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Edição 155 - Jornal Rascunho

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22<br />

<strong>155</strong> • março _ 2013<br />

o fantasma de Woolf<br />

reunião de artigos revela os pouco conhecidos mas atuais valores feministas de VirGinia Woolf<br />

: : henrique Marques saMYn<br />

rio de Janeiro – rJ<br />

Nem sempre é concedido<br />

a Virginia Woolf o destacado<br />

lugar que merece<br />

na história do feminismo.<br />

Diversos livros acerca deste movimento,<br />

desde sínteses históricas a<br />

compêndios, passam ao largo de seu<br />

nome, deixando de abordar os muitos<br />

textos em que Woolf tratou da<br />

condição e dos direitos das mulheres.<br />

Como entender que isso ocorra?<br />

Uma pista nos é concedida<br />

por Margaret Walters — que, ao<br />

escrever uma obra introdutória ao<br />

feminismo, embora mencione já na<br />

primeira página a autora de Mrs.<br />

Dalloway, concede ênfase sobretudo<br />

ao que percebe como divergências<br />

e críticas de Woolf ao movimento<br />

feminista. Como se poderia<br />

esperar, Walters se concentra principalmente<br />

na passagem de Three<br />

guineas que clama à destruição<br />

daquela “velha palavra” — palavra<br />

que é, precisamente, “feminista”.<br />

Se o direito da mulher a obter o próprio<br />

sustento havia sido alcançado,<br />

haveria ainda necessidade de uma<br />

luta feminista? Se essa luta perdera<br />

o sentido, valeria a pena preservar<br />

aquela palavra? Observa Walters<br />

que, embora as mulheres tivessem<br />

obtido o direito de sustentarem a si<br />

mesmas (ressalte-se: não mais que<br />

uma minoria entre elas), quase um<br />

século após Woolf escrever Three<br />

guineas mulheres ainda recebem,<br />

em média, remuneração menor do<br />

que os homens quando realizam<br />

trabalhos equivalentes — para não<br />

mencionar os problemas relacionados<br />

ao trabalho doméstico.<br />

Contudo, a leitura de Margaret<br />

Walters comete sérios deslizes.<br />

É o que percebemos quando a co-<br />

: : PatriCia Peterle<br />

florianóPolis – sC<br />

O<br />

livro/texto traduzido é<br />

a materialidade apresentada<br />

ao leitor, mas o<br />

que está por trás desse<br />

fato? A tradução de poemas, romances,<br />

etc. não é um produto, é<br />

um complexo e imbricado processo<br />

de ajustes, negociações (para<br />

lembrar um livro de Umberto Eco)<br />

e tensões, que muitas vezes não<br />

são claras e transparentes. Pensar<br />

a tradução nessa perspectiva, portanto,<br />

é uma questão fundamental.<br />

De fato, traduzir é ler. Ler é uma<br />

forma de poder. Atribuir significados,<br />

ressemantizar também constitui<br />

um poder. Como pensar a(s)<br />

relação(s) do Haroldo de Campos<br />

leitor de poesia; Haroldo poeta;<br />

Haroldo tradutor; Haroldo leitor<br />

de traduções? Toda essa rede, ou<br />

pelo menos uma parte dela, pode<br />

ser vista na cuidadosa edição bilíngüe<br />

da Cosac Naify de poemas de<br />

Konstantinos Kaváfis traduzidos<br />

por Haroldo de Campos, com organização<br />

de Trajano Vieira.<br />

Essas ligações estão latentes<br />

nos quinze poemas apresentados<br />

nessa edição, que abre com o poema<br />

de Haroldo o alexandrino. Um livro<br />

de Kaváfis que inicia com uma poesia<br />

de Haroldo não pode parecer estranho?<br />

Ora, esse e outros são os caminhos<br />

tortuosos do fazer literário,<br />

e por que não do próprio processo<br />

tradutório, que não se restringe a<br />

uma mera equivalência de palavra<br />

por palavra. Aliás, Haroldo quebra<br />

com essa visão, na medida em que<br />

faz escolhas e tem preferências,<br />

a autora<br />

VirGina Woolf<br />

virginia adeline stephen Woolf<br />

nasceu em londres, inglaterra,<br />

em 1882. Participou do grupo<br />

bloomsbury, do qual também<br />

participaram e. M. forster,<br />

Katherine Mansfield, Máximo<br />

gorki, entre outros escritores,<br />

artistas e intelectuais — alguns<br />

dos quais seriam publicados pela<br />

casa editorial hogarth Press, que<br />

fundaria em 1912. seu primeiro<br />

livro, a viagem, foi publicado em<br />

1915; posteriormente, publicou<br />

mrs. dalloway (1925), rumo<br />

ao farol (1927), as ondas (1931)<br />

e orlando (1928), entre outros.<br />

Cometeu o suicídio em 1941, após<br />

uma série de colapsos nervosos.<br />

tejamos com a percepção de Naomi<br />

Black, autora de um relevante<br />

livro sobre o assunto (Virginia<br />

Woolf as feminist). Analisando<br />

o contexto de produção do texto<br />

de Woolf, Black supõe uma questão<br />

crucial: o fato de que o conceito<br />

de feminismo não é estanque, permanecendo<br />

imutável ao longo dos<br />

tempos; por conseguinte, importa<br />

rechaçar leituras anacrônicas. Assim<br />

aparelhada, Black demonstra<br />

que, na verdade, Woolf combatia<br />

um certo sentido restrito do feminismo,<br />

que o limitava à busca por<br />

demandas específicas que, na verdade,<br />

sequer eram alcançadas ple-<br />

namente — mesmo em Three guineas,<br />

encontra-se a percepção de<br />

que o direito formal à obtenção do<br />

próprio sustento fora insuficiente<br />

para garantir uma igualdade efetiva<br />

entre mulheres e homens.<br />

Era preciso, portanto, ir além:<br />

a luta contra a sociedade patriarcal<br />

deveria ser inscrita na luta política<br />

mais ampla contra a tirania estatal,<br />

e articulada com o combate à opressão<br />

étnica e religiosa. Como afirma<br />

Black: “Hoje, nós veríamos aqueles<br />

objetivos mais amplos, bem como as<br />

mudanças instrumentais na situação<br />

das mulheres, como objetivos do<br />

feminismo. Eles são os objetivos de<br />

Woolf em Three guineas. Eles são<br />

feministas, antes de tudo, devido ao<br />

seu foco inicial sobre as mulheres”.<br />

a sombra do anJo<br />

Levando-se em conta essa recepção<br />

ambivalente, é relevante que<br />

o título do volume traduzido por<br />

Denise Bottmann seja Profissões<br />

para mulheres e outros artigos<br />

feministas. Há aí uma tomada<br />

de posição: a autora de Orlando<br />

foi uma feminista, ainda que isso<br />

nem sempre tenha sido percebido<br />

— mesmo por protagonistas do feminismo.<br />

Quem tiver dúvidas certamente<br />

as revisará após uma leitura<br />

dos textos compilados, produzidos<br />

ao longo de mais de três décadas.<br />

Já o artigo que empresta o título<br />

ao volume — lido por Virginia<br />

Woolf na Sociedade Nacional de<br />

Auxílio às Mulheres em janeiro de<br />

1931, e publicado postumamente<br />

onze anos depois — aborda questões<br />

fundamentais da resistência à<br />

sociedade patriarcal. Temos uma<br />

idéia da precária situação profissional<br />

das mulheres no início do<br />

século 20 quando Woolf reconhece<br />

que, embora se dedicasse a uma<br />

PervivênCia e sobrevivênCia<br />

como fica claro no texto Kaváfis:<br />

melopéia e logopéia, no apêndice<br />

dessa publicação. Transcriar, como<br />

se sabe, é a maneira pela qual o poeta<br />

brasileiro traduz, sempre atento<br />

à “camada fônica”, nesse caso particular,<br />

a do texto de Kaváfis.<br />

Minha opção, como se verá,<br />

diverge das demais. Atenta radicalmente<br />

para a camada fônica do<br />

original e tenta ‘mimá-la’ em português,<br />

ainda que para tanto, aqui e<br />

ali, force e interprete arbitrariamente<br />

(apenas na aparência?) o texto de<br />

Kaváfis. Obter a ‘melopéia’, ‘fingir’ a<br />

sonoridade grega, é a meta.<br />

Nesse texto, importante para<br />

quem se interessa pela questão da<br />

tradução, o tradutor-poeta reflete<br />

sobre suas escolhas e expõe as<br />

suas preferências.<br />

Retomando a pergunta feita<br />

acima: poderia ser estranho, mas<br />

não é. Em o alexandrino, de forma<br />

delicada, Haroldo em versos traça<br />

o perfil de Kaváfis: “ele à sua/ mesa<br />

escreve [...] e volta-se/ de novo para<br />

o/ papel continua a metrificar suas<br />

estanças/ é paciente espera — mas<br />

tão/ carregados de futuro que neles<br />

um/ sempre moderníssimo tino se<br />

re-/-pristina minuto a minuto esbanjando/<br />

atemporânea pervivência:/<br />

se chama konstantinos kaváfis<br />

[...]” Como pensar essa “atemporânea<br />

pervivência”? Atemporânea,<br />

qualidade que independe do tempo,<br />

característica confirmada pela<br />

segunda palavra, um empréstimo<br />

do espanhol, que em português estaria<br />

para sobrevivência. Todavia,<br />

o termo “pervivência” talvez tenha<br />

outras nuances. Em latim, pervivere,<br />

verbo intransitivo, significa<br />

continuar a viver, viver por meio<br />

de ou através de. Uma vivência<br />

que continua independentemente<br />

do tempo, ela pervive. Um Kaváfis<br />

que continua vivo, ou melhor: renasce<br />

e revive, por meio da leituratradução<br />

de Haroldo de Campos.<br />

Um Kaváfis que é aquele primeiro,<br />

mas que também é outro, por meio<br />

da tradução, que renova esse primeiro.<br />

Uma origem, para lembrar<br />

Walter Benjamin, que não é estática<br />

e única, inserida no fluxo do<br />

devir, é marcada pela restauração<br />

e pela abertura. Reconstituição, de<br />

um lado, e incompletude, de outro:<br />

aqui se insere o complexo processo<br />

de tradução. Quantos caminhos<br />

tortuosos não foram perseguidos e<br />

trilhados? Aqui, se está diante de<br />

um alto nível de potencialização<br />

da arte poética.<br />

sobreVida ao teXto<br />

Ítaca, Mar matutino e À espera<br />

dos bárbaros são três dos poemas<br />

desse volume. Os mitos gregos<br />

são uma forte presença, como é<br />

possível verificar em Édipo, Aquiles<br />

e na já mencionada Ítaca. Há sem<br />

dúvida uma revisitação deles, mas<br />

a partir de uma modernidade que<br />

traz a poesia de Kaváfis. Ítaca é o<br />

destino da viagem de retorno; contudo,<br />

para o poeta grego que nasceu<br />

em Alexandria, no Egito, o que<br />

importa é viajar, o que pode acontecer<br />

no deslocamento, não a chegada.<br />

“Roga que tua rota seja longa”<br />

é o segundo verso que permeia<br />

e está presente nos demais, como<br />

em “Tua sina te assina esse desti-<br />

profissões para<br />

mulheres e outros<br />

artiGos feministas<br />

virginia Woolf<br />

trad.: denise bottmann<br />

l&PM<br />

112 págs.<br />

carreira particularmente favorável<br />

— a literatura, em que podia trilhar<br />

um caminho aberto por outras<br />

mulheres que haviam enfrentado<br />

os maiores obstáculos —, ainda<br />

assim só teve condições de obter<br />

alguma autonomia graças ao “bom<br />

dinheiro” que lhe foi garantido por<br />

“alguns excelentes antepassados”;<br />

graças a isso, “não precisava só do<br />

charme para viver”.<br />

Contudo, havia também uma<br />

necessidade de superação dos impedimentos<br />

psicológicos: é inspiradora<br />

a descrição de como Woolf<br />

ousou combater o “fantasma” que<br />

insistia em aparecer entre ela e o<br />

papel, que não por acaso intitula<br />

“O anjo do lar” — referindo-se a<br />

um poema de Coventry Patmore,<br />

publicado em 1854, no qual o autor<br />

descreve sua própria esposa como<br />

a mulher ideal, disposta a renunciar<br />

a si mesma para trazer a felicidade<br />

ao marido e ao lar. Modelo<br />

de conduta que impunha, para as<br />

mulheres da época, valores como<br />

a pureza e a ausência de opinião<br />

própria, Woolf via no Anjo do Lar<br />

poemas<br />

Konstantinos Kaváfis<br />

trad.: haroldo de Campos<br />

Cosac naify<br />

64 págs.<br />

no,/ mas não busques apressar tua<br />

viagem” . A viagem/experiência<br />

do vivido é o que está no centro da<br />

discussão. A estrofe final é interessante<br />

para pensar a “subversão”<br />

da leitura de Kaváfis: “Se te parece<br />

pobre, ítaca não te iludiu./ Agora<br />

tão sábio, tão plenamente vivido,/<br />

bem compreenderás o sentido das<br />

ítacas”. Esse movimento está presente,<br />

ainda, no cuidado rigoroso<br />

com a métrica e nos versos que não<br />

rimam. “Mar matutino” é também<br />

uma contemplação, uma renovação:<br />

“Parar aqui. Mirar um pouco a<br />

natureza [...]/ E estando aqui, não<br />

relembrar só meus fantasmas:/<br />

anamnese, ilusões — esses ícones<br />

do êxtase”. Essa poesia pode lembrar<br />

a de um outro poeta nascido<br />

em Alexandria e contemporâneo<br />

de Kaváfis, mas de origem italiana,<br />

Giuseppe Ungaretti (1888-1970),<br />

também traduzido por Haroldo. O<br />

êxtase, o arrebatamento, de Mar<br />

matutino está presente em Manhã<br />

seu pior inimigo: como produzir<br />

mesmo uma simples resenha sem<br />

pensar por si mesma ou expressar<br />

verdades pessoais?<br />

Fui para cima dela e agarrei-a<br />

pela garganta. Fiz de tudo para esganá-la.<br />

Minha desculpa, se tivesse<br />

de comparecer a um tribunal, seria<br />

legítima defesa. Se eu não a matasse,<br />

ela é que me mataria. Arrancaria<br />

o coração de minha escrita. [...]<br />

Assim, toda vez que eu percebia a<br />

sombra de sua asa ou o brilho de<br />

sua auréola em cima da página,<br />

eu pegava o tinteiro e atirava nela.<br />

Demorou para morrer. Sua natureza<br />

fictícia lhe foi de grande ajuda. É<br />

muito mais difícil matar um fantasma<br />

do que uma realidade.<br />

De fato: neste e nos outros artigos<br />

reunidos no volume, assoma uma<br />

mulher cujas qualidades em tudo se<br />

opõem às do Anjo do Lar; uma mulher<br />

que, ciente dos obstáculos impostos<br />

às mulheres pela sociedade<br />

sexista, corajosamente se lançou a<br />

combater os estereótipos e os dispositivos<br />

de poder que as condenavam<br />

à sombra. A leitura dos textos, além<br />

de prazerosa — graças à tradução<br />

segura e fluida —, é enriquecida por<br />

comentários sobre os contextos de<br />

produção e por notas de rodapé que<br />

elucidam citações e referências.<br />

Por fim, vale ressaltar o valor<br />

da publicação de Profissões<br />

para mulheres e outros artigos<br />

feministas num momento<br />

em que parece revigorada a reação<br />

antifeminista. Que os inspiradores<br />

textos de Virginia Woolf ajudem<br />

a esclarecer o que, de fato, almeja<br />

o feminismo: um mundo livre da<br />

opressão sexista, em que mulheres<br />

e homens possam ter direitos e<br />

oportunidades equivalentes.<br />

(Mattina) do poeta italiano: “Deslumbro-me/<br />

de imenso”.<br />

Em À espera dos bárbaros,<br />

cuja estrutura consiste em perguntas<br />

e respostas (dísticos), a operação<br />

cultural (transcriação) é dada<br />

por meio da leitura-releitura de<br />

Carlos Drummond de Andrade. “—<br />

Que esperamos, reunidos na ágora?/<br />

É que hoje os bárbaros chegam”<br />

são os dois primeiros versos.<br />

A resposta “os bárbaros chegam/<br />

os bárbaros chegam hoje” é como<br />

um refrão, mas não só: é a força. A<br />

iminência da chegada dos bárbaros<br />

é o que move todas as estrofes. A<br />

operação que Kaváfis constrói com<br />

a sua tradição literária e cultural<br />

tem um paralelo naquela armada<br />

por Haroldo, que aqui, no final,<br />

lê/traduz o poeta grego a partir da<br />

tradição literária brasileira. O Poema<br />

de sete faces de Drummond é a<br />

base de Haroldo para pensar o dístico<br />

final de À espera dos bárbaros:<br />

“Mundo mundo vasto mundo,/ se<br />

eu chamasse Raimundo/ seria uma<br />

rima, não seria uma solução”. Os<br />

versos finais de Kaváfis na leitura e<br />

operação de Haraldo ficam: “E nós,<br />

como vamos passar sem os bárbaros?/<br />

Essa gente não rimava conosco,<br />

mas já era uma solução”.<br />

A tradução também alimenta,<br />

renova e dá sobrevida ao texto, ou<br />

melhor — para recuperar o termo<br />

usado por Haroldo ao falar de kaváfis<br />

—, faz o texto perviver numa<br />

atemporalidade. Traduzir, portanto,<br />

significa também perviver, conceito-chave<br />

do clássico texto de Walter<br />

Benjamin sobre A tarefa do tradutor.<br />

Textos que vão se sobrepondo e<br />

formando um grande mosaico.

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