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<strong>155</strong> • março _ 2013<br />
Psicopatia e<br />
racismo<br />
Preconceituoso e piegas, fruta do mato, de afrânio<br />
Peixoto, carrega o pior do naturalismo e do romantismo<br />
: : rodrigo gurgel<br />
são Paulo - sP<br />
O<br />
médico Afrânio Peixoto,<br />
eleito, a 7 de maio de<br />
1910, para a Academia<br />
Brasileira de Letras,<br />
publicou seu primeiro romance<br />
apenas no ano seguinte, quando<br />
tomou posse na instituição. Discípulo<br />
do lombrosiano Nina Rodrigues,<br />
divulgou o darwinismo social<br />
e a eugenia típicos daquele tempo.<br />
Não foi, entre nossos escritores, o<br />
primeiro a fazê-lo. Graça Aranha<br />
e Euclides da Cunha já haviam se<br />
espojado na arrogância positivista<br />
— de nefasta influência no Brasil<br />
— e repetiriam, com maior ou<br />
menor intensidade, as idéias que,<br />
durante largo tempo, dominaram<br />
inclusive a literatura. Basta pensar,<br />
por exemplo, no romancista Aluísio<br />
Azevedo e seu naturalismo, em<br />
que degradação e promiscuidade<br />
tornam-se a lei à qual todos estão<br />
definitivamente submetidos. No<br />
âmbito da ciência, alguns estudiosos<br />
apontam Afrânio Peixoto como<br />
responsável por uma campanha<br />
de difamação realizada contra seu<br />
rival, Carlos Chagas, fato que teria<br />
impedido o descobridor do protozoário<br />
Trypanosoma cruzi de receber<br />
o Nobel de Medicina.<br />
À parte essa vergonhosa questão<br />
ética, é curioso verificar que o romantismo<br />
alencariano se agrega, no<br />
romance Fruta do mato, de 1920,<br />
às influências apresentadas acima.<br />
As ficções de Afrânio Peixoto são<br />
bons exemplos de como a tradição<br />
formada por Manuel Antônio de Almeida<br />
e Machado de Assis — ou seja,<br />
o que de melhor se produziu em nossa<br />
literatura durante quase um século<br />
— demorou a vingar ou produziu<br />
frutos esparsos, às vezes esquecidos.<br />
Afrânio Peixoto e a maioria dos escritores<br />
nacionais sofreram a pior<br />
influência ao escolherem os modelos<br />
mais fáceis, prenhes de cientificismo<br />
ou retórica — e por isso mesmo desbotados<br />
de literatura.<br />
crítica inVoluntÁria<br />
O narrador e protagonista de<br />
Fruta do mato, o jovem Vergílio<br />
de Aguiar, declara-se, cheio de<br />
orgulho, leitor de Auguste Comte<br />
e Herbert Spencer. Tais leituras o<br />
impediriam de acreditar nas superstições<br />
que rondam a fazenda<br />
do Corre-Costa, cujos proprietários,<br />
um traficante de escravos e a<br />
esposa sádica, seriam demoníacos.<br />
É o que demonstra, logo no início<br />
do livro, ao debater, com os colegas<br />
Zoroastro e Espiridião, sobre a possível<br />
compra da propriedade, oferecida<br />
a preço irrisório. Forasteiro<br />
na cidadezinha de Canavieiras, no<br />
sul da Bahia, em busca de fortuna<br />
fácil, Vergílio sente-se superior a<br />
todos, mostra-se arrogante inclusive<br />
na forma de se referir à região,<br />
tratando-a como se não fizesse parte<br />
da Bahia — ou como se apenas<br />
a capital do estado representasse a<br />
verdadeira cultura baiana.<br />
Vergílio esconde, no entanto,<br />
uma contradição: é tão imaturo e<br />
frágil quanto o narrador de Lucíola,<br />
que, se recordarmos o enredo<br />
desse romance alencariano, acaba<br />
submetido à morbidez da protagonista.<br />
No caso de Vergílio, ele vence,<br />
graças às certezas que a ciência<br />
lhe infunde, as assombrações, mas<br />
termina derrotado pela sedução de<br />
Joaninha, neta do Corre-Costa, ela<br />
própria sádica desde a infância,<br />
personagem estereotipada, presuntivo<br />
símbolo do feminino, no<br />
qual se concentram manipulação e<br />
melifluidade. Afrânio Peixoto não<br />
busca construir, como ocorre em<br />
Lucíola, um arquétipo que passa,<br />
abruptamente, do extremo pecado<br />
à exaltada santidade, mas personificar<br />
o mal, retratá-lo em minúcias,<br />
desenhá-lo numa personagem plana,<br />
destituída de contrastes — e<br />
exatamente por isso inconvincente.<br />
No que se refere ao narrador, as<br />
certezas antimetafísicas só ressaltam<br />
seu infantilismo, sua fragilidade<br />
moral: ele descobre as tramóias<br />
de Joaninha, seus deletérios jogos<br />
de sedução; o que, de início, é dúvida<br />
em que se mesclam arroubo<br />
romântico, atração sexual e credulidade,<br />
torna-se certeza; nas páginas<br />
finais, o positivista obtém o<br />
testemunho, a prova almejada, que<br />
desnuda a mulher-demônio — mas<br />
termina seu relato infenso à verdade.<br />
Assim, de forma involuntária,<br />
a obra, apesar das poucas qualidades<br />
estéticas, torna-se risonha crítica<br />
ao cientificismo.<br />
misciGenação<br />
e decadência<br />
Às teses caras ao naturalismo<br />
— o homem escravo da hereditariedade<br />
e o preconceito racial —, Peixoto<br />
acrescenta sua visão deturpada<br />
das relações entre homem e mulher,<br />
criando um protagonista que vê a si<br />
mesmo como eterno dependente<br />
do sexo feminino: “Parece que é da<br />
natureza do homem ter uma mulher<br />
no sentido”, conclui Vergílio, a<br />
princípio dividido entre Gracinha,<br />
jovem que disputa com Zoroastro e<br />
Espiridião, e Joaninha. Os diminutivos,<br />
aliás, não expressam valorização<br />
afetiva ou carinho, mas julgamento<br />
moral, que se revela logo às<br />
primeiras páginas: “Sexo prevenido,<br />
desconfiado, desunido!”.<br />
As bobagens racistas espraiam-se<br />
por todo o romance.<br />
Onofre, mulato e feitor da fazenda<br />
do Corre-Costa, também apaixonado<br />
por Joaninha,<br />
é mestiço, ser ambígüo, transitório,<br />
em que duas raças ainda<br />
se digladiam num homem, quase<br />
um híbrido: resulta que despreza<br />
o negro, que já não é, mas cuja inferioridade<br />
ainda o envergonha, e<br />
inveja o branco, que não chegou<br />
a ser, e de cuja superioridade se<br />
vinga, detraindo, rebaixando-o à<br />
própria condição...<br />
Não satisfeito com a breve e<br />
pseudocientífica descrição, o narrador<br />
prossegue:<br />
Lembraram-me os infinitos<br />
mestiços que andam por aí além,<br />
por este Brasil, e cuja psicologia<br />
só pode ser esta: rancor mais ou<br />
menos declarado a todas as virtudes,<br />
méritos, talentos, instituições,<br />
costumes, dos brancos, ainda hoje<br />
em dia, como outrora o votaram<br />
aos outros seus parentes os pretos,<br />
esses bons, humildes, pacientes,<br />
serviçais, afetuosos, que, com o seu<br />
sangue, o seu braço e o seu coração,<br />
do mato grosso de nossa terra<br />
fizeram o Brasil colonial.<br />
A benevolência do narrador<br />
em relação aos negros só esclarece<br />
e sublinha seu racismo e sua interpretação<br />
da mestiçagem. Partindo<br />
dessas avaliações, Vergílio cria um<br />
excêntrico, bárbaro tribunal antropológico-histórico,<br />
no qual os mulatos<br />
seriam a pena que os brancos<br />
devem suportar:<br />
A civilização branca tem no<br />
Brasil, ainda por trezentos anos,<br />
seus inimigos latentes na mestiçagem<br />
em que vamos purgando os<br />
milhões de africanos do tráfico. É<br />
a desforra de Cam.<br />
Já não é mais o narrador<br />
quem fala, mas, sim, o médico<br />
Afrâ nio Peixoto, professor e escritor<br />
na área de Medicina Legal, cuja<br />
tese, depois de formado, intitulavase<br />
Epilepsia e crime:<br />
[...] O que o Brasil sofre, de<br />
degradação familiar, social, cívica,<br />
religiosa, moral, política, por<br />
influxo da escravidão africana,<br />
vinga o martírio de uma raça nos<br />
quatro séculos em que ajudou a<br />
criar nossa nacionalidade. A escravatura<br />
forra em 88 nos terá,<br />
sob a vergonha das suas presas,<br />
durante ainda quanto tempo? Havemos<br />
de purgar lentamente essa<br />
corrupção, o nosso castigo... se<br />
não morrermos de infecção...<br />
O próprio Onofre, mulato responsável<br />
por castigar os escravos<br />
da fazenda, incorpora as idéias do<br />
autor e revela, em seu longo depoimento,<br />
no final do romance:<br />
[...] Eu vingava neles toda a<br />
minha raiva e meu arrependimento,<br />
e, quanto mais sofria, mais era<br />
ruim. Também não me arrependo,<br />
porque essa raça amaldiçoada<br />
nasceu para o açoite... ruins, falsos,<br />
perversos, não veio outra assim<br />
no mundo.<br />
Há teses análogas em Canaã,<br />
publicado dezoito anos antes. Surpreendentemente,<br />
contudo, o pernóstico<br />
romance de Graça Aranha foi<br />
enaltecido pelos modernistas e, até<br />
hoje, tem fervorosos admiradores,<br />
enquanto Afrânio Peixoto permanece<br />
esquecido. O critério seletivo, portanto,<br />
não é estético ou ideológico,<br />
mas partidário, fazendo-nos pensar<br />
se o lema dos organizadores da Semana<br />
de 22 não era o mesmo que<br />
Sébastien-Roch Nicolas de Chamfort<br />
descobriu, a duras penas, entre os radicais<br />
franceses de 1789: “Seja meu<br />
amigo — ou eu te matarei”.<br />
descrições<br />
Como afirmei acima, o romantismo<br />
piegas de Alencar contamina<br />
Fruta do mato desde as primeiras<br />
páginas. Está presente no narrador<br />
que, caminhando solitário à noite,<br />
fala: “Sob meus pés incendiavamse,<br />
como estrelas perdidas na grama,<br />
os clarões efêmeros dos vagalumes”.<br />
E logo a seguir anseia que<br />
Gracinha estivesse com ele,<br />
mirando estrelas e vaga-lumes,<br />
eu a aspirar, com o das boasnoites,<br />
o cheiro das suas pesadas<br />
e lustrosas tranças; e, além da<br />
o autor<br />
Júlio afrânio peiXoto<br />
nasceu em lençóis, bahia, a<br />
17 de dezembro de 1876, e<br />
faleceu no rio de Janeiro, a 12<br />
de janeiro de 1947. formou-se<br />
pela faculdade de Medicina<br />
da bahia em 1897, e começou<br />
ali mesmo sua carreira<br />
universitária, notabilizando-se<br />
como professor e higienista.<br />
exerceu numerosos cargos<br />
públicos: deputado federal,<br />
higienista, professor de higiene<br />
e medicina legal, de pedagogia,<br />
sociologia e criminologia; além<br />
de crítico e historiador literário.<br />
Conferencista e professor<br />
de renome, talvez seja esse<br />
o traço fundamental da sua<br />
personalidade. deixou obra<br />
vasta: memórias e tratados<br />
de medicina legal e higiene,<br />
ensaios histórico-literários,<br />
discursos, prefácios,<br />
poemas e romances.<br />
na ficção, merecem<br />
destaque: maria<br />
bonita (1914), fruta<br />
do mato (1920), as<br />
razões do coração<br />
(1925) e sinhazinha<br />
(1929). na crítica<br />
literária, ensaios<br />
camonianos, de 1932.<br />
foi membro da academia<br />
brasileira de letras e da<br />
academia nacional de<br />
Medicina.<br />
trecho<br />
fruta do mato<br />
“sumiu-se finalmente a visão, com<br />
a distância; o ruído das vogas nas<br />
correias apertadas deu ritmo à<br />
carreira que me apartava de uma<br />
semana de minha vida, que me<br />
atiçara os desejos mais agudos, os<br />
pavores mais honestos, os sustos<br />
e perigos mais imprevistos... só me<br />
restava disso tudo um vulto perdido<br />
no fundo da memória, que me<br />
agitava o lenço branco, num adeus...<br />
eu o recomendo aos desejosos de<br />
sensações raras e duradouras.<br />
ilustração: Carolina Vigna-maRú