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Edição 155 - Jornal Rascunho

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4<br />

<strong>155</strong> • março _ 2013<br />

Juventude<br />

escatológica<br />

Xico sÁ potencializa as características de<br />

sua prosa para ficcionalizar seu passado<br />

: : rodrigo Casarin<br />

são Paulo – sP<br />

Big Jato, de Xico Sá, é<br />

uma merda.<br />

Mas é repleto de<br />

qualidades, a começar<br />

pelos personagens e pela história,<br />

baseada na vida do escritor, como<br />

podemos perceber já no prólogo.<br />

“A história que vem a seguir [...] é<br />

verdadeira. Estiquei ao máximo a<br />

corda da verossimilhança. Quase no<br />

pescoço”, escreve Xico, logo depois<br />

de usar uma citação de B. Traven<br />

em Viagem noturna: “De certa<br />

forma, uma história não significa<br />

nada a menos que você mesmo a<br />

tenha vivido”. Para finalizar, antes<br />

de sermos levados ao Vale do Cariri<br />

durante a primeira metade dos<br />

anos 1970, o veredicto sobre o teor<br />

autobiográfico do que vem a seguir:<br />

“Tudo isso estava muito guardado.<br />

Agora emerge por força superior. Se<br />

um homem não conta, é um homem<br />

morto”. Em seguida, entramos definitivamente<br />

no que podemos supor<br />

seja parte do passado, ainda que romanceado<br />

— leia-se “ficcionalizado”<br />

—, de Xico Sá. Um passado vivido<br />

praticamente na merda.<br />

Apesar de a história ser quase<br />

que integralmente (dois capítulos<br />

são exceção) contada por uma criança<br />

entrando na adolescência — e<br />

acreditamos representar o autor —,<br />

o grande personagem de Big Jato<br />

não é esse narrador, mas seu pai,<br />

conhecido como “o velho”, que logo<br />

descobrimos nem ser tão velho assim.<br />

Resmungão do tipo que só fala<br />

quando bêbado, bronco que finge<br />

não ter sentimentos, trabalha com<br />

o Big Jato, um caminhão de limpar<br />

fossas. Ou seja, é uma pessoa cuja<br />

vida é feita — com sucesso — sobre<br />

a merda alheia. E se orgulha disso:<br />

o Big Jato é de suma importância<br />

para toda a família, é dele que vem<br />

o sustento da casa e é graças e ele<br />

que começam a enriquecer.<br />

Com a maleabilidade típica<br />

de uma criança, o garoto narrador<br />

arquiteta sua relação com o<br />

pai — que paulatinamente ganha<br />

intensidade e entrosamento — em<br />

alicerces escatológicos. A única<br />

pessoa que parece se incomodar<br />

com o ramo de negócios do velho é<br />

sua mulher, uma dona de casa com<br />

horror ao vento — provavelmente<br />

por ser o culpado por trazer o cheiro<br />

de merda do Big Jato para dentro<br />

de casa, cheiro que está sempre<br />

impregnado em seu marido.<br />

Outro personagem importante<br />

e bastante marcante na obra<br />

é o tio do menino, irmão gêmeo do<br />

velho, mas com personalidade praticamente<br />

oposta — de igual, apenas<br />

o fanatismo pelos Beatles. Um<br />

vagabundo de primeira, que nutre<br />

horror imenso e declarado pelo trabalho,<br />

exemplo do que o velho não<br />

quer para o seu filho. Ironicamente,<br />

é esse tio o responsável por encaminhar<br />

o garoto para o seu primeiro<br />

emprego, numa rádio da cidade.<br />

Contudo, o trabalho na rádio<br />

dura pouco. Logo o rapaz precisa assumir<br />

o Big Jato por causa de uma<br />

doença que deixa o velho de cama.<br />

Para decepção da mãe, agora é o filho<br />

que sai pelas ruas do Cariri para recolher<br />

a merda dos outros. É grande o<br />

desgosto da mulher ao ver a cria herdar<br />

do pai o gosto pelas fezes alheias.<br />

Toda essa história é contada<br />

com a ajuda de referências diversas.<br />

Há diálogos com outras obras<br />

literárias, como O pequeno prín-<br />

biG Jato<br />

xico sá<br />

Companhia das letras<br />

184 págs.<br />

trecho<br />

biG Jato<br />

“Com o retorno, os<br />

pirralhos que rondavam<br />

o rancho insistiam para<br />

que eu cutucasse meu<br />

pai sobre a história<br />

da festa dos cães no<br />

Paraíso. aquela história<br />

interrompida por um<br />

desatino ventoso de um<br />

dos nobres ouvintes. não<br />

houve jeito. eu mesmo,<br />

privilegiado por já tê-la<br />

ouvido centenas de<br />

vezes na boléia, concluí<br />

para os moleques.<br />

cipe, de Antoine de Saint-Exupéry,<br />

e Grandes esperanças, de Charles<br />

Dickens, e ícones da cultura<br />

pop, como o filme O exorcista e os<br />

próprios Beatles, além de comparações<br />

relativamente sofisticadas<br />

— o pai remete a Apolo e Graciliano<br />

Ramos; o tio, a Dionísio e Vinícius<br />

de Moraes. São elementos dignos<br />

de alguém que já tem uma boa bagagem<br />

cultural e amplo repertório,<br />

alguém que volta a uma história<br />

depois de bastante tempo, não de<br />

um menino da década de 1970.<br />

putaria e seriedade<br />

No começo do livro, Xico parece<br />

acanhado, como se estivesse<br />

intimidado por estar escrevendo<br />

um romance. Contudo, não demora<br />

a mostrar suas melhores marcas.<br />

Quem acompanha o trabalho de<br />

Xico Sá em seu blog ou no jornal<br />

Folha de S. Paulo sabe que uma<br />

das principais características do<br />

escritor é a prosa bem-humorada,<br />

repleta de sacanagem, filosofia de<br />

boteco e clichês que se transformam<br />

em grandes adágios. Tudo<br />

isso também está em Big Jato.<br />

Os conhecimentos mais profundos<br />

dos personagens parecem vir diretamente<br />

dos lugares mais comuns,<br />

as sacadas são ótimas e a fixação do<br />

garoto por quem realmente faz cocô<br />

(“até o papa?”) rende diálogos escatologicamente<br />

bem-humorados.<br />

A maneira como Xico trata o sexo<br />

— que muitos dirão ser pornográfica<br />

— também proporciona grandes<br />

momentos. Eis um deles: “Se tem<br />

uma dupla que toca de ouvido, é<br />

pau e boceta, mondrongo e racha,<br />

pra-te-vai e chibiu, cara e periquito,<br />

rola e xoxota, pênis e vagina, como<br />

dizem os compêndios escolares”.<br />

Entretanto, o livro não é somente<br />

isso. Em algumas oportunidades,<br />

Xico também acaba por retratar<br />

a triste situação do sertão brasileiro,<br />

mas faz isso de maneira leve, quase<br />

que superficial. Os problemas abordados<br />

— a seca, a falta de comida, o<br />

passado sangrento, a escassez de opções<br />

para diversão, o pouco valor à<br />

vida, a violência cotidiana, a mortalidade<br />

infantil... — aparecem no diaa-dia<br />

dos personagens como algo<br />

trivial, que não desperta atenção de<br />

quem vive naquela realidade.<br />

Ao final, baseado na merda,<br />

Xico constrói um bom e divertido<br />

livro.<br />

o autor<br />

Xico sÁ<br />

nasceu em 1962 no Crato<br />

(Ce). autor de diversos livros<br />

de contos e crônicas, como<br />

caballeros solitários rumo<br />

ao sol poente, catecismo<br />

de devoções, intimidades<br />

& pornografias e modos<br />

de macho & modinhas de<br />

fêmea, xico sá também é<br />

colunista do jornal folha de<br />

s. Paulo e comentarista de<br />

programas televisivos sobre<br />

comportamento e futebol.

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