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Edição 155 - Jornal Rascunho

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Manual de gariMPo : : alberto mussa<br />

uM noMe Para Matar<br />

QUEM SOMOS C O N TA T O ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO C A R TA S<br />

Em 1967, um júri integrado<br />

por Antônio Olinto, Jorge<br />

Amado e Guimarães<br />

Rosa deu ao romance<br />

Um nome para matar a segunda<br />

colocação do prêmio Walmap,<br />

o mais importante da época, sendo<br />

ainda um dos mais prestigiosos da<br />

literatura brasileira.<br />

Não era um júri qualquer.<br />

Não era um prêmio qualquer. Nesse<br />

ano, o ganhador foi Jorge, um<br />

brasileiro, de Oswaldo França<br />

Júnior, que também não é um romance<br />

qualquer. Um nome para<br />

matar, de Maria Alice Barroso, não<br />

desmerece nem o júri, nem o prêmio,<br />

nem seu ilustre concorrente.<br />

A história se passa em Para<br />

de Deus, cidade imaginária do norte<br />

fluminense, na fronteira de Mi-<br />

COLUNISTASDOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTASPAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO<br />

: : MárCia lígia guidin<br />

são Paulo – sP<br />

Tendo convivido com um<br />

grande grupo de pesquisadoras<br />

que nos anos 1980<br />

estudava a literatura feita<br />

por mulheres no Brasil — e que<br />

vem se diluindo, pois o debate sobre<br />

gênero perdeu a relevância —, leio<br />

os contos de Cíntia Moscovich com<br />

sabor muito familiar, por isso, sem<br />

grandes surpresas ou novas alegrias.<br />

A conhecida autora de Essa<br />

coisa brilhante que é a chuva<br />

reúne nove contos de extrato doméstico<br />

e urbano, de relações algumas<br />

vezes incomuns, como no primeiro<br />

dos contos, outras trivialíssimas,<br />

como no último e um tanto entediante<br />

Uma forma de herança. O<br />

livro, no todo, lembra a obra Laços<br />

de família, de Clarice Lispector,<br />

primeira reunião de contos da escritora<br />

ucraniana. Aliás, caberia aqui o<br />

mesmo título. Apesar do respeito por<br />

momentos de ótimas construções,<br />

devo dizer que a dicção da obra de<br />

Moscovich é clariciana, sem dúvida.<br />

Como não lembrar de Lispector em<br />

trechos como: “Ele estava recostado<br />

nos travesseiros, em cima da colcha,<br />

como se, de última hora, o cotidiano<br />

se houvesse rompido” (Uma forma<br />

de herança, grifo meu)? Ou: “O silêncio<br />

do médico perturbava, e ela<br />

falou que tinha pensado em ler o resultado<br />

e que depois tinha desistido,<br />

o doutor sabia como as pessoas eram<br />

impressionáveis, a gente acha que<br />

tem tudo quando não tem nada, que<br />

coisa...” (Aos sessenta e quatro)?<br />

nas. Para de Deus é um universo<br />

ficcional fechado, que Maria Alice<br />

explora em detalhes, não só neste<br />

como em outros livros.<br />

A narrativa não é cronológica<br />

e mescla as vozes de diversas personagens.<br />

Este é o ponto onde Maria<br />

Alice atinge o ápice de sua arte:<br />

a construção das personagens.<br />

Fiquemos com uma cena:<br />

após ficar viúva, Paula, mulher sexualmente<br />

insaciável, passa a freqüentar<br />

o terreiro da fazenda, à<br />

noite, onde tem encontros com os<br />

empregados. Numa dessas escapadas,<br />

encontra os próprios filhos,<br />

que formam uma barreira na porta<br />

da cozinha. Ela, então, sacando seu<br />

revólver com cabo de madrepérola,<br />

afirma que passara a infância dando<br />

satisfação aos pais, passara a vida de<br />

uM toM dÉJà vu<br />

As metáforas insólitas, porém,<br />

são muito menos ousadas na<br />

escritora gaúcha, que também não<br />

traz grande aprofundamento na<br />

estratégia de uso do fluxo de consciência<br />

(forte marca de Lispector),<br />

como se pode ler no trecho acima.<br />

além da Janela<br />

Não é justo se compararem<br />

escritoras de décadas, regiões, momentos<br />

políticos e sociedades diferentes,<br />

sobretudo havendo ainda<br />

o eco (nem sempre bem-vindo) da<br />

influência de Clarice em tantas escritoras<br />

menores. Ocorre que Cíntia<br />

Moscovich — que não é escritora<br />

menor —, apesar de trazer à tona<br />

suas próprias qualidades (dentre<br />

elas uma aclamada suavidade),<br />

tem usado temas e relações familiares<br />

que já vinham iluminadas<br />

em épocas “femininas e feministas”<br />

— sejam quais forem as definições,<br />

hoje, desses termos tão discutidos<br />

na década de 1980. E parece repetir<br />

muitas vezes as estruturas que<br />

os sustentavam: epifanias, espantos,<br />

relações mãe-filhos, bichos domesticados<br />

e, sobretudo, o “olhar<br />

míope da mulher confinada”: aquela<br />

que enxerga de perto o detalhe,<br />

mas tem a vista nublada para o horizonte<br />

além da janela. (Como, notavelmente,<br />

definiu Gilda de Mello<br />

e Souza no estudo O vertiginoso<br />

relance, dos anos 1960).<br />

Apesar do envelhecimento do<br />

debate, a literatura “feminina” ou<br />

“feita por mulheres” ainda recebe<br />

atenção e reúne escritoras. Luiz Ruffato,<br />

por exemplo, incluiu Mosco-<br />

casada dando satisfação ao marido,<br />

mas naquele momento “queimaria”<br />

o filho que se interpusesse entre ela<br />

e a porta, para não ter que dar mais<br />

satisfação a ninguém.<br />

O romance está ancorado em<br />

quatro grandes personagens masculinas,<br />

que representam quatro<br />

gerações de uma mesma linhagem<br />

e os quatro períodos da história da<br />

cidade. A primeira delas é Chico das<br />

Lavras, o fundador, misto de profeta<br />

e justiceiro, que descobre ouro,<br />

seguindo a indicação de Deus, e<br />

vence duelos milagrosamente, contra<br />

bandidos cruéis, ladrões de cavalos<br />

e raptores de mulheres.<br />

O segundo homem da linhagem<br />

é o infeliz Zé Inácio, atormentado<br />

pelo amor incestuoso que teve com<br />

uma filha bastarda do pai, com o que<br />

vich numa conhecida coletânea de<br />

2004 sobre mulheres que estão fazendo<br />

a “nova” literatura brasileira;<br />

depois, ampliou o estudo no volume<br />

seguinte, Mais 30 mulheres que<br />

estão fazendo a nova literatura<br />

brasileira. E o jornal Cândido, da<br />

Biblioteca Pública do Paraná, volta<br />

a falar sobre elas, citando Moscovich<br />

na edição de fevereiro de 2013.<br />

Fabrício Carpinejar, conterrâneo<br />

e fino poeta, afirma, na<br />

orelha desta obra, que Cíntia será<br />

“um clássico” e que “escreve claridades”.<br />

Que sejam claridades, sim,<br />

mas para além das janelas — é,<br />

creio, o que deseja seu leitor contemporâneo,<br />

do século 21.<br />

Os finais cálidos e tranqüilizadores<br />

dos contos abrem-se para<br />

soluções quase afáveis, benfajezas.<br />

E a organização das histórias desta<br />

obra ocorre dentro de um tempo rigorosamente<br />

cronológico, um tanto<br />

primário, enquanto o tal olhar para<br />

a minudência se aprofunda:<br />

Ainda tonta ela se abaixou<br />

para juntar a colher, momento em<br />

que reparou que as pantufas de lã<br />

do marido eram sebentas, mancha<br />

em cima de mancha. Levantando<br />

o tronco não sem dificuldade, varreu<br />

com os olhos a figura diante<br />

de si: o pijama azul de listras estava<br />

tão acabado que nem dava<br />

para pano de chão, e a barriga do<br />

marido, que se tornara saliente,<br />

como se ele trouxesse uma bola<br />

logo abaixo do peito, esgarçava as<br />

casas dos últimos dois botões. (Aos<br />

sessenta e quatro)<br />

atraiu uma maldição para a família.<br />

O capitão Heleno é o terceiro<br />

deles. Filho bastardo de Zé Inácio,<br />

a quem não pôde chamar de pai durante<br />

a infância, começa a vida como<br />

um simples empregado nas propriedades<br />

paternas e acaba tomando<br />

tudo aos filhos legítimos, chegando<br />

a matar outros irmãos para garantir<br />

a posse de seis fazendas.<br />

A quarta figura masculina é<br />

Oceano, filho de Heleno e Paula. É<br />

o primogênito, herdeiro da personalidade<br />

viril e autoritária do capitão<br />

Heleno. Oceano tem um ciúme<br />

doentio da mulher — Maria Corina,<br />

moça de temperamento livre, alegre<br />

e espontâneo.<br />

Desde a noite de núpcias,<br />

Oceano tem convicção de que ela<br />

tem alma de prostituta. Excitado,<br />

Cleber Passus/divulgação<br />

a autora<br />

cíntia moscoVich<br />

Ora, a boa literatura não precisa<br />

de tragédias, mas demanda<br />

certa dor no aprofundamento. Se<br />

os temas, porque cotidianos, podem<br />

estar ao gosto do leitor, este<br />

também arde pelo registro das diferenças.<br />

E Cíntia é mais bem-sucedida<br />

quando as enfrenta.<br />

Por exemplo, no conto Gatos<br />

adoram peixe, mas odeiam molhar<br />

as patas, como é grande a impotência<br />

de Saulzinho, o menino judeu (de<br />

48 anos e 149 quilos), prisioneiro da<br />

loja familiar e do carinho doentio<br />

da mãe. Ou então, no melhor conto<br />

desta obra, A balada de Avigdor, no<br />

qual Cíntia aborda valores judeus de<br />

maneira humana e universal. Explico:<br />

quase como Capitu e Bentinho,<br />

cresciam juntos Avigdor e Débora,<br />

de pais judeus e vizinhos. Ocorre<br />

que Débora, corpulenta, preferiu<br />

o caratê às prendas domésticas e<br />

Avigdor, um “pacifista”, preferiu o<br />

balé profissional ao futebol. O sofrimento<br />

das famílias, o preconceito,<br />

as suspeitas de desvios vergonhosos<br />

torturaram os pais, que, afinal,<br />

nunca se deram conta do conceito<br />

de “normalidade”. Frágeis e submetidos<br />

a valores imutáveis, os pais<br />

sobrevivem ao cataclismo do futuro<br />

traçado apenas através da descendência<br />

do casal: “No dizer de seu<br />

Samuel, os seis filhos homens de<br />

Avigdor e Débora são ‘todos estranhamente<br />

normais’”.<br />

São estes poucos textos, com<br />

temas contemporâneos ou universais,<br />

que desligam Cíntia de Clarice.<br />

Tomara que eles apareçam mais<br />

em seu trabalho.<br />

<strong>155</strong> • março _ 2013<br />

põe a mulher na posição em que<br />

ficam as fêmeas dos animais; e<br />

pede a ela que lhe dê um nome, um<br />

nome para ele matar.<br />

Na verdade, toda a articulação<br />

do texto converge para o conflito<br />

moral de Oceano: provar as<br />

supostas traições de Maria Corina.<br />

O livro começa e termina com<br />

a mesma cena: Oceano passando<br />

pelo centro da cidade, poucos momentos<br />

antes de anunciarem a ele<br />

o misterioso suicídio da mulher.<br />

Um nome para matar foi<br />

publicado originalmente em 1967<br />

pela editora Bloch. Teve também<br />

edições da Expressão e Cultura e<br />

da Record, já na década de 1980.<br />

Os preços podem variar de R$ 8 a<br />

R$ 25. Em bom estado, R$ 15 é um<br />

valor justo.<br />

nascida em 1958, em Porto alegre (rs), Cíntia Moscovich<br />

é escritora, jornalista, tradutora e ministra cursos para<br />

escritores na PuC-rs. ganhou um prêmio Jabuti de 2004<br />

com a reunião de contos arquitetura do arco-íris,<br />

livro também finalista do Portugal telecom. Publicou<br />

ainda o reino das cebolas, anotações sobre um<br />

incêndio, por que sou gorda, mamãe?, entre outros.<br />

essa coisa<br />

brilhante que<br />

é a chuVa<br />

Cíntia Moscovich<br />

record<br />

144 págs.<br />

trecho<br />

essa coisa brilhante<br />

que é a chuVa<br />

“saulzinho passara a odiar<br />

os finais de tarde, nos quais<br />

cruzava cada vez menos<br />

com seu natálio. Cada vez<br />

mais encontrava o velho<br />

às gargalhadas com a<br />

mãe no sofá da sala, uma<br />

vergonheira tamanha jamais<br />

se havia visto. Pior: a mãe<br />

dera de arredar todos os<br />

móveis da sala para que ela<br />

e seu natálio treinassem<br />

o tango figurado, rostos<br />

juntinhos. a mãe perdera<br />

todo o recato. aquilo que<br />

parecia um desrespeito<br />

com a memória abençoada<br />

do pai também fez com<br />

que saulzinho perdesse a<br />

vontade de independência.<br />

e o apetite. Chegou a<br />

emagrecer, e o cinto que<br />

prendia as calças foi<br />

diminuído em três furos.”<br />

(gatos adoram peixe, mas<br />

odeiam molhar as patas)<br />

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