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Manual de gariMPo : : alberto mussa<br />
uM noMe Para Matar<br />
QUEM SOMOS C O N TA T O ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO C A R TA S<br />
Em 1967, um júri integrado<br />
por Antônio Olinto, Jorge<br />
Amado e Guimarães<br />
Rosa deu ao romance<br />
Um nome para matar a segunda<br />
colocação do prêmio Walmap,<br />
o mais importante da época, sendo<br />
ainda um dos mais prestigiosos da<br />
literatura brasileira.<br />
Não era um júri qualquer.<br />
Não era um prêmio qualquer. Nesse<br />
ano, o ganhador foi Jorge, um<br />
brasileiro, de Oswaldo França<br />
Júnior, que também não é um romance<br />
qualquer. Um nome para<br />
matar, de Maria Alice Barroso, não<br />
desmerece nem o júri, nem o prêmio,<br />
nem seu ilustre concorrente.<br />
A história se passa em Para<br />
de Deus, cidade imaginária do norte<br />
fluminense, na fronteira de Mi-<br />
COLUNISTASDOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTASPAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO<br />
: : MárCia lígia guidin<br />
são Paulo – sP<br />
Tendo convivido com um<br />
grande grupo de pesquisadoras<br />
que nos anos 1980<br />
estudava a literatura feita<br />
por mulheres no Brasil — e que<br />
vem se diluindo, pois o debate sobre<br />
gênero perdeu a relevância —, leio<br />
os contos de Cíntia Moscovich com<br />
sabor muito familiar, por isso, sem<br />
grandes surpresas ou novas alegrias.<br />
A conhecida autora de Essa<br />
coisa brilhante que é a chuva<br />
reúne nove contos de extrato doméstico<br />
e urbano, de relações algumas<br />
vezes incomuns, como no primeiro<br />
dos contos, outras trivialíssimas,<br />
como no último e um tanto entediante<br />
Uma forma de herança. O<br />
livro, no todo, lembra a obra Laços<br />
de família, de Clarice Lispector,<br />
primeira reunião de contos da escritora<br />
ucraniana. Aliás, caberia aqui o<br />
mesmo título. Apesar do respeito por<br />
momentos de ótimas construções,<br />
devo dizer que a dicção da obra de<br />
Moscovich é clariciana, sem dúvida.<br />
Como não lembrar de Lispector em<br />
trechos como: “Ele estava recostado<br />
nos travesseiros, em cima da colcha,<br />
como se, de última hora, o cotidiano<br />
se houvesse rompido” (Uma forma<br />
de herança, grifo meu)? Ou: “O silêncio<br />
do médico perturbava, e ela<br />
falou que tinha pensado em ler o resultado<br />
e que depois tinha desistido,<br />
o doutor sabia como as pessoas eram<br />
impressionáveis, a gente acha que<br />
tem tudo quando não tem nada, que<br />
coisa...” (Aos sessenta e quatro)?<br />
nas. Para de Deus é um universo<br />
ficcional fechado, que Maria Alice<br />
explora em detalhes, não só neste<br />
como em outros livros.<br />
A narrativa não é cronológica<br />
e mescla as vozes de diversas personagens.<br />
Este é o ponto onde Maria<br />
Alice atinge o ápice de sua arte:<br />
a construção das personagens.<br />
Fiquemos com uma cena:<br />
após ficar viúva, Paula, mulher sexualmente<br />
insaciável, passa a freqüentar<br />
o terreiro da fazenda, à<br />
noite, onde tem encontros com os<br />
empregados. Numa dessas escapadas,<br />
encontra os próprios filhos,<br />
que formam uma barreira na porta<br />
da cozinha. Ela, então, sacando seu<br />
revólver com cabo de madrepérola,<br />
afirma que passara a infância dando<br />
satisfação aos pais, passara a vida de<br />
uM toM dÉJà vu<br />
As metáforas insólitas, porém,<br />
são muito menos ousadas na<br />
escritora gaúcha, que também não<br />
traz grande aprofundamento na<br />
estratégia de uso do fluxo de consciência<br />
(forte marca de Lispector),<br />
como se pode ler no trecho acima.<br />
além da Janela<br />
Não é justo se compararem<br />
escritoras de décadas, regiões, momentos<br />
políticos e sociedades diferentes,<br />
sobretudo havendo ainda<br />
o eco (nem sempre bem-vindo) da<br />
influência de Clarice em tantas escritoras<br />
menores. Ocorre que Cíntia<br />
Moscovich — que não é escritora<br />
menor —, apesar de trazer à tona<br />
suas próprias qualidades (dentre<br />
elas uma aclamada suavidade),<br />
tem usado temas e relações familiares<br />
que já vinham iluminadas<br />
em épocas “femininas e feministas”<br />
— sejam quais forem as definições,<br />
hoje, desses termos tão discutidos<br />
na década de 1980. E parece repetir<br />
muitas vezes as estruturas que<br />
os sustentavam: epifanias, espantos,<br />
relações mãe-filhos, bichos domesticados<br />
e, sobretudo, o “olhar<br />
míope da mulher confinada”: aquela<br />
que enxerga de perto o detalhe,<br />
mas tem a vista nublada para o horizonte<br />
além da janela. (Como, notavelmente,<br />
definiu Gilda de Mello<br />
e Souza no estudo O vertiginoso<br />
relance, dos anos 1960).<br />
Apesar do envelhecimento do<br />
debate, a literatura “feminina” ou<br />
“feita por mulheres” ainda recebe<br />
atenção e reúne escritoras. Luiz Ruffato,<br />
por exemplo, incluiu Mosco-<br />
casada dando satisfação ao marido,<br />
mas naquele momento “queimaria”<br />
o filho que se interpusesse entre ela<br />
e a porta, para não ter que dar mais<br />
satisfação a ninguém.<br />
O romance está ancorado em<br />
quatro grandes personagens masculinas,<br />
que representam quatro<br />
gerações de uma mesma linhagem<br />
e os quatro períodos da história da<br />
cidade. A primeira delas é Chico das<br />
Lavras, o fundador, misto de profeta<br />
e justiceiro, que descobre ouro,<br />
seguindo a indicação de Deus, e<br />
vence duelos milagrosamente, contra<br />
bandidos cruéis, ladrões de cavalos<br />
e raptores de mulheres.<br />
O segundo homem da linhagem<br />
é o infeliz Zé Inácio, atormentado<br />
pelo amor incestuoso que teve com<br />
uma filha bastarda do pai, com o que<br />
vich numa conhecida coletânea de<br />
2004 sobre mulheres que estão fazendo<br />
a “nova” literatura brasileira;<br />
depois, ampliou o estudo no volume<br />
seguinte, Mais 30 mulheres que<br />
estão fazendo a nova literatura<br />
brasileira. E o jornal Cândido, da<br />
Biblioteca Pública do Paraná, volta<br />
a falar sobre elas, citando Moscovich<br />
na edição de fevereiro de 2013.<br />
Fabrício Carpinejar, conterrâneo<br />
e fino poeta, afirma, na<br />
orelha desta obra, que Cíntia será<br />
“um clássico” e que “escreve claridades”.<br />
Que sejam claridades, sim,<br />
mas para além das janelas — é,<br />
creio, o que deseja seu leitor contemporâneo,<br />
do século 21.<br />
Os finais cálidos e tranqüilizadores<br />
dos contos abrem-se para<br />
soluções quase afáveis, benfajezas.<br />
E a organização das histórias desta<br />
obra ocorre dentro de um tempo rigorosamente<br />
cronológico, um tanto<br />
primário, enquanto o tal olhar para<br />
a minudência se aprofunda:<br />
Ainda tonta ela se abaixou<br />
para juntar a colher, momento em<br />
que reparou que as pantufas de lã<br />
do marido eram sebentas, mancha<br />
em cima de mancha. Levantando<br />
o tronco não sem dificuldade, varreu<br />
com os olhos a figura diante<br />
de si: o pijama azul de listras estava<br />
tão acabado que nem dava<br />
para pano de chão, e a barriga do<br />
marido, que se tornara saliente,<br />
como se ele trouxesse uma bola<br />
logo abaixo do peito, esgarçava as<br />
casas dos últimos dois botões. (Aos<br />
sessenta e quatro)<br />
atraiu uma maldição para a família.<br />
O capitão Heleno é o terceiro<br />
deles. Filho bastardo de Zé Inácio,<br />
a quem não pôde chamar de pai durante<br />
a infância, começa a vida como<br />
um simples empregado nas propriedades<br />
paternas e acaba tomando<br />
tudo aos filhos legítimos, chegando<br />
a matar outros irmãos para garantir<br />
a posse de seis fazendas.<br />
A quarta figura masculina é<br />
Oceano, filho de Heleno e Paula. É<br />
o primogênito, herdeiro da personalidade<br />
viril e autoritária do capitão<br />
Heleno. Oceano tem um ciúme<br />
doentio da mulher — Maria Corina,<br />
moça de temperamento livre, alegre<br />
e espontâneo.<br />
Desde a noite de núpcias,<br />
Oceano tem convicção de que ela<br />
tem alma de prostituta. Excitado,<br />
Cleber Passus/divulgação<br />
a autora<br />
cíntia moscoVich<br />
Ora, a boa literatura não precisa<br />
de tragédias, mas demanda<br />
certa dor no aprofundamento. Se<br />
os temas, porque cotidianos, podem<br />
estar ao gosto do leitor, este<br />
também arde pelo registro das diferenças.<br />
E Cíntia é mais bem-sucedida<br />
quando as enfrenta.<br />
Por exemplo, no conto Gatos<br />
adoram peixe, mas odeiam molhar<br />
as patas, como é grande a impotência<br />
de Saulzinho, o menino judeu (de<br />
48 anos e 149 quilos), prisioneiro da<br />
loja familiar e do carinho doentio<br />
da mãe. Ou então, no melhor conto<br />
desta obra, A balada de Avigdor, no<br />
qual Cíntia aborda valores judeus de<br />
maneira humana e universal. Explico:<br />
quase como Capitu e Bentinho,<br />
cresciam juntos Avigdor e Débora,<br />
de pais judeus e vizinhos. Ocorre<br />
que Débora, corpulenta, preferiu<br />
o caratê às prendas domésticas e<br />
Avigdor, um “pacifista”, preferiu o<br />
balé profissional ao futebol. O sofrimento<br />
das famílias, o preconceito,<br />
as suspeitas de desvios vergonhosos<br />
torturaram os pais, que, afinal,<br />
nunca se deram conta do conceito<br />
de “normalidade”. Frágeis e submetidos<br />
a valores imutáveis, os pais<br />
sobrevivem ao cataclismo do futuro<br />
traçado apenas através da descendência<br />
do casal: “No dizer de seu<br />
Samuel, os seis filhos homens de<br />
Avigdor e Débora são ‘todos estranhamente<br />
normais’”.<br />
São estes poucos textos, com<br />
temas contemporâneos ou universais,<br />
que desligam Cíntia de Clarice.<br />
Tomara que eles apareçam mais<br />
em seu trabalho.<br />
<strong>155</strong> • março _ 2013<br />
põe a mulher na posição em que<br />
ficam as fêmeas dos animais; e<br />
pede a ela que lhe dê um nome, um<br />
nome para ele matar.<br />
Na verdade, toda a articulação<br />
do texto converge para o conflito<br />
moral de Oceano: provar as<br />
supostas traições de Maria Corina.<br />
O livro começa e termina com<br />
a mesma cena: Oceano passando<br />
pelo centro da cidade, poucos momentos<br />
antes de anunciarem a ele<br />
o misterioso suicídio da mulher.<br />
Um nome para matar foi<br />
publicado originalmente em 1967<br />
pela editora Bloch. Teve também<br />
edições da Expressão e Cultura e<br />
da Record, já na década de 1980.<br />
Os preços podem variar de R$ 8 a<br />
R$ 25. Em bom estado, R$ 15 é um<br />
valor justo.<br />
nascida em 1958, em Porto alegre (rs), Cíntia Moscovich<br />
é escritora, jornalista, tradutora e ministra cursos para<br />
escritores na PuC-rs. ganhou um prêmio Jabuti de 2004<br />
com a reunião de contos arquitetura do arco-íris,<br />
livro também finalista do Portugal telecom. Publicou<br />
ainda o reino das cebolas, anotações sobre um<br />
incêndio, por que sou gorda, mamãe?, entre outros.<br />
essa coisa<br />
brilhante que<br />
é a chuVa<br />
Cíntia Moscovich<br />
record<br />
144 págs.<br />
trecho<br />
essa coisa brilhante<br />
que é a chuVa<br />
“saulzinho passara a odiar<br />
os finais de tarde, nos quais<br />
cruzava cada vez menos<br />
com seu natálio. Cada vez<br />
mais encontrava o velho<br />
às gargalhadas com a<br />
mãe no sofá da sala, uma<br />
vergonheira tamanha jamais<br />
se havia visto. Pior: a mãe<br />
dera de arredar todos os<br />
móveis da sala para que ela<br />
e seu natálio treinassem<br />
o tango figurado, rostos<br />
juntinhos. a mãe perdera<br />
todo o recato. aquilo que<br />
parecia um desrespeito<br />
com a memória abençoada<br />
do pai também fez com<br />
que saulzinho perdesse a<br />
vontade de independência.<br />
e o apetite. Chegou a<br />
emagrecer, e o cinto que<br />
prendia as calças foi<br />
diminuído em três furos.”<br />
(gatos adoram peixe, mas<br />
odeiam molhar as patas)<br />
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