1 museu ibérico de arqueologia e arte de abrantes AT
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pedras, rochas<br />
e barreiras na pintura<br />
<strong>de</strong> maria lucília moita<br />
Como já foi afirmado em todos os<br />
Catálogos anteriores, no futuro MIAA,<br />
incluindo logo na primeira fase, que<br />
correspon<strong>de</strong> à recuperação e musealização<br />
do Convento <strong>de</strong> S. Domingos, a secção<br />
<strong>de</strong> Arte Contemporânea contemplará,<br />
principalmente, duas galerias <strong>de</strong>dicadas<br />
às colecções legadas ao Município <strong>de</strong><br />
Abrantes pelo Escultor Ch<strong>arte</strong>rs <strong>de</strong><br />
Almeida e pela Pintora Maria Lucília Moita.<br />
Na exposição Antevisão 1, apresentou-se,<br />
no coro-alto da igreja <strong>de</strong> Nossa Senhora<br />
do Castelo, uma curta selecção <strong>de</strong> obras<br />
dos dois artistas. Na mesma ocasião,<br />
foi inaugurada a impressionante Cida<strong>de</strong><br />
Imaginária Mar <strong>de</strong> Abrantes concebida<br />
por Ch<strong>arte</strong>s <strong>de</strong> Almeida na beira-Tejo,<br />
que, a partir <strong>de</strong> então, marcou a silhueta<br />
da cida<strong>de</strong> vista do rio.<br />
Na Antevisão 2, e no mesmo local<br />
da igreja do Castelo, privilegiou-se<br />
a pintura mais recente <strong>de</strong> Maria Lucília<br />
Moita, já realizada no século XXI<br />
e então ainda inédita, relacionando-a<br />
com segmentos do seu percurso anterior,<br />
sobretudo com a fase mais abstracta,<br />
dita «orgânica», dos anos setenta.<br />
Na Antevisão 3, escolhemos, para<br />
o mesmo local, outras importantes fases<br />
da obra <strong>de</strong> Maria Lucília Moita,<br />
a da chamada «reacção» à formação<br />
naturalista inicial da autora, <strong>de</strong> acentuada<br />
geometrização, e as imediatamente<br />
seguintes, em que a sua pintura enveredou<br />
pela experimentação e ten<strong>de</strong>u para um<br />
certo grau <strong>de</strong> abstracção, períodos que<br />
se documentavam através da paisagem<br />
e, sobretudo, do retrato que, a seu modo,<br />
respondiam aos fios condutores temáticos<br />
centrados na representação da figura<br />
humana e da Natureza que essa exposição<br />
valorizava.<br />
Nesta Antevisão 4, a primeira que<br />
se realiza após o falecimento da artista<br />
há poucos meses e que já não pô<strong>de</strong> contar<br />
com o seu sempre tão útil conselho,<br />
e novamente no Coro-Alto da igreja,<br />
<strong>de</strong>cidimos, <strong>de</strong> acordo com o fio condutor<br />
escolhido para a mostra, a pedra, privilegiar<br />
uma temática transversal a toda a obra<br />
<strong>de</strong> Maria Lucília Moita, a da representação<br />
ou evocação <strong>de</strong> pedras, rochas e barreiras,<br />
o que nos permite revisitar quase todo<br />
o seu percurso artístico.<br />
Ao longo da sua formação, realizada<br />
durante os já longínquos anos quarenta<br />
do século XX, Maria Lucília Moita<br />
absorveu as referências naturalistas que<br />
impunham um certo primado da visão<br />
exterior. Todavia, logo nas pinturas que<br />
apresentou nas suas primeiras exposições,<br />
a emergência <strong>de</strong> uma visão interiorizada<br />
do mundo visível dava os primeiros passos,<br />
pautando-se por uma busca da síntese<br />
espacial que se resolvia em gran<strong>de</strong>s planos<br />
<strong>de</strong> cor-luz. Contudo, tais realizações não<br />
satisfizeram a jovem artista e, vivendo num<br />
século <strong>de</strong> incessante experimentação<br />
<strong>de</strong> processualida<strong>de</strong>s, sentiu a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> percorrer novos caminhos, que, por<br />
vezes, passaram pelo abandono temporário<br />
da pintura, em favor da poesia.<br />
A reacção à herança naturalista da sua<br />
formação culminou na exposição realizada,<br />
em 1960, na Galeria do Diário <strong>de</strong> Notícias,<br />
em Lisboa. Nela apresentou uma série<br />
<strong>de</strong> óleos marcados por uma acentuada<br />
geometrização da forma (que <strong>de</strong>finiu<br />
como uma «procura <strong>de</strong> estrutura,<br />
<strong>de</strong> síntese») reforçada por pinceladas<br />
incisivas dadas paralelamente e por opções<br />
cromáticas <strong>de</strong> tons puros e mais lisos,<br />
como nas Rochas <strong>de</strong> São Martinho<br />
do Porto, <strong>de</strong> 1959, com que se inicia<br />
o percurso, que mostra bem os caminhos<br />
<strong>de</strong> renovação que Maria Lucília tentava<br />
percorrer.<br />
114<br />
Contudo, ninguém pareceu enten<strong>de</strong>r<br />
essa busca <strong>de</strong> uma via própria, pelo que a<br />
artista acabou por achar que entrara numa<br />
«fase <strong>de</strong> dureza» em que não se reconhecia.<br />
A segunda fase experimentalista que<br />
se seguiu, no imediato regresso à pintura,<br />
a partir <strong>de</strong> 1962, conduziu a pintora<br />
à exploração do quadro como superfície,<br />
no trabalho sobre as texturas, exaltando<br />
o matérico da própria execução pictural.<br />
Nesta época, encontramos Maria Lucília<br />
interessada em temáticas paisagísticas mas<br />
observadas <strong>de</strong> muito perto, procurando<br />
capturar nas diferentes texturas <strong>de</strong> pedras,<br />
rochas e barreiras a linguagem própria<br />
<strong>de</strong> uma pintura executada à espátula<br />
e com o pincel duro que procura alcançar<br />
a dimensão <strong>de</strong> uma visão cada vez mais<br />
interiorizada e i<strong>de</strong>ntificada com a «escrita»<br />
do fazer pictórico(na expressão da própria<br />
pintora, «como que escrevendo»...).<br />
São exemplo <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>manda as<br />
composições Pedra Castanha, Pedras<br />
da Serra da Estrela e Intimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pedra,<br />
todos <strong>de</strong> 1969, e Pedra e água e Brancos<br />
<strong>de</strong> Marvão no Inverno, <strong>de</strong> 1970.<br />
O <strong>de</strong>finitivo abandono da espátula<br />
e o regresso ao pincel haviam operado<br />
um efeito <strong>de</strong> síntese entre a experiência<br />
<strong>de</strong> geometrização da fase <strong>de</strong> revolta contra<br />
a pintura «aprendida» e a exploração<br />
matérica da escrita pictural que acabava<br />
<strong>de</strong> conquistar: em vários quadros<br />
dos inícios da década <strong>de</strong> setenta surgira<br />
uma pintura vigorosa <strong>de</strong> pinceladas largas,<br />
verticais ou horizontais, que prolongava<br />
e aprofundava uma visão cada vez mais<br />
analítica e quase microscópica da paisagem<br />
que vinha <strong>de</strong> trás e que antece<strong>de</strong>u a fase<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sintegração figural que emergiria<br />
a partir <strong>de</strong> 1974 e representou o momento<br />
<strong>de</strong> maior aproximação à abstracção<br />
no itinerário da pintora.<br />
Se em Casas espectrais, <strong>de</strong> 1972, cujo título<br />
tem origem no verso <strong>de</strong> uma poesia<br />
publicada no ano anterior («casas espectrais<br />
em cal / <strong>de</strong>sapossada / tempos temporais»), a<br />
referência é, ainda, perceptível, embora em<br />
acentuada diluição, nas composições Sem<br />
Título <strong>de</strong> 1973 e 1979 que se apresentam o<br />
caminho da abstracção parece instalar-se.<br />
115 <strong>museu</strong> <strong>ibérico</strong> <strong>de</strong> <strong>arqueologia</strong> e <strong>arte</strong> <strong>de</strong> <strong>abrantes</strong><br />
No termo <strong>de</strong> uma lenta reaprendizagem<br />
dos valores expressivos da própria matéria<br />
pictural, que se verificara nos inícios da<br />
década <strong>de</strong> setenta, a experiência <strong>de</strong> regresso<br />
ao pincel fê-la <strong>de</strong>sembocar, como acabamos<br />
<strong>de</strong> ver, num tratamento cada vez mais<br />
abstractizante da forma pictural.<br />
Em sucessivas composições que se<br />
esten<strong>de</strong>ram por vários anos e <strong>de</strong>finem uma<br />
abordagem que o saudoso Lima <strong>de</strong> Freitas<br />
viria a baptizar <strong>de</strong> «orgânica», <strong>de</strong>vido<br />
às sugestões <strong>de</strong> «órgãos» e <strong>de</strong> «tecidos<br />
celulares» que se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>m dos motivos,<br />
resultantes, na realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma visão cada<br />
vez mais próxima, <strong>de</strong> tipo microscópico,<br />
do próprio real, que, assim, se<br />
«<strong>de</strong>smaterializa», a pintora explora<br />
o “vazio” aparente da tela enquanto espaço<br />
<strong>de</strong> “achamento” da própria forma, que se<br />
torna assim fragmentária, imprecisa,<br />
fugidia, porque viva e quase incapturável<br />
pela cristalização do gesto pictórico,<br />
<strong>de</strong>s-figurando ou mesmo preten<strong>de</strong>ndo<br />
abolir a própria referência.<br />
Contudo, quer nesses anos, quer mesmo<br />
posteriormente, nunca Maria Lucília Moita<br />
seria consi<strong>de</strong>rada ou se consi<strong>de</strong>raria a si<br />
própria uma pintora verda<strong>de</strong>ira ou<br />
exclusivamente abstracta, tendo, por sinal,<br />
participado tanto na exposição Abstracção<br />
Hoje como na que se intitulou Figuração<br />
Hoje, ambas organizadas na Socieda<strong>de</strong><br />
Nacional <strong>de</strong> Belas Artes, a primeira em 1975<br />
e a segunda uns meses antes, em finais <strong>de</strong> 74.<br />
Por outro lado, em diversos textos poéticos<br />
que escrevera e reunira, em 1971, na<br />
colectânea Apertado mundo <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro,<br />
essa <strong>de</strong>smaterialização da referência ou<br />
a própria fragmentação do gesto, fazendo<br />
emergir o suporte, fora já anunciada,<br />
encontrando o seu equivalente ao nível<br />
da poesia numa certa <strong>de</strong>sintegração<br />
da frase pela exploração expressiva<br />
do símbolo mínimo que é cada<br />
palavra-conceito, o que levou certos<br />
críticos a falarem numa aproximação (que<br />
não era senão intuitiva) ao «concretismo»<br />
minimalista e conceptual que impregnava<br />
a melhor poesia portuguesa <strong>de</strong> então.