar, eu também não gosto de bater. Nunca<br />

briguei aqui na escola. Agora 2 tem psicóloga aqui na escola. Mas não adianta nada. A<br />

gente sai da psicóloga e tudo continua o mesmo. Aqui na escola sempre falam que a<br />

gente que tem problema em casa por isso a gente apronta aqui na escola. Eu não<br />

concordo com isso. Eu tenho um monte de problemas em casa e nem por isso apronto.<br />

Eu prefiro conversar com minhas amigas, elas sim, elas sabem da minha vida. Vê se<br />

psicólogo da conta da vida da gente.<br />

Muitos especialistas são convidados e entram na escola com a intenção<br />

de produzir certa normalização dos comportamentos de alunos, professores e<br />

famílias de alunos, a partir de seus discursos endereçados. Como exemplo de<br />

endereçamento e pedagogização dos discursos da(s) <strong>sexualidade</strong>(s) e do<br />

comportamento que interessa a escola, e não é só, podemos citar a temática:<br />

Orientação sexual (1997), vinculados aos Parâmetros Curriculares Nacionais.<br />

Como vem nos ensinando os estudos culturais, essas formas de<br />

2 Sinalizo aos leitores que esse fragmento será retomado em outro momento desse trabalho, uma vez que<br />

ele me permite novas problematizações.<br />

59


endereçamento, mirando certo público, trazendo marcas do biopoder [poder<br />

sobre o corpo] e das biopolíticas [poder sobre a espécie] pelas vias do currículo<br />

oficializado, erram seu alvo. Ellswordth (2001) chama nossa atenção para o<br />

fato de que os endereçamentos e as pressuposições colocadas em circulação<br />

pelas políticas culturais, no caso da educação, localizam seu público e fixa no<br />

seu texto alguns lugares de localização que trazem marcas de gênero,<br />

geração, classe, raça, geografia etc... Essas marcas, formas identitárias, nunca<br />

são o que o currículo pensa que/quem são. Esses endereçamentos podem nos<br />

pegar de alguma forma e em algum lugar e momento, mas não possuem uma<br />

força inabalável de caráter universalizante e definitivo. Respondemos ao seu<br />

endereçamento de formas diferentes ao esperado, ainda que em algum<br />

momento possamos por ele ser capturado. Assim mensagens e conteúdos<br />

endereçados a meninos chegam a meninas, endereçados a professores<br />

chegam a alunos, endereçados a brancos chegam a negros, e assim por<br />

diante, produzindo outras coisas, complexas, híbridas e múltiplas.<br />

Pedindo licença a Ellswordth (2001, p. 21), estudiosa dos estudos<br />

culturais, enxerto em seu texto, palavras como alunos, professores e currículo,<br />

para pensar os modos de endereçamento do currículo. Segundo essa autora:<br />

60<br />

Da mesma forma que o 3 aluno e professor nunca são exatamente<br />

quem, o currículo pensa que ele ou ela são, assim também o<br />

currículo não é, nunca, exatamente o que ele pensa que é. Não<br />

existe, nunca, um único e unificado modo de endereçamento em um<br />

currículo. Não importa quanto o modo de endereçamento do<br />

currículo tente construir uma posição fixa e coerente no interior do<br />

conhecimento, do gênero, da raça, da <strong>sexualidade</strong>, a partir da qual o<br />

currículo deve ser lido: os alunos e professores reais sempre leram<br />

os currículos em direção contrária a seus modos de endereçamento,<br />

respondendo aos currículos a partir de lugares que são diferentes<br />

daqueles a partir dos quais o currículo fala ao aluno e professor.<br />

Independente dos modos de endereçamentos e de tentativas de<br />

contenção e fixação dos modos de vida, no cotidiano escolar existem<br />

professores, alunos e famílias que optam quando podem [e quase sempre<br />

podem] por viver modos e formas de subjetividades sexualizantes, que não<br />

3 No texto de Ellswordth (2001), Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação<br />

também: no lugar de alunos e professores, pode se ler: expectador, expectadora. No lugar de currículo:<br />

pode ser ler: filme.


necessariamente se enquadram nos modelos desejados para o uso do sexo<br />

que fora historicamente institucionalizado pelas muitas pedagogias culturais.<br />

Por modelos desejados, normalizados, normatizados, tendo por referência a<br />

instituição escola e a norma posta para se pensar na organização familiar,<br />

enclausurada, possível de ser governada, penso ser, nos limites de narração<br />

desse mundo, as relações conjugais [pai, mãe e filhos], estabelecidas com a<br />

moral cristã e por um princípio burguês de distinção, trazendo consigo uma<br />

lógica simbólica, ritualística e teatral, no exercício do poder disciplinar e do<br />

biopoder nas formas de governo. Mas, “o modo como as pessoas ou os<br />

eventos são representados nas instituições molda e modela as formas como os<br />

sujeitos envolvidos concebem a si, aos outros, e ao mundo em que estão<br />

inseridos.” (BUJES, 2003, p. 22). Independente da força da lei, novas formas<br />

de organização familiar estão sendo forjadas, produzindo experiências na<br />

ordem do currículo, como força-forma, desejável. Essas organizações<br />

familiares não se organizam a partir de um desejo macropolítico, ela torna-se<br />

desejável, por isso, trata-se de obra de arte.<br />

Se, só vejo o que compreendo, não posso me esquivar, por achar que<br />

meus modos de ver são resultados de uma invenção, que as pessoas com<br />

suas características, com suas marcas, com seus estilos e preferências não<br />

estão na escola e que elas não trazem para as relações escolares suas<br />

singularidades, particularidades e complexidades. As pessoas e seus<br />

processos de subjetivações estão na escola e, a linguagem em sua<br />

complexidade, ambigüidade e multiplicidades de usos e práticas como nos<br />

ensinou Foucault (2006a) Larrosa (2002), von Foerster (1996), é o instrumento<br />

que produz imagens, nomeações e representações. As pessoas estão<br />

produzidas a partir desses jogos de linguagens e por dentro dessas linguagens<br />

produzem, reafirmam, e escapam dessas representações. Essas<br />

representações são múltiplas, plásticas, multifacetadas e são vistas com<br />

algumas lentes que dispomos para lermos e relermos esse mundo que também<br />

produzimos. Atrelando linguagens, representações e imagens volto à escola.<br />

Encontramos nas escolas junto aos dispositivos disciplinares para se<br />

pensar a organização familiar, modos-formas de subjetividades sexualizantes<br />

61


que permitem professores e professoras, alunos e alunas, pais e mães viverem<br />

como obra de arte suas vidas. Encontraremos sem muita dificuldade tudo<br />

aquilo que procurarmos com nossas crenças e com as marcas que nomeiam o<br />

outro, o seu corpo e a sua diferença. Encontraremos tudo aquilo que já foi<br />

nomeado, avaliado, examinado, narrado, visibilizado, incluído e excluído. Se<br />

cairmos neste lugar que classifica os sujeitos da experiência, podemos sem<br />

muita dificuldade fixarmos os processos de diferenciação na diferença que é só<br />

do outro. Essas invenções, categorias, classificações e disposições do sujeito<br />

da <strong>sexualidade</strong> num quadro vivo são muitas, continuam sendo inventadas e<br />

também disputadas. Precisamos ficarmos cuidadosos com a constituição desse<br />

quadro! Mas as formas de vida, a produção de novas formas de família, não<br />

saem de cabeças iluminadas. Essas formas de organização familiar são<br />

paridas de condições materiais de existência, de relações com o outro e dos<br />

possíveis que aí se engendram outras lógicas operacionais, sempre sociais,<br />

sempre na relação com os outros e com o mundo.<br />

Tendo a escola como palco, vou compreendendo que a <strong>sexualidade</strong> é<br />

social, vai se forjando nos trabalhos de negociações, no que passa a ser<br />

aceitável, independente da moral [pedagógica] e da lei educacional. As<br />

pessoas estão na escola e com elas, suas formas inventivas de viver, as mais<br />

diferentes experiências de si. Nessas experiências entretecidas por saberes e<br />

poderes, as pessoas são interpeladas a se tornarem algo desejado pelo poder<br />

disciplinador das biopolíticas e pelo tom novidadeiro do currículo. Essas<br />

novidades são vistas por alguns como um conjunto potencialmente testado<br />

pelas tecnologias das biopolíticas e por suas políticas de inclusão, que<br />

objetivam, insistentemente, otimizar/normatizar/normalizar/moralizar a vida da<br />

população. É preciso estranhar os discursos e as práticas sobre o currículo,<br />

para compreender em que estamos nos transformando.<br />

Em minhas andanças pela escola na condição de professor, e não só,<br />

sempre suspeitei das tentativas de imprimir nas práticas e nos saberesfazeres<br />

(Ferraço, 2005) de professores o legado frio da última lei e do último grito da<br />

moda/discurso educacional. Nessas andanças, ocupando diferentes posições<br />

de sujeito, percebo que professores e alunos deixam suas marcas naquilo que<br />

62


tradicionalmente aprendemos por currículo. O currículo oficializado pela<br />

modernidade serviu (e serve) como dispositivo técnico de formatação e<br />

enquadramento de uma forma de conhecimento disciplinar, fragmentado,<br />

desacontecimentalizado e para a invenção de um sujeito soberano, identitário,<br />

centralizado, livre e autônomo. Silva (1999: p.113), pensando sobre<br />

conhecimento e sobre o sujeito do conhecimento dessa racionalidade,<br />

argumenta que: “No quadro epistemológico traçado pelo pensamento moderno,<br />

o sujeito está soberanamente no controle de suas ações: ele é um agente livre<br />

e autônomo.[...] seguindo Descartes, ele é identitário: sua existência coincide<br />

com seu pensamento.“<br />

Sirvo-me, mais uma vez, de Silva (1999), como resposta ainda que<br />

parcial, mas que produz sentido à ideia que temos de currículo/conhecimento,<br />

ou, para o sentido impresso à organização do conhecimento que se foi<br />

tornando tradicional, oficializado, desenvolvido na escola, pelas atitudes da<br />

modernidade. Esse princípio tradicional de praticar o currículo/conhecimento,<br />

fincado pela modernidade, tornando-se norma, só se fez possível por imprimir<br />

certa cientificidade [técnicas] nos saberes e fazeres de professores, que, por<br />

sua vez, requeriam também a educação como ciência, separando-a do<br />

conhecimento comum. Representações hegemônicas com roupagens<br />

científicas acerca do outro, da verdade, da realidade, engenhosamente<br />

articuladas, foram adentrando a escola, a serviço das estratégias políticas de<br />

governamentalização do sujeito e da população. Ainda que para alguns,<br />

estejamos vivendo tempos que estão sendo considerados pós-modernos: O<br />

currículo existente é a própria encarnação das características modernas. Ele é<br />

linear, seqüencial, estático. Sua epistemologia é realista e objetivista. Ele é<br />

disciplinar e fragmentado. (Idem, p. 115),<br />

O currículo escolar servindo de seus objetivos e da ambiguidade do<br />

tempo, ora moderno, ora, pós-moderno, com toda a pompa que lhe cabe,<br />

assumindo formas diferenciadas de narrações, permeadas por discursos<br />

mirabolantes de especialistas, foi e ainda continua a ser apresentado na escola<br />

como um caminho, um programa de confiabilidade na produção de<br />

condutas/comportamentos e saberes objetivamente esperadas. E dessa forma<br />

63


também continua sendo, em muitos casos, praticado, pois independente do<br />

currículo prescrito, seus conteúdos, formas e valores hegemônicos constituem<br />

a subjetividade de muitos sujeitos da escola. Esses objetivos não alcançam o<br />

sucesso esperado em seu empreendimento, pois, se enredam em realidades<br />

que não foram capturadas por essa forma de racionalidade. Os objetivos e<br />

empreendimentos dessas formas de governo fracassam em sua soberania.<br />

Será? Se fracassam, porque ainda temos problematizado tais questões? Não<br />

podemos negar que as ações de governo, “implementam programas que<br />

pretendem tanto modelar os eventos em domínios como o trabalho, o mercado,<br />

a família, a escola, como produzir valores considerados importantes na esfera<br />

pública, como prosperidade, eficiência, saúde, bem-estar, educação.” (BUJES,<br />

2003, p. 197).<br />

As formas de governos da população precisam ser constantemente<br />

reforçadas pela via da institucionalização de um currículo oficializado. E<br />

quando, via educação formal, estrategicamente produzem efeitos de liberdade<br />

nas decisões de como usar, praticar, produzir experiências nesse currículo<br />

oficializado, avaliam o vivido/praticado/experienciado a partir das diferentes<br />

formas de controle que as tecnoburocracias inventam para mostrar os efeitos<br />

de seu poder. Foucault (2002, p. 154) nos ensina que “O investimento político<br />

não se faz simplesmente ao nível da consciência, das representações e no que<br />

julgamos saber, mas ao nível daquilo que torna possível algum saber.”<br />

Alguns discursos do currículo e do pensamento pedagógico de nossa<br />

época, e não só, trazem experiências/práticas/atitudes de professores, escolas,<br />

municípios e países, que em suas singularidades são transformadas pelas<br />

manobras das biopolíticas em referência para uma forma de avaliação,<br />

“constituindo o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de<br />

saber.” (idem, p.160). Essa forma de avaliação/exame/normatização e<br />

regulamentação, colocada como elemento aparentemente natural e<br />

imprescindível às políticas de controle de qualidade do conhecimento da<br />

população pela educação, é a garantia do exercício de poder dos governantes.<br />

Nessas ações de governo, vê-se garantindo uma crença mantenedora de<br />

hierarquias sociais resultantes das escolhas de saberes e poderes excludentes<br />

64


que sutilmente corrigem, normalizam, quantificam, hierarquizam, classificam,<br />

punem e gratificam. Essas sanções e gratificações não passam somente pelo<br />

homem-corpo, suas intenções são a população, transformadas em quadros<br />

vivos. Podemos tomar como constituinte desses quadros vivos as escolas,<br />

municípios, regiões e países.<br />

A avaliação vem servindo ao controle da multidão dispersa em suas<br />

particularidades, à manipulação de saberes representados em gráficos e<br />

tabelas, produzindo estratégias de correção, estabelecendo competências e<br />

habilidades definidas como necessárias para os tempos atuais. As estratégias<br />

de controle/correção/recuperação vão sendo produzidas por políticas<br />

compensatórias de inclusão da diversidade; ela própria, muitas vezes,<br />

fabricada. por meio das representações e categorizações da identidade, e<br />

transformada em segmentos de mercado. Nessas avaliações, os saberes<br />

disciplinarizados e os sujeitos capturados por esses saberes estão sendo<br />

disputados.<br />

Essas formas de fazer escola, vindas de fora e do alto, são colocadas<br />

pelos discursos e dispositivos pedagógicos como um caminho que pode se<br />

apresentar para aqueles [tecnocratas] que determinam o que se deve ensinar e<br />

aprender na escola, como caminhos seguros. Uma vez que foram testados e<br />

validados por aqueles que se acham, via uma certa racionalidade, deter o<br />

poder de decidir para além do bem e do mal, com suas plataformas discursivas<br />

e políticas, que naquele momento enunciam o que é bom e ruim, correto e<br />

incorreto, certo e errado, e, além disso, o que devemos ensinar e o que<br />

aprender na escola. Os discursos sobre o currículo chegam à escola<br />

entretecidos por um aparato teórico, ou por fios soltos de teorias que não dizem<br />

muita coisa, ou dizem outras coisas para os que irão articulá-los em suas<br />

práticas. Alves (2002, p.34), a este respeito, nos diz que “Tradicionalmente, é<br />

assim que é entendida a criação curricular: como um processo de elaboração<br />

de um documento formal que posteriormente será implementado nas escolas.”<br />

Entretanto, como nos ensinou Bhabha (1998), o discurso da autoridade<br />

também é ambivalente e guarda as marcas dos conflitos, afiliações, disputas e<br />

65


negociações em sua tessitura. E essa ambiguidade, por sua vez, engendra<br />

uma multiplicidade de apropriações possíveis.<br />

Juntamente com esses pacotes, a lista do receituário cresce, e as<br />

mensagens teorizantes podem causar a partir de estratégias eloquentes de<br />

sensibilização e de investimentos mínimos na capacitação/formação de<br />

professores a movimentação de diferentes reações, de saberes reconhecidos<br />

ou não reconhecidos. Sua chegada produz muitas coisas! Só não produz<br />

paralisia. As pessoas movimentam-se, reagem, contestam, produzem. As<br />

pessoas não são ceras moldáveis. As pessoas desconfiam/reagem/resistem a<br />

esses efeitos normatizantes de condutas e comportamentos, que são<br />

impressos nos textos/discursos do currículo e, ao reagirem, produzem.<br />

Desconfio e, não sou o único, dos discursos do currículo prescritivo que<br />

nos chegam à escola, como: “isso é a legítima cultura”, “esse conteúdo é mais<br />

importante do que o outro”, “isso é sério”, “essa disciplina é necessária”. Nessa<br />

experiência com a escola, presenciando a chegada de diferentes<br />

textos/discursos sobre o currículo, ia/vou presenciando e percebendo também<br />

que professores e professoras dissimulam e negociam à recepção desse<br />

documento. Parece-me que está presente nesta arte de dissimular o espaço de<br />

resistência do cotidiano, não uma resistência permanente, mas uma<br />

resistência/força que, se misturando a elementos heterogêneos, movimenta<br />

professores e professoras ao escape do já conhecido e do olhar que tenta nos<br />

produzir do alto e de fora. Com esses escapes, linhas de fuga, através da<br />

dissimulação e negociação, sabe-se poder esquecer, transformar, (re)inventar<br />

ou quem sabe, a partir de tantas outras redes e táticas que são tecidas na<br />

escola, enredá-los a partir das oportunidades cotidianas.<br />

Sabemos que o conhecimento se oportuniza e se produz nas<br />

significâncias das redes de conhecimentos e por acontecimento(s). Mas, por<br />

mais que acreditemos na força do acontecimento e nas redes de<br />

conhecimentos, não podemos, com base numa posição política, dizer que o<br />

currículo praticado se processa no deixar rolar, para ver o que acontece. Se<br />

deixarmos rolar, pode ser também que não role nada, afinal se currículo é um<br />

66


campo de batalha, na condição de alunos, de professores e de gestores,<br />

também estamos na disputa. São nesses acontecimentos, dessas disputas,<br />

transformadas em currículo praticado, que o conhecimento se processa e<br />

produz significados outros nas relações vividas entre alunos e professores.<br />

Ferraço (2005, p.32), pensando os currículos numa perspectiva do<br />

realizado/praticado/vivido/experienciado, diz que “É somente e a partir do<br />

momento em que são lidos, discutidos, ensinados e enredados pelos sujeitos,<br />

que passam a ter algum significado.” E problematizando esses significados,<br />

poderíamos perguntar: O que eles produzem?<br />

Assim, entrelaçando-me ao vivido na escola, vou percebendo e sentindo,<br />

a partir das muitos fios de saberes das redes cotidianas do fazer escola, que<br />

professores e alunos transgridem o receituário das tecnocracias impressas no<br />

currículo prescritivo, oficializado, alterando-o e imprimindo seus significados.<br />

Não sei até que ponto e quando as teorias/textos/discursos classificados por<br />

tradicionais de se pensar e querer o currículo prescritivo na escola teve a sua<br />

confirmação como cópia fiel na transposição didática. Os significados<br />

impressos na vivência do currículo não podem entrar na perspectiva prévia do<br />

que vem a ser considerado bom ou ruim, é uma questão de ocasião, de<br />

contextos, de sujeitos, de representações, de subjetividades, significações e de<br />

disputas.<br />

Sabemos que toda escolha é sempre negação de tantas outras e que<br />

em nossas escolhas estão também as marcas políticas que as configuram<br />

como práticas, saberes, fazeres, arte e experiência. É sabido que o currículo<br />

carrega marcas do poder, reproduz e afirma desigualdades, dimensiona o<br />

modelo de homem desejado, mas, é sabido também que não existe um poder<br />

como força soberana. Foucault (2006, p. 183) lança um alerta, dizendo que “O<br />

poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só<br />

funciona em cadeia.” E se funciona em cadeia é porque em toda parte está<br />

sendo disputado.<br />

Aproveitando da circularidade apontada por Foucault, Silva (1999),<br />

sintetiza estas questões dizendo que do currículo podemos fazer múltiplas<br />

67


leituras, o que vai estar em jogo são as lutas travadas entre grupos de<br />

pesquisas do currículo e de nossas ferramentas de problematizações. Sendo o<br />

currículo e os discursos produzidos sobre o currículo parte desta luta, em<br />

diferentes campos disciplinares, o mesmo é um campo aberto de disputas,<br />

contestações, resistências e efeitos de poder. Por isso,<br />

68<br />

O currículo é lugar, espaço, território. O currículo e relação de poder.<br />

O currículo é trajetória, viajem e percurso. O currículo é<br />

autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja<br />

nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. (Idem,<br />

p.150)<br />

Bebendo em todas as fontes, como nos ensina Alves (2001), tentarei<br />

fazer aproximações de campos discursivos, ou de perspectivas teóricas<br />

diferentes, pensando ser possível, a partir de diferentes fontes e intenções,<br />

problematizar o currículo oficial e o currículo realizado nas escolas. Alves<br />

(2002, p.81), enfatiza que precisamos “[...] assumirmos que há uma pluralidade<br />

de caminhos, na qual nenhum é privilegiado, nem subordinado em relação a<br />

um outro.” Estas aproximações teóricas, epistemológicas e imetódicas dar-se-<br />

ão por querer problematizar com a escola, temas enredados pelos<br />

discursos/textos/práticas da <strong>sexualidade</strong>(s) e do currículo(s). Essas<br />

aproximações se dão por acreditar na perspectiva dos currículos oficializados,<br />

realizados, vividos, praticados, tecidos em redes de saberes e fazeres e por me<br />

aproximar, sem nunca ter saído das redes de solidariedades, afetos, amizades<br />

e de compartilhamento do cotidiano da escola.


2- Ressonâncias de muitos outros, potências e convites de pesquisa<br />

69<br />

O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se<br />

guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento,<br />

uns com os outros acho que nem se misturam. Contar seguido.<br />

Alinhavando, só mesmo sendo coisas de rara importância.<br />

(GUIMARÃES ROSA, 2001, p.115)<br />

Puxando fios de histórias, fios outros, fios [des]governados, fios de rara<br />

importância, fios que me são importantes alinhavar às tramas de uma rede-vida<br />

arteira, feito rendeira, enredando-os aos discursos sobre <strong>sexualidade</strong>(s) e<br />

currículo(s), isso apresenta-me como um grande desafio. O desafio à<br />

problematização dessa temática não brota como desejo e projeto de pesquisa<br />

do nada. É, antes de tudo, uma provocação às relações com um mestre ao<br />

estilo do cuidado de si, como técnica de subjetividade. No cuidado de si tem<br />

sempre a necessidade de passar pela relação com um outro que é o mestre,<br />

porém, o que define a posição do mestre não é o que ele ensina, muito menos<br />

as capacidades desenvolvidas a partir de seu trabalho intencional sobre o<br />

outro, pois o que define a posição de mestre no cuidado de si “é que ele cuida<br />

do cuidado que aquele que ele guia pode ter de si mesmo.” (FOUCAULT: 2004,<br />

P.73)<br />

Na condição de mestre, Regina Leite Garcia 4 (2004) me fez um<br />

convite/provoção, na escrita de um artigo 5 sobre [homos]<strong>sexualidade</strong> e<br />

educação, mediante os muitos fios de conversas tecidas no Curso de Mestrado<br />

(2002-2004) em Educação da Universidade Federal Fluminense sobre<br />

<strong>sexualidade</strong>, currículo, docência e escola. Não que esse tenha sido o meu<br />

tema de estudo no curso de mestrado, mas volta e meia, estávamos como nos<br />

ensina René Lourau (2004) implicados nessas discussões. Pois naquele grupo<br />

se conta, reconta, alinhava e problematiza muitas histórias de escola e que,<br />

nessas histórias, a <strong>sexualidade</strong> como potência de estudo e problematizações<br />

sempre se fazia presente em nossas conversas. Éramos levados e tragados<br />

pela rede do outro, por isso estávamos implicados com o outro e com a<br />

4 Regina Leite Garcia é professora da Universidade Federal Fluminense e coordenadora do GRUPALFA.<br />

5 RODRIGUES, Alexsandro. Homos<strong>sexualidade</strong>: um descobrir cotidiano. In: A página da Educação,<br />

Portugal Ano XIII (133),abril de 2004.


pesquisa do outro! Naquele grupo de pesquisa, ninguém estava imunizado ao<br />

outro e suas histórias. Éramos capturados pela singularidade das redes do<br />

outro e, na complexidade de suas histórias, nos enredávamos, tornando-nos<br />

parte na condição de mestres e discípulos uns dos outros.<br />

Que susto! Que desafio! Por onde começar esta reflexão com o<br />

cotidiano escolar sobre: [homos]<strong>sexualidade</strong>s e educação? O que essa<br />

discussão poderia nos ajudar para pensarmos o cuidado de si e o cuidado do<br />

outro, como forma de desconstrução de algumas narrativas? Qual seria o<br />

melhor fio a puxar, se é que existe o melhor? Sabendo ainda que todos estes<br />

fios poderiam estar embolados, com nós a serem desatados e alguns já<br />

esgarçados nos processos históricos que os construíram e os realimentaram<br />

de conceitos e pré-conceitos. Encontrava-me, naquele momento, no lugar da<br />

dispersão, tentando encontrar fios de histórias e memórias, feitos de afetos,<br />

percepções, sentimentos, emoções, linguagens e imagens para dar início<br />

àquela conversa acirrada, pois, como nos ensina Guimarães Rosa (2001, p.<br />

155), “[...] essas são as horas da gente, as outras, de todo tempo, são horas de<br />

todos.”<br />

Buscava esses fios soltos, imanentes, não com a intenção de encontrar<br />

a origem de uma <strong>sexualidade</strong> como razão de todas as coisas, longe disso, pois<br />

com Foucault (2006, p.18), aprendo que “o que se encontra no começo<br />

histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a<br />

discórdia entre as coisas, é o disparate.” Buscava, sim, na escrita daquele<br />

texto, fios de rara importância, que a mim naquele momento se apresentavam<br />

seguros, mas não um lugar de conforto para pensar a proposta/desafio de<br />

Regina Leite Garcia. Precisava de um fio, um ponto, um nó, um enlace, para a<br />

aventura da partida. Assim, fui puxando fios soltos da infância e das<br />

lembranças dos gritos em coro dos colegas da escola primária ao dizerem:<br />

mulherzinha, mulherzinha, mulherzinha. Seguindo os rastros de Foucault<br />

(2006), sei que ali não estava a origem preservada de uma forma de<br />

<strong>sexualidade</strong>, mas sim a dispersão e a materialização de vários discursos que<br />

produzem formas de subjetividades para se pensar a produção de<br />

<strong>sexualidade</strong>(s) na escola e de uma <strong>sexualidade</strong> masculina.<br />

70


Resolvi puxar um fio desse lugar, lugar praticado para afiar as tramas da<br />

conversa colocada como desafio de escrita. Ao puxar esse fio solto e embolado<br />

da infância, das horas que são da gente, imanente, não o puxei como<br />

revanche, pois não era essa a intenção daquele texto. Busquei ressonâncias e<br />

marcas que o discurso disciplinar pode produzir no corpo e do não<br />

entendimento em muitos momentos de sua produção, uma vez que o corpo,<br />

ainda que de forma provisória, produto de cultura, é construído nas tramas da<br />

linguagem. Goellner (2003), ajuda-me a pensar e entender o corpo como<br />

constructo cultural e social, aberto às muitas possibilidades de descobertas,<br />

significação, invenção e reinvenção. O corpo, como ela nos diz, não é, um a<br />

priori, uma essência com natureza absoluta. O corpo é:<br />

71<br />

provisório, mutável e mutante, suscetível a inúmeras intervenções<br />

consoante o desenvolvimento científico e tecnológico da cada cultura<br />

bem como suas leis, seus códigos morais, as representações que<br />

cria sobre os corpos, os discursos que sobre ele produz e reproduz.<br />

(Idem, P. 28)<br />

Ainda que não entendesse o coro dos meninos em suas ressonâncias, ia<br />

captando sensações e efeitos de poder que pretendiam dar forma a um<br />

determinado tipo de sujeito e a uma determinada forma de <strong>sexualidade</strong>. Esses<br />

discursos sexualizantes, culturalmente distribuídos, ao produzirem efeitos e<br />

representações para uma condição sexualizada, para um corpoidentidade,<br />

revelam o que e quem os pretendiam fixar: a heteros<strong>sexualidade</strong> machista ou a<br />

submissão das meninas? O que será que se passava nas cabeças daqueles<br />

meninos ao colocarem em prática um determinado currículo na escola?<br />

Ofensa? Ofensa a quem? Não seria essa uma ofensa antes de tudo às<br />

mulheres? Coitadas das garotinhas que ouviam esses gritos! Como elas<br />

também deveriam aprender seus lugares e seus significados naqueles<br />

momentos! Anterior ao enquadramento da <strong>sexualidade</strong> hetero(s)/homo(s),<br />

tivemos a classificação do corpo biológico, distinguindo o ser homem do ser<br />

mulher, o ser menino, do ser menina, o ser forte do ser fraco. Com essa<br />

classificação que toma o biológico por referência, chegamos à distribuição<br />

desigual de poder, de lugares, de direitos, de valores, de trabalho, de respeito e<br />

muito mais. As representações sobre o corpo são “Sempre temporárias,


efêmeras, inconstantes e variam conforme lugar/tempo onde este corpo circula,<br />

vive, se expressa, se produz e é produzido.” (Idem, p. 29)<br />

Mexer com a <strong>sexualidade</strong>, com currículo e corpo é revirar tudo isso! Às<br />

vezes é ter que rever os conceitos que nos foram colocados como forma<br />

idealizada de ter/ver/sentir o corpo como território identitário..., é ter que se<br />

deslocar e desenraizar de alguns lugares [corpo-<strong>sexualidade</strong>] onde estamos<br />

estabelecidos por algum tempo. É desnaturalizar, é estranhar, é exercitar<br />

nossa liberdade. O corpo que me parecia ser um lugar de exercício para certa<br />

autonomia e intimidade é tomado de forma sutil pelas diferentes pedagogias<br />

culturais que o disciplinam, identificam, nomeiam, investem e o controlam. O<br />

corpo e a <strong>sexualidade</strong> não nos pertencem. Cada vez mais, o corpo está sendo<br />

reduzido ao seu mínimo biológico como nos diria Perbarlt (2007). Estamos nos<br />

submetendo: voluntariamente a uma acesse cientifica e biológica, onde o<br />

investimento estético se reduz ao próprio corpo e a vida bela como obra de<br />

arte, cai no esquecimento ou nas malhas das biopolíticas. Por acesse podemos<br />

compreender, com a ajuda de Foucault (2004, p. 505), ser “o conjunto mais ou<br />

menos coordenado de exercícios disponíveis, recomendados, até mesmo<br />

obrigatórios, ou pelo menos utilizáveis pelos indivíduos em sistema moral,<br />

filosófico e religioso, afim de atingirem um objetivo espiritual definido.”<br />

O corpo desejado e desejável vem sendo transformado nos últimos<br />

tempos no corpo esculpido/fabricado e capturado pelas tramas das ciências, do<br />

capital, do Estado, da mídia, e por que não, pelo currículo da escola. Com esse<br />

raciocínio, Pelbart (2007), enfatiza que “Desde algumas décadas, o foco do<br />

sujeito deslocou-se da intimidade psíquica para o próprio corpo. Hoje, o eu é o<br />

corpo.” O corpoidentidade tornou-se o nosso cartão de visita, com ele se chega<br />

e acessa algo desejado, porém não podemos esquecer que esse corpo possui<br />

uma longa história construída e muito ainda a construir. Por isso precisamos<br />

nos enredarmos e trançarmos diferentes redes de conhecimentos, para<br />

ouvirmos e aprendermos as outras história que o corpo ainda pode nos contar.<br />

Azevedo (2001), em um de seus textos que trata da tessitura do<br />

conhecimento em redes, tem por fio condutor a polêmica travada em diferentes<br />

72


áreas do saber, em torno de um crânio, que fora encontrado em 1970, no fundo<br />

de uma caverna e guardado no museu da Quinta da Boa vista. Certo dia esse<br />

crânio foi mirado pelo olhar interessado de um cientista, que, trançando<br />

diferentes redes, fez esse crânio contar outra história. Esse crânio foi<br />

identificado como sendo de uma mulher e essa foi nomeada por Luzia. Ao<br />

fazerem esse crânio falar, ele nos contou uma história iniciada há 11.500 anos.<br />

Entrelaça em torno desse fato, saberes da comunicação, da economia, da<br />

arqueologia, da política, das artes e tantos outros. Esse crânio ao ser visto a<br />

partir de diferentes olhares, contou-nos outra história sobre nossos<br />

antepassados e, por intermédio desse fio, as redes de conhecimento foram<br />

tecidas, destecidas e retecidas. Uso um pouco dessa problematização em<br />

torno do crânio de Luzia para mais uma vez salientar a importância do outro em<br />

nossas vidas e no lugar da admiração, falar em uníssono com essa<br />

pesquisadora. “Ah! As mulheres! Sempre encontram uma forma de aparecer e<br />

de abalar as certezas de seus companheiros de jornada neste mundo, os<br />

homens.” (AZEVEDO, 2001, 56) E isso também tem a ver com corpo e<br />

representação. Se o corpo do homem é marcado, representado, pela evidência<br />

(pênis) e, portanto, pela certeza do que lhe garante essa condição de homem,<br />

o corpo da mulher é marcado, representado, pela ausência dessa evidência,<br />

portanto pela incerteza que lhe garante essa condição.<br />

Assim como o crânio de Luzia nos contou outra história sobre nosso<br />

passado e sobre nossos antepassados, a provocação de Regina Leite Garcia<br />

produziu em mim, inquietações, insegurança, curiosidade e estranhamento no<br />

que diz respeito à naturalização do corpo, da <strong>sexualidade</strong> e do currículo na<br />

produção do sujeito do conhecimento e como conhecimento da modernidade.<br />

Em busca de outra compreensão para a temática anunciada, muitas redes<br />

estão sendo tecidas! Nesse sentido, o que me parecia familiar e natural, não<br />

era conhecido. À medida que avoluma o meu estranhamento e a fragilidade do<br />

meu conhecimento sobre [<strong>sexualidade</strong> e currículo] e o meu (re)conhecimento<br />

do poder que pode ser produtor, como nos ensina Foucault, presente nas<br />

resistências, insistências e invenções cotidianas de alunos(as) professores(as),<br />

aumenta ainda mais o meu desejo de compreender o desconhecido e de<br />

responder, não como última palavra a provocação colocada por Regina Leite<br />

73


Garcia, que na posição de mestre “encontra condições de cuidar do cuidado<br />

que o discípulo tem de si próprio.”(FOUCAULT: 2004, p.73)<br />

Não se pode pensar poder no sentido colocado por Foucault,<br />

desatrelado das resistências e das insistências como práticas cotidianas<br />

produtoras de outros possíveis. Faz-se necessário pensar, com ajuda de<br />

Machado (1999) que as subjetividades podem também se tornar herméticas a<br />

novas experiências, uma vez que nem todos pensam, vivem e experienciam os<br />

acontecimentos do mesmo lugar. Seria ingênuo, neste trabalho, tentar<br />

enquadrar todo(a) aluno(a) e professor(a) no lugar homogêneo da <strong>sexualidade</strong><br />

heterossexista, caso o fizesse, estaria fechando e negando o caráter subjetivo<br />

e fluídico das formas de viver a(s) <strong>sexualidade</strong>(s), de construir e governar o<br />

corpo. Nos fragmentos da história da <strong>sexualidade</strong>, como nos fala Foucault, os<br />

homens, ao serem produzidos heteros, ativos, fortes e racionais, vão<br />

produzindo a subjetividade masculina. Ao se tornarem sujeitos de uma forma<br />

subjetiva de <strong>sexualidade</strong>, produzem seu oposto.<br />

Não somos somente professores(as) e alunos(as) nas escolas e não<br />

somos somente a escola e aquilo que o currículo escolar nos fez, nos faz e o<br />

que fazemos dele. Somos muito mais que isso, somos redes, redes-vida.<br />

Fazemos e desfazemos escola, fazemos e desfazemos currículo, fazemos e<br />

desfazemos a nós mesmos. Penso assim, na companhia de Ferrari (2005,<br />

p.85),pois “A pluralidade de situações vivenciadas e de espaços frequentados<br />

pelas pessoas, hoje em dia, indica que existem possibilidades e lugares que<br />

fazem emergir diferentes e novas identidades.”<br />

Nesse lugar processual de produção de subjetividades, que me é o<br />

cotidiano com tudo aquilo que o tece, formando redes-vida, a pluralidade tende<br />

a acontecer. Ocupamos posições de sujeitos e produzimos identificações<br />

através dos lugares que nos tocam [corpo/sexo/sexualidadade/ gênero/<br />

classe/raça/religião/nacionalidade, etc.] Nessas posições e identificações,<br />

lutamos por questões de ordem pessoal e coletiva, sendo convocados por<br />

diferentes forças e contextos. No cotidiano, junto às posições que ocupamos e<br />

às forças que nos movimentam, as redes de solidariedades estão sendo<br />

74


tecidas. As pessoas são tocadas/sensibilizadas por questões que<br />

aparentemente são dos outros e, ao solidarizarem-se com o outro, aproximam<br />

interesses e tecem relações de amizades que independem das identificações e<br />

das posições que estamos ocupando naquele contexto, naquele momento.<br />

Ao rememorar fragmentos da infância no espaço escolar, e não só, e<br />

nem sempre me ver reconhecido naquilo que os olhares de alguns elegeram<br />

como o diferente e não a diferenciação, a curiosidade e a fragilidade dos meus<br />

saberes foram produzindo interesses vinculando-o ao programa de pós-<br />

graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo [UFES] no<br />

campo de confluência: Cultura, currículo e formação de educadores. Fui-me<br />

indignando, na condição de professor, com as ausências deste debate<br />

[<strong>sexualidade</strong>-corpo] e com sua presença tácita no cotidiano escolar e vendo<br />

também a indignação de alunos e professores, que, ao contarem a vida,<br />

denunciam tal questão, que a persigo como possibilidades de aprendizagens e<br />

problematizações no curso de doutorado. Fui-me indignando com formas de<br />

silenciamentos, com identificações, com nomeações, com classificações, com<br />

definições de espaços, com os ditos e não ditos, que começo a perseguir como<br />

projeto de vida e de estudo a(s) <strong>sexualidade</strong>(s), o currículo e vice-versa.<br />

Somente percebendo a importância do outro em minha vida, comecei a<br />

estabelecer sentidos para a existência de uma multiplicidade de subjetividades<br />

que até então só conseguia ver do lugar que me era confortável (heteros e<br />

homos).<br />

Estando na companhia do outro como elemento potencializador de<br />

mudanças possíveis, sustentadas por múltiplos desejos e esperanças, minha<br />

indignação ganha novas razões para acreditar que homens e mulheres,<br />

resistindo a certas discursividades e realidades, vem produzindo forças não<br />

pensadas, abalando as certezas e as estratégias das políticas de governo da<br />

população.<br />

A dimensão formativa dos acontecimentos cotidianos e das redes de<br />

relações de amizade que nos tocam implica alterações nos espaçostempos em<br />

que nos constituímos como sujeitos e essas transformações nem sempre são<br />

75


visíveis ao olhar dos que olham do alto e de longe. Acontece que as verdades<br />

racionalizadas com as quais foram e são construídas as políticas de governo<br />

da população, ignoram o acontecimento e a amizade como potencialidade<br />

política, ou não conseguem perceber/ver/sentir esses processos<br />

transformativos de subjetividades e realidades. Talvez esse não entendimento<br />

se dê, pelo fato de as transformações acontecerem num tempo vivido com o<br />

outro e essa forma de racionalidade a despreza, tendo em vista o seu caráter<br />

contingencial e fugidio. Para ver e sentir as alterações ariscas e fugidias do<br />

cotidiano e do sujeito tramado em redes de subjetividades e de querer<br />

perseguir nossos objetivos em favor de outro mundo, novas percepções, novas<br />

linguagens, novas imagens, novas formas de dizer e escrever, que não<br />

aprisionem em sua construção a potencialidade da vida precisam ser<br />

construídas. Foi fazendo perguntas sobre uma vida, a vida que tem início todos<br />

os dias, implicando-me com esta vida e com a do outro, tendo o currículo e a<br />

<strong>sexualidade</strong> como fios de muitas práticas discursivas que a dimensão do<br />

acontecimento e dos currículos realizados como espaço de criação e<br />

transformação trazem para esse estudo, outras perspectivas de<br />

problematizações das muitas técnicas de produção do sujeito de certo tipo no<br />

espaçotempo escolar.<br />

O grupo de pesquisa da UFF e da UFES, especificamente o campo de<br />

confluência do Cotidiano Escolar e do Currículo, estabelecendo espaços-<br />

tempos de interlocução com múltiplos interesses e possibilidades para a ação<br />

pesquisante, ajudou-me a querer fazer perguntas àquilo que supunha conhecer<br />

e a suspeitar daquilo que tinha como “estatuto da verdade”. Foi fazendo<br />

perguntas e me permitindo viver as crises da fragilidade do conhecimento, que<br />

começo a estabelecer sentido usual, ao que Morin (1996, p.280) nos ensina ao<br />

dizer que “Não podemos separar o mundo que conhecemos das estruturas de<br />

nosso conhecimento.” Posto isto, realço que todo agir no e com o mundo<br />

circunscreve-se numa realidade existencial, marcada por uma grande história,<br />

história feita por acontecimentos, por saberes e poderes e pelas disputas dos<br />

jogos de verdades. Sabendo disso e reconhecendo que a dimensão do nosso<br />

conhecimento é resultado aberto de relações de poder/saber e que tudo pode<br />

ser apenas mais um ponto de vista, mais um discurso, mais um texto, mais<br />

76


uma prática, a curiosidade e o suspeitar da aparente ordem das coisas tornou-<br />

se parceria constante.<br />

Na ânsia do querer conhecer, conhecendo-me e também inventar,<br />

inventando-me, vou aprendendo a aprender que a produção de “novos”<br />

conhecimentos só é possível quando nos abrimos à aventura da incerteza, num<br />

campo aberto de potências, problematizando, suspeitando e duvidando das<br />

coisas que achamos conhecer como a verdade, ou, que acreditamos no tempo<br />

presente, conhecermos. Duvidar, lançando mão dos limites da razão, ou de<br />

certa racionalidade, não é suficiente para a produção do conhecimento que se<br />

busca do tipo novo, mas se torna primordial para o enfrentamento de nossas<br />

crises. Com Morin (1996, p.277), aprendo a necessidade de desenvolvermos<br />

novos olhares, para enfrentarmos a desordem e a incerteza. Não basta<br />

apenas o olhar, é preciso (re)mexer na suposta ordem das coisas, tirá-las de<br />

seus tradicionais lugares, misturá-las. Misturando as coisas da vida cotidiana e<br />

nos misturando, a incerteza altera nossa caminhada fazendo-nos suspeitar dos<br />

caminhos por muitos já trilhados. Vamos, com cuidado, suspeitando dos<br />

perigos e das armadilhas que moram nestes caminhos e que tudo nesse<br />

caminho, ou quase tudo, é fruto da invenção humana. Sendo invenção<br />

humana, as coisas estão abertas à ambiguidade e ao jogo de poder/saber que<br />

as produzem como realidades. Como dizia a música cantada por Elis Regina,<br />

de autoria de Ivan Lins: “Vivendo e aprendendo a jogar. Nem sempre<br />

ganhando, nem sempre perdendo, mas sempre aprendendo a jogar.”<br />

Cada pergunta lançada a partir do desafio posto por Regina Leite Garcia<br />

como forma de acontecimento, misturando e dando vida às incertezas,<br />

frustrações e esperanças, aproximava-me de um mundinho e de um grande<br />

mundo praticado por uma multidão, cuja <strong>sexualidade</strong> é porta sempre aberta, e<br />

mais, se é uma política e/ou verdade sobre o sexo, continua sendo disputada.<br />

Cada pergunta lançada naquele momento, na escrita do artigo já indicado,<br />

sinalizava-me frágeis e possíveis respostas, que se abriam em fios cada vez<br />

mais interrogativos. Parecia-me que, ao sentir as crises em seus fragmentos<br />

apresentados acima, algo visceralmente forte impulsionava-me para outros<br />

caminhos, para outras paragens, para outros espaços-tempos. Nesses<br />

77


caminhos em que me fiz caminhante, as interlocuções com o cotidiano escolar,<br />

com o currículo e as leituras que nasciam dessas relações ajudavam-me a<br />

retirar algumas lentes que obscureciam o meu campo de visão para começar a<br />

compreender as múltiplas possibilidades de fazer pesquisa, compreendendo<br />

um pouco melhor as situações limites do fazer pesquisa. Isso só foi possível<br />

por atrelar as minhas incertezas a um coletivo que me fortalecia naquele<br />

momento e me encorajava na aventura do desconhecido e do muito ainda a<br />

conhecer. Estando no coletivo como espaço aberto à alteridade, na condição<br />

de eterno outro, expressando sempre uma forma diversa da atual, somos<br />

interpelados por uma série de agenciamentos “[...] formados de materiais de<br />

expressão diversos, e que produzem formas: formas-subjetividade, formas-<br />

sociedade, formas-natureza, forma-conhecimento etc – ao mesmo tempo que<br />

desmancham as formas produzidas e permitem a construção de outras.”<br />

(MACHADO: 1999, p, 153)<br />

Nesses grupos de pesquisa da UFF e da UFES, constituído por uma<br />

coletividade plural, problematizando temas emergentes do cotidiano,<br />

sensibilizando-me com as questões de estudo dos amigos, enredando-os a<br />

tantos outros que aparentemente eram sem importância, a disciplina, o rigor, a<br />

curiosidade e o prazer, estiveram atrelados a um desejo de expansão da vida<br />

como potência. Essa potência desejante como força, enreda-se a uma crença<br />

que nos faz acreditar que a vida, vida-bela, pode ser vivida como uma obra de<br />

arte sem forma. Enredando-me nos estudos com o cotidiano e com o currículo,<br />

compreendo que toda pesquisa é uma espécie de autobiografia. Com este<br />

grupo que se expande e mantém relações de aprendizagens com tantos outros<br />

grupos de pesquisa, vou revendo as questões que nos tomam sentidos e nos<br />

colocam de sobreaviso com o que sempre pareceu estar aí. Ajudado por este<br />

coletivo, vou desfazendo alguns mitos frente ao ato do pesquisar, no exercício<br />

do pesquisar. Vou percebendo que as questões que nos impulsionam ao<br />

querer pesquisar, precisam primeiramente passar pelo coração, pelo apreço à<br />

vida, pelas razões da vida de cada um que pesquisa e com as razões de um<br />

coletivo que dão sentidos a esta vida. Carlos Drummond de Andrade,<br />

poeticamente nos ensina que “O problema não é inventar. É ser inventado hora<br />

após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente.”<br />

78


2.1 Memórias galopantes, aproximações possíveis com o desejo do fazer<br />

pesquisa<br />

Entender as possibilidades e também os limites do estar sendo<br />

professor na condição de uma determinada forma de subjetividade<br />

sexualizante, me faz atrelar parceria com um determinado tempo para ser<br />

possível problematizar as forças que interferem/produzem essa escolha. Nunca<br />

entendi bem ao certo como é que foi se produzindo cotidianamente uma forma<br />

subjetiva de <strong>sexualidade</strong>, muito menos como essa foi tomando forma e se<br />

estabelecendo, forjando, criando e sendo criada fora de uma lógica que se<br />

pretende dominante. Vale ressaltar, mais uma vez, que não estou em busca da<br />

origem das coisas. O que sei é que os meus não-saberes se fizeram segredos<br />

de criança, atormentando os meus pensamentos, o meu corpo, os meus<br />

desejos, a minha forma camaleônica de ser, de me esconder e, às vezes, raras<br />

vezes de aparecer.<br />

Vivi a infância aprendendo um jogo cujas regras e adversários não<br />

conhecia, jogo esse de experimentações, de negociações, de contestações, de<br />

disputas, de traduções e de mímicas. Aprendi naquele tempo que algumas<br />

coisas que se manifestavam em minha fala, em meus gestos, em minhas<br />

escolhas não eram interessantes aos olhos e ouvidos de muitos,<br />

principalmente do mundo dito e visto como masculino. Nesse contexto, estão<br />

também as mulheres de minha vida. Era preciso negociar posições para<br />

sobreviver com o ainda não conhecido, com o ainda não sentido, mas que se<br />

mostrava latente para alguns, não necessariamente para mim. Bhabha (2005:<br />

p. 130), em seus estudos pós-coloniais nos ensina que a mímica “[...]<br />

intensifica a vigilância e coloca uma ameaça imanente tanto para saberes<br />

normalizados, quando para os poderes disciplinados.”<br />

À medida que ia crescendo, para dentro e para fora, misturando o<br />

cuidado de si, com o imperativo socrático do conhece-te a ti mesmo e com o<br />

peso da máxima cartesiana do penso logo existo, ficava atento, por saber das<br />

punições, que estava sendo, objeto de discussões, de interrogações, de<br />

críticas e de culpabilizações. Por volta dos meus seis anos de idade, assistindo<br />

a uma telenovela em família, disse: ─ Como aquele moço da novela é bonito!<br />

79


Como resposta, ouvi de meu pai: Homem não acha homem bonito. É pecado<br />

homem achar homem bonito. Homem precisa é achar mulher bonita.” Meu pai,<br />

ainda sem saber, traduzia em discurso as primeiras lições da pedagogia da<br />

<strong>sexualidade</strong>, como elucida Louro, (2001). Ao dizer essas palavras, trazia<br />

consigo um princípio de família patriarcal representada na autoridade do nome<br />

do pai e de sua tradição, como nos ensina Albuquerque Júnior (2002). Nesse<br />

discurso, estava uma das muitas investidas da história das masculinidades em<br />

torno do falo.<br />

Com o nome do pai, durante muito tempo, poderia ver mirado certa<br />

identidade, perspectiva de futuro da mesmidade do pai e o gozo de todo<br />

prestígio [social, político] que poderia trazer tal nome. O nome do pai, durante<br />

muito tempo, significava honra e continuidade. Para Albuquerque Júnior (2002:<br />

p.114) na modernidade “Outras instâncias passam a ser importantes centrais<br />

na distribuição de sentidos e modelos para a produção da subjetividade<br />

masculina. [...] O pai, agora, diz-se em vários nomes.” Não só o pai tem o<br />

poder de produzir masculinidades. Ainda que a família patriarcal vá disputando<br />

espaço com a família burguesa no que ela possui de anonimato e emergência,<br />

o nome do pai, da família patriarcal continua ressoando na educação de<br />

meninos e meninas.<br />

Ainda que na modernidade outras instâncias se encarreguem de<br />

produzir por outras vias subjetividades masculinas que não sejam pelo sangue,<br />

pelo cinturão e pela voz que nos diga diariamente [sou seu pai], o nome do pai<br />

e sua tradição continuam se embolando nos muitos sentidos dado à<br />

masculinidade pelas atitudes da modernidade. Se outras instâncias corroboram<br />

com a formação da masculinidade de um tipo, não posso negar que foi na<br />

afirmativa de meu pai que, pela primeira vez um adulto me disse, com todos os<br />

sons que produzem ressonâncias múltiplas, que aquela forma de <strong>sexualidade</strong><br />

não era bem vinda, objeto de perigo e feria as leis da natureza e as de Deus.<br />

Nesse momento, o sexo começa a produzir discursos, cursos, entrecursos, e<br />

começo a ouvir e a sentir que meu corpo estava sendo sexualizado. As<br />

instituições disciplinares [família, escola, etc.] e sua organização burocratizada<br />

trazem marcas moralizantes e normatizantes das muitas atitudes que as<br />

80


projetaram como espaço idealizado para o governo da população e para o<br />

sujeito dos discursos da <strong>sexualidade</strong> materializada numa forma de desejo<br />

padrão. Vale ressaltar, com Barros (1999: p. 137), que não podemos reduzir<br />

„instituição‟ a uma noção de “organização ou estabelecimento social. Fazendo<br />

uso de suas palavras, realço que, neste trabalho, o termo instituição está sendo<br />

“utilizado no sentido de produção, atividade; não é algo localizável, é uma<br />

forma de funcionamento que se instrumentaliza nos estabelecimentos“.<br />

Meu irmão mais velho, ao mesmo tempo em que me protegia dos<br />

colegas que reproduziam práticas discursivas para se reconhecerem no<br />

modelo heterossexual dominante, tentava impedir-me de viver algumas das<br />

aventuras permitidas aos meninos. Observa-se que, com o uso de mímicas,<br />

que se aprende com o outro e na observação desse outro, esse controle não<br />

passa de tentativas; nele há sempre fugas, por isso, sempre há perigos nas<br />

tentativas de colonização e dominação. Esse protetor, pelos vínculos<br />

disciplinares da instituição familiar, na mesma proporção em que me queria<br />

distante daqueles discursos e olhares que o agrediam e lhe diziam muita coisa,<br />

tentava produzir fronteiras disciplinares para barrar algumas experiências de<br />

aprendizagem e de prazer do considerado mundo feito para os meninos. Entre<br />

o querer e o proteger, a proteção como sanção e o cuidado, tentou impor,<br />

como força disciplinadora e como forma segura para a vida, o espaço<br />

estabelecido da família. A família, atrelada às diferentes demandas de governo,<br />

passa a ser a primeira instituição ortopédica do sexo e da <strong>sexualidade</strong>, dos que<br />

estão numa norma e dos que escapam dessa norma. Somos levados a viver,<br />

como nos diria Foucault (2003) uma moral do segredo da <strong>sexualidade</strong>,<br />

confiscada pelo poder da família e reservado ao quarto do casal e fortalecida a<br />

partir no século XVII, numa perspectiva política, econômica e pedagógica.<br />

Não estou aqui fechando a questão, muito menos pretendendo dizer que<br />

a(s) sexulidade(s) e as subjetividades são produzidas no universo da casa, nas<br />

relações de feminilidade, fragilidade, naquilo que se considera como delicado e<br />

sensível. O que quero dizer é que as diferentes maneiras de interdição dos<br />

prazeres se dão e se processam primeiramente no campo do privado. A família<br />

herdeira de certa moral torna-se o abrigo, o esconderijo e o lugar de „cuidado‟<br />

81


daquilo que é visto e pode se desviar de uma norma. A <strong>sexualidade</strong> vai se<br />

tornando objeto de atenção, de cuidado e segundo Foucault, passa a produzir<br />

discursos. Seguindo as pegadas do estudioso em apreço, podemos em sua<br />

companhia dizer: quando o sexo passa a ser uma coisa que diz respeito à<br />

utilidade, à procriação e às relações conjugais monogâmicas, todas as outras<br />

formas de relações sexuais passam a ser condenadas. A homos<strong>sexualidade</strong><br />

passa a ser problema da mesma forma que o adultério, o incesto, a poligamia.<br />

Todas as tentativas de ortopedia, apenas produzem e nos ensinam novas<br />

maneiras de dizer, de querer saber, nos incitam a falar, e cada vez mais falar.<br />

Achava que o discurso tinha o poder de libertar em seu curso descontínuo os<br />

que falam e os que ouvem. Com Foucault (2003, p. 96), vou compreendendo<br />

que no discurso também se está em gestação o duplo sentido. Pois através do<br />

“discurso veicula e produz poder; reforça-o, mas também o mina, expõe,<br />

debilita e permite barrá-lo.”<br />

Entre tantas coisas ouvidas na infância, num jogo incessante de<br />

reascender palavras já ditas, não me esqueço das frases cantadas em coro na<br />

escola por alguns colegas, que por sinal me incomodavam. Como poderia ser<br />

mulherzinha se era dotado de todas as evidências físicas dos outros<br />

homenzinhos? Não eram aos olhos de meus colegas que definiam menino nem<br />

menina! O que na verdade eu era para aqueles olhos? Que marcas culturais<br />

trazem o corpo para estabelecer distinções? A escola não enxergava que isso<br />

acontecia e, se via, não produzia práticas pedagógicas para problematizar a<br />

questão. Talvez a não intervenção da escola se desse pelo fato de não querer<br />

me expor e a si própria, por não saber tratar da questão da <strong>sexualidade</strong> ou por<br />

achar que eram descobrimentos e desdobramentos de futuro. Louro (2001),<br />

salienta que alguns discursos pedagógicos dominantes, durante certo tempo e<br />

ainda hoje, muitos acreditavam e ainda acreditam na necessidade de se<br />

manter a pureza das crianças e dos adolescentes, ainda que isso implique:<br />

82<br />

[...] na negação da curiosidade dos saberes sexuais. E acrescenta:<br />

Aqueles e aquelas que se atrevem a expressar, de forma mais<br />

evidente, sua <strong>sexualidade</strong> são alvo imediato de redobrada vigilância,<br />

ficam marcados como figuras que desviam do esperado. (Idem, p.26)


Misturavam-se a esse coro outras perguntas que ficaram sem respostas:<br />

Você é menino ou menina? Sabia que não era menina. Sabia que era um<br />

menino, e não, o menino. As perguntas produziam em mim estranhamento, me<br />

pondo num lugar singular e, por sua vez, complexo. Só não sabia ainda que<br />

para o que eu ainda não era, haviam inventado vários conceitos produzidos<br />

pelas ciências, que se acha com poder de desvelar todas as razões do sexo e<br />

a <strong>sexualidade</strong>, fixando, no encontro dessas razões, uma identidade normativa<br />

para o sexo e para a <strong>sexualidade</strong>.<br />

2.2 Fios de conversas interrogativas que justificam o ato sempre aberto<br />

de pesquisar<br />

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria,<br />

aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer<br />

da gente é coragem. (GUIMARÃES ROSA, 2001, p.334)<br />

Busco, neste fragmento de Guimarães Rosa, o fio que me falta e de que<br />

preciso para esta conversa. Conversa apertada, acirrada, que me desinquieta e<br />

que me aproxima de alguns sentidos que a vida pode ter. Trago Guimarães<br />

Rosa (2001) para esta conversa, por sentir que ele me ajuda a compreender,<br />

ainda que parcialmente, questões do cotidiano escolar que me parecem vitais e<br />

que necessitam ser escritas, faladas, narradas, vistas e revistas para<br />

produzirem discurso(s), outros discursos e, dentro deles, ações, reações e<br />

intenções. Nesse movimento inventivo em/de/com nós mesmos, tornamo-nos<br />

caça e caçador. Ferraço (2003, p160), pensando sobre as artes da existência<br />

no cotidiano, pondera:<br />

83<br />

[...] eu penso o cotidiano enquanto me penso; eu faço parte desse<br />

cotidiano que eu penso; eu também sou esse cotidiano; eu não<br />

penso sobre o cotidiano, eu penso com o cotidiano; esses<br />

momentos, movimentos, processos, tentativas, possibilidades, de<br />

pensar com os cotidianos, de me pensar, possibilitam que eu me<br />

conheça ao mesmo tempo que busco conhecer os outros...mas eu<br />

também sou esses outros; sou todos aqueles que ali estão; sou parte<br />

ausente de uma história passada recontada pelos sujeitos de hoje;<br />

mas também sou parte de uma história presente ainda por ser<br />

contada pelos que virão.<br />

O cotidiano escolar há muito vem sendo espaçotempo de reflexão, de<br />

resistência/insistência, dos porquês, para quê, a favor do quê/quem e contra o<br />

quê/quem. Para além disso é um espaço aberto aos conflitos – às belas e


tensas narrativas. Nesses entrecruzamentos de espaçostempos feitos de<br />

palavras, sensações, imagens, “cada um tenta dar sentido a si mesmo,<br />

construindo-se como ser de palavras a partir das palavras e dos vínculos<br />

narrativos que recebeu.” (LARROSA, 2004, p. 23). Estando nesse lugar<br />

[cotidiano escolar], na condição de professor (e não só), a questão da<br />

<strong>sexualidade</strong>, camaleonicamente forjada na sentimentalidade, na linguagem,<br />

nas sensações, no corpo que se marca de palavras, cheiros, sons e narrativas,<br />

me faço, refaço e desfaço.<br />

Minha entrada na escola na condição de professor traz marcas que me<br />

fazem querer compreender as armadilhas do discurso do outro, mas de um<br />

outro que ainda insiste em produzir o estranho em nossas escolas. Rememoro<br />

falas da escola que no momento vivido não tinha condições de contestar. Não<br />

sabia se era possível contestar, mas sabia que era possível ocupar aquele<br />

espaço na condição de professor. Falas do tipo: Agora você é um professor, já<br />

não fica bem usar cabelo grande, muito menos brincos. Sabe como é, né! Os<br />

pais podem não te aceitar aqui na escola. O professor é espelho para seus<br />

alunos. Não entendo esse espelho. Que leituras nossos alunos fazem de<br />

nossas maneiras de ser? O que esperam, enquanto projeto escolar, ver<br />

refletido no aluno? É possível perseguir a homogeneização e a nitidez do<br />

reflexo? Há reflexo? Reprodução? Há tradição ou traduções? Negociações?<br />

Astuciosamente, naquele momento, minha intenção era de ocupar para resistir<br />

e existir na condição de professor. Não utilizei de estratégia, joguei da posição<br />

que ocupava naquele momento. De certo modo, risco, medo e coragem eram<br />

uma coisa só, e a força que me movimentava a querer negociar e empreender<br />

posições com a escola. Castro (2002, p. 153), pensando sobre a ousadia do<br />

humano em seu vigor imperante e imanente pela sobrevivência, nos mostra<br />

que a vida se organiza e desorganiza numa pedagogia permanentemente do<br />

risco. Para ele, a coragem joga com “o risco, com o incerto, negocia com a<br />

incerteza, realimenta-se dela. Sem o risco não há coragem e sem coragem não<br />

há sentido em correr riscos. [...] O pensamento que não corre risco, não<br />

enxerga as fronteiras, nem desvenda além da montanha.”<br />

84


Não conseguia entender o estranhamento da diretora da escola diante<br />

dos meus cabelos e do brinco que usava. Naquele momento, experienciava as<br />

formas de controle que se propagam e ressoam no discurso. Não conseguia<br />

entender a advertência! Os meninos de cabelos grandes e usando brincos já<br />

estavam na escola. Não seria eu a referência para o uso de brincos e dos<br />

cabelos compridos. Ou seria? Era somente correndo todos os riscos, inclusive<br />

cortando o cabelo e tirando o brinco, que poderia começar a sentir a escola na<br />

condição de professor. No não-dito da diretora, podia-se ler: Guarde sua<br />

orientação sexual para você! Na escola ela não é bem vinda. Ou, ainda: Tenha<br />

a orientação sexual que você quiser, desde que ela não chegue ao espaço<br />

público da escola. São duas questões que hoje consigo perceber como<br />

diferentes. A primeira leitura me remete ao lugar fixo que possa vir a ter os<br />

discursos sobre identidade, e a segunda me faz pensar sobre a visibilidade da<br />

<strong>sexualidade</strong> e do tratamento que trazem as marcas de uma sociedade<br />

disciplinar, heterossexista e machista. O que pensar sobre as discussões que<br />

se ampliam acerca da identidade e da (in)visibilidade de nossos processos de<br />

arte-vida? Para Foucault (1982), não devemos nos posicionar no mundo e com<br />

outro por meio de uma demanda por identidade, mas nos posicionar no mundo<br />

e com o outro, na perspectiva de que, antes de qualquer coisa, ou de qualquer<br />

interesse, nos permitisse viver as nossas diferenças. As relações que devemos<br />

estabelecer conosco e com os outros “não são relações de identidade, elas<br />

devem ser antes relações de diferenciação, de criação, de inovação. É muito<br />

chato ser sempre o mesmo.”<br />

Venho interessando-me, de forma crescente e apaixonada, por<br />

compreender as estratégias de que alunos(as) e professores(as) se valem para<br />

lidar com a ambiguidade que os discursos da <strong>sexualidade</strong> apresentam no<br />

interior da escola, nos currículos realizados. Que forças nutrem o discurso<br />

sobre identidade? Quem ainda precisa da identidade, e por que precisam? Os<br />

processos de diferenciação, como estado de arte, são produzidos em que<br />

relações? Ao trazer essa temática que apenas anuncia possibilidades de<br />

leituras, procuro ficar mais atento ao paradigma/atitude de modernidade que<br />

nos enquadra e nos classifica em relação ao sexo. Foucault (1982) nos ensina<br />

que o sexo tornou-se a razão de tudo.<br />

85


Seguindo essa linha de raciocínio que classifica possibilidades, a escola<br />

em todos os seus níveis nesse último século, foi sendo transformada em<br />

espaço de atuação e profissão de uma maioria de profissionais do gênero<br />

feminino. Por que esse espaço foi se transformando em espaço de trabalho<br />

feminino? Por que isso de deu? O que isso produz? Sendo esse espaço cada<br />

vez mais ocupado por mulheres, surgem perguntas no campo da <strong>sexualidade</strong><br />

e que se abrem ao currículo: Que distância mantém a escola da(s)<br />

<strong>sexualidade</strong>(s) e de formas de subjetividade(s) que muitos teimam em não ver?<br />

Que emergências a <strong>sexualidade</strong> e os discursos sobre a <strong>sexualidade</strong> vem<br />

exigindo e provocando no interior da escola? A escola primária, lugar em que<br />

piso com ousadia, traduzindo compromissos políticos em coragem, vem sendo<br />

vista aos olhos de muitos como espaçotempo de trabalho especificamente<br />

feminino [gênero], trabalho de mulher [sexo biológico/maternidade/cuidado]. Na<br />

escola primaria, a presença das mulheres é quase que totalidade, raros são os<br />

homens que estão na escola, quem dirá nas séries iniciais. Encontrar<br />

professores aprendendo a aprender a se tornarem professores no cotidiano da<br />

escola é, cada vez mais, motivo de surpresa! Vou percebendo que o magistério<br />

no século XX, tornou se atividade de mulheres. Estudos feministas muito tem<br />

contribuído para desmistificar esse pensamento.<br />

Estudiosas feministas situam o movimento de mulheres e o feminismo<br />

em dois momentos distintos [direito ao voto e demanda por pesquisas] e nos<br />

chamam a atenção para o fato de que esse movimento é composto por<br />

diferentes grupos de mulheres e com necessidades singulares. Esse<br />

movimento, por ser multifacetado, se vale de diferentes referenciais teóricos,<br />

aproximando cada vez mais dos discursos nomeados e identificados como<br />

sendo pós-estruturalistas. Em suas lutas, ou, nas lutas que são de todos,<br />

podemos perceber que “[...] a luta pelo direito ao voto agregou muitas outras<br />

reivindicações como, por exemplo, o direito à educação, a condições dignas de<br />

trabalho, ao exercício da docência.” (MEYER, 2003, p.11) Talvez esteja aí mais<br />

uma das razões pela qual o magistério vem se tornando uma atividade<br />

feminina. Esse movimento incansável em sua luta, após acessar o mundo do<br />

trabalho, as carreiras acadêmicas reconheceram que o mundo estava escrito e<br />

86


dito de forma masculina. Seria então necessário, na perspectiva da<br />

desconstrução adotada por esse movimento:<br />

87<br />

um investimento sistemático de estudos e de pesquisas que<br />

tivessem como objetivo não só denunciar, mas, sobretudo,<br />

compreender e explicar a subordinação social e a invisibilidade<br />

política a que as mulheres tinham sido historicamente submetidos.<br />

(Idem, p.12)<br />

Se o magistério nesse último século foi se tornando atividade de<br />

mulheres, não podemos afirmar que o gênero da educação seja o feminino.<br />

Nossas escolhas, sendo elas afetivas, políticas, de gêneros, religiosas,<br />

profissionais, ou sexuais, estão quase sempre atreladas em maior ou menor<br />

proporção aos fios de diferentes redes cotidianas que trançam, (des)trançam,<br />

(re)trançam nossa existencialidade. Sabemos que o humano faz história, altera<br />

a história, num enfrentamento permanente com as diferentes formas de limites<br />

e das forças que ali se enredam. “A história não pode ser concebida como<br />

memória, mas como jogo de força, onde haverá sempre uma luta entre as<br />

forças e o contato entre elas estará sempre se modificando.” (MACHADO:<br />

1999, p.158). Se o magistério foi-se tornando uma questão de gênero feminino,<br />

precisamos ficar mais atentos aos detalhes da <strong>sexualidade</strong>, suas surpresas e<br />

os murmúrios que nos escapam na vida cotidiana e na escola, possibilitam-nos<br />

ficar atentos aos detalhes, não com a intenção de aprisoná-los, para podermos<br />

aprender com eles. Somos rede, fios de muitas histórias, de muitas invenções,<br />

somos rede-vida. Somos história, no singular e plural. Somos complexos,<br />

somos aquilo que foi tecido junto. Se acreditarmos nisso, precisamos defender<br />

e fortalecer a idéia dos que cada vez mais acreditam que “Fomos/somos<br />

marcados, assim por marcas que nem sabemos que guardamos, mas que<br />

estão em nós, deixadas pelos cotidianos das tantas escolas pelas quais<br />

passamos.” (ALVES: 2002, p.21)<br />

Como o correr da vida embrulha tudo com muitas dobras e desdobras,<br />

não sei bem ao certo como fui me aproximando da condição docente. Vou<br />

percebendo, com a ajuda de Larrosa (2004, p. 25), “que toda escritura pessoal,<br />

enquanto escritura, contém vestígios das palavras recebidas e histórias<br />

recebidas”. Recordo-me de falas frágeis, como as de minha mãe: Suas mãos:<br />

são mãos de professor, você será um ótimo professor! Engraçado, gostava de


ouvir isso! Essas palavras soavam potencialmente fortes aos meus ouvidos!<br />

Será que o outro pode marcar as escolhas de alguém a partir do formato de<br />

suas mãos, tendo no tom e no poder da palavra o suporte? É possível pensar<br />

que coisas, aparentemente sem importância, como o formato das mãos, podem<br />

produzir o desejo em alguém através do outro, em se tornar professor? Será<br />

que a condição docente é a conseqüência do ensino profissionalizante<br />

oferecido aos filhos das classes populares? Ou será que a <strong>sexualidade</strong>, com<br />

suas formas de subjetividades, aproxima pessoas que ocupam diferentes<br />

posições nas relações que se estabelecem com a <strong>sexualidade</strong> e com o sexo<br />

desse universo visto como feminino? Será que a aproximação com este<br />

universo dito feminino acontece, por ali perceber inúmeras possibilidades de<br />

solidariedade, aconchego, resistência, insistências e amizades? Muitas<br />

perguntas e poucas certezas... Essas incertezas vividas no presente permitem-<br />

nos enredar histórias de vida acontecimentalizadas aos efeitos de cientificidade<br />

das muitas atitudes da modernidade, como aproximação e problematização.<br />

Nas palavras de Goellner (2003), esse período [modernidade] é<br />

extremamente importante como fonte de análise, pois é nele que se<br />

consolidam algumas políticas de representações que marcam e identificam o<br />

corpo, com maior ou menor intensidade, produzindo algumas formas de<br />

policiamento e deciframento do corpo. Com essa atitude de deciframento,<br />

aconteceu à produção dos pares binários que veem em alguns corpos marcas<br />

que determinam a condição de seres inferiores, incompletos e estranhos.<br />

88<br />

Neste momento, despontaram algumas teorias que, utilizando-se do<br />

discurso científico, analisaram os indivíduos a partir de suas<br />

características biológicas, ou seja, de forma da aparência do seu<br />

corpo. Não apenas os analisaram, mas lhe conferiram diferentes<br />

lugares sociais. (Idem, p.34)<br />

Aproximações são possíveis, mas nunca a certeza definitiva do que<br />

realmente nos enreda na formação de nossas subjetividades, compreendo que<br />

nas interpelações de minha mãe, em seu convite, para que viesse a me tornar<br />

professor, tendo por referência o formato de minhas mãos, continha marcas<br />

dos muitos discursos científicos que toma o corpo como ponto de atuação, de<br />

classificação e, em consequência de seu poder, define alguns lugares sociais


para ocupação e utilização desse corpo. Acredito que só é possível pesquisar o<br />

cotidiano escolar quem tem perguntas. Estas perguntas, que movem<br />

incertezas, potencializam novas tantas perguntas, que neste trabalho não<br />

intenciono responder a todas, mas incorporá-las no processo de pesquisa. Por<br />

isso, venho me valendo desta forma-escrita interrogativa, numa tentativa de re-<br />

mexer o cotidiano escolar balizado por questões que estou inventando como<br />

objeto/tema e objetivo de estudo, correndo todos os riscos possíveis. Esteban<br />

(2003, p. 207), preocupada com o andar e com os riscos das pesquisas com o<br />

cotidiano, nos alerta para o fato de que muitas vezes “o pesquisador não<br />

formula perguntas ou hipóteses, ele tem respostas, conclusões, e vai buscar<br />

com as pesquisa argumentos teóricos e práticos que comprovem o que já sabia<br />

desde o início”.<br />

Neste sentido, volto a questionar: será que a ação docente, pensada<br />

como obra de arte, sempre inventiva e permanentemente outra, contribui para<br />

os processos abertos de diferenciação? Ou será que a ação docente, a partir<br />

de uma escola homogenizadora, reproduz nos discursos e nas práticas a<br />

heteros<strong>sexualidade</strong>, vistas como a normalidade? São perguntas a que me<br />

faço, sabendo que todas as questões apontadas acima são possibilidades,<br />

merecendo cuidados especiais. Não descarto nenhuma das questões<br />

levantadas na escrita deste texto como justificativa a este estudo. Justifica-se<br />

ainda para esta pesquisa, mesmo que temporariamente, a necessidade de<br />

ampliar o debate sobre <strong>sexualidade</strong> nas escolas, compreendendo também os<br />

currículos realizados/praticados/vividos por professores(as) e alunos(as).<br />

Compreendendo que na potência dessa temática, nesse estudo implicativo<br />

com a vida, que questões anunciadas e problematizadas nesse trabalho,<br />

possam vir a contribuir para que temas negligenciados em nossas pesquisas<br />

acadêmicas em educação e não só, possam expandir a outros espaços sociais.<br />

2.3 Conversas que puxam conversas, que tecem e retecem redes de<br />

conhecimentos narrativos e nos aproximam dos diferentes sentidos que a<br />

vida com a pesquisa em seus fluxos pode ter<br />

Problematizar o cotidiano da(s) escola(s) e às relações de vida, da rede-<br />

vida desejante de alunos e professores que se tecem às voltas dos muitos<br />

89


discursos do currículo é um desafio! Esse trabalho de pesquisa aposta numa<br />

atitude metodológica que se vá construindo em redes de conhecimentos, à<br />

medida que se acredita que a escola e seus discursos são tecidos, praticados e<br />

experienciados por aqueles que, estando na escola, estabelecendo relações<br />

complexas e diversas com outras tantas formas de pensar a vida, dão forma e<br />

sentidos para a escola. Esse desafio metodológico procura investir nas<br />

conversas que acontecem ao sabor dos encontros dos praticantes da escola,<br />

com os muitos fios e redes de histórias praticadas.<br />

Aposto no potencial criativo das conversas que puxam conversas, que<br />

tecem linguagens e realidades, negociando posições e nos aproximando do<br />

outro. A proposito que defendo reside em valorar as conversas que se dão nos<br />

encontros e os sujeitos dessas conversas, atrelando sentidos outros para a<br />

vida em sua relação com a pesquisa, demanda investimento, cuidado,<br />

desnaturalização e estranhamento dos tradicionais, confortáveis e conhecidos<br />

pares de pensamento [norte/sul, científico/senso comum, produtor/consumidor,<br />

local/global, alta cultura/baixacultura, normal/anormal, igual/diferente, heteros/<br />

homos, etc]. Não só esses pares conceituais precisam ser problematizados e<br />

desnaturalizados, mas também os limites que foram criados nas atitudes e<br />

experiências advindos com a modernidade na produção do outro, justificando<br />

hierarquizações de lugares geometrizados e de tempos cronologizados, como<br />

tentativa de reduzir e eliminar a complexidade da vida. Nesse sentido, procuro<br />

pensar essa pesquisa e sua metodologia do lugar das possibilidades,<br />

desejando-a, como força viva, como potência psíquica e política, que poderá<br />

ser fortalecida com os muitos fios de conversas historiadas, praticadas com os<br />

acontecimentos que nos pegam como surpresa e nos tecem como fios de uma<br />

rede-vida criativa.<br />

Compreendo criação e invenção como algo que nos conectam à<br />

condição humana [inventores de vida]. Compreendo os atos criativos e<br />

inventivos não como forma de distinção, hierarquização e classificação, postos<br />

e nomeados a partir dos discursos e práticas de celebridades, validados pela<br />

sua cientificidade. Pelbart (2008) dirá a esse respeito que invenção e criação<br />

“não são prerrogativas dos grandes gênios, nem monopólio da indústria e da<br />

90


ciência, são, pois, a potência do homem comum.” Criação e atos inventivos<br />

pertencem a todos que tomam a vida como exercício de experimentações e<br />

expansão. As celebridades que produzem as inovações como desejo, ou o<br />

desejo como inovações, circulam em redes de interesses e investimentos,<br />

estando a serviço das políticas públicas e de muitos interesses privados. Suas<br />

invenções/inovações muitas vezes contribuem/ou estão a serviço da<br />

biopolítica, na produção e no controle da vida. Criação e invenção, potência do<br />

homem comum, só conhecem [por lugar] a experiência da vida cotidiana e o<br />

exercício transformativo da vida.<br />

Os saberes, como invenção/inovação que nos tiram do anonimato<br />

produzindo alguns efeitos de celebridade capitalista e de uma autoria<br />

chancelada, se não inovados, se não circular, se não produzir desejos, podem<br />

cair no esquecimento, pelo excesso de produção do que é tido/visto e desejado<br />

como novo. Invenção e criação não se prendem ao que é considerado novo,<br />

uma vez que sua produção se dá nos encontros de forças desejantes das<br />

diferentes redes de conhecimentos que nos prendem como fios nessas redes.<br />

Os discursos que elegem celebridades capitalistas e suas invenções<br />

novidadeiras funcionam como máquinas que se entrelaçam a diferentes redes<br />

e estão em voltas às muitas relações de poder e saber. Barros (1999: p. 134)<br />

dirá que:<br />

91<br />

As máquinas capitalistas pretendem universalizar as práticas e as<br />

formas de estar no mundo, transformando o mundo numa aldeia<br />

global. Essa modelização desenfreada tenta matar as possibilidades<br />

de respostas singulares, mecaniza-nos. Tenta que façamos sempre<br />

a mesma coisa e da mesma maneira: andar do mesmo jeito, amar da<br />

mesma maneira, pensar igual....<br />

Essas redes de conhecimento, tramadas nas mais diferentes redes de<br />

saberes e poderes tomam a vida como assalto, captura-nos em suas redes<br />

desejantes. Por elas, nos tornamos passantes, produtores, consumidores,<br />

existindo, resistindo a alguns efeitos dos discursos que personificam<br />

celebridades e saberes. Essas resistências não acontecem de forma marginal,<br />

de forma individualizante [institucionalizada e localizável], como nas<br />

sociedades disciplinares. Estou percebendo que se convencionou pensar


esistência como oposição a uma certa força-forma de poder, de modo a<br />

ativar forças que envolvem muitos. Todos nós estamos nas redes, como fios,<br />

como nó, como tramas, como força-Penélope 6 e, com os mesmos fios, vamos<br />

tecendo, retecendo e destecendo a vida. Pelas forças das redes como<br />

Penélope, somos tragados e, estando nelas, produzimos, inventamos,<br />

respondemos e criamos nossas diferentes tessituras. Todos, na condição<br />

humana, circulamos como forças atrativas pelas malhas da rede, conectando-<br />

nos uns aos outros, como forças subjetivas desejantes. Somos movidos por<br />

uma circularidade de desejos-forças que, ao serem compartilhados, produzem<br />

realidades que conectam formas desejantes de comunicação, de<br />

compartilhamentos, de conhecimentos e cooperação. Essas realidades podem<br />

ser contestadas, sabemos disso e, ao serem contestadas, produzem outras<br />

redes visíveis e invisíveis de desejo. Esses desejos como força, decorrentes de<br />

muitos lugares e tempos e por diferentes pessoas, é que me fazem acreditar na<br />

potência das práticas e das narrativas que são tecidas com o cotidiano.<br />

Hardt e Negri (2004), dialogando com Foucault sobre o uso do poder e<br />

seus efeitos sobre o sujeito, nos ajudam a compreender que estamos como<br />

passantes por muitas redes subjetivas, visíveis e invisíveis e, nessas<br />

passagens, as relações afetivas com o poder nos integra a uma grande rede de<br />

produtores e também de consumidores. Assim, esses autores recorrem à ideia<br />

de passagem da sociedade disciplinar [corpo, indivíduo, produção,<br />

parcialidade, instituições], desenvolvida por Foucault, para aventarem num<br />

outro momento de análise de Foucault sobre sociedade de controle. Esses<br />

autores valendo das problematizações de Foucault, nos dizem que a sociedade<br />

de controle é marcada pela afetividade e qualidade aberta das biopolíticas,<br />

produzindo efeitos de integralidade das relações sociais [tempo e espaço] e da<br />

produção dessas relações sociais.<br />

6 Segundo Barros (1999, 191), Penélope aqui se aplica, uma vez que como nos conta a Mitologia grega,<br />

Penélope, esposa de Ulisses, em sua espera apaixonada por seu retorno da guerra de Tróia tece como<br />

estratégia para se livrar de um futuro casamento uma colcha, num processo de faz e desfaz contínuo,<br />

tecendo-a e destecendo e retecendo-a como os mesmos fios. Assim, essa colcha nunca ficou pronta e<br />

estrategicamente Penélope consegue enquanto tece e destece se livrar dos pretendes a sua mão.<br />

92


Ainda que na sociedade de controle estejamos envolvidos até as<br />

profundezas de nossas subjetividades pelas relações de afetividade e<br />

integralidade produtoras de relações sociais abertas, outras formas de<br />

resistência [diferentes das resistências das sociedades disciplinares] vão sendo<br />

construídas, sem formas como as redes. Essas resistências não estão mais<br />

visíveis em um indivíduo, em pequenos grupos e em locais desconectados do<br />

global. Essas resistências se apresentam hoje como carne da multidão, sem<br />

forma e sem lugar. Disciplina e controle são fios subjetivos de uma grande rede<br />

biopolítica. Pelos vazios de suas tramas e no afrouxamento e contato de seus<br />

nós, as pessoas passam, e a multidão, sem forma, também passa. Todas as<br />

pessoas passam pelas redes, por ela são tocados e nelas participam na<br />

produção do novo e, o novo, sendo ele sem forma, como a multidão, não quer<br />

dizer que se configura como uma realidade novidadeira. Segundo Pelbart<br />

(2008), produzir o novo é:<br />

93<br />

[...] inventar novos desejos e novas crenças, novas associações e<br />

novas formas de cooperação. Todos e qualquer um inventam, na<br />

densidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer –<br />

novos desejos, novas crenças, novas associações e novas formas<br />

de cooperação.<br />

Pesquisar, inventar, produzir o novo como potência e como forma de<br />

cooperação só adquire sentidos na vida que se inicia todos os dias e que nos<br />

prende como fios das muitas redes desejantes. Quando nos dispomos a mexer<br />

e misturar a ordem do desejo inventado pelas atitudes da modernidade, vamos<br />

percebendo que pequenas variações/modulações estão sendo produzidas<br />

cotidianamente nesses sujeitos de desejo. Nessas atitudes de pesquisar,<br />

construídas na ação do caminhar em muitas redes possíveis, enredando-nos a<br />

muitos fios de pensamentos e de práticas, considerando-os como discursos,<br />

movimentam uma pergunta que se liga a tantas outras, justificando a aposta na<br />

metáfora/paradigma das redes e nas conversas como fios<br />

acontecimentalizadas dessas redes: o que estamos nos tornando e o que<br />

estamos fazendo de nós mesmos ao nos enredarmos e sermos enredados<br />

nessas redes desejantes de subjetividades!?...


Meus interesses de compreensão vão enredando-se ao cotidiano<br />

praticado/ acontecimentalizado/experienciado/vivido da história não contada na<br />

escola e com a escola, no que ela possui de local, de provisório, de particular,<br />

com suas tradições e invenções. Os praticantes da escola, potencializados por<br />

relações afetivas-desejantes, se integram como passantes nas malhas das<br />

bioplíticas e vão se construindo e sendo construídos diariamente por tramas e<br />

vazios das muitas redes de saberes e poderes. Se estivermos pensando essa<br />

integração ao estilo das redes abertas, precisamos entender que na<br />

constituição dessas redes não cabem os pares binários da modernidade.<br />

Precisamos entender que as redes são produzidas com diferenças que<br />

também integram com ajustes que apertam e afrouxam, com cooperações e<br />

com existências que produzem criações, invenções, resistências e fugas.<br />

Callon (2004, p. 55) enfatiza que, para compreendermos essas formas<br />

de subjetividades construídas em redes nas relações estabelecidas com<br />

diferentes enunciados e dispositivos da biopolítica, a metáfora de rede pode ser<br />

útil para que possamos entender as interdependências, fluxos de ideias e<br />

desejos. Ao passarmos pelas redes de muitas redes, abrindo negociações,<br />

sendo tocados por aquilo que produz sentido(s), experiências, estabelecemos<br />

múltiplas conexões com um espaço e tempo, praticado e criando uma<br />

heterotopia, como nos diria Foucault (2005), e um afrouxamento para a ideia de<br />

tempo. Apostando nessa perspectiva de pensarmos a vida inventiva como<br />

redes de muitas redes, Callon (2004) vê vantagens no paradigma/metáfora da<br />

rede como possibilidade de pensamentos e práticas não continuistas.<br />

Evidenciam-se, no paradigma das redes, invenções e fugas cotidianas,<br />

destronando formas macropolíticas de pensar/querer/produzir a vida, que foram<br />

legitimando-se com a circulação do viver ciência, viver a inovação e viver o<br />

mercado. Estando nossos desejos-forças articulados em redes, anônimos,<br />

celebridades e instituições, negociam, participam e cooperam para o seu<br />

funcionamento. Estando subjetivamente conectados uns aos outros e muitos<br />

outros em redes, as conversas, fios vivos de muitas redes historiadas e sem<br />

proprietário, alongam nossas redes.<br />

94


Tanto os nós como os vazios da rede permitem manobras, mudança de<br />

direção, de intenção e negociação dos que por ela passam. As redes permitem<br />

as passagens, e é exatamente isso que me interessa. Pensar uma atitude<br />

metodológica que se vá construindo em redes, conectando atores<br />

conversantes que trazem múltiplas narrativas, tecendo com elas tramas, nós e<br />

deixando vazios, o que é uma característica da rede, é o meu desejo. Numa<br />

rede, como nos fala Callon (2004), não existem fios/forças fracos(as) ou fortes,<br />

todos circulam, exercem e sofrem a ação do poder. Exemplos de redes não<br />

nos faltam e, há muito o homem compreende o mundo a partir da noção de<br />

redes, ainda que, para cada momento a metáfora de redes seja reinventada,<br />

ela nos prende a esse mundo, permitindo-nos problematizá-lo e nos<br />

problematizar. A rede vem se transformando em conceito, paradigma, metáfora<br />

e, cada vez mais, sendo usada para problematizar e entender esse mundo<br />

humano e inumano.<br />

Pensar em rede não é a única possibilidade para se fazerem pesquisas<br />

com o cotidiano, muitas outras existem. Dispomos de pesquisas [etnográficas,<br />

fenomenológicas, estruturalistas, autobiográficas, etc.], mas é na noção de<br />

redes que mais me reconheço, reconhecendo-me como fio de muitos discursos<br />

e de muitos desejos. Assim, como aposta, persigo a idéia de rede como atitude<br />

de pesquisa. Busco na metáfora de rede respostas às muitas problematizações<br />

da pesquisa, por saber que ela me permite enredar conversas da escola<br />

atreladas às histórias/práticas de alunos e professores. Essas histórias, tecidas<br />

em redes, que hoje me fascinam, aproximam-me de uma ideia de ver e ter a<br />

vida como obra de arte. Essas histórias cotidianas/fugidias não são historinhas<br />

simples, genéricas, praticadas de forma linear. São histórias circulantes,<br />

complexas, múltiplas, produzidas por sujeitos desejantes, como nos ensina<br />

Pelbart (2008). Essa possibilidade de fazer pesquisa anda na contramão do<br />

pensamento hegemônico, pois nos remete ao campo da sensibilidade, da<br />

produção de sentidos, das cooperações, trabalhando com subjetividades e<br />

marcas de muitos tempos e espaços que não se aprisionam em esferas<br />

formatadas. A não formatação, uma das características da rede, pode nos<br />

permitir pensar a pesquisa aberta, que favorece a entrada e saída do outro.<br />

Nas redes todos passam, circulam, produzem. Isso não quer dizer que na rede<br />

95


não exista controle. Pelo contrário! Posso perceber que no uso da metáfora<br />

rede existe uma tentativa de explicação e de compreensão para o visível e o<br />

invisível. A ideia de rede nos prende como produtores de realidade a esse<br />

mundo!<br />

Acreditando e desejando a pesquisa como forma de criação, potência do<br />

homem comum, o fazer pesquisa cada vez mais exige dos que se permitem à<br />

aventura da problematização da vida, atrelá-la ao rigor, à seriedade, à<br />

disciplina e ao exercício da dúvida. Com essa crença, estou compreendendo<br />

que em nossas pesquisas, por mais sérias que sejam, por mais cuidadosos<br />

que sejamos, deixamos transparecer, nossas contradições, arbitrariedades e<br />

muitos equívocos no processo de sua construção. Somos afetados por<br />

inúmeras forças políticas, afetivas, culturais, que nos embaralham com muitas<br />

matrizes de pensamento, oferecendo representações para a vida e para o<br />

mundo. Pais (2003, p.114) metaforicamente diz que as metodologias do<br />

cotidiano vão sendo construídas como “espécie de lançadeira de tear, de um<br />

lado para o outro, num movimento pendular, cerzindo do universo social as<br />

micros e as macroestruturas.”<br />

Cada vez mais, o exercício aberto de fazer pesquisa com o cotidiano (e<br />

de nos pesquisar) precisa estar atrelado a um desejo que nos aproxime de um<br />

rigor flexível (ESTEBAN, 2003), construído com os fios éticos de nossas<br />

escolhas políticas no cerzimento da vida. O rigor das pesquisas com o<br />

cotidiano e dessa pesquisa, não se pretende moralista, pois se permitem a<br />

erros, enganos, desvios de rotas, tendo em vista a plasticidade do cotidiano e<br />

dos atores e autores do cotidiano. Como aposta e como potência de pesquisa,<br />

buscamos enredamentos de conversas tecidas de forma indisciplinada, mas<br />

conversas acontecimentalizadas no aconchego do encontro. Estamos<br />

compreendendo, no exercício de experimentar possibilidades e atitudes de<br />

pesquisas com o cotidiano, que é na aventura do caminho como processo que<br />

vamos definindo nossas invenções.<br />

Trazendo para a pesquisa educacional o lugar do pensamento sensível,<br />

nos aventuramos em nossas maneiras de sentir a beleza da vida cotidiana, as<br />

96


pessoas simples e anônimas, as histórias locais, tecidas nas emboladas das<br />

conversas, com surpresas, dores, alegrias, repetições, criações e saberes.<br />

Está sendo possível pensar em pesquisa de outro lugar, diferente da<br />

concepção dura de fazer pesquisa por muitos valorada, jogando com o<br />

sensível, com a emoção e com a ajuda do excedente de visão do outro, ao ir<br />

trazendo para minha rede vida, o sentimento de mundo problematizado por<br />

Alves (2001).<br />

Fui provocado a querer pensar <strong>sexualidade</strong>, currículo, corpo e docência<br />

a partir de fios que me ligam a Regina Leite Garcia. Mas, a questão estava<br />

posta, latente como potência, era desejo encoberto. Antes de qualquer coisa,<br />

trata-se de uma opção política. O outro, como potência, como força, como<br />

presença, nas pesquisas com o cotidiano, confirma que saberes e não saberes<br />

não se apresentam em nossas pesquisas-pesquisantes como pares<br />

dicotômicos, mas sim como complementaridade. Retirar antolhos é um<br />

exercício constante nas pesquisas com o cotidiano. Por isso acredito e valido a<br />

necessidade de estarmos alinhavando nossos pensamentos e as nossas crises<br />

de interpretações dentro das redes abertas de subjetividades dos muitos<br />

grupos de pesquisa. Estando conectado a diferentes grupos de pesquisas,<br />

como fio de uma rede e de muitas redes, com toda a particularidade que marca<br />

a constituição de um grupo de pesquisa, nos ajuda a compreender nossas<br />

mazelas, com olhar de novo, sempre de novo para as questões que se<br />

apresentam aos nossos olhos, como verdade, como essência e como naturais.<br />

A escola e as conversas com os sujeitos praticantes da escola, vem<br />

sendo os fios que me permitem passagens pelas redes de conhecimentos dos<br />

praticantes da escola, para pensar e problematizar <strong>sexualidade</strong>(s), currículo(s)<br />

e corpo(s) como elementos diferenciadores de regras e potencializadores de<br />

novos discursos. O que me permite problematizar essas questões vem sendo<br />

as conversas tecidas ao sabor do acaso, produzindo palavras pegantes, como<br />

nos fala Guimarães Rosa (2001). Por acaso, venho compreendendo ser uma<br />

realidade espaçotemporal que difere de muitos espaçostempos de pesquisa.<br />

Entendendo que as conversas em suas conexões com elementos<br />

heterogêneos permitem a atualização de um devir humano, uma vez que no<br />

97


tempo e no espaço das conversas “o presente está sempre em vias de<br />

formação. Do passado traz consigo a virtualidade do futuro e a<br />

imprevisibilidade.” (KASTRUP, 2004, p.88).<br />

Vivendo a escola, fazendo a escola e sendo feito e (re)feito pela/na e<br />

com escola, vamos sendo surpreendidos com a dimensão biófila que ecoa por<br />

todos os seus cantos como vida, produzindo razões diversas para o seu<br />

encantamento e para os diferentes enfrentamentos que ali são travados.<br />

Não nos é possível estar na escola, vivendo sua dinamicidade, seus<br />

movimentos ariscos, alimentadores de esperanças, sem sermos surpreendidos<br />

pelos murmúrios pegantes das conversas, convocando novos desafios e para<br />

tantas outras formas de política de solidariedade. Nas conversas, não temos<br />

controle sobre o tempo e sobre o espaço. A conversa institui um poder próprio,<br />

capaz de conectar o local ao global, micro ao macro, movimentando passado,<br />

presente e a virtualidade do futuro. Nas conversas muitos passam, espaços se<br />

misturam e nos ligam a outros tantos espaçostempos. O tempo da conversa é<br />

um tempo fundido na conversa. Parente (2004, p.95) sinaliza que “Quando<br />

falamos e pensamos, nossas falas e pensamentos já não exprimem uma<br />

essência que neles se exterioriza: eles são como colagens que apenas indicam<br />

os padrões das redes que nossas articulações tecem.”<br />

Por viver no interior de Minas Gerais, numa cidade com menos de<br />

quarenta mil (40.000) habitantes, experiencio, na mais íntima relação com a<br />

vida, que as proximidades/conexões de pessoas, espaços e tempos favorecem<br />

contatos diversos, entremeados pela força dessa relação e da complexidade<br />

das redes de subjetividades presentes nos encontros. Nesses encontros, que<br />

entremeiam muitos outros fios de tempos e espaços vividos, nossos<br />

fazeres/desejos/ invenções ganham visibilidade/importância/existência na<br />

comunidade em que estamos inseridos e da qual somos parte, fomentando<br />

produções de algo sempre novo, que não estava dado, mas que passa a existir<br />

e a coexistir a partir da circulação desse interesse, dessa força desejo.<br />

Benedito (2005, p. 92), problematizando a situação de pesquisa nas cidades<br />

pequenas, pondera que:<br />

98


99<br />

[...] podemos afirmar que uma cidade é pequena diante ao seu<br />

território reduzido, à baixa densidade demográfica ou em relação ao<br />

número de habitantes, mas nunca podemos dizer que uma cidade é<br />

pequena quando nos referimos ao que é produzido pelas pessoas<br />

em suas relações.<br />

Aproveitando as palavras de Benedito (2005), sobre as cidades<br />

pequenas, mas pensando como espaço que abriga o local e o global, não<br />

limitarei as conversas ao interior das escolas. Não imporei um limite espacial<br />

para as conversas, compreendendo que a escola está articulada a tantas<br />

outras dimensões desejantes que extrapolam o viver cotidiano da escola. Farei<br />

Uso do senso de ocasião e de oportunidade para tirar proveito das palavras<br />

pegantes, ditas de diferentes lugares e por diferentes pessoas, que ao serem<br />

ouvidas possibilitam problematizações. As conversas ditas ao sabor do acaso<br />

vem sendo para mim a opção metodológica perseguida para entrar no universo<br />

do fazer pesquisa. Talvez esteja no acaso, o rigor desta pesquisa. Ainda que<br />

aberto as surpresas, uma intenção com a pesquisa é permanente. Abrindo mão<br />

de um método prescrito, precisemos justamente intensificar esta<br />

intecionalidade continuamente. Sei que esta não é única opção e possibilidade<br />

para fazer e pensar as pesquisas com o cotidiano, mas venho caminhando e<br />

apostando nas conversas como potência de pesquisa.<br />

Benedito (2005), pensando sobre a importância das conversas tecidas<br />

em redes de conhecimentos nas pesquisas com os cotidianos, enfatiza que<br />

“[...] as pessoas conversam. Conversam os surdos, conversam também os que<br />

não vêem, conversam até mesmo aqueles que não querem conversa. As<br />

conversas fazem parte da vida.” Esse é o poder das conversas, de serem<br />

abertas, ao ponto de permitirem a entrada do outro, da surpresa e do<br />

inesperado. Nas conversas não temos uma direção linear, uma vez que: “As<br />

pessoas, quando conversam, não obedecem a roteiros, não se prendem a<br />

temas estabelecidos. As pessoas quando conversam, produzem e são<br />

produzidas pelo que dizem, pelo que ouvem e por aquilo que deixam<br />

subentendido.” (Idem, p.83)<br />

Nossas conversas, tramadas em redes de conhecimentos, são<br />

interessadas, endereçadas e compromissadas com a temática de nossa


pesquisa. Como não buscamos neutralidade em nossas pesquisas, sabemos<br />

também, que nem tudo que é dito nas conversas por nós é ouvido. Sabemos<br />

que não temos controle sobre os conversantes, muito menos sobre o teor de<br />

uma conversa, mas estamos interessados e implicados por um desejo-força<br />

sobre as questões que se apresentam em nossas pesquisas. Se nas redes de<br />

conversas produzimos emboladas como nos fala Benedito (2005), essas<br />

emboladas, como nós e vazios da rede, nem sempre revela a real intenção das<br />

palavras. As conversas movidas por palavras, cheiros, sons, imagens, afetos,<br />

histórias e significados plurais são formativas e in(formativas). Numa conversa,<br />

a palavra que nos pega, puxa uma nova conversa, abre-nos o convite à<br />

curiosidade e nos faz querer buscar aprofundamentos e problematizações para<br />

as questões que se apresentam na pesquisa.<br />

As conversas que puxam conversas, opção/atitude metodológica<br />

assumida no encaminhamento deste trabalho, pretendem ser construídas em<br />

redes de conhecimentos, lançado fios multicoloridos, com intensidades e<br />

intencionalidades diferentes, atando com elas, nós que se fizerem necessários<br />

e os desatando logo à frente. As conversas vem mostrando, nas pesquisas<br />

com o cotidiano, espaços abertos, sem centros, latentes e frutíferos para<br />

compreendermos melhor a dimensão criativa e inventiva dos espaços<br />

educativos praticados. As conversas que trazem com elas, belas e tensas<br />

narrativas sobre o que estamos nos tornando, vêm sendo um caminho<br />

escolhido para compreender melhor a vivência e o re-conhecimento das<br />

<strong>sexualidade</strong>s e de currículos realizados/praticados/vividos por alunos e<br />

professores.<br />

100<br />

Acredito que as palavras tem o poder de construir caminhos, de sacudir<br />

ideias e instalar desejos, compreendendo que, como o sujeito, conta, reconta-<br />

se. Por rememorar suas histórias, histórias de suas aulas, situações vividas na<br />

sala de aula ou outras tantas histórias, ele se reconta e, ao se recontar, pode<br />

produzir tantas outras formas de desejo. Não estou aqui a dizer que o sujeito<br />

pode emergir como outro destas relações desejantes do diferir, mas é sempre<br />

possível se tornar um outro nessas relações de conversas e narrações. Como<br />

tudo isso é pouco, para revelar o potencial das conversas tecidas entre as


muitas redes de conhecimento, me faço andarilho entre os efeitos de<br />

linguagem e os deslocamentos de realidades.<br />

2.4 Nas malhas narrativas de professores e professoras: um encontro<br />

provisório com a produção e deslocamentos dos efeitos de linguagens<br />

101<br />

Mas se interpretar é se apoderar por violência ou sub-recepção de<br />

um sistema de regras que não tem em si significação essencial, e lhe<br />

impor uma direção, dobrá-lo a uma nova vontade, fazê-lo entrar em<br />

um outro jogo e submetê-lo a novas regras, então o devir da<br />

humanidade é uma série de interpretação. (FOUCAULT, 2006, p. 26)<br />

Parece-me, ao ler Foucault, em seu artigo “Nietzsche, a genealogia e a<br />

história”, que a escrita, a escrita de nossos textos e a de nossos pensamentos<br />

perderam seus segredos e suas essências naquilo que supomos e queremos<br />

ter sob “controle”. Na busca deste controle, que é antes de tudo o nosso<br />

controle e do outro, vamos percebendo que ainda não conseguimos nos<br />

desvencilhar de nossos tradicionais lugares e tempos que há muito nos<br />

aprisionam nas redes discursivas, produzindo efeitos de realidades. Parece-me<br />

que, no mundo que conhecemos e que alguns tentaram construir como<br />

realidade aprisionada, lugar planificado e calculado, ficaram espaços e tempos<br />

fissurados que podem ser alargados pelas motivações e desejos de muitos.<br />

Motivações e desejos de muitos que não se conformaram e não se conformam<br />

com a lógica que nos foi imposta. Quando penso em fissuras, penso em<br />

espaços e tempos desprovidos de a prioris, abertos aos imprevistos, ao<br />

imprevisível, aos possíveis que se constituem a partir dos incorformismos, nas<br />

redes de solidariedades e curiosidades que movimentam perguntas, contestam<br />

e resistem ao desenho da ordem inventada em nome de uma racionalidade,<br />

que há muito se colocou como privilégio de poucos. Imagino esses vazios<br />

sendo atravessados pelas forças que nos movimentam a favor de outros<br />

possíveis que não estão postos na ordem do discurso e do dizível, mas que se<br />

fazem vivos nas experiências de cada um consigo, com o outro e com o<br />

mundo, que apesar de singulares, são, ao mesmo tempo, coletivas e<br />

multifacetadas, na medida em que são produzidas no registro social e histórico.<br />

Mesmo com tantos dispositivos disciplinares inventados na era clássica,<br />

como nos diria Foucault, ficaram abertos espaçostempos da vida para as


dúvidas e para outros quereres. Nos modelos de aprisionamentos<br />

institucionalizados que conhecemos que passam, atravessam e nos tocam na<br />

produção de subjetividades, a dúvida fez parte de um tempo que para alguns<br />

pôde ser classificado por tempo pré-científico. “Tudo”, ou „quase tudo‟, foi<br />

objeto de tentativa de disciplinarização por meio dessa forma racional de se<br />

pensar o homem e a vida em sua plenitude. Aparentemente, nada escapava ao<br />

seu poder. Inventaram, na época, uma forma de ser sujeito, indivíduo,<br />

indivisível, essência, centro e matriz de conhecimento. Nessa invenção, tudo<br />

podia ser colocado num lugar de ordem classificatória e hierarquizadora. Nessa<br />

ordem inventada havia um lugar confortável para os nossos pensamentos,<br />

nossos corpos, nossas emoções, nossos prazeres e nossas almas. Um lugar<br />

recebido que podia ser recusado ou assumido. Colocando cada coisa e cada<br />

um num lugar, o mundo e as realidades estavam dados e administrados.<br />

Restava-nos nessa ordem racional, descobrir, descrever e aplicar o que<br />

aparentemente já existia e nisso reside o seu suposto princípio de neutralidade.<br />

Não criávamos realidades, apenas observávamos e descrevíamos o que<br />

víamos e o que supostamente existia. Ao nos fazerem acreditar que tudo<br />

estava pronto e que não era resultado de práticas discursivas e de desejos,<br />

ingenuamente podíamos supor determos a certeza da vida, vida sempre a<br />

mesma e a nos acostumarmos com a mesmidade, com a ordem do mesmo e<br />

com as razões que também são do mesmo.<br />

Se não temos razões para questionar as realidades inventadas por<br />

alguns, e que se apresentam como totalidade absoluta, universal (se aplicam<br />

em todo lugar) e necessária (pois é assim que as coisas são), postas como<br />

verdade ordeira, outros, maquinicamente as têm produzidas e colocadas em<br />

circulação. Na busca por uma pretensa tranquilidade, interesse ordeiro de<br />

muitos, negligenciamos a(s) história(s) baixa(s), não contadas nos livros-textos<br />

de história(s), ou da(s) história(s) que se fizeram apagadas, reeditadas a partir<br />

de diferentes pretextos e contextos, pelas mãos de ferro do poder e do saber,<br />

na busca da verdade única e da história que se quis contar e nos permitiram<br />

conhecer.<br />

102


103<br />

Na leitura do texto “Nietzsche, a genealogia e a história” de Foucault,<br />

vão se ampliando para mim a compreensão dos sentidos que podem vir a ter<br />

descontinuidade, acidente e emergência, assombrando-nos com outra(s)<br />

história(s). Essas outras histórias e as histórias recorrentes trazem com elas<br />

questões que nos são caras e que começam a produzir outros sentidos aos<br />

diferentes discursos pedagógicos e para a pedagogia do que diz respeito aos<br />

discursos da <strong>sexualidade</strong> e do corpo, enquanto currículos praticados. Vou<br />

perseguindo esta idéia, ao perceber o não controle da subjetividade nas<br />

práticas de praticantes docentes e discentes com cotidiano. Essas histórias<br />

baixas, de pouco importância, que se embolam em formas de falar, conversar,<br />

narrar, contar, ver e praticar o corpo e a <strong>sexualidade</strong> pode remeter-nos a<br />

imprecisões e a surpresas da vida. Vou assistindo/sentindo/presenciando<br />

ampliar a tessitura de falas/conversas/narrativas/discursos que nos remetem ao<br />

lugar do inesperado, do acontecimento, das emergências e do acidente,<br />

contribuindo para que o cotidiano seja sempre outro.<br />

Percebo que a escola, há muito se (re)inventa de um lugar arisco,<br />

naquilo que nos antecede, atravessa, toca, passa, surpreende e estranha. Não<br />

quero cair, porém, no romantismo de achar que toda invenção seja<br />

necessariamente boa, no sentido de produzir a expansão e a afirmação da<br />

vida. Nietzsche já dizia que tudo é invenção humana, mas isso não significa<br />

que não precisamos e que não podemos avaliar essas invenções. Se a<br />

racionalidade cientificista é uma invenção que pode ser avaliada, essas<br />

invenções cotidianas também podem ser avaliadas, uma vez que no dia-a-dia<br />

inventamos coisas para sobreviver, algumas, são possibilidades de expansão<br />

da vida, outras não, pois inventamos também, coisas para conter, controlar,<br />

diminuir e aprisionar ou outros.<br />

A escola e seus praticantes sempre estiveram enlaçados a<br />

contingências, a diferentes vetores de forças e, por mais que tenham tentado<br />

instaurar o princípio regulatório nas práticas de professores e alunos, o<br />

cotidiano é aquilo que nos escapa, onde diferentes forças se entrecruzam<br />

nesse lugar, fugindo das normatizações que o burocrático tenta nos impor. As<br />

práticas escolares enredadas aos diferentes modelos de currículo, de


planejamentos e de exames sempre conviveram com os desvios e também<br />

com formas de avaliar. Não podemos deixar de ressaltar que em muitos<br />

momentos da história da escola e [ainda hoje] os desvios tenham sido motivos<br />

de excludências e de pretexto, texto, para a criação de tantas outras ciências,<br />

que na ânsia de produzir a normalidade, inventaram a anormalidade. As forças<br />

que se encontram no jogo da história como resistência, talvez seja o que nos<br />

permite pontuar às invenções cotidianas e as que se atrelam as invenções<br />

oficiais. Essas avaliações que fazemos não se tratam simplesmente de resistir<br />

a um poder, apenas como negatividade e desobediência, o não pelo não.<br />

Trata-se, já que o poder é produtivo, de disputar o poder, o poder sobre si<br />

próprio e o poder/saber que dá direito ao discurso em busca de<br />

reconhecimento de outros saberes e fazeres. Assim, a nossa luta política com<br />

a escola e com seus praticantes busca inscrever nas histórias das escolas e de<br />

seus documentos outros modos de existência, outros saberes. É para isso que<br />

fazemos teoria, compreendendo que toda afirmativa teórica é uma afirmativa<br />

política. Por isso precisamos ir além das táticas e das invenções cotidianas. As<br />

táticas e invenções cotidianas nos dão pistas para irmos além.<br />

Os currículos prescritivos e declarados, nem que seja por meio de<br />

nossas pesquisas, e porque implicam saberes/fazeres produtivos, bem que<br />

deveriam/poderiam contemplar as multiplicidades de vozes e de experiências<br />

descontinuistas. Por descontinuidade, vou tateando Foucault (2006a, p.28) e<br />

dando conta de que o saber não é feito para compreender, ele é feito para<br />

cortar. O corte faz sangrar e irromper ao sabor das forças que movimentam o<br />

acaso, o que estava escondido, desconhecido, ignorado, não visto e sentido<br />

por nós. Tentando produzir sentidos, fixo nesta escrita à ideia de<br />

acontecimento, trabalhada por Foucault e já problematizada nas primeiras<br />

páginas desse trabalho. “As forças que se encontram em jogo na história não<br />

obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da<br />

luta.”<br />

104<br />

Sendo assim, por que ainda buscamos a origem, a essência ou a<br />

identidade preservada das coisas, uma vez que no corte dos acontecimentos<br />

vamos produzindo novas relações de forças? Falar de essência pode nos


emeter à ideia de origem, de uma origem que transcende o sujeito, de algo<br />

que é nosso, que é comum a todos, autêntico, que não se altera, que é sempre<br />

o mesmo e que se intenciona para todo sempre, produzir tranquilidade,<br />

certezas, sujeitos e identidades. Pode até parecer fora de lugar aos olhos de<br />

muitos a busca e o desejo pela origem, mas, nas fissuras daquilo que não<br />

conseguimos aprisionar no estatuto das verdades universalizantes, a origem<br />

das coisas ainda é uma questão que nos movimenta, inquieta e nos pulveriza,<br />

nos une como nós que integram uma grande rede e nos dispersa pela rede.<br />

Somos produtos e também produtores dessa história, não de uma mesma<br />

história, mas da história que nos corta. “O que somos ou, melhor ainda, o<br />

sentido de quem somos, depende das histórias que contamos e das que<br />

contamos a nós mesmos.” (Larrosa: 2002, p.48). Talvez na ideia de essência e<br />

de origem esteja a marca mais forte de toda trama histórica que a modernidade<br />

nos permitiu saber, uma vez que essas histórias estão: construídas em relação<br />

às histórias que escutamos, que lemos e que, de alguma maneira, nos dizem<br />

respeito na medida em que estamos compelidos a produzir nossa história em<br />

relação a elas. (Idem)<br />

Por diferentes partes do mundo, produzindo efeitos de multidão, homens<br />

e mulheres, professores e professoras, alunos e alunas, pais e mães, atrelados<br />

a diferentes cotidianos e realidades, insatisfeitos com a ordem das coisas, tem<br />

nos mostrado ser possível escrever outras histórias e contestar o que existe<br />

nas políticas de educação. Já nos é sabido, através de Foucault em suas<br />

leituras e suas interpretações em Nietzsche, que encontramos a dispersão na<br />

origem das coisas, ou seja, buscar a origem das coisas é como buscar o limite<br />

do horizonte. Quanto mais nos aproximamos, mais ele se afasta.<br />

Parece que tudo ou quase tudo pode dobrar a nossa vontade e com isso<br />

produzirmos realidades a partir de nossas interpretações que são sempre<br />

intenções e exercício de poder. Ainda que o homem tente produzir sua<br />

soberania numa relação obstinada com a verdade, a história contada por baixo<br />

não cessa de lhe pregar peças, de produzir outras redes e de remeter-lhe a<br />

outros tantos lugares e tempos que deixaram seus rastros, seus vazios, lugares<br />

de escapes, de manobras e de abalos com a verdade. De qualquer modo, não<br />

105


deixamos de buscar a verdade, ainda que com significações outras sobre sua<br />

realidade e possibilidade. O que temos feito é tentar entender como alguma<br />

coisa se torna verdade e, a partir disso, disputá-la. Lanço perguntas como força<br />

e exercício de disputa: que perigo há em produzir interpretações ao ouvir estas<br />

histórias contadas por baixo ou consideradas de pouco valor? Sinto que não há<br />

perigo nisso, pois a vida é uma aventura. Daí aventuramo-nos com o<br />

pensamento, com nossos desejos e com eles produzimos nossas<br />

intencionalidades, emergências, como diria Foucault (2006, p. 24). Mas, que<br />

realidades são essas e como elas se dobram aos nossos desejos? Ou, são<br />

nossas verdades que se dobram às realidades inventadas e (re)vivemos ao<br />

sabor das inúmeras relações de forças que se vão estabelecendo nas<br />

situações de vida, no uso e no exercício do poder? Ao pensar sobre essas<br />

questões, fico sempre a perguntar: é possível escrever algo imune de nossas<br />

mazelas e paixões? A quem interessa tal neutralidade? Que cientificidade se<br />

pretende construir isolando quem escreve e o que se pretende capturar com<br />

esta prática? Por que temos tanto medo de mostrar o que somos, ou aquilo que<br />

acreditamos estar sendo nas diferentes posições que ocupamos como<br />

sujeitos?<br />

Penso que esse medo se reatualiza por estarmos percebendo que a<br />

linguagem está distribuída em relações de poder e saber e que a linguagem<br />

inventa/cria seu objeto e a realidade desse objeto. Nosso medo pode ter por<br />

morada os efeitos que foram produzidos pela sociedade disciplinar que, na<br />

ânsia de documentar, descrever, classificar, hierarquizar, normalizar, nos<br />

enquadra e nos produz sujeito de um tipo. Nosso medo é de não sermos<br />

aceitos, e excluídos nas práticas desses discursos. Talvez por isso aceitemos<br />

as expectativas dos outros em relação a nós. Queremos controlar o que<br />

pensam de nós, estejam esses outros nos grupos hegemônicos da sociedade<br />

ou nos grupos controlados pelas políticas de identidade que disputam essa<br />

hegemonia. Afinal, se não somos passivos nem capturados, por que agimos<br />

conforme uma medida desejada? Não seria essa uma de nossas táticas<br />

cotidianas de sobrevivência? Mesmo quando o efeito não é a mimese, mas a<br />

mímica? Não deixamos de viver os efeitos da sociedade disciplinar, pelo fato<br />

de estarmos acreditando, percebendo e presenciando a força da sociedade e<br />

106


dos dispositivos de controle. O controle é produzido aglutinando-se às muitas<br />

técnicas e saberes desenvolvidos na sociedade disciplinar e não só. Não<br />

somos apenas vítimas passivas, mas, já que somos também produtores da<br />

sociedade, somos todos cúmplices e executores dessas técnicas de mutua e<br />

múltipla determinação e controle.<br />

Pensando sobre as inovações técnicas de uma escrita disciplinar,<br />

enquanto dispositivo de poder e saber, percebermos sua tentativa histórica de<br />

capturar o indivíduo, repercutindo sobre o conjunto e estabelecendo<br />

padronizações. Constitui-se, assim, uma lógica binária de pensar e de querer<br />

examinar/comparar/burocratizar/distribuir e categorizar o humano e nos fazer<br />

acreditar que estamos sendo pensados e erguidos à condição de sujeitos.<br />

Sujeitos, porém assujeitados à condição de objetos de manobras dos exames<br />

que nos confiscam, Foucault (2002, p.158) nos fala que o exame abre duas<br />

possibilidades que são correlatas:<br />

107<br />

A constituição do indivíduo como objeto descritível, analisável, não,<br />

contudo para reduzi-lo a traços específicos [...], sob o controle de um<br />

saber permanente; e por outro lado a constituição de sistemas<br />

comparativo que permite a medida de fenômenos globais, a<br />

descrição de grupos, a caracterização de fatos coletivos, a<br />

estimativas dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição<br />

numa população.<br />

Banhando-me nas águas sempre outras de Foucault, o que me<br />

movimenta são as dúvidas. Será que é possível, então, escrever um texto-rede<br />

que não aprisione nossos interlocutores e que deixe sempre vazios para a<br />

entrada, saída e circulação do outro como passante, de um sempre outro?<br />

Penso que este é o grande desafio que nos acomete ao querermos<br />

problematizar saberes produzidos nas experiências com aquilo que nos toca e<br />

produz sentidos para os que pela rede circulam. As dúvidas, que lançam<br />

problematizações nessa escrita, não se fazem sobre um sujeito que se busca<br />

universal. Estou compreendendo que somos múltiplos, complexos, isso e<br />

aquilo, sempre outro, e nesse estar sendo outro(s) ocupamos<br />

performaticamente posições de sujeitos que vão sendo tecidas, como diria<br />

Larrosa, (2002, p.71) “na construção e reconstrução de operações de narração<br />

e com a narração.”


108<br />

Parece-me que a vigilância, naquilo que aprendemos com: vigiai para<br />

não ser punido, traduzidos na hermenêutica do sujeito como cuidado de si nos<br />

toma como companhia permanente e, nesta vigilância, ficamos a nos<br />

perguntar: por que as coisas são assim? Por que não são de outro jeito?<br />

Quem define o bem e o mal, o que é normal e anormal, o certo e errado, o belo<br />

ou o feio? O que se produz com estas sensações que nos são postas, que<br />

chegam de um longo tempo e nos tocam produzindo experiências? Não sei se<br />

é preciso ficar vigilante ou se é necessário nos jogar sem amarras no tempo<br />

presente e vivermos todas as nossas crises, com nossas interpretações e<br />

sensações. É possível sentir tudo isso e não nos mostrar? O que queremos<br />

produzir no incontrolável jogo da vida, enredados que estamos por relações de<br />

poder? Parece-me que o que nos move é o desejo de saber e de viver outras<br />

experiências, não que saber e poder se realimentam, mas, sim o que se produz<br />

destes saberes e destas relações de poder. Não sei se, ao pensar estas<br />

questões, produzo algo. O que me move neste momento é compreender como<br />

estas relações de saberes e poderes sobre <strong>sexualidade</strong> e corpo se<br />

movimentam nas práticas docentes e discentes, produzindo currículos vividos e<br />

consequentemente, significados.<br />

Sendo assim, assumindo uma vigilância epistemológica, me lanço ao<br />

exercício das conversas que puxam conversas, na tentativa de exercitar como<br />

prática de si, encaminhamentos metodológicos de pesquisa que possam diferir<br />

dos modelos tradicionais de se fazer pesquisa. Aprendo com Silva (1999, p.12)<br />

que as formas tradicionais de fazer pesquisa supunham certa neutralidade a<br />

partir de uma idéia de teoria, pois, “Uma teoria supostamente descobre e<br />

descreve um objeto que tem sua existência independente relativamente à<br />

teoria.” Sua preocupação estava com o quê (escolhas) e com o como<br />

(técnicas). Para esse lugar das teorias tradicionais o objeto da descoberta,<br />

escrituração e circulação ontologicamente e cronologicamente a precede.<br />

Sendo assim, sua preocupação restringia a uma aplicabilidade e a intenções<br />

projetivas, inserções e asserções planejadas e estruturadas de como a<br />

realidade deveria ser. O que me interessa é ir compreendendo, nos jogos de<br />

linguagens de discursos/textos críticos e pós-críticos, que a linguagem não é<br />

neutra, ela é produzida nas relações de poder e contestação. Estando


enredado pela linguagem, com suas formas de ver, de falar, conversar, ler,<br />

escrever e desejar, me comprometo também com a produção de um tipo de<br />

realidade. Silva (op. cit), problematizando as noções de teorias tradicionais e<br />

apostando na noção de discurso enfatiza que “Um discurso produz seu próprio<br />

objeto: a existência do objeto é inseparável da trama linguística que<br />

supostamente o descreve.” Se não estamos imunes a produzir efeitos de<br />

realidade no uso da linguagem que dispomos e criamos referendando nossas<br />

invenções, me lanço num mergulho cuidadoso no cotidiano escolar, incluindo-<br />

me como fio das muitas redes de conhecimentos, de saberes e poderes que<br />

produzem escola e os sujeitos da escola.<br />

109


3. Escolhas, anunciações e possibilidades de encontro com alguns<br />

narradores da escola<br />

Na condição de andarilho, enredo a esse texto polissêmico e polifônico e<br />

a essa atitude metodológica em construção, alguns fios de conversas tramados<br />

com conversantes/narradores e praticantes da escola. De um encontro<br />

agendado em minha casa, numa noite de domingo, com professores e<br />

professoras que fazem parte de minhas redes de relações profissionais,<br />

afetivas e de amizades, dou início às conversas que puxam conversas. A<br />

escolha desses professores para esse encontro não se deu de forma neutra,<br />

não foram escolhidos de forma aleatória. Pelo contrário! A amizade, como<br />

potência política, era um fio que nos unia ao espaçotempo do encontro e da<br />

conversa.<br />

110<br />

Como no interior, nas cidades pequenas as pessoas se sabem, estávamos<br />

unidos pelo tema [<strong>sexualidade</strong>, corpo, currículo, docência] e por diferentes<br />

razões que a alma nem sempre conhece, os convidados, por ele também se<br />

enredam e apresentam interesses de conversa e problematizações. Iniciarei a<br />

tessitura desse texto, com as múltiplas redes de saberesfazeres destes<br />

praticantes sobre <strong>sexualidade</strong>, corpo, currículo e muito mais. Neste encontro de<br />

conversantes/praticantes da escola, corro o risco de não conseguir ouvir a<br />

todos, pois, pode ser que neste encontro de pessoas que se sabem,<br />

aconteçam desencontros e desacordos. Larrosa (2003, p.212) chama atenção<br />

para o fato, de que, num encontro de conversantes,<br />

[...] nunca se sabe aonde uma conversa pode levar... uma conversa<br />

não é algo que se faça, mas algo no que se entra...e, ao entrar nela,<br />

pode se ir aonde não havia sido previsto,[...] por isso uma conversa<br />

não termina, simplesmente se interrompe... e muda para outra coisa.<br />

Por saber que a memória não daria conta de guardar as tantas redes de<br />

saberesfazeres destes narradores que ao narrarem a vida assumem autorias e<br />

mantendo as diferenças, obtive autorização dos conversantes para a gravação<br />

da conversa em áudio. Vale ressaltar que as conversas serão sempre espaços<br />

praticados ao convite da conversa que puxa-conversa. Desta conversa<br />

provisória pretendo, pedindo licença, entrar na escola, ou, nas escolas.<br />

Estando na escola, me abro para a aventura do ouvir e conversar com alunos e


professores para, quem sabe, ser possível entender um pouco melhor o dito e<br />

o não dito, o feito e o ainda a fazer. Essa atitude metodológica, sem forma, mas<br />

com rigor, aberta as crises de compreensão, poderá me ajudar entender, de<br />

maneira diferente, o já aprendido e empreender forças no muito ainda a<br />

aprender.<br />

Fiz o convite a doze professores, a partir do critério da amizade para<br />

estarem em minha casa, para darmos início a uma conversa interessada sobre<br />

<strong>sexualidade</strong>(s), corpo, currículo(s) e docência. Dos professores convidados,<br />

puderam e quiseram estar presente apenas três. Isso de alguma forma nos<br />

revela a impossibilidade das certezas em nossas pesquisas. Ainda que<br />

supondo um “possível” controle sobre os escolhidos, apostando na amizade,<br />

com força de movimento de aproximação, o cotidiano nos prega peças. À<br />

medida que foram chegando, cada um ao seu tempo, a curiosidade e o desejo<br />

pela conversa adquiriam pressa em começar. Esgotado o tempo da espera,<br />

começamos a conversa.<br />

111<br />

Nesta conversa com esses três conversantes/narradores/praticantes,<br />

não fui apenas ouvinte ou aquele que lança a questão e se neutraliza, me fiz<br />

presente, instigando, tecendo comentários e sendo provocado também pelos<br />

professores presentes. Puxando o fio do tema da pesquisa, expus<br />

emboladamente algumas questões aos conversantes, para, a partir da fala<br />

embolada que segue abaixo, situá-los no movimento com a pesquisa. Como<br />

não tinha um texto pronto, fui falando dos lugares que me interessavam e das<br />

questões que me tocavam naquele momento sem a pretensão de estabelecer<br />

verdades, certezas e finitude. Simplesmente abri a conversa. Aprendo com<br />

Larrossa (2003) e Benedito (2005) que nunca se sabe onde uma conversa<br />

pode nos levar, que uma conversa nunca termina, mudamos de rota, pois no<br />

nosso movimento de nos narrarmos vamos sendo tocados por lembranças e<br />

interesses que não estavam colocados em pauta. Numa conversa pode<br />

acontecer abandono, saída e mudança de rotas. Nesse sentido tomo como<br />

escolha, para a tessitura desse texto, amarramentos e problematizações de<br />

alguns fragmentos escolhidos, considerados como “nós” dos muitos fios da


experiência educativa desses três narradores com a escola. A conversa nos<br />

prende, produz aconchego e desassossego.<br />

3.1 Lançando fios embolados de interesses: abrindo a conversa que puxa<br />

conversas 7<br />

Alex:<br />

112<br />

Interessa-me saber com vocês quais são as concepções de currículo(s), <strong>sexualidade</strong>(s)<br />

e corpo praticadas na escola e como a escola trabalha e vivencia esta questão. Sendo<br />

assim, como vocês trabalham e experienciam essa temática, que práticas produzem?<br />

Que currículos produzem? Gostaria que vocês falassem o que pensam sobre isso,<br />

como vivem isso, como veem isso no interior da escola? Para, além disso, saber que<br />

embates a(s) <strong>sexualidade</strong>(s) produzem, que discursos produzem, se há um discurso<br />

tácito ou, se estamos reafirmando a heteros<strong>sexualidade</strong> dentro daquilo que elegemos<br />

como convenção? Como é que estas coisas vão se dando e sendo produzidas no<br />

interior da escola?<br />

Fabrícia 8 , tomando a palavra, vai dizendo 9 :<br />

Eu consigo ver que a escola tem uma postura muito niveladora. No sentido de que<br />

todas as vezes que as pessoas se manifestam que não seja da forma padronizada pela<br />

sociedade, ela está errada e é vista como „o errado‟. Todas as vezes que um menino<br />

ou uma menina se manifesta de alguma forma que não seja a menina brincar com<br />

outras meninas de boneca e o menino brincar com outros meninos de carrinho, jogar<br />

bola, de futebol... Se um dos dois inverterem estes papéis, eles já vão ganhar um outro<br />

olhar dos professores, das professoras de todo um corpo escolar e vai ser criticado. Até<br />

o momento em que me vejo na escola como professora e que a <strong>sexualidade</strong> se<br />

manifestou de forma desviante a criança foi julgada ou pré-julgada, não sei. ... Em<br />

momento algum se para pra pensar que o menino deixou a bola, o futebol e foi brincar<br />

de casinha porque ele quer vivenciar aquele momento, porque está vivendo o faz de<br />

conta de que está em casa. _Todo mundo tem casa! Por que eu não posso brincar de<br />

casinha? Porque que ao brincar de casinha é que achamos que se está aflorando a<br />

<strong>sexualidade</strong> ou a homos<strong>sexualidade</strong> e a menina também, quando ela joga bola, corre,<br />

sobe no muro?...<br />

Fabiano:<br />

A escola prefere que a criança não tenha sexo, ela seria maravilhosa, tanto que a<br />

administração da escola e os professores julgam que as crianças não têm sexo.<br />

Começo minhas andanças na tessitura 10 deste texto de mãos dadas com<br />

três professores, que trazem consigo outros professores e muitos discursos,<br />

estabelecendo possíveis interpretações com o movimento narrativo de nós<br />

mesmos ao nos narrarmos, narrando o que nos atravessa e nos toca em<br />

nossas trajetórias na docência, no exercício permanente de nos<br />

experimentarmos na condição de professores e professoras. Ainda que<br />

7 Não irei trabalhar com toda conversa estabelecida nesse encontro com esse grupo de professores. Trabalharei alguns fragmentos.<br />

Como sinalizei no texto, farei escolhas. Uma vez que não busco a neutralidade. Mas serão potências que demandarão outros<br />

desdobramentos.<br />

8 Mesmo dizendo que usaríamos nomes fictícios, os professores decidiram que queriam que seus nomes aparecessem no texto.<br />

9 Usarei de um recuo na formatação para trazer as falas de meus interlocutores/conversantes/praticantes. Tentarei com toda a<br />

impossibilidade de mostrar o movimento da oralidade, produzir uma escrita que junte as falas que se complementam, se distanciam<br />

e que foram produzidas num contexto.<br />

10 Valendo das investigações de Carlos Eduardo Ferraço sobre o uso da palavra tessitura, explico, a partir de suas investigações, o<br />

uso que toma essa palavra em nossas pesquisas. Segundo Ferraço (2006, p.17): os usos que os pesquisadores do campo do cotidiano<br />

têm dado à palavra tessitura acabaram por ampliar seu significado [tecitura e tecedura]. Assim como ele: por me inserir nesse grupo<br />

de pesquisadores continuarei usando a palavra tessitura.


compreenda que numa conversa pode-se chegar, vou compreendendo também<br />

que não é em toda conversa que podemos participar. Algumas conversas, seus<br />

discursos e enunciados são codificadas, tem chaves, segredos, permissões e<br />

proibições. Não é em todas as conversas que somos bem-vindos. As<br />

conversas também estão atravessadas por relações de poder, de saber e por<br />

verdades. Como nos disse Foucault (2006, p.37), “ninguém entrará na ordem<br />

do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início,<br />

qualificado para fazê-lo.” Sinto a importância de Foucault nesse momento do<br />

texto, uma vez que naquele grupo, pudemos presenciar o impedimento, por<br />

parte de um dos interlocutores, à entrada na conversa de pessoas que os<br />

acompanhavam em minha casa e que não eram professores. Fala do tipo:<br />

Fique aí na sala vendo Fantástico, pois essa conversa é somente para<br />

professores. Era como se dissesse: Você não é professor e, se não é, não tem<br />

as competências para participar de nossa conversa, ou, você não detém a<br />

legitimidade conferida pelos diplomas/discursos/práticas/ atitudes acadêmicas<br />

e pelos saberes científicos que legitimam alguns discursos e aniquilam os<br />

saberes de alguns para entrar e participar de uma conversa sobre a escola e<br />

seus sujeitos. Parece-me que vamos esquecendo que para nos tornarmos o<br />

que estamos sendo [professores], primeiro fomos alunos, irmãos de alunos e<br />

que, ocupando diferentes posições de sujeitos na escola, estivemos<br />

entrelaçados e laçados com e por esta instituição formativa num exercício<br />

permanente de nós mesmos. Ninguém nasce professor, vamos tornando-nos o<br />

que estamos sendo.<br />

113<br />

Salta-me aos olhos neste momento, como em nossos discursos e em<br />

seus enunciados vamos trazendo as marcas dos lugares disciplinados e<br />

disciplinadores, que praticamos ritualisticamente sem perceber. Esses<br />

discursos disciplinadores, subjetivamente, nos constituem. O discurso da<br />

ortopedia, já sinalizado por Foucault em Vigiar e Punir, se faz presente nas<br />

falas de professores e professoras. Mas, esse discurso, ou, aquilo que<br />

conseguimos perceber/sentir/ouvir não é um discurso unificado, são<br />

ressonâncias de muitos outros discursos e enunciados. Nas falas de<br />

professores e em suas narrativas, não ressoam um discurso universal. As<br />

conversas que estabelecemos sobre nós mesmos e sobre as realidades que


produzimos são antes de tudo, um discurso polissêmico, polifônico, dispersivo,<br />

formado por histórias de muitos tempos e espaços praticados. Essas<br />

ressonâncias trazem as marcas das muitas histórias de luta do pensamento, do<br />

conhecimento, dos saberes e dos poderes que nos enlaçam, ecoando no<br />

presente os lugares de poder e as séries de saberes que os constitui.<br />

114<br />

Ainda que sabendo que muitos discursos se cruzam e se atualizam em<br />

nossas práticas, vamos sendo produzidos também pelos discursos que<br />

legitimam os saberes que foram em muitas relações de forças e de disputas<br />

tornando saberes específicos da docência. “A disciplina é um princípio de<br />

controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo da identidade<br />

que tem a forma de uma reatualização permanente de regras.” (Foucault, 2006,<br />

p.36). Nesse lugar disciplinar e disciplinador do discurso, parece que existem<br />

alguns rituais que somente os iniciados e licenciados, em nosso caso,<br />

professores, têm a permissão e as chaves de entrada. Será que uma das<br />

chaves, que tenta produzir o sentido de classe, de pertencimento, de saberes e<br />

da tão requerida identidade docente, passa pela ordem dos discursos<br />

autorizados? Que rituais são esses que nos marcam na constituição de nossos<br />

saberesfazeres?<br />

Nesse lugar que se pretende fixar um princípio ritualístico dos discursos<br />

de professores, ouço através da fala da professora Fabrícia, ecos de muitas<br />

outras falas e do discurso da ortopedia que vai definindo o normal e o anormal<br />

do lugar que se faz currículo e se faz escola. Fico observando, com olhos de<br />

quem visualiza a escola, falas que se aproximam de diferentes realidades e<br />

intenções. Do lugar da ortopedia escolar, o normal e a normalidade vão sendo<br />

produzidos. Na ânsia de formatar todos e todas, produzem também a<br />

anormalidade, ocasionando o surgimento do discurso ambíguo, que define<br />

papéis [meninos X meninas], que aprisiona a expressão da criança, que cria o<br />

desviante e que instaura julgamentos. Julga-se o que aos nossos olhos foge à<br />

regra, julga-se o que nossos olhos ainda não compreendem ou não conseguem<br />

ver de outro jeito. De uma forma ou de outra, a professora Fabrícia disputa o<br />

que é pensado como sendo a normalidade, tentando ampliar as possibilidades<br />

de comportamentos normais, sem sair do binarismo normalidade/anormalidade,


heteros<strong>sexualidade</strong>/homos<strong>sexualidade</strong>, considerando, nos dois casos, o<br />

primeiro polo como padrão e como medida.<br />

Ensina-se a ser menino ou menina na escola? Brincar de bola, de<br />

futebol, de carrinho, desde quando passam a ser marcas da masculinidade?<br />

Brincar de boneca, de casinha, produzem a feminilidade? O que se ensina em<br />

tais brincadeiras? Que modelo de sociedade a lógica instaurada pretende<br />

organizar? Ensinam-nos, desde a tenra idade, a sermos modelo, massa<br />

unificada no lugar vazio da homogeneidade, da identidade, e a escola não está<br />

isenta deste jogo. Ao mesmo tempo em que tenta nos enquadrar no lugar<br />

homogêneo do discurso de que as crianças não têm sexo, a escola assume a<br />

<strong>sexualidade</strong> como um assunto que não lhe interessa. Não lhe interessa discutir,<br />

mas está, em suas intenções veladas, produzir. Não só na escola, mas<br />

também na escola aprendemos o que somos (nomeação) e o que devemos ser<br />

(produção de subjetividade).<br />

As teorias psicologizantes que vão dando o tom de cientificidade aos<br />

saberes docentes, mostram-se preocupadas com questões de como a criança<br />

tida/vista como universal aprende, vai se permitindo e sendo incentivada o<br />

brincar de faz de conta na escola. As crianças, sem precisar de autorizações<br />

das teorias da educação para praticar diferentes experiências com a vida e<br />

com outro, continuam a nos desafiar e a nos provocar com suas surpresas,<br />

seus porquês e curiosidades. As crianças de qualquer tempo e lugar, ainda que<br />

não recebessem o nome de brincar/brincadeira/brinquedo/jogar, sempre<br />

experimentaram possibilidades de relações com o outro, numa tentativa de<br />

aproximação das realidades por elas sentidas, soltando as asas da imaginação<br />

na pele e nas máscaras de outras personagens. Faz de conta, para os<br />

pequenos na escola, lugar das máscaras, das performances, das mímicas, das<br />

fronteiras, lugar do pode quase tudo. Faz de conta na escola, para os adultos e<br />

para a pedagogia, lugar de vigilância, suspeita e controle. Desse lugar do faz-<br />

de-conta, a ideia de sujeito de gênero que se define pelo biológico pode ser<br />

subvertida, contestada e também reiterada.<br />

115


116<br />

O faz-de-conta poderia ser um espaçotempo para os cruzamentos de<br />

fronteiras, ou, para nos situarmos nas fronteiras. Os saberes científicos de<br />

cunho psi nos ensinam nos cursos de formação de professores, que no faz-de-<br />

conta também se pode produzir os modelos/formas/subjetividades desejados<br />

pela escola, se atentos ficarmos ao princípio do exame, do encaminhamento e<br />

da correção, tendo em vista uma norma, que antes de tudo é uma definição<br />

cultural.<br />

Não se pode deixar de pensar que a <strong>sexualidade</strong> e os discursos da<br />

<strong>sexualidade</strong> estão por toda parte, inclusive dentro da escola, como foco de<br />

atenção do Estado. Somos incitados pela escola, ainda que sem compromissos<br />

maiores com a desconstrução de algumas normas culturais sexualizantes, a<br />

nos mantermos vigilantes, cuidadosos com as aparências que as coisas podem<br />

ter, a partir de certo prisma de normatividade. Pelo faz-de-conta, brincadeiras<br />

de criança, capturada pela pedagogia e pelos discursos da pedagogia,<br />

comportamentos, práticas, discursos são também disciplinarizados,<br />

controlados, vigiados e punidos. Trata-se de uma punição que não marca<br />

somente o corpo, mas que nos incita à regulação de nossas práticas e ao<br />

autogoverno de nossas práticas, desejos e prazeres.<br />

Em minhas andanças pelas escolas na condição de professor<br />

nas/das/com as séries iniciais, o faz de conta, ainda que permitindo à<br />

expressão da criança certa liberdade de experimentação de possibilidades de<br />

sentir o outro, continua a fazer desta atividade um espaço para se praticar uma<br />

liberdade regulada. O faz de conta não é invenção da escola, mas, por ela foi<br />

capturada, tornando-se uma estratégia didática que atravessa o pensar sobre a<br />

educação infantil, as séries iniciais e a formação de professores. Nesse<br />

sentido, o faz de conta vai sendo incorporado às práticas pedagógicas como<br />

elemento imprescindível as estratégias pedagógicas de exame, de sanção, de<br />

normalização e de normatização. Ali [faz-de-conta], onde tudo nos parece<br />

permitido experienciar, usando roupas, acessórios, maquilagens, vai-se<br />

instaurando outra lógica para o ser. O ser do faz-de-conta é o ser definido<br />

pelos preceitos morais da escola, da cultura e do currículo. Ao serem<br />

praticados atendendo a certos preceitos, produzem sentido(s) e identidade(s).


Os espaços do brincar na escola vão sendo definidos, articulados e<br />

organizados numa dimensão arquitetural por onde meninos e meninas podem,<br />

ou não, circular. O livre trânsito entre as fronteiras da imaginação está<br />

submetido ao olhar de controle e de julgamentos/avaliação de professores e,<br />

às vezes, dos próprios alunos. Só se julga o que se pode avaliar, mensurar e,<br />

para isso, a referência é sempre uma norma endereçada. Os armários de<br />

meninos são separados das meninas, as caixas onde ficam a parafernália são<br />

separadas e, os que se atrevem a transgredir vão sendo posicionados pela<br />

professora e pelos colegas em seus „devidos‟ lugares. [Isso é de menino, isso é<br />

de menina]. O que poderia parecer faz de conta, lugar que poderia ser aberto a<br />

transgressões e à liberdade das formas instituídas de ser muitas vezes não<br />

para de (re)produzir os ditames da disciplina que atuam sobre o corpo e do<br />

controle, que atuam em nossas formas de subjetivação. O aluno da escola<br />

moderna e sua subjetividade foram concebidos como realidades governáveis.<br />

O nosso tradicional faz-de-conta escolar, ainda se organiza sobre o princípio<br />

binário que conhecemos da heteronormatividade e da linguagem que a produz.<br />

Fica parecendo que, quanto mais cedo aparecer na linguagem e no<br />

corpo as marcas institucionalizadas que julgamos que a <strong>sexualidade</strong> e a<br />

identidade possam ter ou deva ter, mais cedo a escola pode intervir com seu<br />

trabalho pedagógico e psicopedagógico. “Salve as criancinhas!”. Nas<br />

sociedades disciplinares, o desvio produz saberes e, através de um trabalho de<br />

recuperação urgente e emergencial, a diferenciação tende ortopedicamente,<br />

reduzir-nos à insossa semelhança. No faz de conta da escola, o discurso da<br />

ciência se faz presente. A escola justifica, em suas práticas discursivas, pelo<br />

tom de sua voz autorizada, o que se julga desvio, jogando no campo da<br />

normatividade. Temporariamente, podem-se ocupar diferentes posições de<br />

sujeito nos jogos de faz-de-conta. A repetição daquilo que se julgam papéis de<br />

“natureza” masculina ou feminina, acoplando sexo biológico à natureza de<br />

gênero e também de classe, deixa toda a escola em alerta. O tribunal é<br />

composto e o julgamento define ações de correções. Se ali [nessa brincadeira]<br />

mora o perigo, produção de novas outras possibilidades, tiremos o faz-de-conta<br />

e aprisionemos os corpos de nossas crianças nas tradicionais carteiras ou<br />

mesinhas. As próprias mesinhas e carteiras servem como divisor para o sexo<br />

117


iológico, para as identidades de gênero, de raça e até de classe. Ainda que<br />

esse currículo defina um local de visibilidade dos corpos nas práticas<br />

escolares, outros arranjos não pensados podem acontecer. Nesse sentido<br />

busco uma fala de uma professora que, ao demarcar um lugar que fixa<br />

identidades de alunos, simultaneamente vai desmanchando essa lógica ao<br />

lembrar-se de um de seus alunos.<br />

118<br />

- Observe os quietinhos, eles vão se segregando. Tem uma sala que de um lado só<br />

tem meninos e meninas brancas e do outro os alunos negros. Aí chegou o (...) e sentou<br />

do lado dos brancos e das meninas.<br />

Mesinhas dos meninos, mesinhas das meninas. Fila dos meninos, fila<br />

das meninas. Cor de menino, cor de menina. Que armadilhas são essas? É<br />

possível a escola viver sem estas fronteiras? No faz de conta, que também faz<br />

a contabilidade de comportamentos esperados, nossas crianças se parecem<br />

com anjos e, como nos ensinaram, [anjos] não têm sexo, não possuem<br />

identidades e desejos. No faz de conta e na brincadeira [atitudes que foram<br />

caracterizadas como necessária a construção da infância de um tipo], podem-<br />

se exercer processos de governos biopolíticos das subjetividades de nossos<br />

alunos? Segundo Ramos do Ó (2006, p.283),<br />

Os processos de governo do aluno na escola pública do século XX<br />

mostraram uma fiscalização multilinear e uma variação constante<br />

das situações em que o corpo, a mente e a performance escolar<br />

passaram a ser observado caso a caso, aluno a aluno.<br />

Nossos alunos, através de algumas atitudes da escola, vão sendo<br />

transformados em caso, objetos de investigação. Em nome de uma economia<br />

burocratizada numa lógica de Estado, são descritos, analisados, vigiados e<br />

controlados. Em nossas brincadeiras e na articulação de diferentes saberes<br />

desenvolvidos nas relações com o outro, encontramos [a exemplo do faz de<br />

conta] marcas de governo da população. Nesse governo, nem mesmo as<br />

crianças, ou, principalmente as crianças, escapam. Estamos todos circulando<br />

pelas redes das biopolíticas. Essas formas de governo da população, ainda<br />

que dispersas, se reatualizam nas redes tecnológicas. Ainda que esse<br />

espaçotempo tecnológico permita-nos viver outras experiências, no que diz<br />

respeito à <strong>sexualidade</strong>, ao corpo, à condição de gênero e às identidades, não<br />

podemos negar que elas continuam produzindo, reiterando e reiventando


novas armadilhas na produção de sujeitos de certo tipo. Segundo professor<br />

Belarmino 11 :<br />

119<br />

...os meninos que têm acesso ao computador, acesso à internet, eles brincam de<br />

casinha. Têm um programa que se chama: “the sins”. Eles montam casinha. É brincar<br />

de casinha, porém no mundo virtual...<br />

Os meninos, independentemente do espaço e do tempo em que<br />

pensamos o brincar de casinha, sempre estiveram às voltas com essa forma de<br />

experiência. A questão é: de que forma e que posições ocupam nesse jogo?<br />

Vale ressaltar que não é pelo fato de experimentar essa possibilidade do<br />

brincar no campo/espaço tempo tecnológico, que eles transgridem as fronteiras<br />

de gênero, de classe, ou de raça. Lá/aqui, no mundo tecnológico, existem<br />

dispositivos que também (re)produzem realidades institucionalizadas e suas<br />

formas autoritárias de representação. Rocha (2006, p.83), pensando a ideia de<br />

dispositivo disciplinar e de controle no sentido foucaultiano, nos diz que um<br />

dispositivo:<br />

Tal como o dispositivo da disciplinaridade, o dispositivo do controle<br />

também é da ordem do visível e do dizível e se utiliza de variados<br />

discursos, enunciados, organizações, leis, medidas, técnicas,<br />

tecnologias, mecanismos, ações entre eles, a vigilância e os<br />

instrumentos tecnológicos, por exemplo para produzir diferentes<br />

subjetividades e exercer, sobre homens livres, um poder, um<br />

governamento típico das sociedades de controle.<br />

Os meninos, ainda que brincando de casinha num mundo considerado<br />

por tecnológico/virtual, continuam a ser representados e a se representar de<br />

um lugar normativo/heteronormativo. Montam famílias padronizadas pelo ideal<br />

burguês, tem filhos e filhas, trabalham em grandes empresas, consomem<br />

mercadorias e desejos de classe média, branca e heterossexual. Esse brincar<br />

de casinha no campo tecnológico não é a garantia de transgressão. A<br />

transgressão, a resistência nesse mundo das redes de comunicação e das<br />

tecnologias contemporâneas podem até permitir certa liberdade, mas não é<br />

uma garantia de desconstrução de lugares que nos fixam a noção de<br />

identidade vinculada ao sexo biológico, de gênero e de classe.<br />

11 Professor de Geografia da Rede Municipal de Ensino de Carangola e da Rede Estadual de Ensino


3.2 Anjos não têm sexo, mas quando tem: chamem o ortopedista!<br />

Ilustração 3- Anjos<br />

120<br />

O sexo, essa instância que parece dominar-nos, esse segredo que<br />

nos aparece subjacente a tudo o que somos, esse ponto que nos<br />

fascina pelo poder que manifesta e pelo sentido que oculta, ao qual<br />

pedimos revelar o que somos e liberar-nos o que nos define, o sexo<br />

nada mais é do que um ponto ideal tornado necessário pelo<br />

dispositivo de <strong>sexualidade</strong> e por seu funcionamento. (FOUCAULT,<br />

2003, p.145)<br />

Fabrícia 12 :<br />

Eu tive uma aluna que sentava na cadeira, cruzava as perninhas e passava o tempo<br />

inteiro com o cotovelo na vagina, ela ficava às quatro horas se esfregando. Teve um<br />

dia que ela suou, ou seja, ela atingiu o orgasmo. Eu não sei o que ela atingiu, mas ela<br />

atingiu. Pela expressão do rosto dela eu sei. Eu não sabia o que fazer com ela, eu<br />

deixava. Eu iria fazer o que? Mandar parar, ela não queria!<br />

Fabiano 13 :<br />

Isso te incomodava?<br />

Fabrícia:<br />

Um pouco, ela não era igual às outras. Eu a pedia para parar. Falava assim: “Faz isso<br />

não meu bem” (risos). Eu era professora de uma escola particular, a mãe pagando.<br />

Com mensalidade completa e em dia. Como que eu iria falar para esta criança e, eu<br />

não sabia também. Eu chamei a mãe para uma conversa, expliquei o que estava<br />

acontecendo e a mãe disse que iria levá-la ao pediatra. Eu não podia entrar neste<br />

caso.<br />

Belarmino:<br />

12<br />

Fabrícia: aprofessora da educação infantil na Rede Municpal de Ensino Carangola e da professora das<br />

séries inciaís da Educação Básica.<br />

13<br />

Fabiano: Professor de Filosofia da Rede Estadual


121<br />

O discurso do professor vai depender da clientela. O discurso da escola pública é um,<br />

da escola particular é outro e da escola religiosa é um outro discurso.<br />

Fabrícia:<br />

Da escola pública a criança fala assim: tia... manda ela parar.<br />

Belarmino:<br />

Na escola pública o discurso é muito melhor, porque ela é muito mais liberal.<br />

Fabrícia:<br />

Eu sabia o tempo todo que o pediatra não iria resolver. Ela sentia prazer e na verdade<br />

eu via que aquela criança não tinha nenhuma maldade, porque se ela achasse que<br />

aquilo estava errado ou proibido, ela não faria aquilo na sala de aula no meio dos<br />

coleguinhas. Eu não conseguia entender porque só ela fazia aquilo? Pra mim foi algo<br />

muito novo. Uma criança de quatro anos. O pediatra na época olhou, examinou e<br />

passou uma pomada. Aí a mãe disse pra mim que se isso viesse acontecer de novo<br />

era para eu dizer que iria contar para o doutor (...). A mãe pediu para eu agir assim e<br />

eu agi. Aí ela abaixava a perna.<br />

Belarmino:<br />

O pediatra foi o aparelho repressor dela.<br />

Produzir interpretações e problematizações com as falas de professores<br />

é desafiante e instigante. As conversas que tecemos sobre a escola e seus<br />

praticantes têm o poder de instaurar uma teia discursiva ao estilo de um<br />

caleidoscópio, jogando com uma multiplicidade de informações que não se<br />

deixam aprisionar em meias palavras. Estilo caleidoscópio tem as conversas<br />

tecidas em nossas pesquisas com o cotidiano, sobre as coisas da vida que<br />

estão no cotidiano da escola. Simples movimento, surpresa!<br />

Professora Fabrícia, lançando fios de várias intensidades e<br />

intencionalidades, fios dispersos no espaçotempo e nas tramas da linguagem,<br />

vai mostrando-nos e aproximando-nos da necessidade de ampliarmos as<br />

discussões sobre a <strong>sexualidade</strong> na formação de professores. A <strong>sexualidade</strong><br />

não é pensada na infância e, quando nos dispomos a fazer reflexões,<br />

recorremos ao discurso da normatividade e a alguns discursos de matrizes<br />

freudianas no que diz respeito à pulsão sexual na infância [fonte pulsional:<br />

anal, oral, fálica, autoerotismo, zona erógena- pulsão de saber]. As<br />

idéias/conceitos/categorias de Freud contribuíram significativamente para<br />

retirar do campo da anormalidade as manifestações de autoerotismo da criança<br />

e suas pulsões de saber. Mariguela e Souza (2007, p.125), recorrendo aos<br />

escritos e ensinamentos de Freud, argumentam que:<br />

[...] a pulsão sexual é sempre polimorfa, polivalente e portanto,<br />

dotada de plasticidade. Assim, a <strong>sexualidade</strong> para Freud não se<br />

confunde com instinto, nem com o objeto (parceiro), nem com um<br />

objetivo (união dos órgãos genitais no coito): ultrapassa a<br />

necessidade fisiológica para alojar-se na simbolização do desejo.


Masturbação, prazer sexual e orgasmos são coisas que passam longe<br />

ou de forma velada em nossos pensamentos e dos currículos escolares, quem<br />

dirá da formação de professores! A história da <strong>sexualidade</strong> e os fragmentos da<br />

fala dessa professora percorrem caminhos ainda não pensados no exercício da<br />

docência, nos assombrando com nossos não saberes. Esse assombramento,<br />

essa curiosidade, essa insegurança pode produzir traçados e trançados feitos<br />

de experimentações que nos trançam aos discursos da <strong>sexualidade</strong> infantil e<br />

do ser humano. Dessa forma, a masturbação infantil, o autoerotismo, as<br />

sensações de prazer parecem ser algo que ainda movimenta especulações,<br />

regulamentações e normatizações. Mariguela e Souza (2007, p.116), dizem<br />

que:<br />

122<br />

A figura do masturbador é, no dizer de Foucault, o indivíduo quase<br />

universal: o segredo compartilhado por todo mundo, mas que<br />

ninguém comunica a ninguém; é o segredo detido por cada um, o<br />

segredo que nunca chega a consciência de si e ao discurso<br />

universal.<br />

Misturam-se aos saberes da professora, seus não saberes, nossos não-<br />

saberes. As pesquisas com o cotidiano não buscam somente compreender<br />

melhor os usos, as táticas, as invenções, as produções, o consumo, e sim<br />

intencionam também a intervenção. Não posso deixar de me posicionar<br />

mediante o „orgasmo‟ da criança. A criança não atingiu o orgasmo, não estava<br />

se masturbando, no limite da masturbação que conhecemos. O que ela estava<br />

fazendo era tocando e experimentando seu corpo, zonas erógenas, lugares<br />

proibidos, lugares de segredo. Ao misturar as sensações de orgasmos que<br />

conhecemos, da forma que concebemos seus limites, transferimos de modo<br />

igual para a criança o que sabemos das sensações de prazer e do utilitarismo<br />

do sexo. Recorro a Ferraço (2006, p. 17), pedindo sua ajuda para melhor<br />

compreender meu posicionamento, meus limites, meus saberes e não-saberes<br />

no trato da “criança masturbadora que atingiu o orgasmo”, e dele obtenho a<br />

seguinte ajuda.<br />

A despeito de dominarem ou não uma dada informação [...] os<br />

professores revelam um emaranhado de lógicas, discursos, idéias,<br />

hipóteses e metáforas, encharcadas de arbitrariedades, esperanças,<br />

solidariedade, religiosidade, idiossincrasias, imediatismos, nosense,<br />

valores, absurdos, fantasias, pastiche, utilitarismo e preconceitos,<br />

que precisam ser assumidos como fios e nós presentes na tessitura


123<br />

das redes de saberesfazeres dos sujeitos cotidianos, fazendo parte,<br />

portanto, dos currículos realizados.<br />

Dos lugares confiáveis da política educacional, que objetiva uma forma<br />

ideal de escola, de aluno, de professores e de currículo, o não planejado pode<br />

nos levar ao não pensado, a outras interpretações, a outros fazeres, a outros<br />

saberes, a outra ética e estética. Da criança que se pensa para a educação<br />

infantil como anjo e assexuada, misturam-se com nossos saberesfazeres a<br />

masturbação e o toque que nos é desconcertante, o „orgasmo‟ que se<br />

materializa no suor do rosto da criança, a mensalidade da escola particular, a<br />

farmacologia, a ortopedia da escola, da família e da medicina. Percebemos que<br />

a professora joga com inúmeros fios de saberes para lidar com a situação.<br />

Vemos, ainda, na fala da professora, uma multiplicidade de sensações em que<br />

se misturam interdições no corpo e uma ortopedia pedagógica que erra o alvo<br />

e acerta tantos outros. Nos não saberes da professora sobre a <strong>sexualidade</strong> da<br />

criança, no corpo da criança se alojava o saber intuitivo, que afirmava que o<br />

saber médico não iria dar conta de resolver aquilo que se transforma em um<br />

problema para a escola, para a professora, para a família e para a medicina.<br />

Foucault (2003, p. 42) nos fala que desde o século XIX se desenvolveu um<br />

dispositivo de barragem e de produção de subjetividades sexualizantes em<br />

torno da criança. Nesse investimento, “Os pedagogos e os médicos<br />

combateram, realmente, o onanismo das crianças como uma epidemia a ser<br />

extinta.”<br />

Pelo que entendo nesse momento, nas relações com alguns fragmentos<br />

da história da <strong>sexualidade</strong>, o onanismo/masturbação não é um problema em si,<br />

tornou-se um problema pelo mito/crença da degenerescência da espécie. A<br />

masturbação, vista sob esse prisma, une-se às redes biopolíticas e ao biopoder<br />

como mais um fio das formas de governo. A questão não é mais a criança e<br />

seu corpo, as perversões, as degenerescências, as neuroses genitais. A<br />

questão passa pelo domínio e pela tentativa de controle dos comportamentos e<br />

prazeres interditados por uma moral. Como nos fala Foucault (2003), a<br />

masturbação passou a ser algo que se descobre sozinho e que nos liga em<br />

segredo ao homem universal. O que acontece é que ficamos a perseguir a<br />

idéia da moral e da imaturidade deste corpo em descobrir o prazer, seus jogos


de prazer com outras crianças e, no nosso não saber, tratamos de encaminhar<br />

para a medicina aquilo que a escola ainda se nega a problematizar no que diz<br />

respeito aos discursos e enunciados da <strong>sexualidade</strong>. A escola limita-se à<br />

reprodução. Mariguela e Souza (2007, p.110) nos alerta para o fato de que “[...]<br />

o bicho homem, animal falante, é o único ser que tem <strong>sexualidade</strong>. Isso requer<br />

um corte radical no discurso biológico que, desde o século XIX, concebe a<br />

<strong>sexualidade</strong> como manifestação de um instinto de natureza sexual.” Isso<br />

porque a <strong>sexualidade</strong>, envolvendo desejo para além da necessidade de<br />

reprodução é sempre cultural.<br />

3.3 Brincando de pique: onde está o problema?<br />

124<br />

Belarmino:<br />

Meu primeiro problema na escola eu estava na terceira série. A minha professora que<br />

eu não vou citar o nome: [...], mandou todos os meus colegas irem embora ao final da<br />

aula e pediu que eu ficasse. Ela me fez a seguinte pergunta: O que você estava<br />

fazendo naquela construção em frente a sua casa naquela tarde? Eu fiquei chocado<br />

com a indagação dela, porque ela me obrigou a dizer que estava fazendo sexo, quando<br />

na verdade eu estava brincando de pique com os meus colegas de turma. Ela me<br />

induziu, até mesmo porque ela é uma pessoa extremamente tradicionalista, recalcada,<br />

arcaica para os padrões contemporâneos.<br />

Quando ouvimos a fala do professor Belarmino, ficamos a nos perguntar<br />

o que vem a ser problema, para quem pode ser problema? Como ele nos fala:<br />

“O meu primeiro problema...” Por que a <strong>sexualidade</strong> ou as relações de amizade<br />

[o brincar, o prazer] podem se configurar como ameaça na escola? Ameaça a<br />

quem e o quê? O que tem de perigoso nas relações de amizades com pessoas<br />

do mesmo sexo, ou de sexos diferentes que escapem ao controle dos olhares<br />

pedagógicos, produzindo normas confessionais como forma de acesso à<br />

verdade e ao governo de si e do outro? Que relações de forças estão postas na<br />

figura do professor, a ponto de induzir o aluno à confessar uma coisa que não<br />

fez para satisfazer a expectativa do outro? Compreendo que a amizade joga<br />

com a multiplicidade de possibilidades de vida não pensadas, joga com o novo,<br />

com sedução e com o não controle do outro.<br />

Percebo que a amizade, em seu caráter volátil e multifacetado, cria para<br />

o Estado e para suas instituições controladoras, que se traduzem na família, na<br />

escola e em outras instituições, sempre outras formas de se mostrar e de se<br />

constituir, situando nas fronteiras da relação eu-outro, problematizando a


identidade, situando nas fronteiras, produzindo impedimentos de codificação na<br />

esfera da organização da sociedade. O Estado e suas instituições de<br />

sustentação só conseguem estabelecer parâmetros de controle para o<br />

pensado. Sendo assim, a amizade como possibilidade de acesso a uma vida<br />

criativa, produzindo vida-arte, arte-vida, não se aprisionam nas relações<br />

amorosas e de afeto que se traduzem na lógica binária que conhecemos, tendo<br />

por fundamento o princípio da família e das demandas parentais ou em<br />

qualquer relação instituída em que os papéis a serem desempenhados estão<br />

previamente formatados. Ortega (2000, p.88), pensando sobre a amizade na<br />

companhia de Foucault em sua demanda ética, estética e política, observa: “A<br />

ética da amizade visa intensificar a experimentação. A ética da amizade só<br />

pode ser um programa vazio, isto é, capaz de oferecer ferramentas para a<br />

criação de relações variáveis, multiformes e concebidas de forma individual.”<br />

Tendo por companhia Ortega, volto a questionar: o que faz supor que<br />

uma brincadeira de pique possa vir a se transformar em relações de afeto,<br />

relações amorosas e, se puder, ameaça o quê e a quem? O que estamos<br />

entendendo por relações de afeto e relações amorosas? Parece-me que a<br />

questão da desterritorialização dos lugares seguros da organização e da<br />

estrutura da sociedade moderna, com todos os seus discursos e dispositivos<br />

burocratizados, que esses lugares se reinventam com outras forças para não<br />

serem mexidos, uma vez que estou compreendendo que as relações de<br />

amizades são plásticas e jogam com o poder de incitação recíproco. Como nos<br />

fala Ortega (idem, p. 89) acrescenta que “A ética da amizade prepara o<br />

caminho para a criação de formas de vida, sem prescrever um único modo de<br />

existência correto..Falar de amizade é falar de pluralidade, experimentação,<br />

liberdade, desterritorialização.” E é nessa plasticidade que mora o perigo da<br />

amizade! A amizade ameaça as instituições. A amizade é sempre instituinte e<br />

movente.<br />

125<br />

A escola, programada para a docilização dos corpos, do pensamento e<br />

com a promessa de um futuro igual, “repetindo o passado sem novidades”,<br />

sente-se legitimada por diferentes poderes creditados a ela com a função<br />

secular de exercer controle: formando na fôrma, educando, cuidando e, se


possível, sobre o pretexto da prevenção, afastando as surpresas que possam<br />

vir da aposta no prazer que nascido das relações de amizade. Previne-se<br />

aquilo de que não se tem controle, previne-se da vida e afasta as diferentes<br />

possibilidades de acesso ao prazer e à criatividade. Com efeito, os usos que<br />

fazemos do sexo e do prazer se solidificam numa territorialização permanente,<br />

impondo-nos, pelo medo, aquilo que não se pode dizer e sentir. Vivendo este<br />

medo, tentando escapar das punições, eliminamos as aventuras possíveis que<br />

podem ser tecidas nas relações de amizade e afeto. Talvez seja essa a lógica<br />

que permeia a prática recorrente dos professores em “desfazer os grupinhos” e<br />

assim despotencializar as pessoas, deixando-as vulneráveis à individualização,<br />

ao controle, ao comando, à ordem. Essa individualização despotencializadora<br />

do eu com o outro é um dos resíduos das políticas do cristianismo (CHAUI,<br />

2008). Se na antiguidade grega a conduta ética, como busca do belo e da<br />

felicidade, se instituía na relação com outros, no discurso do cristianismo essa<br />

conduta ética se conformava na relação de cada indivíduo com Deus e com o<br />

que lhe é próximo, a imagem e a semelhança de Deus. Belíssimo resíduo que<br />

pode ser encontrado nas formas de subjetividade hegemônicas de nossos<br />

tempos.<br />

Ao buscarmos novamente a fala do professor Belarmino, podemos cair,<br />

se vigilantes não estivermos, nas armadilhas da indignação do discurso<br />

modernizante da pedagogia contra a ação docente daquela professora, a partir<br />

da ideia que nos chega de que o passado ou a tradição é um sinal visível do<br />

anacronismo escolar. Podemos ser levados por um discurso pretensiosamente<br />

crítico, que por sua força demanda um esforço de caráter autoritário,<br />

pretensiosamente contemporâneo, a outro discurso que se julga, no lugar das<br />

marcas que na escola se produzem, capaz de dizer que aquela professora “é<br />

uma pessoa extremamente tradicionalista, recalcada, arcaica para os padrões<br />

contemporâneos”. Será que educar é simplesmente interferir nas situações<br />

experienciadas dentro da escola? Acredito que não. Educar é muito mais que<br />

delimitar intervenções de governo no interior da escola. Educar se estende<br />

também nas relações do cuidado de si e cuidado com o outro, ainda que nisso<br />

se institua regras.<br />

126


127<br />

Não podemos negar que na ação de cuidar possam se fazer presentes<br />

(e se faz presente), marcas de um certo código moral disperso e difuso na<br />

história, ou de como os sujeitos são convocados a fazerem parte deste código<br />

moral, praticando permanentemente o cuidado de si e o cuidado com o outro.<br />

Parece-me que é isso que a professora considerada arcaica fez, convoca-o a<br />

se integrar, ainda sem saber das normas e prescrições existentes neste código<br />

moral, aparentemente necessário para a vida comum, oriunda nos efeitos de<br />

padronização de comportamentos, construídos, emaranhados e legitimados a<br />

partir de diferentes técnicas de governo, de conduta, de comunicação e de<br />

objetivos. Esse é o convite da professora para seu aluno: integrar-se a uma<br />

norma e a uma moral.<br />

Entende-se moral como um conjunto de valores e regras de conduta<br />

que são propostos aos indivíduos e aos grupos por meio de diversos<br />

aparelhos prescritivos, como podem ser a família, as instituições<br />

educativas, as igrejas etc. (FOUCAULT, 2004a, P. 211)<br />

Quanto mais se acredita em prescrições, códigos, e dispositivos, mais<br />

se exige de si e do outro a sua manutenção e reatualização. Nesse sentido,<br />

essa moral transmitida quase sempre de maneira difusa, “longe de formarem<br />

um conjunto sistemático, constitui um jogo complexo de elementos que se<br />

compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo, dessa<br />

forma, compromissos ou escapatórias.” (idem). E por não deterem um valor<br />

absoluto, muito menos universal, necessitam permanentemente serem<br />

reiterados e ou reelaborados.<br />

Nesse encaminhamento sobre a produção da experiência de si,<br />

possibilidades de firmarmos esses compromissos com essa crença e com seus<br />

códigos ou deles escarparmos e desviarmos se processam nas relações<br />

sempre abertas do sujeito consigo e com o outro. Para Foucault (op.cit, p.95),<br />

as técnicas de si, são todas aquelas técnicas:<br />

que permitem aos indivíduos realizar, por eles mesmos, um certo<br />

número de operações em seu corpo, em sua alma, em seus<br />

pensamentos, em suas condutas, de modo atingir um certo estado<br />

de perfeição, de felicidade, de pureza, de poder sobrenatural.


Seguindo essa linha de raciocínio do cuidado de si, voltamos com o<br />

professor Belarmino a perguntar: O que vem a ser padrões contemporâneos,<br />

uma vez que estamos atravessados por códigos de comportamentos morais e<br />

por técnicas de si que são seculares e dispersivas? Não podemos esquecer<br />

que o tempo da vida não segue o tempo cronológico. O tempo da vida é outro,<br />

assim, “tradição e contemporaneidade” se hibridizam permanentemente, caso<br />

contrário, estaríamos inventando a roda todos os dias na escola. Que matizes<br />

se apresentam nas ações de professores para adquirirem a chancela de<br />

arcaicos e tradicionalistas? Será que tal chancela vem junto com este código<br />

moral e com a credibilidade que se dá a este código? Nos rastros de Foucault<br />

(idem, p.211), podemos entender por moral:<br />

128<br />

[...] o comportamento real dos indivíduos em sua relação com as<br />

regras e valores que lhes são propostos: [...] a maneira pela qual<br />

eles se submetem mais ou menos completamente a um princípio de<br />

conduta, pela qual obedecem ou resistem a um conjunto de valores.<br />

No lugar do binarismo que se marca pelo julgamento, identificação,<br />

classificação e não valorização dos saberesfazeres docentes que se fundam<br />

numa certa „tradição‟ e com diferentes técnicas de constituição de sujeitos que<br />

ocupam posições de professores, quem ganha e quem perde com tal<br />

(des)legitimação. Ao (des)legitimarmos os saberesfazeres docentes fixando-os<br />

no anacronismo da história factual que desqualificam a experiência, nos<br />

abrimos com nossos desejos de vanguarda a diferentes estratégias de governo<br />

e de mercado que desqualificam as histórias da escola, sua complexidade e<br />

seus sujeitos. De tempos em tempos, a escola é bombardeada por discursos<br />

frenéticos e políticas autoritárias, impostas pelas canetas dos que conhecem a<br />

escola de um lugar, desqualificando os saberesfazeres docentes, trazendo as<br />

últimas novidades da moda educacional. Se não estivermos atentos, podemos<br />

ser engolidos pelos fragmentos galopantes de teorias/discursos/textos/<br />

mercadorias que chegam à escola, transformando-a numa vitrine de<br />

tendências, de experimentações e, consequentemente, de exclusões de<br />

professores e de alunos.<br />

Tornou-se corriqueiro ouvirmos pelos corredores da escola: “Eu sou<br />

construtivista, eu sou sociointeracionista, eu sou tradicionalista, eu sou um


pouquinho de cada coisa”. Nem menos nem mais, penso, somos isto e aquilo,<br />

somos isto mais aquilo, somos o resultado aberto das histórias que nos<br />

contaram e das histórias que contamos a nós mesmos e aos outros. Nos<br />

balcões de vendas que se fazem dentro da escola, através dos mercados<br />

editoriais e das máquinas capitalistas, ser consumidor destes produtos e fazer<br />

o uso desses produtos é estar por dentro, é fazer parte; não consumir estes<br />

produtos é ficar por fora, fora da moda. Não precisamos demolir a escola que<br />

existe, a questão não é essa. Precisamos questionar a escola que inventamos<br />

e expandir nossas problematizações sobre as razões que nos fazem<br />

agir/pensar/narrar/escrever a escola e suas práticas desta ou daquela forma.<br />

A prática docente pode, sim, inibir os processos de desenvolvimento das<br />

relações criativas de alunos e alunas, mas a escola não é o único lugar capaz<br />

de contribuir na construção de sujeitos, até mesmo porque as situações de vida<br />

extrapolam qualquer espaçotempo escolar. Quaisquer amarras de uma<br />

estrutura curricular que se diz e que se pretenda modernizante, assim como as<br />

tendências mercantis que circulam nos espaços docentes, tendem a errar seu<br />

alvo. Além disso, podemos nos aprisionar nos discursos já conhecidos por<br />

muitos, em que toda ação docente que se mostre do seu lugar de poder,<br />

demanda um quantum de opressão. Nesse discurso de cunho psicologizante e<br />

sociologizante, que circula nos espaços que vamos construindo a escola, „tudo‟<br />

ou „quase tudo‟ oprime, deprime, reprime, castra, inibe, traumatiza.<br />

Fica parecendo, a partir de certos discursos, que não nos resta mais<br />

nada, ou que desapareceram os espaços para a resistência e insistência.<br />

Ainda que estes discursos se mantenham com palavras de ordem,<br />

prescrevendo práticas e limitando as invenções, os sujeitos do cotidiano<br />

escolar não se cansam de produzir manobras, fugas, devires. Foucault já nos<br />

ensinou que o poder é produtivo, relacional e que não funciona de forma<br />

unilateral. O poder está em toda parte, nos atravessa produzindo movimentos e<br />

deslocamentos.<br />

Não nos é possível, e não é intenção desta pesquisa, capturar uma<br />

realidade ficcional em sua totalidade a partir do outro e da leitura que atravessa<br />

129


nossos olhares para pensar esse outro. Que leituras podem ser feitas da ação<br />

docente da professora que inquire seu aluno? Que limites podemos produzir no<br />

campo pedagógico ao delimitar nossas reflexões de forma unilateral a partir do<br />

discurso do professor Belarmino, que foi atravessado pelas verdades ainda que<br />

temporárias daquela professora? Ninguém é hoje o que era ontem. Que poder<br />

é este que percorre o tom da fala da professora que leva alunos e alunas a<br />

caírem nas armadilhas normativas [excludentes e includentes] dos discursos?<br />

Nos discursos da pedagogia há um espaço que não se contesta, pois as<br />

explicações vão sendo produzidas de mãos dadas com os traumas, bloqueios,<br />

inibições, castrações e, com isso, alguns de nós passamos o resto de nossas<br />

vidas nos justificando. Não estou dizendo que não nos marcamos a partir das<br />

verdades do outro, o que quero realçar é que não somos mais os mesmos,<br />

outros atravessamentos e ultrapassamentos deram-se dando ao longo dos<br />

caminhos percorridos em nossa história.<br />

3.4 Ninguém quer ser colocado como a bola da vez<br />

130<br />

Belarmino:<br />

Eu não sou educador, eu sou professor, eu sou conteudista. Claro que eu acabo<br />

educando porque as relações no transcorrer da aula acabam produzindo o espaço do educar.<br />

Eu sou repassador de conteúdo mesmo, eu me configuro mais neste perfil. Eu me estabeleço<br />

pela competência.<br />

Alex:<br />

Por que se tem de ser competente?<br />

Belarmino:<br />

Porque a sociedade cobra mais daquilo que não é estabelecido como parâmetro.<br />

Fabiano:<br />

É por ser gay que você tem que ser competente?<br />

Belarmino:<br />

Eu creio que sim, por ser gay, ser negro, ser pobre.<br />

Fabiano:<br />

E o hetero, não tem de ser competente?<br />

Fabrícia:<br />

Mas eu acho Belarmino ... a questão de querer mostrar que você é competente pra não<br />

deixar brecha, pelo menos no seu profissional... para que sua <strong>sexualidade</strong> não seja<br />

colocada em jogo.<br />

Alex:<br />

Mas por que não se pode ser questionado?<br />

Belarmino:<br />

Porque <strong>sexualidade</strong> é opção individual de cada um.<br />

Fabrícia:<br />

Ninguém quer ser julgado, ninguém quer ser colocado como a bola da vez, queremos<br />

ser legal, queremos ser referência positiva.<br />

Puxando mais um fio desta trama narrativa, nesse fragmento de<br />

conversa embolada, algumas questões merecem problematizações, uma vez


que elas se fazem permeadas pela ambiguidade que nos é própria. Professor<br />

Belarmino, numa conversa anterior, sinaliza uma crítica, ato de contestação à<br />

postura de sua ex-professora, ao dizer que ela era arcaica para os padrões<br />

contemporâneos da sociedade. Ao trazer fragmentos de sua prática, e de como<br />

se vê na condição de professor, revela marcas de uma escola e de<br />

pensamentos que o perpassam, tocam-no, produzem experiências e sentidos.<br />

Parece que a ambiguidade nos constitui, nos prega peça e nos movimenta a<br />

um outro lugar, impulsionando-nos a nos situarmos nas fronteiras de nossos<br />

saberesfazeres. Escola conteudista/tradicional, criticada por muitos, se faz<br />

presente nas ações de muitos professores e, neste caso, professor Belarmino<br />

requer para si e denomina o repasse dos conteúdos de sua disciplina a<br />

chancela de sua competência profissional. Escola que se inscreve num projeto<br />

cultural de sociedade para a tão sonhada modernidade, escola para o<br />

progresso e nisso reside a sua universalização.<br />

Vou tateando os textos de Silva (1999) e, com ele, vou aprendendo que<br />

uma escola, ou as marcas de pensamentos teóricos e práticos que atravessam<br />

nossos saberes e fazeres docentes pode vir a ser classificadas por tradicional<br />

pelo fato de se organizar sobre uma estrutura hierarquizada e burocratizada.<br />

Essa estrutura tenta aprisionar tempos e espaços, sujeitos e saberes,<br />

conteúdos estabelecidos quase sempre por um de fora, a serem ministrados<br />

num determinado tempo, avaliações que conferem classificação de alunos,<br />

assim como a tentativa da recuperação. Nesse modelo de escola, a<br />

recuperação é sempre um desafio, pois se acredita poder sempre recuperar o<br />

tempo e as “carências” de ordem cultural e da aprendizagem. Vou percebendo,<br />

na companhia de Foucault, que este modelo de escola, desenvolvida na era<br />

clássica, aposta na correção como forma de evitar desvios. Os desvios que<br />

fogem à normatização existem e me interessa problematizá-los! Não<br />

interessam nesse modelo de sociedade os desvios. A sua busca é pela<br />

homogeneização, e uma de suas vias é o legado cultural. Ser repassador de<br />

conteúdos é uma tentativa de responder à universalização da cultura, via<br />

currículo. Quando não conseguem produzir a ortopedia nos saberes e no<br />

comportamento de alunos, ativam instâncias de correção dentro e fora da<br />

escola. Tal modelo de escola e de prática docente, que se presentificam no<br />

131


ideário de muitos na contemporaneidade e pode nos remeter às teorias críticas<br />

ao questionar as relações de poder que definem essas escolhas, no que se<br />

convencionou nos espaços de lutas travadas, pensar como sendo esse o<br />

legado cultural.<br />

132<br />

Parece-me que este modelo de prática docente, (requerida por muitos<br />

que idealizam a qualidade de ensino, da escola e do professor, tendo por<br />

referência o conteúdo pelo conteúdo) continua a se impor como força<br />

hegemônica e como valor social. Com este ideário, o bom professor seria<br />

aquele que domina o conteúdo de sua disciplina, domina a técnica da<br />

transposição didática e tem a incumbência de fazer a ligação entre a tão<br />

sonhada modernidade e o seu espírito salvacionista ligado às necessidades de<br />

mercado. Nesse sentindo, para aqueles que acreditam nesse modelo de escola<br />

construída pelas teorias tradicionais, a competência e a identidade docente vão<br />

sendo conectadas aos dispositivos que conferem aos saberes que<br />

historicamente foram sendo transformados como a legítima cultura, em um<br />

divisor de águas.<br />

Nesse divisor de águas a meritocracia é instituída, justificando, uma<br />

suposta neutralidade de seus discursos, as excludências de muitos. No caso<br />

desse professor, sua competência técnica conteudista se justifica pela<br />

normatividade conferida ao status do ser professor e dos saberes normativos<br />

de uma área disciplinar. Como se essa competência técnica [identidade<br />

docente] tivesse o poder, pelo tom de neutralidade de suas promessas e de<br />

seus resultados, minimizar ou fazer desaparecer as marcas binárias de<br />

identificação, construídas e normatizadas pelos dispositivos discursivos que<br />

tentam disciplinar as categorias conceituais de classe, de gênero e de<br />

<strong>sexualidade</strong>. Neste modelo normativo sempre em constante esforço de<br />

manutenção, o princípio binário das excludências e das includências é<br />

reforçado ao sabor das competências e da identidade professoral. Ao mesmo<br />

tempo, essas competências funcionam para que esse professor, se valendo de<br />

táticas, mantenha e exponha sua <strong>sexualidade</strong> dentro da escola. Para não ser<br />

questionado, como se não pudesse ser do lugar da <strong>sexualidade</strong>, o professor se<br />

fecha nos limites da norma da identidade docente de uma técnica e pelo


domínio do conteúdo escolar [currículo] ideologicamente definido pela<br />

sociedade, nas tramas de sua história e de suas lutas pelo poder e pelo saber<br />

em nome de uma pretensa necessidade de tranmissão da cultura. Nesse<br />

sentido, pelo tão requerido discurso da competência ou da identidade docente,<br />

a sociedade nos diz, a todo tempo, “que precisamos ter uma identidade estável,<br />

buscar uma identidade, assumir uma configuração cristalizada de uma forma<br />

de ser.” (PEREIRA: 2000, p. 36)<br />

3.5 Boca-de-forno... forno<br />

133<br />

Fabiano:<br />

Na sociedade contemporânea, parece que para o negro, o homossexual se destacar,<br />

cria-se uma mentalidade de que as ditas diferenças precisam ser mais inteligentes. Por<br />

quê? Até que ponto isso vai gerar igualdade? Penso que isso produz exclusão, outras<br />

exclusões.<br />

Fabrícia:<br />

Exatamente, são por essas exclusões históricas que produzimos resistência.<br />

Resistindo, a gente se mostra unido...<br />

Fabiano:<br />

Acho que esta tentativa de sermos competentes e acabamos sendo, funciona<br />

positivamente em alguns momentos, mas ao mesmo tempo a gente acaba se<br />

excluindo... acho que estes grupos (negros, homossexuais) que se esforçam demais<br />

para produzir resistência, se afastam da sociedade também, produz-se o gueto e<br />

acaba fazendo parte do jogo.<br />

Entrando na conversa, professor Fabiano posicionando-se, questiona o<br />

lugar da competência e da <strong>sexualidade</strong>, ao mesmo tempo em que se indaga e<br />

se questiona, refletindo sobre as razões que levam muitos de nós a uma<br />

exigência de ordem tarefeira, que aparentemente passa a ser nossa,<br />

aprisionando-nos na tão requerida competência. Que história é essa que vai<br />

agenciando e requerendo um quantun de produtividade que na escola se<br />

organiza por um e não outro conhecimento? Por que o professor gay, negro,<br />

precisa ser „melhor‟ do que o professor hetero, branco? Fica parecendo que<br />

sem perceber continuamos a fazer a brincadeira do boca-de-forno, em que,<br />

quem não cumprir as tarefas exigidas por quem determina as regras do jogo,<br />

levará um bolo.<br />

O problema é que, nessa brincadeira boca-de-forno, a gente sempre<br />

sabe quem vai ganhar, pois é aquele que detém o poder, ainda que temporário<br />

para determinar as regras do jogo. Quanto mais se acredita e valida esta


incadeira, mais distante parece ser a reversão das ordens emitidas por<br />

aqueles que controlam seus bonequinhos, com o medo constante de levar<br />

bolo/castigo. Engraçado, parece que algumas brincadeiras tem sempre a<br />

intenção de colocar as pessoas nos seus devidos lugares. Na escola, a<br />

brincadeira de boca de forno ainda faz parte da rotina cotidiana de alunos e<br />

professores.<br />

Sabemos, e me parece já ser saber comum nos discursos de<br />

professores, que somos sujeitos históricos e que cada um, afetando e sendo<br />

também afetado pelas circunstâncias e pelos acontecimentos, experimenta<br />

posições diferenciadas em seus processos de identificação e subjetivação.<br />

Foucault nos diria nesse momento como forma de alerta, que: Não somos mais<br />

do que ainda não somos. Marcos Vilela Pereira (2000: p.36), pensando sobre o<br />

que estamos nos tornando, sujeitos em prática, diz, que “Um sujeito em prática<br />

é o que está sendo e, ao mesmo tempo, potência de vir a ser um outro de si,<br />

algo diferente do que venho sendo, algo nunca sido. Assim, observamos que o<br />

sujeito é sempre potência.”<br />

Sendo o sujeito da experiência, o sujeito em prática como potência, a<br />

questão que me coloco e vai ao encontro da fala de Fabiano, problematiza a<br />

rigidez que cristaliza possibilidades do vir a ser sempre outro, com um toque<br />

dos direitos de existir ou coexistir, enredados aos discursos e as políticas de<br />

igualdade e identidade. Assim, vale caminhar na potência da pergunta: por que<br />

algumas pessoas, e determinadas políticas de inclusão possuem tanto desejo<br />

pela igualdade e pela presença identitária? Por que não podemos ser<br />

diferença, programa vazio, como diria Foucault? Já é tempo de começarmos<br />

uma reflexão por dentro? Quando falamos de igualdade, o que está em jogo: o<br />

direito de sermos diferença, ou é a busca do outro como falta?<br />

Orquestra-se, nas falas de Fabiano e Fabrícia, um som dissonante.<br />

Fabiano questiona o gueto, como forma de fechamento das relações sociais,<br />

de impedimento de novas formas de relações não pensadas, duvidando da<br />

institucionalização das identidades fixadas nos parâmetros de positividade,<br />

134<br />

como uma única possibilidade de existência. Sendo assim, o pensamento de


Fabiano se orquestra ao de Pereira (2000, p.36), quando ele nos diz que “Uma<br />

identidade é a institucionalização de uma forma, é a redução do movimento de<br />

criação à reprodução de modelos hegemônicos e estereotipados.”<br />

Em consonância com o pensamento de Fabiano, Fabrícia lança outra<br />

questão. Para ela, o gueto é uma forma de resistência. Afinal de contas,<br />

estamos resistindo a quê? A resistência é um duplo do poder, só há resistência<br />

onde há poder. O poder que se mostra nas relações sociais que nos são<br />

próximas, deixa fissuras sempre abertas para a contestação, que não<br />

necessariamente é uma recusa ao poder, mas uma das formas de disputá-lo,<br />

ou uma negatividade que não cria, apenas nega. Talvez o que não<br />

conseguimos visualizar é o fato de que as lutas não precisarem ser<br />

necessariamente travadas de forma universal. Será? Vamos compreendendo<br />

com Pereira (idem: p.37) que “a institucionalização das identidades é uma<br />

forma de homogeneizar o cotidiano e construir os agrupamentos e as<br />

coletividades.”<br />

Conforme Nietzsche (2006), um espírito em evolução deve passar por<br />

três metamorfoses: Camelo, leão e criança. Estando no gueto, na condição de<br />

camelo (obrigação) e de leão (negação), não quer dizer que estamos livres<br />

para dizer e sermos crianças. Como nos falou Zaratustra: O camelo é só<br />

obrigação (talvez o caso da competência, tarefas, fardos, repetição,<br />

identidade). No meio do deserto, espaço e tempo praticado de sua<br />

evolução/criação, ele se transforma em leão e diz um sonoro não a obrigação.<br />

O não é necessário para abrir o caminho para o novo, mas não produz nada,<br />

porque é só negação. Então, o espírito vira uma criança. E o próprio filósofo<br />

pergunta: o que pode uma criança que não pode um leão. Ele mesmo<br />

responde: uma criança, ao ignorar os códigos porque é inocência, é<br />

esquecimento, brincadeira, é uma roda que gira em torno de si própria, é<br />

criação, é só afirmação.<br />

135<br />

Os guetos muitas vezes fecham as possibilidades de novas<br />

existencialidades, uma vez que eles determinam sua agenda de luta, como se<br />

todos vivessem e sentissem as mesmas coisas ou tivessem a obrigação de


viver e sentir o mesmo, além de constituir um espaço para nos escondermos,<br />

nos acuando, não nos deixando ocupar todos os espaços que também devem<br />

ser nossos. Ninguém vive seus processos de entendimento com o mundo do<br />

mesmo jeito. Por isso, aposto no encontro e nos confrontos das diferenças.<br />

Precisamos desconstruir com a inocência de criança estes discursos por<br />

dentro.<br />

O gueto, como sendo mais uma forma de fixação de identidades,<br />

determina discursos, práticas e políticas que não atingem a todos. Ao trazer<br />

essa discussão, não estou colocando que esses discursos não se materializam<br />

em atrocidades e perversidades, nem que cruzemos os braços e esperemos a<br />

vida passar. Quem tem olhos para ver, ainda que vendo com as lentes que nos<br />

foram colocadas sem muito esforço, vai percebendo que o binarismo<br />

excludente produz uma estrutura social que amesquinha a vida de homens e<br />

mulheres em seus anonimatos. Precisamos, sim, das forças dos movimentos<br />

sociais, de modo a exigir novas possibilidades de existência sem nos<br />

aprisionarmos no seu próprio espelho. Precisamos, sim, dos diferentes<br />

inconformismos que movimentam homens e mulheres nos diferentes cantos<br />

deste planeta, em prol de outro mundo, cujo desperdício das experiências<br />

possam ser denunciados. Precisamos desconstruir e desfazer o jogo.<br />

136


4- Problematizações em torno da produção do sujeito escolar.<br />

137<br />

O importante é o fato de uma experiência que não nasce de um<br />

sujeito isolado, mas de um mundo compartilhado. (ORTEGA, 1999,<br />

p.138)<br />

Inicio esse texto puxando fios que me ligam aos professores/amigos/<br />

narradores e praticantes da escola. Professores/amigos que me permitiram<br />

problematizar temas emergentes nos discursos da escola praticada e que, por<br />

sua vez, assumiram autorias no texto anterior. Autorias que foram entretecidas<br />

com suas experiências do viver escolas, na condição de professores e muito<br />

mais. São amigos de longas datas, amigos com os quais compartilho<br />

experiências de vida e de escola. E são dessas relações de amizade, de afeto<br />

e daquela conversa acirrada sobre <strong>sexualidade</strong>s, práticas docentes e currículos<br />

que puxo fios de narrativas que me sinalizam, a partir de meus interesses,<br />

cotidianos possíveis para problematizar as relações com os discursos do<br />

currículo na produção de sujeitos.<br />

Penso cotidianos possíveis, uma vez que considero que são muitos os<br />

cotidianos da escola e que muitas também são as chaves, as portas e as<br />

possibilidades de entrada, de mergulho, de compartilhamento na tessitura das<br />

redes de relações e de amizades que produzem a escola e os sujeitos<br />

escolares. Falo de mergulho, mas não de um mergulho qualquer. Falo de um<br />

mergulho cuidadoso. Esse cuidado vai se configurando como necessário às<br />

pesquisas com o cotidiano, uma vez que com elas mostramos muito do que<br />

somos e no que estamos nos tornando.<br />

Entro na escola sabendo que altero a realidade e que crio também essa<br />

realidade. Entro, chegando e, ao chegar, mergulho na escola na condição de<br />

praticante narradorpesquisador. Entro, chego e mergulho na escola trazendo<br />

comigo as muitas histórias, das muitas escolas que vivi e vivo, por isso entro<br />

implicando essa realidade. Trago comigo: teorias, discursos, traduções,<br />

biografias, identidades. Trago comigo as muitas narrativas dos currículos<br />

praticados com o outro, de alunos que tive, fui/sou e dos muitos professores<br />

que me constituem. Trago comigo as minhas experiências trançadas nas<br />

tramas do viver escola e que foram e são tecidas nas aventuras de viver o


exercício permanente de aprenderensinaraprender. Estou compreendendo que,<br />

ao entrar na escola, não entro pela metade como tentaram nos ensinar as<br />

teorias tradicionais, buscando descrever, com todo seu apreço por uma<br />

racionalidade científica, o que ela supunha e supõe já existir como realidade<br />

dada.<br />

Desse lugar, das teorias tradicionais, cabia ao pesquisador apenas<br />

observar e constatar o já sabido, assumindo com essa atitude uma pretensa<br />

neutralidade, mediante o objeto de estudo e a realidade investigada. Estão lá<br />

[realidade e objeto], esperando passivamente pelo pesquisador e por sua<br />

capacidade em descrever com muita sapiência esta suposta realidade. Em<br />

nossos estudos com o cotidiano escolar, estamos compreendendo que<br />

estamos implicados com as realidades que dão formas aos sujeitos e as<br />

realidades escolares. Não entramos na escola de um lugar que busca a<br />

neutralidade e que nega a implicação do pesquisador com esse espaço e<br />

tempo de aprendizagens, de enredamentos e de invenções. Entramos na<br />

escola de corpo inteiro, pois, “[...] em essência, somos parte do próprio tema<br />

estudado. Com tudo que ele tem de bom e ruim.” (FERRAÇO: 2001, p104).<br />

138<br />

Ao entrar na escola, compartilhando desse espaçotempo de<br />

experiências, vamos confundido e sendo confundidos com as razões e<br />

invenções de nossa pesquisa. Passamos a ser nossa pesquisa, nos<br />

confundindo com ela e por ela sendo confundidos. Não falamos sobre a<br />

pesquisa, falamos com a pesquisa, falamos sobre nós mesmos, vivendo a<br />

pesquisa e seus movimentos caóticos e [re]inventivos de nós mesmos.<br />

Influenciamos e somos influenciados, implicamos e somos implicados pelos<br />

atos de pesquisa e com as verdades sempre parciais e provisórias que<br />

produzimos com nossas pesquisas.<br />

Pensando sobre o campo de influências e implicações em nossas ações<br />

pesquisantes e do não controle de quem e do que vem ao nosso encontro,<br />

rememoro uma situação vivida com a escola, exigindo na emergência daquele<br />

acontecimento, uma lentidão no caminhar e no olhar, intencionando ver melhor<br />

uma exposição de cartazes fixados em um painel da escola, cujo tema era:


Felicidade. Entre os muitos cartazes expostos por uma turma de 7ª série,<br />

atividade avaliativa da disciplina Ensino Religioso, minha atenção se volta para<br />

um conjunto de trabalhos que se apoiavam numa estrutura linear, simbolizando<br />

a compreensão dos alunos, ou de seu professor, da ideia que se pode ter de<br />

felicidade. No exame/avaliação que fazia daqueles trabalhos e de sua estética,<br />

enredavam-se em minhas formas de compreensão e julgamento as diferentes<br />

e sutis formas de produção de subjetividades presentes nos currículos<br />

praticados da escola, conectando-se a uma certa racionalidade científica, a<br />

tecnologias de governo e do eu. Nesse conjunto, destaco um cartaz que me<br />

chamou atenção, que me fez parar e olhar com mais cuidado, uma vez que<br />

nele estavam a partir de minhas implicações e interesses fios, de muitas<br />

tecnologias que produzem subjetividades.<br />

Ilustração 4 – Árvore da felicidade<br />

viam e os que o produziram.<br />

139<br />

A linearidade e previsibilidade<br />

de uma árvore [raiz, tronco, flores e<br />

frutos] indicam princípios e práticas<br />

de si que me parecem importantes<br />

para a aluna que o produziu, ou,<br />

astuciosamente, a aluna representa<br />

com seu trabalho escolar um sentido,<br />

ou, o sentido esperado pela escola,<br />

tendo em vista a necessidade de<br />

corresponder às formas previsíveis<br />

de felicidade (o que vale na avaliação<br />

de seu professor). Apenas uma<br />

hipótese! Nossos alunos sabem<br />

responder às expectativas de seus<br />

professores! Não é possível precisar<br />

sobre as significâncias deste trabalho<br />

para a aluna, muito menos para seu<br />

professor, uma vez que esse trabalho<br />

não estava exposto com a intenção<br />

de produzir um debate entre os que


140<br />

A atividade escolar - Árvore da Felicidade - só existiu para aqueles que<br />

por ela foram laçados. Nem todos da escola viram aqueles cartazes, existiam<br />

muitas outras coisas para serem vistas e, se viram, não necessariamente<br />

atribuíram o sentido esperado por seus idealizadores. Caso insista na<br />

explicação dO cartaz e nas intenções do trabalho dessa aluna e de seu<br />

professor estaria simplesmente me explicando. Ferraço (2003, p.160)<br />

pensando sobre a implicação do pesquisador, aposta na ideia de que nos<br />

trabalhos com o cotidiano há sempre uma busca de nós mesmos e que ao<br />

investirmos na potência explicativa e subjetiva dos sujeitos de nossas<br />

pesquisas, “falamos coisas próximas daqueles que queremos explicar. Mas,<br />

mesmo assim, ainda somos os sujeitos explicados em nossas explicações.”<br />

A busca de conhecimento está presente em toda pesquisa e em toda<br />

intenção de pesquisa. Essa não é uma característica exclusiva das pesquisas<br />

com o cotidiano. O que difere a perspectiva das pesquisas com o cotidiano com<br />

outras tantas possíveis, é que não pretendemos dissimular nossa implicação,<br />

mas, ao contrário, admitir essa condição, sem deixar que ela desvalorize ou<br />

deslegitime nosso trabalho. Assim, o conhecimento, como sentido atribuído a<br />

uma situação, a um acontecimento, se produz em meio e, nessa relação, de<br />

mutua afetação entre quem conhece e o que será conhecido, e nesta relação<br />

ambos se modificam, se inventam, se significam. Não como uma síntese, mas<br />

numa espiral de significados, intensidades e forças imprevisíveis e co-<br />

engendradas neste movimento.<br />

As raízes, bases de sustentação subjetivante e estruturante da árvore da<br />

felicidade, dessa aluna são constituídas por: família, amigos e religião. O tronco<br />

dessa árvore representa o seu presente, sendo o que tem importância e<br />

sentido se enreda aos modos e formas de agir com o outro, de interagir,<br />

estudar, navegar na internet, ouvir música, sair com os amigos. Os frutos de<br />

sua árvore, lugar das incertezas e da ação, campo do futuro são constituídos<br />

de possibilidades/esperanças/desejos/sonhos, sendo eles: passar de série,<br />

conseguir boas notas, conhecer pessoas, ver um Brasil melhor, conhecer<br />

outros lugares, conseguir um bom emprego, ser feliz, amar e ser amada e ter<br />

bons amigos que a ajudem na hora que mais precisar. Ainda que os frutos de


sua árvore estejam conectados a um lugar de promessas e determinismo,<br />

podemos presenciar a força de um tipo de sujeito idealizado em si, nas formas<br />

de governo e de ações que aparentemente depende dele e do investimento de<br />

um capital cultural institucionalizado sobre ele. Como se dissesse: plante que<br />

você colherá. Uma relação de causa e efeito! O futuro como consequência<br />

inevitável do passado e do presente. Ao invés de um futuro aberto e incerto,<br />

busca-se um futuro certo e administrável.<br />

No momento em que observava esse cartaz, pensando sobre as<br />

tecnologias de governo que nos atravessavam na constituição da autoimagem,<br />

do autoconhecimento, configurando-se, em previsões da escola, pensava<br />

sobre as muitas promessas que a escola nos fez ao longo do tempo que se<br />

convencionou chamar por modernidade. Os discursos e textos que produziam<br />

e ainda produzem a escola moderna, nos prometeram que através de seus<br />

saberes e suas verdades poderíamos ter uma vida melhor a partir dos saberes<br />

escolhidos pela escola e seus idealizadores. O discurso pedagógico da escola<br />

deixa para um futuro, talvez distante, a possibilidade de ser feliz e de ter uma<br />

vida melhor. Ainda acreditamos nisso e nossos alunos também! Por isso,<br />

nossos alunos negociam com a escola, tudo que gostam com o estudar,<br />

garantindo dessa forma o reconhecimento de seus interesses e valores.<br />

Tudo, aparentemente estava sobre „meu‟ domínio/controle, até que um<br />

aluno que me observava sem que eu o notasse pulasse na frente dos cartazes<br />

e dissesse: - Professor faz uma foto minha? E num piscar de olhos, sem<br />

anúncio e previsão, estava sendo capturado, observado, examinado por quem<br />

não está em nosso de campo de visão, mas que vinha ao nosso encontro e nos<br />

movimentava a ver o que ainda não víamos.<br />

141


Ilustração 5- Intervenções implicantes<br />

A intervenção desse aluno me tirou o prumo, a intenção, o caminho já<br />

traçado e me obrigou a vê-lo e registrar sua presença. Para além das ações<br />

inventivas do cotidiano, uma necessidade de visibilidade se faz presente a todo<br />

o tempo nos movimentos cotidianos. Nossas pesquisas talvez possam dar<br />

conta desses movimentos também. Numa sociedade de espetáculo, quem<br />

aparece? quem pode aparecer? quem quer ser invisível? Talvez seja função<br />

social e política de nossas pesquisas, potencializar a visibilidade desses<br />

sujeitos anônimos, que não necessariamente querem permanecer no<br />

anonimato.<br />

Esta experiência com o aluno que salta a minha frente e, pede para ser<br />

fotografado, confirma a idéia de que os autores de nossas pesquisas se<br />

entrelaçam a elas, como fios na emergência do acontecimento. Não só o<br />

pesquisador observa e se deixa tocar pela a escola, a escola, também observa<br />

o pesquisador e, por ele se deixa tocar. Ferraço (2003, p. 160), atento ao<br />

cotidiano, reconhecendo as implicações do pesquisador junto ao tema de sua<br />

pesquisa, reconhece que às vezes podemos nos confundir com ele. De um<br />

142<br />

lugar de estudos que se pretende “sobre, de fato, acontecem os estudos com


os cotidianos”. Somos, “no final de tudo, pesquisadores de nós mesmos,<br />

somos nosso próprio tema de investigação.” E poderíamos acrescentar, somos<br />

também objetos de investigação e dispositivos de saber/poder que esses<br />

sujeitos dos cotidianos usam para produzir a si próprios e, para produzir as<br />

suas condições de existência.<br />

143<br />

Pedindo licença aos praticantes da escola, chegando com cuidado,<br />

como se chega numa nova escola, numa nova casa, numa nova cidade, num<br />

outro país, num grupo de pessoas que pouco se sabem e por pouco saber,<br />

movimenta as pessoas por conhecer e compartilhar com o outro. Chego<br />

devagar na escola e chegando assumo-me neste trabalho como<br />

praticantenarradorpesquisador e objeto desse estudo. Quero me misturar/<br />

constituir/construir neste trabalho como pesquisador de mim mesmo. Essa<br />

possibilidade de pensar a pesquisa como autobiografia, vem sendo uma marca<br />

política de inserção no universo da escola por aqueles que reconhecem e<br />

validam os estudos com/nos/dos cotidianos como possibilidade de pensar a<br />

escola e os sujeitos de nossos atos pesquisantes, como co-autores de nossas<br />

pesquisas. Não entramos na escola simplesmente para descrevê-la, julgá-la e<br />

observá-la. Entramos conscientes de que o pesquisador está impregnado de<br />

redes de sentidos, que se juntam a tantos outros. Por isso ao entrar na escola,<br />

o pesquisador que acredita nas pesquisas com os cotidianos traz consigo as<br />

impregnâncias dessas redes de conhecimentos e retece tantas outras nos<br />

encontros com os que vivem, fabricam e que também são fabricados por<br />

aquela cotidianidade. Entramos na escola, muitas vezes convidados, querendo<br />

compartilhar, aprenderensinaraprender o viver escola.<br />

Muitas possibilidades de entrada na escola foram sinalizadas nas falas<br />

dos professores, com os quais pude tecer as primeiras conversas dessa<br />

pesquisa. Poderia mergulhar em diferentes cotidianos: creches, educação<br />

infantil, nas séries iniciais e finais da educação básica. Mas, pelo pouco tempo<br />

que é uma pesquisa de doutorado, sei que não daria conta de viver as<br />

aventuras e experiências das tantas escolas e, de tantos cotidianos escolares.<br />

Uma escola em especial provoca em mim interesse de investigação,<br />

compartilhamento, narração, problematização e encontro. Esse interesse se


atrela as relações de amizade estabelecidas com alguns de seus professores e<br />

com alunos dessa escola.<br />

Os motivos dessa escolha são muitos, mas a condição de poder<br />

reencontrar ex-alunos da escola primária foi o que de imediato, justificou a<br />

minha escolha/decisão pela Escola Estadual “Emília Esteves Marques”.<br />

Juntando-se a isso, fragmentos da fala do professor Belarmino traziam<br />

elementos dos discursos e práticas educativas no trato da <strong>sexualidade</strong> e na<br />

produção de subjetividades que muito me interessavam vivenciar no encontro<br />

com os praticantes da escola.<br />

Berlarmino:<br />

144<br />

É por isso que nas escolas nós temos o programa afetivo sexual para trabalhar as<br />

diferenças.[...] Eu acho bem legal! Eu estive assistindo e achei encantador. Eles [os<br />

alunos] fazem oficinas, aprendem a olhar uns nos olhos dos outros, aprendem a<br />

abraçar, aprendem a respeitar.[...] Este projeto tem trazido resultados positivos. Os<br />

alunos estão mais educados. Eles têm mudado as atitudes em sala de aula [...] Acho<br />

que você deveria ir para escola para poder ver isso na escola.<br />

Achava, naquele momento de escolha/decisão, que o fato de<br />

reencontrar conhecidos, poderia facilitar e aproximar as pessoas aos meus<br />

interesses com a pesquisa. Vale ressaltar que toda escolha é sempre negação<br />

de tantas outras e que ao fazermos escolhas, estamos exercendo/exercitando<br />

nosso quantum de liberdade com o mundo. Conhecer algumas pessoas da<br />

escola não é uma garantia para as pesquisas com os cotidianos, uma vez que<br />

as pessoas não se encontram a nossa disposição na escola. Na escola seus<br />

interesses são muitos, porque às vezes, nossa presença não diz muita coisa<br />

para aqueles que estão preocupados com o seu fazer escola.<br />

Muitas narrativas de experiências foram sendo tecidas ao sabor daquela<br />

conversa com os três professores. Narrativas das experiências de quem há<br />

muito se vê as voltas com o aprendizado de se tornar professor, conectado as<br />

muitas redes de saberes, fazeres e poderes que nos prendem entre fios,<br />

tramas e nós ao cotidiano da escola. Nesse sentido, questões foram<br />

aparecendo nas falas dos interlocutores/autores daquela conversa.


Alguns fragmentos daquela conversa foram escolhidos, a partir de<br />

alguns critérios/escolhas para uma escrita problematizadora deste trabalho,<br />

que recebeu o título: Escolhas, anunciações e possibilidades de encontro com<br />

alguns narradores da escola. Outros fragmentos, não menos importantes,<br />

ficaram na conversa, na embolada da conversa e, por ser conversa, não<br />

careciam ser desemboladas. Essa conversa embolada, transformada pela sua<br />

importância num texto em anexo, recebera o título: Conversas com narradores<br />

/praticantes da escola – e por ser conversa – basta! Vale ressaltar que ao<br />

colocar essa conversa como anexo, não tive/tenho a intenção de abandoná-la,<br />

ou de deixá-la produzir sentidos por si só, pelo contrário. Minha intenção em<br />

deixar aquela conversa na embolada não significava querer<br />

tratar/problematizar/desembolar as tantas experiências ali sinalizadas pelos<br />

conversantes. Fiz a escolha por deixá-la como anexo, tal é o grau de<br />

importância que ela tem e representa para mim. Deixo essa conversa como<br />

texto-anexo, como convite e como porta aberta para a curiosidade do leitor.<br />

Esse convite deixa fios soltos e nós frouxos para aqueles e aquelas que se<br />

aventurarem na leitura desse texto-anexo, como potência de novas<br />

investigações. Lendo o texto, de seu lugar, que cada um possa ir enredando-se<br />

naquela conversa com os muitos fios de suas redes. Sendo assim, quero usar<br />

do exercício de liberdade para buscar fragmentos daquela conversa sempre<br />

que precisar de ajuda daqueles narradores/autores e quando em outros<br />

contextos/textos esses fragmentos produzirem sentidos, outros sentidos.<br />

145<br />

Querendo realmente ver/sentir/tocar/ouvir e ser tocado pela escola no<br />

que diz respeito à <strong>sexualidade</strong>, o corpo e o currículo realizado pelos praticantes<br />

da escola, sou levado pelas mãos do professor Belarmino à Escola Estadual<br />

“Emília Esteves Marques”. Como minha intenção é compreender os currículos<br />

realizados/praticados/vividos/realizados, de mãos dadas com esse professor,<br />

peço licença aos praticantes dessa escola, para dela fazer parte, compartilhar o<br />

vivido e o sentido. Vale ressaltar que minha entrada na escola na condição de<br />

praticantenarradorpesquisador se deu a partir do dia 17 de fevereiro de 2007,<br />

início do ano letivo, e por lá fui ficando até o mês de dezembro do mesmo ano.


4.1 Entre Poli-Valentes e Emílias: uma escola? muitas escolas!<br />

De forma carinhosa, essa escola é conhecida pelos seus praticantes por<br />

„Polivalente‟, nome que obteve em sua inauguração na forma institucional.<br />

Poucos são os que se referem à escola fazendo o uso do nome escolhido pela<br />

Câmara Municipal de Carangola, em homenagem a uma renomada figura<br />

política de nossa cidade. O nome oficial „Emília Esteves Marques‟ com o qual<br />

esta escola é reconhecida pela burocracia do Estado, pouco significado possui<br />

para os praticantes da escola. „Polivalente‟, esse é o nome da escola praticada.<br />

Ilustração 6 – Desfile de 7 de setembro<br />

O nome „Polivalente de Carangola‟ está atrelado a um período da<br />

história da Educação, cujos esforços dos gestores das políticas públicas para a<br />

Educação concentravam-se na qualificação de mão-de-obra especializada,<br />

com o objetivo de atender à demanda do trabalho local ou de profissionalização<br />

das classes populares. Recorrendo ao histórico da Escola, podemos saber:<br />

146<br />

A Escola foi inaugurada aos 13 dias do mês de maio de 1977.<br />

Denominada Escola Polivalente de Carangola, ministrava a principio,<br />

Ensino de Formação Especial e Conteúdos Acadêmicos. Por falta de<br />

continuidade do programa, passou a ministrar o Ensino Regular. A<br />

Escola foi criada para ser uma escola profissionalizante. A Escola<br />

nesse tempo atendia uma clientela de periferia, preparando a


147<br />

população de menor poder aquisitivo para ingressar no mercado de<br />

trabalho. Curso como o de Artes Industriais, Técnicas Agrícolas,<br />

Educação para o Lar, dentre outros, foram desativados e as áreas<br />

técnicas cortadas. A Escola, gradativamente, foi modificando suas<br />

características iniciais, inclusive a de atender a camada popular para<br />

profissionalizá-la.<br />

No tempo desta pesquisa, a Escola Polivalente oferece à comunidade de<br />

Carangola/MG a segunda etapa da Educação Básica e o Ensino Médio,<br />

atendendo a um número estimado de dois mil alunos. Os alunos dessa escola<br />

são moradores dos espaços urbanos e rurais. Por ter esse número de alunos e<br />

desenvolver ações que a diferenciam de algumas outras, a escola recebeu a<br />

chancela/marca/classificação e algumas obrigações do que em Minas Gerais,<br />

passou a ser classificado e nomeado por „Escola Referência‟.<br />

Ilustração 7 – Escola Estadual Emilia Esteves Marques<br />

Estar na condição de Escola Referência significa ter mais dinheiro na<br />

escola, mais possibilidade de ver seus projetos aprovados e de ter que<br />

corresponder de forma satisfatória às avaliações sistêmicas do Estado. Sendo<br />

Escola Referência torna-se o lugar idealizado para as muitas iniciativas das<br />

políticas do Estado, vista por Silvio Gallo (2007, p.28) por educação maior.<br />

Conceitualizando-a como sendo o “esforço macropolítico de pensar, organizar,<br />

implementar e gerir processos educacionais como um grande sistema,<br />

determinando suas regras, suas metas, suas ações.” Essas políticas de gestão


da educação instituída pelo poder Estatal tem por foco estratégias construídas<br />

e reconstruídas por uma racionalidade técnica que, de um lugar e no exercício<br />

de seu poder determina regras, ações e metas, objetivando a partir de seu<br />

controle capturar e controlar os processos instituintes e instituídos das escolas.<br />

A escola não vive somente do instituinte, ela se organiza também com os<br />

processos instituídos pelas macropolíticas e pelos saberes da escola. Essa<br />

racionalidade macropolítica, plano de realidade em constante transformação,<br />

máquina-penélope não se dissocia e não abre mão do instituinte. Como afirma<br />

Barros (1999, 191), “na tessitura das redes desejantes, tecendo, destecendo e<br />

retecendo com os mesmos fios, a máquina-penélope insiste em continuar seu<br />

funcionamento.” Não se pode negar que seus esforços produtivos voltam-se<br />

para a eficiência conferida aos campos pedagógicos que enlaçam: ensino,<br />

aprendizagem, planejamento e a burocratização do trabalho docente.<br />

Esse amarramento de intenções macropolítico, transformado em metas<br />

de governo, objetiva atestar o saber escolhido, que se pode validar pelas vias<br />

do exame, aferindo organização e auto-organização de um currículo idealizado<br />

e programado pelos gestores dessas políticas. O que vale para essa<br />

burocracia, pelas vias do exame, é saber se alunos e professores respondem<br />

prontamente ao desejo daqueles que querem ver suas escolhas e decisões<br />

reiteradas como legítimas nas avaliações. O que interessa nessas avaliações é<br />

saber se o aluno e o professor correspondem de forma satisfatória aos<br />

interesses vinculados àqueles conteúdos em sua forma correspondente às<br />

demandas do sistema.<br />

148<br />

Essa organização que pensa o fazer escola a partir de um lugar definido<br />

está preocupada com o que ensinar, como ensinar e o que validar. Não que<br />

essa não seja uma preocupação no cotidiano escolar, é também, mas essas<br />

políticas de gestão educativas, de organização e funcionamento, dizem muito<br />

pouco aos praticantes da escola, enquanto só fazem parte do desejo, do texto<br />

frio dos burocratas/experts e das estatísticas de governo. Para alguns<br />

professores e alunos, essas políticas de governo não dizem muita coisa e<br />

muitos nem sabem que elas existem. Essas políticas de governo só irão se<br />

efetivar e produzir sentidos/currículos à medida que elas sofrerem demandas.


Essas políticas produzem experiências, quando: lidas, negociadas, traduzidas,<br />

contestadas, reorganizadas e quando são colocadas em práticas pelos<br />

praticantes da escola.<br />

149<br />

No entanto, essas políticas educacionais e suas prerrogativas recaem<br />

com um peso muito vezes insuportáveis sobre as escolas no momento das<br />

avaliações externas, cujos resultados impõem o seu reconhecimento, seja na<br />

forma das punições sofridas, ou na forma dos incentivos recebidos. Nessa<br />

medida e também por meio dos discursos pedagogizantes que entram na<br />

escola por meio da formação de professores, dos pedagogos, dos<br />

treinamentos, dos textos oficiais e prescritivos e da publicidade estatal, entre<br />

outros, acabam constituindo-se fios, apesar de trançados com outros, se fazem<br />

presentes na tessitura dos currículos praticados na escola, ainda que sua<br />

visibilidade seja eclipsada.<br />

Os que estão na escola ficam com a sensação de que essas políticas<br />

passarão como outras passaram. Ainda que essas políticas se diluam no ar,<br />

elas possuem o poder de nos alterar e alterar a paisagem da escola. Nos<br />

espaços políticos da vida, precisamos compreender a complexidade do todo<br />

nas partes, e vice-versa. Não é demonizando o que convencionalmente se<br />

pensa ser como sendo a macropolítica que iremos dar um adeus as estruturas<br />

de Estado e de organização do Estado. As macropolíticas, representadas ou<br />

não pelo poder e moral do Estado, produzem efeitos sobre os espaços de<br />

atuação do cotidiano escolar, não podemos negar essa fato. Seus efeitos de<br />

realidade, suas traduções e negociações vão aparecendo nas falas e nas<br />

práticas de professores.<br />

_ Sempre me disseram nos cursos de formação que uma boa prova é aquela que têm<br />

uma diversidade de questões. Agora, a prova do estado é de múltipla escolha. Acho<br />

uma sacanagem. A gente vive em função de uma prova que não sabemos o que<br />

querem de nossos alunos e da gente.<br />

Gallo (2007) não desconsidera os efeitos e as necessidades de se<br />

pensar políticas e gestão da educação. Gallo compreende que essas políticas<br />

da educação não são universalizantes e não atingem a todos da mesma forma,


uma vez que as emergências cotidianas permitem aos seus praticantes<br />

produzirem linhas de fuga a qualquer tentativa de engessamento, estratificação<br />

e estriamento do fazer/viver o cotidiano. O que interessa realmente para os<br />

estudiosos do cotidiano escolar seria prestar atenção e valorar os esforços dos<br />

que estão na escola na condição de autores, no alisamento do espaçotempo<br />

escolar, permitindo, no encontro com o outro, experienciar fugas, fluxos de<br />

criações e resistências às determinações legais da educação maior. Esse<br />

alisamento do espaçotempo escolar, produzidos no encontro com outro,<br />

permite atos criativos, identificados por Gallo (2007, p. 28) como educação<br />

menor. Para ele, a educação menor pode ser pensada “no esforço micropolítico<br />

de criação e de produção cotidiana em que professores e estudantes realizam<br />

os atos educativos, mas também nas microrelações estabelecidas na<br />

instituição escolar como um todo.” Penso que as relações entre esses espaços<br />

de tomadas de decisões não estão separados por mundos distintos; essas<br />

realidades constituídas pelo macro e pelo micro enredam-se uma na outra.<br />

Podemos entender esse efeito, conectando ao seguinte fragmento:<br />

150<br />

Belarmino:<br />

A escola modernizou bastante o discurso sexual dela, a partir deste Afetivo Sexual!...<br />

Alex:<br />

O que é isso: Afetivo Sexual?<br />

Belarmino:<br />

É um programa que algumas escolas [Referência] tiveram o direito de optar. É para<br />

trabalhar a questão do carinho, do abraço entre amigos, do olhar, do respeito. É muito<br />

interessante, porque trabalha as emoções dos alunos. Eles [os alunos]<br />

fazem/participam deste projeto. Aí tem eventos, tem encerramentos, tem oficinas. É<br />

para trabalhar as diferenças em sala de aula. É realmente muito interessante.<br />

Professor Belarmino, no fragmento acima, indica-nos que não estamos<br />

imunes a macropolítica. Não dá para dizer que essas políticas de governo não<br />

nos afetam e que não são necessárias aos espaços educativos instituídos, pelo<br />

contrário, o que não se pode afirmar é que elas produzem o desejado e a cópia<br />

fiel de suas intenções/programações. As pessoas resistem a algumas<br />

situações dessas políticas instituídas. Resistindo, produzem coisas não<br />

pensadas por dentro dessas políticas. Para além de qualquer intenção<br />

macropolítica, a micropolítica do desejo interpõe, intervém, entra em cena e<br />

pode transformar tudo o que foi planejado e desejado.


Como já sinalizei anteriormente, a Escola Polivalente de Carangola<br />

atende alunos dos espaços considerados como urbanos e rurais. A maioria dos<br />

alunos dos espaços rurais frequenta a escola, mediante a disponibilização do<br />

transporte escolar. Os alunos que chegam à escola „Polivalente‟, vindos das<br />

comunidades rurais, preferencialmente, e são atendidos na escola no turno da<br />

manhã. Podemos perceber na escola em questão que o que se pode<br />

considerar por políticas de governo, [Transporte Escolar e por Programa do tipo<br />

o Afetivo Sexual alteram sim, a realidade local e a escola]. Vale ressaltar que<br />

muitas dessas políticas, vistas por alguns como macropolíticas, não<br />

necessariamente nascem e se organizam a partir de demandas e de interesses<br />

daqueles que de longe e do alto planejam e organizam essas políticas.<br />

Algumas demandas materializadas em estratégias de governo e postas em<br />

circulação são resultados das muitas lutas históricas no campo do direito ao<br />

acesso e permanência à escola. A materialização de algumas políticas de<br />

governo vão ao encontro de algumas expectativas instituintes e das<br />

necessidades dos que vivem o cotidiano escolar.<br />

151<br />

A escola „Polivalente‟ está localizada num bairro considerado por alguns<br />

como sendo a periferia. Ainda que seja considerada por alguns como escola de<br />

periferia, essa terminologia não diz muita coisa para quem mora e pesquisa em<br />

cidades pequenas. Vale ressaltar que nas cidades pequenas as pessoas se<br />

orientam a partir de outras referências, muitas delas, afetivas. Suas referências<br />

de localização, ainda que seguindo critérios topológicos, são organizadas num<br />

espaço que é praticado pelos usuários da cidade. Como exemplo, cito<br />

expressões mais comuns: Fulano mora no alto do morro da torre, atrás da<br />

igreja, perto do hospital, perto da ponte, ao lado da praça, na rua da rodoviária,<br />

na saída da cidade, no asfalto e assim vai. Asseveramos como forma de alerta,<br />

que só podemos posicionar essa escola na periferia, se assumimos a<br />

perspectiva cultural, geográfica e política que localiza e define pelos critérios de<br />

escolha o que seria: o centro, a periferia, o urbano e o rural. Muitos alunos e<br />

professores não se deixam capturar pela lógica cultural do centro, do urbano e,<br />

por não serem capturados por essa referência cultural do centro e do urbano,<br />

vivem, como nos diria Louro (2003), suas excentricidades. Vivendo-as como<br />

experiência de si, em alguns momentos lhes servindo como armas de


contestação a uma política de governo, trazem para a escola identificações,<br />

que, performáticas, são constituídas e/ou assumidas em suas vivências na<br />

contingência dos significados e das marcas impostas pelo enquadramento em<br />

macro-categorias social, políticas e culturalmente instituídas, tais como: raça,<br />

classe, gênero, <strong>sexualidade</strong>, geração, geográficas e outras tantas. Fazendo<br />

usos dessa condição que os identificam, classificam e aprisionam, para<br />

potencializá-las no momento vivido, posicionamentos identitários como<br />

performances (e não como essências) que operam como arma de luta no<br />

enfrentamento ao que os oprime em determinado momento.<br />

152<br />

Alunos e professores, valendo-se dos espaçostempos de contestação<br />

das tramas culturais, fragilizam as fronteiras entre centros e excêntricos, entre<br />

centro e periferia, entre urbano e rural. Todos e todas, de uma forma ou de<br />

outra, em seus diferentes movimentos de encontros e desencontros na escola,<br />

desafiam à sua maneira, a fixidez defendida por uma racionalidade que localiza<br />

o eu e o outro. Como fazem isso? Talvez zombando das fronteiras, produzindo<br />

isso e aquilo ao mesmo tempo, talvez se tornando outros, talvez<br />

problematizando as classificações. Quem sabe ainda usando essas<br />

classificações em seu próprio benefício pelo tempo que se prover, sem deixar-<br />

se fixar por elas. Louro (2003, p.49) nos chama atenção para o fato de que “O<br />

grande desafio talvez seja admitir que todas as posições podem se mover, que<br />

nenhuma é natural ou estável e que mesmo as fronteiras entre elas estão<br />

desvanecendo”.<br />

Enfatizamos, com Louro (p.43) que o centro [e o urbano] “continua como<br />

uma atraente ficção de ordem e unidade.” Se a questão do centro e dos<br />

excêntricos é uma questão histórico-cultural que se enlaça a sistemas de<br />

linguagens, e se essas definições de lugares se regimentam nas relações de<br />

forças, relações de poder, de disputas e desigualdades, vamos atentando para<br />

o fato de que escolhas, nossas escolhas, nem sempre escolhas, podem ser<br />

contestadas e subvertidas. Hegemonicamente, podemos perceber a reiteração<br />

e a fixação desses lugares pelas vias do currículo, ao definir a cultura que deve<br />

adentrar na escola, quem será representado nessa entrada e quem ficará fora<br />

dessas representações.


Para além dos limites representacionais das classificações culturais que<br />

conhecemos e que produzem o urbano e o rural, o centro e a periferia, a<br />

Escola Polivalente está situada num bairro que aproxima pessoas e permite<br />

trânsitos. Estudar nessa escola para muitos, além de sua topologia, é também<br />

uma questão de escolha, de preferência, de afeto, de aproximações com outros<br />

que lá estudam, estudaram e de muitas histórias dessa escola. Parece-me que<br />

existe um esforço permanente de convencimento dos que estão representados<br />

no centro na manutenção das diferenças, das desigualdades, das<br />

excentricidades. A questão é que, quando investimos em assumir nossos<br />

lugares entre essas excentricidades, reafirmamos esses lugares centrais. As<br />

narrativas de professores e alunos podem nos ajudar a compreender a escola<br />

como território cultural movente, produtor de cultura. Sendo a escola um<br />

espaçotempo cultural, a mesma vai se configurando sempre outra, enredando-<br />

se nas lutas, nas resistências, nas subversões, nas emergências, nas<br />

contestações e nas criações de quem a pratica. Ainda que sabendo do<br />

potencial criativo da escola, ela não está imune aos afetamentos e as intenções<br />

históricas das diferentes políticas de governo da população e do indivíduo. Por<br />

ser um espaço afetado pela a educação maior, como nos diria Gallo (2007), é<br />

também um lugar de reproduções e reiterações.<br />

153<br />

Buscando novamente os professores/narradores/praticantes que tramam<br />

esse estudo, podemos perceber em suas redes de conhecimento sobre o<br />

campo movediço da <strong>sexualidade</strong>: encontros, ambiguidades, emergências e<br />

localização dos sujeitos nas tramas linguísticas representativas. Podemos<br />

ouvir:<br />

Fabiano:<br />

Eu trabalhava em Pedra Dourada 14 e a escola queria expulsar uma menina que ficava<br />

com outras meninas na rua. Este assunto chegou à direção da escola, inclusive era a<br />

[...] diretora e, ela dizia que a escola não iria saber lidar com a homos<strong>sexualidade</strong><br />

dentro da escola. Aí eu perguntei se algum dia esta menina havia dado algum trabalho<br />

para escola. A menina não tinha problemas com a escola, era extremamente educada<br />

e delicada, esta aluna respeitava o território. [...] A menina não tinha nenhum problema<br />

[...], mas a direção da escola queria convencer a menina que ela deveria ser hetero.<br />

Fabrícia:<br />

Por isto que precisa existir gueto<br />

Alex:<br />

Precisa?<br />

14 Pedra Dourada, cidade limítrofe ao município de Carangola/ MG.


154<br />

Belarmino:<br />

Precisa...<br />

Fabrícia:<br />

Precisa sim, para que esta pessoa possa se libertar.<br />

Alex:<br />

Mas o gueto liberta ou aprisiona?<br />

Fabricia:<br />

Enquanto gueto, seja ele qual for de homossexuais, de heteros, você vai estar se<br />

libertando, você vai estar se soltando ali com o seu grupo, é um momento de se<br />

realizar, para a sua satisfação. Se do lado de fora existe uma parede, uma barreira que<br />

te impede de ser o que você gosta de ser, lá dentro você pode ser o que você quiser<br />

ser.<br />

Alex:<br />

Então o gueto liberta por dentro e por fora continua fechado?<br />

Fabricia:<br />

Estando no gueto você consegue se fortalecer e se fortalecendo talvez você consiga<br />

romper com o que do lado de fora está estipulado...<br />

Fabiano:<br />

Estando no gueto você vai conseguir se fortalecer pra se libertar...<br />

Alex:<br />

Então o gueto tem um lado de dentro e um lado de fora?<br />

Fabrícia:<br />

Claro. O lado de dentro fica os iguais, iguais no sentido de desejar coisas parecidas,<br />

iguais no sentido de acreditar em coisas parecidas.<br />

Alex:<br />

Ou, o gueto nos impede de vivermos nossas diferenças?<br />

Belarmino:<br />

Não. Nós somos iguais dentro do gueto...<br />

Alex:<br />

Isso pode até ser bom, mas não impediria os nossos processos de diferenciação?<br />

Fabrícia:<br />

Não, nós estamos em quatro aqui e estamos respeitando a individualidade de cada<br />

um. Aqui é um gueto, nós somos quatro aqui. Quantos você convidou?<br />

Alex:<br />

Doze<br />

Fabrícia:<br />

Quatro, somos a terça parte. Por que estamos aqui? Porque alguma coisa em comum<br />

nos une. Mas em inúmeras outras coisas nós pensamos diferente. A gente sabe falar a<br />

mesma língua e nos respeitamos...<br />

Belarmino:<br />

Nós somos focos de resistência e que de repente damos certo, nós temos<br />

competência...<br />

Alex:<br />

Nós resistimos a quê?<br />

Belarmino:<br />

Resistimos a uma cultura heterossexualizada, uma cultura dominante, nós somos<br />

diferença e nem por isso, nós deixamos de fazer igual dentro dos padrões exigidos pela<br />

sociedade: “que é trabalhar, lecionar, ter boa conduta, ter moral”<br />

Alex:<br />

E as pessoas que não entram neste jogo?<br />

Fabrícia:<br />

São resistentes<br />

Alex:<br />

Mas eu tenho um monte de amigos heteros que não se enquadram neste lugar, a<br />

questão não é com a gente. Fica me parecendo que para nos estabelecer de alguma<br />

maneira temos que ser os melhores.<br />

Belarmino:<br />

Mas ela é hetero!<br />

Belarmino:<br />

Mas nós somos a minoria, ou você acha que somos a maioria?


155<br />

Alex:<br />

Quem é a maioria?<br />

Belarmino:<br />

São os heteros, brancos, lindos, bem sucedidos economicamente...<br />

Fabiano:<br />

Nós estamos à margem da sociedade...<br />

Belarmino:<br />

E não somos ela, nós temos capital cultural para discutir e não para reproduzir...<br />

Alex:<br />

Mas nós não estamos reproduzindo?<br />

Belarmino:<br />

Eu não...<br />

Fabrícia:<br />

Eu não. Estou falando da forma que eu penso e que acredito e te digo mais, se<br />

alguém conseguir me convencer do contrário, vai ter que ter um pouquinho de<br />

trabalho...<br />

Com esses professores, vamos afirmando que tanto as excentricidades<br />

como o centro estão cotidianamente às voltas dos muitos jogos de poder,<br />

tramados por sistemas de linguagens, entre regimes de verdades e de muitas<br />

práticas que reforçam e contestam as posições do centro e das margens.<br />

Essas posições contestadas, subvertidas e reiteradas, são potencializadas,<br />

uma vez que existem espaços de liberdades, que nos tocam nas relações com<br />

o outro e com a experiência com aquilo que produz sentidos. Estando todos<br />

nós, enlaçados pelos mais diferentes fios de uma rede de conhecimento<br />

cultural, vamos experimentando-nos à medida que também experimentamos o<br />

outro. A rede com seus fluxos, passagens e regulações, permite de um modo<br />

ou de outro, a circulação de todos e de tudo. Na rede da cultura, não nos é<br />

possível buscar a fixidez do tempo, os pontos geometricamente definidos<br />

(rural/urbano, centro/periferia) e as identidades cristalizadas em regimes de<br />

verdades como origem para todas as coisas.<br />

Penso que muitas pessoas, em seus anonimatos, por algum momento<br />

de suas vidas querem estabelecer lugares e processos de identificações. Em<br />

alguns momentos estabelecer um lugar, ou uma identificação, pode ser<br />

também uma escolha, exercício de poder e de liberdade. Essas escolhas,<br />

exercício de liberdade, produções culturais, podem ser re-significadas, re-<br />

paginadas, tramadas com outros interesses no tempo do desejo. Nenhum lugar<br />

é definitivo nas tramas na cultura, nas tramas da rede, ainda que elas possam<br />

parecer cristalizadas, não passam de aparências. As coisas e nem as pessoas<br />

são realmente o que suspeitamos ou acreditamos que elas sejam. Por não


termos lugares definidos nas malhas da rede, as posições que ocupamos são<br />

sempre provisórias, permitindo espaços para micro-revoluções e negociações.<br />

Estando na rede, como fios e nós das muitas redes, não podemos nos fazer de<br />

surdos e cegos para os muitos temas menores negligenciados por aqueles que<br />

ocupam a posição de centro e que são realçadas nas falas dos professores ao<br />

contarem suas histórias.<br />

Podemos perceber na conversa sobre o caso da menina de Pedra<br />

Dourada, aproximações dos professores com um referencial teórico crítico e<br />

pós-crítico. Conceitos como hegemonia, capital cultural, violência simbólica,<br />

ideologia, classe social, resistência, poder, empoderamento, conscientização,<br />

liberdade, colonialismo, etnocentrismo, raça, gênero, identidade, diferença,<br />

<strong>sexualidade</strong> e amizade vão-se misturando às muitas lentes e racionalidades<br />

que permitem aos professores, e não só, problematizarem o mundo. Suas<br />

problematizações vão se misturando a algumas matrizes de pensamentos<br />

legitimados nos curso de formação de professores, permitido um grau de<br />

liberdade para a condição humana. Falo de grau de liberdade, pois,<br />

independente da posição que estamos ocupando nas tramas da rede,<br />

articulando espaçotempo, as pessoas sempre questionaram a produção de<br />

„uma ordem‟ para esse mundo e os processos de subalternização que<br />

acompanham essa ordem. Não é somente a partir dos discursos acadêmicos<br />

que professores pensam o mundo, a escola, seu trabalho e seus alunos. Os<br />

professores se valem de saberes complexos, misturados, intuitivos,<br />

emocionais, religiosos para produzir sentido à vida. E, se existem graus de<br />

liberdade para a ação humana, subtende-se, que todos que circulam pela rede,<br />

exercem poder de ação na cultura de si e do outro. Frank Pignatelli (2002,<br />

p.147) problematizando o agenciamento docente, no que ele nos liga ao poder<br />

e à liberdade, pondera:<br />

156<br />

A liberdade, portanto, torna-se a prática de movimentos inventivos,<br />

imaginativos, estratégicos, ao longo do eixo poder, movimentos que<br />

possivelmente previnem, mas não eliminam o exercício do poder.<br />

Não se pode agir num sistema educacional sem estar nesse<br />

exercício.


Nesse sentido, pensando sobre o eixo do poder e sua extensão como<br />

algo inevitável para a ação humana, precisamos compreender que muito mais<br />

do que uma localização [centro/periferia, urbano/rural] para se pensar a escola,<br />

a questão cultural e política sobre esses lugares vem sendo objeto de disputa e<br />

barganha. E, pelas malhas do currículo, com aquilo que é selecionado,<br />

escolhido, ensinado, discutido, vivido e com tudo aquilo que não ensina, não<br />

discute e não vive, o currículo e a escolarização continuam produzindo e<br />

regulando a invenção do sujeito e as lentes com as quais devemos nos ver e<br />

ver esse mundo. Junto à complexidade que a questão cultural suscita para as<br />

diferentes áreas do conhecimento, não podemos negar que classe e raça são<br />

categorias colocadas em evidência e disputa quando alguns se referem ao<br />

„Polivalente‟, como sendo uma escola de periferia. Popkewitz (2002, p.192)<br />

pensando o lugar da escolarização e do currículo como forma de regulação da<br />

experiência de si e do outro, salienta que o processo de escolarização<br />

“incorpora estratégias e tecnologias que dirigem a forma como os estudantes<br />

pensam sobre o mundo em geral e sobre seu eu nesse mundo.”<br />

O fragmento da fala do professor Belarmino, retrata situações problemas<br />

entre o centro e a periferia e que devem ser postas em suspensão, pois pelas<br />

vias do currículo, os valores do centro vêm sendo reiterados. Pelas vias do<br />

currículo não se aprende somente o que foi escolhido para nele estar,<br />

aprendemos também com a não escolha e com o que não aparece no<br />

currículo. Aprendemos também com o que está ocultado pelo poder de<br />

escolha.<br />

157<br />

Belarmino:<br />

[...] Por exemplo: Em comemoração aos 30 anos da escola iria ter um culto ecumênico.<br />

A minha sugestão foi de que chamassem a dona do terreiro da comunidade. No caso, a<br />

Maria Nossa. Inclusive, ela faz muita assistência social dentro daquela comunidade. No<br />

dia do evento eu viajei para Belo Horizonte, quando retornei eu perguntei: E aí, foi<br />

bom? A Maria falou direitinho? Aí fiquei sabendo que não haviam chamado a Maria. Só<br />

foi o pastor e uma representante do padre. O padre não pode ir não. Por exemplo, tem<br />

professor lá na escola que para beneficiar a sua aula reza uma Ave Maria. Eu acho a<br />

aula de ensino religioso uma violência simbólica. Acho que não deveria ter. Acho que<br />

deveria ter: educação sexual, comportamental, cultural, qualquer „al‟ da vida, menos<br />

ensino religioso...<br />

As teorias críticas e pós-críticas vem nos ajudando a desconfiar de<br />

algumas armadilhas naturalizadas e cristalizadas no praticar o currículo e a


escola. A escola não é um lugar que se ensina somente aquilo que está<br />

explicito, programado em seu currículo, em seus planejamentos, nos livros<br />

didáticos, nos planos de aula e projetos de seus professores e da escola. A<br />

escola ensina, mesmo sem querer ensinar, ou, dizendo de outro modo, produz<br />

significados para as práticas e para as relações sociais, econômicas, políticas e<br />

culturais, mesmo sem achar que o faz. Enfim, a escola produz agenciamentos<br />

não só por meio daquilo que está no currículo, como também a partir do que<br />

não está no currículo, ou, se está, se oculta entre linguagens e seus regimes<br />

de verdade.<br />

A escola não é, e nunca foi, um lugar para a neutralidade, aprendemos<br />

isso com as teorias críticas. Nesse sentido, a ação docente e o currículo da<br />

escola são, antes de tudo, ações políticas, interessadas, que problematizadas,<br />

sabem a que vieram e sabem também de seu endereçamento. Esse<br />

endereçamento permite e exigem dos que praticam o currículo, experiências<br />

complexas e problemáticas. A questão é que, na escola, a pluralidade e a<br />

complexidade da vida, ainda são vistos e tidos como problemas. Tentamos<br />

pedagogicamente, com todas as nossas forças e esforços, eliminar as<br />

diferenças, a complexidade e a pluralidade das formas de conhecer, ver e estar<br />

no mundo. Para o nosso desassossego e para aqueles e aquelas envolvidos<br />

com os processos de governo da população, quanto mais tentamos eliminar as<br />

diferenças e a complexidade das relações e ações humanas, mais elas se<br />

multiplicam, desviam e se tornam outras.<br />

Nesse sentido, pensando a escola que se inicia com a potência da vida<br />

de todos os dias e que nos movimenta ao estar aí, precisamos problematizar<br />

as estratégias políticas que são colocadas em ação na tessitura do currículo na<br />

materialização de topologias que não descansam em sua produção e<br />

reinvenção. Uma professora de geografia, refletindo sobre o posicionamento<br />

dos sujeitos a partir de uma lógica territorializante, produz um dessaranjo nessa<br />

estrutura ao exercer sua autoria docente, usando, o livro didático a seu favor e<br />

de seus alunos. Ainda que nesse exercício desterritorializante, esteja a<br />

158<br />

interpelação dos meios de comunicação que adentram a escola e atravessa as


elações de professores, alunos, currículo e a comunidade escolar. Como ela<br />

nos fala:<br />

159<br />

_ Estou aqui desenrolando o Currículo Básico Comum (CBC). Estou trabalhando a<br />

idéia de territorialidade. Se começa sempre essa discussão na escola pelo centro sul.<br />

Ideologicamente é assim e é assim que está posto no livro didático. Estou começando<br />

a trabalhar a temática a partir da Amazônia, não tinha como ser diferente, a TV, a<br />

Globo está aí com a mine-série “Amazônia” e ela entra sem pedir licença na escola e<br />

em nossas salas de aula. Como não trabalhar territorialidade a partir do norte. Mas, os<br />

pais já estão reclamando, pois, segundo eles, estou bagunçando a ordem do livro e do<br />

currículo escolar. Acho que é assim que vamos ensinando nossos alunos a segregar o<br />

centro da periferia! E quem foi que disse que o centro sul é o centro? Ninguém quer ser<br />

periferia.<br />

Ao praticarmos um currículo híbrido, enlaçando-nos à complexidade da<br />

escola e nas diferenças dos sujeitos escolares, dos saberes e quereres desses<br />

sujeitos, podemos possibilitar encontros não pensados com os outros da<br />

cultura. Compreendo que „outros‟, somos todos nós que circulamos pelas redes<br />

desejantes. Não eliminamos a diferença da vida e do mundo, como processo<br />

de diferenciação. A vida se constitui nos processos subjetivos de diferenciação<br />

e esses processos nos constituem como diferenças. Precisamos desconfiar<br />

das desigualdades que são produzidas a partir de uma ordem definida<br />

historicamente nos manuais de ensino de nossas escolas e o que se produz<br />

como „outro‟ com essas definições.<br />

O foco para o outro da cultura, nas políticas de governo da população<br />

aparece de forma exotizada, nos programas curriculares e nas políticas de<br />

inclusão. Na escola, nossa tentativa de pensar o outro vem se dando de forma<br />

alegórica, como enfeite e capricho dessas políticas. Não podemos negar que<br />

professores e alunos, dos lugares que lhes tocam, praticando educação, a<br />

partir da experiência, contam, narram, escrevem e produzem outras histórias.<br />

No cotidiano da escola, as alegorias, os enfeites de um currículo monocultural<br />

vão sendo bagunçadas pelas ações contestatórias e reivindicatórias dos<br />

excêntricos da cultura. Algumas políticas da educação pensam o outro da<br />

cultura como algo a ser contemplado em um calendário festivo integracionistas.<br />

Desse lugar, reiteram, reforçam, afirmam e validam tanto o lugar dos que estão


no centro, quanto daqueles que foram engenhosamente colocados e pensados<br />

como margens/periferias/ excentricidades.<br />

Precisamos assumir outras lógicas, diferentes das políticas<br />

integracionistas já conhecidas pela escola, para pensarmos os sujeitos da<br />

educação e a complexidade dessas relações. Nesses tempos de incertezas e<br />

de multiplicação das diferenças, as oposições binárias historicamente definidas<br />

por categorias excludentes com seus pares binários, não são mais suficientes<br />

para o posicionamento do sujeito. Os sujeitos das práticas, enredados por<br />

redes de conhecimentos e por forças desejantes, circulam nas redes de poder<br />

na condição de sempre outro, trazendo para essas redes o caos, a<br />

contingência e a provisoriedade de suas presenças. “Talvez seja mais<br />

produtivo para nós, educadoras e educadores, deixar de considerar toda essa<br />

diversidade de sujeitos e de práticas como um problema e passar a pensá-lo<br />

como constituinte do nosso tempo.” (LOURO, 2003, p.53)<br />

Nesse momento, em que a complexidade da vida desestabiliza certezas<br />

disciplinares, cada vez mais a verdade adquire um sentido plural, fugidio e<br />

dispersivo, esteja mais do que na hora, de procurarmos aprender com aqueles<br />

que vivem suas excentricidades nas fronteiras e para além das aparências que<br />

as coisas, as pessoas, as palavras e a realidade podem ter. Como nos ensina<br />

Louro (2003), as excentricidades são fios de nosso tempo, das lutas de nosso<br />

tempo, das necessidades e desejos de nosso tempo. Essas excentricidades<br />

que são de todos se multiplicam cotidianamente, movimentam perguntas, que,<br />

no desespero pedagógico por uma resposta/prática certeira, podem nos<br />

remeter ao saudosismo de um modelo de escola, vivida sobre os pilares de<br />

uma racionalidade técnica e excludente. É preciso querer viver o presente e<br />

toda a fugicidade desse tempo e com ele querer sonhar com outros possíveis.<br />

Por isso, querendo ou não, nossos alunos e professores estão por aí,<br />

relacionando-se uns com os outros, circulando pelas escolas, tecendo redes de<br />

desejos e de conhecimentos, perturbando e desestabilizando o conforto do<br />

centro e nos fazendo aprender com suas temporalidades. Independente dos<br />

160<br />

lugares classificatórios que se encontram ou que são colocados, os excêntricos


não estão buscando serem integrados ou incluídos. Um exemplo desse não<br />

desejo pela inclusão pode ser sentido na fala de um professor:<br />

161<br />

_ Hoje eu trouxe um monte de fotografias para a escola. Fotografias que selecionei<br />

sobre a história dos operários no Brasil. Enquanto eles [os alunos] observavam as<br />

fotografias negociei com eles as correções de provas. De repente o barulho ficou<br />

insuportável e fomos conversar sobre a situação. Disseram que algumas coisas<br />

fogem da proposta porque eles sabem que eu não grito e não mando para a secretaria.<br />

Vê se pode uma coisa desta! Aí eu respondi: Eu não vou fazer isso. Eu não vou me<br />

desgastar com essas situações. Abri uma conversa com eles sobre quem ganha e<br />

quem perde, o que ganhamos e o que perdemos. Quanta bobeira, quanta perda de<br />

tempo. Os alunos não trabalham com uma lógica de tempo de futuro. Vivem o presente<br />

e o imediato. Os pactos são sempre provisórios. Eles parecem formar um grupo de<br />

pressão. Parecem que querem a todo custo nos desestabilizar. Nem sempre vence a<br />

lógica do mais forte. E quem é o mais forte?<br />

Discutir a questão do centro e das margens, do centro e da periferia, do<br />

urbano e do rural, tomando a perspectiva topológica de quem vê e conhece o<br />

que vê, é um bom caminho para começarmos a desconfiar da bipolaridade dos<br />

arranjos culturais inventados por diferentes regimes de verdades em sua ânsia<br />

em localizar e nomear as pessoas. As culturas, considerando-as como<br />

temposespaços para os movimentos subversivos, vem sendo estriados,<br />

mapeados e projetados pelas topologias do centro, naturalizando esses<br />

arranjos e justificando as posições desiguais daqueles que estão fora do<br />

centro. Estar no centro é tomado como algo natural e se é natural, não precisa<br />

ser problematizado. Como a localização da escola demarca um território<br />

praticado, outras tantas questões vão se entrecruzando pelas vias do currículo<br />

na formação do aluno, no seu modo de se ver e ver o mundo. Processos de<br />

hibridizações, traduções e negociações vão sendo tecidos e destecidos na<br />

prática do currículo realizado por professores e alunos nas relações de conflito<br />

com o outro e consigo. Os excêntricos querem viver nas fronteiras, produzir<br />

relações com o outro, e, por ser outro, não toma por referência o centro, nem<br />

as margens. O centro como nos diria Guacira Louro (2003, p.42), é uma ficção<br />

do homem branco ocidental, heterossexual e de classe média, uma invenção<br />

de ficcionada na ordem e unidade e que através de um currículo prescrito<br />

continua a impor “[...] a sua noção de cultura, ciência, arte, ética, estética,<br />

educação que, associada a esta identidade, vem usufruindo, ao longo dos<br />

tempos, de um modo praticamente inabalável, a posição privilegiada em torno<br />

da qual tudo mais gravita.”


162<br />

O que conta no currículo para uma perspectiva crítica e pós-crítica não é<br />

somente o que está escrito de forma prescritiva no documento, determinando o<br />

que se ensina, mas o que se vê, discute e avalia na escola. Interessa também<br />

ao campo do currículo perceber e problematizar o que não está escrito, o que<br />

não se ensina, que não se diz, que não se vê, mas que sabemos por<br />

desconfiar, que lá está. Interessa-me ir compreendendo em nossos estudos<br />

com o currículo e com o cotidiano escolar as diferentes tecnologias de governo<br />

[de dominação e do eu], ao produzir realidades e acontecimentos na cultura<br />

vivida.<br />

A cultura vivida nas redes de conhecimentos desejantes desfaz as<br />

fronteiras disciplinares, bagunça as categorias de classe, de gênero e de raça,<br />

permitindo-nos perceber e sentir que existem entradas e incursões não<br />

conhecidas ao nos permitirmos viver nas fronteiras de nós mesmos e dos<br />

outros. Esse entre-lugar da cultura, como nos diria Bhabha (1998), ao ser<br />

praticado nas fronteiras de nós mesmos, nos permite ver de novo o já visto e<br />

estranhar o que aparentemente nos era íntimo, compreendendo, ainda que<br />

parcialmente a fragilidade do outro e do eu da cultura.<br />

O currículo, campo movediço e movente da cultura, como nos diria<br />

Foucault (2006), é um lugar para o exercício e circulação do poder. O currículo<br />

é um lugar de exercício de poder e de formas de governo daquilo que se deve<br />

saber para disciplinarizar, controlar e governar. Pelo currículo se costura/<br />

conecta/ liga/tece/destece e retece comportamentos morais e éticos, que vão<br />

de encontro à perspectiva foucaultiana de governabilidade e do cuidado de si<br />

[exame, confissão, autoevidência]. Com esses fios, nós, discursos, tecnologias,<br />

dispositivos, circulando pelas redes de conhecimentos, torna-se possível<br />

produzir o homem, o indivíduo, o sujeito cultural da escola e da episteme que<br />

passa pelas políticas de governo da população e do eu, tendo no seu domínio<br />

a preferência pelas fronteiras disciplinares e suas generalizações. Popkewitz<br />

(2002, p.186) nos diria que o currículo é:<br />

[...] uma coleção de sistemas de pensamento que incorporam regras<br />

e padrões através dos quais a razão e a individualidade são<br />

construídas. [...] O currículo é uma imposição de conhecimento do


163<br />

conhecimento do eu e do mundo que propicia ordem e disciplina aos<br />

indivíduos.<br />

Com toda positividade do currículo, podemos aferir que a produção do<br />

sujeito escolar se processa nas articulações com diferentes currículos, postos<br />

em circulação na escola pelas mais diferentes redes de conhecimentos.<br />

4.2. Orientação do olhar na captura do outro<br />

A mente é um olho que pode conhecer e ver as coisas.<br />

(LARROSA, 2003, p. 58)<br />

Larrosa (2003), interessado nos dispositivos que convocam e agenciam<br />

a produção subjetiva do sujeito do saber, tomando por referência a perspectiva<br />

que tenta fixar o centro e as margens [excêntricos], o centro e a periferia, o<br />

urbano e rural, problematiza dispositivos pedagógicos binários que produzem,<br />

medeiam e governam a experiência, o cuidado de si e do outro. Alguns desses<br />

dispositivos já foram incorporados e problematizados em textos anteriores e<br />

continuaram sendo. Esses dispositivos com outras lentes, miradas e<br />

significações, retornam nesse momento como forma de ajuda na leitura que eu<br />

faço da escola. Esse autor muito nos ajuda a pensar o sujeito escolar<br />

enredado às „tecnologias de dominação‟, combinadas às „tecnologias do eu‟.<br />

Larrosa (idem: p.58) destaca quatro tecnologias que funcionam em<br />

redes constituídas de fios subjetivantes que se tramam no exercício do sujeito<br />

sobre si mesmo. Sendo elas tecnologias óticas, discursivas, jurídica e práticas.<br />

Essas tecnologias enredam-se com fios morais e éticos tramando<br />

subjetivações na experiência e no exercício de si como constituição de sujeito.<br />

Na constituição de sujeitos de experiências subjetivantes, nos valemos dos<br />

dispositivos óticos, que nos capturam pelo campo de visão e adquirem<br />

visibilidade para o sujeito em exercícios de si. Juntando-se a isso, conectam-se<br />

como fios os discursos que o sujeito da enunciação pode dizer sobre si, o que<br />

se deve julgar de si e o que se pode e deve fazer consigo mesmo. São com<br />

essas dimensões/dispositivos/tecnologias de governo do eu e do outro,<br />

tramadas umas com as outras, [ver, dizer, julgar, praticar] pensadas e<br />

problematizadas por Larrosa, que vou tateando o querer [ver/sentir/ tocar/


ouvir/aprender] com a escola, como forma de narrar a mim mesmo. Como nos<br />

ensina Larrosa (2003), essas dimensões nos permitem viver a experiência de<br />

si, ou, nos limites das palavras, a temporalização de nossas identificações, ou,<br />

de como nos vemos e nos posicionamos nesse mundo na expansão da vida.<br />

164<br />

Minha entrada na escola, na condição de praticantenarrador<br />

pesquisador, intenciona estabelecer relações com quem vive a escola,<br />

produzindo e sendo produzido nas relações de significações dos currículos<br />

vividos com o outro e com as tecnologias que produzem e medeiam essa<br />

produção como forma de governo. Ao produzir significações, esses currículos<br />

praticados contribuem para uma determinada experiência de si e na produção<br />

de subjetividades. Nesse sentido a experiência de si, não é uma prática<br />

individualizada, essencializada, naturalizada, ela é produzida às voltas de<br />

tecnologias do eu e por formas de governo. A experiência de si e o cuidado de<br />

si são práticas culturais produzidas e atreladas a valores morais e éticos que se<br />

efetivam como forma/conduta/estilo/maneira de vida, tecidas nas relações de<br />

compartilhamento com o outro e com o eu temporalizado em experiências.<br />

Minha entrada/chegada na escola provocou inquietação na orientação<br />

do olhar dos que me viam e que se deixavam/queriam ser vistos por mim.<br />

Andando pela escola com intenção de produzir visibilidade, como se isso fosse<br />

difícil, mediante a arquitetura da escola que permite ver e ser visto, fui<br />

percebendo pela estrutura de vidro das salas de aula e de toda escola que<br />

estava sendo alvo de olhares e de comentários de alunos, professores e de<br />

funcionários da escola. Essa percepção do olhar que me toca é o que me<br />

permite compreender que sujeito e objeto se confundem nas contingências e<br />

emergências estabelecidas na experiência com os regimes de visibilidades que<br />

nos mostram ao outro e nos permite ver/examinar/julgar esse outro. Larrosa<br />

(2003 p. 62) chama nossa atenção para a contingência e historicidade do olhar<br />

e enfatiza que a função produtiva de subjetividades dessas máquinas óticas é a<br />

de determinar “[...] aquilo que se vê ou se faz ver, e o alguém que vê ou faz<br />

ver. Por isso o sujeito é uma função da visibilidade, dos dispositivos que o<br />

fazem ver e orientam seu olhar.”


165<br />

A chegada de qualquer um na escola, na condição de sujeito encarnado,<br />

em função da visibilidade provocada pela posição de sujeito que ocupamos,<br />

altera sua realidade e também seu centro de interesse. Somos tragados pelas<br />

redes do outro, pela sua curiosidade em saber o que estamos fazendo ou<br />

querendo naquele/daquele e com aquele lugar. Todos na escola estão<br />

circulando nas redes de visibilidades e nas tecnologias de produção de sujeitos<br />

que nos permitem ver/ouvir/julgar/narrar/examinar. Alunos, professores,<br />

funcionários, pais de alunos, inspetores de ensino, visitantes da escola, todos,<br />

ocupam e ordenam/miram o olhar em busca de uma ordem. Pelos regimes de<br />

visibilidades postos em circulação no espaço público da escola, todos se<br />

sentem vigiados, por forças que sutilmente se entremostram disciplinadoras e<br />

controladoras.<br />

Pela estrutura de vidro dessa escola, o poder vai sendo distribuído e ao<br />

ser distribuído em redes, todos ocupam lugares de vigilância e de controle. As<br />

vidraças, como nos diria Foucault, faz funcionar uma economia de pessoas, de<br />

materiais, de posições e definem as relações entre os homens. Ao<br />

perceber/sentir esses jogos de olhares interessados, vou experienciando, nas<br />

relações com a escola, que minha presença e também minha ausência altera<br />

os cotidianos escolares com os quais estamos enredados e que passamos a<br />

fazer parte na condição de praticantenarradorpesquisador.<br />

Ilustração 8 – Olhares


Risos, movimentações, comentários, andanças se instalaram nas salas<br />

de aula por onde passava e era visto. No cotidiano, as pessoas querem<br />

produzir saberes sobre o outro e também com o outro. Por isso, querem, por<br />

poder, [ver, expressar, narrar, julgar] extrapolando os limites do eu, para as<br />

dimensões do outro, produzir ações e reações com o outro. Todos naquela<br />

escola, olheiros potenciais, estão de olho em todos e em tudo que produz<br />

sentidos, que produz curiosidades! Sua arquitetura estrategicamente pensada<br />

garante essa visibilidade. Assim, as relações de poder se distribuem pelas<br />

entradas de luzes e sombras por suas vidraças. Aquela estrutura de vidro<br />

[práticas/tecnologias de poder] antecipando comportamentos [vigiai e vigiar],<br />

permite ver o outro e ser visto no detalhe. A minha presença produziu<br />

publicidade para alguns da escola, não para todos. Na companhia de Ortega<br />

(2000, p.27), posso dizer que “A identidade humana aparece então como uma<br />

realização no espaço público e não como dada.” Somente estando naquele<br />

cotidiano que minha presença para alguns se torna presença. A meninada que<br />

me via, inquieta e curiosa por saber o que fazia na escola, me ensina, na<br />

desordem provocada na ordenação de seus olhares, a relação de dependência<br />

existente entre „objeto de pesquisa‟ e pesquisador.<br />

Em meio à aparente confusão constituída numa sala de aula pelos<br />

alunos de uma das 5ª séries, na tentativa de experimentar hipóteses sobre a<br />

minha presença na escola, uma professora vai ao meu encontro e me pede<br />

para que vá até a 5ª 3 explicar aos alunos o que eu estava fazendo na escola.<br />

Segundo a professora, caso eu não fosse a sua sala de aula, seria impossível<br />

trabalhar com aquela turma naquele dia, no seu período. Nesse momento a<br />

professora me deu uma pista de extrema importância para o desenvolvimento<br />

de meu trabalho. Até então imaginava e desejava trabalhar somente com os<br />

professores da escola. Nesse sentido, ingenuamente achava que precisava dar<br />

explicações e obter autorização para praticar aquele lugar como<br />

praticantenarradorpesquisador somente dos funcionários da escola. Mal sabia,<br />

que aqueles meninos e aquele alvoroço seriam a potência que possibilitaria<br />

pensar algumas situações que acabariam fazendo parte dessa pesquisa.<br />

Aqueles alunos inquietos e curiosos com a minha presença sinalizaram na<br />

166<br />

desordem aparente de seus movimentos e gesticulações que ali estava os


meus potenciais interlocutores para pensar a <strong>sexualidade</strong>, o corpo e o<br />

currículo. Aprendo, com aquela desordem, que os alunos também precisam ser<br />

informados sobre esse outro/pesquisador/praticante que chega à escola, para<br />

em algum „tempo‟ dela compartilhar. Percebi, pela convocação da professora,<br />

que, em respeito aos praticantes da escola, precisava ser apresentado e dizer<br />

aos alunos sobre os interesses que me levavam àquele lugar.<br />

Ilustração 9 – Curiosidade<br />

Ao entrar naquela sala de aula, no meio da confusão aparente, pude<br />

perceber que os risos e as conversas dos alunos sobre os motivos que me<br />

levavam à escola se transformaram em silêncio e vergonha. Uma criança,<br />

tentando me ajudar sair da situação de estranhamento e de decoro produzidas<br />

em alguns de seus colegas e em mim, me faz a seguinte pergunta na<br />

emergência daquele acontecimento: _ Você não é do Melo Viana 15 ? Vai<br />

trabalhar aqui também? Esse era o fio que precisava para sair do desconforto<br />

causado pelo lugar de estrangeiridade que ocupava naquele momento, naquele<br />

lugar e por pessoas que aparentemente eu conhecia. Com esse fio<br />

interrogativo desse aluno que me socorre da situação de estrangeiridade,<br />

perguntas e lembranças da escola primária foram sendo suscitadas pelos<br />

alunos e produzia de maneira adversa o sentimento de acolhimento por parte<br />

dos alunos, e de sua escola, me deixava dela fazer parte. Estando naquela<br />

15 Melo Viana é nome de uma escola primaria onde trabalho como Especialista Educacional. Muitas<br />

dessas crianças haviam estudado nessa escola e me reconhecem como sendo dessa escola. Parece que as<br />

crianças pequenas pensam que somos a escola, ou, da escola.<br />

167


sala de aula [5ª 3], continuava a perceber a movimentação dos alunos curiosos<br />

com a minha presença.<br />

As paredes de vidro da escola e o olhar panóptico de muitos que me<br />

viam no contexto daquela situação, vivida em processo de acolhimento e<br />

curiosidade por aqueles alunos, não eram suficientes para a produção de<br />

ordem, ou de uma ordem. A desordem não é o oposto da ordem, nem<br />

tampouco implica improdutividade. A desordem nos convida a rever o lugar de<br />

uma ordem e de compreendermos o que se produz por dentro daquilo que<br />

consideramos o caos. Esse acontecimento, produzindo experiência, me leva a<br />

percorrer todas as salas de aula da escola me apresentando e falando dos<br />

motivos que me levavam à escola. De tempo em tempo, através das paredes<br />

de vidro da escola, percebia que os meninos e as meninas, já sabendo das<br />

minhas intenções na escola, movimentavam-se no pátio da escola querendo<br />

me ver e querendo ser vistos por mim, por seus colegas e pelos professores.<br />

Os alunos também querem visibilidade na escola! Nessa tarde, o disciplinador<br />

da escola teve muito trabalho! Entre tantas surpresas desse dia, pude ouvir de<br />

uma professora:<br />

168<br />

_ É muito interessante observar como os meninos e meninas precisam produzir<br />

encontros dentro da escola. Eles vêm juntos para a escola e deixam seus livros e<br />

materiais nas mochilas dos colegas. Aí quando o professor pede o material eles falam<br />

que esqueceram dentro das mochilas dos colegas e o professor pede para buscar. Há<br />

uma necessidade muito grande de serem vistos e de estarem juntos. Eles criam<br />

situações para isso.<br />

Esse dispositivo do olhar panóptico 16 , ainda que distribuindo lugares,<br />

tempos, materiais, pessoas, luzes e sombras, não garantem a „disciplina‟, o<br />

silêncio e os comportamentos contidos de „urbanidade‟, pensados e esperados<br />

para os praticantes da escola. Essas distribuições e esse enquadramento estão<br />

passíveis às subversões cotidianas! Subversões que aparentemente não se<br />

apresentam como tal, mas desordenam e desorganizam a lógica de quem<br />

pensa a escola e os sujeitos escolares. Os meninos, por razões de amizade,<br />

por terem ou não terem mochilas, elaboram formas de circular na escola. Eles<br />

16 Segundo Foucault (1987): O dispositivo Panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem<br />

parar e reconhecer imediatamente. [...] O Panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos<br />

mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder.


querem ser vistos e se encontrar. Naquela tarde, os meninos e as meninas da<br />

escola me ensinaram isso!<br />

Essa arquitetura panóptica, com suas paredes de vidro, não é uma<br />

garantia para a manutenção de valores morais que atendam a demanda de<br />

uma organização social pública contida e entretecida pela docilização dos<br />

corpos dos alunos. Meninos e meninas, na escola, estão em movimentos pelas<br />

redes do biopoder e pelas biopolíticas. Mas, o que não se pode negar, é que<br />

essa força disciplinadora age, ainda que, em graus diferentes, na docilização<br />

dos corpos e nas subjetividades dos sujeitos escolares [alunos e professores e<br />

não só]. Essa distribuição de tempo, de espaço pensado como forma de<br />

contenção de comportamentos, ou para a produção de comportamentos<br />

validados, não é garantia de sucesso das biopolíticas e das práticas<br />

disciplinadoras.<br />

Ilustração 10 - Rebeldia e visibilidade<br />

O poder disciplinar tanto não é garantia para uma organização pública<br />

harmoniosa, que carteiras quebradas pelos alunos são colocadas no pátio da<br />

escola, a mando de seu diretor para que todos possam ver/julgar e sensibilizar<br />

com aquela ação de depredação do que é público. Quem sabe, com essa<br />

exposição, com a produção de visibilidade das carteiras destruídas, no campo<br />

169


subjetivo das produções de significados, os alunos possam e passem a<br />

relacionar valores morais e praticar princípios éticos de cidadania e de cuidado<br />

com o bem público [liberdade]. A lógica do soberano, deixar viver ou morrer,<br />

coexiste com as tecnologias disciplinares dos corpos individualizados e<br />

singularizados pelo saber e com as lógicas de controle da população.<br />

Por dentro desses poderes e saberes, as vidraças da escola, suas<br />

cercas vazadas, só compõem mais uma das muitas tecnologias de efeitos<br />

morais desenvolvidas pela modernidade. Essa engenharia de vidro da escola<br />

produz efeitos morais sobre os sujeitos escolares, mas não garante a disciplina<br />

perpetua e o acatamento de todas as regras. Essa estrutura de vidro não<br />

garante a ordem para todo sempre e os comportamentos contidos por quem a<br />

planejou e se preocupam com a manutenção do patrimônio público. Não há<br />

vida social, não há vida na escola se está não estiverem entrelaçadas a<br />

algumas formas de organização do tempo e do espaço.<br />

Afinal, somos nós, na teatralidade de nossas vidas, com nossas ações<br />

performativas e reveladoras de posições de sujeitos com o outro, que<br />

produzimos o que consideramos público. No espaçotempo da escola,<br />

participamos/ compartilhamos e experimentamos o outro e o espaço para viver<br />

o público. Nesse espaçotempo ainda que de forma parcial, fragmentada e<br />

complexa, mostramos quem somos, o que somos e no que estamos nos<br />

tornando. Assim, ações performáticas reveladoras [campo de visão e de<br />

julgamentos] entre tramas discursivas que nos distinguem como sujeitos e não<br />

apenas como diferenças vão construindo uma temporalização para a realidade<br />

escolar que conseguimos enxergar. Esse enxergar passa pelos juízos de<br />

valores morais e éticos produzidos nas relações e nas ações que vamos<br />

tecendo com as tecnologias de dominação e do eu. Ortega (2000, p.26),<br />

recorrendo ao pensamento de Hannah Arendt para pensar o humano, o político<br />

e o público, nos diz que “Não somente as identidades se constituem e<br />

manifestam na ação, mas a ação não seria ação se não tivesse essa faculdade<br />

reveladoradora das posições dos sujeitos no ato da ação.”<br />

170


Os alunos, na escola em apreço, como em qualquer outra escola,<br />

praticam seu espaço público de uma forma que não necessariamente<br />

corresponde ao esperado, ao planejado ao desejado, muito menos com os<br />

valores morais estabelecidos pela persistência da tradição burguesa de pensar<br />

escola. Os alunos experimentam a escola com a fragilidade do novo e do<br />

começar de novo. Nesse sentido, a estrutura disciplinar está fadado a fracassar<br />

e a produzir outras coisas, uma vez que seus praticantes burlam o campo de<br />

visão e da moral do outro num exercício incansável de tentativas de<br />

experimentação de si e do outro. Ainda que os alunos saibam pelo campo de<br />

visibilidade produzida pelas entradas das luzes e pela distribuição de poder ser<br />

possível o flagrante ser denunciado por um colega e de ser punido com a ação<br />

de quebrar as cadeiras da escola, ou escrever frases nas paredes dos<br />

banheiros, nas carteiras e nas toalhas da escola, alguns conseguem, por<br />

exercitar o uso do poder, desestabilizar o ideal da ordem disciplinar.<br />

As distribuições do espaço e do tempo da escola, as disposições das<br />

salas de aula, o enfileiramento das carteiras, as filas de entrada e saída,<br />

horários, pontualidade e assiduidade são tecnologias desenvolvidas para a<br />

manutenção da ordem e do fluxo controlado das pessoas. A fila, tecnologia<br />

desenvolvida na utilização do espaço e do tempo produtivo, vai sendo<br />

incorporada pedagogicamente pelos sujeitos escolares, tornando-se uma<br />

prática cotidiana naturalizada. Na escola, há fila para tudo: Fila para entrar na<br />

escola, para sair da escola, fila da merenda, para entrar e sair da sala de aula,<br />

para usar o banheiro, para ser atendido na secretaria da escola, na biblioteca e<br />

até mesmo para usar a mesa de ping-pong. A fila funciona como um regulador<br />

de fluxos de passagens das pessoas e de direito. Estando na fila, há uma<br />

certeza permissiva para a circulação contida.<br />

171


Ilustração 11 – Usos da fila<br />

Os alunos da escola usam, quando podem, de maneira outra, a nossa<br />

conhecida e validada fila. Nesta escola, a fila de entrada na escola é<br />

extremamente respeitada por seus praticantes. Os alunos foram<br />

desenvolvendo combinados que garantem uma ordem que é só deles.<br />

Interessante é perceber que muitos alunos chegam mais cedo na escola,<br />

colocam suas mochilas no alinhamento da fila que vai se constituindo na ação<br />

de deixar as mochilas e ganham o espaço externo da escola, para brincar,<br />

conversar, namorar. Ninguém mexe naquelas mochilas ou nos pertences que<br />

marcam o lugar que é de alguém na fila. Não foi preciso a escola criar uma<br />

regra/lei/moral para o uso da fila e para o respeito aos objetos de quem os<br />

deixou na fila. Os alunos, ao experienciarem o espaço do público, criando<br />

sentidos éticos e políticos para o público, foram astuciosamente desenvolvendo<br />

relações de respeito ao que é do colega, do conhecido, do amigo, ou que é de<br />

um outro.<br />

172


Ilustração 12- Praticando o lugar<br />

Observando a fila da merenda e sua organização, me salta aos olhos a<br />

negociação de ocupação/troca de lugares. As crianças vão instituindo<br />

situações que ninguém sabe bem explicar sua lógica. Chegando à fila e<br />

recebendo a colher pelas mãos da cantineira o aluno(a) pode, com trocas de<br />

olhares e no movimento de colher, na condição de amigo ganhar a fila. Curioso<br />

com aquela movimentação e com a tranquilidade que se dava essa troca de<br />

lugares, pergunto a um dos alunos como é que funciona esta negociação/troca<br />

de lugares e ele responde:<br />

173<br />

_ Só pode ganhar fila quem tem colher. A gente olha para o colega e levanta a colher,<br />

se ele permitir a gente pode ocupar. Ninguém reclama. Todos podem fazer isso. Agora,<br />

se eu não tenho a colher, aí eu estou furando fila e os colegas podem me tirar de lá. E<br />

quando você chega até a cantineira sem a colher, ela manda você ir para o último lugar<br />

da fila. É preciso ter a colher em mãos.<br />

Para os alunos dessa escola, essa ação é extremamente legítima.<br />

Ganhar a fila é diferente de furar a fila, passar na frente usar o público a seu<br />

bel prazer. Essas negociações passam despercebidas aos olhos de muitos na<br />

escola, mas as cantineiras se apropriaram dessas regras instituídas pelos<br />

alunos e as reforçam. A escola sabe/soube estrategicamente do seu lugar de<br />

poder, usar de outras tecnologias, de outros dispositivos disciplinares, de uma<br />

forma extremamente elegante e sutil.


Sutilmente, seu poder disciplinador<br />

adentra as casas de alunos a partir de<br />

lembretes que vão sendo<br />

elaborados/planejados para o „melhor‟<br />

funcionamento da escola. Nesse sentido,<br />

no início do ano letivo de 2007, uma<br />

agenda com os compromissos e<br />

atividades escolares fora distribuída aos<br />

alunos e pais com os compromissos<br />

pedagógicos, traduzidos em parceria<br />

[lógica empresarial] para o ano letivo. Na<br />

agenda [Fique numa boa com a sua<br />

escola] instrumento de controle dos<br />

tempos pedagógicos, está o mapeamento<br />

das atitudes de urbanidade da escola, as<br />

atividades a serem desenvolvidas por<br />

alunos e professores. Nesse<br />

mapeamento, podemos saber das datas<br />

escolares que incluem reunião de pais, avaliações, recuperações,<br />

comemorações/ festividades privilegiadas pela escola e seu currículo,<br />

capacitações de professores pelo Estado, excursões, campanhas, palestras,<br />

concursos, conselho de classe e outros. Ninguém será pego de surpreso na<br />

escola. Todo o tempo da escola de 2007, fora muito bem planejado, e esse<br />

planejamento deverá ser visualizado por toda comunidade escolar e, como<br />

agenda, deve ser consultado diariamente pelos alunos e suas famílias.<br />

Ainda que o tempo produtivo e burocrático da escola possa ser<br />

pensado/planejado e posto como política de governo em circulação numa<br />

agenda como garantia de sucesso, o tempo praticado da escola, com seus<br />

horários de entrada e saída, é subvertido cotidianamente pelo desejo de<br />

encontrar e experienciar o outro, o lugar e o tempo da escola.<br />

Ilustração 13 – Agenda<br />

174


Ilustração 14 – Agenda<br />

Muitos alunos dessa escola, ainda que de posse dessa agenda,<br />

subvertem seu horário de entrada e também de saída. Muitos ficam na escola,<br />

depois do término da aula. Alguns chegam bem cedo, para poder durante<br />

alguns minutos gozar da amizade com um colega, para colocar a conversa em<br />

dia, para brincar, para fazer o dever que ainda não feito e que será validado<br />

com o visto escolar, que vale conceitos/notas/gratificações e sanções. Outros,<br />

com objetivos diferentes e por razões também diferentes, chegam atrasados,<br />

depois que o disciplinador, respeitando o tempo de tolerância estipulado pela<br />

escola, fecha o portão de acesso as salas de aula, para poder esperar o outro<br />

tempo de aula, esperar o amigo que ainda não chegou e a liberação da entrada<br />

para a próxima aula. Não chegar e não entrar na primeira aula, uma vez que o<br />

portão está fechado, não produz nos alunos o sentimento de punição e decoro<br />

pensado pela escola, pelo contrário! Não entrar na escola para a primeira aula<br />

é extremamente importante para alguns alunos.<br />

175


Ilustração 15: Praticando o espaçotempo escolar<br />

Ilustração 16- Artistagem<br />

Alguns alunos chegam à escola mais cedo, para entregar na frente de<br />

outros a carteirinha 17 . Os alunos, observando a lógica da escola e de quem<br />

carimba as carteirinhas, aprenderam que quem entrega a carteirinha primeiro<br />

recebe e sai da sala de aula na frente dos outros. É fantástico observar esse<br />

momento! liberdade!<br />

17 Carteirinha: Documento de identificação do aluno, onde são registradas diariamente a presença do<br />

aluno e outras ocorrências.<br />

176


Ilustração 17- Fluxos<br />

Alguns alunos, mais desavisados, negligenciam a exigência do uniforme<br />

para não entrar na sala de aula e praticam o espaço externo da escola de outra<br />

forma.<br />

Ilustração 18- Desavisados<br />

Outros, jogando com a ocasião e com a astúcia peculiar de quem não<br />

deseja estar/ser uniformizado, entram na escola com o uniforme [sucumbidos<br />

por uma regra/moral escolar]. Estando dentro da escola, retiram a camisa do<br />

177


uniforme, amarram na cintura, em suas mochilas, jogam no ombro e se<br />

esquivam do controle dos que detém poderes de punições. Se levarem bronca,<br />

fazem o jogo do soberano, negociam e na frente do campo de visão do<br />

disciplinador, vestem de novo a camisa do uniforme da escola. Saindo do<br />

campo de visão do disciplinador, retiram o uniforme e assim passam mais um<br />

dia, algumas horas/minutos na escola sem o uniforme. Estando sem uniforme,<br />

pelo tempo que puder, produz se uma distinção entre os colegas em driblar o<br />

poder disciplinar.<br />

Ilustração 19 - Dribles<br />

178<br />

Algumas alunas customizam seus<br />

uniformes, dão a ele uma marca, um<br />

estilo que as diferenciam dos demais.<br />

Outros trazem de suas casas justificativas<br />

escritas pelos pais nas carteirinhas, nas<br />

quais são explicados os motivos que os<br />

impediram de estar na escola naquele dia<br />

com o uniforme. Se está documentado,<br />

registrado na carteirinha e assinado pelos<br />

responsáveis, o estar sem o uniforme é<br />

credibilizado e validado pela escola.<br />

Justificativas verbais dos alunos nem<br />

sempre são entendidas.


Ilustração 20 _ Estilizando<br />

179<br />

Os alunos que possuem comportamentos considerados exemplares<br />

justificam com mais facilidade e aceitabilidade pelo disciplinador o não uso do<br />

uniforme naquele dia e com mais facilidade tem a sua<br />

entrada no interior da escola permitida. Muitas vezes o<br />

funcionário da escola, responsável em permitir ou conter os<br />

fluxos dos meninos dentro da escola, sabe muito mais<br />

sobre eles, do que os professores da escola.<br />

Com o uniforme, ou sem ele, fazendo usos diferentes<br />

do uniforme, os alunos por gostar da escola, querem nela<br />

estar. Para muitos, aquela camisa de uniforme funciona<br />

como distinção e motivo de orgulho. „Somos do Polivalente‟<br />

e ser do „Polivalente‟ significa manter limpo o nome daquela<br />

instituição. Os alunos uniformizados são o reflexo da<br />

positividade da escola. Estando uniformizados em qualquer<br />

lugar da cidade eles são julgados, controlados e vigiados.<br />

Estando de uniforme as posições de sujeitos que eles<br />

ocupam são outras. Eles não são mais simplesmente<br />

Ilustração 21- Permissão


crianças e jovens da cidade, são alunos de uma escola e, sendo alunos de<br />

uma escola, precisam respeitar e se comportar de uma forma que não denigra<br />

o nome da escola. O olho que tudo vê está em todos os lugares. O olho que<br />

tudo vê me faz lembrar de uma situação de in„disciplina‟ que colocava a escola<br />

em julgamentos pelos disciplinadores da cidade. Eis o fragmento desse<br />

acontecimento na fala de um professor:<br />

180<br />

_ Ligaram agora pra escola dizendo que os meninos do Polivalente desceram a Rua<br />

Pedro de Oliveira gritando e chutando latas de lixo. Vê se isso pode acontecer?!<br />

Queima o filme da escola.<br />

Como nos diria Foucault (2005), é na ação do outro que se institui/reitera<br />

e reforçam-se formas de governo e práticas de cuidado. Nessas formas de<br />

governo da cidade [população], se atrela a lógica do cuidado do pastor<br />

[indivíduo] e essas formas de governos vão sendo possíveis mediante o<br />

enfraquecimento do poder soberano. É o olhar do pastor que permite a<br />

sobrevivência do rebanho e promete a redenção de suas ovelhas. Portanto,<br />

este é um poder individualizado, que cuida de cada ovelha sem descuidar do<br />

rebanho (BUJES, 2003, p.76) Todos ocupam lugares estratégicos nas práticas<br />

de cuidado do rebanho (alunos) na manutenção das relações de urbanidade da<br />

cidade e nas regras de convivência. Bujes (idem), apoiando-se nos estudos de<br />

Foucault e em Veiga-Neto, explica esses conceitos, associados a estratégias<br />

de governo:<br />

[...] para dar conta de formas urbanas de convivência, inventadas<br />

para solucionar os problemas que advém da concentração<br />

populacional. A ocupação urbana cria a necessidade de novas<br />

práticas de regulação que permitem e articulem formas de<br />

convivência ampla, coletiva.<br />

Os alunos uniformizados sofrem e produzem permanentemente ações<br />

de governo [jogos do pastor/jogos da cidade] de todos os lugares das redes<br />

sociais e isso não quer dizer que o poder do soberano não possa se manifestar<br />

nos sujeitos envolvidos nessas redes sociais de convivência. Por gostar da<br />

escola, credibilizar seu nome, seus feitos e sua história, muitos alunos se<br />

comportam de forma polida, urbana e respeitosa nos espaços da cidade para<br />

não denegrir a imagem da escola. Estar de uniforme não é uma garantia para a<br />

paz e tranquilidade da cidade, é simplesmente mais uma tecnologia que reforça


as relações de poder, que distingue, classifica e hierarquiza as relações<br />

sociais. Os alunos gostam da escola, estando de uniforme ou sem ele, estando<br />

nela ou fora dela. Os alunos gostam das pessoas da escola, mas, isso não<br />

quer dizer, que eles gostam da monotonia da sala de aula!<br />

Os alunos sabem que a escola é lugar de gente, de regras que se<br />

reiteram, que se desfazem mediante necessidades como máquinas-penélopes.<br />

Os alunos se „amarram e estão amarrados na/pela e com a escola‟. Esse saber<br />

sobre a escola, como lugar de encontro, de convivência vai sendo reiterado<br />

cotidianamente com a leitura de um texto de Paulo Freire, fixado na secretaria<br />

da escola, num lugar estratégico, onde todos possam vê-lo. Ver não significa<br />

ler e ler não significa produzir experiências. O texto está lá, é um convite da<br />

escola, dos discursos sobre a escola como forma de sensibilização para esse<br />

A Escola<br />

Escola é...<br />

O lugar onde se faz amigos, não se trata só de prédios, sala, quadros,<br />

programas, horários, conceitos...<br />

Escola é sobretudo gente, gente que trabalha, que estuda,<br />

que se alegra, se conhece, se estima.<br />

O diretor é gente, o coordenador é gente, professore é gente,<br />

O aluno é gente, cada funcionário é gente.<br />

E a escola será cada vez melhor na medida em que cada um<br />

se comportar como colega, amigo, irmão.<br />

Nada de ilha cercada de gente por todos os lados.<br />

Nada de conviver com as pessoas e depois descobrir<br />

que não tem mais amizade a ninguém, nada de ser como o<br />

tijolo que forma a parede,<br />

independente, frio e só.<br />

Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar,<br />

é também criar laços de amizade,é criar ambiente de camaradagem<br />

é conviver, é se amarrar nela!<br />

Ora, é lógico...<br />

Numa escola assim vai ser fácil estudar, trabalhar, crescer,<br />

fazer amigos, educar-se, ser feliz.<br />

Paulo Freire<br />

181


espaço.<br />

Ainda que o texto de Freire possa nos dizer muita coisa, ele, por si só<br />

não livra os que fogem as regras disciplinares da escola das punições previstas<br />

em seus regimentos. Nesse sentido, o texto de Freire, ainda que não tenha<br />

sido produzido com uma intenção disciplinar, fixado naquela parede, pode<br />

corroborar e reiterar o ideal de comportamento esperado para todos da escola,<br />

sendo gente, amigo, ou irmão. Ninguém está isento de sofrer as punições por<br />

não ocupar prontamente esse espaçotempo disciplinador e disciplinar da<br />

escola, inclusive os funcionários. Todos estão positivamente circulando nas<br />

redes da escola, distribuindo, fixando, mirando olhares e com eles, poderes e<br />

saberes.<br />

Nessa escola, ainda que figuras representacionais de poder existam,<br />

referendando um centro, todos, na condição de vigilantes, vão se configurando<br />

em sujeitos de certo tipo nas malhas dos aparelhos disciplinadores da<br />

modernidade muito bem trabalhadas e problematizadas por Foucault em „Vigiar<br />

e Punir‟ (2002) e „Em defesa da sociedade‟ (2005). Não só as filas, as rotinas,<br />

os exercícios de repetição, os uniformes produzem os sujeitos disciplinados,<br />

fonte de desejo da escola, é preciso muito mais. Bagunçando essa estrutura<br />

disciplinadora na escola, pude ouvir de uma aluna:<br />

182<br />

- Agora tem psicóloga aqui na escola. Mas, não adianta nada. A gente sai da psicóloga<br />

e tudo continua o mesmo. Aqui na escola sempre falam que a gente que tem problema<br />

em casa e por isso a gente apronta aqui na escola. Eu não concordo com isso, eu<br />

tenho um monte de problemas em casa e nem por isso apronto. Eu prefiro conversar<br />

com minhas amigas, ela sim, elas sabem da minha vida. Vê se psicólogo da conta da<br />

vida da gente. 18<br />

Somos, numa estrutura disciplinar e de controle, comparados a uma<br />

máquina ótica, a um microscópio atento aos pequenos detalhes de<br />

comportamentos, a uma rede interessada de olhares que controlam/julgam uns<br />

aos outros. Ninguém escapa do domínio do olhar, uma vez que ele se ilumina e<br />

se movimenta nas redes de valores postos nestas relações e em circulação.<br />

Essas máquinas óticas que iluminam a todos com a intenção de nos capturar<br />

no detalhe, desenvolvidas na modernidade pelos saberes de especialistas, nos<br />

18 Recupero esse fragmento já citado no corpo da tese, por compreender que ele potencializa o texto.


convidam/convocam a assumirmos pelo enquadramento do olhar e do<br />

entendimento desse olhar o cuidado e a experiência de si nas relações com<br />

outro. As maneiras com que nos vemos e vemos o outro [formas de governo]<br />

foram enquadradas com os saberes dessas máquinas óticas e com os limites<br />

de seu campo de visão/saberes. Só vemos até onde alcança nossa<br />

compreensão. As máquinas óticas nos convidam ao controle. É um convite<br />

laborial. Esse convite/ convocação vai sendo tramado nas relações de<br />

produção de um saber auto-regulador sobre si e sobre o outro. São relações de<br />

poder, uma vez que esse campo de visão está posto como realidade<br />

configurada nas representações que tenho de mim e do outro. Pois, “Quem<br />

está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta<br />

as limitações do poder; fá-la funcionar espontaneamente sobre si mesmo”.<br />

(FOUCAULT, 2002, p. 168).<br />

Foucault (1987, p.169) recorre à estrutura arquitetural panóptica<br />

desenvolvida por Bentham, para nos dizer que: a visibilidade é sempre é uma<br />

armadilha. “O Panóptico é um local privilegiado para tornar possível a<br />

experiência com homens, e para analisar com toda certeza as transformações<br />

que se pode obter neles”. O Panóptico funciona como uma espécie de<br />

laboratório de poder. Ferraço (2003), impregnado de Certeau (2002) nos diria<br />

de forma muito parecida que, ao nos enredarmos nos jogos de visibilidade e<br />

nas relações de poder desses jogos/regimes de verdades, nos tornamos caça<br />

e caçador.<br />

4.3 Narrações inventivas de nós mesmos: em quem estamos nos<br />

tornando com tanta conversa?<br />

183<br />

“O problema não é inventar. É ser inventado hora após<br />

hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente”.<br />

Carlos Drummond de Andrade<br />

Na condição de praticantenarradorpesquisador do/no/com o cotidiano<br />

escolar, praticando uma edição inconclusa da temática que me prende a essa<br />

pesquisa [<strong>sexualidade</strong>, corpo, currículo e experiência], valho-me de um estilo<br />

interrogativo [escrita-conversa], para problematizar o cotidiano escolar, os<br />

dispositivos, os conhecimentos que ali são articulados no agenciamento dos


sujeitos escolares e os saberes em construção nas intermináveis edições<br />

desse sujeito [subjetivações]. Busco pensar o cotidiano escolar e a constituição<br />

dos sujeitos escolares pelas tecnologias de dominação e pelas práticas de si,<br />

atrelado-as às redes de comunicação desejantes que articulam conhecimentos<br />

disciplinarizados e saberes da experiência. Numa perspectiva foucautiana,<br />

podemos pensar esses conceitos [saberes/processos de subjetivações e<br />

conhecimento, movimento de objetivação], seguindo as análises empreendidas<br />

por Revel (2005, p.77), na compreensão das problematizações desse filósofo.<br />

A autora enfatiza que o conhecimento corresponde “[...] à constituição de<br />

discursos sobre classes de objetos julgados cognoscíveis. E o saber designa o<br />

processo pelo qual o sujeito do conhecimento, sofre uma modificação durante o<br />

trabalho que ele efetua na atividade do conhecer.”<br />

Nesse sentido, na produção do sujeito pedagógico, entram em cena<br />

relações desiguais de poder construídas por racionalidades disciplinares e<br />

saberes da experiência. Nessa prática do conhecer, fios soltos e alinhavos das<br />

muitas histórias que nos contam e que contamos produzem conhecimentos que<br />

atuam sobre eu e o outro, sobre o corpo individualizado e sobre a população.<br />

Trama-se aí, no campo da imanência, uma maquinaria relacional entre<br />

movimentos de objetividade [sujeito do conhecimento] e processos de<br />

subjetivações [ser-consigo]. É nesse lugar fluídico da ação do conhecer, do<br />

ser-consigo e do ser com os outros que brechas vão sendo abertas por forças<br />

desejantes na estilização do sujeito pedagógico. Essa estilização é o que<br />

permite a não formatação desse sujeito em uma „forma‟ determinada por uma<br />

racionalidade-fôrma, ou por uma lógica de conhecimento. Compreendo esses<br />

saberes e esses conhecimentos, enredando-se nas tecnologias de dominação<br />

e nas práticas de si, nas diferentes formas de poder e de governo. Essas forças<br />

postas em circulação na escola, pelas redes de comunicação entre os sujeitos<br />

escolares, com os discursos escolares, vão sendo amarrados a dispositivos<br />

heterogêneos, objetivando o governo da população, visando ao homem-<br />

espécie, contribuindo com a produção e com a transformação permanente do<br />

sujeito, em nosso caso o sujeito pedagógico, ou, o sujeito escolar. Larrosa<br />

(2003, p. 45) fala que se pode entender por sujeitos “Seres dotados de certas<br />

184<br />

modalidades de experiência de si.” E é na singularidade da existência de ser,


na condição de sujeito da experiência, tramados por saberes e conhecimentos<br />

sempre em movimentos que sentimos os efeitos dos diferentes dispositivos<br />

colocados em circulação, como intensidade pública. Vale destacar com ajuda<br />

de Barros (1991) que singularidade não se confunde com o particular e com o<br />

privado. A singularidade conforme acreditam Barros, Oliveira e Oliveira (1999,<br />

p. 117) pode se apresentar:<br />

185<br />

[...] como novidade que através do desejo não nos deixa em paz,<br />

não impede de sermos cidadãos conscientes, mas nos dão a<br />

possibilidade de produzirmos novas formas de existência onde a<br />

possibilidade de se viver diferente, mais felizes, não seja apenas um<br />

direito constitucional, mas um exercício de poder publico, existência<br />

de ser.<br />

Na condição de sujeitos dotados de certas modalidade de experiências<br />

de si, constituídos e sendo constituídos na condição de sujeitos escolares por<br />

potências coletivas que se expandem na efetivação de uma vida pública, que<br />

vamos imanentemente sendo agenciados e agenciamos narrativas históricas e<br />

coletivas que se atrelam ao conhecimento que se pode categorizar em campos<br />

de saberes legitimados. Nesse enredamento, pude ouvir de uma professora:<br />

- Estou aqui substituindo a licença do professor de Biologia. Em minha primeira aula no<br />

1º ano do Ensino Médio uma aluna me perguntou se podem pegar AIDS pelo ar. Fiquei<br />

muito assustada com essa pergunta! Dali para as drogas foi um pulo. Assim uma<br />

pergunta foi puxando outra pergunta e com elas os nossos não-saberes foram<br />

aparecendo. Nossa, que responsabilidade é falar sobre isso.<br />

O espaçotempo escolar está enredado por diferentes dispositivos e<br />

tecnologias que intencionam produzir experiências no sujeito. Nesse sentido,<br />

validando as possibilidades de narrativas que são estrategicamente e<br />

astuciosamente tramadas pela escola, recorro a alguns cartazes [dispositivo<br />

pedagógico], resultado/materialização de uma pesquisa escolar,<br />

confeccionados por alunos, com orientações de seus professores para uma<br />

Feira de Ciências. Esses cartazes resultados da experiência dos alunos com o<br />

currículo escolar, podem funcionar nesse momento como exemplificação ou<br />

uma tentativa para se pensar um dispositivo pedagógico em funcionamento,<br />

agenciando efeitos de experiência nos sujeitos escolares pelas vias do<br />

currículo praticado. Podemos compreender um dispositivo pedagógico como<br />

sendo potências subjetivantes que orientam e transformam a maneira pela qual


o sujeito se vê, se narra, se descreve e se controla. Larrosa (2002, p. 57),<br />

assevera que “Um dispositivo pedagógico será, então, qualquer lugar no qual<br />

se constitui ou se transforma a experiência de si. Qualquer lugar no qual se<br />

aprendem ou se modificam as relações que o sujeito estabelece consigo<br />

mesmo.”<br />

Ilustração 22- Dispositivos morais<br />

Esse cartaz, trazendo informações limitantes para o trato da questão colocada<br />

por esse grupo de alunos junto à comunidade escolar, passa a não ser suficiente<br />

aos seus interesses, uma vez que a moral que o atravessa traz toda uma<br />

complexidade pública sobre o tema que não estava previsto. Sendo assim, os<br />

alunos vão trazendo no fluxo desse trabalho e em sua continuidade outros<br />

elementos que aparecem no exercício da pesquisa escolar, mas que ainda assim se<br />

apresentam conectados a um campo moral religioso, financeiro, científico etc. Em<br />

seu prosseguimento podemos ver:<br />

186


Ilustração 23 – Atravessamentos<br />

187<br />

Para não limitarem esse trabalho ao aborto enquanto prática condenada<br />

por uma moral pedagógica é preciso ainda, para esses alunos, compreenderem os<br />

usos que se fazem dos métodos contraceptivos e registrá-los na confiabilidade dos<br />

gráficos.<br />

Ilustração 24 – Cuidados com o corpo<br />

Dentre os muitos temas colocados em visibilidade, em julgamento<br />

naquela Feira de Ciências, os trabalhos sobre os cuidados com corpo,<br />

individualizado, dócil, produtivo, disciplinarizado pelos conhecimentos<br />

escolarizados, e não só, alvo de atenção das biopolíticas sobre a população,


despertava a atenção e a curiosidade dos sujeitos que circulavam como<br />

olheiros de uma ditadura de visão no espaço escolar.<br />

Não nos restam dúvidas de que efeitos transformativos ocorreram no<br />

cotidiano da escola, nos alunos envolvidos naquela experiência e naqueles que<br />

visitavam aquela Feira de Ciências [pais e alunos da escola] e que por aqueles<br />

saberes/conhecimentos eram tocados. Todos naquele momento da Feira de<br />

Ciências colocavam em circulação e confrontação diferentes tecnologias de<br />

governo e autogoverno, ao usarem certa forma de narrar, falar, ver, examinar e<br />

julgar aquele acontecimento pedagógico. Até os que não estavam preocupados<br />

em ver, ouvir, julgar os trabalhos, também produziam formas de governo e de<br />

autogoverno. Essas tecnologias colocadas em circulação pelos envolvidos<br />

reacendiam discursos dispersos de muitos conhecimentos que foram<br />

capturados e objetivados por uma determinada moral pedagógica. Esses<br />

conhecimentos capturados por diferentes áreas de conhecimento eram<br />

confrontados com os saberes e conhecimentos dos alunos que praticaram<br />

aquele currículo e pelos saberes e conhecimentos dos que visitavam a Feira de<br />

Ciências.<br />

Aquele dispositivo pedagógico [Feira de Ciências], com suas formas<br />

autorizadas de narrativas e de contação de histórias, produzira efeitos<br />

transformativos nos sujeitos que ali estavam validando e valorando aquela<br />

prática/estratégia pedagógica. Não posso dizer que aquela Feira de Ciências,<br />

que aqueles cartazes, com seus gráficos que aprisionam a complexidade da<br />

questão moral, ética e política do aborto, produziam os mesmos efeitos em<br />

todos que ali estavam. Muitos que ali estavam, estavam por muitos motivos,<br />

não necessariamente para adquirir conhecimento escolarizado, conhecimento<br />

disciplinarizado.<br />

Na confecção daqueles trabalhos escolares, na experiência nascida<br />

com um tipo de currículo praticado pelos alunos e professores, reitera-se<br />

discursos e regimes de verdades. O desejo, a força política daquele<br />

acontecimento [Feira de Ciências], enreda-se na crença dos conhecimentos<br />

188<br />

científicos que foram escolarizados e que foram sendo tecidos por desejos de


expansão da vida por muitos. É na/pela e com a comunidade escolar, ligadas a<br />

diferentes instituições de conhecimento, que desejos pela transformação vão<br />

sendo materializados, objetivados e subjetivados pelas estratégias escolares,<br />

ainda que esses conhecimentos estejam enredados às muitas dimensões de<br />

controle existentes.<br />

189<br />

O desejo da escola e os seus compromissos com a modernidade não<br />

são suficientes para produzir as transformações na população, muito menos no<br />

sujeito do conhecimento com o conhecimento. O poema de João Cabral de<br />

Melo Neto nos ajuda a pensar nesses dispositivos, forças desejantes,<br />

produzindo efeitos de desejo, juntando-se a muitos outros desejos e que por<br />

ser desejo podem apontar para uma outra estética de existência, nascida da<br />

experiência e na expansão da vida de cada um com o conhecimento e com o<br />

saber da experiência.<br />

Tecendo a Manhã<br />

João Cabral de Melo Neto<br />

"Um galo sozinho não tece a manhã:<br />

ele precisará sempre de outros galos.<br />

De um que apanhe esse grito<br />

e o lance a outro: de um outro galo<br />

que apanhe o grito que um galo antes<br />

e o lance a outro; e de outros galos<br />

que com muitos outros galos se cruzam<br />

os fios de sol de seus gritos de galo<br />

para que a manhã, desde uma tela tênue,<br />

se vá tecendo, entre todos os galos. [...]<br />

O desejo pela transformação não estava somente nos organizadores<br />

daquele evento, muitos desejos enredaram-se àquele acontecimento<br />

pedagógico. Vale ressaltar que este trabalho escolar, visto nesse momento<br />

como dispositivo das biopolíticas que atravessam a escola e se enreda nas<br />

redes de comunicação dos sujeitos escolares, colocados em funcionamento,<br />

em movimento pelo currículo praticado por alunos, professores e comunidade<br />

escolar, intencionam a produção de um sujeito auto-refexivo, auto-consciente,<br />

que se autogoverne, se autovigie, se autoexamine e se autocontrole.


190<br />

Na materialização do trabalho escolar, diferentes saberes, com seus<br />

regimes de verdades, foram sendo tramados aos saberes legitimados por<br />

séries discursivas, para o efeito científico aferido a esta programação/atividade/<br />

estratégia e prática escolar. Era de conhecimento científico que tratava aquele<br />

evento, mas outros saberes entreteciam aquela experiência educativa. Para<br />

além dos poderes postos nos discursos científicos, muitos outros saberes<br />

estavam sendo reiterados, reforçados e negociados por aqueles sujeitos.<br />

Saberes estatísticos, matemáticos, morais, sociológicos, filosóficos, religiosos,<br />

da medicina, da geografia, da história, da nutrição, da economia, da pedagogia<br />

e tantos outros foram enredados na exposição dos alunos.<br />

Esses alunos, revestidos dos poderes aferidos pelos dispositivos e pela<br />

linguagem científica que conhecem, defendiam, entre o dito e o não-dito, a<br />

premiação que fora divida nas categorias, ensino fundamental e médio, para os<br />

melhores trabalhos. No julgamento dos trabalhos escolares, uma comissão<br />

julgadora fora composta por professores e especialistas de outras instituições.<br />

Na sociedade disciplinar, os dispositivos que produzem o exame do outro e de<br />

si, é uma prática constante. Esses dispositivos combinam diferentes elementos<br />

que se tramam entre o jogo do pastor e o jogo da cidade, fortalecendo os<br />

modos de classificação, hierarquização e exclusão. O tribunal da sociedade<br />

disciplinar e de controle precisa ser formado por pessoas consideradas<br />

moralmente idôneas, neutras, cientificamente capacitadas para aferir um<br />

julgamento que se diga „justo‟. Pessoas comuns, professores de outras<br />

escolas, transformadas em juristas ao sabor da ocasião daquele<br />

acontecimento, buscando a neutralidade e coerência para aferir julgamentos,<br />

como se isso fosse possível, fortalecem os binarismos expressos nas práticas<br />

do exame. Essa lógica binária produz efeitos de exclusão e eliminação dos<br />

trabalhos e dos alunos que não se encaixam às suas escolhas, aos seus<br />

modos de narrar, de olhar e expressar. Segundo Foucault (2006, p. 244),<br />

dispositivo, é um conjunto heterogêneo que engloba:<br />

[...] discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões<br />

regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados<br />

científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o<br />

dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede<br />

que se pode estabelecer entre estes elementos.


Esses dispositivos escolares, ocupando uma posição estrategicamente<br />

dominante, produzem o sujeito pedagógico com a imanência de sua urgência.<br />

Uma Feira de Ciências para acontecer, precisa estar atrelada a muitos<br />

interesses. Uma Feira de Ciências, como qualquer outra atividade escolar,<br />

pensada na condição de um dispositivo, é enderaçada, interessada, disso, não<br />

nos restam dúvidas! Mas, isso não quer dizer que esses dispositivos sejam<br />

invenções puramente escolares. Esses dispositivos, que nos produzem como<br />

sujeitos do tipo pedagógico, podem ter sido capturados pela escola em suas<br />

relações de aprendizagem com o poder pastoral [confissão, exame, vigilância,<br />

confinamento], e com os jogos da cidade [formas de convivência/moral] e, por<br />

ela, ter sofrido alterações, micro-alterações para atender à demanda de seu<br />

tempo e tornar-se produtiva. Tecnologias de dominação e as técnicas/práticas/<br />

experiências de si [modos de narrar, falar, olhar, julgar, examinar, praticar-se]<br />

atuam performativamente sobre o desejo do sujeito pedagógico, estimulando,<br />

visando tranformá-lo e fazendo-o desejar a sua transformação. Ribeiro (2007,<br />

p. 70), afirma que:<br />

191<br />

Antes de reprimir o desejo, o poder normalizador estimula, faz<br />

desejar. Gratifica a produção, torna-nos trabalhadores operosos e<br />

competitivos, indivíduos prósperos, inteligentes, saudáveis,<br />

sexualizados, criadores, mas, sobretudo, obedientes.<br />

Essas transformações que nos interpelam quase sempre visam a<br />

disciplinarizar os corpos, torná-los dóceis, produtivos e formatá-los a um<br />

princípio identitário de consciência de si. Nas relações que atrelamos com<br />

essas tecnologias, as transformações do eu pedagógico vai sendo tecida e<br />

articulada pelas forças desejantes das muitas histórias que nos são contadas<br />

por diferentes canais de comunicação, nos currículos vividos e nos muitos<br />

discursos institucionalizados pelos saberes pedagógicos que se afetam e nos<br />

afetam imanentemente nas redes desejantes.<br />

Essas forças, como já dito em textos precedentes não nos capturam<br />

soberanamente com sua racionalidade e sua emoção. Essas forças narrativas<br />

deixam espaços desejantes para que fluxos de subjetividades se entremeiem a<br />

experiência de si e ao cuidado de si. Não podemos negar que vamos nos<br />

convencendo pelas tecnologias do eu, nomeadas em alguns momentos por


atos/ações reflexivos de nós mesmos, de nossas vontades e de nossas<br />

verdades que estamos nos tornando sujeitos conscientes, livres, autônomos e<br />

independentes. Quanto engano! Essas forças circulantes, por não serem<br />

totalizantes, por precisarem umas das outras, permitem em seus espaços de<br />

lutas, a passagem de outras forças e outros desejos para se pensar e desejar a<br />

vida e de nos aproximar de uma ética da existência, ou de um estilo de vida<br />

que em um determinado momento nos agrade. Nesse sentido, trançando-me e<br />

sendo trançado por essas formas de governo e suas tecnologias, venho<br />

buscando compartilhar modos de pensar/problematizar/ falar com a escola de<br />

um lugar que tem na imanência da pergunta, a preocupação permanente com o<br />

que estamos nos tornando com as tantas conversas sobre a escola.<br />

Ainda que não tenha intenção de produzir um discurso verdadeiro sobre<br />

as minhas invenções/escolhas/compreensões, muito menos de fazer o uso da<br />

palavra que possa ser capturada pela polícia dos adultos e instituir uma<br />

verdade, sei, na companhia de Larrosa (2002) que: regimes discursivos [modos<br />

de falar] e regimes jurídicos [modos de julgar] vão definindo o uso, o tom, o<br />

lugar e o tempo da palavra. Poeticamente, Drummond (2002), nos ensina que<br />

as palavras, com toda a sua carga de poder, deveriam ser usadas com cuidado<br />

em nossas pesquisas. Algumas palavras topologicamente pronunciadas trazem<br />

em si uma carga binária de poder, quando capturadas pela polícia dos adultos<br />

e relacionadas a outras palavras que dão nomes as coisas e a pessoas, a<br />

outros discursos, a outros dispositivos de controle, consolidando regras e<br />

regimes de verdades [conhecimento]. As palavras, com toda a sua força,<br />

enredando-se em redes de comunicação desejante, podem definir lugares para<br />

as pessoas, estabelecendo modos de ver/falar/julgar e também de desejar<br />

outra vida. Por isso, algumas palavras deveriam, cuidadosamente como nos<br />

fala Drummond, ser pronunciadas ao pé de ouvido, atitudes de confidentes,<br />

coisas de amigos. Estou praticando palavras, falas, olhares, tramando-as numa<br />

escrita curiosa de mim, com dispositivos que nem sempre conheço, mas que<br />

suspeito de sua formação.<br />

192


193<br />

Certas Palavras<br />

Certas palavras não podem ser ditas<br />

em qualquer lugar e hora qualquer.<br />

Estritamente reservadas<br />

para companheiros de confiança,<br />

devem ser sacralmente pronunciadas<br />

em tom muito especial<br />

lá onde a polícia dos adultos<br />

não adivinha nem alcança.<br />

Entretanto são palavras simples;<br />

definem<br />

partes do corpo, movimentos, atos<br />

do viver que só os grandes se permitem<br />

e a nós é defendido por sentença<br />

dos séculos.<br />

E tudo é proibido. Então, falamos.<br />

Carlos Drummond de Andrade 19<br />

4.4 Não só de palavras fabrica-se o humano: é preciso muito mais...<br />

O novo não está no que é dito, mas no acontecimento<br />

de sua volta. (FOUCAULT, 2006, p.26)<br />

Compartilhando palavras que se articulam em dispositivos discursivos e<br />

não-discursivos, tramadas por relações de poder e saber, capturadas ou não<br />

pelas verdades da policia dos adultos que nos tramam num devir humano<br />

sempre outro, vou compreendendo num movimento de viagem, de uma viagem<br />

que se desdobra e muitas dobras subjetivantes e desejantes, que as palavras,<br />

como potência, não possuem a princípio, proprietários [autoria chancelada].<br />

Como o galo do poema de João Cabral de Melo Neto, que precisa de outros<br />

galos para anunciar o nascer da manhã, experimento uma escrita curiosa de<br />

mim, zig-zagueando-me no uso que faço das palavras em seu acontecimento,<br />

suspeitando de seu retorno, daquilo que se apresenta como „novo‟ na<br />

emergência desse texto que se pretende conversante.<br />

As palavras e as práticas discursivas, para produzirem sentidos, novos<br />

sentidos e reiterar tantos outros, precisam ser postas em circulação, precisam<br />

ser pegas e lançadas a outros falantes/praticantes na produção de sentidos e<br />

19 ANDRADE, Carlos Drummond de. Simplesmente Drummond. Rio de Janeiro: Record, 2002.<br />

(Coleção: Literatura em minha casa)


ealidades. Os discursos em estado de hibernação, paralisados, trancafiados<br />

em estantes de bibliotecas, armários de escolas, nas memórias artificiais de<br />

computadores, e em muitos outros artefatos culturais, ali, sem ser praticados,<br />

experimentados, contestados não dizem muita coisa, são somente palavras/<br />

sinais/símbolos/marcas impressas no papel ou em outras mídias. As palavras,<br />

as práticas discursivas, para se por a falar endereçadamente na língua que<br />

entendemos, necessitam ser articuladas a outras palavras, às redes de<br />

comunicação desejantes que nos convocam a uma existencialidade/presença<br />

que nos conectam aos muitos sentidos narrativos, aos círculos de poder da<br />

polícia dos adultos, às maquinarias de capturas do sujeito desses discursos,<br />

instituídos por redes de comunicação e relações de poder.<br />

Os processos de capturas dessas palavras e dessas práticas discursivas<br />

são frouxos, são plásticos e modulantes, não que essa seja a intenção dos que<br />

tomam e apropriam das palavras como suas. A plasticidade que toma as<br />

palavras e as práticas discursivas postas em circulação nas redes de<br />

comunicação se dá pela incapacidade de aprisionar a complexidade da vida e<br />

dos sujeitos dessas práticas. As práticas discursivas e os sujeitos dessas<br />

práticas estão articulados em relações de poder que nos ligam aos discursos<br />

da identidade, de classes, de raça, religião, aos saberes científicos e da<br />

experiência. As práticas discursivas são contigenciais, culturais, sociais,<br />

históricas e elas não possuem proprietários, apenas praticantes que na<br />

emergência do acontecimento, de seu retorno, fazem usos dessas práticas e<br />

por dentro delas vão se estabelecendo e se forjando como sujeitos. Nas<br />

práticas discursivas e não-discursivas se articulam interdições violentas, que<br />

nos conectam ao desejo de verdade, ao desejo de poder e de controle sobre a<br />

verdade. Os discursos tomados por violência na produção de verdade precisam<br />

ser reiterados e (re)distribuídos em muitos circuitos de controle comunicativos<br />

para que ela possa passar a existir, produzir coisas, objetos, pessoas e<br />

também as desigualdades. Nesse sentido, Larrosa (2002, p. 71), nos fala que o<br />

discurso “[...] é algo sobre o qual se exercem múltiplas operações de<br />

solidificação e controle. Que as práticas discursivas são também práticas<br />

sociais organizadas e constituídas em relações de desigualdade, de poder e de<br />

controle.”<br />

194


195<br />

As práticas discursivas, resultado de operações sobre operações, gozam<br />

de poder, por isso, de uma tênue liberdade que garantem aos sujeitos dessas<br />

práticas: ver, falar, narrar, julgar, examinar, comentar, controlar, produzir,<br />

praticar, transformando-se nas relações experimentativas consigo e com o<br />

outro. Essa tênue liberdade das práticas discursivas, produtoras de regulação<br />

do discurso verdadeiro, potência feiticeira, ao serem capturadas pela polícia<br />

violenta dos adultos/experts/especialistas, ocupando por violência o lugar de<br />

prestígio do uso desigual do poder, produz efeitos na linha de raciocínio do isto<br />

ou aquilo, pelo uso ambivalente e violento de sua posse.<br />

A captura de algumas práticas discursivas pela polícia dos adultos de<br />

que nos fala Drummond (2002) se justifica pelo desejo que nos movimenta<br />

ainda que de forma desigual à vontade de saber e pela posse da verdade. As<br />

palavras com toda ambivalência materializada no seu uso, materializada nos<br />

corpos, capturada pela polícia dos adultos, transformadas em políticas de<br />

governamento e de autogoverno, podem produzir excludências e com elas<br />

formas de resistências. As resistências, nascidas no desconforto da vida<br />

daqueles que foram alijados do direito de uma vida expansiva, jogam com<br />

forças e armas que na ação de contestar, exigem a participação e um lugar<br />

nessas práticas discursivas. Algumas dessas resistências a uma forma de<br />

poder só tem por lugar de atuação as brechas que se são deixadas/ou abertas<br />

nas relações que são estabelecidas com essas forças-poder.<br />

O que interessa nessas políticas de governo e de autogoverno é que<br />

„todos‟ possam circular por essas malhas narrativas autoconscientes, nos<br />

espaços de lutas políticas, quase sempre espaços públicos, sentindo-se e se<br />

vendo como coparticipantes e controladores de um devir humano. Larrosa<br />

(2002, p. 71) ainda sinaliza que “A história da autonarração é uma história<br />

social e uma história política. Por isso, as práticas discursivas nas quais se<br />

produzem e se medeiam às histórias pessoais não são autônomas.”<br />

As palavras, potências feiticeiras que me tocam na materialização desse<br />

texto, não são palavras usadas somente para estranhar/problematizar certos<br />

registros narrativos, assim como designar/nomear, conceitualizar pessoas,


fatos e acontecimentos. As palavras que me tocam, por estarem atreladas a<br />

muitas experiências do viver escola, com seus dispositivos de controle e de<br />

suas fugas criativas, são palavras que possuem cheiro, sabores, odores,<br />

entonações, emergências, acontecimentos, retornos, sentidos, sentimentos e<br />

práticas, que foram sendo produzidas nas mais diferentes experiências com os<br />

sujeitos escolares e com os discursos da escola. Tramando-me dessas práticas<br />

discursivas que produzem sujeitos pedagógicos [alunos e professores], vou à<br />

busca dos encontros com o turno do noturno da Escola Polivalente de<br />

Carangola, para fiar conversas que me ajudem a compreender como as<br />

narrativas que se integram em tramas discursivas, que fortalecem, justificam e<br />

contestam realidades se materializam nos sujeitos da experiência.<br />

No texto precedente problematizei dispositivos culturais que produzem o<br />

centro e as margens, o centro e a periferia. Esse texto caminha numa direção<br />

muito próxima àquele, porém, busco outros dispositivos que encadeiam<br />

pensamentos e posições de sujeitos nas relações estabelecidas com os<br />

sujeitos pedagógicos. Vale ressaltar que os fragmentos das narrativas que<br />

lanço como fios de redes comunicativas foram pronunciados no início do ano<br />

letivo de 2007. Naquele momento, o clima da escola era de contação das<br />

histórias do período das férias dos professores e das experiências significantes<br />

por eles vividas. Na sala dos professores as conversas se misturavam na<br />

embolada do tempo vivido, trazido pela memória. Parecia que aqueles fios de<br />

memórias pinçados e colocados em circulação pelos professores em suas<br />

conversas faziam-se necessárias para um bom início de ano letivo [prestar-<br />

contas aos pares] dos fatos que deram sentido aos seus projetos de vida no<br />

período de férias escolares. Todos tinham o que contar e os que não contavam<br />

algo do período de férias incitavam a contação de histórias, faziam perguntas<br />

sobre o outro e sobre a vida do outro e teciam comentários. Nesse sentido,<br />

pude presenciar na sala de professores um fio de conversa, que faz parodia ao<br />

centro, ao mesmo tempo em que afirma suas representações e suas<br />

referências.<br />

196


Professor:<br />

_ Minha filha não foi para a segunda etapa do vestibular da Universidade Federal de<br />

Juiz de Fora, por apenas um ponto. O corte foi 97 e minha filha fez 96. Muito azar né!<br />

Mas este ano ela vai ficar lá fazendo cursinho pré-vestibular.<br />

Professora:<br />

197<br />

_ Minha filha passou em primeiro lugar no seu vestibular. Virou dona de casa. Foi<br />

opção dela. Eu criei minha filha para ser feliz. Foi este o vestibular dela. Este é o<br />

compromisso da educação que quero para meus alunos. Teve os mesmos<br />

investimentos que se tem na carreira acadêmica. Ela teve que estudar muito o marido<br />

dela. (risos)<br />

Tais fragmentos de conversas entre professores que se conhecem e<br />

desejam saber o outro e do outro, sinaliza-nos que a(s) diferença(s) se constitui<br />

sempre numa relação. Fica parecendo que as histórias ou as experiências de<br />

quem se conhece, só produzem sentido se forem referendas a um princípio<br />

normatizante do olhar do outro, do comentário, do julgamento, do exame.<br />

Prestar vestibular para o curso de medicina, numa Universidade Federal,<br />

posicionaria, a princípio, o sujeito pedagógico nas malhas dos discursos que<br />

valoram o projeto de uma sociedade moderna que se construiu<br />

ideologicamente com as forças de saberes considerados científicos e que<br />

respondem ou correspondem ainda que fragilmente aos ideais de mobilidade<br />

social da classe média pelas vias dos saberes escolares.<br />

Essa crença na mobilidade social via saberes científicos validados pelo<br />

modelo de escola que conhecemos respondem, afirmam e confirmam os<br />

muitos porquês da escola, de seus conteúdos, de suas formas de ensinar, o<br />

que ensinar, para que ensinar, como avaliar e por que avaliar. Experienciar o<br />

corte no vestibular da referida Universidade colocava ainda que,<br />

temporariamente, a vestibulanda, filha de um professor dessa escola num lugar<br />

de azar (porém muito próximo ao centro). Com essa crença do centro, temos a<br />

impressão de que com um pouco mais de investimento na carreira acadêmica<br />

e contando com um pouco de „sorte‟, teríamos as fronteiras culturais e sociais<br />

desestabilizadas, colocando-a vestibulanda no centro. Com um pouco mais de<br />

sorte, investindo nessa crença, as margens podem desaparecer! Os que não<br />

entram nessa lógica do centro, por questões que lhes são particulares [como a<br />

opção pelo casamento em detrimento das carreiras acadêmicas], muitas vezes<br />

torna-se o responsável por sua excentricidade e pela centralidade do outro.


Quanto mais se acredita nessa lógica meritocrática de produção do centro e<br />

das margens pela escola, mais se investe nela e, por sua vez, mais se justifica<br />

a não participação das margens no banquete e nas escolhas dos que estão no<br />

centro ou que por esse projeto fora capturado. Vale ressaltar que o casamento<br />

em nossa sociedade, ainda marca um lugar.<br />

Essa lógica do modelo meritocrático do centro do vestibular é abalada<br />

por dentro do espaço do comentário daquela conversa quando uma das<br />

professoras, vivendo num lugar fronteiriço entre as crenças da carreira escolar,<br />

suas promessas de mobilidade social e a felicidade de sua filha entra na<br />

conversa. Na condição de mãe, essa professora produz outros sentidos para<br />

se pensar a produção do humano e a expansão da vida como forma de<br />

criação. A entrada dessa professora na conversa sobre o vestibular da filha do<br />

professor e sobre o vestibular de sua filha [casamento] me fez lembrar do filme<br />

„O Sorriso de Monalisa‟.<br />

198<br />

Nesse filme, Katharine Watson (Julia Roberts) é uma recém-graduada<br />

professora que consegue emprego no conceituado/tradicional/conservador<br />

colégio Wellesley, para lecionar aulas de História da Arte. Katharine Watson<br />

incomodada com o conservadorismo da sociedade e do próprio colégio em que<br />

trabalha, decide lutar contra estas normas do conservadorismo de uma<br />

sociedade patriarcal, capitalista e acaba inspirando suas alunas a enfrentarem<br />

os desafios da vida, problematizando essa vida por dentro da escola. Entre os<br />

conservadorismos da escola e da sociedade, essa professora, movida por um<br />

modelo de felicidade/liberdade, deparando-SE com outras formas de desejos<br />

que não necessariamente correspondiam aos seus ideais de liberdade e de<br />

realização. Algumas de suas alunas, ainda que sabendo ser possível a partir<br />

de diferentes enfrentamentos ocupar outras posições nos arranjos sociais,<br />

desejavam, antes de tudo, o casamento como forma de normatização e<br />

felicidade. Essa condição, esse efeito de poder sobre suas alunas e a crise de<br />

compreensão postas em circulação nos sujeitos da trama desse filme,<br />

contrariava a lógica feminista que atravessava as práticas discursivas daquela<br />

professora.


199<br />

Assim, como no filme O Sorriso de Monalisa, outras lógicas coabitam o<br />

mesmo espaçotempo escolar em que os sujeitos pedagógicos se constituem<br />

normativamente e se desviam da norma. Aquela conversa entre os professores<br />

da escola que se sabem e querem saber do outro produzia ambiguidade em<br />

seu enredamento, em seu endereçamento e no seu movimento. Aquela<br />

professora, ocupando naquela conversa um lugar de poder sobre ação do outro<br />

e tomando o casamento de sua filha como escolha, vai dizendo, como forma de<br />

contestação ao discurso daquele professor que acredita no corte do vestibular<br />

como sorte/azar, que o vestibular não deveria ser a principal preocupação e<br />

investimento da escola. As pessoas que estão na escola não estão pelas<br />

mesmas razões. Na materialização de seus desejos, outros investimentos/<br />

conhecimentos são mobilizados e esses nem sempre passam pela<br />

racionalidade impressa na mobilidade desse conhecimento.<br />

Esses fragmentos de conversas de professores, que se sabem<br />

funcionando como fios que nos ligam a rede-vida desejante, nos remetem a<br />

uma moral normativa e de controle de viver as uniões afetivas. A família<br />

heteronormativa e o casamento para muitos, ainda que contestado e<br />

questionado por alguns, ainda constitui objeto de desejo e de investimento para<br />

muitos, inclusive para homossexuais. Até pouco tempo e ainda hoje de forma<br />

velada, por dentro da escola e de suas práticas curriculares, as pessoas vão<br />

sendo projetadas a uma normatividade biológica pelas vias do casamento, as<br />

relações estáveis e formatadas. Nesse duplo encaminhamento e aposta, as<br />

diferenças são construídas e reiteradas por aqueles que apostam em suas<br />

razões. As duas meninas da conversa [filhas de professores vivem<br />

potencialmente nas fronteiras da norma e do desvio] estão muito próximas ao<br />

centro, mas, ainda se posicionam e são posicionadas na fronteira.<br />

Lanço perguntas: ainda tem alguém, nos dias de hoje, que vive em<br />

algum lugar, espaço, tempo, aldeia ou ilha, isolado de tudo e de todos, sem se<br />

contaminar por tantos endereçamentos e convites? É possível viver em algum<br />

lugar que não seja numa fronteira, seja lá qual for cultural, institucional, de<br />

gênero, de idade, de <strong>sexualidade</strong>, de região geo-política, de raça, de religião,<br />

profissional, etc? Algumas delas, em algum momento, atravessamos. Nem o


corpo, o dito “biológico”, “natural” é fronteira, é limite. Mudamos, se quisermos<br />

a cor do cabelo, dos olhos, a textura da pele, a cor da pele, as formas corporais<br />

(silicone, plástica, lipoaspiração, o sexo). Somos todos híbridos e mutantes, até<br />

por coisas que passam despercebidas, e são bem antigas, usamos óculos,<br />

dentadura, cadeira de rodas. E, mais ainda, só existe fronteira porque alguém<br />

traçou limites (natural/cultural, direita/esquerda, ocidente/oriente/, verdadeiro/<br />

falso, norte/sul, campo/ cidade, homem/mulher, branco/negro, certo/errado,<br />

normal/anormal). Não que todas as coisas sejam semelhantes, mas as<br />

diferenças tais como as conhecemos (categorizadas, polarizadas e<br />

hierarquizadas), são resultados de operações de pensamento que tornaram<br />

possível perceber, contabilizar e expressar o mundo dessa forma e não de<br />

outra e das ações e significações delas decorrentes (políticas, econômicas,<br />

sociais, culturais, científicas, tecnológicas, etc.). Esses limites, muros,<br />

demarcações de territórios continuam sendo desconstruídos e construídos.<br />

Talvez o que nos falte é nos deixarmos tocar pela experiência, ouvir os sinais<br />

da experiência, e admitir isso. A razão definida e desejada é que tenta botar<br />

ordem nas coisas, organizar de determinada forma, o caos. E por que fazemos<br />

isso? Talvez em busca de segurança! Mas que segurança é essa que se funda<br />

no medo e na rejeição do que não consideramos semelhante? Temos medo<br />

de não termos um lugar no mundo e de não desfrutarmos um razoável poder<br />

nele. Nessa busca por um lugar nesse mundo, estamos como nos diria<br />

Boaventura de Souza Santos (2006) desperdiçando a experiência.<br />

Maturana (2002) considera que se há algo biológico que distingue o<br />

homem dos outros seres vivos: o fato dele se desenvolver como espécie, na<br />

relação com outros. Só temos linguagem porque um sentimento fundador, o<br />

amor, nos compele a viver com outros. É na cultura e na educação que<br />

aprendemos a rejeitar. Somos educados para isso. Segundo ele, existem duas<br />

emoções pré-verbais, o amor e a rejeição. Se a rejeição fosse nossa emoção<br />

fundamental, não haveria sociedade e linguagem. Se assim for, temos sido<br />

educados para rejeitar, diferenciar, discriminar, oprimir, excluir, controlar,<br />

explorar uns aos outros e com isso vamos definindo lugares e armadilhas. Não<br />

200<br />

basta só estranhar essas armadilhas; é preciso problematizá-las e


compreender que outros mundos se entremostram nas conversas e nas<br />

relações de poder estabelecidas nos afetamentos dessas práticas.<br />

Aos nos envolvermos com as conversas e com as práticas cotidianas,<br />

valorando-as como potências e como crítica dos arranjos sociais existentes,<br />

compreendemos com toda a parcialidade de nossas compreensões que as<br />

diferenças, antes de serem um dado [é um efeito de poder], consistem em<br />

uma atribuição que é feita a partir de um determinado lugar. Na escola, nas<br />

conversas de professores, e não só, não existe só a lógica do centro,<br />

coexistem também outras lógicas que vão sendo redefinidas de outros lugares,<br />

por outras razões, por outros interesses, outras convocações e por outros<br />

sentimentos. Nessa perspectiva, a professora que acabara de casar sua filha,<br />

posicionando num lugar de poder na conversa, na diferença da escolha de sua<br />

filha, contesta a lógica do centro que produz desigualdade e faz parodia a<br />

lógica representativa do centro [vestibular]. Aproveitando a ocasião e a<br />

emergência daquele acontecimento, debochadamente, esta professora<br />

bagunça essa lógica representativa da norma, dizendo-nos que sua filha<br />

passara em primeiro lugar no seu vestibular. Debochadamente diz: “Foi preciso<br />

estudar muito o marido dela.” Louro (2003, p. 47) lança um alerta, dizendo que<br />

“Quem é representado como diferente, por outro lado, torna-se indispensável<br />

para a definição e para a contínua afirmação da identidade central, já que serve<br />

para indicar o que esta identidade não é e não pode ser.”<br />

Larrosa (2003), observa que, na constituição da experiência de si, os<br />

critérios que empregamos para julgar, o outro e para nos julgar são diferentes e<br />

trazem valores dominantes de uma determinada cultura. É preciso ficarmos<br />

muito atentos, pois às vezes o que estamos fazendo em nossas formas de<br />

contestações cotidianas é simplesmente reforçar o eixo normativo de uma certa<br />

centralidade cultural. Ninguém estabelece julgamentos de um lugar inaugural,<br />

muitas redes de conhecimentos e de saberes são tramados nesse momento,<br />

permitindo aplicação e efeito sobre o sujeito que julga e que é julgado.<br />

Uma professora participante daquela conversa puxa outro fio discursivo<br />

carregado de sentidos sobre o casamento e dá um outro tom à conversa em<br />

201


destaque na sala dos professores. A professora do lugar, que é tocada pela<br />

lógica normativa das biopolíticas que se conecta a moral do casamento, vai<br />

misturando em sua fala elementos normatizantes e moralizantes de uma<br />

política religiosa, permeadas por critérios morais que disciplinam a existência,<br />

mas que não conseguem produzir com sua ação o sujeito<br />

formatado/disciplinado de sua força normativa. Essa professora, tomando a<br />

palavra como sua, produz julgamentos estéticos e políticos enredados a outros<br />

elementos das experiências sociais, nos rituais de passagens, na experiência<br />

de si e nos critérios de julgamentos sobre si e sobre o outro. Ou seja, nas<br />

conversas, todos, por circular, exercem poder. Nesse sentido, podemos na<br />

companhia de Larrosa (2003, p. 78) compreender o exercício do poder como<br />

“Uma ação que modifica as ações possíveis estabelecendo com elas uma<br />

superfície de contato ou, às vezes, capturando-as a partir de dentro e dirigindo-<br />

as, seja impulsionando-as, seja contendo-as, ativando-as ou desativando-as.”<br />

Nessa embolada narrativa que conecta aos sujeitos da experiência modos de<br />

ver, de falar, de julgar, praticar e transformar-se, pude ouvir dessa professora:<br />

202<br />

- Acho lindo o casamento. Acho linda a cerimônia de casamento. Meu sonho é me<br />

casar numa cerimônia religiosa. Eu não gosto desse Papa. Esse Papa é louco. Ele<br />

cisma com as coisas e começa a excomungar. Eu gostava do outro Papa. Não sei se<br />

esse gostar estava ligado ao momento em que ele se tornou Papa. Naquele momento<br />

vivíamos o período da ditadura militar. Mas o outro Papa era angelical. Esse que está<br />

como Papa não é assim. Sei lá. A gente pensa assim, nossa, ele está tão longe e o que<br />

ele pensa não vai me atingir. Mentira atinge sim. Eu não posso me casar, não posso<br />

mais comungar, não posso um monte de coisa. Mas eu não estou nem aí. Vou à missa,<br />

comungo e meu filho faz catecismo. Para mim o Papa é igual a esse CBC (Currículo<br />

Básico Comum). De longe o Estado pensa que nos afeta e que eu faço tudo que ele<br />

quer. Eu deixo o Estado acreditar. Eu só faço o que eu dou conta de fazer. Nem Jesus<br />

Cristo deu conta de tudo, quem diria nós professores, simples mortais.<br />

Na fala que se faz ouvir dessa professora, diferentes discursos vão<br />

sendo pronunciados, tramados, misturando tempos de memória na narrativa da<br />

professora, juntando elementos que aparentemente estão dispersos em tempo<br />

e espaços diferentes. Essa professora, ao falar do casamento como desejo<br />

estético, como desejo de experiência de si, atrelando-o à sua dimensão<br />

religiosa e à sua crença, traz a figura emblemática/angelical do Papa João<br />

Paulo II, conectando ao tempo político vivido no Brasil da ditadura militar<br />

durante vinte anos. Segundo essa professora, aquele contexto de repressão<br />

nos aproximava de alguns lugares confortáveis, e, para essa professora, talvez


fosse essa uma das razões para achar/ver/julgar aquele Representante da<br />

Igreja Católica, como uma figura angelical. Em sua narrativa, os efeitos das<br />

normas religiosas vão-se misturando ao seu pensamento e à sua prática em<br />

relação ao currículo e às políticas de gestão da educação pública de Minas<br />

Gerais. Mesmo acreditando que os efeitos de poderes das instâncias religiosas<br />

e das políticas de educação aparentemente estão distantes, a professora sabe<br />

que é afetada e nos diz que subverte essas normas por dentro, fazendo o que<br />

é possível.<br />

203<br />

No estado de Minas Gerais, vale ressaltar, compreende-se por Currículo<br />

Básico Comum, as disciplinas, conteúdos e competências que os alunos da<br />

Educação Básica precisam apropriar/dominar ao longo de sua trajetória<br />

escolar, objetivando se aproximar dos discursos e seus efeitos de cidadania e<br />

do mundo do trabalho. Esse Currículo Básico Comum ou essa proposta de<br />

currículo para as escolas de Minas Gerais abrange as seguintes disciplinas do<br />

currículo a ser praticado por professores e alunos na escola: Arte, Biologia,<br />

Educação Física, Física, Geografia, História, Inglês, Matemática, Português e<br />

Química 20 . Esses conteúdos, com suas matrizes de competências, produzem<br />

efeitos sobre as práticas escolares, à medida que alunos e professores são<br />

avaliados com as competências definidas pelos especialistas da educação,<br />

medindo, via avaliação, os indicadores de qualidade da educação escolar de<br />

Minas Gerais. Juntamente com esses discursos pró-qualidade, investimento<br />

na formação continuada de professores e na infra-estrutura das escolas vem<br />

acontecendo, principalmente nas Escolas Referências.<br />

20 Resolução SEE nº 833 de 25 de novembro de 2006. Institui e regulamenta a organização curricular a<br />

ser implementada nos cursos de Ensino Médio das unidades de ensino integrantes do Projeto Escolas-<br />

Referências.


Ilustração 25- Investimentos<br />

204<br />

Ilustração 26- Quer ler um livro?<br />

A partir desses frágeis investimentos, por sua vez necessários, a escola<br />

se vê pressionada a atingir metas de superação dos baixos índices em sua<br />

relação com a produção em grande escala do conhecimento que vale no<br />

currículo e nas avaliações colocadas em circulação pelas políticas do Estado<br />

com seu slogam “Investimento: é igual à qualidade!” Em prol da qualidade,<br />

pude ouvir de uma aluna:<br />

-Estamos sem aula de Física, Química, Biologia e Matemática. Nossos professores<br />

estão fazendo curso. A gente nem briga! Se eles estão fazendo curso é para melhorar<br />

o ensino deles aqui na escola!<br />

Juntamente com esses dispositivos de controle e incremento dos<br />

sujeitos pedagógicos, outros mais sutis vão se interligando, fortalecendo aos


discursos e práticas das políticas de governo da população. É preciso acreditar<br />

nessas políticas e em suas estratégias. Na companhia de Larrosa (2003, p.79),<br />

podemos pensar que matrizes curriculares articuladas a outros dispositivos de<br />

controle [avaliação] afetam o sujeito pedagógico, afeta a escola, produz coisas,<br />

obriga a falar, a julgar, a narrar, a fazer, a transformar e a produzir certa<br />

consciência de si e do outro. Uma vez que na circularidade dessas ações sobre<br />

as ações do outro:<br />

205<br />

[...] o ver, o dizer, e o julgar são, parte de operações de constituição<br />

do que é afetado. As máquinas óticas, os regimes discursivos e os<br />

padrões jurídicos são inseparáveis dos procedimentos de fabricação<br />

de sujeitos obedientes à lei, normais e normalizados, atentos a si<br />

mesmos.<br />

Estou compreendendo, na companhia de Larrosa (2003), que a força<br />

das políticas de governo, articuladas as estratégias de avaliação, são<br />

fortalecidas muitas vezes na crença aferida aos resultados visibilizados pelas<br />

mostras estatísticas de coeficiente de aprendizagem. Essas mostras<br />

estatísticas, circulando no imaginário da escola, produzem efeitos em nossos<br />

campos de representação sobre a idéia que temos do que realmente vem a ser<br />

qualidade de educação. Os resultados dessas avaliações apresentam<br />

numericamente os sujeitos pedagógicos como os responsáveis pela<br />

precariedade da realidade educacional, uma vez que investimentos na<br />

formação de professores e na estrutura física da escola estão sendo feitos<br />

pelos governantes. No nosso caso, com índices de qualidade de educação<br />

abaixo dos países considerados desenvolvidos: escola, professores e alunos,<br />

estrategicamente vão sendo iluminados por uma maquinaria ótica, que, pela<br />

avaliação, produz saber sobre os envolvidos e que estão sendo capturados por<br />

essa maquinaria avaliativa. Nessas capturas avaliativas, vamos imanentemente<br />

produzindo ações que reforçam essas políticas e subalternizam os muitos<br />

devires da ação docente, transformando-nos e sendo transformados em<br />

professores tarefeiros de ações educativas para responder positivamente os<br />

desejos de aprimoramento/desenvolvimento humano pelas vias do currículo,<br />

mas de um currículo, em que vale a lógica da avaliação sistêmica.


O que se produz nas relações com o currículo praticado na escola, nas<br />

relações estabelecidas com a vida, não entra na pauta dessas avaliações.<br />

Temos feito educação escolarizada para sermos avaliados e se os resultados<br />

satisfazem essas redes capturantes sobre a ação do outro, podemos ter outros<br />

campos de visibilidade iluminados por essa estratégia governamental. Em uma<br />

reunião na escola que tinha como pauta os resultados da avaliação do<br />

SIMAVE 21 , pude capturar alguns fragmentos de fala da diretora da escola e de<br />

seus professores que caminham na perspectiva do governo de si e do outro e<br />

das possibilidades de jogar com esses dispositivos de controle:<br />

206<br />

Diretora:<br />

_ A avaliação do SIMAVE, ainda que não satisfaça a todos nós, produz coisas e nos<br />

ajuda a pensar sobre os andamentos do ensino e da aprendizagem de nossos alunos.<br />

Professores:<br />

_Sabemos dos limites dessas avaliações.<br />

_Agora é crescente e preocupante o analfabetismo que vem chegando nossos alunos<br />

na 5ª série.<br />

_ Alfabetizar e contemplar os conteúdos da 5ª série é quase impossível.<br />

_Os alunos estão chegando sem conhecimentos mínimos para dar prosseguimento<br />

com sucesso na 5ª série.<br />

_ Os alunos da sede e os alunos da zona rural são bem diferenciados.<br />

_ Nós temos que atacar os problemas e os nossos problemas passam primeiramente<br />

pela leitura e escrita e as famosas quatro operações matemáticas. Sem isso a gente<br />

não avança.<br />

_ Nós temos um ponto positivo. Temos desejos de produzir sucesso em nossos alunos.<br />

_ Estamos produzindo diferentes estratégias, mas elas também têm limites. Estamos<br />

colocando alunos que sabem mais para ajudar os alunos que sabem menos.<br />

_ Estamos para implantar um projeto de tempo integral para os alunos com mais<br />

dificuldades.<br />

_ O problema são as salas de aula multisseriadas e essa impossibilidade de reprovar<br />

os alunos.<br />

_ Existe uma estatística que diz que 65% da população brasileira têm problemas<br />

mentais.<br />

_ No nordeste já existe uma sub-raça.<br />

_ O aluno de nossa escola não pode sair daqui de qualquer jeito.<br />

_ Ficam nos falando que não podemos dar provas iguais para alunos diferentes, mas o<br />

SIMAVE é igual para todos. O Estado nivela e fica o discurso que temos que respeitar<br />

as diferenças e singularidades de nossos alunos. E as nossas diferenças, e as nossas<br />

singularidades, quando é que vão respeitar?<br />

_Então eu faço pacote também.<br />

_ Eu não tenho tempo!<br />

_ Ninguém pode falar que a primeira aula do dia é igual à última da noite.<br />

_ O planejamento é vivo, nós temos que mexer nele.<br />

_ Eu não tenho que me preocupar com a média do Estado, nem do Brasil, nem da<br />

América do Sul. Tenho que me preocupar com a minha escola.<br />

_ Uma questão que volto a insistir; nossos meninos não têm donos aqui na escola.<br />

Eles não são de ninguém. Por que será que de primeira a quarta série os meninos são<br />

mais felizes na escola. Acho que é porque eles têm um professor como referência.<br />

Precisamos criar referências na escola. Repensar tempos e espaços dentro da escola.<br />

_ Dizem que existe uma legislação que nos impede de darmos mais de dois tempos<br />

pra mesma turma. Acho que essa legislação é brincadeira, ou invenção de alguém.<br />

21 Sistema Mineiro de Avaliação


207<br />

Dizem que se colocarmos todas as aulas no mesmo dia, esse aluno pode correr mais<br />

riscos de ser reprovado.<br />

Numa outra reunião para se pensar o Plano de Intervenção Pedagógico<br />

[PIP], para trabalhar o que representa dificuldades da escola, dos professores e<br />

de seus alunos frente os resultados da avaliação do SIMAVE, as conversas<br />

continuavam a produzir modos de narrativas que aglutinam modos de ver, de<br />

falar, de examinar de julgar e de praticar-se o si e o outro, porém o outro, o ex-<br />

cêntrico, o fora do centro, nas margens [os alunos do noturno, dos espaços<br />

rurais e em processo de alfabetização] sempre sendo responsabilizados pelos<br />

resultados e pelas dificuldades da escola e dos professores. Nesse embolada,<br />

que produz sentidos, realidades e os sujeitos pedagógicos, todos têm o que<br />

falar, o que julgar, o que ver e comentar. Nesses muitos fios de conhecimentos<br />

e representações de professores pude ouvir na primeira parte da reunião.<br />

Ilustração 27 – Reuniões<br />

Superintende de Ensino:<br />

_Quero parabenizá-los por estarem aqui hoje. Vocês ganharam mais um pontinho aos<br />

olhos de Deus. Estar aqui significa respeito ao outro, pensar o outro, na escola de<br />

vocês, nos alunos de vocês e nos trabalho de vocês. Ao chegarem à casa de vocês, se<br />

olhem no espelho e vejam a beleza que são vocês! Vocês são professores.<br />

Diretora:<br />

_Eu fiz uma visita a escola que tirou o primeiro lugar na avaliação do SIMAVE. Queria<br />

saber o que essa escola faz de diferente da gente e o que ela tem de diferente. Pude<br />

perceber que um dos diferenciais é que ela não recebe alunos da zona rural. Essa<br />

escola prepara os alunos para a avaliação do Estado. Ela pega as provas passadas,<br />

elabora outra, aplica e trabalha nas dificuldades. Ela aprendeu a jogar o jogo do<br />

Estado. Precisamos ensinar nossos alunos a jogar esse jogo. Precisamos trabalhar<br />

com as provas anteriores, ensinar a preencher gabarito e trabalhar as dificuldades.<br />

Precisamos trabalhar a auto-estima de nossos alunos para que eles façam as<br />

avaliações com mais seriedade. Somos escola referência e queremos continuar<br />

sendo. A escola referência é como se fosse um laboratório. Tudo que se propõe<br />

enquanto política passa pela escola referência. Estamos com problemas para<br />

continuarmos sendo escola referência. Esse é um, dos motivos dessa reunião.<br />

Precisamos para continuarmos nesse lugar de referência, o querer dos professores,


208<br />

aprovação do colegiado, reduzir índices de evasão e reprovação. O nosso maior<br />

problema é o noturno.<br />

Superintendente de Ensino:<br />

_Precisamos conscientizar nossos alunos que o futuro, ainda que sendo uma incógnita,<br />

a escola ainda é uma chave para o futuro.<br />

Professor:<br />

_As escolas maquiam a evasão. O noturno é sério. Todas as escolas têm evasão no<br />

noturno.<br />

Diretora:<br />

_Agora com o EDUCACENSO isso vai acabar. O aluno transferido tem que aparecer<br />

na outra escola. Caso ele não apareça matriculado numa outra escola, será<br />

considerado caso de evasão. Agora temos mais um controlador da escola. A escola<br />

on-line. De Belo Horizontes eles nos controlaram via internet. Precisamos estimular<br />

nossos pais. Não temos pais na escola. Estamos tendo que inventar motivos para<br />

trazerem os pais para a escola. Na última reunião fiz um sorteio de uma cesta de<br />

queijo. Para este mês irei fazer um sorteio de uma cesta básica. Vocês verão como a<br />

escola vai ficar cheia. Não podemos desistir de nossos pais, se não eles desistirão da<br />

gente!<br />

Nessas políticas de governo, que antecipam e direcionam a ação do<br />

outro, somos campos de imanência, que muitas vezes damos os caminhos, por<br />

dentro da escola para a sua direção na produção dos sujeitos envolvidos nos<br />

processos de avaliação. Nessa perspectiva do governo e da produção do poder<br />

que movimenta a escola e os sujeitos pedagógicos a produção de outros<br />

lugares de ação e atuação, pude ouvir da diretora:<br />

_ Estas avaliações nos controlam, mas nos ajuda a inventar. No ano passado nossos<br />

alunos tiveram muita dificuldade com a cultura cinematográfica na avaliação.<br />

Resolvemos criar uma sala de projeção.<br />

Ilustração 28 – Cinema na escola<br />

Não estou nesse trabalho preocupado em saber e ou problematizar se<br />

os alunos na avaliação de 2007 obtiveram avanços no índice de proficiência na<br />

cultura cinematográfica pela avaliação do SIMAVE, mas, o que me interessa<br />

destacar com a fala da diretora da escola é que a partir da análise e reflexões


em torno do conteúdo de artes, que a escola produziu estratégias para<br />

trabalhar a cultura cinematográfica em seu currículo na escola. Essa iniciativa<br />

da escola, contando com diferentes parcerias com a comunidade, possibilitou<br />

mudanças no currículo praticado da escola. O que posso perceber e que me<br />

interessa da visibilidade é que a escola, por dentro, tecendo suas redes,<br />

articulando suas possibilidades, a partir desses e com esses resultados<br />

movimenta ações que vão para além do pensado pelas políticas avaliativas do<br />

governo. Nesse movimento de reverter o insucesso dos alunos e da escola,<br />

criou-se um Festival de Cinema para a escola.<br />

209<br />

Durante o primeiro e segundo semestre do ano letivo, dois dias<br />

escolares são destinados para o Festival de Cinema da escola. A partir das<br />

negociações entre alunos e professores, os filmes são escolhidos e projetados<br />

para toda a comunidade escolar. Todos da escola são convidados a participar<br />

das exibições.<br />

Ilustração 29 – Em cartaz<br />

O pátio 22 coberto da escola, espaço de fila, de encontro, desencontro, de<br />

espera, de fuga, de brincadeiras [e muito mais], durante esses dias,<br />

transforma-se numa sala de projeção. As paredes desse espaço, transformado<br />

em sala de projeção, são produzidas com lonas, as cadeiras das salas de aula<br />

são transportadas para essa sala de projeção e os filmes são coordenados<br />

22 No ano de 2008 a escola construiu seu anfiteatro e nesse momento goza de um espaço específico para<br />

essa finalidade.


pelos professores de arte. Logo, após as exibições dos filmes<br />

escolhidos/indicados/endereçados, acontece pedagogicamente o momento do<br />

debate entre professores, alunos e comunidade escolar. Pipoca, cachorro<br />

quente e refrigerante contribuem para a ambiência do cinema da escola. A<br />

escola é só movimento nesse dia.<br />

210<br />

Esta iniciativa da escola trouxera para a comunidade escolar acesso a<br />

outras linguagens por dentro da escola, a outros currículos e a outras<br />

possibilidades de se viver e praticar escola e currículo. Essa iniciativa produz<br />

coisas, contudo só não nos garante produção de armas pedagógicas e<br />

culturais para lidar com a universalização dos conteúdos aferidos e conferidos<br />

por quem pensa a avaliação do SIMAVE e de tantas outras desse gênero. Na<br />

escola, modos de falar, de narrar, de ver, de julgar, de se posicionar, de<br />

examinar e os currículos postos em circulação por alunos e professores não<br />

podem ser capturadas por essas avaliações sistêmicas. A escola é muito mais<br />

do que as grades de conteúdos definidos como objeto de conhecimento e<br />

muito mais do que as avaliações das biopolíticas, conseguem mensurar e<br />

pensar como ideal.<br />

4.5 Eu e o outro como referência do mesmo<br />

Na escola, diferentes currículos são postos em circulação, pois<br />

diferentes são as pessoas da escola e diferentes também são as formas de<br />

chamamentos de viver as experiências com os currículos praticados. Cada um<br />

vive a experiência com o currículo do lugar que é tocado. Andando pela „escola<br />

da noite‟, sou surpreendido por alunos, que, vivendo as excentricidades<br />

produzidas para os que estudam a noite, buscam um lugar no centro e de<br />

outros que contestam essa lógica. Na ambiguidade dos que se põem a falar,<br />

pude ouvir de um aluno:<br />

_Você está pesquisando sobre currículo né?Aqui na escola o currículo não existe!<br />

Aqui é igual a qualquer escola. Projeto, nunca vi aqui na escola. Eles falam que tem!<br />

Tem de dia, de noite não tem nada disso. É tudo igual. O laboratório de informática<br />

não é usado. Os alunos da manhã acham que os alunos da noite são incompetentes.<br />

Sabe por que eu fui reprovado o ano passado? Porque eu saí da noite e fui estudar<br />

de manhã! De manhã os professores nem parece que são os mesmos que dão aula


211<br />

de noite. De noite eles acham que o ritmo tem de ser lento. Não tem este projeto<br />

EJA? Ninguém é reprovado! Acho que a escola tinha que separar estes alunos que<br />

não sabem. Estes mais velhos estão atrapalhando a gente. São pessoas lentas e a<br />

escola tinha que separar e dar um jeito de fazerem eles andarem mais rápido. Nossa<br />

biblioteca é morta. O ano passado teve uma moça aqui na escola falando da vida,<br />

um saco, mas como eu gosto dela, então eu fiquei.<br />

Não só de palavras, de lista de conteúdos e de avaliações que se fabrica<br />

o sujeito pedagógico; é preciso muito mais, é preciso praticar, é preciso<br />

transformar-se e ser transformado num campo de imanência desejante. É<br />

preciso movimentar representações, estranhar representações, problematizar<br />

representações. É preciso colocar em circulação modos de ver, de se ver, de<br />

julgar, se julgar, jogando sempre com parcialidades, com as provisoriedades e<br />

instabilidades que nos movimentam ao nosso devir humano. É preciso<br />

entrelaçar sujeitos desejantes, dispositivos de controle e disciplinarização como<br />

forças imanentes produzidas nas fronteiras culturais dos sujeitos pedagógicos,<br />

uma vez que os excêntricos da escola produzem outros mais excêntricos,<br />

como os velhos e os lentos. Podemos e transitamos nessa fronteira cultural<br />

permanentemente. De uma hora para outra, nos posicionamos e somos<br />

também posicionados em lugares definidos pela cultura. Vivemos muito mais<br />

na fronteira da cultura do que num lugar definitivo. Somos viagem, somos<br />

movimento em estado de desequilíbrio constante.<br />

Sabemos, por assim acreditar, que a complexidade dos que vivem nas<br />

fronteiras, jamais será capturada por uma lógica do centro que a todos e em<br />

todos tentam produzir os mesmos efeitos. Suas forças produzem, nos chamam,<br />

são endereçadas, convidam a uma ordem e a uma unidade e em alguns<br />

momentos nos deixamos seduzir, ou por elas somos fascinados. Zona de<br />

policiamento é o espaço fronteiriço, é lugar de passagem, de cruzamentos, de<br />

lutas, de contestações, de afirmações, negações, negociações e subjetivações.<br />

Louro (2004, p, 20) nos ensina que “O ilícito circula ao longo da fronteira. Ali,<br />

nas fronteiras os enfrentamentos costumam ser constantes, não apenas e tão<br />

somente através da luta ou do conflito, mas também sob a forma de crítica, do<br />

contraste, da paródia.”


212<br />

Estar nas fronteiras representativas do noturno para alguns alunos é<br />

uma questão de escolha, de necessidade e também de oportunidade de se<br />

posicionar em seus trânsitos com a vida. Estudar a noite com os outros-<br />

outros 23 produzidos pela cultura é sempre um lugar de conflitos, de relações de<br />

poder e também de convocação a um centro de comparação. Na escola o<br />

movimento comparativo se dá em quase todos os momentos por alunos e<br />

professores, entre as zonas de policiamento e transgressão.<br />

A referência representativa para a boa escola, para a escola que produz<br />

sujeitos disciplinados e formatados pela lógica da sociedade moderna, ainda se<br />

configura sobre a força das luzes do dia. Não podemos esquecer que dentro da<br />

escola, existem inúmeras escolas e inúmeras fronteiras. Alunos reivindicam a<br />

partir dos campos de representações que dispõem culturalmente, uma escola<br />

noturna próxima à escola que é produzida diurnamente. Alguns alunos e<br />

professores só conseguem ver/ter/sentir a escola e o currículo da escola sendo<br />

produzido na mesma dimensão representacional da identidade da escola dos<br />

que nela podem ficar de dia. Não que esses currículos e seus dispositivos<br />

pedagógicos não possam e não se façam presentes no noturno, grande parte<br />

do que se fabrica de dia, é reiterado e se faz presente nas narrativas e nas<br />

praticas dos praticantes da escola do noturno. Não podemos negar que esse<br />

discurso representacional da escola diurna produz oposições, diferenças e<br />

desigualdades.<br />

Assim, como no turno do dia, os alunos dos espaços rurais justificam os<br />

baixos índices de desempenho da escola, no noturno, os alunos da Educação<br />

de Jovens e Adultos são responsabilizados pelo fracasso e pelo modo de se<br />

relacionar com o tempo-escolar, com o tempo-corpo-produtivo, com o tempo-<br />

conhecimento, o que é articulado pelo currículo escolar. Fica parecendo que se<br />

as técnicas de disciplinarização dos corpos dos alunos da Educação de Jovens<br />

e Adultos passarem por processos que ao ignorem suas singularidades e tenha<br />

no mesmo à referência normativa para o tempo-produtivo, que os ditos<br />

problemas de ritmo e de aprendizagem deixaram de existir, tornando os alunos<br />

23 Estou usando outros-outros na tentativa de dizer que a todo o momento outros e outros estão sendo<br />

capturados pelos modos de comparação.


da Educação de Jovens e Adultos o outro, sendo justamente a produtividade<br />

ou a improdutividade de seu corpo e do seu não-saber.<br />

A questão é da lentidão. A diferença que produz desigualdades nesse<br />

momento se apoia na idade desses alunos e nos discursos da biologia,<br />

produzindo significações. Ser lento significa não ser produtivo, significa estar<br />

fora do centro, significa ser ex-centrico. Como já mencionei, a diferença é<br />

produzida sempre numa relação. Ainda que o aluno do curso noturno se veja<br />

ocupando posições de fronteira entre a norma e o desvio, o mesmo reivindica o<br />

centro e a juventude como referência de qualidade e produtividade.<br />

213<br />

O que interessa para muitos que estão na escola é o corpo jovem e belo.<br />

É o corpo sendo produzido para ser mostrado. O corpo jovem é tão valorado na<br />

Escola, que no aniversário da escola se elege o Garoto e a Garota Polivalente.<br />

É um verdadeiro espetáculo! Esse espetáculo de corpos belos ao mesmo<br />

tempo em que instala desejos em muitos em fazer parte, elimina e exclui outros<br />

e tantas outras formas de ser belo.<br />

Ainda que esses outros<br />

tenham a juventude em seus corpos,<br />

são eliminados antes mesmo de<br />

concorrer aos ditames da beleza.<br />

Ser jovem não é condição suficiente<br />

para participar desse concurso. É<br />

preciso muito mais! É preciso ter<br />

carisma, aceitabilidade dos grupos,<br />

dos pares, dos professores e uma<br />

estética corporal/facial/teatral que<br />

corresponda a uma forma de ser<br />

belo, de se mostrar e se fabricar belo.<br />

Imagem 30 – Um corpo


Muitos querem desse concurso participar e, ainda que não se<br />

enquadrem no formato de beleza esperado pelo concurso, criam expectativas<br />

sobre o outro e reprovam os que destoam de seus ideais de beleza. Como<br />

pude ouvir:<br />

214<br />

- Vê se pode uma coisa desta! (risos) Aquela aluna quer desfilar. Ela perdeu a noção<br />

do ridículo. Aí é vaiada na passarela e a gente é que paga o preço por ter deixado ela<br />

se expor. É muito sério esse comportamento de reprovação dos alunos. Precisamos<br />

como os nossos desfiles trabalhar com a idéia de que todos são bonitos, mas que os<br />

padrões de beleza exigem uma forma que nem todos possuem. Complicado isso né?<br />

Os alunos formam torcidas a favor de um<br />

amigo e contra tantos outros. O que movimenta<br />

essas torcidas são as relações de amizade e<br />

proximidade entre os alunos. Os alunos da escola<br />

participam ativamente desse momento, participam<br />

torcendo, aplaudindo, com coreografias e músicas<br />

a favor de seus preferidos. Essas torcidas<br />

organizadas, inflamadas por suas preferências,<br />

organizadas a partir de afinidades complexas,<br />

manifestam publicamente seus posicionamentos<br />

sobre o outro, realçando valores de amizades, de<br />

estéticas, de preconceitos, estigmas e<br />

discriminações.<br />

Ilustração 31 – Mais um corpo<br />

A ambiguidade também se faz presente nesse desfile e o sentido de<br />

beleza vai-se manifestando e se apresentando mediante as relações afetivas<br />

entre os alunos e os concorrentes. Assim, vamos compreendendo que beleza<br />

no interior da escola, antes de ser algo posto e definido pelos padrões culturais<br />

em circulação, é algo que vai se definindo mediante as relações afetivas<br />

estabelecidas entre os concorrentes, a torcida organizada e o corpo de jurados.<br />

As torcidas organizadas, cada uma ao seu modo, se valendo de diferentes<br />

artefatos que produzem efeitos sobre os jurados, influenciam e muito no<br />

resultado desse concurso. Ainda que aparentemente o poder de escolha esteja<br />

posto sobre o julgo e neutralidade dos jurados escolhidos para esse concurso,<br />

os mesmos vão sendo influenciados pelo ovacionismo da força da torcida a


favor de um dos candidatos, muitas vezes extrapolando um ideal de beleza e<br />

apostando na amizade e prestigio como elemento diferenciador das regras.<br />

Os meninos e meninas investem muito em seus corpos para participar<br />

desse concurso de beleza na escola. A maioria dos meninos e meninas que<br />

participam desse concurso dedicam tempo em academias para produzir o<br />

corpo desejado e esperado. O corpo para ser mostrado, o corpo identidade,<br />

corpo distinção, corpo que vale. Durante um ano, o Garoto e a Garota Polivante<br />

tornam-se referência de beleza da escola e objeto de desejo. Como um dos<br />

eleitos me disse: Esse ano é meu. Não tem para ninguém! As gatinhas ficarão<br />

na minha.<br />

215<br />

O corpo do sujeito pedagógico é um corpo produzido, incitado e<br />

fabricado. Todos estão de olho nesse corpo na escola. Esse concurso de<br />

beleza é tão contagiante e está tão presente no imaginário social dos que estão<br />

envoltos a esta escola, que nem os alunos da escola primária, que ainda não<br />

estudam nessa escola, escapam das representações produzidas pelas forças<br />

desejantes desse concurso de beleza. A exemplo disso, busco uma criança,<br />

aluno de uma escola primaria em que trabalho, que enlaçado a força desse<br />

momento da escola e vendo seu irmão se projetando nesse desfile, via Orkut 24 ,<br />

deixa postado:<br />

24 Orkut: site de relacionamento.<br />

Ilustração 32 - Comunicações paralelas


Não só de palavras se produz o sujeito pedagógico. É preciso de outras<br />

linguagens, outros afetos e desejos. O sujeito capturado pelas tecnologias de<br />

dominação e de controle é uma fabricação que os significados culturais e<br />

sociais a ele atribuem, ou seja, o corpo é o que dele se diz, efeito e resultado<br />

de linguagem.<br />

Para concluir esse texto, pensando o sujeito pedagógico atrelado às<br />

narrativas do centro e das margens como fronteiras que desestabilizam nossas<br />

verdades, busco ajuda em Goellner (2003, p.49), para pensar essa produção<br />

dos corpos dos sujeitos pedagógicos, sua materialidade e representações.<br />

Essa autora lança um alerta para os diferentes agenciamentos que estão à<br />

volta da produção do corpo forma-perfeita. A escola é só mais um espaço de<br />

produção de sujeitos pedagógicos “[...] uma vez que diferentes dispositivos<br />

culturais como filmes, músicas, revistas e livros, imagens, propagandas são<br />

também locais pedagógicos que estão o tempo todo, a dizer de nós, seja pelo<br />

que exibem ou pelo que ocultam.”<br />

Pegando carona na problematização de Gollner (2003), no que diz<br />

respeito aos diferentes dispositivos postos em circulação nas redes de<br />

produção e efetivação de um corpo-forma, destaco que a escolha de uma<br />

beleza-forma na escola, contribui de forma significativa para a formação de um<br />

ideal a ser perseguido a qualquer preço pelos sujeitos encarnados e<br />

autodisciplinados da escola. Essas redes desejantes que tomam o corpo por<br />

referência colocam em ação várias tecnologias de governo e esses processos<br />

de produção de sujeitos materizalizados no corpo que pode e deseja ser visto<br />

“prosseguem e se complementam através de tecnologias de<br />

autodisciplinamento e autogoverno que os sujeitos exercem sobre si.” (LOURO:<br />

2001, p. 25). Capturados nessa tarefa de ideal de beleza, muitos alunos vão<br />

correspondendo a essa ordem produtiva de subjetividades e muitos outros vão<br />

sendo eliminados por dentro dessa prática.<br />

216


217<br />

5. Tempos e práticas embolados nas políticas de educação e nos<br />

Parâmetros Curriculares Nacionais: a <strong>sexualidade</strong> e a cidadania como<br />

campo de problematização e investimento educativo<br />

Trabalhando nesse momento com a noção de tempo misturado e<br />

embolado, com o isso e aquilo da escola e de suas políticas, posso sentir que<br />

da escola que busquei da infância na condição de aluno para tecer alguns<br />

sentidos nesse trabalho, para a escola que hoje pratico na condição de<br />

professorpesquisador, passaram-se poucos anos. Mas, nesse tempo,<br />

praticando a escola e os seus currículos, posso perceber e sentir que muitas<br />

coisas estão se movimentando e alterando o trato com a <strong>sexualidade</strong> nas<br />

políticas de governo dos sujeitos escolares. A partir do que se pode considerar<br />

por mudanças no que diz respeito as políticas educativas, principalmente no<br />

campo do currículo, lanço perguntas: que questões estão postas como<br />

realidades vivas que fazem com que a temática da <strong>sexualidade</strong> venha a ocupar<br />

destaque nas propostas e nas políticas curriculares? que mudanças podem se<br />

fazer sentir entre a escola que vivi na infância, para a escola que hoje pratico e<br />

experimento na condição de professor-pesquisador? as mudanças são reais,<br />

ou não passam de retóricas e de novas formas de governos? que fatores<br />

abalam as estruturas pedagógicas da escola para que a temática da<br />

<strong>sexualidade</strong> seja vista com olhares que nos fazem avançar dos limites sexo-<br />

procriação, para as questões que nos ligam ao prazer e à responsabilidade<br />

com o eu e o outro? Que discursos/teorias/textos/consensos/discensos/bom<br />

sensos estão postos nas tramas educativas para que a <strong>sexualidade</strong> venha a<br />

ser tratada como algo fundamental para o desenvolvimento dos sujeitos<br />

pedagógicos?<br />

Aproximando-me de respostas que não são neutras, podemos pensar<br />

esse investimento como sendo biopolítico, uma vez que suas ações<br />

pedagógicas e seus projetos buscam a vida da população e sua potência<br />

expansiva, as diretrizes de seus encaminhamentos e de suas razões de existir.<br />

Nesse tempo embolado de falas, julgamentos, narrações e exames, podemos<br />

perceber sem muita dificuldade a partir dos espaços instituídos e instituintes de<br />

se desejar outra vida para muitos, que reivindicações e lutas históricas de


diferentes grupos sociais, tidos em alguns momentos e por alguns, como<br />

minoritários, começam a se fazer presentes e a entrar a meio caminho nas<br />

pautas das políticas de educação e, nessas, a <strong>sexualidade</strong> e sua<br />

problematização enquanto demanda expansiva e forma de governo se faz<br />

presente. Essas lutas, com reivindicações pontuais e trazendo as marcas de<br />

diferentes desejos de existência, ao serem escritas nos documentos oficiais e<br />

postas em circulação na sociedade e na escola, tomam como foco o<br />

reconhecimento e os discursos que elegem a cidadania como eixo de<br />

discussões.<br />

218<br />

Tendo na cidadania um fio condutor de debates e de práticas<br />

legitimadas pela sociedade no que diz respeito à emergência da <strong>sexualidade</strong> e<br />

não só, no governo do então Presidente da República Fernando Henrique<br />

Cardoso, foram produzidos e distribuídos às escolas brasileiras os Parâmetros<br />

Curriculares Nacionais, mais conhecidos entre os professores como PCNs<br />

(1997). Nas palavras do então Ministro da Educação e do Desporto Paulo<br />

Renato, em sua carta de apresentação desse documento Curricular aos<br />

professores, pode-se compreender os porquês da entrada da temática<br />

Orientação Sexual no currículo escolar e de outros temas considerados<br />

emergentes.<br />

Por emergentes, estamos compreendendo um cenário cambiante e<br />

complexo de demandas políticas no eixo da cidadania e da democracia,<br />

ligando-as ao desejo de participação, de pertencimento e contemplação. Nesse<br />

cenário de negociações e de lutas, muitos grupos minoritários foram<br />

convidados a participar e contribuir, imprimindo nos usos de seu poder,<br />

marcas, demandas e conceitos nos currículos escolares com suas<br />

reivindicações políticas. Fora contemplado na emergência desse documento<br />

curricular, eixos transversais ligados a Pluralidade Cultural, a Ética, a<br />

Cidadania, a Saúde e ao Meio Ambiente, com o objetivo de fortalecer os<br />

conhecimentos tradicionalmente já trabalhados pela escola. Segundo o ministro<br />

Paulo Renato (1997), o objetivo da elaboração e divulgação desse documento<br />

[PCNs] se concretiza na busca de auxiliar os professores em seu compromisso


diário de fazerem com que as crianças brasileiras cresçam e se desenvolvam<br />

conscientes e reconhecidos como cidadãos de direito em nossa sociedade.<br />

Os Parâmetros Curriculares Nacionais, trazendo em seus enunciados os<br />

discursos da <strong>sexualidade</strong> como transversalidade curricular e nomeando esse<br />

componente por „Orientação Sexual‟, vem sendo alvo de crÍticas. Essas críticas<br />

partem da premissa de que seu conteúdo nada mais é de que um recorte e<br />

colagem de documentos curriculares de outros países, especificamente da<br />

Espanha. Ainda que professores e professoras não se sintam contemplados na<br />

construção efetiva e afetiva desse documento, não podemos negar que sua<br />

chegada, sua circulação e sua leitura enquanto política de governo da<br />

população não tenha produzido mudanças e redirecionamentos nas práticas de<br />

professores e de alunos no trato com a questão da <strong>sexualidade</strong>. Ao pensarmos<br />

esse documento como espaço de conversa e de problematização, não<br />

podemos desvinculá-los dos processos de lutas que foram se dando ao longo<br />

do século XX, no reconhecimento dos princípios de solidariedade que nos<br />

conectam à nossa condição humana. Dentre essas lutas, podemos ir<br />

percebendo por dentro desse documento, no texto que o enreda e lhe dá uma<br />

forma e um tom acadêmico, a polissemia e polifonia dos movimentos feministas<br />

e culturais que desafiam e desestabilizam a idéia de corpo, de gênero, de<br />

saúde e de classe. Essa polifonia põe em xeque os discursos da <strong>sexualidade</strong><br />

normativa e as posições desiguais de grupos minoritários nas decisões e nas<br />

relações de poder no campo do currículo e das práticas educativas. Para além<br />

das respostas desse documento, que se aproximam de marcos das lutas dos<br />

movimentos feministas, dos movimentos gays e lésbicos, dos estudos culturais<br />

e do corpo, podemos perceber que a produção aligeirante de políticas públicas<br />

diretivas para o campo da saúde educativa, justificam-se, uma vez que, a partir<br />

dos anos oitenta, a demanda por:<br />

219<br />

[...] trabalhos na área da <strong>sexualidade</strong> nas escolas aumentou devido à<br />

preocupação dos educadores com o grande crescimento da gravidez<br />

indesejada entre as adolescentes e com risco de contaminação pelo<br />

HIV (vírus da AIDS 25 ) entre os jovens. (Brasil, 1997, p.111)<br />

25 AIDS ou SIDA é a sigla correspondente à Síndrome da Imuno Deficiência Adquirida. É um conjunto<br />

de sintomas ligados à perda das defesas do organismo. A AIDS é causada pelo vírus chamado HIV (Vírus<br />

da Imuno deficiência humana), que ataca os mecanismos de defesa do corpo humano. O HIV pode ser<br />

transmitido por entrada, na corrente sangüínea, de fluidos sexuais, sangue ou leite materno contaminados.


Corroborando o pensamento e com os princípios que orientam a<br />

organização do documento (PCNs) e a política de governo, vamos tendo no<br />

Estado de Minas Gerais e especificamente nas Escolas Referências, a<br />

<strong>sexualidade</strong> como um componente curricular estruturado no Programa de<br />

Educação Afetivo Sexual (PEAS). Interessado nesse projeto pela sua temática<br />

e participando de algumas de suas oficinas, pude ouvir falas que reiteram a<br />

aceitação e a aposta desse documento e dessa política no interior da escola e<br />

suas ressonâncias na comunidade.<br />

Aluna:<br />

Aluno:<br />

220<br />

Eu sou do PEAS 26 . No PEAS a gente fala abertamente de <strong>sexualidade</strong>. No PEAS a<br />

gente aprende a dialogar e a falar corretamente sobre nossos desejos. Em nossa idade<br />

somos cheias de inseguranças. No PEAS, aprendemos a falar abertamente sobre<br />

<strong>sexualidade</strong> em casa. Os nossos pais não sentam para conversar com a gente sobre<br />

gravidez. Não são os pais que falam sobre isso com a gente, mas, a gente que tem<br />

falado sobre isso com os nossos pais. Na minha rua tem uma menina de treze anos<br />

grávida. Na verdade vai ser uma criança cuidando de outra criança.<br />

Gosto de fazer parte do PEAS não só pelas questões da <strong>sexualidade</strong>, mas, também<br />

pela questão da amizade e o PEAS me afasta de meus preconceitos.<br />

Diretora:<br />

Eu acredito no PEAS. A escola não é só feita de tijolos, livros e disciplinas. A escola é<br />

feita de gente, de relações e de amizade.<br />

Valendo-nos das pistas deixadas pelos sujeitos envolvidos com o<br />

Programa de Educação Afetivo Sexual, poderíamos tentar entender o que<br />

significa falar abertamente e corretamente sobre <strong>sexualidade</strong>? Estamos<br />

compreendendo que a <strong>sexualidade</strong> está atrelada a muitos discursos e estes<br />

estão postos no cotidiano das famílias através das diferentes pedagogias<br />

culturais que interpelam e produzem os sujeitos educativos e os sujeitos da<br />

<strong>sexualidade</strong>. Por pedagogias culturais, estamos compreendendo os artefatos<br />

culturais que agenciam os sujeitos da educação na produção de desejos, de<br />

afetos e muito mais. Essas pedagogias culturais se fazem presentes nos textos<br />

das novelas, dos filmes, dos desenhos animados, das propagandas, dos<br />

telejornais, nas roupas, nos acessórios, nos brinquedos, na literatura, nos livros<br />

didáticos, na organização familiar, na escola e em tantos outros lugares. Será<br />

possível então falarmos em casa e na escola abertamente e corretamente<br />

sobre „Orientação Sexual‟, sem cairmos no perigo da Educação Sexual, uma<br />

vez que vamos deparando com os nossos limites para pensarmos e vivermos<br />

26 Programa de Educação Afetivo Sexual. Desenvolvido em Minas Gerais nas escolas referências.


a(s) <strong>sexualidade</strong>(s), para pensarmos a gravidez na adolescência e as doenças<br />

sexualmente transmissíveis, em destaque, a AIDS.<br />

221<br />

Esse documento abre-nos possibilidade de vivermos de forma criativa as<br />

subjetividades e com elas as posições de sujeitos que possam assumir a<br />

<strong>sexualidade</strong> na escola? Ou esse documento nos propõe a partir de outros<br />

discursos considerados politicamente corretos a continuarmos normatizando,<br />

relatando, descrevendo, examinando, classificando, corrigindo os corpos, os<br />

gêneros e as <strong>sexualidade</strong>s no interior da escola? Ou... será sempre, isso mais<br />

aquilo? Esse documento, componente curricular transversal, tentando<br />

responder a essa demanda do trato da Orientação Sexual na escola, nos induz<br />

a pensar que seu discurso está antenado com a complexidade da vida, das<br />

relações entre as pessoas e com as diferentes matrizes de pensamento e<br />

conhecimento que lhe dão sustentação. A argumentação desse documento<br />

para o trabalho de Orientação Sexual na escola, busca considerar que na<br />

escola, o aluno poderá encontrar um espaço de informações e de formação<br />

concernentes com o seu desenvolvimento, com suas dúvidas e curiosidades,<br />

ao mesmo tempo em que se encontra com o outro e com as singularidades<br />

desse outro. Esse documento visa a pensar:<br />

[...] a <strong>sexualidade</strong> como algo inerente à vida e à saúde, que se<br />

expressa desde cedo no ser humano. Engloba o papel social do<br />

homem e da mulher, o respeito por si e pelo outro, as discriminações<br />

e os estereótipos atribuídos e vivenciados em seus relacionamentos,<br />

o avanço da AIDS e da gravidez indesejada na adolescência, entre<br />

outros, que são problemas atuais e preocupantes. (BRASIL, 1997,<br />

p.107)<br />

Vamos percebendo que a intenção primeira desse documento, muito<br />

„bem escrito e planejado para os professores‟ visando à sua atualização<br />

profissional, como um campo de direito, expresso como ordem nas palavras do<br />

Ministro Paulo Renato, busca sair dos limites corpo-biológico, corpo-<br />

reprodução, para incluir as dimensões históricas, culturais, emocionais e<br />

afetivas contidas nesse corpo sexualizado, situado e datado.<br />

Num encontro de certificação dos alunos do PEAS, ocorrido na escola<br />

em 2007, pude ouvir um discurso promissor da professora coordenadora e


articuladora das ações desse projeto na escola, que vão de encontro com os<br />

preceitos da moral política dos Parâmetros Curriculares de Orientação Sexual.<br />

Ilustração 33 - Certificando os protagonistas do PEAS<br />

222<br />

_ Nós somos corpo, corpo em movimento. Nós somos corpo em processo. Desde o<br />

útero querem saber se somos meninos ou meninas e assim vamos sendo chamados a<br />

ocupar papéis masculinos ou femininos. Somos convidados a ocupar papéis. Agora a<br />

questão de gênero é uma questão emocional. O PEAS não está aqui para educar. Nós<br />

nos educamos juntos. Vocês são os protagonistas.<br />

O corpo, de acordo com essa matriz de pensamento, passa a ser tratado<br />

como sendo constituído por uma complexidade que envolve o biológico, o<br />

psíquico e o sociocultural. Essas três dimensões, ao se enredarem e<br />

produzirem outros sentidos para o entendimento que se deseja da ideia de<br />

corpo, da condição de gênero, de saúde e de doença poderá contribuir para<br />

ampliar a „consciência‟ dos sujeitos cidadãos da escola, sobretudo o que diz<br />

respeito ao autocuidado e à preservação saudável desse corpo. Podemos<br />

perceber que as formas binárias de se conceber a vida e a morte continuam se<br />

fazendo presentes nesse documento. Saúde e doença nesse documento são<br />

tomadas como opostos conforme os discursos médicos que historicamente<br />

conhecemos. Ou se tem saúde porque perseguida, ou não a tem. Na<br />

companhia de Barros e Pinto (2009), estamos compreendendo por saúde, a<br />

capacidade de movimento, de mobilidade, de articulação com outras formas de<br />

expandir a vida e, com isso, a doença está presente como elemento<br />

constitutivo do vivo. Perseguimos como aposta expansiva um preceito que nos<br />

ensina que vivemos de morte e morremos de vida. Barros e Pinho (2009),


problematizando as dicotomias tradicionalmente articuladas entre saúde-<br />

doença, vida-morte, ponderam:<br />

223<br />

Falamos em saúde quando nos referimos a capacidade de enfrentar<br />

as variações do meio criando novas regras para a vida. Nas regras<br />

da vida também está incluída a doença, mas como regra que pode<br />

ser vencida. Ser saudável é enfrentar e transformar as adversidades,<br />

o que não quer dizer conformismo, ao contrário, é lutar para superar<br />

uma situação opressora. Ter saúde e, então, produzir perguntas<br />

desmanchando regras já dadas quando elas não servem mais de<br />

oxigênio para a saúde, é perguntar a partir da inquietação que nos<br />

toma o adoecer e perder essa inquietude.<br />

O convite da professora coordenadora do Projeto de Orientação<br />

Sexual/PEAS é para que o aluno ao se conscientizar sobre as possibilidades e<br />

riscos da experiência com a <strong>sexualidade</strong> e com as práticas sexuais passe a ser<br />

o protagonista de suas histórias e de suas escolhas, ao mesmo tempo em que<br />

se responsabiliza pelo outro. Um responsabilizar, porém, que não vê na doença<br />

outras alternativas, outras formas de perguntas, de outras possibilidades, mas,<br />

como um fatalismo. A doença torna-se um fim, um mal a ser extirpado a todo<br />

custo de nossa sociedade, de nossas casas e de nossas escolas. Nesse<br />

fatalismo, pode-se ver encerrado ou limitado os espaços da pergunta e das<br />

inquietações na expansão da vida. Como protagonista de sua vida, de nossa<br />

vida, adoecer seria crime e castigo, resultado de um mau gerenciamento do<br />

corpo, dos comportamentos, dos desejos e do prazer. No prosseguimento da<br />

importância do protagonismo juvenil, ainda se faz ouvir:<br />

_ Precisamos de vocês para estabelecer relações entre os colegas de vocês e os<br />

professores. Vocês possuem uma linguagem que é de vocês. O que eu tenho<br />

dificuldades de falar, vocês de forma simples conseguem. Vocês têm o compromisso<br />

de levar adiante o PEAS. Os alunos PEAS estão na frente de qualquer projeto da<br />

escola, como os de dança, capoeira e teatro. Estou ouvindo professores dizendo:<br />

“Fulando mudou tanto!”. Eu sei que o PEAS tem contribuído para isso. O projeto PEAS,<br />

é um trabalho de resgate. Quem é PEAS, tem objetivo. Queremos ser felizes. Ser feliz<br />

depende de você, todos nós fomos criados para sermos felizes. A gente defende a<br />

vida. De vez enquanto me chega um aluno e pede para trazer um coleguinha para o<br />

projeto. Aí eu digo: Que bom que você pensa no seu amigo. Quem é meu aluno sabe<br />

que eu levo o PEAS para dentro de sala. É muito bom.


ilustração 34 - Mudanças<br />

O protagonismo juvenil, combinando cooperação e individualismo se<br />

sustenta no texto dos PCNs, produzidos para os professores através do<br />

exercício diário de tomada de „consciência‟ dos alunos com a <strong>sexualidade</strong>, da<br />

seguinte maneira:<br />

224<br />

A escola deve informar e discutir os diferentes tabus, preconceitos,<br />

crenças e atitudes existentes na sociedade. Buscando, se não uma<br />

isenção total, o que é impossível de conseguir, uma condição de<br />

maior distanciamento pessoal por parte dos professores para<br />

empreender essa tarefa. Por exemplo, na discussão sobre a<br />

virgindade entre um grupo de alunos da oitava série com seu<br />

professor abordam-se todos os aspectos e opiniões sobre o tema,<br />

seus significados para meninos e meninas, pesquisam suas<br />

implicações em diferentes culturas, sua conotação em diferentes<br />

momentos históricos e os valores atribuídos por distintos grupos<br />

sociais contemporâneos. Após essa discussão é uma opção pessoal<br />

do aluno tirar (ou não) uma conclusão sobre o tema virgindade<br />

naquele momento, não sendo necessário explicitá-la para o grupo.<br />

Já no espaço doméstico o mesmo tema, quando abordado, suscita<br />

expectativas e ansiedades dos pais, questões muito diferentes das<br />

discutidas em sala de aula. (BRASIL, 1997, p.122)<br />

Fica parecendo que esse documento ainda espera ver nas práticas e no<br />

trabalho da escola e dos professores a requerida neutralidade e um<br />

distanciamento no tratamento e dos temas que nos ligam aos discursos da<br />

<strong>sexualidade</strong>. Essa neutralidade ou distanciamento, porém, vai sendo<br />

depositada sobre a responsabilidade dos alunos jovens. Eles, sim, nascidos na


complexidade desse tempo, sabem falar sobre isso! E os jovens destituídos por<br />

muito tempo do direito de voz e de escolhas, passam a ser os protagonistas<br />

das políticas de governo, pelo simples fato de saberem falar à língua que<br />

outros jovens entendem. Estamos nessa empreitada do protagonismo juvenil,<br />

sutilmente, reproduzindo outras formas de governo e de autogoverno,<br />

revestindo e depositando no aluno/jovem, no aluno que leva para os outros,<br />

para a comunidade e sua família uma autoridade normativa apreendidas,<br />

informada, formada com os discursos e as ações normativas desse projeto.<br />

225<br />

Não sei, se na condição de professores, é preciso, ou se é possível esse<br />

distanciamento, no que diz respeito aos nossos pontos de vistas! Cada vez<br />

mais, estou compreendendo que os professores vistos nesse momento, nas<br />

políticas educacionais como sujeitos históricos e sujeitos de <strong>sexualidade</strong>s,<br />

precisam se deixar enredar pelas questões que também se apresentam como<br />

problemas em suas práticas pedagógicas e em suas vidas. Não precisamos<br />

nos isentar e muito menos nos distanciar de nada, precisamos nos aproximar,<br />

nos enredar, nos relacionar, expandir e nos deixar ser tocados pela<br />

complexidade dos que passam em nossas vidas! Somos sujeitos históricos e,<br />

por isso, nos nossos não-saberes e em nossos saberes poderia residir uma<br />

boa oportunidade de aprendizagem coletiva, empreendidas nas relações de<br />

cooperação com nossos alunos, nas experiências que brotam dessas relações<br />

e das crises de compreensão. Trabalhar a <strong>sexualidade</strong> é trabalhar com<br />

conflitos e não com a requerida harmonia, pois, no trato das questões da<br />

<strong>sexualidade</strong>, diferentes forças e relações de poder se cruzam, distanciam,<br />

aproximam e produzem novos encadeamentos, novas perguntas, novas<br />

dúvidas.<br />

Numa rodinha de alunas PEAS, numa conversa embolada que rolava<br />

sem roteiro definido e com muitos fios de pensamento e dúvidas sobre<br />

virgindade, pude ouvir de um grupo de alunas, erguidas a condição de<br />

protagonistas a seguinte conversa:<br />

_ Antigamente perder a virgindade... Virgindade não é selo de segurança.<br />

_ As meninas se sentem inseguras para fazer sexo e os meninos comentam. A gente<br />

fica falada.


226<br />

_ Os professores só sabem falar com a gente sobre as doenças sexualmente<br />

transmissíveis.<br />

_No PEAS, a gente fala sobre a vida, a adolescência e tudo mais.<br />

_ Eu só posso fazer sexo com camisinha. Sou alérgica a quase todos os remédios. Isso<br />

quem falou foi meu médico!<br />

_Aqui na escola só oferecerem o PEAS para os que querem e, no PEAS só<br />

permanecem os „mais cabeças‟.<br />

_Por que será que dizem que homem faz sexo e mulher faz amor?<br />

_ A gente tem uma relação mais aberta com nossas amigas do que com nossas mães.<br />

_Meu pai fala assim: Você só pode namorar quando fizer quinze anos. Enquanto isso,<br />

namoro escondido.<br />

_No PEAS a gente aprende que no amor não existe diferença.<br />

_ Os meninos julgam a gente, eles acham que é difícil a gente ser virgem.<br />

_ Se meu pai vê a gente aqui conversando, vai logo chamar a gente de frescas.<br />

Ilustração 35 - Coisas de meninas?<br />

Parece-me que a contradição e a complexidade se fazem presente nas<br />

conclusões e enredamentos de nossos alunos em suas experiências com a<br />

<strong>sexualidade</strong>. Em seus discursos uma moral policiada, ainda que contestada,<br />

vai aparecendo trazendo os discursos da medicina, das relações machistas, do<br />

desenvolvimento, do controle da população através de métodos contraceptivos,<br />

de amor, de afeto e da amizade.<br />

A educação escolar é um ato diretivo e político não nos restam dúvidas<br />

disso. Aposto e valido o trabalho de Orientação Sexual nas escolas. Uma vez<br />

que esse trabalho possa acontecer a partir das redes de significados entre os<br />

sujeitos da escola permitindo o encorajamento de professores e alunos, no<br />

encontro com o outro e com as razões do outro, ao viver e problematizar suas


crises de compreensão sobre a <strong>sexualidade</strong>, sobre a vida e muito mais.<br />

Acredito poder existir na escola, um trabalho permanente de Orientação<br />

Sexual, para se pensar a vida expansiva „sem programa‟, como o que estava<br />

acontecendo na conversa que pude participar junto às alunas PEAS. Nessas e<br />

dessas redes de relações problematizadoras, pudéssemos sem um roteiro,<br />

irmos desconstruindo e problematizando, no encontro com o outro os muitos<br />

tabus, mitos e crenças que nos constituem como sujeitos de experiências com<br />

a <strong>sexualidade</strong> e com a vida. Tomando o devido cuidado, para que nossas<br />

intervenções não venham ocupar um lugar de poder e de verdade única sobre<br />

a <strong>sexualidade</strong>, sobre os comportamentos e sobre as apostas e atitudes de<br />

nossos alunos, não nos é possível assumirmos a desejada neutralidade e<br />

distanciamento em nossas práticas, em nossas falas, em nossas leituras, em<br />

nossas escolhas. Até as nossas deixas e os nossos silêncios dizem coisas.<br />

Esse distanciamento preconizado pelos PCNS do professor sobre as<br />

conclusões dos alunos parece-me contradizer os objetivos do trabalho de<br />

Orientação Sexual, previsto nesse documento.<br />

227<br />

Em sua leitura posso perceber a indicação de um preceito importante em<br />

que o eu e o outro, com toda a sua carga de diferenças, tornam-se elementos<br />

necessários na produção das redes cotidianas de solidariedades e das<br />

aprendizagens que poderão acontecer nos conflitos das experiências com a<br />

<strong>sexualidade</strong> no que ela abarca: saberes, relações, prazeres, desejos,<br />

responsabilidade, cidadania, diversidade, saúde, doenças, gravidez, culturas,<br />

histórias, discursos, crenças, mitos, tabus, preconceitos, cuidado, respeito,<br />

diferença, gênero, corpo etc.<br />

Recorrendo aos objetivos prescritos no trabalho de Orientação Sexual<br />

dos PCNs, podemos notar que nenhum detalhe fora esquecido dos discursos<br />

da <strong>sexualidade</strong>, uma vez que nesse documento ao tratar da Orientação sexual<br />

na escola, em seus blocos de conteúdos, amarram-se a materialidade do corpo<br />

como matriz da <strong>sexualidade</strong>, as relações e condições de gênero e as doenças<br />

sexualmente transmissíveis. Podemos ler:


Ilustração 36 - Sonhos e utopias<br />

228<br />

O objetivo do trabalho de Orientação Sexual é contribuir para que os<br />

alunos possam desenvolver e exercer sua <strong>sexualidade</strong> com prazer e<br />

responsabilidade. Esse tema vincula-se ao exercício da cidadania na<br />

medida em que, de um lado, se propõe a trabalhar o respeito por si e<br />

pelo outro, e, por outro lado, busca garantir direitos básicos a todos,<br />

para a formação de cidadãos responsáveis e conscientes de suas<br />

capacidades. (BRASIL, 1997. p. 133)<br />

Na escola em que vivi na infância, ainda que em muitos momentos da<br />

experiência educativa na produção do corpo escolarizado, essas questões que<br />

foram postas como objetivo do trabalho de Orientação Sexual pelos PCNs,<br />

pudessem se fazer presente entre os alunos como segredo, essas<br />

problemáticas eram abafadas com a força moral dos discursos normativos que<br />

indicavam que ainda não era o momento para se pensar e viver a <strong>sexualidade</strong>.<br />

O corpo que valia para se pensar na escola da experiência que vivi na<br />

infância, era um corpo que se ligava à reprodução da espécie, porém um corpo<br />

que esperaria a hora de seu desenvolvimento, para sentir desejo e prazer. O<br />

corpo, como matriz de afeto, de afetividade, de desejo e de prazer, não existia<br />

para a escola, muito menos as questões de gêneros eram pensadas como<br />

condição de trabalho e problematização pelos educadores. Lembro-me de que<br />

com muito cuidado e muito jeito, os livros de ciências naturais, ao tratar do<br />

corpo o fragmentava num organismo máquina, limitando a <strong>sexualidade</strong> que se<br />

podia pensar na escola aos aparelhos reprodutivos. E, nos limites para se


pensar <strong>sexualidade</strong> entre crianças e jovens, vamos presenciando e percebendo<br />

fios que nos prendem a escola de outros tempos.<br />

Transitando nas rodinhas de alunos, especificamente de meninas,<br />

direcionei o olhar de um grupinho, para que vissem e observassem um grupo<br />

de meninos que conversavam num canto da escola, lançando-lhes a seguinte<br />

provocação:<br />

_ Será sobre o que aqueles meninos tanto conversam? Uma aluna, rapidamente respondeu:<br />

_ Aposto que é sobre aquela foto do nosso livro de ciências.<br />

Ilustração 37 – Não é só isso!<br />

229<br />

Com essa resposta, fiz o convite ao grupo de meninas para que<br />

aproximássemos dos meninos e de que nos apropriássemos se aceitos<br />

fossemos, daquele espaço de conversa e daquela conversa. Ao nos<br />

aproximarmos dos meninos, pudemos perceber que o papo era outro. Não<br />

tinha nada que pudesse remeter à famosa e tradicional imagem do livro de<br />

ciências que conhecera ainda na infância e nas aulas de ciências da escola<br />

primária. No grupo de meninos, pudemos saber que eles tinham algo para fiar<br />

conversas, que naquele momento parecia muito mais instigante. Conversavam<br />

sobre o filme “Cidade de Deus”, que havia passado na TV no dia anterior. E<br />

nos disseram:


Ilustração 38- Atravessamentos culturais<br />

_Estamos falando do filme que passou na televisão.<br />

_Estamos falando de drogas, de tráfico, de maconha, de favela, de pobreza.<br />

_ Estamos jogando conversa fora.<br />

Já que a conversa pegou um fio do texto fílmico, logo outro assunto,<br />

carregado de humor e riso foi trazido para aquela roda de conversantes:<br />

230<br />

_ Você viu professor o Casseta e Planeta?<br />

_Bagunçaram com a educação!<br />

_Colocaram uma sala cheia de alunos indisciplinados, jogando papelzinho, batucando<br />

nas carteiras e uma professora bem gostosa dando aula de biologia. Ela tentava<br />

explicar sobre reprodução. Não conseguindo explicar ela chamou um aluno para<br />

debaixo da mesa e fizeram amor! Depois da aula prática de reprodução ela cobrou cem<br />

reais do aluno e disse assim: _Vai pagando, pois professor não ganha o suficiente para<br />

dar aula prática de reprodução. O aluno pagou e disse: _Agora eu sei tudo sobre a<br />

reprodução.<br />

Existe uma mudança no tempo da informação/formação e dos veículos<br />

de informação/formação entre a escola e os sujeitos da escola que vivi na<br />

infância e na adolescência, com os sujeitos da escola do presente. As imagens<br />

postas nos livros de ciências parecem não causar mais o riso e a curiosidade<br />

dos meninos, pelo menos para esse grupo de jovens. Outras formas mais<br />

irreverentes, com outros conceitos e outras críticas de se pensar a condição<br />

docente, a <strong>sexualidade</strong> e a reprodução vão sendo editadas no texto televiso e<br />

esse adentra o espaço da escola, não necessariamente o espaço da sala de<br />

aula.


Com todos os limites dessa imagem que trago da infância e das<br />

discussões postas em sala de aula sobre a questão, o riso e o folhear<br />

repetidamente essas páginas do livro didático, era motivo de curiosidade e<br />

satisfação dos alunos. Naquele momento, tínhamos a permissão da escola,<br />

pelo menos entre os amigos de hipotetizar coisas e até mesmo atrever a fazer<br />

perguntas ao professor que fugia da intenção dos objetivos de sua aula. As<br />

discussões do corpo-organismo não deixaram de existir na escola, ela ainda<br />

está posta como componente dos conteúdos das aulas de ciências naturais.<br />

A escola, ao pensar o corpo, ainda o liga às etapas de desenvolvimento<br />

[infância e adolescência]. O corpo está sendo visto pela escola, sendo<br />

convidado ou incitado a ser problematizado e governado em toda a sua<br />

complexidade. Nessa complexidade, para se pensar o corpo dos sujeitos<br />

escolares, se enredam os discursos biológicos, afetivos e socioculturais. Ainda<br />

nessa leitura dos Parâmetros Curriculares, podemos entretecer a esse texto a<br />

concepção de corpo como matriz da <strong>sexualidade</strong> e seus apontamentos nesse<br />

documento.<br />

231<br />

Para compreensão da abordagem proposta no trabalho de<br />

Orientação Sexual, deve-se ter em mente a distinção entre os<br />

conceitos de organismo e corpo. O organismo refere-se ao aparato<br />

herdado e constitucional, a infra-estrutura básica biológica dos seres<br />

humanos. Já o conceito de corpo diz respeito às possibilidades de<br />

apropriação subjetiva de toda experiência na interação com o meio.<br />

O organismo atravessado pela inteligência e desejo se mostra um<br />

corpo. No conceito de corpo, portanto, estão incluídas as dimensões<br />

da aprendizagem e todas as potencialidades do indivíduo para a<br />

apropriação de suas vivências. (BRASIL. 1997, p.139).<br />

Notoriamente, o corpo biológico, ainda vem sendo disputado na escola e<br />

os discursos conhecidos pela escola que vivi na infância ainda se mostram<br />

nesse documento e em suas práticas. Avançamos nessa concepção com as<br />

contribuições dos estudos culturais, na produção e na compreensão do corpo.<br />

O corpo da escola, ou o corpo a ser pensado e problematizado na escola não é<br />

mais somente um conjunto de órgãos biologicamente herdados, com funções<br />

claras e com o propósito natural de reprodução da espécie. O corpo, a ser<br />

problematizado na escola, é um corpo, que para além do organismo biológico é<br />

constituído de aprendizagens, desejos, afetos, percepções, sensações e


sentimentos. Mas, ao analisarmos cuidadosamente os conteúdos a serem<br />

trabalhados pela escola no que referenda o corpo como matriz da <strong>sexualidade</strong>,<br />

podemos perceber a intenção das biopolíticas de transformar os sujeitos<br />

escolares em protagonistas potenciais de seu autocuidado e de seu<br />

autogoverno.<br />

232<br />

Nesse encaminhamento, os conteúdos a serem trabalhados com a ideia<br />

de corpo, se ligam aos fatores do desenvolvimento biológico, à reprodução e as<br />

singularidades/marcas visíveis desse desenvolvimento. As dimensões<br />

psíquicas que enredam e produzem o corpo aparecem como conteúdos a<br />

serem trabalhados na escola, preocupados que estão com a auto-imagem do<br />

aluno que apresenta o desenvolvimento de seu corpo diferente aos padrões<br />

pensados para o desenvolvimento do corpo biológico. Prescrevem os PCNs<br />

(1997, p, 143) os conteúdos a serem trabalhados no ensino fundamental,<br />

objetivando que nossos alunos possam compreender:<br />

as transformações do corpo do homem e da nas mulher nas<br />

diferentes fases da vida, dentro de uma perspectiva de corpo<br />

integrado, envolvendo emoções, sentimentos e sensações ligadas<br />

ao bem-estar e ao prazer do autocuidado;<br />

os mecanismos de concepção, gravidez e parto e a existência de<br />

métodos contraceptivos;<br />

as mudanças decorrentes da puberdade; amadurecimento das<br />

funções sexuais e reprodutivas; aparecimento de caracteres<br />

sexuais secundários; variação de idade em que inicia a puberdade;<br />

transformações decorrentes do crescimento físico acelerado;<br />

o respeito ao próprio corpo e ao corpo do outro;<br />

o respeito aos colegas que apresentam desenvolvimento físico e<br />

emocional diferentes;<br />

o fortalecimento da auto estima;<br />

a tranqüilidade na relação com a <strong>sexualidade</strong><br />

Ao irmos enredando-nos nesses discursos que chegam às escolas sobre<br />

o corpo individualizado e a saúde do corpo da população, vamos percebendo<br />

que o corpo tornou se nesses últimos tempos, questão de Estado, por isso<br />

existem políticas que incessantemente atuam sobre esse corpo e em suas<br />

subjetividades. Valendo-me dos estudos arqueológicos de Foucault sobre as<br />

tecnologias de vigiar e disciplinar, desenvolvidas nas atitudes da modernidade<br />

sobre o corpo da população francesa, recorrerei a uma citação, que nos mostra<br />

com a vida em seus detalhes, tornou-se questão de Estado. Segundo Foucault


(2002, p.164), na França do século XVII, as cidades pestilentas, tinham o<br />

espaço de circulação e o fluxo das pessoas vigiadas e controladas, uma vez<br />

que:<br />

233<br />

A peste como forma real e, ao mesmo tempo, imaginário da<br />

desordem tem na disciplina como correlato médico e político. Atrás<br />

dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos contágios, da peste,<br />

das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das<br />

pessoas que aparecem e desaparecem, vivem e morre na<br />

desordem.<br />

Assim, como as cidades pestilentas da França do século XVII<br />

produziram uma tecnologia poderosa de disciplinarização do corpo e da<br />

população [cada um no seu lugar], para melhor saber e controlar a vida e a<br />

morte que interessava ao Estado. Diferente da lepra, que produziu a exclusão<br />

dos contaminados, na contemporaneidade pode perceber o poder produtivo e<br />

similar do vírus HIV/AIDS na população, porém, o que muda nesse contexto<br />

biopolítico é que esse vírus não é mais uma questão da cidade, ele também se<br />

alonga para além das fronteiras das cidades, estado, país. O vírus do HIV não<br />

tem pátria e não respeita as fronteiras. O vírus não exclui, ele não é seletivo! A<br />

significação instituída em relação aos portadores é, contudo, seletiva e<br />

excludente.<br />

Se recorrermos aos guardados de nossas memórias, podemos ainda<br />

nos assombrar como nos diria Weeks (2001) com as imagens que foram<br />

difundidas pelas diferentes pedagogias culturais, no trato com as pessoas com<br />

AIDS. Ali estava sendo posto em circulação um currículo extremamente<br />

sexista, preconceituoso e tendencioso. O vírus HIV e a AIDS produziram<br />

juntos ressonâncias complexas nos comportamentos das pessoas muito<br />

parecidas com a história que Foucault (2002) nos relata das cidades pestilentas<br />

e dos dispositivos panópticos e higienistas desenvolvidos a partir do século<br />

XVII. Justificavam essas tecnologias da polícia das cidades pestilentas da<br />

França, os excessos, as mascaras e a falta de cuidado das pessoas.<br />

Nos tempos da pandemia do HIV, era novamente de excesso, de<br />

identidade, de mascaras, da falta de cuidado, de promiscuidade, das relações<br />

abertas, da revolta da natureza e de Deus, de grupos de riscos, do câncer gay,


que falavam, pensavam, escreviam e prescreviam naquele momento os<br />

discursos normativos sobre as pessoas com AIDS. A fogueira da inquisição<br />

fora reascendida nos idos dos anos 80 do século passado e se apresentava<br />

para alguns moralistas como resposta da revolução sexual e da fragilidade da<br />

família ocorrida a partir dos anos 60. Salve-se quem puder, esse era o lema e a<br />

palavra de ordem daquele momento! Jeffrey Weeks 27 (2001, p37) nos faz<br />

lembrar que:<br />

234<br />

Numa época na qual assistimos como nunca antes, a celebração de<br />

corpos saudáveis perfeitamente harmoniosos, uma nova síndrome<br />

emergiu e devastou o corpo. Estava estreitamente conectada com o<br />

sexo – com atos através dos quais o vírus HIV poderia ser<br />

transmitido. Muitas pessoas, e não apenas a imprensa<br />

sensacionalista, apresentava a AIDS como um efeito necessário do<br />

excesso sexual, como se os limites do corpo tivessem sido testados<br />

e não tivessem passado no teste da perversidade sexual. De acordo<br />

com os mais óbvios comentários, era a vingança da natureza contra<br />

aqueles que transgrediam seus limites. A suposição parecia ser que<br />

o corpo expressa uma verdade fundamental sobre a <strong>sexualidade</strong>.<br />

Mas que verdade poderia ser esta? Sabemos agora que o vírus HIV,<br />

responsável pelo colapso das imunidades do corpo, causando a<br />

AIDS, não é seletivo no seu efeito. Ele afeta heterossexuais e<br />

homossexuais, mulheres e homens, jovens e velhos. Além disso, ao<br />

mesmo tempo, ele não afeta todas as pessoas nessas categorias,<br />

nem mesmo necessariamente os/as parceiros/as das pessoas<br />

infectadas com HIV. Contrair o HIV é, em parte, uma questão de<br />

acaso, mesmo para aquelas pessoas que estão envolvidas no que<br />

agora chamamos de atividades de alto risco.<br />

Por isso, podemos ir presenciando que os discursos que atrelam às<br />

campanhas publicitárias de saúde, das políticas públicas que intencionam atuar<br />

sobre a população, vão saindo do campo da morte, „AIDS MATA‟, para o<br />

campo da prevenção/educação: AIDS, PREVINA-SE. A saúde do corpo e da<br />

população vai saindo de um território fixo do campo da medicina, para torna-se<br />

algo que é também da educação e algo desejável.<br />

Altmann e Martins (2008, p. 188), buscando ajuda em Foucault para se<br />

pensar a <strong>sexualidade</strong>, discutindo e problematizando as „políticas da<br />

<strong>sexualidade</strong> no cotidiano escolar‟, nos alertam para o fato de que a Orientação<br />

Sexual escolar está inserida numa complexa rede de relações de poder-saber<br />

e esta vem historicamente sendo vista e disputada, como:<br />

27 Peço desculpa ao leitor pelo tamanho da citação. Fragmentá-la poderia trazer prejuízos pela riqueza de<br />

informação.


235<br />

[...] um negócio do estado, um tema de interesse público, pois se<br />

encontra no centro de muitas questões ligadas à população.[...]. A<br />

conduta sexual da população, por dizer respeito à saúde coletiva,<br />

natalidade, métodos contraceptivos, vitalidades das descendências e<br />

da espécie, torna-se objeto de análise e de diferentes intervenções<br />

governamentais.<br />

Se a <strong>sexualidade</strong> tornou-se um negócio de Estado, como nos fala<br />

Foucault (2002), Weeks (2001), Altmann e Martins (2008), não podemos negar<br />

que o vírus HIV, também contribui para produzir outras realidades expansivas,<br />

necessidades e demandas do trabalho de Orientação Sexual na escola. Não<br />

podemos negar que por trás dessas possibilidades que se abrem na escola<br />

para se pensar o corpo como território da experiência, de prazer, cuidado e<br />

auto-cuidado, há uma longa história de resistência e de luta dos movimentos<br />

LGBTs 28 e das redes de solidariedades que nasciam ao redor da doença, para<br />

desvincular o vírus/HIV e a AIDS como doença de gay.<br />

O vírus HIV mostrou mais uma faceta da <strong>sexualidade</strong> humana, mas não<br />

toda. As instituições disciplinadoras postulavam algumas verdades/mitos/<br />

crenças e preconceitos sobre as pessoas portadoras do vírus HIV e da doença<br />

AIDS [especificamente, homossexuais] e buscavam normatizar a vida e a<br />

<strong>sexualidade</strong> nos modelos formatados de se viver a <strong>sexualidade</strong>. Realidades<br />

outras no campo da pesquisa e redes de solidariedades foram sendo<br />

produzidas a favor da dignidade das pessoas que contraíram/contraem o vírus<br />

e desenvolviam/ desenvolvem a doença. Essas redes de solidariedades,<br />

apostando na vida e na mobilidade dessa vida, foram se constituindo em<br />

espaços políticos de lutas, de pesquisas e de debates por aqueles e aquelas<br />

que não se conformavam com a moral impressa nos discursos que<br />

apresentavam a AIDS, como símbolo de morte [como câncer gay] e sinal<br />

materializado no corpo sem máscaras da promiscuidade.<br />

Essas redes de solidariedades nascidas da pandemia do HIV/AIDS<br />

foram constituindo-se em espaços políticos contra a homofobia, que<br />

reascendiam possibilidades para novas aprendizagens. Nesse cenário<br />

28 LGBTs: Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e simpatizantes


complexo em torno da saúde-doença do corpo e da população, fortifica-se a<br />

presença de grupos e subgrupos [considerados minorias] que até então se<br />

viam alijados dos debates públicos e políticos e dos direitos de gozar e<br />

participar da democracia e da cidadania que se conecta ao estado democrático<br />

de direitos. Louro (2004, p. 35), nessa direção, salienta que:<br />

236<br />

[...] a doença também teve um impacto que alguns denominaram<br />

como positivo, na medida em que provocou uma rede de<br />

solidariedade. O resultado são alianças não necessariamente<br />

baseadas na identidade, mas sim num sentimento de afinidade que<br />

une tanto os sujeitos atingidos (muitos certamente nãohomossexuais)<br />

quanto seus familiares, amigos, trabalhadores e<br />

trabalhadoras da área da saúde, etc. As redes escapam, portanto,<br />

dos contornos da comunidade homossexual tal como era definida até<br />

então. O combate à doença também acarreta um deslocamento nos<br />

discursos a respeito da <strong>sexualidade</strong> _ agora os discursos a respeito<br />

da <strong>sexualidade</strong> se dirigem menos as identidades e se concentram<br />

mais nas práticas sexuais ao enfatizar, por exemplo, a prática do<br />

sexo seguro.<br />

A partir desses cenários complexos e cambiantes de entrada do vírus<br />

HIV e da AIDS em nossas realidades mais íntimas, que assombrava/assombra<br />

nossos desejos e segredos com o outro e com nossas subjetividades, estamos<br />

avançando e ampliando as redes de solidariedades e afetos em torno dessa<br />

questão e da temática da <strong>sexualidade</strong> nos espaços educativos. Entre lutas,<br />

negociações, desconstruções e aprendizagens em torno das questões que nos<br />

prendem a <strong>sexualidade</strong> e a saúde-doença do corpo, matriz da <strong>sexualidade</strong>,<br />

ainda temos muito que avançar na escola e nas diferentes instituições que<br />

controlam e produzem a vida desejada.<br />

Nos PCNs, ainda que possamos perceber aberturas e avanços no trato<br />

da <strong>sexualidade</strong> como fonte de prazer, fica fortemente presente nos conteúdos a<br />

serem trabalhados o tom prescritivo de uma vigilância permanente [pois todos<br />

nós somos suspeitos de um crime perfeito] e a preocupação de governo<br />

[economia] com o combate e prevenção da doença.<br />

[...] o trabalho de Orientação sexual visa desvincular a <strong>sexualidade</strong><br />

dos tabus e preconceitos, afirmando-a como algo ligado ao prazer e<br />

à vida. Na discussão das doenças sexualmente transmissíveis/AIDS<br />

o enfoque deve ser coerente com os princípios gerais e não deve<br />

acentuar a ligação entre <strong>sexualidade</strong> e doença ou morte. As<br />

informações sobre as doenças devem ter sempre como foco a


237<br />

promoção de condutas preventivas, enfatizando-se a distinção entre<br />

as formas de contato que propiciam risco de contágio daquelas que,<br />

na vida cotidiana, não envolvem risco algum. (BRASIL, 1997, p.147)<br />

Com todo o vanguardismo em que possa se apresentar a temática da<br />

<strong>sexualidade</strong> nos currículos escolares e nos PCNs, autoritariamente, podemos<br />

perceber que os conteúdos selecionados, objetivam aproximar os discursos<br />

da(s) <strong>sexualidade</strong>(s) às lutas por direitos das consideradas minorias sexuais<br />

que historicamente tiveram suas presenças excluídas ou estereotipadas<br />

das/nas práticas educativas. Salientamos, neste trabalho que os movimentos<br />

sociais de diferente natureza, relacionando-se com as demandas da presença<br />

do HIV e da AIDS e, por demandas particulares, constituíram redes de<br />

solidariedades em prol da vida, da produção de conhecimento e de políticas<br />

públicas para a saúde e educação. Com todos os avanços sentidos nesse<br />

documento, podemos perceber que as idéias higienistas e de controle da<br />

população pela saúde e pela doença traçam a <strong>sexualidade</strong> e as práticas<br />

sexuais aos interditos dos contatos perigosos, das ameaças de gravidez na<br />

adolescência, com o adoecimento e morte do corpo, mas de um corpo que se<br />

torna autogovernado e coisa de governo.<br />

Percebemos que, por dentro dessas redes discursivas consensuais<br />

sobre a(s) <strong>sexualidade</strong>(s), o eixo da discussão e de preocupação ainda se<br />

organiza sobre o corpo biológico, disciplinado e autogovernado. Nesse tom,<br />

parece-me que as possibilidades de se querer pensar a <strong>sexualidade</strong> como<br />

campo de histórias, de imaginação, de prazer, de afetividades, de sentimentos<br />

[amores, paixões, amizades, solidariedades] de sensações, de criação, de<br />

inventividades, de vida expansiva, de gêneros, de fronteiras não passa de<br />

retórica. Esse encaminhamento reduz a multiplicidade de possibilidades de<br />

viver a <strong>sexualidade</strong> e o corpo como obra de arte. O tom de objetividade desse<br />

documento curricular é com um corpo e com um corpo que corresponda a uma<br />

matriz de pensamento biologizante.<br />

Considero e valoro o conhecimento dos cuidados com o corpo e com a<br />

saúde-doença do corpo [cuidado de si e do outro]. Mas, penso que se não<br />

ficarmos atentos com os discursos sobre o corpo biológico, podemos continuar<br />

a normatizar e a corroborar os currículos e práticas da escola normativa,


deixando em segundo plano as dimensões psíquicas e afetivas das<br />

experiências da <strong>sexualidade</strong>. Nesse sentido, minha preocupação vai ao<br />

encontro do fato de que a escola em que vivi na infância, e naquele momento<br />

era vista pelos educadores e pelas políticas educativas como problema, alvo de<br />

atenção e de trabalho de correção. Penso que o paradigma do corpo como<br />

matriz da <strong>sexualidade</strong> continua a ter e a ver na subjetividade um problema,<br />

utilitarismo, coisa de governo e de autogoverno.<br />

A <strong>sexualidade</strong>, como nos ensina Britzman (2001), não deveria ter no<br />

corpo a sua matriz, uma vez que seu lugar é todo lugar. O corpo, como matriz<br />

da <strong>sexualidade</strong>, é só uma das possibilidades de trabalho da escola no campo<br />

da <strong>sexualidade</strong>, mas não é a única. Outras possibilidades menos diretivas de<br />

trabalho com a educação sexual coexistem. Sem querer prescrever receitas,<br />

pois as receitas tornam a <strong>sexualidade</strong> enfadonha e a constitui como campo de<br />

sermão e de moral, faço coro aos pensamentos de Britzman (2001, p. 92),<br />

quando ela anuncia algumas possibilidades de trabalho de educação sexual na<br />

escola. Para ela:<br />

238<br />

O modelo de educação sexual que tenho em mente está mais<br />

próximo da experiência da leitura de livros de ficção e poesia, de ver<br />

filmes e do desenvolvimento em discussões surpreendentes e<br />

interessantes, pois quando nos envolvemos em atividades que<br />

desafiam nossa imaginação, que nos propiciam questões para refletir<br />

e que nos fazem chegar mais perto da indeterminação do eros e da<br />

paixão, nós sempre temos algo mais a fazer, algo mais a pensar.<br />

Bristzman (2001) indica-nos alguns caminhos sem direção a serem<br />

construídos por professores e alunos no trabalho cotidiano de educação/<br />

orientação sexual. Nesses textos culturais por ela indicados [livros de ficção,<br />

poesias, filmes, revistas] podemos fazer leituras não didatizadas, não<br />

imaginadas, leituras que possam contribuir para nos ajudar a estranhar e a<br />

avançar em discussões e desconstruções de questões regimentadas e<br />

naturalizadas pelos programas de educação sexual. Vale ressaltar que no<br />

documento PCNs, o corpo biológico ocupa lugar de destaque frente às<br />

dimensões psíquicas, afetivas e culturais que constituem o sujeito da<br />

<strong>sexualidade</strong>. O corpo, na contemporaneidade, tornou se espelho e reflexo para<br />

onde canalizam todas as forças e desejos de governo e autogoverno.


239<br />

Esse documento [PCNs], ao ser produzido conectado ao seu tempo, à<br />

política desse tempo e à produção teórica desse tempo, à realidade desse<br />

tempo, teve como preocupação política, contemplar a complexidade dos<br />

discursos menores da <strong>sexualidade</strong> e os sujeitos invisibilizados dessas práticas.<br />

A preocupação desse documento curricular em contemplar os detalhes<br />

impressos na materialidade e complexidade dos discursos e práticas da<br />

<strong>sexualidade</strong> da contemporaneidade [corpo, saúde, doença, gênero, geração...],<br />

a par das questões de ordem social [gravidez na adolescência, aborto],<br />

produziram consensos no trabalho da temática da <strong>sexualidade</strong> na educação<br />

escolar. Podemos ver na temática orientação sexual, as lutas e os estudos<br />

feministas, especificamente ao se pensar a condições de gênero. Eis o que<br />

podemos encontrar nos PCNs, sobre gênero:<br />

Desde muito cedo, são transmitidos padrões de comportamento<br />

diferenciado para homens e mulheres. O conceito de gênero diz<br />

respeito ao conjunto de representações sociais e culturais<br />

construídas a partir da diferença biológica dos sexos. Enquanto o<br />

sexo diz respeito ao atributo anatômico, no conceito de gênero tomase<br />

o desenvolvimento das noções de masculino e feminino como<br />

construção social. O uso desse conceito permite abandonar a<br />

explicação da natureza como a responsável pela grande diferença<br />

existente entre os comportamentos e lugares ocupados por homens<br />

e mulheres na sociedade. Essa diferença historicamente tem<br />

privilegiado os homens, na medida em que a sociedade não tem<br />

oferecido as mesmas oportunidades a ambos. (BRASIL, p.144)<br />

Muitas possibilidades de problematizações, de aproximações, de leituras<br />

e de contestações são possíveis no campo da pesquisa com os cotidianos<br />

escolares com os discursos e com as práticas da Orientação Sexual na escola.<br />

Vale ressaltar que esse texto está sendo tecido e retecido no meu encontro<br />

sempre provisório com os PCNs de Orientação Sexual e com os currículos<br />

praticados pela escola. Desses encontros com toda a provisoriedade que a<br />

mim se apresentam como discursos sobre e com a <strong>sexualidade</strong> posso indicar<br />

que deixo marcas subjetivadas das leituras que faço dessa temática e desse<br />

documento. Essas marcas que foram e estão sendo produzidas ao estilo de um<br />

palimpsesto, que se apresenta para mim como processo constituído e<br />

constituinte de uma história complexa e plural praticada por muitos e inclusive<br />

por mim. Uma leitura que me faz perceber que escola, os sujeitos escolares e


a(s) <strong>sexualidade</strong>(s) movimentam, mobilizam, expandem e reforçam muitos<br />

lugares que nos são confortáveis.<br />

240<br />

Em tempos de boas novas, de consensos sociais e políticos para se<br />

querer pensar e problematizar a <strong>sexualidade</strong> na escola compreendo, ainda que<br />

com muitos limites, que professores e alunos, vivenciando cada um ao seu<br />

modo a <strong>sexualidade</strong> na escola, estão aprendendo em suas (in)satisfações a<br />

contestar alguns discursos, mitos, tabus, preconceitos e estereótipos que se<br />

apresentam nas práticas educativas, ao mesmo tempo que também<br />

corroboram com tantos outros.<br />

Os sujeitos da escola não são os mesmos sujeitos da escola que vivi na<br />

infância, mesmo que possa encontrar ressonâncias desse tempo. Ainda que<br />

desse tecido cotidiano, ao sabor da memória e da experiência só pudesse<br />

senti-lo como espaço de controle, suponho que alunos e professores com os<br />

quais pude compartilhar histórias, em algum momento e por algum momento<br />

de suas vidas com a escola e com a <strong>sexualidade</strong>, subverteram como aposta<br />

expansiva da vida, aparência da ordem. Os sujeitos da escola estão sempre na<br />

condição de outros, em movimentos expansivos, ainda que não queiramos ver<br />

e pensar assim. Irrequietos lançam perguntas, mudam as coisas de lugar e<br />

desafiam algumas tentativas de ortopedia da escola na produção do sujeito na<br />

experiência com a <strong>sexualidade</strong>. O que movimenta as expectativas de estarmos<br />

vivendo outros tempos na escola são as perguntas, ainda que em muitos<br />

momentos essas perguntas caminhem e respondam a direções dadas por uma<br />

determinada forma contida/desejada e controlada para se pensar a <strong>sexualidade</strong><br />

e os sujeitos dessa experiência.


6- Entrelaçamentos implicantes e a incapacidade afetiva de concluir uma<br />

pesquisa<br />

241<br />

A produção dos sujeitos é um processo plural e também<br />

permanente. Esse não é, no entanto, um processo no qual os<br />

sujeitos participam como meros receptores, atingidos por instâncias<br />

externas e manipuladas por estratégias alheias. Ao invés disso, os<br />

sujeitos estão implicados e são participantes ativos na construção de<br />

suas identidades. (LOURO, 2001, p. 25)<br />

Em um dos textos 29 deste trabalho, no qual busco justificar o ato da<br />

pesquisa, a importância do outro em nossas pesquisas e dos temas que nos<br />

prendem ao exercício de fazer pesquisa, lancei mão de fragmentos de<br />

memórias do viver a <strong>sexualidade</strong> com a escola e com a educação dos corpos<br />

nos espaços educativos. Tais fragmentos funcionaram como fios de histórias<br />

que, ao serem tecidos, me ajudavam a responder uma provocação política e<br />

imanente para pensar a vida com a escola e os sentidos que podem ter a vida<br />

à medida que vamos sendo agenciados por formas sutis de governo e<br />

autogoverno. Naquele texto implicativo, as experiências do viver a infância e a<br />

<strong>sexualidade</strong> foram tecidas subjetivamente com a escola e não só, ligando-as a<br />

uma moral educacional que acreditava e ainda acredita que as crianças<br />

pequenas não possuíam/possuem <strong>sexualidade</strong> e, caso viesse a se manifestar<br />

como um corpo estranho na escola poderia tornar-se objeto de correção e<br />

disciplinarização.<br />

Nesse jogo disciplinar e de controle que produzem o sujeito pedagógico,<br />

as crianças pequenas eram convidadas a ocupar desde muito cedo um lugar<br />

fixo no enquadramento dos gêneros masculinos e femininos. Viver na fronteira<br />

de gênero não nos era permitido na escola. A própria condição de gênero<br />

resulta de uma significação cultural sobre os sexos, em que se determinam<br />

suas atribuições, lugares, performances e possibilidades. Era preciso ocupar<br />

um lugar e aprender bravamente a se posicionar e a defender esse lugar como<br />

questão de honra e até mesmo de sobrevivência. Assim, naquele texto busquei<br />

o estranhamento desses arranjos e fui puxando fios de realidades distintas,<br />

onde, um sentido construído de se querer a infância dessexualizada era<br />

amarrado às representações sobre o corpo biológico, ao gênero e a herança<br />

29 Ressonâncias do outro: provocações desejantes que alinhavam e estilhaçam fragmentos de vida


familiar no nome do pai. Essas representações sobre o corpo e sobre a<br />

infância conectavam-se aos discursos que normatizavam e normatizam a<br />

„identidade‟ infantil e produziam/produzem uma determinada experiência<br />

disciplinada e autodisciplinada com a educação de seus gestos, de seus afetos<br />

e de seus desejos.<br />

242<br />

Esses discursos que normatizavam/normatizam a <strong>sexualidade</strong> infantil,<br />

postos em circulação nos espaços institucionalizados [escolas, famílias, igrejas,<br />

currículos, políticas, etc], se valendo das marcas e de comportamentos que<br />

podem nomear o outro e o seu corpo como a diferença, produzindo distinções<br />

e desigualdades, classificaram a materialidade dos comportamentos desses<br />

corpos, indicando uma determinada forma de viver a <strong>sexualidade</strong> e a condição<br />

de gênero como sendo universal e legítima. Escapando dessa forma de<br />

<strong>sexualidade</strong> legitimada por um modelo, outras subjetividades que não se<br />

projetavam e não se reconheciam nessa lógica, eram tidas e vistas como o<br />

oposto para um padrão construído, mas ainda assim subvertendo a forma<br />

modelo. A referência para tais classificações estava colocada especificamente<br />

na natureza biológica impressa no sexo e aos papeis de gênero que tem no<br />

corpo a sua matriz de pensamento.<br />

Na escola, essas classificações que tomam o sexo biológico e o<br />

comportamento do sujeito pedagógico tendo por referência a condição de<br />

gênero, se faziam/fazem acompanhadas de discursos normativos e<br />

especulativos, atrelados ao desejo de saber e ao exercício de poder. O sujeito<br />

da <strong>sexualidade</strong>, vivendo nas fronteiras do conhecimento pedagógico, fascina e<br />

permite elucubrações professorais, que, em sua criatividade, tornam-se<br />

também excêntricas. Nessas elucubrações professorais, que trazem o discurso<br />

da ciência e da biologia para o campo da <strong>sexualidade</strong> e do comportamento dos<br />

sujeitos pedagógicos, pude na escola que desenvolvo a pesquisa e por ela<br />

estou implicado, ouvir em tom de brincadeira e risos a seguinte fala:<br />

_Passem a observar que o comportamento dos alunos está intimamente ligado ao<br />

segundo cio dos animais. Comecem a observar que a partir de agosto os meninos<br />

ficam mais loucos. Isto está cientificamente comprovado. Observem bem! Quem me<br />

disse isso foi uma professora de ciências. Eu acho que ela tem razão.


Nas elucubrações professorais, nas brincadeiras que ocorrem nas salas<br />

de professores e em outros espaços de encontros na escola, a <strong>sexualidade</strong> e<br />

as atividades/práticas sexuais, vão-se tornando uma coisa só. Essa ideia vai<br />

sendo materializada e sustentada a partir de um princípio biológico<br />

universal/instinto sexual. Nesse tom de brincadeira, a diferença entre humanos<br />

e não-humanos está posta no controle que se pode ter sobre o cio dos animais<br />

e de seus ciclos reprodutivos. Vale ressaltar que o único animal que possui<br />

<strong>sexualidade</strong> é o homem. No tom de brincadeira dessa fala, podemos perceber<br />

que a loucura dos comportamentos dos alunos, a partir do mês de agosto, vai<br />

se aproximando na escola ao instinto sexual do animal. Com essa brincadeira<br />

da professora, vou compreendendo que na escola a <strong>sexualidade</strong> sempre<br />

esteve articulada às práticas de professores, ainda que invisibilizadas por uma<br />

moral pedagógica.<br />

243<br />

Na escola, porém, não é o espaço das brincadeiras de professores,<br />

misturados à complexidade dos muitos discursos que tramam o pensar a<br />

<strong>sexualidade</strong> que ganham vida e significados. Na escola, o que se pode<br />

perceber é a existência de uma moral e de um segredo que se volta contra os<br />

sujeitos pedagógicos e ganha visibilidade na educação dos gestos, dos<br />

comportamentos aceitáveis, efetivando e produzindo um corpo escolarizado,<br />

desejado e normalizado.<br />

A experiência do viver, pensar e sentir os efeitos dos discursos da<br />

<strong>sexualidade</strong> está sendo ressignificado nesse trabalho, na medida em que estou<br />

percebendo e presenciando que entre os adultos da escola [professores], nos<br />

espaços privados; o riso, a piada, a paródia, os segredos, as máscaras, os<br />

saberes sempre estiveram presentes no cotidiano escolar e nas conversas de<br />

professores. Na condição de alunos e de crianças, vistas e tidas como<br />

inocentes e dessexualizadas pela escola, não era possível pensar/imaginar que<br />

nossos professores e professoras também estavam e estão enredados pelos<br />

discursos da <strong>sexualidade</strong> e que por eles eram/são tocados e através deles se<br />

movimentavam entre o isso e aquilo, entre a censura e o controle, entre o<br />

prazer e o desejo de saber.


Nas experiências que trago da infância os discursos da <strong>sexualidade</strong><br />

deveriam ser adiados da escola [ou dos alunos] e, se possível, afastados do<br />

mundo infantil e do universo pedagógico através de uma vigilância permanente<br />

de todos os envolvidos nos processos educativos [alunos, professores e pais].<br />

Louro (2001: p, 27) alerta nos para o fato de que essa vigilância permanente<br />

que intenciona disciplinarizar o corpo, comportamentos e gestos dos sujeitos<br />

escolares, não consegue sufocar a curiosidade e o interesse e nesse lugar<br />

fronteiriço estão também os professores. Através dos discursos normativos da<br />

escola, com múltiplas estratégias de disciplinamento, “[...] aprendemos a<br />

vergonha e a culpa; experimentamos a censura e o controle. Acreditando que<br />

essas questões da <strong>sexualidade</strong> são assuntos privados, deixamos de perceber<br />

sua dimensão política.”<br />

Aprendi, num jogo de experimentações com o outro e com a escola, que<br />

a <strong>sexualidade</strong> como experiência subjetivamente humana, como desejo e<br />

curiosidade deveria ser bem planejada, se vale de estratégias e astúcias, para<br />

clandestinamente ser vivida/questionada, falada com muito cuidado nos<br />

encontros de amigos e nas conversas informais. Corroborando essa ideia das<br />

conversas que valem para a escola, em um dos meus encontros com os<br />

alunos, pude ouvir ressonâncias de um sentido de <strong>sexualidade</strong> que me<br />

acompanha do tempo vivido na infância.<br />

244<br />

- Aqui na escola o que a gente aprende na sala de aula vai nos servir pra vida toda.<br />

Esses papos da gente não vão servir de nada. Somente o que os professores falam, é<br />

que tem valor! As nossas conversas são pra passar o tempo.<br />

Ilustração 39– O que vale numa conversa?


Naquele texto, permeado por uma memória praticada, que nascia de<br />

uma provocação política, fiquei atento às diferentes pedagogias culturais que<br />

podiam/podem atuar e atuam sobre o sujeito pedagógico, na fabricação de um<br />

corpo e de uma <strong>sexualidade</strong> pedagogizada. Aquele texto trazia as marcas de<br />

um tempo praticado com o outro e comigo, que se faziam necessárias serem<br />

escritas, para me situar nas fronteiras da experiência e para a minha<br />

compreensão sobre a <strong>sexualidade</strong> e sua relação com os espaços educativos.<br />

Fui puxando fios daquele tempo da infância, vivido na clandestinidade dos<br />

segredos que são imanentes aos processos de subjetivação e os prendiam a<br />

uma escrita que buscou no exercíco da pergunta problematizar os efeitos de<br />

linguagens sobre o corpo e sobre a <strong>sexualidade</strong>. Na tessitura daquele texto,<br />

encharcado de uma experiência implicante, pude perceber que a <strong>sexualidade</strong>,<br />

sendo ela uma política, uma economia sobre o corpo e sobre a população,<br />

correspondia e corresponde aos preceitos morais das pessoas que viviam e<br />

vivem aqueles e daqueles tempos.<br />

A escola e os sujeitos da escola, vivendo a complexidade do ato<br />

educativo, enredam-se em suas práticas e em seus saberes estilos de governo<br />

e de autogoverno. Nesse enredamento, vamos negociando posições com<br />

múltiplas instâncias pedagógicas, situando-nos nas fronteiras dos<br />

espaçostempos que faz e fez escola. Vamos, nessas negociações, marcando e<br />

nos posicionando no entre-lugar das novidades do presente, num diálogo<br />

permanente com as experiências que se fizeram conhecidas nas relações com<br />

a(s) cultura(s). Nas fronteiras da cultura onde estão posicionados a escola e os<br />

sujeitos da escola, a ambiguidade e a complexidade da vida marcam nossas<br />

ações, nossos desejos, nossas posições políticas de expansão da vida com<br />

esse mundo e também nossas (in)compreensões.<br />

245<br />

Trazendo a ambiguidade dos espaçostempos que produzem escola e os<br />

sujeitos da escola para esse texto, farei uso de fragmentos de uma conversa,<br />

tecidas numa reunião de conselho de classe.


Ilustração 40 - Conselheiros<br />

246<br />

_Acho que o início do ano não deveria ser para planejamento das atividades<br />

curriculares e extracurriculares.<br />

_Deveríamos dedicar um tempo para conhecermos melhor os alunos que estamos<br />

recebendo. Conhecer sua realidade, para só depois pensarmos no planejamento.<br />

_Precisamos aproximar de nossos alunos, de suas tendências, referências e desejos.<br />

Sabemos, a partir dos estudos com o cotidiano, que a nossa presença<br />

na escola, na condição de pesquisadores, produz modulações, alterações, mas<br />

nossa presença não possui força suficiente para manter o rumo da prosa e os<br />

interesses de professores e da escola em um só lugar, muitas vezes no lugar<br />

que nos interessa e que traz as marcas de nossa presença. Os professores<br />

sabem o que estamos fazendo na escola. Nas conversas cotidianas de quem<br />

se conhecem [professores], só participamos se realmente estamos presos<br />

como um dos fios que trançam as suas razões do viver o cotidiano da escola.<br />

Alteramos, sim, as realidades que em nos inserimos na condição de<br />

pesquisadores, mas nossa presença não possui uma força soberana para<br />

alterar os interesses dos que praticam a escola.<br />

No fragmento da conversa apresentado acima, parecia-me, num<br />

primeiro momento, que a singularidade do aluno se apresentava como um fator<br />

de extrema importância para a organização da escola, seu planejamento de<br />

trabalho, de seu currículo e dos conteúdos/conhecimentos a serem<br />

trabalhados. Não sendo esse o fio que ligava os conversantes naquele


encontro, ou, não sendo esse o fator que realmente os conectavam e<br />

produziam a trama daquele encontro, logo o interesse pela singularidade do<br />

aluno se desvia da conversa. A minha presença na condição de pesquisador,<br />

que de início parecia alterar o rumo daquele encontro, vai sendo invisibilisada<br />

por outros interesses. E a conversa logo passa a ser trançada com alguns fios<br />

que normatizam o sujeito da educação e amarradas com nós disciplinares por<br />

muitos de nós já conhecidos no governo do aluno e da família que interessa ao<br />

governo da escola. E a conversa prossegue:<br />

247<br />

_ A família é à base de tudo. Quando a família participa o tratamento com a escola é<br />

outro e o rendimento do aluno também.<br />

_ A família também está acuada. A família vem sendo também um problema.<br />

Com a chegada da secretária da escola naquela reunião, a pauta<br />

daquele encontro de praticantes e narradores da escola passa a ser até o seu<br />

final a burocratização, classificação, correção do aluno e de sua família.<br />

Formas de narrar, escrever e falar sobre o aluno e sua família, produzindo uma<br />

intenção de governo pela autoridade da escola e sua moral, conduzem o<br />

restante da conversa e da reunião. Os alunos, que no início daquela conversa<br />

apareciam como sujeitos de histórias, desejos, afetos, necessidades e razão do<br />

trabalho educativo da escola vão sendo transformados em números, deixam de<br />

ocupar a condição de sujeitos e de subjetividades. Suas singularidades<br />

desaparecem na normatização e burocratização da escola. Assim,<br />

transformados em casos, em objetos de atenção e correção, os alunos<br />

„problemas‟ da escola, vão aparecendo nas narrativas de professores como<br />

desviantes e desse lugar normatizante que cria o desvio como casos de<br />

exame, passam a ser posicionados pela burocracia da escola, como faltosos,<br />

transferidos, evadidos, remanejados, em suas notas baixas, em suas<br />

pendências, em suas preguiças, na falta de concentração, em sua indisciplina e<br />

na não aprendizagem.<br />

Todas as possibilidades abertas pela ambiguidade e complexidade da<br />

conversa, ainda que em torno de uma moral normativa, vai se findando nessa<br />

reunião com as pilhas de papel, de provas, de diários e relatórios que<br />

organizam e governam a escola, a vida dos alunos e de professores. A


complexidade e ambiguidade daquela conversa constituída de muitos fios que<br />

nos prendem à moral ainda dominante na escola tomam como alvo de<br />

problematização e de correção o aluno e sua família como centro de atenções<br />

e de formas de governo.<br />

Minha presença naquela reunião, de início abria possibilidades de se<br />

poder e querer pensar as experiências dos alunos, seus desejos, suas<br />

tendências, como algo que viesse a contribuir nas relações educativas da<br />

escola com seus alunos. Mas, não mais que de repente, outro fio da conversa<br />

foi puxado e as singularidades dos alunos e em sua ressonância, de suas<br />

famílias, começa a ser discutidas como um problema para a escola e para a<br />

moral da escola. Essa moral da escola se constitui nas fronteiras dos muitos<br />

tempos e dos muitos espaços que, direta e indiretamente produziram e<br />

produzem formas de governo sobre os que fazem escola e são feitos pela<br />

escola.<br />

248<br />

Na ambiguidade do entre isso e aquilo que nos ligam ao saber de<br />

nossas práticas educativas produzidas nas experiências com a escola, vamos<br />

trazendo no encontro com as incertezas as muitas escolas que vivemos e os<br />

muitos saberes que tramam as escolas. Nesse movimento complexo de<br />

praticar a escola, embolando-nos aos discursos que passam a ver e a ter o<br />

aluno como centros do seu trabalho educativo vão-se misturando uma moral<br />

normativa e disciplinadora que me fazem lembrar a escola que vivi na infância.<br />

Na ambiguidade que se apresenta o espaço educativo, preciso realçar<br />

que as pessoas atreladas às suas compreensões de mundo e usando de<br />

posições desiguais de poder, numa relação saber-poder hierarquizante,<br />

continuam a partir de suas expectativas sobre o outro a classificar, para excluir<br />

e incluir. Essas formas de classificação são produzidas no enquadramento do<br />

olhar, nas formas de narrar, de julgar, escrever e de governar. Essas formas de<br />

julgamentos produzem binarismos, excentralidades e o exotismo daqueles que<br />

desviam da posição que se tornou dominante na escola e na sociedade para se<br />

pensar os padrões de comportamentos e da aprendizagem desejável pela<br />

escola.


249<br />

Ainda que a preocupação com um aluno apareça nas conversas de<br />

professores, essa preocupação rapidamente vem acompanhada de soluções e<br />

estratégias de governo para solução do que aos nossos olhos se apresentam<br />

como problemas.<br />

_ Eu tive um aluno que até pra receber um carinho se acuava. Aí, o colocamos no<br />

projeto Afetivo Sexual. Todas às vezes que alguém, ou um colega tocava nele, ele<br />

colocava as mãos no rosto.<br />

_Deveríamos ter um assistente social na escola, para que ele colhesse informações<br />

mais precisas pra gente.<br />

A par desse fragmento de conversa, talvez Weeks (2001, p.48) nos diria<br />

que é “através do corpo que experimentamos tanto o prazer quanto a dor.”<br />

Durante a escrita deste trabalho, fiz denúncias de uma escola que se omitia e<br />

corroborava, a partir de seu currículo normativo, o saber sobre o corpo que<br />

deveria ser ensinado e por sua vez aprendido e praticado nas relações com a<br />

escola, com os escolares e não só. Viver a <strong>sexualidade</strong> nas fronteiras da<br />

cultura e fugir dos comportamentos esperados pela escola era e me parece<br />

continuar sendo motivo de preocupação e de moralidade para os praticantes da<br />

escola. Esta preocupação e a moralidade que se apresenta como problema<br />

para a escola não encontram e não repercutem efeitos morais para muitos<br />

alunos e pais. A título de exemplo, recorremos ao estranhamento de uma mãe<br />

com a moral da escola. E assim prossegue a fala da supervisora da escola.<br />

_Não se pode entrar com short e saia muito curtos na escola. Os meninos podem<br />

passar as mãos nas meninas e ficarem olhando. A menina me chega com uma saia<br />

muito curta aqui na escola e eu pedi que ela fosse a sua casa trocar de saia e que<br />

voltasse com a mãe dela. Quando a mãe chegou, eu fiquei assustada! A mãe usava<br />

uma saia e um bustiê ainda mais curto que o da filha. A mãe veio com a filha e muito<br />

nervosa, não entendia a minha atitude de advertência. Não sabia como e o que falar<br />

com aquela mãe.<br />

Aí eu disse: sua filha tem calça jeans? Ela respondeu que sim. Aí eu disse que seria<br />

mais prudente e aconselhável que a sua filha usasse a calça jeans como uniforme. A<br />

mãe muito nervosa me falou: Você me chamou aqui pra isso!?...<br />

Parece-me que entre os muitos fios de conversa e de memórias puxadas<br />

nas miradas deste trabalho, a questão da disciplinarização dos corpos dos<br />

escolares e dos comportamentos desses corpos na escola, ocupou a<br />

centralidade da pesquisa em tela, pelo menos no que ele imprime das marcas


de minhas experiências com a escola. Mas, em sua ambigüidade e nos<br />

movimentos dos sujeitos da pesquisa que vão tornando-se autores em nossos<br />

trabalhos, o que se apresenta como problema para a escola não<br />

necessariamente é e se torna problema para muitos da escola [alunos, pais e<br />

até mesmo seus professores].<br />

No fragmento de conversa apresentada acima, a educação do corpo,<br />

não segue a moral prescrita pela escola e os desejos da escola. Os sujeitos da<br />

escola [pais, alunos e professores] podem simplesmente por algum tempo,<br />

para sobreviver a essa moral, entrar em sintonia, correspondência, mas isso<br />

não quer dizer que essa moral vire uma lei e que produza a subjetividade<br />

desejada. A mãe da história, ainda que usando de roupas consideradas<br />

desapropriadas pela escola, do seu lugar de poder temporariamente, consegue<br />

bagunçar e abalar a moral da escola, porém, para não perder tempo com um<br />

assunto que não lhe produzia sentido e rapidamente sair do espaço da escola,<br />

ordena a sua filha que daquele momento diante que, a mesma passasse a usar<br />

a calça jeans como uniforme. LOURO (2001, p.21), adverte que “Um corpo<br />

escolarizado é capaz de [...] expressar gestos ou comportamentos indicativos<br />

de interesse e atenção, mesmo que falsos”.<br />

Essa intervenção moral da escola produziu efeitos sobre o<br />

comportamento da aluna, dentro da escola, ainda que falso para sobreviver às<br />

investidas da escola, pois só ali, dentro do espaço da escola, que aquela fala/<br />

intervenção possuía sentido. E, para não ser mais incomodada pela escola,<br />

com coisas aparentemente sem sentido, mãe e filha entram na regra educativa<br />

que interessa a escola. E é assim que as coisas se tornam normas e normais.<br />

Não basta dissimular! É preciso enfrentar. A escola, não sabe o que aconteceu<br />

entre mãe e filha para a mudança de comportamento da aluna. Mas sabe que o<br />

efeito aparente do corpo tampado/escondido e igual, que tanto interessa a<br />

política da escola havia surtido efeito. As roupas permitidas pela escola<br />

passam a compor e a fazer parte da aluna da escola, ao mesmo tempo em que<br />

a protege dos perigos dos olhos e das mãos dos meninos. Fica parecendo que<br />

na escola somente os meninos possuem olhos e mãos e, nesse<br />

250


encaminhamento, somente os meninos são sujeitos sexualizados e possuem<br />

<strong>sexualidade</strong>!<br />

_ Não sei o que aconteceu, mas nunca mais essa aluna veio na escola de saia curta.<br />

251<br />

Com ajuda de Louro (2001), podemos compreender que por diferentes<br />

políticas educativas se educa/disciplinariza/captura o corpo que interessa à<br />

escola nas práticas de seu currículo, naquilo que ela nos mostra e oculta. O<br />

corpo e a <strong>sexualidade</strong> não são apenas julgados e produzidos na escola, são<br />

objetos de atenção e correção. O corpo e a <strong>sexualidade</strong>, com toda potência<br />

subjetiva e com todo o perigo que possa se apresentar numa moral de governo<br />

e para uma moral escolar, ainda que revestida de novidades continua<br />

apresentando-se como algo perigoso. Se é perigo, novidade e surpresa, se<br />

ainda produz riscos para o bom funcionamento da economia moral da<br />

população, continua sendo objeto de policiamento dos que disciplinarizam/<br />

controlam e fazem escola. A educação do corpo, de um corpo saudável, de<br />

seus gestos e comportamentos, com tudo aquilo que não se captura nas<br />

políticas de governo da população, por estar atrelado às imanências subjetivas<br />

continuam produzindo saberes e formas de governo.<br />

Os sujeitos da escola, especificamente os alunos, não cansam de<br />

subverter as regras das políticas de controle e disciplinarização sobre/ no/ do/<br />

com o corpo-identidade que se pretende ver produzido pelas muitas e<br />

complexas pedagogias culturais que atuam sobre o sujeito. O corpo que<br />

interessa a uma forma de educação, e os sujeitos da educação não estão<br />

ilhados e muito menos protegidos dos efeitos da cultura, são campos de<br />

imanências. Entre o isso e aquilo da escola, com seu tempos e práticas<br />

embolados por campos de disputas, o corpo escolarizado e didatizado pelas<br />

malhas do currículo e das práticas pedagógicas continua sendo disputado.<br />

Cada vez mais, esse corpo e sua carga de subjetividade vem se tornando alvo<br />

de atenção no currículo, de discussões em diferentes grupos, de pesquisas, de<br />

investimentos e de justificativa para as políticas de controle da gravidez<br />

indesejada na adolescência e dos riscos de contaminação pelas doenças


sexualmente transmissíveis entre os jovens, com o tom e a acertividade do<br />

protagonismo juvenil.<br />

6.1 Para não concluir<br />

252<br />

Com todas as tentativas de contenção das subjetividades no uso de<br />

uma racionalidade ainda dominante nas práticas educativas e nos currículos<br />

oficializados e praticados pela escola, percebemos no desenvolvimento desse<br />

trabalho, que os sujeitos escolares, na publicidade de sua vida com o outro, na<br />

estética da existência que essa vida se configura, vem produzindo<br />

cotidianamente práticas de si, que os permitem conectar novas formas de<br />

expandir a vida e as razões dessa vida. Ainda que nas redes-vidas por onde<br />

circulamos estejamos buscando conhecer o outro para com ele estabelecermos<br />

relações de amorosidade, de amizade, de cumplicidade e de trocas solidárias,<br />

não podemos negar que os desdobramentos da modernidade que nos ligam a<br />

um paradigma científico separatista, continua produzindo efeitos sobre as<br />

realidades que conseguimos compreender. Esse paradigma hegemônico, com<br />

as forças culturais que o renova, continua produzindo nas práticas dos sujeitos<br />

escolares em suas/nossas diferenças, marcas de um poder que ainda se julga<br />

no direito de nomear, enquadrar, classificar, controlar, numa tentativa<br />

incansável de conter os fluxos entre as fronteiras e os processos de<br />

subjetivação ainda não pensados.<br />

Vivemos tempos de ambiguidades, de incertezas, de perguntas e<br />

também de reforçamento de alguns padrões de existência já conhecidos e<br />

catalogados pelos especialistas ao longo das atitudes e da tarefa da<br />

modernidade. Mas, com toda essa ambigüidade em que nos prendem as redes<br />

desejantes da vida, a força do paradigma hegemônico que tanto fizemos a<br />

crítica ao longo deste trabalho, ainda continua a produzir efeitos disciplinadores<br />

sobre os sujeitos e a realidade. Ao fazermos a crítica a esse paradigma ao<br />

longo de todo esse trabalho, valendo-nos da curiosidade da pergunta<br />

parturiente, como prática comum aos estudos com os cotidianos, em alguns<br />

momentos essa crítica pôde vir a ser algo, parecido com repetição. Se ficou<br />

parecendo repetitivo, confesso que a repetição se deu como vigilância e


cuidado. Esse cuidado foi se configurando como necessário para não perder e,<br />

penso que em momento algum perdi, as orientações e as problematizações<br />

que produziam as razões de ser desta tese. Por isso, no exercício da pergunta,<br />

repensava continuamente as interpretações que produzia na condição de autor,<br />

assumindo essa produção como sendo decorrente de fios implicados com a<br />

realidade produzida na interpretação que fazia com os sujeitos-autores daquilo<br />

que compreendia.<br />

253<br />

O texto dessa tese, não assume, portanto, caráter de linearidade, nem<br />

tampouco segue caminhos por alguns leitores esperados. Pode ser lida de<br />

forma aleatória, sem pré-requisitos e chaves seguras. Trata se um texto, cujas<br />

partes e o todo dialogam entre si e não se submetem a um princípio de<br />

hierarquia. Desprovido de categorizações engessadas, a tese, vai deixando<br />

pistas ao leitor sobre as experiências com o qual sou tomado no fluir cotidiano<br />

ao caminhar com minhas intenções ao longo desse trabalho. Esse trabalho não<br />

possui um caminho, muitos são as trilhas que caminhei. Caminhei por terras<br />

instituídas e instituintes, nas quais a presença do outro e de um outro que<br />

também mora em mim e, que passou, à recusar a assimlação. Abri-me ao<br />

outro e, estando aberto ao outro, sua presença se fez presente. O outro, por<br />

seu turno, não se configurava a partir de sua existência desvinculada da minha.<br />

Foi preciso me encontrar, puxar alguns fios da memória, para estranhar,<br />

suspeitar e compreender em que me tornei e no que estou me tornando com as<br />

narrativas que me tocam. Nesse reencontro com o que estou sendo, precisei<br />

me valer da amizade e da amorosidade dessas relações para entrar na escola<br />

e na vida da escola.<br />

Trançando minhas memórias com as de outros professores, entro na<br />

escola. Entro na escola carregando intencionalidades, mas sem aprisionar<br />

percepções, modos de ver, de comunicar, de falar e narrar os eventos<br />

cotidianos. Por isso mesmo, a intencionalidade que busquei toma como<br />

pressupostio a premente necessidade de compreender em que estamos nos<br />

tornando com as tantas narrativas do/no/com o currículo e os discursos da<br />

<strong>sexualidade</strong>. Não podemos esquecer e muito menos negligenciar, que<br />

implicados com esse mundo, com nossas formas de ver, narrar, desejar,


escrever, pesquisar, também estamos produzindo coisas, realidade e efeitos<br />

sobre a vida.<br />

254<br />

Junto à ambiguidade desse tempo, quando muitos são tomados por<br />

assalto pelas surpresas, as pessoas estão produzindo vida expansiva na<br />

escola e, isso não quer dizer, que essas práticas cotidianas dos sujeitos da<br />

escola estejam a todo tempo se mostrando resistente às formas legitimadas de<br />

saber e poder conhecidas. No entrecruzamento de tempos e desejos, vale<br />

salientar que muitas dessas práticas e saberes reforçamos, reiteramos e<br />

também escapamos, porém, com este trabalho, pude compreender que toda<br />

forma de se posicionar no mundo só é possível, ao transitarmos nas fronteiras<br />

do que supomos existir ou que acreditamos existir a partir das histórias que nos<br />

contaram e que por outras vias, outros desejos, contamos a nós mesmo e, aos<br />

outros.<br />

São nos espaços de reinvenção da vida, abertos nas resistências<br />

cotidianas por aqueles e aquelas que circulam pela rede vida do outro e por<br />

não se conformarem com uma ordem prescrita como sendo ideal para todos e,<br />

com o diálogo não conformista com as práticas de separação de um<br />

detrminado paradigma, que possíveis vem se tornando possibilidades.<br />

Sabemos que não estamos imunes e que por muitos momentos de nossas<br />

vidas contribuímos para o fortalecendo de um paradigma que busca<br />

categorizar, mensurar e definir um lugar. Nos exercícios de resistências, micro<br />

resistências, usando nossa liberdade com a vida e com o outro, novas formas<br />

de relações afetivas vem implicando um desmonte constante das certezas de<br />

que organiza uma forma para o pensamento. Essas resistências, que não<br />

necessariamente significam, permanente, uma negatividade simplesmente, não<br />

cessam de emergir nos quatro cantos do mundo e de nos mostrar, que<br />

independente da moral que nos atravessam, que a vida, obra de arte sem<br />

forma, se reorganiza.<br />

Fizemos a crítica exaustivamente ao paradigma cartesiano,<br />

aproximando epistemologia e metodologia, não como forma de convencimento,<br />

mas como força movente, que, por não se conformar com uma ordem e por


suspeitar de algumas das atitudes desse pensamento e de seus<br />

desdobramentos em nossas vidas, colocou-o como questão de estudo a ser<br />

perseguida como forma de entendimento. Essa crítica se justificou por<br />

perceber, a partir da experiência com a escola, com a <strong>sexualidade</strong>, com o<br />

corpo e com o currículo oficializado e praticado, limites, muros e fronteiras que<br />

tentam conter a produção do humano, suas experiências como práticas de si e<br />

com a o outro.<br />

255<br />

Durante este trabalho de pesquisa implicante e encharcado de<br />

potência de vida, pensando o corpo, o currículo e a <strong>sexualidade</strong> a partir da<br />

experiência empírica com a escola, busquei, na amizade, a aposta política,<br />

ética e estética para pensar a vida pública como obra de arte. Parecia-me, ao<br />

fixar alguns objetivos e hipótese a ser perseguida, para impimir o tom de<br />

cientificidade exigido a um trabalho de pesquisa, que se fazia necessário ver a<br />

materialidade da amizade, para, a partir dessa suposta materialidade, buscar<br />

um lugar „afirmativo‟. Ledo engano! Não foi bem isso que vi e senti na escola.<br />

Não achei uma forma para a amizade, nem um lugar fixo para encontrá-la na<br />

escola, pois, fui compreendo ao sentir o outro, que seu lugar é todo lugar! Vivi<br />

e senti a emoção da amizade, vivi e senti as redes de solidariedades, de<br />

afetos, de comunicação no espaço da escola, nas mais diferentes situações<br />

com a escola. Só não vi uma forma padrão de amizade que confirmasse o que<br />

temos como espelho e que aprendemos ao longo do tempo como sendo a<br />

forma perfeita de se viver a amizade como harmonia permanente.<br />

A amizade, como algo imanente, em congruência com outras vidas,<br />

que nos conecta a todos em nossa condição humana, produz espaço, tempos,<br />

histórias e nesse espaçotempo de histórias, as pessoas. Não falo de apenas<br />

um espaço cheio de gente. Falo de um espaço praticado por gente. Talvez seja<br />

pelas questões da amizade que alunos e professores gostem tanto da escola e<br />

nela querem estar. A escola se configura, portanto, como rico e promissor<br />

espaçotempo produtor de amizade e nas teias afetivas da amizade,<br />

possibilidades éticas e estéticas vão sendo produzidas e ressignificadas.


256<br />

Na escola, surge uma política da amizade, que tramada por escolhas<br />

vai-se configurando e desmanchando-se por diferentes intenções que se dão<br />

no encontro com o outro e por razões que nem sempre o coração conhece.<br />

Somos tocados pela amizade, na presença do outro. A amizade nos pega a<br />

todos, nos une e nos faz desejar outras experiências.<br />

A amizade na escola, não possui forma, por isso sua potência de<br />

existência expande a vida e as formas por nós conhecidas de vivê-la. Ela<br />

acontece permanentemente nas relações, nos encontros, nas presenças e<br />

também na ausência dos que estão nas redes de conhecimentos e de<br />

significados. Seu acontecer quase sempre subverte a pretensa ordem de uma<br />

política de controle, que de seu lugar ainda busca estabelecer classificações,<br />

categorias e formas seguras do pensar e desejar as relações de amizade, as<br />

relações familiares e as relações entre grupos.<br />

A amizade, como potência política pública, exercício de liberdade, só<br />

conhece como lugar a experiência com o outro, em um processo<br />

permanentemente estético de configuração. Aí está a beleza da amizade na<br />

escola, ela escolhe os modos de se viver e viver o mundo. Se a amizade é uma<br />

escolha, ela é um ato político, que só pode ser praticada com o outro e, muitos<br />

outros.<br />

A relação de amizade vivida na escola não busca como território de<br />

atuação as tradicionais identidades e territórios que conhecemos para a<br />

seguridade do existir. Nas relações de amizade não se define quem será o<br />

outro e de que forma vamos entrar nas redes do outro. Ao pensar assim, não<br />

estou negligenciando que as pessoas ainda buscam e precisam de algumas<br />

formas construídas e legitimadas para exercitar uma idéia de amizade no<br />

reflexo do espelho. Algumas pessoas, por assim acreditar e desejar, ainda<br />

buscam formas consideradas seguras para se relacionar com o que é próximo<br />

e vivê-las pelo tempo que lhes interessar.<br />

As categorias de gênero, raça, classe, território, nacionalidade, idade e<br />

muitas outras vão se desmanchando com a presença do outro e instituindo


outros espaços de vida expansiva por dentro da escola. As pessoas na escola<br />

e não só, por desejarem estar com o mistério do outro, no uso de seu exercício<br />

de liberdade com a vida, transgridem as categorias, os pares binários de<br />

pensamento que conhecemos, na tentativa de ultrapassar algumas normas e<br />

moralidade. As pessoas na escola mudam diariamente suas roupagens, se<br />

recusam a vestir o mesmo uniforme e, quando podem (e quase sempre<br />

podem), buscam assumir outras formas de estética da existência, na condição<br />

de sujeitos dotados de certas modalidades de práticas de si.<br />

Fui percebendo que as tentativas de engessamentos dos sujeitos<br />

pensados pelas políticas de governo das atitudes da modernidade são muitas.<br />

E que, se interessados estivermos em saber em que estamos nos tornando,<br />

podemos reencontrar religamentos de fios políticos de enderaçamentos que<br />

nos ligam às múltiplas e complexas histórias de invenção/produção dos sujeitos<br />

modernos. Esses sujeitos, ainda que produzindo cotidianamente resistências a<br />

alguns agenciamentos, e não todos, trazem em suas histórias, marcas<br />

corporificadas em seus corpos, que em algum momento se materializam em<br />

razões de desigualdades.<br />

257<br />

As marcas das desigualdades que foram produzidas pelo outro, em<br />

muitos momentos de nossas vidas se tornaram visíveis. Em algum momento do<br />

nosso existir, já formos colocados em lugares que inferiorzam a nossa<br />

condição humana e os nossos processos de diferir. A crítica a esse paradigma<br />

aconteceu como necessidade de ir compreendendo que esses<br />

enquadramentos culturais que produzem a diferença como desvio, funcionam,<br />

e, nesta pesquisa, constatamos que isso funcionou como ponto de partida<br />

para as lutas que são nossas e de muitos outros.<br />

Não foi me ausentando e neutralizando a força desse paradigma como<br />

algo a ser extirpado de nossas realidades, que fazer a crítica foi possível. Fazer<br />

a crítica a esse paradigma foi um exercício de relação, que em momento algum<br />

o negou como algo a ser superado e muito menos sem importância. Foi<br />

estabelecendo um diálogo polifônico e polissêmico com a força desse<br />

pensamento e percebendo os movimentos de liberdade das pessoas no seu


agir cotidiano contra algumas desigualdades, que o sentido das lutas<br />

cotidianas, por um outro mundo, pôde ser sentido neste trabalho como prática<br />

de liberdade desejante. A liberdade das práticas de amizade com o outro, com<br />

as diferenças que nos constituem, configurada sem forma no agir público,<br />

vivida na intensidade do encontro, não busca negar as normas e as<br />

subjetividades conhecidas como negatividade de um eterno não. A liberdade<br />

que se pode exercer nas relações de amizade precede as normas, e produz<br />

tantas outras coisas que se expandem com a vida. Na amizade, as relações, os<br />

afetos e percptos podem ser tomados como processos de arte em constante<br />

vias de formação. Por isso a amizade se apresenta como um risco, não se<br />

aprisiona e não pode ser administrada. Assim como a <strong>sexualidade</strong>, pude sentir,<br />

ao longo deste trabalho, que a amizade como potência política, forjando-se nas<br />

negociações com outro e com a experiência de si é sempre razão de desejo.<br />

E, por ser atrelado à experiência da vida, não pode entrar e ser tomada como<br />

receita. Na amizade, só nos cabe sentir, experimentar e expandir.<br />

Sem desejar, mas compreendendo a necessidade de interromper, digo<br />

em companhia de Sabino (2009) que, de tudo ficaram três coisas...<br />

258<br />

A certeza de que estamos começando... A certeza de que é preciso<br />

continuar... A certeza de que podemos ser interrompidos antes de<br />

terminar... Façamos da interrupção um caminho novo... Da queda,<br />

um passo de dança... Do medo, uma escada... Do sonho, uma<br />

ponte... Da procura, um encontro!"


7. Referências<br />

259<br />

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Alexsandro Rodrigues


8. Anexo 1. Conversas com narradores/praticantes da escola<br />

265<br />

Alex:<br />

Interessa-me saber com vocês quais são as concepções de currículo(s), <strong>sexualidade</strong>(s)<br />

e corpo praticado na escola e como a escola trabalha e vivencia esta questão. Sendo<br />

assim, como vocês trabalham e experienciam essa temática, que práticas produzem?<br />

Que currículos produzem? Gostaria que vocês falassem o que pensam sobre isso,<br />

como vivem isso, como vêem isso no interior da escola? Para, além disso, que<br />

embates a(s) <strong>sexualidade</strong>(s) produzem, que discursos produzem, se há um discurso<br />

tácito ou, se estamos reafirmando a heteros<strong>sexualidade</strong>, dentro daquilo que elegemos<br />

como convenção? Como é que estas coisas vão se dando e sendo produzidas no<br />

interior da escola?<br />

Fabrícia:<br />

Eu consigo ver que a escola tem uma postura muito niveladora. No sentido de que,<br />

todas as vezes que as pessoas se manifestam que não seja da forma padronizada pela<br />

sociedade, ele está errado e é vista como o errado. Todas as vezes que um menino ou<br />

uma menina se manifesta de alguma forma que não seja a menina brincar com outras<br />

meninas de boneca e o menino brincar com outros meninos de carrinho, jogar bola de<br />

futebol... Se um dos dois inverterem estes papeis, eles já vão ganhar um outro olhar<br />

dos professores, das professoras de todo um corpo escolar e vai ser criticado. Até o<br />

momento em que me vejo na escola como professora e que a <strong>sexualidade</strong> se<br />

manifestou de forma desviante à criança foi julgada ou pré-julgada, não sei. ... Em<br />

momento algum se para pra pensar que o menino deixou a bola, o futebol e foi brincar<br />

de casinha porque ele quer vivenciar aquele momento, porque está vivendo o faz de<br />

conta de que está em casa. Todo mundo tem casa. Porque que eu não posso brincar<br />

de casinha? Porque ao brincar de casinha é que achamos que se está aflorando a<br />

<strong>sexualidade</strong> ou a homos<strong>sexualidade</strong> e a menina também, quando ela joga bola, corre,<br />

sobe no muro?<br />

Belarmino:<br />

Já os meninos que tem acesso ao computador, eles já brincam de casinha, tem um<br />

programa que se chama. “ the sins”, eles montam casinha. É brincar de casinha, porém<br />

no mundo virtual.<br />

Fabiano:<br />

A escola prefere que a criança não tenha sexo, ela seria maravilhosa, tanto a<br />

administração da escola e os professores julgam que as crianças não têm sexo.<br />

Belarmino.<br />

Meu primeiro problema na escola eu estava na terceira série. A minha professora [...]<br />

que eu não vou citar o nome: [...], mandou todos os meus colegas irem embora ao final<br />

da aula e pediu que eu ficasse. E ela me fez a seguinte pergunta: O que você estava<br />

fazendo naquela construção enfrente a sua casa naquela tarde? Eu fiquei chocado com<br />

a indagação dela, porque ela me obrigou a dizer, que estava fazendo sexo quando na<br />

verdade eu estava brincando de pique com os meus colegas de turma. Ela me induziu,<br />

até mesmo porque, ela é uma pessoa extremamente tradicionalista, recalcada, arcaica<br />

para os padrões contemporâneos. A partir daí eu sofri um bloqueio sexual. Sexo pra<br />

mim era uma questão muito distante. Eu só vim a viver meu lado afetivo sexual na<br />

adolescência. Mas eu fiquei bloqueado porque ela me deu um susto, um susto muito<br />

grande e, eu não pude nem contar para o meu pai e minha mãe...<br />

Fabricia:<br />

O professor não está preparado...<br />

Fabiano:<br />

Eu vejo também o medo, o medo da palavra <strong>sexualidade</strong>. Este é o medo do professor,<br />

ele tem medo de tocar onde ele não domina, ele não conhece seu próprio corpo, o que<br />

ele vai falar para uma criança?...<br />

Fabrícia:<br />

É muito mais fácil apontar e dizer que é errado, que é feio, que é nojento, do que abrir<br />

uma conversa para compreender o por que daquele sujeito estar agindo assim, ou sei<br />

lá, de ta mostrando para o sujeito também que ele tem escolhas<br />

Belarmino:<br />

A escola modernizou bastante o discurso sexual dela, a partir deste afetivo sexual!...<br />

Alex:


266<br />

O que é isso: afetivo sexual?<br />

Belarmino:<br />

É um programa que algumas escolas tiveram o direito de optar. É para trabalhar a<br />

questão do carinho, do abraço entre amigos, do olhar, do respeito. É muito<br />

interessante, porque trabalha as emoções dos alunos. Eles fazem este projeto, aí tem<br />

eventos, tem encerramentos, tem oficinas é para trabalhar as diferenças em sala de<br />

aula. É realmente muito interessante. Eu particularmente não me vejo tendo problema<br />

com minha opção sexual na escola, porque eu realmente sou muito desaforado. Eu<br />

acabei me impondo pela competência. Mesmo sabendo que meus alunos sabem quem<br />

eu sou, o que eu sou, o que gosto, o que eu não gosto o que eu deixei de gostar. Mas<br />

eu acredito que eu seja até uma referência para alguns alunos que estão meio assim<br />

se perguntando o que eu vou ser, quem eu sou? Acho que eles estão é se perguntando<br />

- quem eu vou ser pra eles mesmos...<br />

Fabiano:<br />

Na verdade eles não estão perguntando quem você é e sim quem eu sou. Eles acabam<br />

se encontrando...<br />

Belarmino:<br />

Eu já tive dois alunos que já me disseram: “olha, foi tão bom ter sido seu aluno que eu<br />

me descobri”, não foi mais de dois, foram uns dez ...risos. Isso não me incomoda<br />

não.Eu não chamei ninguém pra ir numa boite não, eu não convidei ninguém pra<br />

conhecer o mundo gay. Eu não sou educador, eu sou professor, eu sou conteudista.<br />

Claro que eu acabo educando porque nas relações no transcorrer da aula acaba<br />

sempre acontecendo. Eu sou repassador de conteúdo mesmo, eu me configuro mais<br />

neste perfil.<br />

Alex:<br />

Eu acho que todos nós na condição de professores vivemos nossa <strong>sexualidade</strong> do<br />

nosso lugar, a exemplo: Fabrícia na condição de professora, que prejuízos têm, que<br />

lucros tem? Não podemos deixar que nossos discursos fiquem neste lugar fixo da<br />

homos<strong>sexualidade</strong>, uma vez que no interior da escola não tem só isso: heteros e<br />

homos.<br />

Berlarmino:<br />

É..., alias, o interior da escola parece um Olimpo! Você tem um monte de<br />

representações simbólicas...<br />

Alex:<br />

Como que é isso!...<br />

Belarmino:<br />

Você vê, assexuado, por exemplo, eu tenho um colega de trabalho que ele é<br />

assexuado, ele não pratica sexo, ele faz total abstinência de sexo e, ele não é padre e<br />

nem é freira.<br />

Fabrícia:<br />

E o que isso causa na pessoa dele enquanto profissional da educação?<br />

Fabiano:<br />

Não, não acredito!...<br />

Belarmino:<br />

Ele é extremamente repressor, ele inibe qualquer manifestação que vá contra a<br />

doutrina da igreja católica...<br />

Fabrícia:<br />

Então é reflexo!?...<br />

Belarmino:<br />

Sim ele é reflexo. Por exemplo: Em comemoração aos 30 anos da escola iria ter um<br />

culto ecumênico. A minha sugestão é que chamassem o dono do terreiro da<br />

comunidade, no caso, a Maria Nossa. Inclusive ela faz muita assistência social dentro<br />

daquela comunidade. No dia do evento eu viajei para Belo Horizonte, quando retornei<br />

eu perguntei: E aí, foi bom? A Maria falou direitinho? Aí fiquei sabendo que não haviam<br />

chamado a Maria não, só foi o pastor e uma representante do padre, o padre não pode<br />

ir não. Por exemplo, tem professor lá na escola que para beneficiar a sua aula reza<br />

uma Ave Maria. Eu acho a aula de ensino religioso uma violência simbólica. Acho que<br />

não deveria ter. Acho que deveria ter: educação sexual, comportamental, cultural,<br />

qualquer “al” da vida, menos ensino religioso...<br />

Fabiano:


267<br />

Ou Educação Religiosa...<br />

Belarmino:<br />

Não. Não ter, porque acho que o professor acaba induzindo pra sua vocação<br />

religiosa...<br />

Fabrícia:<br />

Vocês acreditam que a <strong>sexualidade</strong> da pessoa vai interferir no comportamento dos<br />

alunos?<br />

Belarmino:<br />

Sim eu acredito que sim, ainda que minimamente, vai interferir no comportamento dos<br />

alunos sim.<br />

Alex:<br />

Positivamente ou negativamente?<br />

Belarmino:<br />

Vai depender de como o aluno vai assimilar isso...<br />

Fabiano:<br />

Acho que o professor não sabe a hora certa de intervir na <strong>sexualidade</strong> do aluno. É<br />

preciso conhecer o aluno pra saber em que momento interferir. O professor passa<br />

apenas 4 horas por dia com o aluno, ou 50 minutos, durante o ano, ele vai saber a hora<br />

certa.<br />

Alex:<br />

Você está dizendo que tem a hora certa para <strong>sexualidade</strong> acontecer?<br />

Fabiano:<br />

Eu acho que o professor precisa saber a hora certa para interferir na sala toda ou só<br />

num aluno.<br />

Belarmino:<br />

A <strong>sexualidade</strong> está presente o tempo todo.<br />

Fabiano:<br />

Acho se a gente não souber o momento certo o aluno poderá sofrer um grande<br />

bloqueio.<br />

Fabrícia:<br />

É..., a forma como o professor vai abordar a <strong>sexualidade</strong> do aluno, o processo, ela<br />

pode se tornar responsável com o processo, com o decorrer.... Por exemplo: o<br />

Belarmino foi reprimido durante um tempo...<br />

Belarmino:<br />

Muito tempo<br />

Fabrícia:<br />

Talvez se ela não tivesse dirigido a você aquele olhar....,<br />

Belarmino:<br />

O homossexualismo estava na cabeça dela e não na minha.<br />

Fabrícia:<br />

Acho que ela foi incoerente em dois momentos. Primeiro por ela te abordar na sala de<br />

aula da forma como ela te abordou. Segundo, por que era uma questão que ela viu na<br />

rua. Talvez ela não tivesse este direito de chegar perto de uma criança de nove anos<br />

de idade e discutir com ela o que ela deve ou não fazer. Por que estava errado você<br />

brincar na construção? Quem falou o que está certo ou errado? Acho que da mesma<br />

forma que ela te reprimiu, ela pode ter reprimido tantos outros alunos de outras formas<br />

e com outras tendências.<br />

Belarmino:<br />

Eu não sou educador, eu sou professor, eu sou conteudista. Claro que eu acabo<br />

educando porque as relações no transcorrer da aula acabam produzindo o espaço do<br />

educar. Eu sou repassador de conteúdo mesmo, eu me configuro mais neste perfil. Eu<br />

me estabeleço pela competência.<br />

Alex:<br />

Por que se tem de ser competente?<br />

Belarmino:<br />

Porque a sociedade cobra mais, daquilo que não é estabelecido como parâmetros.<br />

Fabiano:<br />

É por ser gay que você tem que ser competente?<br />

Belarmino:<br />

Eu creio que sim, por ser gay, ser negro, ser pobre.


268<br />

Fabiano:<br />

E o hetero, não tem de ser competente?<br />

Fabrícia:<br />

Mas eu acho Belarmino ... a questão de querer mostrar que você é competente pra<br />

não deixar brecha, pelo menos no seu profissional... para que sua <strong>sexualidade</strong> não seja<br />

colocada em jogo.<br />

Alex:<br />

Mas por que não se pode ser questionado?<br />

Belarmino:<br />

Porque <strong>sexualidade</strong> é opção individual de cada um.<br />

Fabrícia:<br />

Ninguém quer ser julgado, ninguém quer ser colocado como a bola da vez,<br />

queremos ser legal, queremos ser referência positiva.<br />

Alex:<br />

É possível ser referência positiva na diferença? O que é legal: ser igual ou ser<br />

diferente?...<br />

Belarmino:<br />

Diferente é não ser igual, não ser quadradinho, nada é igual.<br />

Fabrícia:<br />

Igual é o uniforme, é o livro didático, é a fila, são as carteiras enfileiradas....<br />

Belarmino:<br />

Este modelo francês de escola...<br />

Fabrícia:<br />

É a direção, a questão hierárquica, professor, o aluno.<br />

Belarmino:<br />

Isso é padronizado...<br />

Fabrícia:<br />

Isso é padrão, pode ser usado aqui no interior de Minas, ou como no Rio....<br />

Belarmino:<br />

A distribuição dos papéis de escola é praticamente igual.<br />

Fabiano:<br />

Na sociedade contemporânea, parece que para o negro, o homossexual se destacar,<br />

cria-se uma mentalidade de que as diferenças precisam ser mais inteligentes. Por quê?<br />

Até que ponto isso vai gerar igualdade? Penso que isso produz exclusão outras<br />

exclusões.<br />

Fabrícia:<br />

Exatamente, são por essas exclusões históricas que produzimos resistência.<br />

Resistindo, a gente se mostra unido.<br />

Fabiano:<br />

Acho que esta tentativa de sermos competentes e acabamos sendo, funciona<br />

positivamente, mais ao mesmo tempo a gente acaba se excluindo... acho que estes<br />

grupos que se esforçam demais para produzir resistência, se afasta da sociedade<br />

também, produz o gueto e acaba fazendo parte do jogo.<br />

Fabrícia:<br />

É isso daí. Até se você fosse bem desleixado, você também estaria participando de<br />

um grupo e estaria excluindo parte da sociedade que quer ficar perto do lixo?<br />

Alex:<br />

E o que é o lixo?<br />

Fabrícia:<br />

Lixo no sentido assim: de alguma coisa que não é mais válido, já não se tem mais uso,<br />

pode deixar pra lá.<br />

Alex:<br />

Como assim?<br />

Fabrícia:<br />

Quem quer ficar perto de alguém que não se atualiza, anos e anos com aquela<br />

fichinha amarela guardada... Ele está certo, ele está errado, nós não sabemos..., eles<br />

não servem pra ficar perto da gente, porque eu estou aqui para mudar, todo mundo já<br />

sabe como é! A mesma fichinha amarelinha, todo mundo vai passar do mesmo jeito...<br />

Belarmino:


269<br />

O mundo evolui, a sociedade evolui, as normas comportamentais evoluíram, o<br />

discurso acadêmico evoluiu, o discurso escolar evoluiu e estes que permanecem no<br />

modelo arcaico estarão fora do jogo. Eles sofrerão a exclusão, não os homossexuais,<br />

os negros, os gordos...<br />

Fabrícia:<br />

O que não da para negar, é que a escola tenta controlar tudo aquilo que ela não<br />

entende...<br />

Fabiano:<br />

É aquilo que ela dita como correto...<br />

Fabrícia:<br />

Eu trabalho com crianças de quatro anos numa creche e existe um casal que insistiam<br />

em dormir juntos. Numa determinada manhã, nós pegamos o casal de criança sem<br />

roupas debaixo do cobertor. Eles subiram antes do horário, conseguiram driblar todo<br />

mundo e ficaram sem roupas. Por felicidade ou azar dos dois, a coordenadora da<br />

creche subiu na minha frente e se deparou com a cena! Ela deu suspensão nas<br />

crianças. Foi todo um transtorno e no final, quando eu consegui conversar com as<br />

crianças, a menina falou pra mim que ela tirou a roupa e dormiu igual à mãe dela<br />

dorme....<br />

Belarmino:<br />

Sim, ela reproduziu o que ela vive em casa.<br />

Alex:<br />

Quando fazemos isso, produzimos <strong>sexualidade</strong> ou sexualizamos às crianças?<br />

Fabrícia:<br />

Agora despertou, porque agora ela já não vai deitar sem roupa como a mãe dela<br />

dorme e vai ficar se perguntando por que a tia coordenadora não me deixou dormir<br />

sem roupa e, o que tem de errado nisso?<br />

Alex:<br />

Como fica este debate no interior da escola?<br />

Fabrícia:<br />

Abafado. A coordenadora deu suspensão nas duas crianças, chamaram às mães. O<br />

menino apanhou porque ele não podia ter tirado a roupa da menina e eu não acredito<br />

que ele tenha tirado. Ela tirou porque ela quis. Ela é uma criança extremamente<br />

autêntica, super.... , ligada nas situações...<br />

Belarmino:<br />

A coordenadora levou suspensão?<br />

Fabrícia:<br />

Claro que não, ela ocupa o topo da pirâmide, como que ela vai levar suspensão?<br />

Fabiano:<br />

Lá na escola tem uma menina que beija na boca de todos os meninos e levanta à saia,<br />

a coordenação fala que ela vai ser uma piranha quando crescer, mas ela beija mesmo!<br />

Eu acho assim: é uma fase para ela de descoberta, eu não entendo isso de rotular<br />

aquela menininha de piranha simplesmente porque ela beija na boca. Eu creio que ela<br />

veja o pai e a mãe dela beijando na boca, que ela veja tanta gente beijando na boca<br />

pelas ruas, na televisão por que ela não pode beijar na boca?<br />

Fabrícia:<br />

Ela está descobrindo que a boca é para além de mastigar....<br />

Fabiano:<br />

Acho que ela deve estar nesta fase de descoberta...<br />

Fabrícia:<br />

É uma fase oral... a gente não pode fugir disso.<br />

Alex:<br />

Fugir do que?<br />

Fabrícia:<br />

Do olhar pecaminoso da escola.<br />

Fabiano:<br />

Aquela visão de cristianismo<br />

Fabrícia:<br />

A escola precisa partir do pressuposto de que existem teóricos que explicam o<br />

comportamento da criança. A escola não quer se envolver com esta questão. Ninguém


270<br />

quer buscar um livro e começar a estudar o comportamento da criança, se é normal,<br />

como que é o comportamento de uma criança de quatro anos, se está dentro dos<br />

limites dos padrões de comportamento de uma criança de quatro anos, ninguém quer<br />

estudar sobre isso. É muito mais fácil chegar e dizer que está errado, que é pecado,<br />

que vai tomar suspensão. É mais fácil para coordenadora agir assim.<br />

Fabiano:<br />

Não tem justificativa suspender uma criança por isso...<br />

Fabrícia:<br />

É violência simbólica, o tempo inteiro, agora, o que vai passar na cabeça da minha<br />

aluna... todas as vezes que ela for dormir ela vai lembrar que ela não pode mais dormir<br />

sem roupa e que talvez seja errado dormir com alguém do sexo oposto sem roupa...<br />

Belarmino:<br />

Isso vai repercutir na cabeça dela por muito tempo,<br />

Fabricia:<br />

a coordenadora é um referencial e isso foi decidido por ela, e agora o que fazer?<br />

Talvez eu tenha um papel importante nisso, pois eu vou ter que dizer pra ela que ela<br />

não errou e o que ela fez é muito natural; só que aí cria uma dupla interpretação na<br />

cabecinha dela – a tia coordenadora fala que não pode a outra fala que pode.<br />

Fabiano:<br />

Você vai ter que saber o momento certo para interferir e entrar neste assunto de<br />

novo...<br />

Fabricia:<br />

Eu não posso chegar todo dia dizendo que pode e que não pode dormir sem roupa...<br />

Fabiano:<br />

Não vai ter valor nenhum você chegar agora e dizer que pode, você vai ter que saber o<br />

momento certo...<br />

Fabricia:<br />

Já passou...<br />

Fabiano:<br />

Isso já é coisa do passado, não dá pra chegar e dizer pra essa criança: lembra aquele<br />

dia.... já passou, agora só o tempo...<br />

Fabrícia:<br />

Ela não vai passar o resto da vida comigo e se amanhã ela se deparar com outro<br />

professor? E se ela encontra com uma professora tipo [...], totalmente quadradinha,<br />

repressora, tradicional?...<br />

Alex:<br />

Mais esta professora é isso?<br />

Fabrícia:<br />

Ela é produto da família e de toda educação que ela vivenciou, assim como nós todos.<br />

Só que alguns de nós temos coragem de romper com alguns padrões que a nossa<br />

família definiu pra gente.<br />

Alex:<br />

Você rompeu com alguma coisa?<br />

Fabrícia:<br />

Claro, você acha que foi fácil pra minha mãe casadinha...., a minha mãe e o meu pai<br />

tem 34 anos de casados e eu tenho 30. Eu sou a primeira filha de um casamento que<br />

foi totalmente pensado, estilizado, tudo feito direitinho. A minha mãe só namorou o meu<br />

pai quando ela foi normalista, o meu pai só namorou a minha mãe. Eu a primeira filha,<br />

fico grávida solteira, eu não rompi? O que a minha mãe veio falar pra mim... pra eu ficar<br />

em casa, com uma filha nos braços, não estou casada, não tenho marido... ou se ela<br />

me queria como ela..., eu rompi com os padrões que a minha família estipulou pra<br />

mim.<br />

Belarmino:<br />

Eu sou o filho que meu pai não quis e a filha que ele sempre quis.<br />

Fabiano:<br />

Meus pais tem 70 anos, sou um filho temporão, tem coisas que eles não conseguem<br />

admitir nunca. Aliás, eu nem era para ter nascido, eu não fui projetado.<br />

Fabrícia:<br />

E o que vai passar na cabeça de seu pai e de sua mãe?<br />

Alex:


271<br />

Fabrícia, isso te ajuda a viver melhor a complexidade da escola?<br />

Fabrícia:<br />

O fato deu ter sido mãe sem casar, eu não tenho nenhum trauma...<br />

Belarmino:<br />

Isso combina com você!<br />

Fabrícia:<br />

Combina, porque eu não iria combinar com um marido chato..., agora por exemplo: eu<br />

não iria poder estar aqui, com certeza ele não iria deixar, porque homem tem destas<br />

coisas...<br />

Belarmino:<br />

Não só homem, mulher também tem destas coisas...<br />

Fabrícia:<br />

O fato deu ter uma filha e ter vivido uma gravidez precoce, veio me fortalecer, eu<br />

criei resistência, eu não vou admitir que amanhã ou depois a minha família venha me<br />

dizer: arrumou filho, não casou, nem pra ser profissional você tem dando certo, não<br />

quero ouvir isso. Talvez se eu não tivesse tido uma filha, ter dado aula na zona rural,<br />

talvez hoje eu seria uma pessoa mais quietinha, mais domadinha, fazendo tudo que<br />

minha mãe sempre desejou, estaria indo onde o meu pai me levasse, ou quem sabe<br />

meu marido, seria quadradinha. O romper com o padrão que minha família acreditava<br />

me fortaleceu e na escola, em relação aos meus alunos, o que eu faço: eu procuro<br />

olhar pra eles sem este olhar preconceituoso. Eu até hoje não consigo acreditar que<br />

aquelas crianças que a coordenadora encontrou nuas estavam com o pensamento<br />

sexualizado...<br />

Fabiano:<br />

Eu trabalhava em Pedra Dourada e a escola queria expulsar uma menina que ficava<br />

com outras meninas na rua. Este assunto chegou à direção, inclusive era a [...] diretora<br />

e, ela dizia que a escola não iria saber lhe dar com a homos<strong>sexualidade</strong> dentro da<br />

escola. Aí eu perguntei se algum dia esta menina havia dado algum trabalho pra<br />

escola. A menina não tinha problemas com a escola, era extremamente educada e<br />

delicada, esta aluna respeitava o território.<br />

Alex:<br />

Para vivermos a nossa <strong>sexualidade</strong>, temos que pisar em nosso território, qual é o<br />

nosso território?<br />

Fabrícia:<br />

Tem gueto, tem que ter gueto sim...<br />

Belarmino:<br />

Eu trabalhava em Fervedouro, e tinha uma aluna que era extremamente reprimida e<br />

eu sabia que ela tinha uma certa timidez. Ela tinha uma amiga que há um ano atrás<br />

havia cometido suicídio e nesse tempo eu me deparei com ela em sala de aula.<br />

Brincava muito com ela, mas ela era uma menina que não cumpria com algumas<br />

atividades....<br />

Fabrícia:<br />

Não correspondia...<br />

Belarmino:<br />

Não correspondia e eu acabava cobrando, como cobraria de qualquer um.... e é difícil<br />

demais. Um certo dia eu a chamei na responsabilidade como chamaria qualquer aluno<br />

e no dia seguinte ela cometeu suicídio também, dois anos depois desta menina, desta<br />

grande amiga dela, com o mesmo ritual e no mesmo local.<br />

Alex:<br />

Como assim ritual?<br />

Belarmino:<br />

Elas fizeram o ritual do enforcamento e esta menina freqüentava um psicólogo e eu<br />

não sabia disso, fui saber depois... No caminho para a escola algumas pessoas me<br />

abordaram e me disseram que eu havia induzido esta menina a cometer o suicídio e<br />

isto me gerou um desconforto muito grande e fui procurar o psicólogo. Chegando lá, eu<br />

falei pra ele do problema e que eu não sabia o que fazer. O psicólogo me disse que eu<br />

não iria fazer nada, porque eu não tinha nada a fazer e me disse que o suicida<br />

programa o suicídio quarenta dias antes, o suicida não programa sua morte no repente,<br />

ele a programa. Aí ele explicou que ela era acometida de depressão, tal e tal. Eu


272<br />

descobri que esta menina estava apaixonada por mim. Eu fiquei muito desconfortável.<br />

A partir deste dia, todas as vezes que eu entro numa sala nova eu deixo bem claro:<br />

“Olha eu não gosto de namorar nem aluna e nem aluno, aliás, não me cantem porque<br />

eu nunca ficarei com vocês”, foi o que eu passei a praticar na primeira aula que eu dou,<br />

eu faço este discurso pra evitar este tipo de transtorno.<br />

Fabiano:<br />

Retornando aquela história, a menina de Pedra Dourada, não tinha nenhum problema<br />

de comportamento, mas a direção da escola queria convencer a menina que ela<br />

deveria ser hetero. Eu e o Charles travamos uma luta com a direção para convencer a<br />

direção, que ela deveria ser aquilo que ela é, aquilo que a iria fazer feliz. Hoje a gente<br />

vê aquela menina drogada pelas ruas, se masculinizou demais como forma de agredir<br />

a escola e a sociedade de Pedra Dourada, coisa que ela não era naquele tempo. Acho<br />

que esta é uma forma dela dizer para a escola, “eu estou aqui, agora estou deste jeito”.<br />

A escola não a aceitou do jeito que ela era, a escola fez ela se tornar aquilo. A escola<br />

tentou convencer que ela tinha que ser hetero e ela era uma excelente menina, uma<br />

menina exemplar em sala de aula e as meninas aceitavam. Uma turma de mulheres<br />

bonitas que aceitavam aquela menina como a maior naturalidade. A direção que não<br />

aceitava. Era uma sala de protestantes, as protestante nunca protestaram contra o<br />

comportamento dela. Todas as meninas sabiam o que ela fazia na rua, agora levar um<br />

fato da rua para dentro da escola a prejudicou.<br />

Fabrícia:<br />

Por isto que precisa existir gueto<br />

Alex:<br />

Precisa?<br />

Belarmino:<br />

Precisa...<br />

Fabrícia:<br />

Precisa sim para que esta pessoa possa se libertar.<br />

Alex:<br />

Mas o gueto liberta ou aprisiona?<br />

Fabricia:<br />

Enquanto gueto, seja ele qual for, de homossexual, de hetero, seja lá qual for, você vai<br />

estar se libertando, você vai estar se soltando ali com o seu grupo é um momento de<br />

se realizar, para a sua satisfação. Se do lado de fora existe uma parede, uma barreira<br />

que te impede de ser o que você gosta de ser, lá dentro você pode ser o que você<br />

quiser ser.<br />

Alex:<br />

Então o gueto liberta por dentro e por fora continua fechado?<br />

Fabricia:<br />

Estando no gueto você consegue se fortalecer e se fortalecendo talvez você consiga<br />

romper com o que do lado de fora está estipulado...<br />

Fabiano:<br />

Estando no gueto você vai conseguir se fortalecer pra se libertar...<br />

Alex:<br />

Então o gueto tem um lado de dentro e um lado de fora?<br />

Fabrícia:<br />

Claro. O lado de dentro fica os iguais, iguais no sentido de desejar coisas parecidas,<br />

iguais no sentido de acreditar em coisas parecidas.<br />

Alex:<br />

Ou, o gueto nos impede de vivermos nossas diferenças?<br />

Belarmino:<br />

Não. Nós somos iguais dentro do gueto...<br />

Alex:<br />

Isso pode até ser bom, mas não impediria os nossos processos de diferenciação?<br />

Fabrícia:<br />

não, nós estamos em quatro aqui e estamos respeitando a individualidade de cada<br />

um. Aqui é um gueto, nós somos quatro aqui. Quantos você convidou?<br />

Alex:<br />

Doze


273<br />

Fabrícia:<br />

Quatro, somos a terça parte. Porque estamos aqui!? Porque alguma coisa em comum<br />

nos une. Mas em inúmeras outras coisas nós pensamos diferente, a gente sabe falar a<br />

mesma língua e nos respeitamos...<br />

Belarmino:<br />

Nós somos focos de resistência e que de repente dá certo, nós temos competência...<br />

Alex:<br />

Nós resistimos a quê?<br />

Belarmino:<br />

Resistimos a uma cultura heterossexualizada, uma cultura dominante, nós somos<br />

diferença e nem por isso, nós deixamos de fazer igual dentro dos padrões exigidos pela<br />

sociedade: “que é trabalhar, lecionar, ter boa conduta, ter moral”<br />

Alex:<br />

E as pessoas que não entram neste jogo?<br />

Fabrícia:<br />

São resistentes<br />

Alex:<br />

Mas eu tenho um monte de amigos heteros que não se enquadram neste lugar, a<br />

questão não é com a gente. Fica me parecendo que para nos estabelecer de alguma<br />

maneira temos que sermos os melhores.<br />

Belarmino:<br />

Mas ela é hetero!<br />

Belarmino:<br />

Mas nós somos a minoria, ou você acha que somos a maioria?<br />

Alex:<br />

Quem é a maioria?<br />

Belarmino:<br />

São os heteros, brancos, lindos, bem sucedidos economicamente...<br />

Fabiano:<br />

Nós estamos à margem da sociedade...<br />

Belarmino:<br />

E não somos ela, nós temos capital cultural para discutir e não para reproduzir...<br />

Alex:<br />

Mas nós não estamos reproduzindo ?<br />

Belarmino:<br />

Eu não...<br />

Fabrícia:<br />

Eu não, estou falando da forma que eu penso e que acredito e te digo mais, se alguém<br />

conseguir me convencer do contrário, vai ter que ter um pouquinho de trabalho........<br />

Belarmino:<br />

Eu trabalho muito com as meninas do turno da tarde do Polivalente com a vaidade. Eu<br />

falo assim: cadê o baton, a sombra o perfume? Aí elas falam assim: Mas pra que, pra<br />

vim aqui na escola? É claro que é: Onde vocês vão, não é na escola? Então passa um<br />

baton, põem brinco. Todo tipo de aluna eu falo assim, vamos trabalhar a vaidade,<br />

vamos nos curtir, vamos nos amar!<br />

Alex:<br />

Quando você faz isso, você não está dizendo que existe um único modo para serem<br />

meninas?<br />

Belarmino:<br />

Não. Porque elas já são adolescentes e elas têm perfumes dentro de casa, têm<br />

brincos, eu falo para elas utilizarem o que elas têm dentro de casa.<br />

Alex:<br />

Mas porque elas têm que utilizar estas coisas?<br />

Belarmino:<br />

Porque elas têm que serem estimuladas na vaidade, na auto-estima delas...<br />

Alex:<br />

E quem não usa nada disso, não é vaidosa, não possui auto-estima?<br />

Belarmino:<br />

Não, de repente não e de repente elas têm vontade de usar e não têm coragem.<br />

Fabrícia:


274<br />

Pelo olhar da sociedade não é...<br />

Belarmino:<br />

Então elas têm de ser niveladas por aí.<br />

Alex:<br />

Mas elas precisam ser niveladas?<br />

Belarmino:<br />

Muitas acabam até usando, outras não. É o que a sociedade contemporânea quer.<br />

Alex:<br />

Ao agir assim, você está trabalhando com dispositivo de <strong>sexualidade</strong>?<br />

Belarmino:<br />

Sexualidade não. Estou produzindo vaidade, eu jamais apelo para o lado sexual.<br />

Alex:<br />

Mas a <strong>sexualidade</strong> não se reduz ao uso que faço do sexo...<br />

Belarmino:<br />

Então pode ser a feminilidade talvez, porque elas podem ser lésbicas, heteras,<br />

bissexuais, pansexuais, nada disso me interessa. O que interessa é que elas vão se<br />

curtir, curtir a si própria...<br />

Fabrícia:<br />

Até porque se ele não dissesse para elas colocarem baton, usarem pulseras, fazer<br />

escova nos cabelos, a imagem do professor já é referência e se eu olho para o<br />

professor bem arrumado..., ser fashon está em alta... e quem é que quer ser obeso,<br />

desleixado?...<br />

Alex:<br />

Isso é uma forma de controle, ou não?<br />

Fabrícia:<br />

Acaba se tornando, mas é muito melhor parecer com uma professora que chega no<br />

toc... toc... na sala de aula, do que com uma professora que chega numa rasteirinha, é<br />

aí que entra a singularidade de cada um, mas que não perde a complexidade, porque<br />

mesmo no individual, existe um coletivo.<br />

Fabiano:<br />

É muito melhor olhar pra um professor bonito do que pra um ...<br />

Belarmino:<br />

O físico, talvez seja o menos importante, mas o exótico também atrai, talvez mais do<br />

que é considerado o belo para os padrões contemporâneos.<br />

Fabiano:<br />

Na verdade o aluno hoje não tem muita referencia de pai e mãe em casa...<br />

Fabrícia:<br />

É o que eu to te falando, talvez nem precise que o professor fale para as alunas de<br />

baton, basta ir de baton, basta irem bem vestido, basta irem com boné de marca,<br />

com um sapato, com um tênis....<br />

Fabiano:<br />

Nós tínhamos um aluno o ano passado que ele era rebelde com todas as professoras<br />

e com os professores ele não era...<br />

Fabrícia:<br />

O problema era com a mãe?<br />

Fabiano:<br />

Não, com a ausência paterna, ele via em nós professores o seu referencial masculino.<br />

Fabrícia:<br />

Aí impunha respeito...<br />

Fabrício:<br />

Agora as professoras ele não respeitava, xingava as meninas<br />

Alex:<br />

Mas que história é esta de referencia de pai e de mãe, não estou entendendo?<br />

Fabrícia:<br />

A gente volta na questão da família.<br />

Alex:<br />

Mas o que é família?<br />

Fabrícia:<br />

Pai, mãe, irmãos e avós, mas.... na verdade, ela não é, na verdade hoje família é: O<br />

namorado da mãe, a namorada do pai,


275<br />

Fabiano:<br />

Ou o namorado do pai<br />

Belarmino:<br />

E a namorada da mãe<br />

Fabrícia:<br />

A irmãzinha adotiva, ou a irmãzinha de um outro relacionamento que é negra. Toda<br />

esta mistura é a família e muita criança não sabe para que lado olhar dentro de sua<br />

família e passa quatro horas dentro de uma escola com um sujeito que se acredita que<br />

leve informação, leve conhecimento e vai ser referência para esta criança. Como eu<br />

não vou ser referencia para esta criança?<br />

Fabiano:<br />

Acho que família pode ser todos aqueles que moram debaixo do mesmo teto<br />

Belarmino:<br />

Eu tenho uma preocupação muito grande de como eu vou trabalhar a <strong>sexualidade</strong> com<br />

a minha filha<br />

Fabiano:<br />

Como não estabelecer vínculos?<br />

Fabrícia:<br />

Como não estabelecer vínculos, tem dias que ela chega triste e é tia pra cá, tia pra<br />

lá...<br />

Alex:<br />

Então vocês estão dizendo que não existe só o modelo de família patriarcal, é isso?<br />

Fabrícia:<br />

Ele existe no discurso, é este modelo que continua a dizer que existe dia dos pais, dia<br />

das mães, mas na verdade ele não existe, mas só nós que estamos cinco dias da<br />

semana direto com a criança é que conseguimos distinguir isso e, a criança, olha pra<br />

nós como ponto de referência?<br />

Alex:<br />

Mas ela busca em nós professores uma referencia materna ou paterna?<br />

Fabrícia:<br />

Claro, ela faz transferências, claro que faz. Inúmeras vezes a criança ao desenhar e<br />

colorir e, ela se perde, ela fala ô mãe. Por que ela faz isso? Ela se encontra tão<br />

aconchegada ali dentro, que ela nos chama de mãe...<br />

Belarmino:<br />

Muitas vezes o professor faz o papel de pretor...<br />

Fabrícia:<br />

Todas as vezes que uma criança se perde na sala de aula e fala: ô pai , ou, ô mãe, eu<br />

acredito ser uma transferência de sentimentos que ela teve ali. Está tão aconchegante<br />

que ela se senti na casa dela. Ou, pode ser também que ela tenha vontade que na<br />

casa dela fosse assim. Ela acaba fazendo transferências e nesse critério de referencia<br />

é que eu vejo se a gente tem uma imagem positiva e ações legais para com a criança<br />

isso vai ser importante...<br />

Alex:<br />

Mas o que é isso de imagem positiva?<br />

Fabrícia:<br />

Imagem positiva: é carinho, é afeto...respeito com o próximo, saber o momento de<br />

limitar, eu acredito que você também pensa assim. Tem momentos que a gente tem<br />

que mostrar para criança o que ela pode e, o que ela não pode. É importantíssimo<br />

saber fazer este jogo, dar amor e ter autonomia, ter autoridade, sem entrar no<br />

autoritarismo, saber gostar e saber respeitar ....<br />

Belarmino:<br />

Independente de opção sexual,... ou vocação.... a prática de ensino não pode ser<br />

anarquizada, tem que ter regras, é necessário saber das regras...<br />

Fabrícia:<br />

Minha avó falava para não confundirmos liberdade com libertinagem.<br />

Belarmino:<br />

Minha filha tinha um namorado na escola, quando ela estudava aqui, “Gurilo” era o<br />

menino que mais a agredia. Quase todos os dias ele a espancava, batia nela, mas era<br />

apaixonado. O dia que ela não ia na escola ou, ele não ia, um dos dois passava mal.<br />

Hoje minha filha me vê constantemente acompanhando de uma pessoa e eu já vou


Alex:<br />

276<br />

tentando acrescentar isso nela, uma vez que a família dela é uma família diferente. O<br />

marido, ou, o homem da casa não é o pai dela e o pai dela tem um namorado, não tem<br />

uma namorada, são conceitos bem diferente de família....<br />

E qual a sua preocupação com isso:<br />

Belarmino:<br />

Não, não tenho preocupação nenhuma, mas eu pretendo que a minha filha entenda<br />

melhor do que outras crianças o que a sociedade de hoje é. Pra mim isso tudo é muito<br />

prazeroso, ensiná-la, estar com ela. Isso pra mim é muito prazeroso e com ela eu sei o<br />

que fazer.<br />

Fabrícia:<br />

quando a gente é pai ou é mãe a gente tem uma preocupação com nossos filhos, é<br />

uma preocupação de não querer ver nossos filhos passar por situações de sofrimento,<br />

a minha filha é uma criança tranqüila, chega até a me incomodar. Eu fico pensando até<br />

que ponto é bom ser tão tranqüilo. Eu fico pensando, o que pode acontecer nesse; “<br />

deixa a vida me levar”, nesse “ deixa a rua me levar”. Eu fico encima para ver se ela<br />

fica mais acelerada. Não que eu tenha medo de vir acontecer à mesma coisa que<br />

aconteceu comigo. Dela vir a ser mãe cedo, dela não se casar. O problema é ter que<br />

assumir responsabilidades conforme eu assumi no rompante. Opa, vai acordar cedo,<br />

vai trabalhar, porque “pariu Mateus, embale”. Quando você é um pai ou uma mãe que<br />

tem orientações, talvez você consiga lidar com isso com mais tranqüilidade. Porém,<br />

outras famílias mal estruturadas intelectualmente tenham mais problema com isso.<br />

Belarmino:<br />

O acesso à informação, ou a intelectualidade dá segurança sim, ou, tranqüilidade. As<br />

pessoas que tem mais acesso a informação sabe trabalhar melhor as diferenças, do<br />

que as que não têm..., é mais fácil aceitar o diferente.<br />

Fabrícia:<br />

Por isso nós estamos reunidos aqui hoje.<br />

Belarmino:<br />

Independente de situação financeira, nós estamos aqui, nós tivemos acesso<br />

informacional.<br />

Fabrícia:<br />

Sem contar que nós somos oriundos da camada popular.<br />

Fabiano:<br />

Viemos da margem.<br />

Alex:<br />

Olha como as questões me chegam: a gente sabe da existência de comunidades que<br />

não se movimentam dentro das convenções da intelectualidade e que lidam com a<br />

<strong>sexualidade</strong> de forma bem menos repressora do que desta dita intelectualidade.<br />

Fabiano:<br />

Ainda que existam estas comunidades, sempre existiram aqueles mais elevados, os<br />

que comandavam e que comandam.<br />

Alex:<br />

Mas por que tem que ter uma camada mais elevada?<br />

Fabrícia:<br />

Sempre existiu e sempre vai existir quem manda, vai sempre existir.<br />

Alex:<br />

Mas isso é uma ordem natural? E aí?<br />

Fabrícia:<br />

Ela é cultural e de certa forma ela se tornou natural. E aí você topa romper com<br />

isso?<br />

Alex:<br />

Mas os rompimentos não se dão primeiramente, numa relação eu comigo?<br />

Fabrícia:<br />

Exatamente, primeiro você se resolve e, se a partir daí você achar que vale a pena<br />

promover isso para outras pessoas, você começa, se não... você já está saciado...<br />

Alex:<br />

Mas eu não estaria sendo...<br />

Fabrícia:<br />

Egoísta! não, você estaria sendo individual.


277<br />

Alex:<br />

Qual é a diferença?<br />

Fabrícia:<br />

Individual, eu, pra mim<br />

Alex:<br />

Fica me parecendo que estamos achando que o mundo está pronto e que não há mais<br />

nada a ser feito, a ser construído e, que estamos naturalizando tudo.<br />

Fabrícia:<br />

Naturalizando, não, banalizando<br />

Belarmino:<br />

Banalizando<br />

Alex:<br />

Mas nesta naturalização, seria interessante irmos para os enfrentamentos e se a gente<br />

continuar a achar que as coisas são banais, naturais e que estão postas e que são “a<br />

verdade”, fica me parecendo que gente impede que outras tantas verdades possam<br />

emergir...<br />

Fabrícia:<br />

Se eu quiser deixar emergir outras verdades, vou ter que comprar uma briga com a<br />

sociedade e em grande parte destes enfrentamentos você vai se frustrar. Acho que as<br />

dúvidas desta conversa me fortalecem para a semana que vai começar. Meu telefone<br />

tocou e eu falei com a pessoa do outro lado que estava num grupo de amigos<br />

discutindo <strong>sexualidade</strong>, docência e currículo. Aí a pessoa disse o quê?! Pediu pra eu<br />

repetir, porque a pessoa não acreditou que em pleno domingo, um grupo de pessoas<br />

poderia estar reunido discutindo sobre isso. Quer dizer: nós já rompemos com alguma<br />

coisa e já estamos mostrando para algumas pessoas que a gente está querendo uma<br />

história diferente. Agora se vamos conseguir fazer o que a gente deseja é só fazendo<br />

que a gente vai saber.<br />

Alex:<br />

Em alguns momentos foi aparecendo na fala de vocês uma questão ligada a educação<br />

sexual. É possível educar o sexo? É possível educar para o sexo?<br />

Fabricia:<br />

Não, eu acho que não. E o lado animal e irracional que a gente tem ( risos ). Tem um<br />

lado da gente que a gente quer, que a gente deseja o outro, seja este outro do outro<br />

sexo, do mesmo sexo, a gente quer, então como você vai educar alguém. Imagina:<br />

Não, não queira não. Não queira o Belarmino, porque não é bom querer o Belarmino.<br />

Mas eu quero, pode quem quiser falar que não é para eu querer.Eu quero e eu vou<br />

atrás do que eu quero. Isto é instinto. O homem está ereto a mais... tem cérebro, mas<br />

o outro lado dele não conseguiu ficar de pé ( risos) e vai ser assim e é assim que é<br />

bom! Não é? Não é mesmo? É assim que é bom! Isso é prazeroso, você acorda no<br />

outro dia bem! Que bom que a gente é assim e que pena daqueles que não se<br />

resolvem...<br />

Belarmino:<br />

Até aqueles mais conservadores, possuem desejos, elas se masturbam.<br />

Fabrícia:<br />

Eu tive uma aluna que sentava na cadeira, cruzava as perninhas e passava o tempo<br />

inteiro com o cotovelo na vagina, ela ficava as quatro horas se esfregando. Teve um<br />

dia que ela suou, ou seja, ela atingiu o orgasmo. Eu não sei o que ela atingiu, mas ela<br />

atingiu, pela expressão do rosto dela eu sei. Eu não sabia o que fazer com ela, eu<br />

deixava, fazer o que? Eu ia mandar parar, ela não queria!<br />

Fabiano:<br />

Isso te incomodava?<br />

Fabrícia:<br />

Um pouco, ela não era igual às outras. Eu a pedia para parar. Falava assim: “ Faz isso<br />

não meu bem” (risos). Eu era professora de uma escola particular, a mãe pagando.<br />

Com mensalidade completa e em dia. Como que eu iria falar para esta criança e, eu<br />

não sabia também. Eu chamei a mãe para uma conversa, expliquei o que estava<br />

acontecendo e mãe disse que iria levá-la ao pediatra. Eu não podia entrar neste caso.<br />

Belarmino:<br />

O discurso do professor vai depender da clientela. O discurso da escola pública é um,<br />

da escola particular é outro E de uma escola religiosa é um outro discurso.


278<br />

Fabrícia:<br />

Da escola pública a criança fala assim: a tia manda ela parar.<br />

Belarmino:<br />

Na escola pública o discurso é muito melhor, porque ela é muito mais liberal.<br />

Fabrícia:<br />

Eu sabia o tempo todo que o pediatra não iria resolver. Ela sentia prazer e na verdade<br />

eu via que aquela criança não tinha nenhuma maldade. Se ela achasse que aquilo<br />

estava errado ou proibido, ela não faria aquilo na sala de aula no meio dos<br />

coleguinhas; eu não conseguia entender porque só ela fazia aquilo? Pra mim foi algo<br />

muito novo. Uma criança de quatro anos. O pediatra na época olhou, passou uma<br />

pomada. Aí a mãe disse pra mim que se isso viesse acontecer de novo era pra eu dizer<br />

que iria contar para o doutor(...). A mãe pediu pra eu agir assim e eu agi. Aí ela<br />

abaixava a perna.<br />

Belarmino:<br />

O pediatra foi o aparelho repressor dela.<br />

Belarmino:<br />

É por isso que nas escolas nós temos o programa afetivo sexual para trabalhar as<br />

diferenças. A equipe que eu conheço e que trabalha este programa lá na escola é<br />

formado por uma mãe de família que casou politicamente correto, tem dois filhos é<br />

catequista, ela é a quadradinha, são três professoras. A segunda é religiosa, é uma<br />

pessoa tranqüila e a terceira é lésbica. Eu acho o máximo, porque há uma diversidade<br />

comportamental entre as três e ao mesmo tempo não, porque as três são diferentes e<br />

estão trabalhando juntas no mesmo projeto. Eu acho bem legal! Eu estive assistindo e<br />

achei encantador. Eles fazem oficinas, eles aprendem a olhar uns nos olhos dos<br />

outros, aprendem a abraçar, aprendem a respeitar. Por exemplo, tem uma dinâmica<br />

interessantíssima que se divide a sala em três grupos e destes grupos são escolhidos<br />

os líderes e, um é orientado a ajudar e o outro a atrapalhar. No final os grupos expõem<br />

e mostram as dificuldades, estas dificuldades é que são as diferenças. Depois a equipe<br />

que trabalha no projeto explica que aquilo foi combinado, que a pessoa não é assim.<br />

Este projeto tem trazido resultados positivos.<br />

Os alunos estão mais educados. Eles têm mudado as atitudes em sala de aula.<br />

Inclusive você convidou uma delas para estar aqui. Acho que você deveria ir para<br />

escola para poder ver isso na escola. Acho que você deveria conversar também com a<br />

Aparecida Sampaio, pois ela é vista como a diferente. Ela trabalha em Alto Caparaó,<br />

numa comunidade onde a maioria é evangélica, conservadora. Ela é negra, ela usa<br />

salto alto, ela usa mega-hair, ela usa roupa colada, ela é a contra-ordem. Ela é contra<br />

aquilo que a sociedade de Alto Caparaó desejou pra ela. Ela ri alto, faz pós-graduação<br />

em latim, ela é louca, ela precisa ser entrevistada e ela está neste programa de afetivo<br />

sexual.<br />

Belarmino:<br />

Eu tenho um amigo meu, que da aula no colégio religioso que na escola ele é um e na<br />

rua ele é um outro. Acho que você devia entrevistar ele também, porque ele produz<br />

outras coisas. Agora eu vejo que os alunos gays têm mais dificuldade de aceitar o<br />

professor gay do que o aluno hetero...<br />

Fabrícia:<br />

Este aluno lá da sétima série que está se encontrando, passa o tempo todo ouvindo<br />

que o homossexual é a bichinha, o viadinho, a boiolinha e ele não quer ser isso, mas lá<br />

dentro dele, está gritando que ele é boiola.<br />

Belarmino:<br />

Eu tenho aprendido que estas pessoas são ativos liberais.<br />

Alex:<br />

Meu Deus, o que é isso?<br />

Belarmino:<br />

Ativo liberal é aquele que ainda não se encontrou e numa relação ele jamais será<br />

passivo, porque dá o cu é feio, dar o cu dói, dar o cu é bichinha, é viadinho, então eles<br />

são ativos liberais, eles beijam na boca, eles tem pegada forte e na verdade são gays<br />

panquecas. Essa é nova! Na hora que eles batem na cama, eles viram( risos). Ativo<br />

liberal é aquele que se acha ativo, mas na realidade ele é um gay panqueca. Ele sai<br />

para ser executador e acaba sendo executado.<br />

Fabiano:


279<br />

As pessoas continuam a achar que no sexo também tem que ter hierarquia e no<br />

discurso as pessoas querem assumir esta posição.<br />

Fabrícia:<br />

Esta coisa é muito antiga, o homem acha que é líder, que ele manda. Numa relação<br />

hetero isso também acontece, é o homem que tira a roupa, tira o sapato, ele faz tudo e<br />

a mulher fica lá passiva. Aí quando vai uma mulher louca e faz tudo no lugar do<br />

homem, fica mal falada, é a galinha, a gente passa e já se percebe os comentários.<br />

Alex:<br />

Mas, se as pessoas não a conhecem como podem falar? Existem marcas, sinais para<br />

distinguir e classificar as pessoas?<br />

Fabrícia:<br />

Eu consigo assim, olhar.....(risos) vocês por exemplo, sabemos que são pessoas bem<br />

resolvidas sexualmente...<br />

Belarmino:<br />

Eu também consigo ver isso, é sério...<br />

Fabrícia:<br />

O jeito de andar, de sentar, nas roupas. Se eu ver um cara assim, com uma calça san<br />

tropê, um tênis bam bam bam, uma camisa mais curtinha, é um visual de<br />

homossexual. Agora eu não vou mais olhar para todo homossexual como passivo,<br />

agora eu aprendi, agora eu começo a entender que é muito difícil alguém ser só<br />

passivo ou só ativo. Eu não te contei que o fulano me disse que eu não era básica e<br />

agora eu não consigo mais usar colar, porque ele me reprimiu. Estou com ódio dele,<br />

não porque ele é bicha, mas.... eu fiquei sabendo que ele não transa....Agora eu vou ter<br />

que falar para ele que eu realmente não sou básica mesmo não.... Se eu for para um<br />

lugar e não conheço ninguém e vir de lá um cara com uma calça da Vide Bula,<br />

baixinha, aparecendo à cueca, eu vou para perto dele, eu vou querer ficar perto dele,<br />

porque eu sei que ele é uma pessoa das minhas. Aí vem outro lá, assim ... eu vou ficar<br />

perto dele, é ruim ...<br />

Belarmino:<br />

A gente procura para conviver gente igual a gente, mas é bom trabalhar com gente<br />

diferente.<br />

Alex:<br />

Mas isso não é um estereótipo?<br />

Fabrícia:<br />

Mas a gente está sempre encontrando nesta vida, gente diferente, gente que não<br />

enquadra e está sempre nos trazendo surpresas. O estranho é tudo aquilo que a gente<br />

não está acostumado a ver, a ouvir, mas depois torna-se natural, normal. E quando a<br />

gente passa a conviver a gente não tem um olhar preconceituoso e sim um olhar<br />

reconhecedor. Vê se um hetero vai usar uma meia amarela. Agora eu fico vendo que<br />

tem uns menininhos que já têm tendência, eles pegam os colares e as pulseiras da<br />

gente, eles já mostram uma queda...<br />

Fabiano.<br />

É, tem uns que a gente percebe......................................


Anexo 2. Autorização<br />

280

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