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ISSN-Ol 03-6963<br />

A Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong> (lSSN-0l03-6963) é uma publicação<br />

anual<strong>da</strong> Associação Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong> (<strong>Abralic</strong>), enti<strong>da</strong>de civil de<br />

caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos<br />

de Literatura Compara<strong>da</strong>, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em Porto Alegre, em 1986.<br />

DIRETORIA DA ABRALIC - 1994-1996<br />

Presidente: Eduardo F. Coutinho (UFRJ); Vice-Presidente: Beatriz Resende (UFRJ);<br />

Secretária: Angela M. Dias (UFRJ); 2 8 Secretária: Heloísa Toller Gomes (UERJ);<br />

Tesoureira: Pina Coco (PUC-RI); 2 8 Tesoureira: Lídia do Valle Santos (UFF).<br />

CONSELHO DA ABRALIC - 1994-1996<br />

Benjamin Ab<strong>da</strong>la Júnior (USP); Edson Rosa <strong>da</strong> Silva (UFRJ); Eduardo A. Duarte<br />

(UFRN); Enei<strong>da</strong> Leal Cunha (UFBA); Laura C. Padilha (UFF); Leyla Perrone-Moisés<br />

(USP); Regina Zilberman (PUC-RS); Rita T. Schmidt (UFRGS); Vera Lúcia Andrade<br />

(UFMG); Suplentes: Danilo Lobo (UNB); Sérgio Prado Bellei (UFSC).<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Dirce Cortes Riedel, Enei<strong>da</strong> Maria de Souza,<br />

Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Block de Behar,<br />

Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raúl Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner,<br />

Tania Franco Carvalhal, Yves Chevre!.<br />

Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta e exclusiva responsabili<strong>da</strong>de<br />

de seus autores.<br />

REDAÇÃO E ASSINATURAS<br />

<strong>Abralic</strong> - Associação Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong><br />

Facul<strong>da</strong>de de Letras - UFRJ<br />

Av. Brigadeiro Trompowsky, s/n - sala F-326<br />

Ci<strong>da</strong>de Universitária - Ilha do Fundão<br />

21941-590 Rio de Janeiro, RJ<br />

Te!.: (021) 590-0212 r. 284/279<br />

Fax: (021) 280-3141


© 1996. Associação Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>.<br />

Todos os direitos reservados.<br />

Nenhuma parte desta <strong>revista</strong> poderá ser reproduzi<strong>da</strong> ou transmiti<strong>da</strong> sejam quais forem<br />

os meios empregados, sem permissão por escrito.<br />

Editoração<br />

Eduardo F. Coutinho<br />

Beatriz Resende<br />

Angela M. Dias<br />

Heloísa Toller Gomes<br />

Pina Coco<br />

Lídia Santos<br />

Produção gráfica<br />

Rodrigo Rocha Coutinho<br />

Composição<br />

Carlos Alberto Herszterg<br />

Produção editorial e gráfica<br />

In-Fólio - Produção Editorial, Gráfica e Programação Visual Lt<strong>da</strong>.<br />

Rua <strong>da</strong>s Marrecas, 36 - grupos 40\ e 407 - Rio de Janeiro<br />

Te!.: (021) 533-0068 e 533-2337 - Fax: (021) 533-2898<br />

Tiragem<br />

1.200 exemplares<br />

Apoio<br />

CNPq/FINEP<br />

R349<br />

CIP·BRASIL. CATALOGAÇÃO·NA-FONTE<br />

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ<br />

Revista brasileira de literatura compara<strong>da</strong>. - N. I (1991) - Rio de Janeiro :<br />

<strong>Abralic</strong>, 1991 - v.<br />

Anual<br />

Descrição basea<strong>da</strong> em: N. 3 (1996)<br />

ISSN 0103-6963<br />

1. Literatura compara<strong>da</strong> - Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura<br />

Compara<strong>da</strong>.<br />

96-1200 CDD 809.005<br />

CDU 82.091(05)


Apresentação<br />

Com o intuito, já visível em seus números anteriores, de instaurar um<br />

ver<strong>da</strong>deiro intercâmbio entre os diversos centros nacionais e estrangeiros<br />

onde se estu<strong>da</strong> a Literatura Compara<strong>da</strong> e de interferir de modo mais eficaz no<br />

debate cultural <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de, a Associação Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong><br />

lança o terceiro número de sua <strong>revista</strong>. Este volume reúne ensaios que<br />

fornecem um retrato <strong>da</strong>s diretrizes toma<strong>da</strong>s pela disciplina em seu momento<br />

mais recente e buscam desencadear uma reflexão aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> sobre as questões<br />

que a vêm ocupando.<br />

Além do debate em torno de problemas teóricos do comparatismo, publicamos<br />

textos voltados para temas como o do nacionalismo, <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />

cultural e do diálogo de culturas. assim como outros interessados na discussão<br />

sobre novas formulações e um novo estatuto para a Historiografia e a<br />

Teoria Literárias. O debate sobre o papel do Brasil no contexto latino-americano.<br />

bem como sobre a produção cultural do continente, também ocupa boa<br />

parte <strong>da</strong>s atenções.<br />

A diferencia<strong>da</strong> procedência e os múltiplos campos de pesquisa dos colaboradores<br />

comprovam a amplitude e a importância <strong>da</strong> ABRALIC. A disposição<br />

dos ensaios, procurando respeitar a diversi<strong>da</strong>de dos interesses, resulta<br />

numa seqüência relativamente aleatória. As associações e enlaces ficam por<br />

conta do leitor.<br />

A Comissão Editorial


Sumário<br />

Does Eyptology Need a "Theory of Literature"?<br />

Hans Ulrich Gumbrecht<br />

Encontros e desencontros narrativos<br />

Eduardo Portella<br />

Hacia una historia literaria postmoderna<br />

de América Latina<br />

Mario Valdés<br />

Literatura e nação: esboço de uma releitura<br />

Luiz Costa Lima<br />

As veloci<strong>da</strong>des brasileiras de uma inimizade<br />

desvaira<strong>da</strong>: o (des)encontro de Marinetti<br />

e Mário de Andrade em 1926<br />

Jeffrey T. Schnapp e João Cezar de Castro Rocha<br />

Literatura compara<strong>da</strong> e literaturas estrangeiras no Brasil<br />

Tania Franco Carvalhal<br />

Literatura compara<strong>da</strong>. literaturas nacionais<br />

e o questionamento do cânone<br />

Eduardo F. Coutinho<br />

o romance latino-americano do pós-boom<br />

se apropria dos gêneros <strong>da</strong> cultura de massas<br />

lrlemar Chiampi<br />

09<br />

23<br />

27<br />

33<br />

41<br />

55<br />

67<br />

75<br />

Necessi<strong>da</strong>de e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de nos estudos<br />

de literatura compara<strong>da</strong><br />

Benjamin Ab<strong>da</strong>la Júnior 87


La creativi<strong>da</strong>d artística de la mujer:<br />

Como agua para chocolate<br />

María Elena de Valdés 97<br />

o leitor, de Machado de Assis a Jorf!e Luis Borf!es<br />

R;gina Zilber:wn 1 07<br />

o histórico e o urbano: sob o sif!no do estorvo<br />

Renato Cordeiro Gomes 1 21<br />

Teoria <strong>da</strong> literatura: instituição apátri<strong>da</strong><br />

Heidrun Krieger Olinto 1 31<br />

Romance e História<br />

Letícia Malard 143<br />

o enigma <strong>da</strong> fusão ficção/crítica sobre tradução:<br />

rasura de limites?<br />

Célia Maria Magalhães 151<br />

Transcodificação e metateatralização<br />

no teatro de Nelson Rodrigues<br />

Fred M. Clark 1 59<br />

Identi<strong>da</strong>de nacional e socie<strong>da</strong>de multicultural<br />

Silvano Peloso 165<br />

A nação e as narrações híbri<strong>da</strong>s: literatura<br />

hispânica dos Estados Unidos<br />

Sonia Torres 1 71<br />

As sombras <strong>da</strong> nação<br />

Luís Alberto Brandão Santos 1 79<br />

A passante e o "choque": a experiência <strong>da</strong><br />

fugaci<strong>da</strong>de no cinema e na literatura<br />

Suzi Frankl Sperber 1 87<br />

EI Síndrome de Merimée o la espafioli<strong>da</strong>d<br />

literaria de Alejo Carpentier<br />

Luisa Campuzano 1 99


Does Egyptology Need a<br />

"Theory of Literature"?<br />

Hans Ulrich Gumbrecht<br />

Would Egyptology as a discipline (or, more precisely, would a part of the<br />

discipline called "Egyptology") fare better if it intensified its intellectual<br />

exchange with the "theory of literature"? The question is more complex than<br />

it may appear at first glance - and this is true for a number of different<br />

reasons. Above ali, it is far from being obvious, at least it is far from being<br />

obvious to me, what the scholarly community of the Egyptologists needs or<br />

wants, and it is equally difficult to say what exact!y the heterogeneous<br />

enterprise of literary theory can offer to<strong>da</strong>y. Secondly, as both Egyptology<br />

and literary theory are institutions (or "discourses") with their particular<br />

histories, there is no guarantee that these two institutions/discourses will<br />

converge in that kind of dialogue or exchange whose possibility is already<br />

taken for granted in the question of whether Egyptology needs a theory of<br />

literature. A naNe approach would presuppose that Egyptology and theory of<br />

literature are nothing but the absorption of phenomenal fields (Ancient Egyptian<br />

culture and Literature) by scholarly discourses which, somehow inevitably,<br />

belong to the same categoricallevel. In reality, however, an infinity<br />

of possible perspectives and functions may shape the mediation between any<br />

field of objects and the scholarly discourses referring to it (a scholarly<br />

discourse, for example, could conceive of itself as offering the interiorization<br />

of [more or less] practical skills, or as a contribution towards the constitution


10 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

of a national identity, or as participating in the exploration of possible functions<br />

of the human mind) - so that an unproblematic encounter between<br />

discourses like those of Egyptology and literary theory (on the basis of an<br />

identical or at least similar relationship to their objects) is very unlikely.<br />

This is why, if we are serious about finding an answer, we must begin by<br />

contextualizing the question of whether Egyptology needs a theor)' of literature.<br />

We will therefore take a closer look at the historical circumstances that<br />

accompanied the emergence and the development of both Egyptology (I) and<br />

of literary theory (2) in order to identify possible epistemological and discursive<br />

asymmetries (3) between them, asymmetries which ma)' potentiaUy<br />

complicate their dialogue. While such a contextualization wiU indeed enable<br />

us to come up with an answer or, ralher, with a series of answers to our key<br />

question, these answers will remain obliqlle because. as we wiU see, the<br />

relationship between Egyplology and literar)' theory proves to be not a particularly<br />

easy one. The contemporary slale of Egyptological research offers<br />

highly interesling results to lhe disciplines in its scholarly environment (4)<br />

but, on the other hand, literary theory has a tendency to<strong>da</strong>y, stronger perhaps<br />

than ever before, of suggesting a thorough historization of the concept of<br />

"literature". Once we know which specific varieties of literature literary<br />

theory is actuaUy dealing with, this may generate serious scepticism about the<br />

applicability of results coming from literary theory to a culture as remote<br />

from the occidental tradition as that of Ancient Egypt. (5) But, then, turning<br />

around the initial question, should one not at least say that literary theory<br />

needs Egyptology? The answer is, once again, complex (6) - for it depends<br />

on how we determine the tasks and functions of literary theory. One expectation,<br />

however, remains stable within and despite such considerable complexities.<br />

With literary theory or withoUI it, Egyplologists wiU find fascinated<br />

readers inside and outside of the academic world.<br />

1<br />

It is almost uncanny to read that, several centuries ago, lhe sites of lhe<br />

pyramids were "a favorite riding, hunting and tournament ground for lhe<br />

social and military elites of Muslim Egypt" and that, for the longest time. the<br />

worldview of Islam attributed <strong>da</strong>ngerous magic int1uences to the remainders<br />

of that remote culture which nobody could understand because nobody could<br />

decipher its writing. Even those Ancient Greek authors who had accumulated<br />

such an impressive body of knowledge about the history and the institutions<br />

of their neighboring empire gave Egypt a "marginal position" within their<br />

own mappings. From the angle of the Christian tradition, final1y, the<br />

pyramids and their world were, so to speak, in a relation of half distance<br />

because, on the one side, motifs from Egyptian narratives, mediated through


I. See the entry "Mummies",<br />

in: GUMBRECHT, Hans UIrich.<br />

In 1926. An Essay on Historical<br />

SimuItaneity. Cambridge,<br />

Ms., 1997, XX-XXX.<br />

Does Egyptology Need a "Theory of Literature"? 11<br />

Coptic texts, found entry into many apocryphal stories but, on the other side,<br />

these motifs never reached the canon of the Gospel. At no other moment since<br />

its final disappearance during the times of the Roman Empire, have Ancient<br />

Egypt and its texts indeed been as close and, even on a popular leveI, so well<br />

explained as during our century within western culture. If the obsession with<br />

looking into Tutankhamen's face and the egyptomania of the 1920s were<br />

perhaps the most intense moments of this presence,I the volume of<br />

knowledge made available and the intensity of our historical understanding<br />

have dramatically increased over the past decades, while the place of Ancient<br />

Egypt within educational curricula and publishing programs seems to be as<br />

stable as ever.<br />

There is no need to insist that alI of this would not have been possible<br />

without the stunningly successful history of "Egyptology" as an academic<br />

field of research. For it belongs to our general cultural knowledge that the<br />

origins of Egyptology (with more irrefutable evidence than those of most<br />

other disciplines) go back to an initial event and to an initial achievement,<br />

i,e" to Napoleon's expedition to Egypt between 1798 and 1801, which led to<br />

the disco\'ery of the stone of Rosette and to the deciphering of the<br />

hieroglyphs. in 1822. by Champollion. In contrast. it is much less evident<br />

than for the disciplines focussing on national cultures what really motivated<br />

the Egyptologists of the first generation in their heroic labor of transcribing,<br />

translating, and editing texts. Occasionally, we can reconstruct an individual<br />

reason for such enthusiasm, like Charles Wycliff Goodwin's and François­<br />

Joseph Chabas' ambition to prove wrong the interpretation of certain papyri<br />

as a testimony for the Israelites' exodus from Egypt. On the whole, however,<br />

it appears to be symptomatic that early Egyptologists, in their large majority,<br />

were amateur scholars. During several decades, there was no obvious need<br />

nor interest on the States' side to institutionalize Egyptology as an academic<br />

discipline. It is not untypical, in this respect, that, towards the end of the 19th<br />

century, the University of Berlin became a center for the systematization<br />

(mainly consisting in writing grammars and dictionaries) of the work<br />

produced by the first generation of Egyptologists. Nowhere was the academic<br />

ideal of "covering" the full horizon of known cultures and of all the available<br />

cultural materiaIs more rigorously pursued, even in the absence of an immediate<br />

political interest, than in Prussia and, since 1871, in the Germany of<br />

the Second Empire. By 1927, it probably was quite a normal expectation that<br />

an ambitious editorial project like the Handbuch der Literaturwissenschaft<br />

(which in fact was rather a manual of literary history than of literary studies<br />

in general) would contain a chapter on Ancient Egyptian literature.<br />

This chapter in the Handbuch der Literaturwissenschaft, written by Max<br />

Pieper and published under the title "Di e aegyptische Literatur", together<br />

with a review article by Alfred Herrmann, illustrates an important bifurcation


12 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

within the history of Egyptology. While Pieper used texts labeled as "Iiterature"<br />

with the mere intention of gaining access to the history of Ancient<br />

Egyptian culture, Herrmann insisted on the task of analyzing the complete<br />

corpus ofEgyptian literature from the angle of a form-oriented reconstruction<br />

of Iiterary genres. This divergence between Pieper and Herrmann might be<br />

long forgotten, if it were not for the publication, in 197.t. and for the success<br />

of an essay in which Jan Assmann proposed a recourse to the then mueh<br />

debated (but already more than fifty years old) theones of the Russian<br />

Formalists. The intention was, once again, to de'-elop a concept of "literature"<br />

compatible with a specific sub-group within the total corpus of Aneient<br />

Egyptian texts.2 What particularly fascinated Assmann in this context was the<br />

Formalists' idea of purely relational definitions for the "Iiteratures" within<br />

each specific culture and each historical period. definitions of literature that<br />

were meant to depend entirely on the difference between the "literary" texts<br />

and their particular discursive environments. The discussion of Assmann's<br />

proposal within Egyptology seems to have led to a much less theoretically<br />

conscious concem with "literariness", to a concern also that has not always<br />

resisted the temptation of using substantialist (non-historicized) sets of<br />

criteria in order to determine which Old Egyptian texts should be regarded as<br />

"literary". Altogether, it was surprising for me to discover such an intense<br />

debate about textual classifications and about textual forms generally<br />

referred to as "aesthetic" within a discipline whose broad success has always<br />

been based on its contributions to our knowledge of cultural history. 8ut what<br />

is surprising must not necessarily be problematic or even illegitimate.<br />

2<br />

Different from Egyptology, the field of !iterary studies (as an assembly<br />

of academic disciplines that inc1ude, each, the historiography of a national<br />

literature in an European language, the practice of literary interpretation. and<br />

debates about a theory of literature) does not have a clear-eut. consensual<br />

reference when it comes to narrating its historical origino On the other hand,<br />

it is easier for literary studies than it is for Egyptology to understand why the<br />

disciplines gathered under its umbrella found strong support from the State's<br />

side and why they were thriving all over the 19th century in most European<br />

countries.3 A point of departure for narrating the history of Iiterary studies<br />

could be the then new divergence and the fast widening gap between normative<br />

conceptions of society and gap brought in to being, as a new cultural<br />

space to which, at least theoretically, every citizen had access, the sphere of<br />

leisure. Leisure was constituted by activities that either fostered the iIIusion<br />

of enjoying those privileges which the normative image of society promised<br />

to everyone (without fulfilling this promise in every<strong>da</strong>y life), or it offered<br />

2 Der literarische Text im al­<br />

ten Aegypten. Versuch einer<br />

Begriffsbestimmung_ In: OIZ<br />

69:117·26,1974.<br />

J. See GUMBRECHT, Haos UIrich.<br />

Un souffle d'Allemagoe<br />

ayaot passé. Friedrich Diez,<br />

Gaston Paris, and lhe Origins<br />

of National Philology. In: Romance<br />

Philology 40:1-37,<br />

1986; Idem The Future of Literary<br />

Studies? In: New Liferary<br />

History 26:499-519 (Summer<br />

1995); REAnINGS, BiII.<br />

The Uoiversity in Ruins. Cambridge,<br />

Ms., 1996.


.. See GUMBRECHT, Hans UIrich.<br />

Medium Literatur forthcoming<br />

in: FASSLER, ManfredJ<br />

HALBACH, W u I f I KONITZER<br />

Ralph, eds.: Mediengeschichte(n).<br />

München 1997, XXX­<br />

XXX.<br />

Does Egyptology Need a "Theory of Literature"? 13<br />

forms of experience suggesting that the perceived gap between every<strong>da</strong>y-life<br />

and the self-glorifying image of society did not "really" exist. During the<br />

decades of European Romanticism, the writing and the reading of literature<br />

became a part of this sphere of leisure. Reading literature was regarded as a<br />

kingsway towards the interiorization of the normative image of society, and<br />

literary studies were created as an institution that supported the discourses of<br />

literature in fulfilling their new function of mediating between every<strong>da</strong>y<br />

experience and the official social utopia.<br />

This occurred under two different mo<strong>da</strong>lities. Wherever the bourgeois<br />

Reforms were reactions to a situation of defeat and of national humiliation<br />

(like in Gemlany), the normative conception of society drew its values, its<br />

images, and its metaphors from a glorified, mostly medieval past which, from<br />

a (for us problematic) 19th century perspective. appeared almost naturally to<br />

be a national past. Under such circumstances. literary history and the editing<br />

of texts from the "national" past became a concem, in addition to the production<br />

of textual interpretations for the orientation of non-professional readers.<br />

In those cases, however, in which the bourgeois Reforms or Revolutions<br />

occurred without a nationally humiliating event, like in England or in France<br />

(at least before 1871), the normative image of society consisted in an ideal<br />

notion of Makind which presented itself as universal - but which, to<strong>da</strong>y, we<br />

can easily identify as composed by specifically European (and often even:<br />

nationally specific) values. A crucial condition for this framing of an<br />

academic discipline was an - again - historically specific concept of "literature"<br />

which literary studies, in their early beginnings, projected indiscriminately<br />

to the different periods of literary history.4 This concept presupposed<br />

that any literary text was the product of an inspired individual author's<br />

intention and agency (i.e. the emanation of a "genius"); that literary authors,<br />

without personally knowing their readers, were always close, in the texts they<br />

wrote, to the reader's most intimate thoughts and desires; that neither the<br />

writing nor the reaeling of those texts was informed by any concrete interest<br />

anel that, therefore, their generalized semantic status was that of fiction; that<br />

phenomena ofform played a more important role for literary texts than within<br />

any other type of discourse. Later, it became an increasingly accepted - and<br />

often feareel - expectation that literary texts had a criticai or even a "subversive"<br />

potentiaL<br />

Three important contrasts between the disciplinary development of<br />

literary studies and the early stages of Egyptology have become evident from<br />

this short description. Firstly, no specific concept of literature, neither implicitly<br />

nor explicitly, plays a foun<strong>da</strong>tion for Egyptology. Secondly, as claims<br />

for a continuity between Ancient Egyptian culture and the present of the<br />

western nations have never been made, Egyptology, unlike literary studies,<br />

does not participate in any functions of social or political legitimation. This,


14 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, nO 3<br />

thirdly, must have been a main reason why, despite the complexity of the<br />

tasks implied and despite the ear1y <strong>da</strong>te of its foun<strong>da</strong>tional events, the process<br />

of professionalization and the academic institutionalization of Egyptology<br />

occurred with a considerable delay compared to literary studies. From the<br />

point of view of the unquestioned status and the social impact of the discipline,<br />

the 19th century was probably the great age of literary studies, in<br />

particular of literary history. The discipline underwent a first serious crisis,<br />

especialIy in those countries which had folIowed the German model of<br />

academic institutionalization. during the first decades of our century - and<br />

the emergence of the subfield called "literary studies" was a direct reaction<br />

to this crisis. What became problematic. in a changing epistemological environment<br />

and under the traumatic impact of the first World War, were those<br />

idealized concepts of the nation and of Mankind which. fram their beginning,<br />

had been the most important horizons of reference for the literary disciplines.<br />

As these horizons began to vanish, literary scholars saw themselves confronted<br />

with a number of questions that had been implicitly answered (or<br />

should one rather say: that had been successfulIy silenced) by the disciplinary<br />

practice during the 19th century. These questions have ever since constituted<br />

the field of literary theory - and what has guaranteed their survival was the<br />

fact that they never found definitively satisfying answers. The first of these<br />

questions concerned the function of literary studies (now that this function<br />

could no longer consist in its contribution towards the mediation between the<br />

every<strong>da</strong>y experience and the normative image of society). The second new<br />

question carne fram the need for a metahistorical definition of literature with<br />

which to circumscribe the field of literary studies (previously, the romantic<br />

notion of literature had been taken for granted in this context and, in addition,<br />

there had been a tendency to attribute the status of "literature" to any text that<br />

could be used in the function of mediating between the normative image of<br />

society and every<strong>da</strong>y experience).5 FinalIy, it was now no longer obvious how<br />

the history of literature would relate to other lines of historical development<br />

(before, alI different histories had been seen as converging in the one normative<br />

concepts of the nation or of Mankind).<br />

These three questions were primordial, for example, within Russian<br />

Formalism which is generalIy regarded as the first "theory of literature"<br />

deserving this name. But there was another new form of practice emerging<br />

within literary studies which reacted to the crisis of the discipline. This<br />

practice, particularly influential among some of the most outstanding German<br />

scholars of the 1920s,6 did not develop a self-referential discourse as<br />

programmatic as that of Formalism and is theret"ore more difficult to identify.<br />

It presupposed a shift from discourses presenting national histories of literature<br />

as linear developments towards a paradigm ot" comparison between<br />

chronologicalIy parallel segments within different nationalliteratures. Such<br />

5 This is the reason why the<br />

medieval corpora wi thin the<br />

different European national li­<br />

terature always incJude texts.<br />

such as prayers. recipes, con­<br />

tracts etc., that we can by no<br />

means associate with our mo­<br />

dern concepts of "literature".<br />

". See GUMBRECHT, Hans UI­<br />

rich. Karl Vosslere noble Eineamkeit.<br />

Über die Ambiva­<br />

lenzen der 'inneren Emigration'''.<br />

In: GEISSLER, R./Popp.<br />

W., eds.: Wissenschaft und<br />

Nationalsozialismus. Essen,<br />

1988, 275-298; id: Pathos of<br />

the Earthly Progress'. Erich<br />

Auerbach's Every<strong>da</strong>ys. In: LE­<br />

RER, Seth, ed.: Literary Histo­<br />

ry and the Chalenge of Philo­<br />

logy. Stanford, 1996, 13-35.<br />

Regarding the emergence of<br />

the discipline of Comparati ve<br />

Literature, see PALUMBO-LIu,<br />

David: Telmos <strong>da</strong> (in)diferen­<br />

ça: Cosmopolitismo, Política<br />

Cultural e o Futuro dos estudos<br />

<strong>da</strong> Literatura. In: Cadernos<br />

<strong>da</strong> Pás/Letras. Rio de Janeiro,<br />

14:46-62, 1995.


7. In this regard, it is interesting<br />

to know that the editor of<br />

the above/mentioned Handbueh<br />

der Literaturwissensehaft<br />

was Oskar Walzel, one of<br />

the most influential representatives<br />

ofthe eomparative (and<br />

eultural-historieal) approaeh<br />

in literary studies. See e.g. his:<br />

Vom Geistesleben des 18. und<br />

19. J ahrh underts. Lei psi g,<br />

1911 (trans. into English in<br />

1932.) André Jolles' extraordinary<br />

book, Einfache Formen,<br />

(Halle, 1930), whose impact<br />

on Egyptology is mentioned<br />

by Schenkel, belongs ioto the<br />

same historieal eontext.<br />

R. This, I suppose, must be the<br />

main reason for the sceptieism,<br />

artieulated by Wolfgang<br />

Schenkel, regarding the possibility<br />

for Egyptologists to wrÍte<br />

a "History of Egyptian Iitefature".<br />

Does Egyptology Need a "Theory of Literature"? 15<br />

comparing become a way of reconstructing certain features that characterize<br />

specific periods within European culture. Literary history, in this context,<br />

turned into cultural history. It seems that Egyptology responded to both of the<br />

new paradigms which carne out of the crisis of literary studies, to literay<br />

theory and to the new discourse of cultural history. But the moments of<br />

highest intensity in these responses inverted the order in which the new<br />

paradigms had emerged. While the model of cultural history probably<br />

reached its greatest influence within Egyptology during the 1920s, (contemporary<br />

to its culminating moment in literary studies),7 the broad reception of<br />

the Formalists began only fifty years later, simultaneous to their enthusiastic<br />

rediscovery within literary studies.<br />

But it is perhaps less important for us to reconstruct the details of similar<br />

historical filiations than to emphasize those insights resulting from our brief<br />

juxtaposition of the histories of Egyptology and of literary studies (including<br />

literary theory) which directly concern the key problem oftheir epistemological<br />

compatibility. Without always taking it into account, literary studies have<br />

been based, since their beginning, on a highly specific concept of literature,<br />

a concept which is unlikely to have any more than rough parallels within<br />

Ancient Egyptian culture.8<br />

Emerging from chronologically close but culturally very different contexts,<br />

it is not surprising that the academic disciplines of Egyptology and of<br />

literary studies have developed different political concerns, different intellectual<br />

paradigms, and different discursive models. Literary theory, in specific,<br />

is an academic subfield whose questions and whose accomplishments depend<br />

direct1y on a particular moment in the history of literary studies. There is no<br />

guarantee, to say the least, that the results of literary theory can ever be<br />

successfully transferred and applied to any disciplinary field outside literary<br />

studies.<br />

3<br />

Such very general considerations about possible asymmetries between<br />

Egyptology and literary studies become more concrete as soon as one compares<br />

some of the specific conditions and difficulties under which Egyptologists<br />

do their work with the practice ofthe historian of western literatures.<br />

One of the most striking contrasts is that between an extreme scarcity of<br />

documents available for Ancient Egyptian culture and, on the other hand, an<br />

abun<strong>da</strong>nce of primary texts with which even the medievalists among literary<br />

historians are struggling to<strong>da</strong>y. If Egyptologists must ask the question, for<br />

example, whether any equivalent to a literary discourse existed during the<br />

Ancient Kingdom, if a specialist counts a total of between twenty or thirty<br />

distinguishable traditions for literary texts during the Middle Kingdom, and


16 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

if the work of editing and translating in a field as important as that of the<br />

demotic texts is still in its initial stage, then the observation of any kind of<br />

historical development within Ancient Egyptian literature, due to such scarcity<br />

of sources, has a highly hypothetical status - and the reconstruction of<br />

any intertextual networks is perhaps simply impossible. Egyptologists are<br />

certainly aware of the consequences which this situation has for the status of<br />

their discourses - up to the point where such awareness has become a<br />

key-component in the intellectual identity of their discipline. This challenge<br />

coming from the discipline's precarious documentary basis is aggravated<br />

both by the lack of any meta-commentaries and concepts, within Ancient<br />

Egyptian culture, regarding the texts characterized as "literary", and by the<br />

fragmentary character of most of the textual sources that we possesso The<br />

state of the discipline's archive and the distance that separates us, on different<br />

leveIs, from Ancient Egypt confront the Egyptologist with hermeneutic challenges<br />

that could hardly be any tougher - and any more elementary. At the<br />

same time and for the same lack of centextualizing knowledge, the highest<br />

leveIs of hermeneutic sophistication often remain inaccessible for the Egyptologist.<br />

As long as it is unclear whether or not a specific textual passage must<br />

be read as a metaphor and whether another one is a euphemism for a sexual<br />

detail or a phrase without any sexual connotations, as long as the<br />

Egyptologist's task is often reduced to "translating what he does not understand",<br />

concerns like those, for example, of deconstruction or of critique<br />

génétique are quite secon<strong>da</strong>ry.<br />

Other limits and problems of Egyptology havc to do with the multiple<br />

writing systems which Ancient Egyptian culture developed and with the<br />

materiality ofthe media which it used. Given the strictly consonantic character<br />

of these writing systems, there is no hope for us to ever imagine the sound<br />

qualities of Ancient Egyptian texts, which of course makes particularly<br />

precarious the analysis and even the identification of lyrical texts. On the<br />

other hand, one may suppose that the role played by the form of graphemes<br />

in the construction of texts, including the constitution of their content, must<br />

have been quite different from the reduced importance typically attributed to<br />

graphemes within our - logocentric - western culture. But above all the<br />

multiplicity of the writing systems and of the material media belonging to<br />

Ancient Egyptian culture makes highly problematic the assumption that<br />

Ancient Egyptian literature constituted a unity. We know that, at least statistically,<br />

certain relationships of preference existed between determinate textual<br />

genres and the different writing systems (i.e. monumental hieroglyphs,<br />

cursive hieroglyphs, hieratic writing, and demotic writing). The picture becomes<br />

even more complex - and even more potentially heterogeneous - if<br />

one takes into account, as a third leveI of reference, the different materiaIs on<br />

which texts (in different letters) were written - such as walls, papyri, wood


Y. From a similar perspective,<br />

!iterar) slUdies have discussed.<br />

during recent years, whe­<br />

ther the emergence of the concept<br />

and of the forms of Iitera­<br />

ture to which we are used in<br />

westem cultures was flot a result<br />

of the institutionalization<br />

af the printing press. See<br />

SMoLKA-KoERDT,Gisela/ SPAN·<br />

GENBERG, Peter-Michaell TILL·<br />

MANN.BARTYLLA, Dagmar,<br />

eds.; Der Urspring van Litera­<br />

ture.Medien/Rallen/Kammunikationsituationen zwischen<br />

1450 und 1650. München,<br />

1988.<br />

Does Egyptology Need a "Theory of Literature"? 1 7<br />

tablets, and ostraka. Finally, at least during the New Kingdom, situations of<br />

diglossia introduced the simultaneous existence of historically different<br />

layers of language as a further complexifying dimensiono Of course Egyptologists<br />

thematize all these problems, with special emphasis given, it seems,<br />

to the functions and generic restrictions of monumental hieroglyphs. But two<br />

overarching questions - highly interesting questions from the perspective of<br />

contemporary literary studies - still remain to be addressed. The first of these<br />

questions - the one emphasizing historical difference - is whether a more<br />

systematic approach to the phenomenal leveIs of the writing systems and of<br />

the material media would not generate new insights into the institutionalization<br />

of and the distinction between different communicative forms, especially<br />

between those communicative forms that remain without self-reference in<br />

Ancient Egyptian culture and must therefore be recuperated inductively.9<br />

Which are the gemes, for example, that only materialized in monumental<br />

writing? The second question is a self-reflexive question regarding the<br />

present state of lhe Egyptological debates. If we make an association between<br />

the western concept of literature, logocentrism, and a lack of attention dedicated<br />

to what Derri<strong>da</strong> calls the "exteriority of writing", could we then say that<br />

the Egyptologists' fascination with the (inevitably homogenizing) concept of<br />

"literature" necessarily implies the risk of losing out of sight the dimensions<br />

of the writing systems and of the media?<br />

4<br />

To emphasize, as the previous section did, that Egyptogists are confronted<br />

with difficulties and tasks unknown to literary critics and historians<br />

of Iiterature, with tasks also that sometimes seriously Iimit their possibilities<br />

of understanding and of historical reconstruction, does of course not mean<br />

that Egyptology has nothing to offer to its neighboring disciplines. The<br />

contrary is the case. Whenever Egyptologists, in their analytical practice,<br />

have not been relying on the universal validity of certain patterns generalized<br />

within western cultures, they have produced insights that are the more important<br />

for the historians and theorists of literature as they are all highly<br />

counterintuitive. In their majority, these insights focus on the pragmatic<br />

conditions for lhe production and reception of texts in Ancient Egypt. Of<br />

particular interest are the manifold and complementary observations regarding<br />

the status of writing and of writing competence. Based on the fact, trivial<br />

for Egyptologists, that the quantitatively most important source for texts from<br />

Ancient Egypt are indeed tombs, the logical consequence that texts not<br />

having to do with tombs constitute the exception has made questions about<br />

the functions of these "other texts" particularly productive. These questions<br />

drew new attention to the - only vaguely institutionalized - social situation


18 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

of Aneient Egyptian sehools and generated the thesis that knowing how to<br />

read and how to write (and, with it, the eapacity of "inhabiting" a eertain<br />

number of highly eanonized texts) was synonymous with "being an Egyptian".<br />

As soon, however, as we aecept this suggestion, the historie aI reference<br />

of "being an Egyptian" is reduced to a smalI elite within that culture, more<br />

precisely to "the titled and official classes". If papyri were the most frequently<br />

used material medium facilitating this process of socialization, it is obvious<br />

that the royal inscriptions in monumental hieroglyphs fulfilled different<br />

functions. Above alI, they were meant to impose a specific impact on the<br />

beholders and their behavior, and they thus became part of "the state's<br />

memorial of elite values".<br />

In the context of similar reflections and reconstructions, Egyptologists<br />

rely on the concept of "genre", especially on an interpretation of "genre"<br />

coming from Protestant theologylO which presents each recurrent textual<br />

form as shaped by a specific "Sitz im Leben". Such attention given to the<br />

frame conditions under which texts were produced and used has greatly<br />

differentiated the understanding of the relationship between power and religion<br />

in Ancient Egypt. The knowledge of certain texts and their content was<br />

indeed an essential condition for the pharaoh's power. To read those texts<br />

meant to reenact a set of ideological models. Within Egyptian culture, such<br />

constant commemoration of certain values constituted a necessary function<br />

that was covered by the broad corpus of di<strong>da</strong>ctic texts. For, typically, Egyptian<br />

gods were not expected to provide cIear-cut distinctions between sins and<br />

virtues, and they therefore left a void regarding ethical orientation - which<br />

theology in and by itself could not easily filI. A particularly interesting genre,<br />

a genre with a very different - but also religious - origin is that of autobiography.<br />

Without any exceptions, its early manifestations were dedicated to<br />

what was the central project in every Egyptian's life: the reassurance of aspiritual<br />

and, in a certain sense, also material - survival after one's physical<br />

death. This wish, which transcended the mere hope of being remembered by<br />

one's posterity, this wish for "real presence" (and the allusion to a key-motif<br />

ofmedieval theology is deliberate here) explains why we find early autobiographies<br />

as hieroglyphic inscriptions carved into widely visible stelae that<br />

were erected in public places. While such early examples of autobiography<br />

always render a highly conventional and highly idealized image ofthe person<br />

in question, the genre ended up coming much cIoser to our modern expectations<br />

of an individualized and individualizing account. This historical development<br />

culminates in the fictional narrative about the life of Sinuhe, the<br />

perhaps most unusual and (according to our modem criteria) the most "literary"<br />

text within Ancient Egyptian culture. That such changes on the leveI of<br />

genre-typical content went along with a development of the generic functions<br />

appears from certain changes, occurring over the centuries, in the mediatic<br />

presentation of autobiographical writing. But as c10se as the forms and<br />

10. See J AUSS. Haos Robert.<br />

1beorie der Gattungen und Literatur<br />

des Mittelalters. In:<br />

DE!.BoUIU.A, Maurice, ed.<br />

Grundiss der rornanischen Literaturen<br />

des Mitte1alters. Heidelberg,<br />

1972. Vol. I, 107-<br />

138. esp. 129-134.


Does Egyptology Need a "Theory of Literature"? 19<br />

functions of certain Egyptian genres may come to certain patterns of the<br />

western tradition, important and interesting differences remain. A particularly<br />

striking case is the concretization of the function of entertainment within the<br />

Egyptologists' debates. Often, "entertainment" seems to have responded to<br />

the need of calrning the pharaoh's temper - which, at the Egyptian court,<br />

meant much more than just pleasing or flattering the ruler. For the pharaoh's<br />

temper, perhaps even his melancholy (if we may use this word despite its<br />

historically very specific meaning), constituted situations of concrete <strong>da</strong>nger<br />

for the courtiers and even for the members of the royal family. Being interpreted<br />

as part of a cosmologícal disorder, the pharaoh's temper was never<br />

reduced to just being the symptom of an unp1easant individual disposition.<br />

One of the most fascínating aspects within the pragmatics of Ancient<br />

Egyptian texts (a topíe that hterary historians should more systematically<br />

explore) regards the question of authorship. While most texts are not related<br />

to any name at alI. Egyptologísts are certain that. in the cases of those two<br />

genres whose texts are quite regularly attributed 10 individuaIs, i.e. in the case<br />

of di<strong>da</strong>ctic Iiterature and in that of autobiography. the name-references do not<br />

correspond 10 our modem criteria of authorship. Regarding the autobiographies,<br />

there is no reason to believe that those in whose name they were written<br />

- in the first person - were those who actually composed the texts. If it is<br />

characteristic for di<strong>da</strong>ctic texts that they present themselves as the work of<br />

individuaIs (mostly of individuaIs that had lived in a chronologically remote<br />

age), we tend to believe that, with a few exceptions, these attributions were<br />

invented because they gave the texts that specific aura of dignity which we<br />

associate with wisdom. The sum of such observations regarding the question<br />

of authorship suggests that we need to rethink the entire problem for the<br />

context of Ancicnt Egyptian culture. This rethinking has indeed already<br />

begun. Egyptologists have thus come to postulate that, from the point of view<br />

of authorial agency, the pharaoh may have been regarded as the only and<br />

universal author of ali texts - not unlike the god of the Christian Middle ages<br />

for whom the Latin word "auctor" was reserved. Others think that the role of<br />

authorship may have corresponded, at least for the majority of the texts<br />

transmitted, to the owners of monumental tombs.<br />

5<br />

The topic, predominant within the pragmatics of Ancient Egyptian culture,<br />

of the intricate and seemingly ubiquitous relationships between those<br />

texts which Egyptologists define as "literature" and the different forms of<br />

religious practice brings us back to the main question with which this essay<br />

is confronted. It is the question (now more abviaus in its complexity) af<br />

whether ane can successfuly apply certain definitians af "literature" and


20 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

other results of Iiterary theory to Ancient Egyptian culture. Let us discuss one<br />

more example. Together, literary and theological texts constitute "the<br />

majority of our evidence" for the existence of myths during the Middle<br />

Kingdom. This precisely explains the impression that aesthetic functions and<br />

functions of magic were often intertwined, and that, although any kind of<br />

magic implies strong claims of referentiality, fictional texts could be used in<br />

contexts of magic practice. In the case of this interesting discursive configuration,<br />

too strong an emphasis on the "literariness" of certain texts and,<br />

as its consequence, an isolation of these "literary" texts from the rest of the<br />

Egyptian corpus could imply the risk of missing - or even of losing - insights<br />

into those phenomena of cultural alterity by which the neighboring disciplines<br />

of Egyptology and the non-academic readership are so particularly<br />

fascinated. Conversely, a not sufficiently skeptical application of the concept<br />

of literature may also run the risk of producing effects of homogenization and<br />

impressions of homogeneity that are as problematic as the effects of isolating<br />

literature from its discursive environment. Therefore, Egyptologists who seek<br />

a dialogue with the most recent debates in literary studies should pay specific<br />

attention to its present tendency of developing distinctions between different<br />

leveIs of mediality, to a tendency, that is, which has opened up new perspectives<br />

of internaI differentiation and historization within the field of western<br />

literatures. 1l For it is Iikely that the application of this aspect to Ancient<br />

Egyptian culture could, in turn, generate insights of paradigmatic value for<br />

Iiterary studies. The functional differentiation between different writing systems<br />

in Ancient Egypt, for example, appears to be more complex and, at the<br />

same time, more systematized than in any of the western Iiteratures. In<br />

contrast, analyses about the degrees of "poeticity" represented by certain<br />

Egyptian texts or investigations regarding their status as "artworks", as impressive<br />

as their argumentations may sometimes look, will always be accompanied<br />

by doubts about their historical and cultural appropriateness.<br />

At the end, an outsider cannot quite repress the question what is at stake<br />

in the Egyptologists' contemporary fascination with a concept of literature<br />

adopted from literary theory - if so much seems to be at risk. Doubtlessly,<br />

this fascination must be motivated and guided by some intuitions which the<br />

outsider, for a sheer lack of reading competence, is not capable of sharing. In<br />

the interest of a fruitful intellectual exchange between the disciplines, it<br />

would certainly be helpful to make more explicit these intuitions which have<br />

led to the be\ief that \iterature, in the western sense of the word, was a part of<br />

Ancient Egyptian culture. But is it too simplistic to go one step further and<br />

ask whether, in addition, the concern 01' a small group of specialists not to lose<br />

the contact with the ongoing debates in the neighboring disciplines may have<br />

played a role in Egyptology's shift to "literariness"? On the one hand, it can<br />

only be in the interest of the scholars of modern Iiteratures that Egyptologists<br />

11 See, as evidence for this<br />

concern. a number of the contributions<br />

to GUMBRECHT,<br />

Hans Ulrich / PFEIFFER, K.<br />

Ludwig, eds.: Materialities of<br />

Communication. Stanford,<br />

1994.


22 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, na 3<br />

ogy not inevitably imply the problematic presuppostion that something like<br />

a common denominator of "the human" must exist? And do we not run the<br />

risk of reducing the fascinating alterity of a culture like that of Ancient Egypt<br />

if we oblige ourselves to constantly compare and compatibilize it, under the<br />

pressure of such an "anthropological" framework, with phenomena belonging<br />

to different cultures? While such reservations are hard to eliminate, there<br />

is of course also the <strong>da</strong>nger, on the other hand, of endlessly indulging in the<br />

exotic otherness of Egyptian culture. This would be the <strong>da</strong>nger of "orientalizing"15<br />

Ancient Egypt, the <strong>da</strong>nger of an attitude as inacceptable, from an<br />

epistemological point of view, as the tendency towards uncritical and boundless<br />

totalization which is inherent to the paradigm ofhistorical anthropology.<br />

In cultural moments like ours, where the validity of the most venerable<br />

forms of practice, with their under1ying presuppositions and values, is no<br />

longer self-evident, we are condemned (or should we rather say: we are<br />

blessed with the opportunity) to speculate about possible preconscious fascinations<br />

that condition our choices and our behavior. In this .sense, it has<br />

been said,16 that what we call "historical culture" may be driven by a desire<br />

to speak to the dead. There is no other field which illustrates this thesis more<br />

convincingly than the institutionalized relationship between contemporary<br />

culture, academic and popular, and the culture of Ancient Egypt. If we are<br />

only ready to admit that, at least for the time being, we have no better - honest<br />

- reason for our fascination with Ancient Egypt (and for our fascination with<br />

so many other cultures of the past) than the desire to speak to the dead, then<br />

it becomes evident that our view of Ancient Egypt relies on a strong aesthetic<br />

component. Such an insight - or has it more of a confession? - causes a<br />

remarkable shift in the significance of our initial questiono For the answer to<br />

this question, the answer to the question whether Egyptology needs theory of<br />

literature, would then no longer depend on our inclination- or reluctance -<br />

to identify the texts of Ancient Egypt as "literary". Rather, we would have to<br />

deal with the problem of whether we want to acknowledge "as literary" the<br />

texts produced by the discipline of Egyptology. If wc do so, we inevitably<br />

transform the question about the usefulness of literary theory for Egyptology<br />

from an object-related question into a self-reflexive problem. And there is<br />

certainly reason to believe that some of the very best texts written by Egyptologists<br />

manifest and facilitate such an aesthetic approach towards the past.<br />

15. Despite ao exuberaol varie­<br />

ty of interpretations aod applications,<br />

one Slill feels obliged<br />

lO refer lo lhe genealogical origin<br />

of lbis concepl, SAID, Edward<br />

W. Orientalism. New<br />

York.I978.<br />

1


Encontros e<br />

desencontros<br />

narrativos<br />

Eduardo Portella<br />

Edward W. Said montou um sistema comparativo de considerável teor crítico,<br />

que desdobra contrastes e confrontos, disjunções e confluências, no interior<br />

de uma opção pluridisciplinar promissora. Isto vem acontecendo mais<br />

declara<strong>da</strong>mente, e com maior amplitude, desde o seu controvertido livro<br />

Orientalism (1978). E se acentua e se desgarra no universo narrativo de<br />

Culture and Imperialism (1992). O autor aparece como o comparatista escrupuloso<br />

que, mediante cortes transversais criteriosamente programados, confronta<br />

representações nacionais e transnacionais, recorrendo a referências<br />

éticas e estéticas conheci<strong>da</strong>s, mas a todo instante revisita<strong>da</strong>s. Despreconceituosamente.<br />

Said compara literaturas, inscrevendo a sua vontade comparatista no<br />

interminável horizonte <strong>da</strong> cultura. E assim ele igualmente coteja culturas e<br />

civilizações. O seu Oriente-Expresso, jamais desativado, percorre diferentes<br />

províncias textuais, tanto ao Norte quanto ao Sul. Com o firme propósito de<br />

desprovincianizar. A premissa é a de que o "cânone orientalista" por nós<br />

adotado não oculta nunca a sua procedência absorventemente ocidental.<br />

A lente bifocal de Edward W. Said o permite enxergar, com razoável<br />

precisão, os desenlaces e os enlaces que ao longo <strong>da</strong> história, escrita enviesa<strong>da</strong>mente<br />

por ocidentais e não-ocidentais, vem reunindo, mesmo que de forma<br />

inamistosa, a cultura e o imperialismo. Ele põe a própria biografia, a sua


24 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

diáspora pessoal, o discernimento ágil, a serviço de reconstruções possíveis,<br />

desde que elabora<strong>da</strong>s para além dos reducionismos persistentes, <strong>da</strong>s colisões<br />

inúteis, <strong>da</strong>s polari<strong>da</strong>des monolíticas. Começa por constatar que "o vínculo<br />

entre cultura e política imperial é assombrosamente direto". Por isso deve ser<br />

entendido em to<strong>da</strong> a sua plurali<strong>da</strong>de.<br />

Edward Said, no seu livro Cultura e Imperialismo (São Paulo: Companhia<br />

<strong>da</strong>s Letras, 1995), desloca o eixo habitual, ou apenas explícito, desse<br />

sistema de trocas desiguais, e passa a considerar, e explorar criticamente, o<br />

fervor e a febre colonizadora de certas instâncias que, do ponto de vista <strong>da</strong><br />

dominação, vinham sendo subestima<strong>da</strong>s ou simplesmente esqueci<strong>da</strong>s. É o<br />

caso <strong>da</strong> narrativa, do relato romanesco, de Joseph Conrad a Rudyard Kipling,<br />

a Graham Greene, a Albert Camus, a V.S.Naipaul, a García Márquez, a<br />

Salmon Rushdie, e dos discursos edificantes, acompanhados de alguma ressonância<br />

proveniente de Jean-François Lyotard e Michel Foucault. Said não<br />

esconde nem censura o desempenho expansionista <strong>da</strong> alta literatura. Obras<br />

emblemáticas <strong>da</strong>s relações crispa<strong>da</strong>s entre império e cultura são convoca<strong>da</strong>s<br />

a testemunhar. Edward Said prioriza o romance como espaço interpretativo.<br />

Sem deixar de recorrer a Verdi, a Yeats, a Césaire, a Amilcar Cabral, a Fanon,<br />

a Lukács. Talvez os seus mais assíduos companheiros de viagem, certamente<br />

os mais próximos de nós. Ele utiliza textos de temperaturas sensivelmente<br />

contrastivas, permanecendo longe, bem longe, <strong>da</strong> "lista de Schindler" às<br />

avessas, que Harold Bloom, em hora menos feliz (The Western Canon, 1994)<br />

resolveu nos impor.<br />

A experiência imperial, no ângulo <strong>da</strong> crítica <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> criação<br />

narrativa, parece ganhar uma transparência jamais alcança<strong>da</strong> pelas disciplinas<br />

isolacionistas, que se dedicam a dividir o conhecimento em compartimentos<br />

estanques, e se mostram insensíveis à ambivalência <strong>da</strong>s situações simbólicas.<br />

Edward Said, recorrendo a uma espécie de razão narrativa, combina,<br />

mescla, reprograma, abor<strong>da</strong>gens aparentemente distantes. Até mesmo conceitos<br />

como o de "imperialismo" - idéia-chave do seu livro -, ele o discute<br />

no interior do paradoxo, por acreditar na força <strong>da</strong> contraparti<strong>da</strong>, na i<strong>da</strong> e volta<br />

profícua de vencedores e vencidos. Sem deixar de denunciar a estupidez e a<br />

ilusão <strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>de excludente, marca identitária dos impérios ascendentes,<br />

Said chega a uma conclusão que, se retira<strong>da</strong> do contexto mais amplo do<br />

seu longo ensaio, seria certamente chocante e inaceitável: "O imperialismo<br />

consolidou a mescla de culturas e identi<strong>da</strong>des numa escala global". As visões<br />

separatistas ou nativistas se esgotaram porque nunca souberam entender essa<br />

complexi<strong>da</strong>de. A dominação ultramarina dispunha dessa dupla face, desse<br />

espelho partido, que a narrativa colonizadora deu forma, em meio a intermináveis<br />

contradições. Com uma sutileza que afasta a exasperação, Said aponta<br />

igualmente as derrapagens graves de críticos do colonialismo como Tocqueville<br />

e Gide. O colonizador bárbaro, para esses libertários tão estimados, é


Encontros e desencontros literários 25<br />

sempre a nação, ou o império, concorrente. A voraci<strong>da</strong>de dos conquistadores<br />

não poupa sequer os parceiros <strong>da</strong> aventura ocidentalizadora.<br />

A argumentação de Edward Said privilegia o papel do romance na empresa<br />

e consoli<strong>da</strong>ção dos impérios ocidentais modernos, destaca a narrativa<br />

como elemento determinante no processo de decisão imperial. Jane Austen,<br />

a silenciosa cartógrafa de Mansfield Park, mapeia, com rara nitidez, os<br />

limites excludentes do império. O rolo compressor <strong>da</strong> ficção européia <strong>da</strong><br />

opulência passa por cima <strong>da</strong>s frágeis aspirações independentistas. A avalanche<br />

<strong>da</strong> cultura metropolitana, à medi<strong>da</strong> que se propaga, na África, na Ásia, na<br />

América Latina e Caribe, procura apagar qualquer vestígio <strong>da</strong> ancestrali<strong>da</strong>de<br />

local, rica e perturbadora. É uma história muito conheci<strong>da</strong>, e nem sempre bem<br />

sucedi<strong>da</strong>. Essa história ain<strong>da</strong> não terminou. Porque nem o declínio moral do<br />

império, nem as suas promessas paradisíacas, devem ser confundi<strong>da</strong>s com o<br />

precipitado "fim <strong>da</strong> história".<br />

O implacável exercício <strong>da</strong> razão narrativa, na palavra mais irônica de<br />

Conrad, ou mais descontraí<strong>da</strong> de Kipling, em ambos os casos tendenciosas,<br />

expõe, com semelhante vulnerabili<strong>da</strong>de, o dispositivo <strong>da</strong> dominação. Os<br />

slogans que Conrad difundiu, como "a insolente cabeça negra", faziam parte<br />

<strong>da</strong> carta de princípios do poder imperial. A absolvição de Conrad, pela<br />

tolerância estética de Said, nem sempre se revela convincente. Como o seu<br />

Marlow, Conrad "nunca é direto": ironiza as práticas metropolitanas, porém<br />

sem se chocar diante <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de, e sem jamais conceder aos "nativos" o<br />

direito à liber<strong>da</strong>de. O elogio imperturbável do imperialismo confirma o seu<br />

eurocentrismo congênito, sem precisar onde começa e termina a narrativa do<br />

poder e o poder <strong>da</strong> narrativa. É ver<strong>da</strong>de que o percurso de Cultura e Imperialismo<br />

passa pelo reconhecimento de que "a própria narrativa é a representação<br />

do poder, e sua teleologia está associa<strong>da</strong> ao papel global do Ocidente".<br />

As representações abertas, e por isso mais sinceras, de Conrad, e as mais<br />

dissimula<strong>da</strong>s, e talvez menos sinceras, de Flaubert, apontam nessa direção.<br />

Mas a questão está mal coloca<strong>da</strong>. A questão é saber o que fizeram eles de suas<br />

respectivas sinceri<strong>da</strong>des. E só a linguagem pode responder a essa interpelação.<br />

Edward Said não consegue conviver com as simplificações do "nacionalismo<br />

redutor" e, ain<strong>da</strong> segundo as suas palavras, com as "polari<strong>da</strong>des reifica<strong>da</strong>s<br />

do Oriente versus Ocidente". Nem por isso se entrega à mera impugnação<br />

do nacionalismo, preferindo levar em conta alguns desempenhos<br />

específicos. Nenhuma amnésia pode esquecer a função de alavanca histórica,<br />

exerci<strong>da</strong> pelo nacionalismo nos povos não-ocidentais, e na hora <strong>da</strong> descolonização.<br />

O que fica difícil é ad!TIitir-se que o cânone nacional, conduzido<br />

através do território minado do imperialismo, esteja autorizado a entrar no<br />

jogo perigoso do nacionalismo insular e revanchista. De modo algum. O<br />

caminho que se abre terá de ser radicalmente integrador. O programa que


26 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

fixou culturas superiores, raças inferiores, diferenças tortura<strong>da</strong>s, "o mito do<br />

nativo indolente", e depois do trabalhador "desorganizado", é o mesmo que<br />

feriu de morte civilizações milenares, e que vem bloqueando a passagem de<br />

alternativas culturais plausíveis.<br />

O "estudo <strong>da</strong>s histórias" (o plural aqui é deliberado), proposto por Said,<br />

e acompanhado evidentemente de possibili<strong>da</strong>des argumentativas atentas à<br />

dinâmica <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de, estaria habilitado a retirar a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> prisão,<br />

mesmo que somente domiciliar, na qual foi encerra<strong>da</strong> pelas filosofias <strong>da</strong><br />

consciência. Sob este aspecto o imperialismo e o nacionalismo parecem falar<br />

o mesmo idioma. Ambos deixaram que tomasse corpo, ao redor deles, o<br />

contra-senso ou a perversão identitária. Cresceu um tipo de identi<strong>da</strong>de compacta,<br />

fecha<strong>da</strong> e avessa a qualquer mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de contatos e, mais ain<strong>da</strong>, de<br />

permutas. No primeiro movimento desse dissídio, onde agem imposições e<br />

transferências indesejáveis, encontra-se, segundo Cultura e Imperialismo, "a<br />

noção fun<strong>da</strong>mentalmente estática de identi<strong>da</strong>de que constituiu o núcleo do<br />

pensamento cultural na era do imperialismo". Já não é impossível surpreendê-Ia<br />

envolvi<strong>da</strong> pelo falso moralismo de discursos disfarçados e contudo<br />

beligerantes. Na segun<strong>da</strong> vertente do desacordo, irrompe o nacionalismo<br />

heróico, agora bastante extenuado, incomo<strong>da</strong>mente circunscrito nas autopistas<br />

<strong>da</strong> nova ordem global. O quadro de proscrição do outro, <strong>da</strong> diferença, <strong>da</strong><br />

alteri<strong>da</strong>de, permanece quase inabalável. Talvez um pouco mais sofisticado.<br />

A degeneração <strong>da</strong> diferença ignora que quem se perde do outro, perde-se de<br />

SI mesmo.<br />

Edward Said, americano-árabe, árabe-americano, está situado em um<br />

posto de observação muito especial. Ele está situado na sua condição cultural,<br />

divergente, convergente - enfim, intercultural. Ainterculturali<strong>da</strong>de é o óbvio,<br />

o modo de ser próprio <strong>da</strong> cultura, híbri<strong>da</strong>, plural. Desbarbariza<strong>da</strong>. Já houve<br />

tempo em que bárbaros eram aqueles que desconheciam a língua do outro.<br />

Bárbaro agora é o que ignora a cultura do outro. É neste sentido que os<br />

imperialistas, de todos os sotaques, to<strong>da</strong>s as cores, to<strong>da</strong>s as geografias, são os<br />

novos bárbaros. Espera-se que os seus serviços venham a ser dispensados, até<br />

a entra<strong>da</strong> do terceiro milênio.


Hacia una historio<br />

literaria postmoderna<br />

de America Latina<br />

Mario J. Valdés<br />

Ca<strong>da</strong> época cultural se autodefine aI buscar una redescripción deI pasado<br />

que tenga sentido como explicación deI presente. La nuestra se distingue por<br />

su escepticismo radical sobre los valores recibidos; se ha manifestado por un<br />

rechazo completo de la historia oficial, de la narrativa de fun<strong>da</strong>mento. No me<br />

interesa aquí entrar en una discusión sobre la postmoderni<strong>da</strong>d en todos sus<br />

múltiples aspectos sino sólo y únicamente sobre las características de la<br />

historiografía Ilama<strong>da</strong> "la nueva historia", es decir, la historiografía postmoderna.<br />

Como punto de parti<strong>da</strong> podemos afirmar que ninguno de nosotros se<br />

encuentra en la posición extrema de crear un mundo nuevo. Un aspecto<br />

ineludible de nuestra condición de seres humanos consiste en haber nacido<br />

en un mundo ya formado por las decisiones, por los actos y, principalmente,<br />

por la expresión de nuestros predecesores. El pasado es un conjunto de<br />

narraciones de <strong>da</strong>tos, acontecimientos y hechos que han sido altamente valorizados<br />

y, por lo tanto, como narraciones valoriza<strong>da</strong>s, siempre se tienen que<br />

rehacer y, más que nunca, cuando se ha pretendido reconstruir el pasado<br />

objetivamente.<br />

La segun<strong>da</strong> observación fun<strong>da</strong>mental es que nunca reconciliamos valores<br />

de la misma manera en que organizamos y utilizamos a las cosas deI<br />

mundo. Las cosas llevan una mediación práctica mientras que los valores se


28 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

manifiestan por mediación ideológica, por lo tanto, la supuesta objetivi<strong>da</strong>d<br />

historio gráfica no sólo carece de fun<strong>da</strong>mento sino que encubre la relación<br />

hermenéutica entre el historiador y el pasado, es decir, la mediación de<br />

valores.<br />

Como he dicho, nuestra época ha demostrado un gran interés en la<br />

emancipación de los valores recibidos. En términos filosóficos tal interés<br />

contiene no poca ingenui<strong>da</strong>d, y aunque esa hermosa ilusión deI punto de vista<br />

objetivo está perdi<strong>da</strong>, en su lugar ha surgido la idea también insostenible de<br />

um relativismo absoluto. Estoy de acuerdo que na<strong>da</strong> sobrevive deI pasado<br />

salvo a través de una reinterpretación en el presente, pero esta reinterpretación<br />

se apodera de la objetivación y distanciamiento y los hechos se elevan<br />

por medio de los valores vivientes aI rango de ser un texto. De este modo la<br />

distancia valorativa se convierte en una distancia productiva como un factor<br />

de mediación en la reinterpretación deI pasado.<br />

La historia en general, y la historia literaria en particular, es un proceso<br />

de mediación por el cual se supera incesantemente la antinomia deI pasado y<br />

el presente. La historia literaria presenta un caso ejemplar para realizar<br />

nuestro interés en la emancipación de los valores culturales y a la vez nos<br />

permite cuestionar la identi<strong>da</strong>d que hemos también recibido.<br />

EI conflicto entre valores Iiterarios recibidos y valores nuevos puede<br />

exponerse sin du<strong>da</strong> en un relativismo ilimitado el cual sería antihistórico y<br />

haría imposible to<strong>da</strong> tarea de reinterpretación deI pasado. Pero, aI contrario,<br />

si el conflicto de valores se sitúa dentro de la reali<strong>da</strong>d material de la producción<br />

cultural histórica, se establece un marco de explicación. Estos valores<br />

por medio de su encarnación en el marco empírico de la vi<strong>da</strong> se nos presentan<br />

como acción vital, acción que fue, modos de ver y sentir que se han consumado.<br />

La obra literaria, en contraste aI documento de archivo, siempre es<br />

actuali<strong>da</strong>d que invita allector/historiador a revi vir las experiencias y acontecimientos<br />

figurativos. He aquí el gran valor de la historia literaria como<br />

laboratorio de la historiografía. En el meollo de la historia literaria está la<br />

antinomia deI acontecimiento de producción original y el acontecimiento de<br />

recepción contemporánea. La historia literaria postmoderna abarca ambos<br />

acontecimientos y los relaciona dialécticamente dentro de un marco común a<br />

ambos, el cuadro material de producción que fija la distancia. Sin embargo,<br />

esta solución de las condiciones materiales hace más severo el problema<br />

perenne de selección y enfoque de <strong>da</strong>tos, ahora enormemente ampliado. Si se<br />

van a tomar en cuenta las condiciones económicas, sociales y políticas dentro<br />

de una geografía y demografía determina<strong>da</strong>, no corremos el riesgo de ahogarnos<br />

en un mar de <strong>da</strong>tos y perder de vista la obra literaria? Está claro que es<br />

necesario tener esquemas de focalización sobre la obra cultural más altamente<br />

valoriza<strong>da</strong> que es la literatura.


Hacia una historia !iteraria postmoderna de America Latina 29<br />

La historia literaria es una transacción perpetua entre el proyecto de<br />

narrar el pasado a través de su situación material y el de constituir una<br />

comprensión que tenga sentido en el presente. Nuestra respuesta es la de<br />

enfocar a la obra literaria dentro de la comuni<strong>da</strong>d de producción y de recepción.<br />

Esta transacción es delinea<strong>da</strong> aI enfocarse el historiador en los centros<br />

culturales y sus instituciones. Si rompemos este círculo viviente entre la<br />

literatura y la comuni<strong>da</strong>d y sus instituciones culturales, to<strong>da</strong> postulación deI<br />

acontecimiento literario de producción y recepción está condenado a seguir<br />

siendo una impresión vacía o una exigencia ideológica, aun cuando el historiador<br />

anuncia que participa en esa búsque<strong>da</strong> común de nuestra época de la<br />

emancipación de los valores hechos.<br />

La narración deI acontecimiento literario seguirá siendo una historia<br />

parcial, limita<strong>da</strong> y reductiva mientras se limite a reafirmar los valores deI<br />

pasado que mejor se acomoden con los valores deI historiador. Buscamos una<br />

narrativi<strong>da</strong>d histórica abierta. Nuestro proyecto de una historia literaria de<br />

América Latina tiene que desenvolver múltiples explicaciones, intercambios<br />

que apunten singularmente hacia la comprensión parcial y que, en conjunto,<br />

empren<strong>da</strong>n el diálogo múltiple que lleva la comprensión hacia la intersubjetivi<strong>da</strong>d.<br />

Esta multiplici<strong>da</strong>d de explicaciones narrativas produce una dialéctica de<br />

diversas voces en intercambio que mantiene la historia literaria en un estado<br />

dialogal abierto. Bien se puede observar que es esto lo que ocurre dentro de<br />

la comuni<strong>da</strong>d de comentaristas y es ver<strong>da</strong>d. Sin embargo no ocurre en la<br />

historia literaria por falta de coordinación y de colaboración.<br />

La mediación de la historia literaria abierta es una mediación práctica ya<br />

que se hace manifiesto lo que se logra en la crítica contemporánea, es decir,<br />

un campo contestatorio sobre los valores literarios con la diferencia que en<br />

este caso se hará sobre siglos de creación cultural y su presencia actual.<br />

Reesumiré ahora el plan de una historia literaria abierta; tiene tres grandes<br />

componentes: l. la deI marco material de producción cultural; 2. los<br />

esquemas de comuni<strong>da</strong>des e instituciones culturales; 3. el intercambio narrativo<br />

de explicaeión.<br />

Este proyecto histórico es el resultado de afios de trabajo por un equipo<br />

dirigido por Djelal Kadir y yo. Hemos empezado con las ideas de la escuela<br />

de Annales en Francia y, en especial, con la obra de Fernand Braudel; el<br />

segundo paso ha sido participar en la discusión filosófica que mantuvo Paul<br />

Ricoeur sobre la historiografía francesa y que posteriormente se publicó en<br />

el segundo tomo de Temps et récit. A la vez, habíamos llevado una nutri<strong>da</strong><br />

discusión con Angel Rama hasta su muerte en 1983. Rama insistía en la<br />

necesi<strong>da</strong>d de leer el texto literario en su contexto social y político para poder<br />

realizarIo en to<strong>da</strong> su compleji<strong>da</strong>d de producción. Yo le <strong>da</strong>ba la razón, per o sin<br />

dejar de insistir que no podíamos encerrar aI texto en una prisión circunstan-


30 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

cial de nuestra hechura, y así es como nacióla idea dei hipertexto histórico<br />

partiendo de la historiografía de Braudel con su marco material, las premisas<br />

de contextualización de Rama y la crítica de Ricoeur sobre la narrativi<strong>da</strong>d<br />

histórica.<br />

Si se puede marcar un principio claro de este proyecto fue en la reunión<br />

que tuvimos ocho colegas y yo en Bellagio en 1993 (Lisa Block de Behar,<br />

Daniel Chamberlain, Beatriz Garza Cuarón, Vlad Godsich, Djelal Kadir,<br />

Mary Louise Pratt, Silviano Santiago y Maria Elena de Valdés) y discusiones<br />

con muchos más desde entonces como Georges Baudot, Claude Fell, Miguel<br />

León Portilla, etc.<br />

A continuación presentaré el esquema de nuestro proyecto de historia<br />

literaria de América Latina. El primero de los tres volúmenes lo titulamos "La<br />

formación de culturas literarias en América Latina". Este volumen está dividido<br />

en dos partes: primero, "Fondo empírico de la cultura literaria", y,<br />

segundo, "Lo excluído o marginalizado en las historias literarias". La primera<br />

parte recoge las coordena<strong>da</strong>s de geografía, lingüística, demografía y accesibili<strong>da</strong>d<br />

social a la cultura literaria. La segun<strong>da</strong> parte entabla las grandes<br />

exclusiones de las historias literarias de América Latina que son las culturas<br />

prehispánicas, la cultura africana, la participación de la mujer y la cultura<br />

popular. Ambas partes, juntas, establecen el marco de todo el proyecto y, a la<br />

vez, afiaden las variantes demográficas y sociales ausentes en quinientos afios<br />

de historiografía.<br />

EI segundo volumen se titula "Estructuras y mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de las literaturas<br />

en América Latina" y si el primer volumen llevó el peso de fijar el marco<br />

material, éste, segundo volumen responde a la diversi<strong>da</strong>d social de nuestra<br />

América. Está subdividido en cinco partes: 1. Instituciones culturales, 2.<br />

Modelos literarios transnacionales, 3. La literatura y las otras formas culturales,<br />

4. Los centros culturales de América Latina, y 5. La representación de<br />

fun<strong>da</strong>mento en América Latina.<br />

En conjunto las cinco partes reúnen los esquemas sociales de producción<br />

literaria a través de la historia. Las instituciones que han facilitado y perturbado<br />

la creación literaria dentro de las comuni<strong>da</strong>des que reflejan, to<strong>da</strong>s tienen<br />

su propia historia, a veces abiertas hacia otras culturas pero también con sus<br />

épocas de relativo aislamiento. Estas historias que suelen ser de consumo<br />

local o de especialización, pero aI estar contextualiza<strong>da</strong>s y coordina<strong>da</strong>s en un<br />

atlas de producción literaria despliegan sus puntos de contacto y de diferencia<br />

y, especialmente, sus relaciones en los proyectos grandes de identi<strong>da</strong>d cultural,<br />

fun<strong>da</strong>mento nacional y transnacional.<br />

El tercer volumen contiene las narraciones de historia !iteraria. Consiste<br />

de tres partes colaborativas también: 1. Cinco siglos de transculturación<br />

literaria: textos como acontecimientos históricos; 2. La cultura !iteraria de


Hacia una historia \iteraria postmoderna de America Latina 31<br />

América Latina en el siglo veinte; y, finalmente, 3. una apreciación de<br />

América Latina como construcción de su literatura.<br />

Un texto literario, como ya he dicho, no es un objeto sino un acontecimiento<br />

histórico tanto de producción como de recepción y este acontecimiento,<br />

como todo acontecimiento histórico, se hace y se rehace por sucesivos<br />

historiadores, pero en nuestro caso la historia que se narra es la historia de la<br />

identi<strong>da</strong>d cultural en dos continentes, puntualiza<strong>da</strong> por los éxitos y los fracasos<br />

de la aventura humana que se refleja en su creación imaginativa.<br />

El segundo ensayo histórico, también colaborativo, de este volumen<br />

toma una perspectiva de plazo más breve; se concentra en las obras de mayor<br />

impacto en el siglo veinte que es el siglo de la globalización de las comuni<strong>da</strong>des<br />

latinoamericanas y también el de la cuantificación masiva de la cultura<br />

popular. Las normas de comunicación, de producción y recepción de la obra<br />

literaria que habían sido leyes de los sistemas expresivos desde el siglo<br />

dieciseis, en poco menos de medio siglo han cambiado <strong>completa</strong>mente. El<br />

siglo veinte es el siglo de la moderni<strong>da</strong>d y de su desengano.<br />

El último ensayo de esta historia literaria responde a la pregunta sobre la<br />

validez deI conjunto. i,Qué es América Latina, ya que no responde ni a<br />

geografía ni política ni historia común? La respuesta, como ha dicho Cornejo<br />

Polar, Iris Zavala y otros, es que América Latina es una ficción. Primero fue<br />

una fantasía etnocéntrica y eurocéntrica y ahora, a quinientos anos después<br />

deI encuentro, empieza a ser una reinvención propia que también es ficción,<br />

pero ficción propia como lo es una autobiografía. La historia literaria de<br />

América Latina es una autobiografía.<br />

La narración histórica en este proyecto se distingue por ser un itercambio<br />

coordinado de diversi<strong>da</strong>d enfoca<strong>da</strong>. Este procedimiento mantiene tanto aI<br />

compromiso reflexivo hermenéutico como aI texto abierto. Y el sistema de<br />

marco y esquema en que se encuentra la narración histórica ofrece la posibili<strong>da</strong>d<br />

de poder leerse como un hipertexto empezando de múltiples puntos y<br />

forjando líneas narrativas nuevas debido aI procedimiento de múltiples referencias<br />

entre el marco, los esquemas y las narraciones.


Tradução <strong>da</strong> comunicação<br />

apresenta<strong>da</strong> ao Colóquio "Petits<br />

récits. Identités en questions<br />

<strong>da</strong>ns les Amériques",<br />

realizado na Université de<br />

Montréal (11-13 de abril,<br />

1996).<br />

'. KANTOROWICZ, E. H. The<br />

KinX :\. two Bodies. A Study in<br />

Medieval Political Theo!o!:y<br />

6' ed. Princeton, N.J.: Princeton<br />

Univ. Press, 1981 (I' ed.:<br />

1957).<br />

2 BOUHOURS, D. Entretiens<br />

d'Artiste etd'Eux'me. Ed. cil.:<br />

Paris: Éd. Bossard, 1920 (l"<br />

ed.: 1671).<br />

'. SCHMllT, C. L'ldée de raison<br />

d'État selon Friedrich Meinecke.<br />

Trad. Franc. in trad. de Carl<br />

Schmitt: Parlamentarisme et<br />

démocratie, Paris: Seuil, 1988<br />

(I' ed.: 1926).<br />

Literatura e nação:<br />

esboço de uma releitura<br />

Luiz Costa Lima<br />

Os termos "Estado-nação" e "literatura", na acepção moderna do segundo,<br />

são temporalmente desiguais: no século XVI, já estava constituído o dispositivo<br />

simbólico, jurídico e político, que se preparava desde o XII,I justificador<br />

do poder do Estado, ao passo que o conceito moderno de literatura, como<br />

exploração e expressão do infinito contido na subjetivi<strong>da</strong>de individual, só se<br />

formula nas déca<strong>da</strong>s finais do século XVIII alemão, sobretudo por Friedrich<br />

Schlegel e Novalis. Esse décalage contudo não impediu que os Estados<br />

nacionais soubessem, bem antes do fim do XVIII, desde que se enfrentassem<br />

com outros Estados nacionais, esgrimir a literatura como uma de suas armas.<br />

Assim, do mesmo modo que os ingleses exaltavam sua literatura face ao<br />

modelo francês, na França, o teórico barroco Doménique Bouhours, ao afirmar<br />

"nossa língua só muito sobriamente usa hipérboles, pois estas são figuras<br />

inimigas <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de; nisso ela se atém a nosso humor franco e sincero, que<br />

não pode tolerar a falsi<strong>da</strong>de e a mentira",2 contrapunha o verso francês<br />

"legítimo" à cornucópia do barroco castelhano. Na competição pela hegemonia<br />

européia, primeiro França e Espanha, depois Inglaterra e França, usavam<br />

<strong>da</strong>s armas de que pudesem dispor para retirar do adversário a primazia. E,<br />

assim, muito embora "a velha razão de Estado pensasse abstratamente [ ... ] (e)<br />

postulasse uma natureza humana sempre idêntica a si mesma",3 o Estado<br />

nacional começou a se apropriar <strong>da</strong> literatura antes mesmo de ela se apresentar<br />

como o território próprio e por excelência do sujeito individual.


34 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, na 3<br />

As conseqüências dessa apropriação seriam demasiado ricas para que<br />

fossem explora<strong>da</strong>s em curto espaço. Esten<strong>da</strong>mo-nos apenas sobre uma <strong>da</strong>s<br />

conseqüências, ain<strong>da</strong> não bastante concretiza<strong>da</strong>. Ela concerne ao que temos<br />

chamado o "controle do imaginário". Sumariamente, haveria de se considerar<br />

que a relevância concedi<strong>da</strong> pelo Estado à literatura nacional não implicava<br />

apenas que as belas-letras devessem seguir a prática geral <strong>da</strong>s leis senão que<br />

ain<strong>da</strong> deveriam obedecer uma legislação especificamente a elas referente. O<br />

que vale dizer: havia uma legislação geral, dirigi<strong>da</strong> a todos os vassalos,<br />

portanto especificamente política, e uma legislação particulariza<strong>da</strong>, uma política<br />

poética. Da primeira se encarregavam os juristas, <strong>da</strong> segun<strong>da</strong>, os autores<br />

dos tratados de poética.<br />

A importância <strong>da</strong> distinção estará em, diferenciando os dois corpos de<br />

leis, evitar que se enten<strong>da</strong> o controle do poético como mera decorrência <strong>da</strong><br />

vigência de uma legislação centraliza<strong>da</strong>, que, em conseqüência, exigisse do<br />

pesquisador e do analista apenas um conhecimento histórico geral. No caso<br />

<strong>da</strong> política poética, entravam em cena categorias - a questão do tempo na<br />

peça teatral, o uso <strong>da</strong> linguagem, com as restrições não só ao popular como<br />

ao uso regional e/ou dialetal, o privilégio de certos recursos em detrimento<br />

doutros, a obediência aos limites <strong>da</strong> verossimilhança. etc - que não eram do<br />

interesse e competência dos juristas. A leitura dos poetólogos italianos,<br />

franceses e ingleses dos séculos XVI e XVII nos leva a dizer que, bem antes<br />

de a literatura assumir sua caracteri::.ação moderna, já estavam modelados<br />

seus critérios de controle. Acrescente-se marginalmente: embora o termo<br />

"controle" seja empregado no sentido negativo de restrição e mesmo de<br />

exclusão, ele não se confunde com censura. Explícita, a censura serve de<br />

mediação entre as duas legislações. Melhor dito, a censura constata a plena<br />

atualização de uma norma política no campo do poético. O controle ao invés<br />

implica uma interdição extra; como se dissesse: não basta ser um bom e leal<br />

vassalo para que já se tenha um digno poeta.<br />

Essa dupla legislação se mantêm quando o Estado-nação se apropriar <strong>da</strong><br />

literatura em sua acepção moderna, i.e., quando o romantismo, no período <strong>da</strong><br />

restauração européia, conseqüente à que<strong>da</strong> de Napoleão, deixar de ser alemão<br />

para se tornar europeu. Essa passagem não se define como a de uma mera<br />

propagação. Muito ao contrário. Nos Frühromantiker, mormente em Friedrich<br />

Schlegel, notava-se a copresença de dois critérios, não totalmente<br />

superponíveis, de caracterização do poético. O primeiro mais rico, revolucionário<br />

e de mais curta duração, é sintetizado no fragmento 206 dos Athendum<br />

Fragmente: "Semelhante a uma pequena obra de arte, um fragmento deve ser<br />

totalmente separado do mundo em volta e pleno em si mesmo como um<br />

ouriço".4 A obra poética é considera<strong>da</strong> por um ponto de vista a ela exclusivo,<br />

independente de qualquer serviço que se lhe emprestasse; arma<strong>da</strong> de espinhos,<br />

comparável a um ouriço, plena em si mesma, ela recusa se legitimar por<br />

.. SCHLEGEL, F.: Athenaum<br />

Fragmente, in EICHNER, Hans,<br />

org. Friedrich Schlel!el. Kritische<br />

Ausf,:ahe seiner Werke.<br />

vol. lI: Charakterisken und<br />

Kritiken /. Munique, Pader­<br />

born, Viena: Verlag F. Sehoningh<br />

e Thomas Verlag, 1797.


Literatura e nação: esboço de uma releitura 35<br />

qualquer culto, religioso ou político, a que então se dobrasse. Dentro dessa<br />

acepção, a obra de arte corresponderia, sem que Schlegel expressamente o<br />

reconhecesse, à "finali<strong>da</strong>de sem fim", ao interesse sem interesse que, na 3"<br />

Crítica kantiana (1790), designava a experiência propriamente estética.<br />

O segundo critério, ao invés, ressalta o que a obra poética diz <strong>da</strong>s pessoas<br />

e <strong>da</strong>s relações interpessoais. A obra poética era então indicativa, para utilizarmos<br />

a expressão irônica que Hegel empregava contra os românticos, <strong>da</strong> "bela<br />

alma" ou ain<strong>da</strong>, nos termos de Schlegel, <strong>da</strong> "intuição intelectual <strong>da</strong> amizade"<br />

(AF, fragmento 342), i.e., de alguém que soube empregar seu talento explorador<br />

dentro de si mesmo. Ao passo que o primeiro critério destacava a<br />

proprie<strong>da</strong>de interna do poético, sua altiva autonomia, o segundo acentuava a<br />

capaci<strong>da</strong>de auto-modeladora do criador.<br />

Não superponíveis, mesmo desarmônicos entre si, esses dois critérios<br />

sofrerão destinos opostos no romantismo normalizado, i.e., aquele que se difunde<br />

sob a restauração. O romantismo normalizado pode ser definido como<br />

aquele que ajusta a idéia de expressão individual ao espírito do povo, nele<br />

incluindo o poeta, cuja obra refletiria o estágio de civilização alcançado por<br />

seu país. Sob ele, não há lugar para que se tematize o poema-ouriço. Em troca,<br />

identificando o poema como efeito <strong>da</strong> fonte "sujeito individual", o romantismo<br />

normalizado legitima a in<strong>da</strong>gação que considera o poema efeito de uma<br />

causa chama<strong>da</strong> nação. Para tanto, se impunha apenas uma fácil operação<br />

lógica: o sujeito individual, no caso o poeta, era tomado como parte do todo<br />

a que pertencia, a nação, cujo modo de ser refletiria. Eis então assegura<strong>da</strong>s as<br />

condições de prestígio <strong>da</strong> literatura nacional, <strong>da</strong>í a legitimação universitária<br />

<strong>da</strong> literatura, enquanto nacional. A literatura então se torna, ao longo do XIX,<br />

o veículo por excelência <strong>da</strong> Bildung, no duplo sentido <strong>da</strong> palavra: formação<br />

e educação. O Estado-nação que se preza exibe entre seus títulos um elenco<br />

de escritores, difundido por antologias e apreciações biográfico-interpretativas.<br />

É um <strong>da</strong>s tarefas do Estado a propagação <strong>da</strong> literatura enquanto nacional.<br />

Esse retrospecto é particularmente interessante à reflexão contemporânea<br />

na América Latina. E isso por uma série de razões:<br />

(a) no sentido moderno do termo, a literatura que se introduziu tanto na<br />

América Hispânica como na Portuguesa teve como estímulo e ponto de<br />

parti<strong>da</strong> o romantismo normalizado. Por isso, de imediato, a idéia do poemacomo-ouriço<br />

ou era desconheci<strong>da</strong> ou veio a ser confundi<strong>da</strong> com o princípio<br />

posterior do "l'art pour l'art", considerado, como enfatizam os críticos latino-americanos<br />

do XIX, algo próprio de nefelibatas, de desenraizados, algo<br />

em suma nocivo sobretudo para as nações nascentes;<br />

(b) no início de nossa autonomia política, a literatura esteve preocupa<strong>da</strong><br />

em exprimir um estado nacional, ou seja, o estado de coisas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de do<br />

país e em servir de porta-voz <strong>da</strong> peculiari<strong>da</strong>de de seu povo. Ora, e aqui vale<br />

a pena que nos esten<strong>da</strong>mos um pouco, como as realizações humanas eram


36 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

pouco salientes e <strong>da</strong><strong>da</strong> a importância que em to<strong>da</strong> a América Latina teve a<br />

divulgação <strong>da</strong>s pesquisas do naturalista Alexander von Humboldt, especialmente<br />

a sua palavra teve especial ressonância. Destaque-se a respeito passagem<br />

do Voyages aux régions équinoxiales du Nouveau Confinent:<br />

A natureza agreste ou cultiva<strong>da</strong>, risonha ou majestosa, apresenta em ca<strong>da</strong> zona um<br />

caráter individual. As impressões que nos deixa variam ao infinito, como as emoções<br />

que produzem as obras de gênio, segundo os séculos que as engendraram e a diversi·<br />

<strong>da</strong>de de línguas a que devem uma parte de sua formosura. Só se compara com justeza<br />

o que depende <strong>da</strong>s dimensões e <strong>da</strong>s formas exteriores: pode-se pôr paralelamente o<br />

cume colossal do Monte Branco e as montanhas do Himalaia, as que<strong>da</strong>s d'água dos<br />

Pirineus e as Cordilheiras; mas estes quadros comparativos, úteis no que se refere à<br />

ciência, mal dão a conhecer o que caracteriza a natureza na zona tempera<strong>da</strong> e na zona<br />

tórri<strong>da</strong>. À beira de um lago, em uma vasta selva, ao pé destes cumes cobertos de neves<br />

eternas, não é a grandeza física dos objetos o que nos infunde uma secreta admiração.<br />

O que fala à nossa alma, o que nos causa emoções tão profun<strong>da</strong>s e tão varia<strong>da</strong>s evade-se<br />

de nossas medições tanto como as formas <strong>da</strong> linguagem. Cuando as belezas <strong>da</strong> natureza<br />

são senti<strong>da</strong>s ao vivo, teme-se entorpecer essa fruicão comparando aspectos de diferente<br />

caráter".5<br />

A extensa transcrição se justifica porque nela se formula com to<strong>da</strong><br />

clareza onde se poderia nuclear a procura<strong>da</strong> particulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s novas literaturas:<br />

a natureza é capaz de produzir impressões semelhantes às obras dos<br />

gênios; a comparação <strong>da</strong>s cenas <strong>da</strong> natureza tropical com a doutros continentes<br />

apenas cientificamente é váli<strong>da</strong> e justifica<strong>da</strong>. Do ponto-de-vista do sujeito-que-sente,<br />

a comparação prejudica sua fruição. Em palavras diretas: Humboldt,<br />

o naturalista, justifica a saliência que a descrição <strong>da</strong> natureza terá para<br />

o escritor latino-americano. Tendo sempre por pressuposto o leitor de alma<br />

sensível, o realce <strong>da</strong>s cenas <strong>da</strong> natureza asseguraria às literaturas latino-americanas<br />

a condição para que pudessem ter um lugar ao lado <strong>da</strong>s literaturas<br />

maduras. Se estas se particularizariam pelos gênios que pudessem convocar,<br />

as latino-americanas se diferenciariam pela singulari<strong>da</strong>de de sua natureza. A<br />

descrição <strong>da</strong> natureza ensinaria ademais aos autores, em um tempo em que<br />

avançam as ciências descritivas, a privilegiar a observação. Se esta falta, é o<br />

conjunto <strong>da</strong> obra que desmorona. Assim, por exemplo, o influente Sílvio<br />

Romero demolia a obra de Machado de Assis sob o argumento de que: (é)<br />

"um autor para quem o mundo exterior não existe de modo algum em si, que<br />

não lhe procura reproduzir nem os acontecimentos usuais, nem o aspecto<br />

pitoresco, ou os agregados sociais, ou os seres vivos, tais quais esses todos e<br />

esses indivíduos se apresentam ao conhecimento normal".6 Seu pretenso<br />

humorismo seria uma mera imitação e seu pessimismo, falso porque "nós, os<br />

brasileiros, não somos em grau algum um povo de pessimistas" (idem, 104).<br />

Menos importa saber se Romero adquirira esse pressuposto <strong>da</strong> leitura de<br />

Humboldt ou dos contemporâneos de sua preferência. Em qualquer dos<br />

5. HUM BOLDT, A. von. Voya,!,'es<br />

aux ré,!,'ions équinoxiales du<br />

nouveau continent, fait en<br />

1799,1800,1801, /802, 1803<br />

ef 1804. Trad. ao castelhano de<br />

Lisandro Alvarado, Viaje a las<br />

regiones equinociales dei nucvo<br />

continente. 5 tomos. Caracas:<br />

Monte Ávila Editores,<br />

1985 (I' ed.: 1816-31).<br />

". ROMERO, S. Machado de As­<br />

sis. 2' ed. Rio de Janeiro: José<br />

Olympio, 1936 (I' ed.: 1897).


7 No caso específico do Brasi!.<br />

este papel legitimador foi<br />

exercido por Ferdinand Denis,<br />

conforme ROUANEr, M. H. Esplendi<strong>da</strong>mente<br />

em berço esplêndido.<br />

A fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> literatura<br />

nacional. São Paulo:<br />

Siciliano, 1991.<br />

'. HENRIQUEZ URENA, P. Conferencias,<br />

in Horas de estudio<br />

(1910), inc!. em Obra crítica.<br />

México: Fondo de Cultura<br />

Económica, 1981<br />

Literatura e nação: esboço de uma releitura 37<br />

casos, foi Humboldt quem legitimou na América Latina o destaque <strong>da</strong> natureza<br />

e, <strong>da</strong>í, o privilégio reservado para a observação;7<br />

(c) privilegia<strong>da</strong> era a expressão literária que então fosse descritiva,<br />

realista e, ao mesmo tempo, sentimental e altissonante. Note-se, ademais:<br />

esses valores se mantêm muito além <strong>da</strong> vigência do romantismo normalizado.<br />

Sílvio Romero, por exemplo, já escreve fora <strong>da</strong> ambiência romântica e, no<br />

entanto, mantém uma curiosa comuni<strong>da</strong>de com os valores de procedência<br />

romântica. Não parece exagerado chamar-se a atenção para a continui<strong>da</strong>de<br />

dos valores com que se tem apreciado a literatura na América Latina. Henríquez<br />

Ureiia tinha razão, no início do século, em destacar os hábitos de nossos<br />

públicos para essa continui<strong>da</strong>de. Seriam eles "tan lentos para <strong>da</strong>rse cuenta dei<br />

valor de un serio empeno como rápidos para dejarse deslumbrar por el<br />

esplendor sonoro".8 Na ver<strong>da</strong>de, porém, essa é apenas uma parte <strong>da</strong> razão.<br />

Da outra parecem responsáveis os professores de literatura, que ou incorporam<br />

e transmitem valores distintos como simples modismos ou conseguem<br />

estabelecer um estranho hibridismo desses outros valores com os que já<br />

inoculara a tradição, neutralizando-os e mantendo permanente o tradicional;<br />

(d) como também viria a suceder na Europa do XIX, privilegiado dentro<br />

destes parâmetros, o texto literário rompia o intercâmbio com a filosofia e,<br />

em troca, privilegiava a história e a sociologia nascente. Radicaliza-se assim<br />

o fosso que separava as duas concepções do poético, presentes nos Fragmentos<br />

de Schlegel: ao passo que elas próprias eram contemporâneas do intercâmbio<br />

intenso entre os Frühromantiker e o idealismo alemão - não esqueçamos<br />

que Schelling e Hegel foram companheiros de Holderlin e, durante<br />

certo tempo, privaram com os Schlegel, que, de sua parte, junto com Novalis,<br />

através <strong>da</strong> admiração por Fichte, estavam próximos de Kant - a concepção<br />

que se difunde com o romantismo normalizado e assegura a aproximação <strong>da</strong><br />

literatura com a nação não só privilegia a história, a diacronia factualmente<br />

traça<strong>da</strong>, e logo depois a sociologia, como exclui o investimento filosófico,<br />

salvo a estética, matéria contudo reserva<strong>da</strong> para os estu<strong>da</strong>ntes de filosofia;<br />

(e) o descritivismo resultante <strong>da</strong> ênfase na história literária e estimulado<br />

pelo rompimento do intercâmbio com a filosofia, incentivado na América<br />

Latina pela razão analisa<strong>da</strong> em (c), ao se associar, na segun<strong>da</strong> metade do<br />

século, ao evolucionismo de raiz biológica (<strong>da</strong>rwinista), motiva entre nós a<br />

busca de essencialismos nacionais (a mexicani<strong>da</strong>de, a argentini<strong>da</strong>de, a brasili<strong>da</strong>de,<br />

etc), que reforçam as visões homogêneas <strong>da</strong> cultura. Não ser reconhecido<br />

por sua respectiva "essência" parecia não só provar que se estava diante<br />

de um imitador, como justificar a exclusão do panteão <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de. Tal<br />

essencialismo demonstra por si só a continui<strong>da</strong>de e então o conservadorismo<br />

dos valores com que se tem julgado a literatura na América. Sem tal continui<strong>da</strong>de,<br />

não se explicaria que Borges ain<strong>da</strong> fosse oportuno ao ironizar o culto


11 SCHWAB, G. Suhjects without<br />

Selves. Transitional<br />

Texts in Modern Fiction. Cambridge,<br />

Mass.: Harvard University<br />

Press, 1994.<br />

Literatura e nação: esboço de uma releitura 39<br />

"morte do homem" mas sim em trabalhar em favor de uma concepção plástica<br />

do sujeito.ll Os discursos que, a exemplo do literário, não trabalham com<br />

conceitos são, por isso mesmo, privilegiados quanto à verificação de como se<br />

forma um campo, i.e., uma particulari<strong>da</strong>de expressiva (particulari<strong>da</strong>de que<br />

não se confunde com uma uni<strong>da</strong>de que reuniria os eleitos e justificaria a<br />

exclusão dos prófugos). Em vez de uma relação de monocausali<strong>da</strong>de, em que<br />

a socie<strong>da</strong>de nacional funciona como causa que determina o efeito-autor, o<br />

campo ultrapassa a dicotomia sujeito-objeto e, portanto, a via de mão única<br />

que também marca a tradição dos estudos históricos e sociológicos. Desse<br />

modo a recusa do essencialismo nacionalista não suporia a adesão a uma<br />

prática "cosmopolita"; implicaria sim o repúdio de uma idéia de Estado-nação<br />

e de literatura que traz consigo a manutenção de uma concepção hegemônica,<br />

decorrente de uma "conceitualização hegeliana de acordo com a qual as<br />

novas literaturas são Yistas como representatiovas de estágios menos maduros<br />

<strong>da</strong>s literaturas canônicas" (Godzich. 291).<br />

Em suma. não se trata de repudiar o essencialismo porque particularista<br />

ou porque politicamente comprometido. O elogio <strong>da</strong> heterogenei<strong>da</strong>de também<br />

supõe o privilégio de uma particulari<strong>da</strong>de. Mas de uma particulari<strong>da</strong>de<br />

plural e não <strong>da</strong> que unifica sob o manto do Estado-nação. É ademais explicitamente<br />

um programa político. Se este não se contenta em manter implícita a<br />

teoria que o respal<strong>da</strong> é porque considera que to<strong>da</strong> teoria pronta se converte<br />

em dogma. Por fim, particularmente na América Latina, a teoria não é contra<br />

a História, embora não se confun<strong>da</strong>, nem a seu objeto, com ela e tampouco<br />

permaneça "iluminista", na proposição de normas universais, ou "romântica",<br />

na exaltação do infinito individual. Pois esta História que não se dispensa<br />

mantém próxima a si o questionamento próprio à filosofia.<br />

A tão propala<strong>da</strong> globalização do mundo, na ver<strong>da</strong>de equivalente à centralização<br />

do poder em alguns instituições bancárias, é contemporânea à<br />

redução do poder dos Estados-nacionais. Isso, por um lado, se correlaciona à<br />

reconheci<strong>da</strong> per<strong>da</strong> de prestígio <strong>da</strong> literatura. Por outro, entretanto, permitiria<br />

que se repensasse a literatura fora de caminhos que foram traçados a partir de<br />

uma conjuntura já não existente (o prestígio <strong>da</strong> cultura nacional pelo Estado,<br />

a concepção factualista <strong>da</strong> história, a idéia <strong>da</strong> sociologia como ciência <strong>da</strong>s<br />

causali<strong>da</strong>de sociais, a inquestionabili<strong>da</strong>de do próprio modelo <strong>da</strong> ciência clássica).<br />

O que nos falta para isso? A pergunta se impõe porque na reflexão<br />

latino-americana raríssimos são os ecos de um requestionamento do fenôme­<br />

no literário. Ao que parece, temos preferido esperar que outros respon<strong>da</strong>m<br />

por nós.<br />

Rio, março, 1996


Gostaríamos de agradecer a<br />

Yasushi Ishii e a Sylvia Saítta<br />

por valiosas informações refe­<br />

rentes à passagem de Marinetti<br />

na Argentina. A Heloísa Toller<br />

Gomes agradecemos o interesse<br />

pelo texto e por ter tornado<br />

possível a sua publicação em<br />

português.<br />

'. li banchetto futurista di Tunisi,<br />

in MARIA, Luciano de,<br />

org. Una sensibilità italiana in<br />

Egito. Milão: A. Mon<strong>da</strong>dori,<br />

1969,325.<br />

2. MARIA, Luciano de, org. Marinetti<br />

e il Futurismo in Teoria<br />

e invenzione futurista. Milão:<br />

A. Mon<strong>da</strong>dori, 1983,619.<br />

As veloci<strong>da</strong>des<br />

brasileiras de uma<br />

inimizade desvaira<strong>da</strong><br />

o (des)encontro de Marinetti e<br />

Mário de Andrade em 1926<br />

Jeffrey T. Schnapp<br />

João Cezar de Castro Rocha<br />

Sucesso illcrÍ\'el cachecol do Marinetti para ,'en<strong>da</strong> em lojas <strong>da</strong>nça do Marinetti roupas<br />

do Marinetti colares e bastiies do Marinetti impermeável do Marinetti Repercuss6es<br />

em to<strong>da</strong>s as cidiuies brasileiras. I<br />

Triunfal explosão do futurismo na América do Sul com minhlLf 35 conferências-declamaçiJes<br />

( .. .) O escritor Antonio Salles concluiu na Revista do Brasil: "Precisamos<br />

esquecer mesmo 1I0SS0S melhores escritores. Como Jeová, o futurismo cria um novo<br />

mundo a partir do na<strong>da</strong>. Devemos recontar o Tempo, começando a história no alIO <strong>da</strong><br />

graça <strong>da</strong> aparição de Marinetti. "2<br />

Em registros semelhantes, o fun<strong>da</strong>dor do futurismo preservaria a memória<br />

<strong>da</strong> primeira fase <strong>da</strong> viagem que o conduziu à América do Sul. Aliás, uma<br />

ambiciosa viagem comercial que, no curso de quase dois meses, levou Marinetti<br />

e sua esposa, Benedetta, do Rio de Janeiro a São Paulo e Santos, sem<br />

contar com o ciclo de conferências realizado em Buenos Aires e Montevidéu,<br />

Encena<strong>da</strong> em grandes teatros, divulga<strong>da</strong> como um espetáculo, representa<strong>da</strong><br />

como uma campanha militar, inspira<strong>da</strong> no modelo <strong>da</strong>s lendárias serate futuriste,<br />

as "conquistas" <strong>da</strong> turnê eram comunica<strong>da</strong>s ao público de todo o mundo<br />

e, em especial, ao italiano na forma de exaltados telegramas, enviados como<br />

notícias de um campo de batalha imaginário: Marinetti obteve extraordinário<br />

triunfo sendo delirantemente aplaudido, noita<strong>da</strong> culminação espiritual propagandística<br />

triunfo Marinetti, Marinetti fala futurismo aplaudido êxito<br />

completo retransmitir a Paris ...<br />

A reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> viagem, contudo, foi muito mais complexa, pois Marinetti<br />

se viu no centro de debates políticos e culturais cujas sutilezas e idiossincrasias<br />

necessariamente escapavam ao seu controle e, sobretudo, à sua com-


7. Marinetti realizou esta proeza<br />

no célebre manifesto Le Futurisme<br />

mondial, in Le Futuris<br />

me. Revue Synthéthique Il­<br />

/ustrée, 11 de janeiro de 1924,<br />

1-2.<br />

8. Martín Fierro, 8 de julho de<br />

1926,5.<br />

As veloci<strong>da</strong>des brasileiras de uma inimizade desvaira<strong>da</strong> 43<br />

mopolita <strong>da</strong>s primeiras vanguar<strong>da</strong>s e a orientação autóctone na busca de<br />

modelos autônomos de modernização. Estes fatores transformaram o sempre<br />

ansioso espírito cooptador de Marinetti numa ameaça ca<strong>da</strong> vez mais inconveniente_<br />

Por exemplo, na déca<strong>da</strong> de 20, o futurista tentara caracterizar como<br />

seus "seguidores" autores tão diversos como Blaise Cendrars, Jean Cocteau,<br />

Drieu la Rochelle, Jorge Luis Borges, Vicente Huidobro, Mário de Andrade,<br />

Yan de Almei<strong>da</strong> Prado e muitos outros'? Para recontar a viagem de Marinetti,<br />

estaremos questionando tanto a versão triunfalista do futurista quanto os<br />

mitos defensivos elaborados por escritores contemporâneos ao evento e críticos<br />

literários. No contexto brasileiro, escritores e críticos têm sido unânimes<br />

em considerar a visita de Marinetti um autêntico fracasso_ Contudo, uma<br />

análise mais deti<strong>da</strong> de documentos disponíveis em arquivos até agora pouco<br />

pesquisados ou desconhecidos sugere uma história muito distinta. Uma história<br />

que esclarece o papel central desempenhado pelas circunstâncias <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> literária local na criação <strong>da</strong> memória, logo, na percepção futura <strong>da</strong><br />

visita de Marinetti. Em alguma medi<strong>da</strong>, esta história "despolitiza" a reação à<br />

presença de Marinetti, revelando que, em boa parte <strong>da</strong>s críticas suscita<strong>da</strong>s<br />

pelo italiano, o que estava em jogo era sobretudo a definição <strong>da</strong> persona<br />

pública que um escritor deveria assumir. É claro que não pretendemos negar<br />

ou mesmo camuflar as implicações políticas <strong>da</strong> aproximação do futurismo<br />

com o fascismo; ora, na viagem de 1936, por ocasião <strong>da</strong> reunião do Pen Club,<br />

em Buenos Aires, Marinetti foi expulso do encontro devido ao seu agressivo<br />

proselitismo. Entretanto, os problemas de ordem política têm servido aos<br />

críticos literários como um autêntico passe-partout: basta evocá-los e to<strong>da</strong>s<br />

as interrogações logo encontram uma resposta "satisfatória". Para formular<br />

perguntas novas, precisamos situar a questão política numa dimensão apropria<strong>da</strong>.<br />

A única forma de fazê-lo consiste em resgatar a concretude do cotidiano<br />

dos lugares visitados por Marinetti. Esta concretude tanto se relaciona<br />

aos eventos comuns do dia-a-dia quanto às relações entre os homens de letras<br />

e suas conexões com a imprensa e com os ambientes mais formais, como as<br />

academias ou associações similares. Por fim, os documentos consultados em<br />

nossas pesquisas revelam que, do ponto de vista comercial, a viagem de<br />

Marinetti foi um grande êxito. Êxito também em outra esfera, como foi<br />

reconhecido pelos editores <strong>da</strong> <strong>revista</strong> argentina de vanguar<strong>da</strong>, Martín Fierra:<br />

"o simples fato de que Marinetti tenha insistido em anunciar ao grande<br />

público e aos jornais populares a beleza <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna - para nós um lugar<br />

comum que praticamos há muitos anos - é em si mesmo uma inovação".8<br />

Uma inovação cujo êxito popular tanto gerou novas alianças quanto destruiu<br />

antigas, contribuindo para a eventual rejeição do futurismo no cenário latinoamericano.<br />

Principiaremos nossa análise com uma breve menção a um aspecto<br />

jamais examinado com o cui<strong>da</strong>do necessário: o lado financeiro <strong>da</strong> viagem.


44 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

Afinal, o motivo determinante <strong>da</strong> visita de Marinetti foi, em primeiro lugar,<br />

puramente comercial. Mas privilegiaremos o relacionamento entre Marinetti<br />

e Mário de Andrade, sem dúvi<strong>da</strong> o motivo "secreto" tanto <strong>da</strong> recepção tumultua<strong>da</strong><br />

que esperava o italiano em São Paulo quanto <strong>da</strong> chave de interpretação<br />

que Mário criou e que os críticos literários têm fielmente reproduzido.<br />

I. O grande circuito<br />

.. .foi-se o tempo em que Marinetti era milionário. Ele poderia chegar de Tóquio e de<br />

imediato partir para Madri. Os ingressos para o teatro eram gratuitos. Agora, ao<br />

contrário, Marinetti necessita produzir9<br />

Eu tive a satisfação de empreender uma grande turnê na América do Sul com um<br />

empresário que pagava um salário e lucrava com a minha voz, permitindo ao mesmo<br />

tempo que eu também lucrasse. 11)<br />

Na déca<strong>da</strong> de 20, Marinetti enfrentava sérias dificul<strong>da</strong>des financeiras<br />

resultantes de fracassos editoriais e de uma série de batalhas legais inicia<strong>da</strong>s<br />

com o processo contra o Mafarka le futuriste (1910). Ao mesmo tempo, o<br />

futurista lutava para manter a visibili<strong>da</strong>de de seu movimento. já na segun<strong>da</strong><br />

déca<strong>da</strong> de existência. Os desafios a serem vencidos eram muitos. A Primeira<br />

Guerra Mundial provocara a morte de importantes colaboradores - Boccioni<br />

e Sant'Ellia. Além disto, dissenções significativas se multiplicaram - Palazzeschi,<br />

Folgore, Papini, Carrà, Severini e Sironi. Novas correntes culturais<br />

passaram a disputar o espaço artístico europeu - a ascensão de novos objetivismos,<br />

purismos e classicismos. Por fim, a progressiva hegemonia de nacionalistas<br />

conservadores no governo de Mussolini representou uma potencial<br />

ameaça ao caráter inicialmente disruptivo <strong>da</strong>s idéias futuristas. No entanto, o<br />

Congresso Futurista, realizado em Novembro de 1924, assim como as homenagens<br />

presta<strong>da</strong>s a Marinetti em to<strong>da</strong> a Itália marcaram a renovação do<br />

movimento e sua reabsorção pela ordem fascista. Esta reabsorção foi consoli<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

em publicações como Futurismo e fascismo (1924), I nuovi poeti<br />

futuristi (1925) e ain<strong>da</strong> na mu<strong>da</strong>nça realiza<strong>da</strong> por Marinetti e Benedetta, em<br />

1925, de Milão a Roma. Era esta a situação de Marinetti quando ele foi<br />

abor<strong>da</strong>do pelo empresário brasileiro Niccolino Viggiani com uma proposta<br />

tão inespera<strong>da</strong> quanto prometedora. Afinal, se o amanhã do futurismo parecia<br />

incerto no cenário europeu, na América Latina ele continuava sendo um<br />

importante ponto de referência, embora extremamente polêmico. Ademais,<br />

países como Brasil e Argentina pareciam ideais para receber o futurista, pois<br />

o claro interesse pelos debates sobre modernização cultural se associaria à<br />

presença de uma expressiva comuni<strong>da</strong>de italiana, em geral um bom público<br />

para espetáculos teatrais e para companhias de ópera compostas por artistas<br />

9. GOBElTI, Pira, Marinetti, il<br />

precursore in Il Lavom di Genova,<br />

31 de janeiro de 1924.<br />

/O MARINETII, F.T., Per la<br />

inaugurazione de lia Esposizione<br />

Futurista della Casa dei<br />

Fascio in Universifà Fascista<br />

- Lezioni, Bolonha: Casa dei<br />

Fascio, 1927,4. Este discurso<br />

foi proferido em 20 de janeiro<br />

de 1927 e representa um importante<br />

(ain<strong>da</strong> que hiperbólico)<br />

testemunho de Marinetti<br />

sobre a viagem à América do<br />

Sul.


11. Yale Beinecke - Arquivo<br />

Marinetti, série m, caixa 53,<br />

pasta 1978.<br />

12. Ver: KOIFMAN, Georgia,<br />

org. Literatura de idéias. Cartas<br />

de Mário de Andrade a<br />

Prudente de Moraes<br />

Neto./924/36. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 1985, 193. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, o livro foi lançado<br />

após a parti<strong>da</strong> de Marinetti e<br />

contém onze manifestos previamente<br />

publicados e urna série<br />

de reproduções de trabalhos<br />

futuristas. Neste livro, o<br />

manifesto que mencionava<br />

Mário de Andrade e Yan de<br />

Almei<strong>da</strong> Prado, "Le Futurisme<br />

mondial", foi republicado.<br />

Graça Aranha apenas escreveu<br />

o prefácio do volume - uma<br />

reprodução do discurso de recepção<br />

que o brasileiro fez a<br />

Marinetti em sua primeira conferência<br />

no Rio de Janeiro, em<br />

15 de maio de 1926. Este prefácio<br />

- "Marinetti e o futurismo"<br />

- está republicado in Cou·<br />

TINHO, Afrânio, org. Graça<br />

Aranha. Obra Completa. Rio<br />

de Janeiro: Aguilar, 1968,863-<br />

866.<br />

\3 Duas exceções podem ser<br />

encontra<strong>da</strong>s no Jornal do Comércio.<br />

Em 9 de maio, o anúncio<br />

esclarecia o título <strong>da</strong> conferência:<br />

"Futurismo"; em 16 de<br />

maio, o leitor encontraria mais<br />

informações: "Amanhã - Segun<strong>da</strong>-feira,<br />

17, A despedi<strong>da</strong><br />

de MARINETII. Preços usuais".<br />

(De fato, a conferênca foi realiza<strong>da</strong><br />

em 18 de maio).<br />

As veloci<strong>da</strong>des brasileiras de uma inimizade desvaira<strong>da</strong> 45<br />

italianos. O próprio Viggiani era um especialista neste tipo de promoção. Em<br />

16 de dezembro de 1925, Marinetti assinou o seguinte contrato:<br />

o poeta F T. Marinetti compromete-se a empreender uma turnê de conferências (minimum<br />

de oito conferências), incluindo Rio de Janeiro, São Paulo, Montevidéu e Buenos<br />

Aires, com início previsto para Junho de 1926. O Sr. Viggiani compromete-se a<br />

organizar as menciona<strong>da</strong>s conferências nos melhores teatros <strong>da</strong>quelas ci<strong>da</strong>des C .. )<br />

estando implícito que sete dias é o período mínimo de permanência em ca<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

(para assegurar o êxito <strong>da</strong>s conferências através de ent<strong>revista</strong>s, etc ... ). O Sr. Viggiani<br />

compromete-se a pagar a FT. Marinetti 20% do lucro líquido obtido com a ven<strong>da</strong> de<br />

ingressos .11<br />

Portanto, além de lucrar com a voz dos outros, Viggiani também permitia<br />

aos outros lucrar com a própria voz. Neste sentido, os 20% prometidos a<br />

Marinetti parecem ter sido a quantia geralmente ofereci<strong>da</strong> em turnês organiza<strong>da</strong>s<br />

por empresários como Viggiani. De um lado, tal sistema estava baseado<br />

na habili<strong>da</strong>de do empresário em obter o máximo de visibili<strong>da</strong>de para seu<br />

artista. De outro lado, caberia ao artista entreter o público e criar fatos<br />

capazes de atrair a atenção <strong>da</strong> mídia. O empresário também se responsabilizou<br />

pelas despesas de viagem em primeira classe do casal Marinetti, assim<br />

como por todos os detalhes organizacionais necessários para o sucesso <strong>da</strong><br />

iniciativa, além <strong>da</strong>s despesas de hospe<strong>da</strong>gem e a concessão de um generoso<br />

per diem.<br />

Mas, afinal, quem era exatamente Niccolino Viggiani? Ao contrário do<br />

que Antonio Candido imaginou, Viggiani não foi "o editor do livro de Graça<br />

Aranha, Futurismo - Manifestos de Marinetti e seus companheiros", uma<br />

antologia aponta<strong>da</strong> equivoca<strong>da</strong>mente como a razão <strong>da</strong> visita do italiano. 12<br />

Viggiani era o diretor de uma companhia teatral que levava o seu nome e<br />

cujas apresentações tinham lugar no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Ele era<br />

um importante empresário teatral, conhecido por organizar visitas de artistas<br />

europeus, especialmente, italianos. Para compreender a importância dos<br />

eventos promovidos por Viggiani, basta consultar a seção de espetáculos, por<br />

exemplo, do Jornal do Comércio. Os anúncios <strong>da</strong> "Companhia Niccolino<br />

Viggiani" ocupavam quatro ou cinco vezes o espaço dedicado aos eventos <strong>da</strong>s<br />

demais companhias. Baseado nestes anúncios, Viggiani buscou fixar um<br />

padrão idêntico para as conferências de Marinetti, divulga<strong>da</strong>s como mais uma<br />

entre as promoções do empresário. Num mesmo espaço, o leitor encontraria<br />

o anúncio de atrações musicais e teatrais ao mesmo tempo em que saberia <strong>da</strong>s<br />

conferências do italiano. Aquelas, apresenta<strong>da</strong>s em tipos destacados e com<br />

razoável minúcia descritiva; estas, apresenta<strong>da</strong>s em tipos mais discretos,<br />

incluindo apenas o nome do poeta e a <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> conferência. ° A diferença<br />

gráfica, contudo, não implicava uma distinção qualitativa, na ver<strong>da</strong>de, ela<br />

apenas sugeria uma diferença quantitativa. Para o poeta e para o empresário


46 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

o recital de uma famosa cantora lírica e a conferência do futurista podiam ser<br />

anunciados no mesmo espaço pois representavam formas similares de espetáculo.<br />

A diferença realmente significativa dependeria do número de ingressos<br />

vendidos, isto é, do lucro obtido.<br />

De fato, Viggiani não poderia reclamar do lucro proporcionado por<br />

Marinetti. As seis conferências realiza<strong>da</strong>s no Brasil- duas no Rio de Janeiro,<br />

três em São Paulo e uma em Santos - renderam para o empresário a soma de<br />

trinta contos e quinhentos e quarenta e três mil-réis, dos quais perto de seis<br />

contos destinaram-se a Marinetti. 14 Embora o salário mínimo brasileiro tenha<br />

sido oficialmente estabelecido em 1941, segundo cálculos de A Classe Operária,<br />

um jornal militante <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 20, a média do salário, em 1925,<br />

correspondia a 250 mil-réis. Ou seja, em seis conferências, Marinetti produziu<br />

o equivalente a dois anos do salário de um trabalhador comum. 15 Ao que<br />

tudo indica, o futurista pensava nesta quantia ao declarar à imprensa argentina<br />

que tinha ficado "muito satisfeito com [sua] esta<strong>da</strong> no Brasil, cujos resultados<br />

ultrapassaram to<strong>da</strong>s as expectativas".16 Não é nosso objetivo detalhar<br />

o aspecto financeiro <strong>da</strong> viagem, contudo, vale a pena registrar que, em sua<br />

segun<strong>da</strong> fase, Marinetti realizou ao menos doze conferências - onze na<br />

Argentina, <strong>da</strong>s quais nove em Buenos Aires, e apenas uma no Uruguai. Do<br />

total arreca<strong>da</strong>do com a ven<strong>da</strong> de ingressos, Marinetti obteve 1.373 pesos.<br />

Uma soma inferior à obti<strong>da</strong> no Brasil em um número menor de conferências,<br />

mas ain<strong>da</strong> assim uma quantia razoável se considerarmos que, em 1926, o<br />

salário anual de um professor de escola secundária no mais alto nível de<br />

qualificação equivalia a 3.300 pesos.1 7 De qualquer modo, em carta envia<strong>da</strong><br />

a seu irmão, Alberto Cappa, Benedetta reconhecia que a segun<strong>da</strong> fase <strong>da</strong><br />

viagem não podia ser compara<strong>da</strong> com a esta<strong>da</strong> no Brasil, ao menos no que se<br />

refere aos lucros de seu marido: "Grande successo. gloria. gloria. Come<br />

sempre pocchissimo successo finanziario".18 Inversamente. este comentário<br />

revela um aspecto fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> viagem de Marinetti. sistematicamente<br />

negligenciado ou ignorado pelos críticos literários.<br />

11. Uma inimizade desvaira<strong>da</strong><br />

Volto encantado do Brasil. O Rio de Janeiro, sobretudo, suscitou-me impressões vivas<br />

e extremamente agradáveis, Senti nesta ci<strong>da</strong>de minha sensibili<strong>da</strong>de desperta<strong>da</strong> física<br />

e intelectualmente, <strong>da</strong> forma mais amena e festiva ( ... )<br />

Intelectualmente surpreendeu-me encontrar no Rio um intenso movimento literário<br />

e artístico, tendo a seu serviço formosas inteligências e capaci<strong>da</strong>des muito acima do<br />

comum. O futurismo é compreendido e defendido por uma legião de escol, igualmente<br />

brilhante na prosa e no verso. Graça Aranha e Ronald de Carvalho primam entre esses<br />

precursores <strong>da</strong> arte nova ( ... )<br />

Malgrado a tempestuosa recepção que recebi em São Paulo, esta ci<strong>da</strong>de deixou-me<br />

também excelentes impressões ( ... )<br />

14 A documentação referente<br />

ao número de ingressos vendidos<br />

e à porção correspondente<br />

a Marinetti pode ser consulta<strong>da</strong><br />

in Yale Beinecke - Arquivo<br />

Marinetti, sélie m, caixa 53.<br />

pasta 1978.<br />

15 Uma situação invejável, A<br />

C/asse Operária 12, 18 de julho<br />

de 1925. Apud PINHEIRO,<br />

Paulo Sérgio & HALL, Michael<br />

M., orgs. A C/asse operária no<br />

Brasil. 1889-/930. Documen­<br />

tos. Vo!. 11. Condiç"es de vi<strong>da</strong><br />

e de trabalho, relaç"es com os<br />

empresários e o Estado. São<br />

Paulo: BrasBiense, 1981, 131.<br />

16. Desde ayer es nuestro huésped<br />

Felipe T. Marinetti, La<br />

Prensa, 8 de junho de 1926,<br />

14.<br />

17 Liliana Pascual, San José<br />

de Flores /920-/930. La Educacirin,<br />

Buenos Aires: CIS -<br />

Instituto Torcuato di Tella,<br />

1977, 19 ff. Devemos esta informação<br />

a Yasushi Ishii.<br />

IX Carta a Alberto Cappa. Get­<br />

ty Center - Arquivo Marinetti,<br />

acesso # 850702, série 111, caixa<br />

8. pasta 160.


19. O Jornal, II de julho de<br />

1926. Apud BARBOSA, Fmncisco<br />

de Assis, org. Raízes de Sérgio<br />

Buarque de Holan<strong>da</strong>. Rio<br />

de Janeiro: Rocco, 1989, 79-<br />

83.<br />

20. Em especial, Da Montevi­<br />

deo a Buenos Aires con F.T.<br />

Marinetti, Giornale d'Italia,<br />

Buenos Aires, 8 de junho de<br />

1926. Nesta ent<strong>revista</strong>, Marinetti<br />

sintetizam suas impressões<br />

sobre os intelectuais brasileiros,<br />

retomando-as parcialmente<br />

na ent<strong>revista</strong> com<br />

Sérgio Buarque.<br />

21. O relacionamento de Manuel<br />

Bandeira com o casal Marinetti<br />

foi mais próximo do que<br />

em geral se reconhece. Presen­<br />

te em quase to<strong>da</strong>s as ocasiões<br />

públicas importantes durante a<br />

permanência de Marinetti no<br />

Rio de Janeiro, Bandeira ain<strong>da</strong><br />

levou o casal para longos passeios<br />

de automóvel na ci<strong>da</strong>de,<br />

em especial ao Jardim Botâni­<br />

co. Marinetti dedicou quatro<br />

páginas de seu diário a esta visita<br />

(516-519). Mário de An­<br />

drade reagiu com rapidez ao<br />

encantamento de Bandeira.<br />

Em cana a Prudente de Momis<br />

Neto, envia<strong>da</strong> em 31 de maio<br />

de 1926, Mário não procurou<br />

disfarçar sua contrarie<strong>da</strong>de:<br />

"O que não compreendo na<strong>da</strong><br />

é o entusiasmo e a paciência<br />

do Manú, desconfio que foi<br />

por vontade de carregar nos<br />

sonhos eróticos dele a benedetta<br />

(sic) Croce tão pouco<br />

cristã", in Georgina Koifrnan<br />

(ed .. 195.). Adiante, citaremos<br />

uma outra cana, agora envia<strong>da</strong><br />

a Luís <strong>da</strong> Câmam Cascudo em<br />

que o entusiasmo de Bandeira<br />

é uma vez mais condenado.<br />

22. Telegrama enviado em 23<br />

de maio de 1926. VaIe Beinecke<br />

- Arquivo Marinetti, série<br />

m, caixa 7, pasta 76.<br />

2.1. MARINETI1, ET., Taccuini.<br />

1915/1921, org. Alberto Ber­<br />

tone (ed.), Bolonha: li MulillO,<br />

529.<br />

As veloci<strong>da</strong>des brasileiras de uma inimizade desvaira<strong>da</strong> 47<br />

Encontrei em São Paulo uma vanguar<strong>da</strong> de intelectuais que muito honram as letras<br />

brasileiras. Conservo grata recor<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> cintilante grei de futuristas paulistanos.<br />

Destaco. sobretudo. Guilherme de Almei<strong>da</strong> e a Sra. Olívia Penteado. 19<br />

Esta foi a última ent<strong>revista</strong> concedi<strong>da</strong> por Marinetti em 1926, na véspera<br />

do seu regresso à Itália. Ent<strong>revista</strong> menos concedi<strong>da</strong> do que produzi<strong>da</strong>, pois<br />

coube ao italiano a iniciativa de procurar Sérgio Buarque na re<strong>da</strong>ção de O<br />

Jornal. Com uma última aparição pública, Marinetti encerrou suas ativi<strong>da</strong>des<br />

de auto-promoção, p<strong>revista</strong>s no contrato assinado com Viggiani e, na ver<strong>da</strong>de,<br />

marca registra<strong>da</strong> do futurista. Se houve uma surpresa não foi quanto às<br />

observações, próprias de qualquer turista e que Marinetti já fizera na imprensa<br />

argentina,20 mas quanto aos nomes destacados .pelo futurista como representantes<br />

<strong>da</strong> vanguar<strong>da</strong> brasileira. Graça Aranha e Ronald de Carvalho como<br />

"precursores <strong>da</strong> nova arte" no Rio de Janeiro? Por que não? Marinetti nunca<br />

descuidou do ritual <strong>da</strong> reciproci<strong>da</strong>de, buscando deste modo construir uma<br />

vasta rede de "aliados", capaz de assegurar o futuro de seu movimento. Graça<br />

Aranha foi um perfeito anfitrião, brin<strong>da</strong>ndo o italiano com um discurso<br />

encomiástico no Teatro Lírico e facilitando todos os seus contatos para uma<br />

maior divulgação <strong>da</strong>s conferências de Marinetti. Por exemplo, Ronald de<br />

Carvalho apresentou a conferência radiofônica que, na noite de 22 de maio,<br />

reuniu no estúdio <strong>da</strong> Rádio Socie<strong>da</strong>de personali<strong>da</strong>des como o vice-presidente<br />

Estácio Coimbra, inúmeros deputados, Manuel Bandeira21 e Graça Aranha,<br />

entre outros literatos. Na descrição de um telegrama pontualmente enviado<br />

na manhã seguinte: "público seleto considerável ( ... ) brilhante discurso inaugural<br />

poeta ronaldcarvalho (sic) sobre grande impacto artístico político do<br />

futurismo italiano marinetti (sic)."22<br />

É, pois, compreensível a última homenagem presta<strong>da</strong> por Marinetti a<br />

seus novos "aliados" no Rio de Janeiro, local onde ele teve a melhor recepção<br />

de to<strong>da</strong> a viagem. A ver<strong>da</strong>deira surpresa, contudo, estava reserva<strong>da</strong> à "cintilante"<br />

menção a Guilherme de Almei<strong>da</strong> e Olívia Penteado. Considerá-los<br />

como os legítimos representantes <strong>da</strong> vanguar<strong>da</strong> paulista parece equivocado<br />

mesmo para os que desconhecem o diário que Marinettimanteve durante sua<br />

turnê à América do Sul. No dia 29 de maio, por exemplo, o futurista foi<br />

recebido na casa de Olívia Penteado para conhecer seu famoso "salão modernista".<br />

Marinetti descreve algumas <strong>da</strong>s telas "<strong>da</strong> senhora Pentea<strong>da</strong> Telles (sic)<br />

... apaixona<strong>da</strong> pela vanguar<strong>da</strong> e pelo futurismo", sem esquecer de mencionar<br />

os personagens que ali se encontravam: "um Russo que imita Delaunay e<br />

Leger. Nas outras paredes, quadros vanguardistas de Tarsilla de Amar (sic)<br />

De Garro (italiano) e Reis. Encontro Mário de Andrade, Guilherme de Almei<strong>da</strong>".23<br />

Além de declamar poesias, Marinetti assistiu a performances dos dois<br />

poetas brasileiros, Guilherme de Almei<strong>da</strong> foi retratado em seu diário de uma<br />

forma na<strong>da</strong> brilhante: "delicado, refinado, elegantíssimo, rosto e corpo de


48 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

uma velha símia equipa<strong>da</strong> com parisianismo e Mallarmé declama com ardor<br />

e virili<strong>da</strong>de de gestos sua poesia sobre a Aurora".24 Como os erros de ortografia<br />

e a referência ao decadentismo dos versos terão esclarecido, Marinetti<br />

não viu grandes atrativos em Guilherme de Almei<strong>da</strong> e Olívia Penteado.<br />

Portanto, o destaque que eles ganharam na ent<strong>revista</strong> menciona<strong>da</strong> tem um<br />

alvo secreto. Um alvo que o futurista tentava acertar com a arma que ele<br />

manejava melhor: a publici<strong>da</strong>de. Marinetti buscava atingir Mário de Andrade,<br />

excluindo-o <strong>da</strong> seleção dos vanguardistas, do mesmo modo que, em 1924,<br />

ele tentara seduzir o brasileiro, mencionando-o na improvável lista do "futurismo<br />

mundial". Nesta batalha de bastidores reside o pano de fundo <strong>da</strong>s<br />

observações de Marinetti. Na ent<strong>revista</strong> concedi<strong>da</strong> a Sérgio Buarque, o italiano<br />

agiu como um perfeito "passadista". O fun<strong>da</strong>dor do futurismo escolheu<br />

como aliados personagens que os historiadores literários terminariam por<br />

considerar secundárias no cânone do movimento modernista. No entanto,<br />

Marinetti intuiu muito bem que, em 1926, a questão principal era a escolha<br />

de margens. Por exemplo, no dia 26 de maio, Marinetti anotou em seu diário:<br />

Menotti dei Picchio (sic), literato futurista atualmente deputado diretor do Correio<br />

Paulistano.<br />

( ... )<br />

Del Picchio há dois anos (si c) fez com Aranha Carvalho Bandeira Andrade de<br />

Almei<strong>da</strong> Prado a semana modernista futurista no Teatro Municipal.<br />

Hoje está brigado com Andrade atacou o último livro de Almei<strong>da</strong>. Chega Mário de<br />

Andrade25<br />

Apesar dos erros de ortografia e cronologia, estas linhas revelam um<br />

atento observador. Em 1926, o movimento modernista estava prestes a assumir<br />

faces tão diversas quanto o número de facções que estiolariam a uni<strong>da</strong>de<br />

responsável pela eclosão <strong>da</strong> semana de 1922. Grupos de tendência esquerdista,<br />

grupos de inclinação fascista e até apolíticos então emergentes encontrariam<br />

expressão em <strong>revista</strong>s que divulgariam suas plataformas. Além <strong>da</strong> disputa<br />

ideológica, outras lutas eram trava<strong>da</strong>s. Disputava-se o exíguo público<br />

com o mesmo interesse com que, muito em breve, boa parte <strong>da</strong> geração<br />

modernista encontraria respaldo em cargos oficiais. Este processo aprofundou<br />

uma ruptura semântica cujas primeiras manifestações antecedem 1922.<br />

Então, a fórmula a que Marinetti recorreu para definir a Semana de Arte<br />

Moderna ("semana futurista modernista"), embora já problemática, poderia<br />

ter sido emprega<strong>da</strong> para efeitos propagandísticos. No entanto, em 1926, tal<br />

fórmula apenas criaria constrangimentos. Esta mu<strong>da</strong>nça atesta anos de esforços<br />

por parte de alguns membros do movimento para a superação <strong>da</strong> imagem<br />

de iconoclastas que a Semana impusera. Guilherme de Almei<strong>da</strong> optou pelo<br />

caminho mais fácil, ingressando, em 1930, na instituição preferencialmente<br />

visa<strong>da</strong> pelas críticas dos modernistas, a Academia Brasileira de Letras. Ou-<br />

24 Idem. ibidem.<br />

25 Idem. 524.


2ó. Ver FABRIS, Annateresa, op.<br />

cit., 266-68; NUNES. Benedito.<br />

OSlVald Canihal. São Paulo:<br />

Perspectiva. 1979.<br />

27. Sobre o diálogo de Oswald<br />

com Cendrm's, CAMPOS. Haroldo<br />

de, Uma poética <strong>da</strong> radica­<br />

li<strong>da</strong>de. in OSlVald de Andrade.<br />

Poesias reuni<strong>da</strong>s. São Paulo:<br />

D/FEL. 1966.32-35; AMARAL.<br />

Aracy. Rlaise Cendrars no<br />

Brasil e os modernista.\'. São<br />

Paulo: Livraria Mattins Edito­<br />

ra, 1968.85-95.<br />

2R. ANDRADE. Oswald de. O<br />

meu poeta futurista, in Boi\,<br />

VENlURA. Maria Eugenia, org.<br />

Estética e política. São Paulo:<br />

Editora Globo. 1991. 22-25.<br />

Este texto foi originalmente<br />

publicado no Jornal do Comércio<br />

(São Paulo) em 21 de<br />

maio de 1921.<br />

As veloci<strong>da</strong>des brasileiras de uma inimizade desvaira<strong>da</strong> 49<br />

tros participantes <strong>da</strong> Semana, mais sutis ou menos inclinados aos rituais <strong>da</strong><br />

Academia, apostaram no modelo do intelectual como arquiteto <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> nação. Neste contexto, a ruptura semântica cristalizou-se. O termo<br />

''futurismo'' passou a designar uma condenação indiscrimina<strong>da</strong>, logo, superficial,<br />

contra to<strong>da</strong> e qualquer manifestação do passado. O termo "modernismo<br />

", entendido como a face positiva <strong>da</strong> reação contra estruturas arcaicas,<br />

passou a designar formas novas de identi<strong>da</strong>de cultural, profun<strong>da</strong>mente<br />

identifica<strong>da</strong>s com a essência <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de. Esta ruptura constituiu um<br />

dos elementos determinantes <strong>da</strong> acolhi<strong>da</strong> que Marinetti teve. Com efeito, ela<br />

pode ser observa<strong>da</strong> tanto em debates intelectuais quanto em charges e inúme­<br />

ras paródias em verso e prosa publica<strong>da</strong>s na imprensa diária. Nos debates, a<br />

ruptura é explicita<strong>da</strong> formalmente. Nas charges e inúmeras paródias de pala­<br />

vras-em-liber<strong>da</strong>de com descrições satíricas <strong>da</strong>s conferências de Marinetti, a<br />

penetração popular <strong>da</strong>quela ruptura se esclarece. Por exemplo, um leitor do<br />

Jornal do Comércio que consultasse a seção de espetáculos, em 9 de<br />

maio de 1926, encontraria um anúncio de meia-página, cujo mote prometia:<br />

"A EPIDEMIA DO JAZZ: UM FILME FUTURISTA - UMA HOMENAGEM AO ESPÍRITO<br />

MODERNO. Asupremaciado absurdo! Do ilógico! Do incoerente!" Embora a<br />

carga semântica dos termos ain<strong>da</strong> não esteja diferencia<strong>da</strong> com nitidez, o<br />

absurdo, o ilógico e o incoerente são atributos do filme "futurista", adjetivo<br />

que resume uma parte do "espírito moderno", mas que não o esgota. Em<br />

palavras diretas, Marinetti, o criador do futurismo, desembarcou na América<br />

do Sul após a consumação do tempo: tivesse ele chegado em 1924, como seu<br />

equívoco sugere (Há dois anos [realizou-se] a semana modernista futurista"),<br />

provavelmente o rumo de sua viagem teria sido outro.<br />

Ao menos vale a pena imaginar uma possibili<strong>da</strong>de: se a viagem realmente<br />

tivesse ocorrido em 1924, o autor de Zang Tumb Tumb poderia então ter<br />

encontrado quem talvez desempenhasse um papel mediador fun<strong>da</strong>mental. Du­<br />

rante a permanência de Marinetti no Brasil, Oswald de Andrade estava no<br />

exterior, tendo apenas retornado no mês seguinte ao <strong>da</strong> parti<strong>da</strong> do italiano. As<br />

afini<strong>da</strong>des de Oswald com o futurismo remontam a 1912, em sua primeira<br />

viagem a Europa, quando ele leu com interesse o Fun<strong>da</strong>ção e Manifesto do<br />

Futurismo, publicado pelo Le Figaro em 20 de fevereiro de 1909; um texto cujo<br />

impacto sobre suas concepções não deve ser ignorado.26 Em seu período forma­<br />

tivo, o principal diálogo de Oswald de Andrade foi com as vanguar<strong>da</strong>s francesas<br />

e, sobretudo, com Blaise Cendrars. 27 No entanto, entusiasmado com a Paulicéia<br />

Desvaira<strong>da</strong>, de Mário de Andrade, Oswald não encontrou maior elogio que<br />

considerar seu autor, "o meu poeta futurista".28 A afini<strong>da</strong>de realmente importante<br />

diz respeito à compreensão oswaldiana <strong>da</strong> natureza auto-promocional <strong>da</strong><br />

indústria cultural contemporânea. Oswald, na melhor tradição futurista, provo­<br />

cava abertamente seus adversários, inspirando críticas semelhantes às que fo­<br />

ram endereça<strong>da</strong>s a Marinetti em 1926. Na visão de Oswald de Andrade, a


50 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, na 3<br />

prática artística dos modernistas se <strong>completa</strong>va na encenação de seu papel<br />

social e este poderia, se exercido com a dose necessária de artifício, tornar-se<br />

uma outra forma de apresentação <strong>da</strong> arte moderna. Por isto, um encontro de<br />

Marinetti com Oswald de Andrade, ain<strong>da</strong> que fictício, teria chances reais de<br />

oferecer ao futurista um importante e fecundo interlocutor.<br />

Num outro plano, a presença de Mário de Andrade deve ter parecido a<br />

Marinetti uma desagradável surpresa. Mário construiu sóli<strong>da</strong>s alianças através<br />

de uma minuciosa e quase obsessiva correspondência que deve ter incluído<br />

a maior parte dos jovens promissores <strong>da</strong> geração de autores pós-1922. Os<br />

efeitos práticos deste sistema epistolar eram múltiplos. Para compreendê-los,<br />

precisamos privilegiar os possíveis vínculos institucionais nele implicados,<br />

em lugar de limitar nossa interpretação às vicissitudes pessoais dos missivistas.<br />

29 Através de sua correspondência, Mário pôde coreografar e mesmo<br />

coordenar eventos, além de praticamente modelar o horizonte intelectual de<br />

escritores iniciantes. Por fim, nas cartas pontualmente envia<strong>da</strong>s, e que recor<strong>da</strong>m<br />

os inúmeros telegramas expedidos por Marinetti, Mário assumiu o papel<br />

de cronista <strong>da</strong> literatura brasileira. Este papel foi o mais importante, pois<br />

permitiu a Mário estabelecer-se como uma espécie de criador <strong>da</strong> memória <strong>da</strong><br />

cultura nacional, uma ponte entre a i<strong>da</strong>de heróica do modernismo e as gerações<br />

posteriores.<br />

Portanto, não teria sido apenas um gesto inconseqüente o que levou<br />

Mário de Andrade a enviar para Marinetti uma cópia de Paulicéia Desvaira<strong>da</strong><br />

com a dedicatória: "A F.T.Marinetti / com (sic) viva simpatia e ammirazione".30<br />

Marinetti, com um olho posto numa futura aliança, respondeu com<br />

rapidez e no já citado manifesto "Le Futurisme mondial" alinhavou numa<br />

lista ecumênica de "futuristes sans savoir, ou futuristes déclarés" ( ... ) De<br />

Andrade, D' Almei<strong>da</strong> Prado (sic)".31 O alcance do gesto dependia do axioma<br />

fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> lei <strong>da</strong> reciproci<strong>da</strong>de: "só me interessa o outro como um outro<br />

aliado". Deste modo, um pouco antes <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> de Marinetti em 1926, Yan<br />

de Almei<strong>da</strong> Prado recordou que "um belo dia chegou-me comunicação de<br />

outro empresário com aviso que Marinetti ia empreender turnê na América<br />

do Sul e contava naturalmente com o meu auxílio".32 Mário de Andrade<br />

também recebeu mensagens de Viggiani, mas com ele a causa do empresário<br />

estava perdi<strong>da</strong> desde o começo. O gesto de Marinetti desagradou a Mário de<br />

Andrade. Além disto, sentimentos antifascistas e uma crescente inclinação<br />

nacionalista, associados a simples ansie<strong>da</strong>de sobre a repercussão <strong>da</strong> visita do<br />

italiano na cena intelectual brasileira tornaram Mário abertamente hostil à<br />

presença de Marinetti. Hostili<strong>da</strong>de que transparece sob a face irônica de uma<br />

breve nota envia<strong>da</strong> a Prudente de Moraes Neto:<br />

Chego no Rio a bordo do Zelandia. Vá me esperar no cais pra combinar tudo. Não sei<br />

pra que Hotel vou. Arranje pois pra estar no cais e me abraçar. Vou buscar o Marinetti.<br />

29. Silviano Santiago, em pa­<br />

lestra realiza<strong>da</strong> na Universi<strong>da</strong>­<br />

de de Stanford, destacou esta<br />

perspectiva.<br />

lO. Apud FABRIS, Annateresa,<br />

op. cil .• 218.<br />

li. MARINETTI. F.T.. Le Fututis­<br />

me mondial, in Le Futurisme.<br />

Revue Synthéthique Illustrée,<br />

11 de janeiro de 1924, 2. As<br />

dúvi<strong>da</strong>s referentes à identi<strong>da</strong>­<br />

de do "De Andrade" foram sa­<br />

tisfatoriamente resolvi<strong>da</strong>s por<br />

Annateresa Fabris, OI'. cit.,<br />

217-18.<br />

12 PRADO, J.F. de Almei<strong>da</strong>,<br />

O Brasil e () colonialismo eu­<br />

ropeu. São Paulo: Companhia<br />

Editora Nacional. 1956, 392,<br />

nossos itálicos.


D KOIFMAN, Georgina, org.,<br />

191.<br />

14 ANDRADE, Mário de, Blaise<br />

Cendrars, Revista do Brasil,<br />

março, 1924, in EULÁLIO, Alexandre,<br />

org., A Aventura Brasileira<br />

de Blaise Cendrars.<br />

São Paulo: Edições Quíron,<br />

1978, 160.<br />

Jj. MARINElTI, F.T., Le FutUlisme<br />

mondial, in Le Futurisme.<br />

Revue Sv1lthélhique Illustrée,<br />

11 de janeiro de 1924, I.<br />

lO. PRADO, J.F. de Almei<strong>da</strong>, op.<br />

eit., 396.<br />

17 Mário de Andrade publicou<br />

a "Carta aberta a Graça Ara­<br />

nha" em 12 de janeiro de 1926,<br />

em A Manhã. Nesta carta, Má­<br />

rio contestava a pretensa lide­<br />

rança de Graça Aranha e chegava<br />

a duvi<strong>da</strong>r do modernismo<br />

do autor de Espírito moderno,<br />

insinuando que Aranha apenas<br />

aderira ao movimento modernista<br />

movido por interesses<br />

pessoais.<br />

18 VERISSIMO DE MEU), org.,<br />

Cartas de Mário de Andrade a<br />

Luís <strong>da</strong> Câmara Cascudo.<br />

Belo Horizonte, Vila Rica, s/d,<br />

63. A carta foi escrita em 4 de<br />

junho de 1926.<br />

As veloci<strong>da</strong>des brasileiras de uma inimizade desvaira<strong>da</strong> 51<br />

Quá! Quá! Quá! O Viggiani é que paga. Quá! Quá! Quá! Sinão eu não ia. Quá! Quá!<br />

Quá! Buscá o Marinetti. Quáquá! Quá! Quá! (Isto é fia modinha).33<br />

A reserva inicial de Mário com vanguardistas europeus que vinham<br />

conquistar eldorados é bem conheci<strong>da</strong>. Por exemplo, na Revista do Brasil, na<br />

edição de março de 1924, por ocasião <strong>da</strong> primeira visita de Blaise Cendrars<br />

ao Brásil, após escrever um longo e favorável ensaio, Mário não resistiu a um<br />

duvidoso jogo de palavras. Cendrars quase foi impedido de ingressar no país,<br />

pois, em virtude <strong>da</strong>s novas leis de imigração, sua condição física o tornava<br />

incapacitado para o trabalho. O braço que o suíço perdera na Primeira Guerra<br />

Mundial o tornou alvo <strong>da</strong> sugestão: na ver<strong>da</strong>de, Blaise Cendrars seria Sans­<br />

Bras. O artigo de Mário explicitava a equivalência:<br />

As autori<strong>da</strong>des de Santos quiseram impedir-lhe o desembarque, por que era mutilado.<br />

Tudo se arranjou, Felizmente para nós, que possuiremos o poeta por algum tempo. Mas<br />

o ato policial me enche de sincero orgulho. Que vem fazer entre nós os mutilados? O<br />

Brasil não precisa de mutilados, precisa de braços. J.I<br />

A fonte de Mário pode ter sido o manifesto do "Futurisme mondial",<br />

publicado em janeiro de 1924. Nele, Marinetti anunciava o "futurista" Cendrars<br />

inaugurando o duvidoso jogo: "Voici le Sans Fil Blaise Cendrars,<br />

filmeur de rêves negres, émetteur des Radios, écraniste solaire du monde<br />

entier".35 Na imagística futurista, o Sans-Fil equivale à explicitude <strong>da</strong> sugestão<br />

andradina. Igualmente direto, Yan de Almei<strong>da</strong> Prado creditou o incidente<br />

a determina<strong>da</strong> característica de Mário, "ao qual aborrecia o aparecimento de<br />

outro pontífice no seu arraial".36 No caso de Marinetti, não se tratava de um<br />

outro qualquer, mas do próprio criador do futurismo. Por isto, a reação de<br />

Mário foi imediata e o debochado "quá! quá! quá!" anunciou a calcula<strong>da</strong><br />

frieza com que Marinetti seria tratado. Mário ironizava tanto a "generosi<strong>da</strong>de"<br />

de Viggiani quanto a ingenui<strong>da</strong>de do italiano que esperava encontrar um<br />

"De Andrade" e um "D' Almei<strong>da</strong> Prado" prontos para o papel de fiéis escudeiros<br />

do futurista. Afinal, por que o empresário pagaria as despesas de<br />

Mário? Certamente porque sua participação asseguraria à chega<strong>da</strong> de Marinetti<br />

um considerável valor no marketing <strong>da</strong>s conferências. Sobretudo após a<br />

"Carta aberta a Graça Aranha" que tanta polêmica ocasionara.3? Reunir os<br />

dois líderes do modernismo brasileiro na recepção ao criador do futurismo<br />

representaria um ver<strong>da</strong>deiro evento. Aliás, um evento cujo interesse fez com<br />

que criativos jornalistas incluíssem um Mário de Andrade virtual em suas<br />

narrativas. Antes que tal versão se transformasse em fato, Mário se viu<br />

forçado a reagir: "Os jornais falaram que fui no Rio esperá-lo. É mentira, não<br />

fui não. Pretendi ir depois desisti e estou convencido que fiz bem" ,38 pois o<br />

inimigo maior <strong>da</strong> performance futurista era tanto a indiferença hostil quanto<br />

o aplauso educado. Em "La voluttà di esser fischiati", este princípio já havia


52 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

sido tematizado: as apresentações futuristas são batalhas que convi<strong>da</strong>m à<br />

vaia, à reação violenta por parte do público.39 Quanto maior a violência desta<br />

reação, maior o êxito <strong>da</strong> se rata futurista. Talvez porque durante muitos anos<br />

tenha convivido com Oswald de Andrade, Mário compreendia tal estratégia<br />

com perfeição. Estava, portanto, preparado para a disputa. Faltava apenas o<br />

encontro com o adversário. Numa carta a Luís <strong>da</strong> Câmara Cascudo, Mário<br />

descreveu o confronto:<br />

Depois dele estar já três dias em S. Paulo é que fui visitá-lo. Não podia deixar de ir<br />

embora esse fosse meu desejo porque desde a Itália e desde muito que tem sido gentil<br />

pra comigo. Fui e a primeira coisa que falei pre ele é que tinha deixado de ir à<br />

conferência porque discor<strong>da</strong>va dos meios de propagan<strong>da</strong> que estava usando. Ficou sem<br />

se desapontar e pôs a culpa no empresário. E falou falou dizendo coisas que eu já sabia<br />

e me cansando. Me despedi e espero que se tenha desiludido de Mário que ele<br />

imaginava futurista ( ... ) A segun<strong>da</strong> vez que o vi foi num chá no salão moderno de Dona<br />

Olívia Penteado. Esteve absolutamente chato. Não o procurei mais e meio que banquei<br />

o indiferente. Me contaram que ele foi embora indignado conosco. É milhor assim. No<br />

Rio foi apreciadíssimo dos modernos e teve as honras que não me parece mereci<strong>da</strong>s de<br />

ser apresentado no teatro pelo Graça e na conferência do rádio pelo Ronald. Não posso<br />

compreender o entusiasmo que tiveram por ele. principalmente o Manuel Bandeira."411<br />

Como resposta ao interesse demonstrado pelos cariocas, Mário encontrou<br />

a fórmula adequa<strong>da</strong> para neutralizar o italiano: a indiferença. Por fim,<br />

num esforço adicional para diminuir o entusiasmo de Bandeira, Mário enviou<br />

uma carta ao amigo, na qual anunciava a estratégia que empregaria em seu<br />

duelo com Marinetti:<br />

In<strong>da</strong> não vi o homem e parece que de despeito ele afirmou no teatro que os futuristas<br />

do Brasil estavam todos no Rio de Janeiro (. .. ) mas amanhã, quarta, irei visitá-lo. Si<br />

não quiser me receber, milhor, porque evitará a discussão que havemos de ter, pois vou<br />

disposto a falar sinceramente o que penso do procedimento dele aqui e que não fui ao<br />

teatro porque não estou disposto a assitir espetáculo de vaias mais ou menos prepara<strong>da</strong>s.<br />

41<br />

Num primeiro momento, Mário reagiu à presença de Marinetti deixando<br />

de comparecer aos eventos públicos organizados por Viggiani, evitando assim<br />

sua identificação com o líder futurista. Vale dizer, para Mário pouco<br />

importava se as vaias eram ou não combina<strong>da</strong>s, o importante era cercar o<br />

evento com um eloqüente silêncio. Num segundo momento, através de uma<br />

correspondência envia<strong>da</strong> a todo o Brasil, ele tomou a si a responsabili<strong>da</strong>de de<br />

descrever e avaliar a visita de Marinetti. Deste modo, além de reforçar sua<br />

posição de liderança, Mário construía a memória de futuras gerações. Por<br />

fim, Mário procurou desacreditar o papel fun<strong>da</strong>dor de Marinetti através de<br />

uma sutil armadilha lógica, expondo o paradoxo que cedo ou tarde to<strong>da</strong><br />

39 MARINETII, F.T., La voluttà<br />

di esser fi schiati. in MARIA.<br />

Luciano de, org., Guerra sola<br />

igiene dei mondo (1915). Teoria<br />

e invenzione futurista, Milão:<br />

A. Mon<strong>da</strong>dori, 1983.<br />

40. VERfsSIMO DE MELO, org.,<br />

63-64. Para apresentar os dois<br />

encontros de Mário com Marinetti<br />

em ordem cronológica,<br />

alteramos a ordem original dos<br />

parágrafos <strong>da</strong> carta de Mário<br />

de Andrade.<br />

4'. BANDEIRA, Manuel, org.,<br />

Cartas a Manuel Bandeira.<br />

Mário de Andrade, Rio de Janeiro:<br />

Edições de Ouro, sld,<br />

135.


54 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

mos parágrafos, Aranha analisou a cena brasileira, sugerindo um padrão<br />

idêntico para a avaliação de seu papel histórico de organizador <strong>da</strong> Semana de<br />

Arte Moderna. Mário respondeu de imediato a este astuto lance, aceitando a<br />

primeira parte do raciocínio, porém invertendo suas conseqüências. Graça<br />

Aranha bem poderia ser o Marinetti brasileiro. No entanto, <strong>da</strong>do o princípio<br />

de "tal pai, qual filho", se Marinetti era menos moderno que Folgore e menos<br />

futurista que todos os ex-futuristas, logo, Aranha era inevitavelmente um<br />

"passadista". Na esfera pública, Mário evitou contatos com Marinetti. Na<br />

esfera priva<strong>da</strong>, ativou seu sistema epistolar para contar uma versão própria<br />

dos fatos e, assim, diminuir a importância do italiano. Com esta dupla estratégia,<br />

Mário neutralizou as ações planeja<strong>da</strong>s por Graça Aranha.<br />

Um inesperado peão num jogo de xadrez cujos ver<strong>da</strong>deiros mestres eram<br />

Mário de Andrade e Graça Aranha e cujo prêmio era a liderança simbólica do<br />

movimento modernista, Marinetti optou pelas alianças possíveis numa situação<br />

difícil. Ele excluiu Mário <strong>da</strong> seleção de vanguardistas brasileiros, substituindo<br />

o poeta de Paulicéia Desvaira<strong>da</strong> por Guilherme de Almei<strong>da</strong> e Olívia<br />

Penteado; além de reforçar seus laços com Graça Aranha e Ronald de Carvalho.<br />

Podemos agora retornar ao segundo encontro de Mário e Marinetti, desta<br />

vez escutando a versão do italiano: "Declamo Bombar<strong>da</strong>mento. Mário de<br />

Andrade um tipo rude alto com aspecto de bom negro branco declama<br />

suspirosamente e leitosamente um de seus llOflImos".-t8 O "ex-aliado" do<br />

manifesto do "Futurisme mondial" reaparece como um poeta decadente, uma<br />

antítese do espírito moderno. Depois deste segundo encontro, Mário e Marinetti<br />

não se viram em nenhuma outra ocasião. O brasileiro não foi mais<br />

convi<strong>da</strong>do para as aparições públicas do italiano e, claro, ele não compareceu<br />

às duas últimas conferências de Marinetti. No entanto, a vitória final coube a<br />

Mário de Andrade. Graça Aranha nunca recuperou a posição de liderança por<br />

ele desempenha<strong>da</strong> em 1922. Marinetti apenas retornou ao Brasil em 1936 e<br />

mesmo assim sem maiores conseqüências. Por fim, através de um perfeito<br />

sistema epistolar e de uma constante colaboração jornalística, Mário de<br />

Andrade transformou sua versão dos fatos na memória <strong>da</strong>s futuras gerações.<br />

Uma conquista que Marinetti, o criador do futurismo, não poderia senão<br />

desejar para o seu movimento.<br />

48 MARINETII, F. T. Taccuini.<br />

1915/1921, org. Alberto Berlone<br />

org., Bolonha: 11 Mulino,<br />

529.


Uma primeira versão deste<br />

texto constituiu palestra que<br />

fiz no Curso de Pós-Graduação<br />

em Língua e Literatura Inglesa<br />

do Departamento de Letras<br />

<strong>da</strong> USP, São Paulo, em<br />

abril de 1995.<br />

1 CANDIDO, Antonio. Palavras<br />

do homenageado In: 1" Con­<br />

liressoABRAUC: Anais. Porto<br />

Alegre: UFRGS. 1989. Texto<br />

reproduzido In: Recortes. São<br />

Paulo, 1993.<br />

Literatura compara<strong>da</strong> e<br />

literaturas estrangeiras<br />

no Brasil<br />

Tania Franco Carvalhal<br />

Nas palavras iniciais que proferiu ao ser homenageado no I Congresso <strong>da</strong><br />

ABRALIC, em Porto Alegre(1988), Antonio Candido, ao dizer que a "organização<br />

associativa dos especialistas era sinal de maturi<strong>da</strong>de e com certeza<br />

aju<strong>da</strong>ria a Literatura Compara<strong>da</strong> brasileira a entrar na era do funcionamento<br />

sistemático", observou que até aquele momento ela tinha sido "uma ativi<strong>da</strong>de<br />

universitária ain<strong>da</strong> discreta e frequentemente marginal, quase sempre subproduto<br />

<strong>da</strong>s disciplinas de literaturas estrangeiras modernas".l<br />

Interessa-nos pensar a que aludiria Antonio Candido ao final do parágrafo<br />

quando identifica, no início <strong>da</strong> institucionalização acadêmica <strong>da</strong> prática comparatista<br />

no Brasil, uma estreita vinculação entre ela e as literaturas estrangeiras<br />

modernas. Certamente estaria a lembrar de trabalhos pioneiros em literatura<br />

compara<strong>da</strong> que foram desenvolvidos no âmbito universitário sob forma de teses<br />

acadêmicas e não mais como resultado de um comparatismo "espontâneo e<br />

difuso" que, segundo ele, teria caracterizado os estudos críticos brasileiros,<br />

dotados em geral de "ânimo comparatista". Ânimo concretizado na referência<br />

constante a modelos externos, tomados inclusive como critério de valor, como<br />

se sabe, pois os estudos de literatura nacional (como aliás a própria produção<br />

literária brasileira) caracterizavam-se por manifestar através <strong>da</strong> constante referência<br />

ao estrangeiro, ain<strong>da</strong> no dizer de Candido, "uma espécie de comparatismo<br />

não intencional, elementar e ingênito".


56 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

Entre os trabalhos oriundos <strong>da</strong> experiência com literaturas estrangeiras<br />

estão aqueles que o próprio crítico menciona no mesmo texto: o de Keera<br />

Stevens, sobre viajantes ingleses em Portugal, o de Carla de Queiroz em<br />

Literatura Italiana sobre Metastásio e os árcades brasileiros. o de Marion<br />

Fleischer, em Literatura Alemã, sobre obras publica<strong>da</strong>s nessa língua no Rio<br />

Grande do Sul, o de Onédia de Carvalho Barbosa. em Literatura Inglesa,<br />

sobre traduções de Byron no Brasil, e o de Maria Alice Faria. em Literatura<br />

Francesa, sobre Musset e Álvares de Azevedo.<br />

Como se vê, aparecem já nessa breve referência de Antonio Candido<br />

cinco literaturas estrangeiras que. na USP. motivaram estudos comparativos<br />

sistemáticos entre a nossa e aquelas literaturas. sobretudo no campo <strong>da</strong><br />

recepção literária ou de análises pontuais entre dois (às vezes mais) autores<br />

de duas literaturas. Eis, portanto, numa perspectiva histórica. o quadro que<br />

desenha com nitidez a inclinação dos estudiosos de literaturas estrangeiras no<br />

Brasil para estudos que propiciem um aproveitamento simultâneo de dois<br />

campos de trabalho: o <strong>da</strong> literatura brasileira (que integra a formação do<br />

pesquisador brasileiro) e o <strong>da</strong> literatura estrangeira, na qual ele se especializa.<br />

Esse quadro, que poderia ser apenas inicial, se tem confirmado desde então<br />

por inúmeros trabalhos em diferentes universi<strong>da</strong>des brasileiras, particularmente<br />

naquelas em que há mestrados e doutorados em literatura compara<strong>da</strong>:<br />

na própria Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, na Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de<br />

Janeiro, na Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais e na Universi<strong>da</strong>de Federal<br />

do Rio Grande do Sul. Nesta última, por exemplo, tive a oportuni<strong>da</strong>de de<br />

orientar a tese de Doutorado em Literatura Compara<strong>da</strong> (a primeira a ser<br />

defendi<strong>da</strong> no Doutorado em Letras <strong>da</strong> UFRGS, em dezembro de 1993) de<br />

Maria Marta Laus Pereira Oliveira, professora de francês <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal de Santa Catarina, sobre a recepção <strong>da</strong> obra de Proust na crítica<br />

brasileira e também a tese de Maria Luíza Brandão <strong>da</strong> Silva, professora de<br />

literatura francesa na UFRGS, sobre a leitura de intertextos franceses no<br />

simbolismo sul-rio-grandense. Tive igualmente a ocasião, no recente concurso<br />

para Professor Titular de literatura norte-americana <strong>da</strong> UFMG, de apreciar<br />

o excelente estudo de Ana Lúcia Gazolla sobre as viajantes anglo-americanas<br />

no Brasil no século XIX, intitulado "Mulheres à deriva". Os exemplos poderiam<br />

se multiplicar e eles são aqui mencionados para identificar a origem<br />

desses trabalhos e a tendência geral e permanente dos professores de literaturas<br />

estrangeiras na universi<strong>da</strong>de brasileira a se ocuparem com pesquisas de<br />

natureza comparatista. Tal incidência aponta para uma "inclinação natural"<br />

dos estudiosos de literaturas estrangeiras aos estudos comparatistas. Devido<br />

a essa inclinação natural (ou habilitação natural), a ABRALIC, desde sua<br />

constituição, pôde contar entre seus associados com expressivo número de<br />

professores de literaturas estrangeiras, pois habituado a li<strong>da</strong>r com duas ou


Literatura compara<strong>da</strong> e literaturas estrangeiras no Brasil 57<br />

mais línguas, literaturas e culturas, adquire esse pesquisador uma dupla<br />

competência, necessária a estudos dessa natureza.<br />

Essas rápi<strong>da</strong>s considerações nos permitem dizer que tais estudos não<br />

podem, hoje, ser mais considerados como subprodutos <strong>da</strong>s disciplinas de<br />

literaturas estrangeiras modernas, como os designou Antonio Candido, tendo<br />

por base o quadro histórico inicial. Na ver<strong>da</strong>de, oriundos do trato com<br />

literaturas estrangeiras, eles se têm convertido em parte essencial não só <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong>des de ensino e pesquisa <strong>da</strong>s literaturas estrangeiras no Brasil como<br />

dos estudos de literatura compara<strong>da</strong> aqui desenvolvidos. Tendo em vista as<br />

orientações comparatistas mais recentes, eles assumem uma importância<br />

decisiva. Sobretudo quando se ocupam com as análises de produção/recepção<br />

literárias a partir de uma concepção de polissistema, tal como a definiu Itamar<br />

Even Zohar I In: Papers in Historieal Poeties, Tel Aviv, 1981), e com estudos<br />

intra e interculturais nos quais a tradução tem um lugar central, sem falar <strong>da</strong>s<br />

investigações que se caracterizam como "cross cultural studies" e que incluem<br />

os estudos sobre viajantes e cronistas. Nesse contexto, os estudos<br />

interliterários e interculturais ganham uma grande relevância. Trata-se, pois,<br />

não só de sensível acréscimo de uma incidência numérica em trabalhos dessa<br />

natureza mas de um avanço certamente qualitativo nos estudos realizados<br />

nesses campos e que se identificam, particularmente, pela adoção de novos<br />

pressupostos teóricos e metodológicos, antes não disponíveis.<br />

Mas, cabe in<strong>da</strong>gar, por outro ângulo embora ain<strong>da</strong> no mesmo contexto,<br />

o que faz com que um professor de literatura estrangeira entre nós adote, com<br />

tanta frequência, a orientação comparatista.<br />

A resposta pode vir rápi<strong>da</strong>, pois não é difícil perceber que se trata, ain<strong>da</strong><br />

e sempre, de peculiarizar uma atuação a partir do lugar onde o pesquisador se<br />

situa (ou seja, o loeus <strong>da</strong> enunciação). Quer dizer, um professor de literatura<br />

estrangeira no Brasil, por mais especializado que seja em períodos, tendências,<br />

gêneros ou autores estrangeiros (Shakespeare ou o drama burguês francês,<br />

por exemplo) sabe que, em lugar de restringir-se apenas àquela literatura<br />

estrangeira, poderá contribuir decisivamente para o conhecimento que desenvolve<br />

se tomar uma perspectiva que lhe é particular e que só um pesquisador<br />

com a dupla formação que possui (em literatura brasileira e estrangeira) pode<br />

assumir. Assim, estu<strong>da</strong>r a recepção de Shakespeare ou de Proust no Brasil<br />

significa contribuir para o conhecimento desses autores num ângulo diverso<br />

dos estudos empreendidos por pesquisadores europeus, quer dizer, examinálos<br />

sob o ângulo <strong>da</strong> reação que eles provocaram em contextos diversos ao de<br />

suas origens e <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de de leituras que eles são capazes de suscitar.<br />

Mas significa também observá-los com uma visibili<strong>da</strong>de particular e colaborar<br />

para um entendimento mais eficaz <strong>da</strong> literatura/cultura que os acolhe.<br />

Significa, ain<strong>da</strong>, in<strong>da</strong>gar sobre as razões pelas quais determinado autor (seja<br />

ele importante ou não na literatura de origem) repercute e se difunde em outro


58 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

contexto literário e cultural,com maior ou menor sucesso. Estudos comparativos<br />

dessa ordem, que levam em conta a produção/recepção <strong>da</strong>s obras,<br />

respondem a uma necessi<strong>da</strong>de contextual, a urgências específicas de ca<strong>da</strong><br />

espaço determinado. A estratégia que define "o lugar de onde se fala" é tão<br />

significativa que se converteu em objeto de reflexão para muitos estudiosos<br />

e, poder-se-ia mesmo dizer, em uma espécie de categoria crítica.<br />

Em texto publicado na Revista de Crítica Literária Latinoamericana n°<br />

40, 1994, pp. 363-374, e elaborado como instrumento de trabalho para a<br />

JALLA 95 (realiza<strong>da</strong> em Tucumán, Argentina, em agosto de 1995). Walter<br />

Mignolo, ao tratar dos processos de globalização, in<strong>da</strong>ga como esses processos<br />

afetam as práticas culturais. E pergunta: " De que maneira as línguas<br />

liga<strong>da</strong>s aos impérios (Espanhol, Português, Francês, Inglês), e as práticas<br />

culturais nessas línguas impõem formas de pensamento que tratamos de<br />

impor a práticas culturais em outras línguas (Aymara, Quechua, Hebreu,<br />

Árabe, Chinês, etc)?" É certo que o autor está ocupado com espaços e línguas<br />

muito específicas e não similares às dos povos colonizadores mas, de qualquer<br />

modo, sua reflexão valoriza a noção de contexto, "o lugar desde onde se<br />

pensa, fala e escreve". Por isso, in<strong>da</strong>ga: "De que maneira viver e pensar nos<br />

Andes é distinto de pensar e viver em Manhattan? Como articular o lugar de<br />

onde se é (falo de processos educativos, não de processos biológicos e<br />

administrativos) e o lugar onde se está na produção cultural?" Enfim conclui<br />

que "pensar a produção, a literatura, o discurso (colonial ou nacional) nesses<br />

termos, nos convi<strong>da</strong> a repensar fun<strong>da</strong>mentalmente as categorias com que<br />

temos estado trabalhando, nos últimos 30 anos, nos estudos literários."<br />

Ana Lúcia Gazolla. em dois estudos intitulados respectivamente "Perspectivas<br />

em estudos comparativistas de literatura brasileira e americana" e<br />

"Decentering Narcissus: Comparing Literature In (and From) the Third<br />

World" observa que "no trabalho de crítica literária e em nossos cursos na<br />

Universi<strong>da</strong>de, o caminho parece ser o estudo comparativo <strong>da</strong>s várias literaturas<br />

e <strong>da</strong> brasileira, quando se afirmarão simultaneamente - por contraste -<br />

características peculiares a ca<strong>da</strong> uma, mitos nacionais, diferenças e semelhanças",<br />

para concluir que se deva "buscar no confronto <strong>da</strong>s estratégias e dos<br />

sentidos por elas projetados, via comparação e contraste dos textos, nosso<br />

entre-lugar (Ana Lúcia adota a expressão usa<strong>da</strong> por Silviano Santiago em<br />

artigo conhecido) cultural, nossa marca, nossa cicatriz". 2<br />

Os estudos de recepção literária, como o de Munira Mutran sobre Joyce<br />

no Brasil ou os que se ocuparam de autores como Whitman ou Baudelaire em<br />

nosso país, são exemplares nesse caso, bem como aqueles que tomam o<br />

caminho inverso, quer dizer, centram suas análises na obra de autor nacional<br />

examinando como nele repercutem os influxos estrangeiros. Estou a pensar<br />

nos trabalhos reunidos por Leyla Perrone-Moisés no número 1 <strong>da</strong> Coleção<br />

Documentos <strong>da</strong> série Estudos Brasil-França sobre as "Relações culturais<br />

2 GAZOLLA, Ana Lúcia. In:<br />

Quarta Semana de Estudos<br />

Germânicos. Anais. Belo Horizonte:<br />

Imprensa <strong>da</strong> UFMG,<br />

I 986,p.25.


Literatura compara<strong>da</strong> e literaturas estrangeiras no Brasil 59<br />

França-Brasil: influências e convergências" (novembro de 1991). Trata-se de<br />

"Osman Lins, marinheiro de primeira viagem", de Sandra Nitrini, de "Bilac<br />

em Paris", de Antonio Dimas, "Vere<strong>da</strong>s do indianismo: a contribuição de<br />

Denis", de Maria Cecília de Moraes Pinto, e de "Leituras Francesas de<br />

Manuel Bandeira", de Davi Arrigucci Jr., por exemplo. De certo modo, esses<br />

estudos mais recentes substituem os tradicionais estudos de influências (vindo<br />

mesmo a inclui-los) e aqueles que se ocupam com a fortuna crítica de uma<br />

obra. Como se sabe, com a ênfase teórico-crítica desvia<strong>da</strong> do autor e do texto<br />

em si mesmo para o leitor, os estudos de recepção/transmissão ganharam<br />

outra relevância. De um lado, a história literária tende a ser construí<strong>da</strong>, nO<br />

futuro, pelos significados e/ou interpretações <strong>da</strong><strong>da</strong>s aos textos por diferentes<br />

leitores e públicos, tanto sincrônica como diacrônicamente, nOS termos <strong>da</strong>s<br />

condições que produziram as modificações de significados. De outro, a recepção<br />

literária tende a ser estu<strong>da</strong><strong>da</strong> no contexto <strong>da</strong> recepção simultânea de<br />

outros textos, não literários, verbais como não-verbais, além dos códigos<br />

culturais e sistemas de valores sob os quais os leitores basearam sua recepção<br />

dos textos.<br />

Já H.R. Jauss, em seu ensaio "Estética <strong>da</strong> recepção e comunicação<br />

literária", apresentado no Congresso <strong>da</strong> AILC em Innsbruck, 1979, e publicado<br />

em 1980, apontava para o fato de que a estética <strong>da</strong> recepção - Escola de<br />

Constanza - foi se transformando, a partir de 1966, em uma "teoria <strong>da</strong><br />

comunicação literária". Quer dizer, a noção de recepção passa a ser entendi<strong>da</strong><br />

em duplo sentido: 1. de acolhi<strong>da</strong> (ou de apropriação) e 2. de intercâmbio. A<br />

recepção define-se, então, como ato duplo que inclui o "efeito produzido pela<br />

obra de arte" e "o modo como o público a recebe". Assim, conforme Jauss, a<br />

tarefa de representar a história <strong>da</strong>s literaturas como um processo de comunicação<br />

implica em reconstruir "o repertório ativo" <strong>da</strong> compreensão nas relações<br />

de recepção e de intercâmbio literários. Admitir a possibili<strong>da</strong>de de<br />

constituição de um repertório ativo, por sua vez, implica reconhecer que todo<br />

ato de recepção pressupõe uma escolha, e uma parciali<strong>da</strong>de com relação à<br />

tradição. Uma tradição literária forma<strong>da</strong> necessariamente em um processo<br />

que supõe duas atitudes opostas: a apropriação e a rejeição, isto é, a COnservação<br />

do passado e sua renovação. Em outros termos, uma tradição construí<strong>da</strong><br />

pelos procedimentos de memória e esquecimento.<br />

Esses pressupostos, que correspondem a uma alteração de paradigma nOS<br />

estudos comparatistas, têm certamente consequências metodológicas. A fa­<br />

lência <strong>da</strong> concepção linear nO processo construtivo <strong>da</strong> tradição nega a causali<strong>da</strong>de<br />

stmples de filiações, antes atribui<strong>da</strong>s à fonte e ao modelo. Além disso,<br />

a concepção dialética <strong>da</strong> historiografia literária leva à descoberta de relações<br />

comunicativas ocultas e à constituição de um repertório de tipos e formas de<br />

recepção extremamente diferenciados: a reminiscência, a sugestão, o emprés­<br />

timo, a imitação, a a<strong>da</strong>ptação e a variação. Nessa linha de reflexão, encontra-


60 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

mos as propostas de organização tipológica dessas apropriações elabora<strong>da</strong>s<br />

pelo eslovaco Dioniz Durisin desde 1975, as categorias gerais, ou transcendentes<br />

- tipos de discursos, modos de enunciação, gêneros literários, etc. -<br />

<strong>da</strong>s quais resulta ca<strong>da</strong> texto singular, expostas por Gérard Genette, em Palimpsestes<br />

- La littérature au second degré (1982), ou a análise <strong>da</strong>s apropriações<br />

textuais feita por Antoine Compagnon em La seconde ma in ou le travail<br />

de la citation (1979), ou ain<strong>da</strong> a teoria hermenêutica de Harold Bloom, que<br />

substitui o mito literário dos precursores por um registro de categorias, em<br />

sua perspectiva do "mal entendido criativo", o "creative misreading", de A<br />

Map of Misreading, até a elaboração ensaístico-ficcional de Jorge Luis Borges,<br />

em "Kafka y sus precursores", "Pierre Ménard, autor deI Quixote" e<br />

outros textos borgesianos.<br />

Para a prática comparatista, as repercussões dessas novas concepções são<br />

evidentes: desvalorizam-se as relações de fato (identifica<strong>da</strong>s e comprováveis)<br />

substituindo-as por relações de valor; ocorre a falência dos paralelos, pois<br />

to<strong>da</strong> a comparação necessita de um "tertium comparationis", isto é, de uma<br />

norma teórica que cabe descobrir via reflexão hermenêutica; enfatiza-se<br />

menos a "fonte" e mais o processo de apropriação/transformação a que o<br />

novo texto a submete; neutralizam-se as noções de originali<strong>da</strong>de, de precedência,<br />

de antecipação; equilibram-se, no juízo valorativo, os textos, <strong>da</strong>ndose<br />

maior importância à rede de relações que eles estabelecem entre si e com<br />

os demais, anteriores ou simultâneos.<br />

Atualmente, a literatura compara<strong>da</strong> vale-se dos avanços <strong>da</strong>s várias teo­<br />

rias literárias para repensar critérios e noções considera<strong>da</strong>s básicas a esse tipo<br />

de estudo.'<br />

Recepção e tradução na prática comparatista<br />

Aproximar, por exemplo. as concepções <strong>da</strong> hermenêutica às <strong>da</strong> literatura<br />

compara<strong>da</strong> poderia parecer. à primeira vista, exagerado. Suas gêneses são<br />

efetivamente diferentes. Sabe-se que a Iitératura compara<strong>da</strong> é um dos frutos<br />

do positivismo de Comte e <strong>da</strong> concepção do universo como sendo uma<br />

sequência de fatos positivos. Daí a incidência, no paradigma comparatista<br />

tradicional, do determinismo tainiano, do primado <strong>da</strong>s relações causais, <strong>da</strong><br />

tendência à classificação científica. Por outro lado, a hermenêutica moderna<br />

tem suas origens justamente na reação anti-positivista. Dilthey, tanto quanto<br />

Scheiermacher, concebeu as diferenças entre os métodos <strong>da</strong>s ciências naturais<br />

e os métodos <strong>da</strong> história, contrastou a explicação <strong>da</strong> compreensão e,<br />

sobretudo, considerou essa última como um processo individual e subjetivo.<br />

Mas é justamente no campo dos estudos de recepção literária, freqüentes no<br />

3, Procurei examinar a at1icu­<br />

lação entre as diversas teorias<br />

e as práticas comparatistas em<br />

artigo intitulado "Teorias em<br />

Literatura Compara<strong>da</strong>" e pu­<br />

blicado na Revista Brasileira<br />

de Literatura Compara<strong>da</strong>, n°<br />

2. edita<strong>da</strong> recentemente. Tratei<br />

de apontar, naquele texto, as<br />

diversas tentativas nos anos 80<br />

de formular "teorias em litera­<br />

tura compara<strong>da</strong>" (H.G. Ru­<br />

precht. 1985. Adrian Marino,<br />

1988. E.Miner. 1990) além do<br />

pensamento mais disperso de<br />

uma literatura "planetária", tal<br />

como o formula Etiemble. Ali,<br />

procuro acentuar que as diver­<br />

sas teorias repercutiram tam­<br />

bém diversamente na prática<br />

<strong>da</strong> literatura compara<strong>da</strong> mas<br />

to<strong>da</strong>s contribuiram para o afi­<br />

namento de noções, para a efi­<br />

ciência do instrumental ,malí­<br />

tico e para que a literatura<br />

compara<strong>da</strong> permanentemente


62 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

parte, através do discurso crítico que ele motiva. Ora, esse discurso, confrontado<br />

precisamente ao estrangeiro que se trata de introduzir, de tornar acessível<br />

(mesmo que seja eventualmente para combatê-lo) não se pode servir dos<br />

mesmos meios que aqueles de que dispomos para falar de uma obra homogênea<br />

à tradição cultural do público ao qual ela se dirige. Chevrel usa como<br />

exemplo: "Quando Fontane reage, a propósito de Schiller ou de Storm, ele<br />

procede, parcialmente, a uma investigação de sua própria herança; quando<br />

ele se interessa por Zola, é antes de tudo para compreender como uma outra<br />

literatura é possível" (p. 190). Temos aqui, portanto, enfatiza<strong>da</strong> a perspectiva<br />

menciona<strong>da</strong> antes de que a atitude comparatista pressupõe não só meios mas<br />

objetivos diferentes <strong>da</strong>queles utilizados para o estudo desenvolvido no interior<br />

de uma única literatura.<br />

Ao final do ensaio de y'Chevrel é ain<strong>da</strong> acentua<strong>da</strong> a relação entre estudos<br />

comparativos de recepção e interdisciplinari<strong>da</strong>de, sendo menciona<strong>da</strong>s a sociologia,<br />

a psicologia, as teorias <strong>da</strong> informação e <strong>da</strong> comunicação, além <strong>da</strong><br />

história tout court, como possibili<strong>da</strong>des de encontros metodológicos em<br />

estudos comparatistas de recepção.<br />

Certo é que igualmente os estudos <strong>da</strong> estética <strong>da</strong> recepção incidem em<br />

outras tradicionais orientações dos estudos comparatistas como a imagologia,<br />

pois recepção literária e representação do Outro não podem ser estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

separa<strong>da</strong>mente. Também incide no estudo dos mitos. que permite, como diz<br />

o autor, "aux études de réception, qui n' excluent ni la minutie des recherches,<br />

ni les vastes perspectives, de se situer à leur place <strong>da</strong>ns l' exploration de<br />

l'imagerie des hommes".<br />

É nesse contexto que também os estudos de literatura em tradução - cujo<br />

desenvolvimento tem sido crescente - se incluem na prática comparatista. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, a reflexão sobre a teoria <strong>da</strong> tradução - escassa durante muito tempo<br />

- colaborou decisivamente para essa aproximação. Durante muito tempo<br />

considera<strong>da</strong> a "prima pobre" ou "les belIes infideles", a tradução custou a ser<br />

considera<strong>da</strong> não só uma ativi<strong>da</strong>de possível como também a adquirir importância<br />

na constituição do polissistema literário. A expressão bem conheci<strong>da</strong><br />

de Itamar Even Zohar identifica a literatura como um sistema de sistemas no<br />

conjunto dos quais a literatura em tradução se integra como um fator relevante<br />

de transformações. Assim, várias questões tornam-se possíveis: por que<br />

algumas culturas traduzem mais do que outras? por que se traduz mais em<br />

certos períodos e menos em outros? Que tipo de texto consegue ser mais<br />

traduzido? Qual a relação entre o estímulo à tradução e a produção literária<br />

de uma literatura <strong>da</strong><strong>da</strong>? Parte-se do princípio de que o ato de traduzir realiza<br />

uma ação mobilizadora do polissistema literário que a acolhe, sendo também<br />

um gesto responsável. Como observou Yves Chevrel no item "Littérature en<br />

traduction et systeme d' accueil" de seu pequeno mas utilíssimo La Littérature<br />

Comparée (Paris, PUF, 1989): "traduire, éditer une traduction, n'est pas<br />

que refere-se ao modelo como<br />

antecedente, julgando-o necessário<br />

e natural, e, além disso,<br />

ocupando-se mais com "a<br />

parte do autor na sua obra" ou<br />

com as assimilações nela produzi<strong>da</strong>s<br />

com as repercussões<br />

do antecedente. É nisso, pois,<br />

que autores como ele - que foi<br />

professor de literatura compara<strong>da</strong><br />

- ou como Augusto<br />

Meyer ou Olto Maria Carpeaux,<br />

que também exploraram<br />

os estudos de "fontes" de<br />

forma criativa e atual em muitas<br />

passagens, podem nos fornecer<br />

subsídios para uma perspectiva<br />

de análises desse tipo<br />

que sejam adequa<strong>da</strong>s e próprias<br />

à nossa maneira de olhar<br />

e de ver.<br />

Inclino-me, portanto, a associar<br />

a leitura de nossos críticos,<br />

naquilo que eles nos podem<br />

<strong>da</strong>r em sua prática comparatista<br />

e nas reflexões que<br />

sobre ela fizeram, com os conhecimentos<br />

fornecidos pelo<br />

avanço do pensamento teórico,<br />

dominante a partir dos anos<br />

60.


Literatura compara<strong>da</strong> e literaturas estrangeiras no Brasil 63<br />

seulement envisager une opération d' ordre linguistique, c' est aussi prendre<br />

une décision qui met en jeu un équilibre culturel et social: traduire la Bible a<br />

été, et reste, une opération d'ordre idéologique et politique" (p. 18).<br />

Argui<strong>da</strong> por uns como prática desejável e possível, na qual a noção de<br />

"fideli<strong>da</strong>de" foi por muito tempo defendi<strong>da</strong>, a tradução custou a se libertar<br />

dos estigmas que lhe destinavam um papel secundário na produção literária.<br />

A metáfora feminina de "les beBes infideles" é sintomática de uma posição<br />

subalterna. Lori Chamberlain chamou a atenção para a sexualização <strong>da</strong> terminologia<br />

que envolve a tradução: fideli<strong>da</strong>de é uma noção implícita em<br />

casamentos, contratos que se celebram entre a tradução (como mulher) e o<br />

original (como o marido, o pai ou o autor).(y'''Gender and the Metaphorics<br />

ofTranslation", In: Lawrence Venuti (ed) Rethinking Translation, 1992). Daí<br />

também a expressão "tradutore traditore" que se difundiu amplamente aludindo<br />

à idéia <strong>da</strong> tradução como transformação negativa, traição <strong>da</strong> fideli<strong>da</strong>de<br />

devi<strong>da</strong> ao original.<br />

Atualmente, a tradução, reconheci<strong>da</strong> em seu valor intrínseco e como<br />

elemento de difusão literária e prática legitima<strong>da</strong>, tem sido um elemento<br />

essencial aos estudos comparatistas, como também os estudos de cartografia<br />

e de relatos de viajantes. Contribuem todos para a construção de uma história<br />

cultural que se escreve em diferentes dimensões e modulações, as quais<br />

podem ser contrastivamente compara<strong>da</strong>s e que ocultam, muitas vezes, <strong>da</strong>dos<br />

substantivos sobre uma época. Assim o entende Susah Bassnett que, em seu<br />

recente Comparative literature - A CriticaI Introduction (1993), enfatiza a<br />

importância do estudo <strong>da</strong>s traduções na prática comparatista, querendo mesmo<br />

quase que reduzir essa última a esse procedimento produtivo, ao qual<br />

atribui a designação de "IntercuItural Studies". Para ela, "mapear, viajar e<br />

traduzir não são ativi<strong>da</strong>des transparentes. São ativi<strong>da</strong>des bem defini<strong>da</strong>s e<br />

localiza<strong>da</strong>s, com pontos de origem, de parti<strong>da</strong> e de destinação."<br />

Portanto, não só interessa analisar os textos traduzidos em si mesmos,<br />

como procedimentos literários e manifestações culturais, mas também na<br />

interferência que provocam no polissistema que os acolhe. A tradução de um<br />

texto, observa Yves Chevrel na obra já cita<strong>da</strong>, "est rarement indépen<strong>da</strong>nte du<br />

systeme qui est destiné à I' accueillir." O comparatista ilustra sua afirmação<br />

com os fatos de que Desdêmona não morre no Othelo montado em Hamburgo<br />

em 1776 e que as discussões que Goethe descreve, em Wilhelm Meister<br />

(1795-1796), sobre as maneiras de interpretar Hamlet testemunham que um<br />

texto estrangeiro é suscetível de ser manipulado sem pudor. Para ele, o<br />

tradutor oscila entre duas possibili<strong>da</strong>des: a <strong>da</strong> tradução "adequa<strong>da</strong>" (que<br />

respeit;l ao máximo a natureza estrangeira do texto original e que pode ir até<br />

à transcrição pura e simples) e a tradução "dinâmica", que integra ao máximo<br />

o texto traduzido na tradição do polissistema de chega<strong>da</strong>.


64 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

As considerações de Chevrel encontram perfeita complementação no<br />

ensaio de Antonio Candido sobre os tradutores de Baudelaire ("Os primeiros<br />

baudelairianos") em A Educação pela noite & outros ensaios (1987) no qual<br />

ele identifica "uma certa deformação" nas primeiras traduções brasileiras,<br />

justificando-as ao dizer que elas agem "como as que em to<strong>da</strong> influência<br />

literária tornam o objeto cultural ajustado às necessi<strong>da</strong>des e características do<br />

grupo que o recebe e aproveita" (p. 25).<br />

Assim, a "deformação", que seria um critério negativo de avaliação,<br />

passa a ser entendi<strong>da</strong> como natural e necessária, pois ela "funciona de maneira<br />

construtiva, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as condições locais" (p. 37), segundo ain<strong>da</strong> o autor. E<br />

continua: "a exacerbação de sexuali<strong>da</strong>de que os moços efetuaram a partir do<br />

texto d'As flores do mal foi umafelix culpa."<br />

Isso explica que to<strong>da</strong> tradução seja resultado de uma escolha, opção<br />

consciente diante de uma necessi<strong>da</strong>de do polissistema que se decide, voluntariamente,<br />

nutrir. O sub-sistema <strong>da</strong> literatura em tradução concretiza, por sua<br />

vez, o conjunto dessas necessi<strong>da</strong>des e <strong>da</strong>s escolhas que as exprimem. Estudálas,<br />

pois, no sentido <strong>da</strong> contribuição que prestam ao polissistema, é tarefa do<br />

comparatista. Ele estará contribuindo para o conhecimento <strong>da</strong>s literaturas<br />

postas em confronto e, por isso, deverá ter presente características que as<br />

especificam. Pode-se ilustrar esse fato com uma observação de José Paulo<br />

Paes em ensaio sobre a tradução de Tristram Shandy. o famoso romance de<br />

Laurence Sterne de forte repercussão em Memórias Póstllmas de Brás Cubas,<br />

de Machado de Assis, como se sabe. Ao tratar dos pronomes de tratamento e<br />

suas implicações na tradução que elabora. Paes contrasta o texto de Sterne<br />

com outros de mesma época (1728) e observa. em "Sob o Signo de Ju<strong>da</strong>s ou<br />

Digressões de um Tradutor de Sterne", que. "na questão <strong>da</strong> comparativi<strong>da</strong>de<br />

de textos contemporâneos de diferentes línguas, há um outro ponto a ser<br />

considerado numa estratégia de tradução, qual seja o desigual ritmo de<br />

desenvolvimento <strong>da</strong>s várias literaturas nacionais. O romance inglês do século<br />

XVIII, pelo vigor do seu realismo, pela agili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua linguagem narrativa<br />

e pelo amplo público ledor que conseguiu aliciar para as suas produções,<br />

estava indubitavelmente na vanguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> literatura européia. Perto dele, a<br />

apouca<strong>da</strong> ficção portuguesa <strong>da</strong> mesma época, mofina e retar<strong>da</strong>tária, fazia<br />

triste figura, já que a prosa de ficção propriamente dita, como estilização do<br />

sermo vulgaris, só iria começar a surgir em língua portuguesa no século<br />

seguinte. Portanto, apesar de publicado quase à mesma altura d'As Aventuras<br />

de Diófanes e do Peregrino <strong>da</strong> América, o Tristram Shandy tinha no mínimo<br />

dois séculos de avanço sobre eles, para nos limitarmos ao ritmo de desenvolvimento<br />

histórico <strong>da</strong> prosa de ficção, sem cogitar, por absurdos, de quaisquer<br />

juízos de valor". (In: Tradução & Comunicação, n° 4 19-30, julho, 1984).<br />

Como se percebe, o movimento é dialético: do texto traduzido ao texto<br />

original permeia urna série de questões que o conhecimento literário escJare-


Literatura compara<strong>da</strong> e literaturas estrangeiras no Brasil 65<br />

ce. Pelo que permite de lisibili<strong>da</strong>de mesmo na operação que a origina, a<br />

tradução é fator não apenas de difusão de textos em processos interliterários<br />

mas é também um elemento iluminador dos procedimentos criativos e receptivos.<br />

Vale lembrar que os estudos comparativos binários caracterizavam-se<br />

por excluir as traduções, preconizando sempre a leitura no original. Reintegrá-las<br />

significa admitir um outro fator na comparação ou o seu desdobramento<br />

não exclusivamente atento a apenas dois polos <strong>da</strong> in<strong>da</strong>gação mas a<br />

outros mais como as alterações textuais, introduzi<strong>da</strong>s na tradução como<br />

leituras possíveis <strong>da</strong>queles textos.<br />

Como se percebe, dilatam-se os campos de atuação do comparatista e,<br />

nessa ampliação. pelo menos nas formas que aqui foram enfatiza<strong>da</strong>s, a contribuição<br />

do especialista em literaturas estrangeiras se torna substantiva.<br />

Tendo em vista essas duas dimensões - a formação de uma dupla competência<br />

(pelo menos dos que seguem uma licenciatura dupla) e a necessi<strong>da</strong>de<br />

inerente de falar de um determinado lugar, de um "horizonte" próprio e<br />

específico - esse especialista é um comparatista por excelência. Porque, na<br />

ver<strong>da</strong>de, ser comparatista não é atitude que se assuma no começo mas no fim<br />

de um percurso de formação: não nascemos comparatistas mas nos tornamos<br />

comparatistas, aproveitando nesse campo de estudo as experiências múltiplas<br />

adquiri<strong>da</strong>s no trato com mais de uma literatura e a inclinação manifesta para<br />

trabalhos que exijam largas perspectivas e análises transnacionais. É nesses<br />

trabalhos que iremos formular novas categorias críticas que nos permitam<br />

caracterizar como nosso o comparatismo que praticamos.


Literatura compara<strong>da</strong>,<br />

literaturas nacionais e o<br />

questionamento do<br />

"'"<br />

canone<br />

Eduardo F. Coutinho<br />

Qualquer revisão crítica <strong>da</strong> Literatura Compara<strong>da</strong> em seu desenvolvimento<br />

histórico leva de imediato à percepção de que a disciplina sofreu, de meados<br />

dos anos 70 para o presente, considerável transformação, que poderíamos<br />

sintetizar, sem riscos de reducionismo, na passagem de um discurso coeso e<br />

unânime, com forte propensão universalizante, para outro plural e descentrado,<br />

situado historicamente, e consciente <strong>da</strong>s diferenças que identificam ca<strong>da</strong><br />

corpus literário envolvido no processo <strong>da</strong> comparação. Embora essa transformação<br />

se tenha originado dentro do grande eixo dos estudos comparatistas,<br />

formado pela Europa Ocidental e a América do Norte, e se deva em boa parte<br />

à voga <strong>da</strong> Teoria Literária nesse período, máxime pela importância que<br />

adquiriram correntes do pensamento como o Desconstrutivismo, a Nova<br />

História e os chamados Estudos Culturais e Pós-Coloniais, ela teve como<br />

corolário o deslocamento do foco de atuação <strong>da</strong> disciplina para pólos até<br />

então tidos como marginais nesta seara, como a China e a Índia - na Ásia -,<br />

a África e a América Latina. É esta transformação verifica<strong>da</strong> no seio do<br />

comparatismo tradicional e as implicações <strong>da</strong>í decorrentes, sobretudo no que<br />

diz respeito ao contexto latino-americano, que serão investiga<strong>da</strong>s neste trabalho.<br />

Marca<strong>da</strong> no início por uma perspectiva de teor historicista, calca<strong>da</strong> em<br />

princípios científico-causalistas, decorrentes do momento e contexto históri-


68 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

co em que se configurara, e em segui<strong>da</strong> por uma óptica predominantemente<br />

formalista, que conviveu, entretanto, com vozes dissonantes de significativa<br />

relevância, a Literatura Compara<strong>da</strong> atravessou seu primeiro século de existência<br />

em meio a intensos debates, mas apoia<strong>da</strong> em certos pilares, de tintas<br />

niti<strong>da</strong>mente etnocêntricas, que pouco se moveram ao largo de todo esse<br />

tempo. Dentre estes pilares, que permaneceram quase inabalados até os anos<br />

70, é impossível deixar de reconhecer a pretensão de universali<strong>da</strong>de, com que<br />

se confundiu o cosmopolitismo dos estudos comparatistas, presente já desde<br />

suas primeiras manifestações, e o discurso de apolitização apregoado sobretudo<br />

pelos remanescentes <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> "Escola Americana", que dominou a<br />

área nos meados do século XX. O primeiro expressa-se pelo anseio de que, a<br />

despeito <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de e multiplici<strong>da</strong>de do fenômeno literário, é possível<br />

constituir-se um discurso unificado sobre ele e de que a Literatura é uma<br />

espécie de força enobrecedora <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, que transcende qualquer barreira;<br />

o segundo condensa-se em afirmações como a de que a Literatura<br />

Compara<strong>da</strong> é o estudo <strong>da</strong> Literatura, independentemente de fronteiras lingüísticas,<br />

étnicas ou políticas, e que não deve portanto deixar-se afetar por<br />

circunstâncias de ordem, entre outras, econômica, social ou política.<br />

Conquanto estes dois tipos de discurso apresentem, na superfície, variações,<br />

eles encerram, no íntimo, um forte denominador comum - o teor<br />

hegemônico de sua construção - e foi sobre este <strong>da</strong>do fun<strong>da</strong>mental que se<br />

baseou grande parte <strong>da</strong> crítica empreendi<strong>da</strong> a partir de então ao comparatismo<br />

tradicional. Em nome de uma pseudo-democracia <strong>da</strong>s letras, que pretendia<br />

construir uma História Geral <strong>da</strong> Literatura ou uma poética universal, desenvolvendo<br />

um instrumental comum para a abor<strong>da</strong>gem do fenônemo literário,<br />

independente de circunstâncias específicas, os comparatistas, provenientes<br />

na maioria do contexto euro-norte-americano, o que fizeram. conscientemente<br />

ou não, foi estender a outras literaturas os parâmetros instituídos a partir<br />

de reflexões desenvolvi<strong>da</strong>s sobre o cânone literário europeu Ce por europeu<br />

enten<strong>da</strong>-se o cânone constituído basicamente por obras literárias <strong>da</strong>s potências<br />

econômicas do oeste do continente). O resultado inevitável foi a supervalorização<br />

de um sistema determinado e a identificação deste sistema - o<br />

europeu - com o universal. Do mesmo modo, a idéia de que a literatura<br />

deveria ser abor<strong>da</strong><strong>da</strong> por um viés apolítico - fato hoje sabi<strong>da</strong>mente impossível<br />

- o que fazia era camuflar uma atitude prepotente de reafirmação <strong>da</strong><br />

supremacia de um sistema sobre os demais.<br />

O questionamento dessa postura universalizante e a desmitificação <strong>da</strong><br />

proposta de apolitização, que se tornaram uma tônica na Literatura Compara<strong>da</strong><br />

a partir dos anos 70, atuaram de modo diferente nos centros hegemônicos<br />

e nos focos de estudos comparatistas que poderíamos chamar de periféricos,<br />

mas em ambos estes contextos verificou-se um fenômeno similiar: a<br />

aproximação ca<strong>da</strong> vez maior do comparatismo a questões de identi<strong>da</strong>de


Literatura compara<strong>da</strong>, literaturas nacionais e o questionamento do cânone 69<br />

nacional e cultural. No eixo Europa Ocidental/América do Norte, o cerne <strong>da</strong>s<br />

preocupações deslocou-se para grupos minoritários, de caráter étnico ou<br />

sexual, cujas vozes começaram a erguer-se ca<strong>da</strong> vez com mais vigor, buscando<br />

foros de debate para formas alternativas de expressão, e nas outras partes<br />

do mundo clamava-se um desvio de olhar, com o qual se pudessem enfocar<br />

as questões literárias ali surgi<strong>da</strong>s a partir do próprio [oeus onde se situava o<br />

pesquisador. A preocupação com a Historiografia, a Teoria e a Crítica literárias<br />

continuou relevante nos dois contextos mencionados, mas passou-se a<br />

associar diretamente à praxis política cotidiana. As discussões teóricas volta<strong>da</strong>s<br />

para a busca de universais deixaram de ter sentido e seu lugar foi ocupado<br />

por questões localiza<strong>da</strong>s. que passaram a dominar a agen<strong>da</strong> <strong>da</strong> disciplina:<br />

problemas como o <strong>da</strong>s relações entre uma tradição local e outra importa<strong>da</strong>,<br />

<strong>da</strong>s implicações políticas <strong>da</strong> influência cultural, <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de revisão do<br />

cânone literário e dos critérios de periodização.<br />

Este descentramento ocorrido no âmbito dos estudos comparatistas, agora<br />

muito mais voltados para questões contextualiza<strong>da</strong>s, ampliou em muito o<br />

cunho internacional e interdisciplinar <strong>da</strong> Literatura Compara<strong>da</strong>, que passou a<br />

abranger uma rede complexa de relações culturais. A obra ou a série literárias<br />

não podiam mais ser abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s por uma óptica exclusivamente estética;<br />

como produtos culturais. era preciso que se levassem em conta suas relações<br />

com as demais áreas do saber. Além disso, elementos que até então funcionaram<br />

como referenciais seguros nos estudos comparatistas, como os conceitos<br />

de nação e língua, foram postos por terra, e a dicotomia tradicionalmente<br />

estabeleci<strong>da</strong> entre Literaturas Nacionais e Compara<strong>da</strong> foi seriamente abala­<br />

<strong>da</strong>. A perspectiva linear do historicismo cedeu lugar a uma visão múltipla e<br />

móvel, capaz de <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong>s diferenças específicas, <strong>da</strong>s formas disjuntivas<br />

de representação que significam um povo, uma nação, uma cultura, e os<br />

conjuntos ou séries literárias passaram a ter de ser vistos por uma óptica<br />

plural, que considerasse tais aspectos. Categorias como Literatura Chicana,<br />

Literatura Afro-Americana ou Literatura Feminina passaram a integrar a<br />

ordem do dia dos estudos comparatistas e blocos, como Literatura Oriental,<br />

Africana ou Latino-Americana, instituídos pelos centros hegemônicos, revelaram-se<br />

como constructos frágeis, adquirindo uma feição nova, oscilante em<br />

conformi<strong>da</strong>de com o olhar que o enformasse.<br />

O desvio de olhar operado no seio do comparatismo, como resultado <strong>da</strong><br />

consciência do teor etnocêntrico que o dominara em fases anteriores, empres­<br />

tou novo alento à disciplina, que atingiu enorme efervescência justamente<br />

naqueles locais até então situados à margem e agora tornados postos fun<strong>da</strong>mentais<br />

no debate internacional. Nesses locais, onde não há nenhum senso de<br />

incompatibili<strong>da</strong>de entre Literaturas Nacionais e Literatura Compara<strong>da</strong>, o<br />

modelo eurocêntrico até então tido como referência, vem sendo ca<strong>da</strong> vez<br />

mais posto em xeque, e os paradigmas tradicionais cedem lugar a construções


70 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

alternativas ricas e flexíveis, cuja principal preocupação reside na articulação<br />

<strong>da</strong> percepção dos produtos culturais locais em relação com os produtos de<br />

outras culturas, máxime <strong>da</strong>quelas com que a primeira havia mantido vínculos<br />

de subordinação. O desafio levantado por críticos como Edward Said e Homi<br />

Bhabha ao processo sistemático instituído pelas nações colonizadoras de<br />

"inventar" outras culturas alcança grande repercussão, ocasionando, em lo­<br />

cais como a Índia, a África e a América Latina, reivindicações de constituição<br />

de uma História Literária calca<strong>da</strong> na tradição local, cujo resgate se tornara<br />

indispensável. O elemento político do comparatismo é agora não só assumido<br />

conscientemente, como inclusive enfatizado, e surge uma necessi<strong>da</strong>de imperativa<br />

de revisão dos cânones literários.<br />

Central dentro do quadro atual <strong>da</strong> Literatura Compara<strong>da</strong>, a "questão do<br />

cânone", como tem sido designa<strong>da</strong>, constitui uma <strong>da</strong>s instâncias mais vitais<br />

<strong>da</strong> luta contra o eurocentrismo que vem sendo trava<strong>da</strong> nos meios acadêmicos,<br />

pois discutir o cânone na<strong>da</strong> mais é do que pôr em xeque um sistema de valores<br />

instituído por grupos detentores de poder, que legitimaram decisões particu­<br />

lares com um discurso globalizante. Um curso sobre as "grandes obras", por<br />

exemplo, tão freqüente em Literatura Compara<strong>da</strong>, quase sempre esteve cir­<br />

cunscrito ao cânone <strong>da</strong> tradição ocidental (na reali<strong>da</strong>de, à tradição de alguns<br />

poucos países poderosos do oeste europeu, que mantinham uma política<br />

cultural de cunho hegemônico), e sempre se baseou em premissas que ou<br />

ignoravam por completo to<strong>da</strong> produção exterior a um círculo geográfico<br />

restrito ou tocava tangencialmente nessa produção, incluindo, como uma<br />

espécie de concessão uma ou outra de suas manifestações. As reações a esta<br />

postura têm surgido de forma varia<strong>da</strong>, e com matizes diferenciados dependendo<br />

do local de onde partem. Nos países centrais, é obviamente mais uma<br />

vez <strong>da</strong> parte dos chamados "grupos minoritários·' que provêm as principais<br />

in<strong>da</strong>gações, e, nos contextos periféricos, a questão se tornou uma constante,<br />

situando-se em alguns casos na linha de frente do processo de descolonização<br />

cultural.<br />

Ampla, complexa e varia<strong>da</strong>, a questão do cânone literário extrapola<br />

nossos objetivos neste trabalho, não podendo ser aprecia<strong>da</strong> com o cui<strong>da</strong>do<br />

que requer, mas mencione-se que ela se estende desde a exclusão de uma<br />

produção literária vigorosa oriun<strong>da</strong> de grupos minoritários, nos centros hegemônicos,<br />

e do abafamento de uma tradição literária significativa, nos países<br />

que passaram por processos de colonização recente, como a Índia, até problemas<br />

relativos à especifici<strong>da</strong>de ou não do elemento literário, dos padrões de<br />

avaliação estética e do delineamento de fronteiras entre constructos como<br />

Literaturas Nacionais e Literatura Compara<strong>da</strong>. Com a desconstrução dos<br />

pilares em que se apoiavam os estudos literários tradicionais e a indefinição<br />

instaura<strong>da</strong> entre os limites que funcionavam como referenciais, o cânone ou<br />

cânones tradicionais não têm mais base de sustentação, afetando to<strong>da</strong> a


Literatura compara<strong>da</strong>, literaturas nacionais e o questionamento do cânone 71<br />

estrutura <strong>da</strong> Historiografia, <strong>da</strong> Teoria e <strong>da</strong> Crítica literárias. Como construirem-se<br />

cânones, seja na esfera nacional, seja na internacional, que contemplem<br />

as diferenças clama<strong>da</strong>s por ca<strong>da</strong> grupo ou nação (entendendo-se este<br />

termo no sentido amplo utilizado por autores como Homi Bhabha), e como<br />

atribuir a estas novas construções um caráter suficientemente flexível que<br />

lhes permita contantes reformulações, são perguntas que se levantam hoje a<br />

respeito de terreno tão movediço. E é possível, se in<strong>da</strong>garia também, instituirem-se<br />

cânones com margens de flexibili<strong>da</strong>de, que não viessem a cristalizarse,<br />

tornando-se novas imposições? Seriam estes ain<strong>da</strong> cânones?<br />

Perguntas como estas encontram-se quase sempre sem resposta na agen<strong>da</strong><br />

do comparatismo, sobretudo após o desenvolvimento dos chamados Estudos<br />

Pós-Coloniais e Culturais, que atacaram, com força jamais vista, o etnocentrismo<br />

<strong>da</strong> disciplina. A crítica a este elemento, expresso por meio de um<br />

discurso pretensamente liberal, mas que no fundo escondia seu teor autoritário<br />

e totalizante. já se havia iniciado desde os tempos de Wellek e Etiemble,<br />

e se lançarmos uma mira<strong>da</strong> ao espectro de atuação <strong>da</strong> Literatura Compara<strong>da</strong>,<br />

veremos que ela sempre aflorou de maneira varia<strong>da</strong> ao longo de sua evolução.<br />

Contudo. na maioria dos casos. essa crítica se manifestou à base de uma<br />

oposição binária. que continuava paradoxalmente tomando como referência<br />

o elemento europeu. Conscientes de que não se trata mais de uma simples<br />

inversão de modelos, <strong>da</strong> substituição do que era tido como central pela sua<br />

antítese periférica, os comparatistas atuais que questionam a hegemonia <strong>da</strong>s<br />

culturas colonizadoras abandonam o paradigma dicotômico e se lançam na<br />

exploração <strong>da</strong> plurali<strong>da</strong>de de caminhos abertos como resultado do contacto<br />

entre colonizador e colonizado. A conseqüência é que ele se vê diante de um<br />

labirinto, hermético, mas profícuo, gerado pela desierarquização dos elementos<br />

envolvidos no processo <strong>da</strong> comparação, e sua tarefa maior passa a residir<br />

precisamente nessa construção em aberto, nessa viagem de descoberta sem<br />

marcos definidos.<br />

Marcados profun<strong>da</strong>mente por um processo de colonização, que continua<br />

vivo ain<strong>da</strong> hoje do ponto de vista cultural e econômico, os estudos literários<br />

na América Latina sempre foram mol<strong>da</strong>dos à maneira européia, e basta uma<br />

breve mira<strong>da</strong> a questões como as que vêm sendo considera<strong>da</strong>s aqui de Historiografia,<br />

Teoria e Crítica literárias para que tal se torne evidente. No caso <strong>da</strong><br />

primeira, é suficiente lembrar a periodização literária, que sempre tomou<br />

como referência os movimentos europeus, e mais recentemente também<br />

norte-americanos, e encarou os latino-americanos como meras extensões ou<br />

a<strong>da</strong>ptações dos primeiros. No caso <strong>da</strong> Teoria, cite-se a prática dominante de<br />

importação de correntes emana<strong>da</strong>s do meio intelectual europeu, que adquiriam<br />

caráter dogmático e eram aplica<strong>da</strong>s de modo indiscriminado à reali<strong>da</strong>de<br />

literária do continente, sem levar-se em conta em momento algum as diferenças<br />

de ordem histórica e cultural que distinguiam os dois contextos. E,


72 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

finalmente, no âmbito <strong>da</strong> Crítica, mencionem-se os parâmetros de avaliação,<br />

que sempre se constituíram à base <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s "grandes obras" <strong>da</strong> tradição<br />

ocidental (leia-se "européia"), e miraram as nossas como manifestações me­<br />

nores, cópias imperfeitas dos modelos instituídos. O cânone ou cânones<br />

literários dos diversos países latino-americanos eram constituídos por crité­<br />

rios estipulados pelos setores dominantes <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, que reproduziam o<br />

olhar europeu, primeiramente ibérico, à época <strong>da</strong> colônia, e posteriormente,<br />

após a independência política, de outros países, mormente a França.<br />

Embora, como contraparti<strong>da</strong> à sua própria condição colonial, a América<br />

Latina já tivesse desenvolvido, ao longo de todo esse tempo, uma forte<br />

tradição de busca de identi<strong>da</strong>de, tanto na própria literatura quanto na ensaística,<br />

o comparatismo que se produzia no continente continuava, de maneira<br />

geral, preso quer ao modelo francês de fontes e influências, quer à perspectiva<br />

formalista norte-americana, que lhe imprimia esterili<strong>da</strong>de e ratificava sua<br />

situação de dependência. Com as mu<strong>da</strong>nças, entretanto, efetua<strong>da</strong>s dos anos<br />

70 para o presente, ele parece ter renascido <strong>da</strong>s cinzas, e é hoje um dos focos<br />

de maior efervescência nos estudos latino-americanos. Associando-se à preocupação<br />

com a busca de identi<strong>da</strong>de, agora já não mais vista por uma óptica<br />

ontológica, mas sim como uma construção passível de questionamento e<br />

renovação, a Literatura Compara<strong>da</strong> na América Latina parece ter assumido<br />

com firmeza a necessi<strong>da</strong>de de enfocar a produção literária a partir de uma<br />

perspectiva própria, calca<strong>da</strong> na reali<strong>da</strong>de do continente, e vem buscando um<br />

diálogo ver<strong>da</strong>deiro no plano internacional. Assim, questões como a do cânone<br />

e <strong>da</strong> história literária adquirem uma nova feição e os modelos teórico-críticos<br />

relativizam-se, cedendo lugar a uma reflexão mais eficaz.<br />

A reestruturação do cânone ou cânones <strong>da</strong>s diversas literaturas latinoamericanas<br />

vem ocupando a cena com grande intensi<strong>da</strong>de no meio acadêmico<br />

latino-americano, onde se clama ca<strong>da</strong> vez mais a necessi<strong>da</strong>de de inclusão de<br />

uma quanti<strong>da</strong>de de registros até então marginalizados pelo discurso oficial: o<br />

<strong>da</strong>s línguas indígenas ain<strong>da</strong> vivas, como o quíchua e o guarani, o <strong>da</strong> produção<br />

em créole do Caribe francês, o chamado popular, presente. por exemplo. no<br />

corrido mexicano ou no cordel brasileiro, e a tradição oral ou compila<strong>da</strong>.<br />

como a <strong>da</strong>s len<strong>da</strong>s indígenas dos maias. Além disso, vem sendo argumentado<br />

que não podem ficar à margem produções como a <strong>da</strong>s minorias hispânicas<br />

radica<strong>da</strong>s nos Estados Unidos, como os chicanos e os portorriquenhos e<br />

cubanos, ou os franceses do Québec, nem muito menos as vozes <strong>da</strong>s "minorias<br />

de poder" dentro do próprio continente, como as dos grupos feministas,<br />

que têm desempenhado papel de relevo no processo de releitura crítica <strong>da</strong><br />

cultura latino-americana. Do mesmo modo, a necessi<strong>da</strong>de de constituição de<br />

uma nova historiografia literária, isenta <strong>da</strong>s distorções tradicionais, em que a<br />

noção de "grande literatura" ou até mesmo de "literatura" tout court, seja<br />

problematiza<strong>da</strong>, se faz ca<strong>da</strong> vez mais premente, bem como a urgência de se


Literatura compara<strong>da</strong>, literaturas nacionais e o questionamento do cânone 73<br />

desenvolver uma reflexão teórica, que tome como ponto de parti<strong>da</strong> ou de<br />

referência o corpus literário do continente.<br />

To<strong>da</strong>s estas questões, que abor<strong>da</strong>m as diferenças latino-americanas, revelam<br />

a ineficácia <strong>da</strong> transferência de paradigmas de uma cultura para outra.<br />

A própria idéia de "literatura nacional", concebi<strong>da</strong> no meio acadêmico europeu<br />

com base em noções de uni<strong>da</strong>de e homogenei<strong>da</strong>de, não pode ser aplica<strong>da</strong>,<br />

de maneira desproblematiza<strong>da</strong>, à reali<strong>da</strong>de híbri<strong>da</strong> do continente latino-americano,<br />

onde, por exemplo, nações indígenas. como a Aymara, vivem dividi<strong>da</strong>s<br />

por fronteiras políticas instituí<strong>da</strong>s arbitrariamente. Qualquer concepção<br />

monolítica <strong>da</strong> cultura latino-americana vem sendo hoje posta em xeque e<br />

muitas vezes substituí<strong>da</strong> por propostas alternativas que busquem <strong>da</strong>r conta de<br />

seu caráter híbrido. Estas propostas, diversifica<strong>da</strong>s e sujeitas a constante<br />

escrutínio crítico, indicam a plurali<strong>da</strong>de de rumos que o comparatismo vem<br />

tomando no continente, em consonância perfeita com as tendências gerais <strong>da</strong><br />

disciplina, observáveis sobretudo nos demais contextos tidos até recentemente<br />

como periféricos. A Literatura Compara<strong>da</strong> é hoje, máxime nesses locais,<br />

uma seara ampla e movediça, com inúmeras possibili<strong>da</strong>des de exploração,<br />

que ultrapassou o anseio totalizador de suas fases anteriores, e se erige como<br />

um diálogo transcultural, calcado na aceitação <strong>da</strong>s diferenças.


A primeira versão deste texto<br />

foi apresenta<strong>da</strong> em agosto de<br />

1994 no XIV Congresso <strong>da</strong><br />

Associação Internacional de<br />

Literatura Compara<strong>da</strong> (Edmonton,<br />

Canadá), como palie<br />

do projeto do grupo de pesquisa<br />

interdisciplinar sobre "Re­<br />

cylcages culterels". Ao coordenador<br />

desse GP, Walter Moser<br />

(Univ. Montréal), agradeço<br />

as sugestões de sua leitura crí­<br />

tica.<br />

o romance<br />

latino-americano do<br />

pós-boom se apropria<br />

dos gêneros <strong>da</strong> cultura<br />

de massas<br />

Irlemar Chiampi<br />

Para Antonio Dimas<br />

Quem diria, os gêneros espúrios invadiram a seara <strong>da</strong> alta literatura. Tudo<br />

começou com Manuel Puig, com a publicaçao de Boquitas pinta<strong>da</strong>s (1969),<br />

título tirado <strong>da</strong> letra de um fox-trot cantado por Carlos Gardel para uma<br />

narração povoa<strong>da</strong> de lances melodramáticos e ofereci<strong>da</strong> em "entregas" ao<br />

leitor, como um folhetim, ca<strong>da</strong> uma delas epigrafa<strong>da</strong> com versos de tango.<br />

Puig havia criado não só um epitáfio para o grande romance do boom, mas<br />

uma koiné estética mediante a promiscui<strong>da</strong>de do nobre trabalho experimental<br />

com a breguice do discurso emotivo veiculado pela música popular.<br />

Desde então, a ficção latino-americana vem desenvolvendo uma bem<br />

sustenta<strong>da</strong> apropriação dos gêneros que os meios massivos consagram, o<br />

povo consome e a elite abomina: foto e radionovela, zarzuela, romance<br />

sentimental ou "cor-de-rosa", histórias de detetive, musicais, cinema B, filmes<br />

policiais; e o repertório inesgotável <strong>da</strong> música popular, em cujos sub-gêneros<br />

o Caribe é campeão: guaracha, bolero, <strong>da</strong>nzón, rumba, cumbia, salsa ...<br />

Mais reconhecíveis pelos termos despectivos de "música brega", "filmeco",<br />

"subliteratura", "bolerão", "dramalhão", esses gêneros massivos aparecem<br />

reutilizados ou reciclados en La tía lulia y el escribidor (1977), do peruano<br />

Mario Vargas Llosa; El beso de la mujer arana (1976), Pubis angelical<br />

(1979) entre outros romances do argentino Manuel Puig; Sólo cenizas halla-


76 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

rás (1980) do dominicano Pedro Vergés; Bolero (1983), do cubano Lisandro<br />

Otero; La guaracha deI Macho Camacho (1976) e La importancia de llamarse<br />

Daniel Santos (1989), do porto-riquenho Luis Rafael Sánchez; Celia Cruz,<br />

reina rumba (1981) do colombiano Umberto Valverde.<br />

O lixo cultural, cuja presença a cultura hegemônica foi tolerando na<br />

época moderna desde que se mantivesse em territórios bem definidos - onde<br />

o contágio não ameaçasse a pureza <strong>da</strong>s expressoes culturais genuinas e<br />

nobres, as do Folclore e <strong>da</strong> Arte, o popular e o erudito -. parece experimentar<br />

dias de glória que transcendem sua condição de resíduo. Reciclado por<br />

narradores pertencentes ao cânone literário. seu reaproveitamento e refuncionalização<br />

em obras prestigia<strong>da</strong>s lhe outorga um novo status dentro <strong>da</strong> cultura<br />

pós-moderna <strong>da</strong> América Latina. Os tópicos dos gêneros massivos não são<br />

utilizados como meros temas, ou vistos com distância ou visão de fora, mas<br />

como referências culturais enraiza<strong>da</strong>s na mentali<strong>da</strong>de dos personagens; a<br />

estrutura melodramática dos relatos sentimentais é recupera<strong>da</strong> em complexas<br />

situações de registro experimental; os tics obsessivos do gosto massivo pontuam<br />

os diálogos, os sonhos e o fluxo de consciência dos personagens; os<br />

clichês, a cafonice, os convencionalismos discursivos de baixa extração são<br />

"naturalizados" no discurso <strong>da</strong> narração que remete a uma voz autorial <strong>da</strong> alta<br />

cultura.<br />

Tudo leva a crer que a reciclagem desses sub-produtos, surgidos com o<br />

impacto <strong>da</strong> modernização no continente, significa muito mais do que alguma<br />

nostalgia parasitária ou modismo retrô. Os romancistas latino-americanos<br />

dos anos 70-90, ao fazerem uma leitura seletiva e interessa<strong>da</strong> desses discursos<br />

que acompanharam o desenvolvimento urbano e as grandes mu<strong>da</strong>nças socioeconômicas<br />

<strong>da</strong> América Latina, descobrem que por trás <strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>de de<br />

uma trama melodramática, do machismo de um tango ou <strong>da</strong> ingenui<strong>da</strong>de de<br />

uma letra de bolero, há mensagens subliminares que atestam as crises e os<br />

conflitos sociais <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de no momento mesmo do seu surgimento.<br />

Mas essa explicação insinua apenas o contorno socio-histórico mais<br />

geral <strong>da</strong> reciclagem do repertório melodramático. Para <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> trama de<br />

relações interculturais que permeiam a tendência a reciclar os gêneros massivos<br />

no romance latino-americano atual, é preciso reconhecer pelo menos<br />

quatro aspectos que asseguram o seu perfil de produto pós-moderno:<br />

1. Trata-se de um fenômeno característico do postboom, isto é, ocorre na<br />

ficção do continente depois <strong>da</strong> experiência moderna de renovação e ruptura<br />

dos anos 50 e 60 que teve no realismo maravilhoso o foco privilegiado de sua<br />

invenção poética. Compenetrado pelo ideologema <strong>da</strong> mestiçagem, isto é, a<br />

compreensão de que a não disjunção dos elementos contraditórios é o que<br />

caracteriza a cultura latino-americana, o realismo maravilhoso (de um Carpentier,<br />

um Asturias, um Rulfo) desenvolveu, numa linguagem de alta expe-


1 CHIAMPI, Irlemar. El realismo<br />

maravilloso. Forma e<br />

ideo[of.:ía en la novela hispanoumericana.<br />

Caracas: Monte<br />

Avila, 1983 (I' ed.: 1980).<br />

2 GARCIA CANCLlNI, Néstor.<br />

Culturas híbri<strong>da</strong>s: estrage­<br />

gias para entrar y salir de la<br />

moderni<strong>da</strong>d. México: Grijalbo,<br />

1989.<br />

1. BOURDIEU, Pierre. La Jistinc­<br />

tion. Critique social du jugement.<br />

Paris: Minuit, 1979.<br />

o romance latino-americano do pós-boom .. , 77<br />

rimentação com as formas narrativas, uma interpretação totalizante <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />

latino-americana; I o entendimento dessa identi<strong>da</strong>de consistia em perceber<br />

que a multitemporali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nossa cultura favorecia uma lógica binária<br />

(tradicional vs moderno), na qual a mestiçagem cultural produzia-se pela não<br />

disjunção do moderno/urbano com os mitos de origem e a tradição autóctone.<br />

Não se tratava de uma visão estanque do culto e do popular, como pretende<br />

a mais recente teoria <strong>da</strong> arte ao contrapor a cisão moderna à hibri<strong>da</strong>ção<br />

posmoderna,2 mas de um conceito de hibri<strong>da</strong>ção articulado pela menciona<strong>da</strong><br />

matriz binária (isto é só podiam misturar-se o erudito e o popular autóctone),<br />

numa perspectiva americanista que excluia a cultura de massas. A alta moderni<strong>da</strong>de<br />

do romance realista-maravihoso tentava remeter, pois, à genuini<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> cultura popular. cuja pureza tentava se salvar às pressas ante o impacto <strong>da</strong><br />

modernização acelera<strong>da</strong> já nos anos 50. o fator de originali<strong>da</strong>de e legitimi<strong>da</strong>de<br />

do nosso modo de ser na História.<br />

2. Os narradores do postboom fazem a crítica dessa moderni<strong>da</strong>de literária, já<br />

pelo fato de assumir a cultura de massas como expressão legítima do imaginário<br />

social; colocam-na, na ver<strong>da</strong>de, no lugar antes ocupado pela cultura<br />

popular, posto que nela identificam um capital simbólico} cuja representativi<strong>da</strong>de<br />

socio-cultural se traduz nos discursos e saberes que os grupos subalternos<br />

detêm e nos quais expressam o seu imaginário.<br />

3. O trabalho de apropriação dos gêneros massivos não supõe o abandono <strong>da</strong><br />

expressão erudita ou "alta" e muito menos <strong>da</strong> experimentação formal; não se<br />

trata tampouco de "rebaixar" a sua proposta estética, na tentativa de conquistar<br />

o consumidor desses gêneros para a leitura <strong>da</strong> obra literária. Os romances<br />

do postboom têm a prosa tão elabora<strong>da</strong> quanto a dos seus congêneres modernos<br />

e suas narrativas têm estruturas tão complexas quanto às do boom.<br />

4. As reciclagens pós-modernas na AL recusam a perspectiva centralizante e<br />

autoritária que a mira<strong>da</strong> <strong>da</strong> alta cultura projetava sobre a popular. Se o sujeito<br />

interpretante moderno era quem conferia valor, legitimi<strong>da</strong>de e sentido ao<br />

discurso popular, o sujeito (se é que esta enti<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> existe) pós-moderno<br />

recusa a postura totalizante para operar conexões, promover zonas de contato,<br />

indicar mestiçagens do massivo com o erudito sem estabelecer hierarquias<br />

de valor estético.<br />

Mesmo considerando que a mentali<strong>da</strong>de politicamente correta (pouco<br />

arraiga<strong>da</strong> na AL) tende a legitimar socialmente o diferente e excluído, é<br />

certamente uma tarefa bastante delica<strong>da</strong> a operação de resgate e inserção do<br />

repertório melodramático na linguagem narrativa do romance com destinatário<br />

culto. Trata-se, não simplesmente de citar ou criar um pastiche dos<br />

materiais existentes, mas de operar a mixagem de linguagens, de modo a


78 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

tornar verossímil e aceitável, do ponto de vista estético para o consumidor de<br />

textos literários, a apropriação do resíduo e sua transferência para o circuito<br />

alto de produção cultural. Pode-se dizer que essa tarefa inverte aquela que os<br />

meios massivos sempre realizaram para tornar digeríveis para o consumidor<br />

popular as obras do circuito alto.4 Os textos que realizam esse efeito de<br />

maneira convincente adotam claramente estratégias experimentais de hibri<strong>da</strong>ção<br />

de discursos, mediante a toma<strong>da</strong> de fragmentos que ora se justapõem,<br />

superpõem ou mesclam, desencadeando um curto-circuito <strong>da</strong>s temporali<strong>da</strong>des<br />

e culturas que se expressam nas linguagens convoca<strong>da</strong>s. É nesse sentido<br />

de níveis de consumo cultural (alto x popular-massivo) que falaremos aqui<br />

de relações interculturais e de multitemporali<strong>da</strong>de no romance latino-americano.<br />

Quero ilustrar esse processo com o exemplo <strong>da</strong> reciclagem do repertório<br />

melodramático do subgênero musical "bolero", opera<strong>da</strong> no romance La importancia<br />

de llamarse Daniel Santos. 5 O trabalho experimental do porto-riquenho<br />

Luis Rafael Sánchez nos servirá para indicar como duas estratégias<br />

básicas de transcodificação são aciona<strong>da</strong>s para expor os materiais - <strong>da</strong> alta<br />

literatura e <strong>da</strong> canção popular - ao que descreveremos com o conceito de<br />

despragmatização: produção textual em que os materiais reciclados são despojados<br />

de seu contexto original para serem inseridos em um novo contexto,<br />

no qual ganham outra função, mediante a alteração <strong>da</strong> relação destinador/destinatário.<br />

6 Se consideramos que os materiais disponíveis à reciclagem existem<br />

de modo sistêmico numa <strong>da</strong><strong>da</strong> cultura,7 isto é, como partes de um código<br />

ou sistema de signos específico (cinema, pintura, música, publici<strong>da</strong>de, etc)com<br />

suas regras e convenções que fixam as relações entre o significante e o<br />

significado e que são comuns ao emissor e ao receptor - a despragmatização<br />

supõe sempre uma transcodificação. Logo, as per<strong>da</strong>s e ganhos processa<strong>da</strong>s<br />

pela transcodificação é o que nos mostrará até que ponto a reciclagem literária<br />

altera a percepção dos códigos originais, valendo-se <strong>da</strong> memória inscrita<br />

nos resíduos reaproveitados para gerar, com a infonnação estética nova, o<br />

ideologema que se propõe a desconstruir a cultura latino-americana.<br />

A despragmatização do bolero<br />

Luis Rafael Sánchez apresenta o seu romance como "narrativa híbri<strong>da</strong> y<br />

fronteriza, mestiza, exenta de las regulaciones genéricas" (DS:16), na qual se<br />

narra a len<strong>da</strong> de Daniel Santos, famoso cantor porto-riquenho, falecido recentemente<br />

e de grande projeção no âmbito hispânico do continente, desde os<br />

anos 40. A forma do romance é reivindica<strong>da</strong>, assim, como a de um "pósgénero"<br />

(DS: 16) e bem compenetrado com a técnica do videoclip (imagens rápi<strong>da</strong>s,<br />

ausência de história, presença <strong>da</strong> música): uma série de fragmentos<br />

4. Em, Umberto. Apocalípti·<br />

cos e integrados. São Paulo:<br />

Perspectiva, 1970 (I' ed.:<br />

1964).<br />

S. SANCHEZ, Luis Rafael. La<br />

importancia de llamarse Daniel<br />

Santos. México: Diana,<br />

1989. Daqui por diante, como<br />

OS.<br />

6 Formulamos esse conceito a<br />

partir de uma anotação de<br />

Wolfgang Iser relativa à dupla<br />

deformação, no texto que cita<br />

e no que é citado, cria<strong>da</strong> por<br />

Joyce no Ulysses: "The very<br />

fact that the Iiterary allusions<br />

are now stripped of their context<br />

makes it clear that they are<br />

not intended to be a mere reproduction<br />

- they are, so to<br />

speak depragmatised and set<br />

in a new context." (IsER, Wolf­<br />

gang. The Acl of Readinl!. A<br />

Theory o(Aeslhetic Response.<br />

Baltimore: John Hopkins<br />

Univ. Press, 1978).<br />

7 L01MAN, IUli. Semirítica de<br />

la cultura. Madri: Cátedra,<br />

1979.


o romance latino-americano do pós-boom... 79<br />

distribuídos em três partes, sendo a primeira os relatos-reportagem com<br />

indivíduos de diferentes ci<strong>da</strong>des <strong>da</strong> América Latina, que teriam conhecido o<br />

ídolo popular; a segun<strong>da</strong> se compõe de reflexões\comentários do narrador<br />

sobre a sua fama artística e sua mitologia como grande Macho latino-americano;<br />

a terceira contém historias diversas <strong>da</strong>s vivências sentimentais dos<br />

ouvintes de Daniel Santos que aguar<strong>da</strong>m ser "boleriza<strong>da</strong>s". To<strong>da</strong>s as partes<br />

estão tematiza<strong>da</strong>s e musicaliza<strong>da</strong>s pelo bolero - o "bolerão" tradicional- que<br />

integra uma faixa significativa de consumidores de música popular, aquela<br />

que o mote do romance repete e repete: "La América amarga, la América<br />

descalza, la América en espanol".<br />

A performance do narrador - que obviamente inventa as ent<strong>revista</strong>s, as<br />

reportagens e as histórias ouvi<strong>da</strong>s (cf DS: 15) para parodiar as chama<strong>da</strong>s<br />

"novelas-testimonio" - é a de um virtuoso: por um lado, forja a fala popular<br />

dos supostos ent<strong>revista</strong>dos com notável verossimilhança, ao ponto de imitar<br />

a entoação <strong>da</strong>s vozes regionais, os tics <strong>da</strong> elocução, as gírias e modismos<br />

peculiares de uma geografia que vai de Guayaquil e Cali a Caracas, do<br />

México e Managua a Santo Domingo e San Juan, do Panamá a Manhattan;<br />

por outro, nos comentários que sucedem às pseudo-ent<strong>revista</strong>s, exercita-se<br />

como um narrador culto, de vanguar<strong>da</strong>, com a erudição adequa<strong>da</strong> a um<br />

conhecedor do ofício <strong>da</strong> escritura moderna e <strong>da</strong> experimentação literária. É a<br />

reciclagem <strong>da</strong>s letras de boleros clássicos <strong>da</strong> musicologia popular latino-americana<br />

que faculta a hibri<strong>da</strong>ção dessas linguagens distancia<strong>da</strong>s socialmente.<br />

A passagem do código musical para o literário está tão bem ajusta<strong>da</strong> ao<br />

propósito de transcodificar as linguagens culta e popular, que às vezes tornam-se<br />

imperceptíveis as junções dos materiais heterogêneos.<br />

Vejamos as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des que realizam esta despragmatização do bolero:<br />

a) deslocamento o código musical-melodramático do seu contexto popular-massivo<br />

para inseri-lo no código culto <strong>da</strong> enunciação do romance.<br />

O uso <strong>da</strong> letra do bolero como epígrafe dos fragmentos que formam a<br />

narrativa usurpa o lugar privilegiado <strong>da</strong> citação de grande autoria nas obras<br />

modernas. Em vez de um verso de um põeta ou filósofo reconhecido, o relato<br />

dos amores desordenados de Daniel Santos vem, convenientemente, encabeçado<br />

pelos versos de "Obsesión" de Pedro Flores, um dos quais diz: "Amor<br />

es el consuelo de la vi<strong>da</strong>\ la única, magnífica ilusión" (DS:20).<br />

Os versos, retirados do seu contexto original, procuram enobrecer as<br />

muitas "anarquías genitales" que caracterizam a vi<strong>da</strong> de Santos. A transcodificação,<br />

neste caso, supõe que o "contexto original" seja composto de uma<br />

série de subcódigos anulados ou neutralizados pela escritura novelesca: a voz<br />

do cantor\cantora que o som <strong>da</strong> "vellonera" - a vitrola ou fonógrafo -<br />

reproduz e que é obtido pela ficha que aciona o aparato eletrônico; junto a<br />

este, desvela-se a mulher\homem abandonado ou solitário, que traz a alma em<br />

frangalhos; o espaço público urbano que o som <strong>da</strong> "vellonera" invade (abun-


80 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

<strong>da</strong>m os nomes desses lugares no continente: boliche, toldo de carnaval,<br />

paganías, hostería, taberna, cevecería, cantina, ratonera, cebichería, burdel,<br />

hotelitos, entre outros; cf DS: 14-15 e 18-(9); os destinatários típicos <strong>da</strong>s<br />

letras tristes dos boleros, os proletários e marginais (a nomenclatura para os<br />

pobres é generosa na AL: hampones, gentuza, gentucilla, plebe, chusma,<br />

morralla, broza, "el inefable lumpen" DS:90-91). Isentos dos sub códigos <strong>da</strong><br />

emissão e <strong>da</strong> recepção que a matéria "canta<strong>da</strong>" supõe, os versos bolerescos<br />

funcionam como filosofemas que pontuam as conexões dos relatos, para<br />

sugerir significados nobres e engrandecer as paixões, tornando a sedução e a<br />

perdição pela sensuali<strong>da</strong>de ver<strong>da</strong>deiros movimentos anímicos que transcendem<br />

a mera carnali<strong>da</strong>de.<br />

Em outros casos, trata-se de usar a epígrafe boleresca de modo inverso,<br />

para "rebaixar" a excessiva digni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem literária. Dois fragmentos<br />

que invocam as profun<strong>da</strong>s reflexões de um "bardo inglês" e de um "bardo<br />

argentino" sobre a importância do nome aparecem intercalados por versos <strong>da</strong><br />

patética letra de "EI preso" (DS:94-95). Se com Shakespeare e Borges o leitor<br />

permanece no plano <strong>da</strong> metafísica, com as lamúrias do prisioneiro é arrojado<br />

para o universo mais banal dos sentimentos como a solidão e a culpa. Pode-se<br />

notar por esse exemplo que a despragmatização, ao reorientar o leitor na<br />

percepção dos conteúdos, dissolve a oposição entre o objeto aurático e não<br />

aurático;8 essa oposição, que pôde sustentar a concepção moderna dos objetos<br />

artísticos e não artísticos, foi-se neutralisando ca<strong>da</strong> vez mais na era<br />

pós-industrial desde que a reprodutibili<strong>da</strong>de técnica tornou secundária a<br />

deman<strong>da</strong> <strong>da</strong> unici<strong>da</strong>de.<br />

São numerosos os exemplos <strong>da</strong> transcodificação que despragmatiza a<br />

percepção convencionaliza<strong>da</strong> do bolero como expressão banal ou ridícula. As<br />

letras de bolero, sempre retira<strong>da</strong>s do seu contexto pragmático, adquirem nova<br />

função no enunciado narrativo, em um processo de incorporação que podemos<br />

denominar como REPRAGMATlZAÇÃO. Elas podem servir, dessa maneira,<br />

para predicar um personagem ("Besaba como si fuera esta noche la última<br />

vez"; "chupaba el lunar que una y Cielito lindo tienen junto a la boca"<br />

DS:34); figurar um estado psicológico ("su alma sangrante tefiÍa el aguardi<br />

ente dei Cauca con oscuros desenganos") etc. É, no entanto, em certas<br />

mixagens dos códigos popular e culto onde se pode observar como o deslocamento<br />

do resíduo melodramático descondiciona a percepção:<br />

EI asuntito con Salira lo redujo a borracho de oficio. Migas lo hizo. Mas miga<br />

enamora<strong>da</strong>, De eso sabrá Dios. (DS:44)<br />

Aqui, um fragmento do memorável bolero "Sabrá Dios" é reciclado em<br />

um sintagma criado pela paródia dos versos finais e solenes ("polvo serán,<br />

mas polvo enamorado"), do soneto barroco de Quevedo "Amor constante<br />

K. BENJAMIN, Walter. A obra de<br />

arte na era de sua reprodutibili<strong>da</strong>de<br />

técnica. Trad. J.P. Rouanet,<br />

em Ohras escolhi<strong>da</strong>s. 3'<br />

ed. São Paulo: Brasiliense,<br />

1987. Vol. I, 165-96.


o romance latino-americano do pós-boom... 81<br />

más alIá de la muerte". Neste caso, temos o duplo movimento de per<strong>da</strong> e<br />

ganho na economia <strong>da</strong> reciclagem: os "restos" do soneto são rebaixados de<br />

sua digni<strong>da</strong>de de alto modelo literário, ao tempo que o resíduo do bolero, que<br />

pontua emoções baratas, é elevado em seu significado. Evidentemente, a<br />

operação de repragmatizar esses resíduos requer a afini<strong>da</strong>de intrínseca dos<br />

códigos nivelados: ambos, o musical e o literário, inscrevem-se na cultura dos<br />

sentimentos. cujas cifras a memória dos hispano-americanos retém.<br />

Os deslocamentos dos signos bolerescos vão além <strong>da</strong> despragmatização<br />

de suas uni<strong>da</strong>des informativas. O trabalho <strong>da</strong> reciclagem apropria-se também<br />

<strong>da</strong>s estruturas melódicas e tonais características por suas repetições e recorrências<br />

para imprimir à prosa a sensuali<strong>da</strong>de de um ritmo <strong>da</strong>nçável:<br />

Como paloma inofensiva, como huella huérfana de pasos. como melindre y reticencia<br />

- símil con símil insinuándola. (DS:1l3)<br />

Beber, beber, beber en los calibres de Cali la cáli<strong>da</strong>. (DS:34)<br />

Le digo Narciso en un ojo de agua, las hojas junto ai ojo enojándolo, el enojo<br />

equivocándolo. Le digo Eros erogenándose. (DS:76)<br />

Aqui, a bolerização <strong>da</strong> prosa tem o toque paródico de outro aspecto <strong>da</strong><br />

pragmática do bolero (a <strong>da</strong>nça pelo par amoroso), mas não deixa de ser<br />

notável que a experimentação com a linguagem <strong>da</strong> prosa narrativa em na<strong>da</strong><br />

se diferencie do que seria um típico produto de vanguar<strong>da</strong>. Por isso, o fato de<br />

estetizar o relato mediante o uso <strong>da</strong>s paronomásias - tão caras à invenção<br />

poética <strong>da</strong> alta moderni<strong>da</strong>de - revela, uma vez mais, a proposta de dignificar<br />

a música popular e de abrir o seu território para novas explorações.<br />

b. deslocamento do código culto <strong>da</strong> literatura para inserir-lo no enunciado<br />

melodramático do romance<br />

Esta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de reciclagem consiste em aproveitar diversos resíduos<br />

<strong>da</strong> tradição literária para transcodificá-Ios na narrativa, mediante a despragmatização<br />

do seu efeito estético "alto". Temos, claro está, uma inversão <strong>da</strong><br />

apropriação dos materiais residuais <strong>da</strong> cultura popular-massiva anteriormente<br />

descrita. Porém, deve-se assinalar que essa reciclagem inclui-se no projeto<br />

amplo de despragmatização do sub-gênero melodramático, ou melhor, supõe<br />

que a experimentação de deslocamento do bolero já tenha condicionado o<br />

leitor para que este possa absorver o rebaixamento <strong>da</strong>s referências cultas.<br />

Neste ponto, cabe perguntar: o que pretenderia oferecer como experiência<br />

de leitura (e consumo) um texto que cita fragmentos de obras e autores<br />

canônicos como se fosse material espúrio? Vejamos se podemos ensaiar uma<br />

resposta a partir de alguns exemplos dessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de reciclagem, nos


82 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

quais indico pelas cursivas os resíduos literários e entre colchetes os autores<br />

e obras de onde foram extraídos:<br />

el bolero que acoge su garganta obtendría los ribetes de la fonua ideal, la fundición<br />

perfecta, los pausados giros de un aire suave. (OS:18-19) [Rubén Oario, do põema<br />

"Era un aire suave ... " de Prosas profanas]<br />

El pasó por mi vi<strong>da</strong> sin saber que pasaba y le labrâ cerco y prisitin mifantasía. (OS:33)<br />

[Sor Joana Inés de la Cruz, do soneto "Que contiene una fantasía contenta con amor<br />

decente"]<br />

estaban filmando una épica con hombres necios que acusais a la mujer sin razón para<br />

ellucimiento de Maria Antonieta Pons o Rosa Carmina( ... ) (OS:50) [idem, <strong>da</strong> sátira<br />

filosófica "Hombres necios ... "]<br />

piei que un día se otoõó; piei otoõaI que se atareó en la compra de torsos embadumados<br />

con el verso azul y la cancilÍn profana( ... ) (DS:58) [Rubén Oarío, do põema "Yo soy<br />

aquél que ayer no más decía", de Cantos de vi<strong>da</strong>)' esperanza]<br />

requetepeor, se camavaliza con falsos silogismos de colores (OS:82) [Sor Juana lnés<br />

de la Cruz, do soneto "Procura desmentir los elogios que a un retrato de la põetisa<br />

inscribió la ver<strong>da</strong>d, que se lIama pasión"].<br />

los boleros son corrientes puras, aguas cristalinas. (OS:99) [Garcilaso de la Vega, <strong>da</strong><br />

"Égloga primera"]<br />

para revi vir la cita que parece una violeta ya marchita en ellibro de recuerdos dei ayer<br />

( ... ). Para que pue<strong>da</strong>n escribirse los versos má.v tri.vtes esta noche. (OS:IOI) [Pablo<br />

Neru<strong>da</strong>, de um põema de Veinte poemas de amor y una cancilÍn desespera<strong>da</strong>].<br />

Macho es Oaniel Santos que cuanta mujer paIpó vive quema<strong>da</strong> por el no se sabé clÍmo<br />

de sus besos, dice el sensacionalismo. (OS: 123) [Tirso de Molina, <strong>da</strong> obra teatral Don<br />

Juan Temirio o EI convi<strong>da</strong>do de piedra).<br />

Otra vez Marisela está vesti<strong>da</strong> ( ... ) Contra el oro brunido de su cabello el sol relumbra<br />

en vano ( ... ) (OS: 156) [Góngora, do soneto "Mientras por competir con tu cabello")<br />

Esta seleção requer alguns comentários: as citações não são fidedignas,<br />

pois apresentam várias alterações dos textos originais; to<strong>da</strong>s são familiares<br />

para o leitor de cultura média <strong>da</strong> literatura em língua espanhola; as escolhas<br />

recaem em autores consagrados e obras de tema amoroso; todos os fragmentos<br />

<strong>da</strong> alta literatura são inseridos em enunciados narrativos nos quais os<br />

personagens, as situações, os objetos e comportamentos, expressões verbais<br />

ou fatos referidos provêm do universo popular-massivo, no qual a não-genuini<strong>da</strong>de<br />

e mesmo a marca do Kitsch estão presentes.


" JAMESON, Fredric, Reification<br />

and Utopiain Mass Culture,<br />

SiKnatures oI' lhe Visihle,<br />

New York: Routledge, Chapman<br />

and Hall, 1979, p, 9-34,<br />

o romance latino-americano do pós-boom", 83<br />

A despragmatização a que são submetidos os textos literários neste caso<br />

- como a que se efetua pela toma<strong>da</strong> sinedóquica de suas partículas - evidencia<br />

até que ponto o seu uso contínuo ou consumo excessivo desgastam a sua<br />

aura e facultam o seu nivelamento com outros restos e resíduos culturais,<br />

Ora, nessa disposição dos códigos literário e musical, torna-se irrelevante<br />

preservar a diferença do erudito e do popular; sua identi<strong>da</strong>de e legitimi<strong>da</strong>de<br />

ficam comprometi<strong>da</strong>s pelo contágio, Por isso, a reciclagem despragmatizadora<br />

já não admite que os fragmentos enxertados retornem para seu estrato<br />

original, sem estarem afetados, contaminados um pelo outro. A reciclagem,<br />

em outras palavras, torna irreversível a bolerização <strong>da</strong> literatura, como tornara<br />

literárias e modernas as letras arcaicas e kitsch dos boleros. Aliás, o próprio<br />

sujeito-reciclante, ao intitular um dos fragmentos iniciais do romance, parece<br />

ter insinuado a generalização <strong>da</strong> disponibili<strong>da</strong>de dos materiais <strong>da</strong> cultura de<br />

elite e de massas para ingressar em um sistema híbrido de signos: "Trozos y<br />

restos aprovechables de los materiales descartados" (DS:33).<br />

Melodrama: catarse do moderno<br />

Se o colapso <strong>da</strong> distinção entre a cultura de elite e cultura de massas é o<br />

fenômeno mais marcante <strong>da</strong> pós-moderni<strong>da</strong>de,9 as reciclagens dos gêneros<br />

melodramáticos por autores latino-americanos treinados em técnicas sofistica<strong>da</strong>s<br />

de narração, oferece um campo privilegiado para observar a crise <strong>da</strong><br />

concepção modernista de arte e a nova reordenação dos capitais culturais pela<br />

hibri<strong>da</strong>ção, para usar aqui a linguagem econômico-sociológica (CANCLINI,<br />

181). Nessa crise e reordenação, as culturas mestiças e pós-coloniais, que<br />

tiveram que conviver ao longo de sua história com a duali<strong>da</strong>de opressora<br />

hegemônico\ subalterno - e que tiveram, portanto, que desenvolver estratégias<br />

"antropofágicas" de sobrevivência, de ambos os lados, diga-se - querem<br />

reivindicar, juntamente com a valorização do popular-massivo, o direito ao<br />

melodrama, a legitimi<strong>da</strong>de do sentimentalismo ou, como diz Luis Rafael<br />

Sánchez, a "Iegalización de la cursilería" [a legalização <strong>da</strong> cafonice].<br />

Mas o que, afinal, torna aceitável que materiais desde sempre considerados<br />

espúrios, alienantes, adulterados (em nossos países pela intelectuali<strong>da</strong>de<br />

de esquer<strong>da</strong> e direita) possam, de repente, reverter o seu conteúdo? Em outras<br />

palavras, que razão estética e que forma de adesão ideológica são deman<strong>da</strong>dos<br />

pela reciclagem? Sem poder avançar aqui uma resposta geral, váli<strong>da</strong> para<br />

expressões não-literárias, penso que são necessárias duas condições para a<br />

aceitabili<strong>da</strong>de desses resíduos na reciclagem.<br />

Uma é que a reciclagem se apresente como operação crítica na combinatória<br />

dos materiais, de modo a selecioná-los de acordo com as conveniências<br />

políticas e éticas pós-modernas. Exemplarmente: o bolero tem que aparecer


84 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

destituído <strong>da</strong>quele relaxamento alienante ou hedonismo apolítico, de modo<br />

que à sua dignificação literária (que lhe dá status literário, corno vimos)<br />

correspon<strong>da</strong> o compromisso com algo nobre e maior, ain<strong>da</strong> que dentro <strong>da</strong><br />

cultura dos afetos. Em outras palavras, exige-se que a repragmatização se dê<br />

corno novo contrato entre destinador e destinatário, no qual subentende-se<br />

que o papel <strong>da</strong>s emoções deriva <strong>da</strong> falência do projeto utópico <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong><br />

na América Latina.1°<br />

Nesse sentido, é notório que romancistas corno Manuel Puig ou Luis<br />

Rafael Sánchez reciclam os gêneros massivos em oposição à teoria frankfurtiana<br />

sobre a indústria cultural no capitalismo, segundo a qual, os bens<br />

culturais são sistemática e programa<strong>da</strong>mente explorados com fins comerciais<br />

para induzir ao relaxamento, à distração, à diversão. I I Para esses escritores<br />

latino-americanos, um bolero ou um filme B (corno os que Puig utiliza em El<br />

beso de la mujer arafía) são sim produtos dessa indústria e, corno tais,<br />

portadores do elemento kitsch; mas eles parecem estar longe de ser urna<br />

resposta à mecanização capitalista ou à mercantilização ou, ain<strong>da</strong>, urna compulsão<br />

desespera<strong>da</strong> para escapar <strong>da</strong> mesmi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s coisas por urna "promesse<br />

de bonheur". Se mesmo na esfera socialista <strong>da</strong> América proliferam as atitudes<br />

apologéticas ao Kitsch, segundo a fina análise de Desiderio<br />

NAVARRO,12 isto significa, talvez, que eles são capazes de produzir plenamente<br />

a catarse no leitor. Quando Sánchez compara as reações de um ouvinte<br />

hipotético dos anos 30 - ante urna emissão radial com discursos políticos de<br />

Lázaro Cárdenas, no México, ou Haya de la Torre, no Peru com as que ele<br />

experimenta ante a "vel\onera" onde explode um bolero na voz de um "negrito<br />

sabrosón" (DS:121) - seria injusto dizer que a emoção que este suscita<br />

possa equiparar-se àquela "paródia <strong>da</strong> catarse" que Adorno viu no kitsch. O<br />

marginalizado social que nesta situação libera a sua sentimental i<strong>da</strong>de vive "el<br />

drama dei reconocimiento y la lucha por hacerse reconocer, la necesi<strong>da</strong>d de<br />

recurrir a múltiples formas de la sociali<strong>da</strong>d primordial (el parentesco, la<br />

soli<strong>da</strong>ri<strong>da</strong>d yecinal. Ia amistad) ante el fracaso de las vías oficiales de institucionalización<br />

de lo social. incapaces de asumir la densi<strong>da</strong>d dê las culturas<br />

populares.'·!.1<br />

A segun<strong>da</strong> condição tem a Yêr com a nê":êssi<strong>da</strong>de - já no âmbito dê uma<br />

política do texto - de reciclar resíduos culturaIs. abandonados pela moderni<strong>da</strong>de<br />

estética e reconhecidos corno integrados ao conceito de identi<strong>da</strong>de<br />

cultural latino-americana. Os melodramas que pcrmeiam os relatos de Puig,<br />

de Otero ou Vergés não seriam reutilizáveis se não fossem passíveis de<br />

constituir um ideologema <strong>da</strong> integração ou unificação <strong>da</strong> América Latina.<br />

Nessas reciclagens não há divertimento, pura experimentação de laboratório<br />

estético para verificar a reação dos componentes. É preciso que os resíduos<br />

iluminem de alguma maneira as contingências do presente político e aportem<br />

traços diferenciais <strong>da</strong> cultura latino-americana. Nisto é paradigmático o caso<br />

In SANTOS, Lídia. Des héros et<br />

des larmes. Le Kitsch et la cul­<br />

ture de mas se <strong>da</strong>ns les romans<br />

des Cara'lbes hispanophones et<br />

le Brésil. Éludes littéraires,<br />

vol. 25, 3, Hiver 1993.<br />

11. HORKHEIMER, Max, ADOR­<br />

NO, Theodor. Dialectic ot Enli!(htenment.<br />

Trad. John Cumming.<br />

New York: 'lbe Seabury<br />

Press, 1972 (I' ed.: 1957).<br />

12 NAVARRO, Desiderio. EI<br />

kitsch nuestro de ca<strong>da</strong> día.<br />

Uniôn [Havana], 2:22-28,<br />

abr.-jun. 1988.<br />

lJ MARTIN BARBERO, Jesús. De<br />

los medias a las mediaciones.<br />

Comunicaciôm, cultura y he­<br />

!(emonía. México: G. Gili,<br />

1987.


14 ACOSTA, Leonardo. EI bole­<br />

ro y el Kitsch. Letras Cubanas<br />

[Havana], 9:58-76, jul.-set.,<br />

1988.<br />

15 CASTILLO ZAPATA, Rafael.<br />

Fenomeno!ol{Ía dei holero.<br />

Caracas: Monte Avila, 1990.<br />

16. SARLO, Beatriz. El imper;o<br />

de los sentimienfos. Narrac;ones<br />

de ôrc;ulaciôn periódica<br />

enArlientina 1917-1927. Buenos<br />

Aires: Catálogos, 1995.<br />

o romance latino-americano do pós-boom... 85<br />

do bolero, cujo capital simbólico, ao ser manuseado pelos pesquisadores,<br />

revela a categoria <strong>da</strong> genuini<strong>da</strong>de "popular", 14 incompatível, a meu ver, com<br />

as formas <strong>da</strong> sua difusão como fenômeno de massas. Resgatado como popular,<br />

o bolero já não é mais Kitsch; passa a ser "originário", anterior à internacionalização<br />

e comercialização, próprio dos meios proletários e sub-proletários.<br />

Sua origem mestiça é reconheci<strong>da</strong> por seu legado verbal e melódico -<br />

de raiz hispânica - e por seus ritmos e instrumentações, de herança negróide.<br />

15 Outra categoria que o legitima na constituição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de cultural<br />

provém <strong>da</strong> sua estrutura dramática, na qual se narra um conflito amoroso e se<br />

elabora a dor pela ausência\ abandono do(<strong>da</strong>) amante. Por sua rede de símbolos<br />

que tece modelos <strong>da</strong> relação amorosa, torna-se um rito coletivo, uma<br />

"práctica estética comunitaria", cuja função pragmática principal é a de consolar<br />

os amantes, amparar e confortar pelas penas de amor. (IDEM: 33). Como<br />

"almacén simbólico", pois, o bolero traduz, por suas raízes autóctonas, por<br />

sua rituali<strong>da</strong>de coletiva, a experiência sentimental latino-americana. Torna­<br />

se, enfim, identitário pela neutralização de sua própria historici<strong>da</strong>de. Mas há<br />

ain<strong>da</strong> um fator identitário que torna mais ain<strong>da</strong> atraente o repertório melodramático<br />

para as reciclagens do escritor latino-americano pós-moderno.<br />

A busca de figuras arcaicas, de formas marginaliza<strong>da</strong>s pelo progresso e<br />

pelas grandes utopias, a reivindicação do ex-cêntrico e periférico responde a<br />

uma necessi<strong>da</strong>de de elaborar o luto pelo fim <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. Tanto os filmes<br />

B de Hollywood, como os folhetins radiais, a difusão do bolero e do tango,<br />

como os romances sentimentais em grandes edições - tudo o que contribuiu,<br />

enfim, para construir na América Latina o "império dos sentimentos"16 são<br />

testemunhos do impacto <strong>da</strong> modernização e <strong>da</strong> expansão do capitalismo no<br />

continente. O surgimento dos meios massivos (o rádio, o registro fonográfico,<br />

o cinema) com a expansão urbana: o cosmopolitismo e a vi<strong>da</strong> noturna dos<br />

cabarés, <strong>da</strong>ncings. casinos e teatros foram acompanhados pela necessi<strong>da</strong>de<br />

de refúgio contra a fúria destrutora do presente.<br />

Reciclar permite (re lexperimentar os desajustes e os fracassos que os<br />

Grandes Relatos provocaram em sua implantação nos mundos periféricos.<br />

Não por acaso, o primeiro bolero que se compôs no continente foi em<br />

1885, a mesma <strong>da</strong>ta que a historiografia literária reconhece como início<br />

modernismo hispano-americano. Intitulava-se "Tristezas".


Necessi<strong>da</strong>de<br />

e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de nos<br />

estudos de literatura<br />

compara<strong>da</strong><br />

Benjamin Ab<strong>da</strong>la Junior<br />

1<br />

Desde sua publicação, em 1612, A tempestade, de William Shakespeare,<br />

tem sido objeto de interpretações contraditórias. Na efabulação dessa grande<br />

parábola <strong>da</strong> colonização, Próspero, o sábio duque que se asilou numa ilha<br />

centro-americana, ali encontrou Caliban, personagem grosseira e disforme.<br />

O duque - com comportamento similar ao de um "déspota esclarecido" -, ao<br />

se apropriar de suas terras e o escravizar, aculturou-o nos valores <strong>da</strong> "civili­<br />

zação". Ensinou-lhe a sua língua ... Depois, Caliban - um ingrato, na perspec­<br />

tiva de Shakespeare - vai-se valer do conhecimento dos valores veiculados<br />

pela língua para colocar-se contra o colonizador.<br />

Como se sabe, "Caliban" é anagrama de "Canibal" - um antropófago.<br />

"Canibal", deriva de "Caribe", que, por sua vez, vem de "Caraíba". Os caraíbas<br />

foram os habitantes <strong>da</strong> região que se opuseram à colonização européia, estig­<br />

matizados, por isso, como bárbaros. Shakespeare, ao se apropriar do ensaio<br />

"Dos canibais", de Montaigne, de 1580 (traduzido para o inglês em 1603),<br />

distorceu sua fonte iluminista. Montaigne afirmava nesse texto que "na<strong>da</strong> há de<br />

bárbaro nem de selvagem nessas nações ( ... ) o que sucede é que ca<strong>da</strong> um chama<br />

barbárie o que é estranho a seus costumes". Shakespeare, ao associar anagra-


88 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

maticamente sua personagem com o canibal, um escravo selvagem e disforme,<br />

não deixou de adotar, ele próprio, uma atitude canibalesca.<br />

Entre as muitas releituras de A tempestade, figura a de Renan, que em seu<br />

texto Caliban, seqüência de A Tempestade (1878), identifica de forma negativa<br />

Caliban com o povo <strong>da</strong> Comuna de Paris - uma imagem estigmatiza<strong>da</strong>.<br />

Em oposição à matização negativa do Caliban de Renan, vieram as leituras<br />

de latino-americanos e africanos que. no decorrer do século XX, identificaram<br />

simbolicamente essa personagem. de forma positiva, com os valores<br />

emergentes do povo. Próspero. nessas novas leituras. seria então um déspota<br />

esclarecido europeu, como apontamos acima: Miran<strong>da</strong>. sua linhagem; Caliban,<br />

o povo colonizado: Ariel. o intelectual sem laços com a vi<strong>da</strong>, a serviço<br />

de Próspero. A imagem de Caliban. além disso. veio a se aproximar <strong>da</strong><br />

perspectiva teórica do cubano José Martí, que enfatizava a condição mestiça<br />

<strong>da</strong> América Latina.<br />

Se to<strong>da</strong> cultura é mestiça, nas terras de Caliban essa situação é ain<strong>da</strong> mais<br />

essencial pelo fato de a mesclagem cultural ser mais recente. Na América<br />

Latina, há uma maneira de ser mestiça que envolve as culturas ameríndias,<br />

africanas e européias. Essa mestiçagem essencial, mas não sintética, traz-nos<br />

um estatuto crioulo - a criouli<strong>da</strong>de -, uma forma plural de nos imaginarmos,<br />

com repertórios de várias culturas.<br />

A partir dessa potenciali<strong>da</strong>de subjetiva e objetiva - a possibili<strong>da</strong>de de nos<br />

imaginarmos numa bacia cultural onde a criouli<strong>da</strong>de é essencial - podemos<br />

fazer figurar em nossos horizontes uma comuni<strong>da</strong>de cultural ibero-afro-americana.<br />

Logo, não uma figuração utópica em abstrato, mas como um "sonho<br />

diurno", na expressão de Ernst Bloch - uma potenciali<strong>da</strong>de objetiva e que<br />

pede o concurso de nossa subjetivi<strong>da</strong>de, isto é, de nossa potenciali<strong>da</strong>de<br />

subjetiva, de nosso desejo, para nos situar dentro dessa perspectiva crioula.<br />

Não há futuro, em termos de identi<strong>da</strong>de, figurarmo-nos como espelho de<br />

Próspero, imitando sua imagem. Mais: para o europeu, a América e a África<br />

começam na Ibéria, igualmente marca<strong>da</strong> pela mestiçagem cultural <strong>da</strong>s ex-colônias<br />

dos países peninsulares. Na Ibéria certas elites desconsideram sua<br />

maneira de ser mestiça para se espelharem em Próspero, como também tem<br />

ocorrido na América Latina e na África. A situação de dependência envolve<br />

a todos nós e precisamos desenvolver estratégias para reverter esse quadro<br />

que se agrava a todo momento. É necessário, pois, que descentremos perspectivas:<br />

vamos observar as nossas culturas a partir de um ponto de vista próprio.<br />

Teríamos assim um descentramento de ótica de Caliban, afim <strong>da</strong> perspectiva<br />

antropofágica do Modernismo brasileiro, para morder as culturas de<br />

Próspero e as culturas africanas e ameríndias. Inversão de perspectivas,<br />

exemplifica<strong>da</strong> pelo cubano Roberto Fernandes Retamar <strong>da</strong> seguinte forma:<br />

quando um europeu quer ser simpático aos centro-americanos, ele chama o<br />

"Mar <strong>da</strong>s Caraíbas" de "Mediterrâneo americano", algo semelhante se nós


Necessi<strong>da</strong>de e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de nos estudos de literatura compara<strong>da</strong> 89<br />

chamássemos - a partir de um descentramento de perspectiva - ao Mediterrâneo<br />

de o "Caribe Europeu".<br />

Esse descentramento solicita uma teoria literária descoloniza<strong>da</strong>, com<br />

critérios próprios de valor. Em termos de literatura compara<strong>da</strong>, o mesmo<br />

impulso nos leva a enfatizar estudos pelos paralelos - um conceito mais<br />

amplo que o geográfico e que envolve simetrias socioculturais. Assim, os<br />

países ibéricos situam-se em paralelo equivalente ao de suas ex-colônias. Ao<br />

comparatismo <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de que vem <strong>da</strong> circulação norte/sul, vamos promover,<br />

pois, o comparatismo <strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, buscando o que existe de<br />

próprio e de comum em nossas culturas. Vemos sobretudo duas laça<strong>da</strong>s, duas<br />

perspectivas simultâneas de aproximação: entre os países hispano-americanos<br />

e entre os países de língua (oficial) portuguesa.<br />

Voltando à imagem de Caliban, podemos nos valer do romance Caetés, de<br />

Graciliano Ramos, para exemplificar processos de apropriação dentro <strong>da</strong>s literaturas<br />

de língua portuguesa. Nessa narrativa, Graciliano (em cujo horizonte de<br />

expectativas estava Eça de Queirós), calibaniza a estrutura de A ilustre casa de<br />

Ramires, do ficcionista português. Apropria, entre outros, o procedimento narrativo<br />

do romance embutido dentro do romance. Como em A ilustre casa de<br />

Ramires, o romanCe que João Valério (a personagem narradora de Caetés)<br />

escreve é, na ver<strong>da</strong>de, a história vivencia<strong>da</strong> por ela, analogicamente. Essa<br />

estrutura será retoma<strong>da</strong> por Graciliano Ramos ain<strong>da</strong> depois, em São Bernardo.<br />

Os índios caetés, por sua vez, são recorrência histórica antropofágica:<br />

eles devoraram o Sardinha português. Uma boa parte <strong>da</strong> maneira de ser de<br />

Portugal está em nós, sob matização tropical. É por isso que Portugal, por sua<br />

vez, irá se apropriar do repertório literário do Modernismo brasileiro, em<br />

especial no romance, como ocorreu com o chamado Neo-Realismo português.<br />

Na literatura brasileira, os escritores desse país descobrem um Portugal<br />

que não existe na literatura além-Pireneus.<br />

Um olhar simétrico ocorreu com os escritores africanos dos países de<br />

língua (oficial) portuguesa. Ao reimaginarem suas nações - um projeto político<br />

e cultural-, encontraram em nossa literatura uma maneira de ser em que<br />

eles próprios Se viam. Isto é, descobriam as marcas <strong>da</strong> criouli<strong>da</strong>de cultural<br />

que nos envolvem e o descentramento de ótica que interessava aos seus<br />

projetos político-culturais. Ao buscarem a identificação simbólica com a<br />

Mátria (a "Mamãe-África", profana<strong>da</strong> pelo colonialismo), dão as costas à<br />

simbolização <strong>da</strong> Pátria (o poder paterno colonial), encontrando algumas de<br />

suas marcas na Frátria brasileira.<br />

2<br />

O romance A janga<strong>da</strong> de pedra, de José Saramago, presta-se para a<br />

discussão do caráter nacional português, em faCe de uma dupla solicitação: a


90 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

recente integração na Comuni<strong>da</strong>de Econômica Européia (ao que tudo indica,<br />

como nação periférica) e a singulari<strong>da</strong>de que leva o país a identificar-se, ao<br />

lado <strong>da</strong> Espanha, com suas ex-colônias.<br />

O romance de José Saramago serve-nos igualmente de núcleo simbólico,<br />

por envolver temas como o <strong>da</strong> imaginação utópica, <strong>da</strong> memória e <strong>da</strong>s relações<br />

culturais entre os países de língua portuguesa e de língua castelhana. A<br />

janga<strong>da</strong> de pedra proporciona uma "viagem" que permite, assim, que se<br />

sonhe com uma comuni<strong>da</strong>de não apenas dos países de língua portuguesa, mas<br />

dos países ibero-afro-americanos. Organizado em torno de estratégias geopolíticas<br />

e associado à situação histórica pós-Abril, esse romance permite repensar<br />

a cultura portuguesa em face <strong>da</strong> dupla solicitação aponta<strong>da</strong>: a integração<br />

européia e a singulari<strong>da</strong>de peninsular. Esta singulari<strong>da</strong>de liga-se às<br />

perspectivas que marcaram a história de Portugal: a atlantici<strong>da</strong>de, a iberici<strong>da</strong>de<br />

e a mediterranei<strong>da</strong>de.<br />

Tais horizontes históricos, no centripetismo e no centrifugismo de suas<br />

formas de apropriações e de difusões, acabaram por estabelecer uma comuni<strong>da</strong>de<br />

cultural ibero-affo-americana. Numa socie<strong>da</strong>de internacional atraí<strong>da</strong><br />

pela dinâmica dos comunitarismos entre os povos que os leva para novos<br />

reagrupamentos determinados por afini<strong>da</strong>des culturais. creio que é importante<br />

a efetiva implementação de estratégias político-culturais que nos permitam<br />

(re )imagimar essa constelação de países. Nessa comuni<strong>da</strong>de (previsão de 645<br />

milhões de falantes do português e do castelhano para o início do século<br />

XXI), Portugal, Brasil e os países africanos de língua oficial portuguesa<br />

constituiriam assim um pólo <strong>da</strong> pari<strong>da</strong>de histórica que nos envolve em relação<br />

aos países hispânicos - uma pari<strong>da</strong>de similar, mas que pretende menos<br />

conflituosa, do que aquela que marcou a história de Portugal e <strong>da</strong> Espanha.<br />

Vejamos a simbologia de A janga<strong>da</strong> de pedra, de José Saramago, que<br />

aponta para o imaginário que nos singulariza em relação à Europa - um<br />

imaginário simbolicamente "infernal", mestiço, crioulo, no sentido que estamos<br />

desenvolvendo, e que se opõe à pureza <strong>da</strong>s imagens "celestiais" <strong>da</strong><br />

tradição cultural dos centros hegemômicos europeus.<br />

Em epígrafe a esse romance, o ibero-americano Alejo Carpentier opõe ao<br />

ceticismo a perspectiva de que "Todo futuro es fabuloso". Tão fabuloso na<br />

efabulação desse romance que esse futuro, na vi<strong>da</strong> como na arte, torna-se<br />

avesso ao pragmatismo cético <strong>da</strong> Europa. Um "futuro fabuloso" próprio de<br />

um momento de fratura, onde "principia a vi<strong>da</strong>" (p. 18), que por natureza<br />

calibânica opõe-se à convenção, à rotina e ao estereótipo de Próspero. Viver,<br />

nessa perspectiva, é criar, desenre<strong>da</strong>ndo fios de velhas meias, como as de<br />

Maria Guavaira. "Todo futuro es fabuloso", diz Carpentier. Tão maravilhoso,<br />

diríamos, que permite uma efabulação - fabula ficcional de ação política -<br />

que, num direcionamento temporal inverso, permite a atualização, na janga<strong>da</strong><br />

de Saramago, de matéria sonha<strong>da</strong> para amanhã ou depois.


Necessi<strong>da</strong>de e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de nos estudos de literatura compara<strong>da</strong> 91<br />

Esse deslocamento temporal operado pelo jogo artístico não nos traz<br />

imagens literárias à deriva, mas imagens-ação que aportam no presente <strong>da</strong><br />

escrita literária, impulsionando-a por "mares nunca <strong>da</strong>ntes navegados". São<br />

imagens-ação políticas que motivam uma nova épica, agora social, num<br />

movimento dialético que é, ao mesmo tempo, parti<strong>da</strong> e encontro. Desprendese<br />

a península de uma situação convencional de apêndice europeu para, no<br />

faz-de-conta ficcional, encontrar-se consigo mesma. Quando se encontra em<br />

sua identi<strong>da</strong>de, a janga<strong>da</strong> ibérica é capaz de movimentos surpreendentes, já<br />

que não se (con)forma ao cais europeu, para ela "cético" e "rotineiro", onde<br />

aportou há muito tempo. "Mu<strong>da</strong>m-se os tempos" e a "vontade" (Camões)<br />

aponta para outras perspectivas, para driblar, pelas laterais do jogo ficcional,<br />

um outro jogo, geopolítico, que acaba por nos enre<strong>da</strong>r a todos.<br />

A matéria geopolítica, em torno <strong>da</strong> qual se processa a estratégia discursiva<br />

dominante de A janga<strong>da</strong> de pedra, constitui, assim, um espetáculo<br />

artístico. Mostra-nos Saramago, mais uma vez, que o poético não está nas<br />

coisas, no objeto, como observou Carlos Drummond de Andrade. O poético<br />

instaura-se pelo trabalho artístico do referencial político. Vem dele a imagemação<br />

(e a imaginação) política capaz de concentrar séculos num único momento<br />

- momento mítico que chama a si devir histórico e raízes nacionais.<br />

Tal concentração do tempo no momento <strong>da</strong> criação ficcional fratura o imaginário<br />

convencional a ponto de a calosi<strong>da</strong>de dos Pireneus não impedir o<br />

deslocamento espacial <strong>da</strong> península - um deslocamento, na certa ... "vagabundo",<br />

aos olhos rotineiros que a enunciação atribui aos franceses. Como diz o<br />

filósofo popular José Anaiço, o que conta ao final <strong>da</strong>s contas é o momento, e<br />

este, no sonho diurno de José Saramago, é ibérico.<br />

O excepcional <strong>da</strong> ficção subverte padrões de referência e critérios de<br />

ver<strong>da</strong>de. O momento é de ruptura e reencontro, repetimos, para que o tempo<br />

rotineiro não prossiga em suas mesmices. A concentração fantástica do tempo<br />

- própria <strong>da</strong>s concretizações utópicas - provoca novas on<strong>da</strong>s internas compelindo<br />

a viagem de Dois Cavalos, automóvel e parelha, e seus ocupantes.<br />

São eles levados pelas vagas invisíveis do s(c)isma <strong>da</strong> terra a uma estranha<br />

viagem de autoconhecimento e de reconhecimento <strong>da</strong> península. Ao nível de<br />

pressupostos virtuais, as vagas exteriores, no Atlântico, devem sensibilizar os<br />

novos mundos ibero-americanos, mundos que também emergem <strong>da</strong>s regiões<br />

abissais. Talvez o mensageiro dessas regiões infernais, o misterioso cão<br />

Cérbero, ao não explicitar suas intenções, queira enre<strong>da</strong>r, na ver<strong>da</strong>de, o leitor,<br />

tal como escolheu ao acaso as personagens do romance. A perspectiva de<br />

nova uni<strong>da</strong>de que ele procura trazer como expressão do vir-a-ser imaginado,<br />

não se circunscreve apenas à Ibéria, abrange também a América Latina e as<br />

nações africanas de língua oficial portuguesa. Dado o recado, a península<br />

estaciona, aguar<strong>da</strong>ndo a contraparti<strong>da</strong> dessas nações atlânticas.


92 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

Dentro <strong>da</strong> nova lógica do maravilhoso infernal sonhado, o negativo<br />

emerge e se torna positivo. E Cérbero, que também pode ser chamado de<br />

"Cão Constante", salta do romance Levantado do chão para A janga<strong>da</strong> de<br />

pedra. Na ver<strong>da</strong>de, ele está em múltiplos lugares para exercer com eficácia<br />

sua ação demoníaca. "No reino deste mundo", do lado de cá do risco de Joana<br />

Car<strong>da</strong>, não nos pintamos com colorações negativas. talvez porque menos com<br />

menos, como dizem, dá mais. Nós nos assumimos. Não ocorre assim a<br />

predicação ética negativa do registro do inferno. como acontece na mitologia<br />

clássica ou na Divina comédia. de Dante. A no\a viagem pelas terras infernais<br />

à procura de uma nova identi<strong>da</strong>de nacional na<strong>da</strong> tem de divina, embora seja<br />

maravilhosa e profun<strong>da</strong>mente humana. Em seu horizonte. a velha ética religiosa<br />

<strong>da</strong> referência clássica ou italiana. monoteísta ou politeísta. acaba por<br />

ser comuta<strong>da</strong> pela nova ética político-social.<br />

A estratégia discursiva dominante do romance leva a península a girar<br />

sobre si mesma, em movimentos misteriosos que escapam à lógica estabeleci<strong>da</strong>.<br />

Uma tática, certamente, para fugir dos centros catalizadores europeus e<br />

norte-americanos. São movimentos que eles não dominam, misteriosos. Esses<br />

movimentos escapam ao racionalismo tecnocrático de curto horizonte.<br />

Entretanto, ao nível do destinatário, esse jogo criativo conforma um espaço<br />

de reflexão pelo efeito <strong>da</strong> mensagem que se "levanta do chão". Essa manifestação<br />

do futuro fecun<strong>da</strong> a todos e a tudo, não só as personagens femininas.<br />

Em gestação está a própria península ibérica que, como criança prestes a<br />

nascer, também dá suas cambalhotas. E, com traquinagens dessa natureza,<br />

que escapam ao senso comum, começa a operar em seu interior ampla transformação<br />

política, econômica e cultural.<br />

Cria-se, assim, na ficção de A janga<strong>da</strong> de pedra, imagens-ação identifica<strong>da</strong>s<br />

com o devir emergente no útero aquático. Tudo, repetimos, por obra <strong>da</strong><br />

concentração do tempo histórico num único momento - "momento principal"<br />

- que permitiu a expressão do futuro desejado. Importa, qualitativamente,<br />

esse momento estranho, que escapa à compreensão do conjunto <strong>da</strong>s nações<br />

européias. Aí o inferno ibérico só consegue sensibilizar, subversivamente, os<br />

jovens, logo sufocados em sua rebeldia pela autori<strong>da</strong>de paterna.<br />

No útero aquático, o "novo" ibérico estaciona numa região geopolítica<br />

que não é de calmarias. Como a janga<strong>da</strong> se alimenta de matéria temporal, a<br />

para<strong>da</strong> é estratégica, como indicamos. Envolvi<strong>da</strong> no útero, ela espera onde<br />

aportar, sem calosi<strong>da</strong>des como as <strong>da</strong>s regiões pirenaicas. Para tanto, países<br />

infernais <strong>da</strong> condição mestiça, <strong>da</strong> mesma forma que os <strong>da</strong> Ibéria, também<br />

precisam jogar suas pedras no oceano comum, como o fez Joaquim Sassa. Na<br />

água esbati<strong>da</strong>, terão origem círculos concêntricos de vagas, em expansão. Os<br />

vários círculos nacionais, por certo, deverão se encontrar, transformando<br />

regiões de turbulências em novos círculos mais amplos, para dessa forma o


Necessi<strong>da</strong>de e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de nos estudos de literatura compara<strong>da</strong> 93<br />

conjunto confluir para a nossa maneira de ser mestiça - nós: ibéricos, africanos,<br />

ibero-americanos.<br />

Como se vê, a fantasia de Joaquim Sassa - uma <strong>da</strong>s personagens do<br />

romance - tem uma dimensão maior. Um lance aparentemente fortuito é<br />

realçado, pela força do imaginário político, numa on<strong>da</strong> fabulosa. Fruto <strong>da</strong><br />

concentração do tempo, ela procura propagar-se como um mar vital mais<br />

amplo, que pode envolver, em especial, também brasileiros e africanos de<br />

língua oficial portuguesa. São espaços abertos que ficaram do lado de cá do<br />

risco de Joana Car<strong>da</strong>, enfatizamos. Se para o europeu tradicional a África<br />

começa nos Pirineus, a janga<strong>da</strong> aponta para uma situação mais infernal ain<strong>da</strong><br />

para o pensamento preconceituoso: aí começam também as Américas e a<br />

Ásia.<br />

Apropriando-nos, a nossa maneira, de Fernando Pessoa, em cujas águas<br />

também navega subversivamente a janga<strong>da</strong> como contexto, o contexto de<br />

Própero, invertendo perspectivas, podemos afirmar, finalizando, que em oposição<br />

ao que o europeu considera miticamente como "na<strong>da</strong>", podemos nós,<br />

infernais. historicizar/dialetizar o mito, situando-o como "tudo". O que para<br />

ele é "na<strong>da</strong>", para nós é "tudo". Isto é, a nossa própria identi<strong>da</strong>de, não apenas<br />

imagina<strong>da</strong> como um rito mítico, mas conquista<strong>da</strong> na práxis. Como uma<br />

janga<strong>da</strong> num mar vital, a utopia, <strong>da</strong> mesma forma que na efabulação maravilhosa<br />

de Saramago, também aqui deve aportar - o futuro se fazendo presente<br />

- a comuni<strong>da</strong>de cultural ibero-afro-americana.<br />

3<br />

A identi<strong>da</strong>de crioula permite-nos assim sonhar com uma comuni<strong>da</strong>de<br />

ibero-afro-americana. Ao nível oficial, já foram realizados dois encontros de<br />

presidentes <strong>da</strong> República, o último realizado na Bahia. Como sempre, ao final<br />

dos eventos. surgem documentos que são cartas de boas intenções. Contra a<br />

implementação de medi<strong>da</strong>s mais concretas colocam-se os dois pólos hegemônicos<br />

de atração: os Estados Unidos e a C. E. E. É sintomático que os jornais<br />

e demais mídias têm procurado ridicularizar esses encontros antes mesmo de<br />

suas realizações. Faz parte <strong>da</strong> ideologia dos Prósperos neoliberais descartar<br />

como ultrapassado tudo aquilo que escapar ao controle supranacional do<br />

liberalismo. Se o texto de Shakespeare foi escrito no momento em que o<br />

liberalismo era um sonho burguês, agora os Prósperos tornaram-se os donos<br />

do mundo. E a utopia neoliberal é coloca<strong>da</strong> como ponto de chega<strong>da</strong>, não só<br />

para a burguesia como para o conjunto <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Para a ótica neoliberal<br />

é chegado assim o momento (o seu momento) de paralisar a história.<br />

Dessa forma, por decreto indeterminado e não sabido dos meios de<br />

comunicação, respal<strong>da</strong>dos pelas expectativas dominantes <strong>da</strong> intelectuali<strong>da</strong>de<br />

dos países situados ao norte do Equador e, como sempre, reproduzidos ao sul


94 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

- o espelho de Próspero -, tem-se enfatizado, a convicção de que no mundo<br />

atual já não há mais espaço para o pensamento utópico. A vi<strong>da</strong> contemporâ­<br />

nea, reduzi<strong>da</strong> à ênfase na esfera do privado, já seria manifestação de uma<br />

liber<strong>da</strong>de plena e ponto de chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> democracia. Ain<strong>da</strong> mais, a nova<br />

situação descartaria sonhos de plenitudes, situa<strong>da</strong>s como abstrações sem<br />

sentido real. Pior, esses figurinos procuram imbricar os sonhos de plenitudes<br />

que percorrem a história de nova civilização com o autoritarismo. Os sonhos<br />

de plenitude, para essas formulações, além de quimeras, seriam avessos à<br />

liber<strong>da</strong>de individual.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, entendemos que o próprio postulado de hipertrofia do privado<br />

não deixa de ser utópico, pois aponta para um mundo sem fronteiras para<br />

o indivíduo, no domínio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> econômica, social, política e cultural. Neste<br />

momento de abolição de fronteiras, em que se esboroam os estados nacionais,<br />

o indivíduo emerge como espetáculo, um espaço individualista. A própria<br />

história não mais teria razão de existir, já que o momento presente - diríamos<br />

nós, como espaço de configuração utópica, que a ideologia neoliberal não<br />

reconhece enquanto utopia - traria em si um repertório cultural a-histórico,<br />

podendo associá-lo em combinações de objetos ao gosto dos indivíduos,<br />

libertos, assim, <strong>da</strong> preocupação com o devi r. A vi<strong>da</strong> seria um eterno presente<br />

- liberal e democrático.<br />

Como qualquer utopia, essa aspiração é ideológica - um conjunto de<br />

idéias-força, no sentido genérico de ideologia -ligado aos sonhos do liberalismo.<br />

Um sonho libertário, entendemos, associado à perspectiva de um<br />

grupo social. Nesse sentido, a ideologia é manifestação cultural de "falsa<br />

consciência": a materialização desse sonho não seria apenas uma aspiração<br />

de grupo liberal, mas de todos os indivíduos - o sonho de um grupo espraian­<br />

do-se para to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de.<br />

A essa perspectiva, podemos opor uma outra, no campo de nossa competência<br />

- uma outra idéia-força que não se situa apenas num depois. São<br />

virtuali<strong>da</strong>des comuns aos países localizados ao sul do Equador <strong>da</strong> nuestra<br />

américa mestiza e que nos permitem participar do sonho diurno <strong>da</strong> integração<br />

ibero-afro-americana. Em termos de literatura compara<strong>da</strong>, este sonho se<br />

materializa no comparatismo <strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, que, na situação brasileira, se<br />

concretiza em laça<strong>da</strong>s dirigi<strong>da</strong>s à América Latina e aos países de língua<br />

portuguesa.<br />

Esse comparatismo <strong>da</strong> ordem <strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de deve levar a uma circulação<br />

mais intensa de nossos repertórios culturais. Se circunstâncias históricas<br />

têm-nos colocado à evidência <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de do comparatismo norte-sul para<br />

o estudo de nossas apropriações calibanescas, o momento atual - em face <strong>da</strong><br />

ênfase universal na procura de afini<strong>da</strong>des culturais - direciona-nos para o<br />

contrapolo dialético <strong>da</strong> tendência globalizadora.


Necessi<strong>da</strong>de e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de nos estudos de literatura compara<strong>da</strong> 95<br />

Talvez fosse o caso de irmos um pouco além (não muito, para que a<br />

dialética seja operacional). Os repertórios culturais de nossa condição mestiça<br />

(crioula) têm, na sua maneira de ser, uma universali<strong>da</strong>de cosi<strong>da</strong> de dentro,<br />

que dá vez ao diferente. A globalização massificadora, ao contrário, é unidirecional<br />

e procura paralisar o outro, inclusive nos centros de hegemonia. É<br />

em razão dessa tendência que o comparatismo histórico norte-sul, ao sul do<br />

Equador, <strong>da</strong> ordem <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de, tem <strong>da</strong>do lugar, ao comparatismo <strong>da</strong><br />

soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de. As afini<strong>da</strong>des sociais de grupos minoritários têm permitido<br />

uma circulação transnacional que não segue os parâmetros <strong>da</strong> globalização<br />

estan<strong>da</strong>rdiza<strong>da</strong>.<br />

Entretanto - e para fecho desta exposição -, entendemos que o momento<br />

solicita a marcação de nosso solo crioulo, com a universali<strong>da</strong>de de sua<br />

maneira de ser. Essa mesma maneira de ser, aberta, sem xenofobismo, convi<strong>da</strong><br />

os outros, ao norte do Equador, a descobrirem o que em nós existe como<br />

marcas de suas identi<strong>da</strong>des - uma identi<strong>da</strong>de historicamente também modela<strong>da</strong><br />

a partir desses centros. Enfatizamos nosso descentramento de perspectivas<br />

- descentramento equivalente ao reivindicado pelo grupos de resistência<br />

à estan<strong>da</strong>rdização dos países não periféricos -, convi<strong>da</strong>ndo-os também a se<br />

imaginarem, de forma equivalente, dentro <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de crioula - uma<br />

universali<strong>da</strong>de que se faz para frente, enlaçando carências, mais do que por<br />

referência exclusiva ao passado.


I. ESQUIVEL, Laura. Como<br />

agua para clUJco/ate. Nt1\Ie/a<br />

de entregas mensuales con recetas,<br />

amores, y remedios cu·<br />

sem.l" México: Planeta, 1989.<br />

___ , guionista. Como<br />

agua para chocolate. Dir. Alfonso<br />

Arau. Prod. Alfonso<br />

Arau. Con Lumi CavalOS,<br />

Marco Leonardi. México,<br />

1991. 114min.<br />

2 Los libros de cocina mexicanos<br />

dei siglo diecinueve a menudo<br />

eran escritos y cosidos a<br />

mano y pasaban de una generación<br />

a otra. Yo tengo la suerte<br />

de haber here<strong>da</strong>do uno. Las<br />

recetas y los remedios casems<br />

están presentados en una narrativa<br />

junto con historias que<br />

vienen ai caso a causa de la<br />

receta de turno. En los Estados<br />

Unidos la primem edición de<br />

The foy of Cookinl! (New<br />

York: Bobbs, 1931) de Irma S.<br />

Rombauer seguía esta Iradición.<br />

Desafortuna<strong>da</strong>mente, su<br />

hija, Marion Becker (I 963), ha<br />

descontinuado la narrativa.<br />

3. GALVÁN, Mariano. Calen<strong>da</strong>rio<br />

para las senoritas mexica·<br />

nas. México: Imprenta de Mariano<br />

Murguía, 1838.<br />

La creativi<strong>da</strong>d artística<br />

de la mujer: Como agua<br />

para chocolate<br />

Maria Elena de Valdes<br />

Para Tânia Franco Carvalhal y<br />

Maria Lúcia Rocha-Coutinlw<br />

Como agua para chocolate es la primera novela de la escritora mexicana<br />

Laura EsquiveI (1950-). Publica<strong>da</strong> en 1989 en espafíol, para 1992, aI estrenarse<br />

la película deI mismo título, ya se había traducido a casi to<strong>da</strong>s las<br />

lenguas europeas. 1 Como el guión cinematográfico también fue escrito por<br />

Esquivei, tanto la novela como el film ofrecen una excelente oportuni<strong>da</strong>d<br />

para examinar el juego entre la representación visual y verbal de la mujer.<br />

El estudio de las imagénes visuales y verbales debe comenzar con el<br />

entendimiento que tanto la novela y, en menor grado, la película trabajan<br />

como parodia de un género. El género es la versión mexicana de literatura de<br />

mujeres publica<strong>da</strong> en entregas mensuales, junto con recetas, remedios caseros,<br />

patrones de costura, poemas, exhortaciones morales, ideas para decorar<br />

el hogar y el calen<strong>da</strong>rio de fies tas religiosas. En breve, este género en el siglo<br />

diecinueve es el precursor de lo que se conoce como las historias de amor de<br />

<strong>revista</strong>s de mujeres.2 Alrededor de 1850 estas publicaciones en México se<br />

conocían con el nombre de "Calen<strong>da</strong>rios para sefioritas."3 Ya que la casa y la<br />

iglesia eran el espacio privado y público de to<strong>da</strong> seiíorita educa<strong>da</strong>, estas<br />

publicaciones representaban la contraparte escrita para la socialización de la<br />

mujer y, como tales, son documentos que conservan y transmiten la cultura<br />

de la mujer mexicana en un contexto social y un espacio cultural particular<br />

para mujeres por mujeres.


98 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

Fue alrededor de 1850 que la narrativa empezó a tomar una parte prominente;<br />

primero, con descripciones de excursiones para la familia, narraciones<br />

morales, o recetas de cocina. Para 1860 la novela en episodios seguía a la<br />

receta de cocina o a la excursión recomen<strong>da</strong><strong>da</strong>. Historias de amor de mayor<br />

elaboración empezaron a aparecer con regulari<strong>da</strong>d hacia 1880. El género no<br />

era considerado como literatura por la crítica literaria debido a las tramas por<br />

episodios, el sentimentalismo y los personajes estereotipados. Para el principio<br />

deI siglo to<strong>da</strong> mujer que leía, era o había sido lectora ávi<strong>da</strong> deI género. La<br />

cultura literaria mexicana, domina<strong>da</strong> por hombres, no ha prestado atención a<br />

la reali<strong>da</strong>d de que estas novelas estaban narra<strong>da</strong>s con palabras propias de<br />

inferencias y referencias a la cocina y la vivien<strong>da</strong>, desconoci<strong>da</strong>s de manera<br />

<strong>completa</strong> por los hombres.<br />

Más alIá de las tramas sencilIas había una intrahistoria de la vi<strong>da</strong> cotidiana<br />

con las múltiples restricciones impuestas a la mujer de esta clase social.<br />

La caracterización seguía la forma de vi<strong>da</strong> de estas mujeres y no su individuali<strong>da</strong>d,<br />

con las resultas que las heroínas eran las sobrevivientes, las que<br />

habían tenido una vi<strong>da</strong> lIena a pesar de la institución deI matrimonio que, en<br />

teoría si no en práctica, era una forma de esclavitud perpetua donde la mujer<br />

pasaba de servir a su padre y hermanos a servir a su marido e hijos, junto con<br />

sus hijas y las mujeres deI servicio. La narrativa de esta esfera de mujeres se<br />

concentraba en cómo transcender estas condiciones de vi<strong>da</strong> y expresarse en<br />

relaciones amorosas y con creativi<strong>da</strong>d.4<br />

Las posibili<strong>da</strong>des creativas para la mujer mexicana eran a través de la<br />

cocina, la costura, las labores bor<strong>da</strong><strong>da</strong>s y, por supuesto, la conversación,<br />

contar historias y <strong>da</strong>r consejos.5 Había algunas mujeres para las que escribir<br />

era una extensión natural de la conversación; si se conocen los códigos<br />

sociales de estas mujeres se puede leer estas novelas como un modo de vi<strong>da</strong><br />

dei siglo diecinueve en México. EI reconocimiento que Laura Esquivei hace<br />

de ese mundo y su lenguaje es parte de la herencia de mujeres con coraje que<br />

crearon una cultura de y para la mujer dentro de la reclusión social dei<br />

matrimo ni 0.6<br />

Como agua para chocolate es una parodia de la literatura popular de<br />

mujeres dei siglo diecinue\'e. dei mismo modo que DOIl Quijote es una<br />

parodia dei género conocido como novela de caballerías. Ambas eran expresiones<br />

de cultura popular y creaban un espacio único para una parte de la<br />

población. La definición de parodia que uso es la de la representación de una<br />

reali<strong>da</strong>d modelo, que es en sí una representación particular de una reali<strong>da</strong>d.<br />

La representación paródica expone las convenciones dei modelo y pone en<br />

evidencia sus mecanismos a través de la coexistencia de los dos códigos en<br />

el mismo mensaje.7 Por supuesto que para que la parodia funcione a su más<br />

alto nivel de representación doble, tanto la parodia como el modelo paródico<br />

deben estar presentes en la experiencia de lectura. Esquivei crea esa duali<strong>da</strong>d<br />

4. La crítica feminista estadou­<br />

nidense Elaine Showalter re­<br />

conoció hace quince anos que<br />

la situación cultural de la mu­<br />

jer tiene que ser el punto de<br />

parti<strong>da</strong> para cualquier consideración<br />

estética de su obra. Es­<br />

cribe que las mujeres han sido<br />

considera<strong>da</strong>s como "camaleo­<br />

nes sociológicos" que aceptan<br />

la elase, estilo de vi<strong>da</strong> y cultura<br />

de sus familiares varones, pero<br />

que se puede discutir que las<br />

mismas mujeres constituyen<br />

una subcultura dentro deI mar­<br />

co de la socie<strong>da</strong>d y que han<br />

estado uni<strong>da</strong>s por valores, con­<br />

venciones, experiencias y con­<br />

ductas que afectan a ca<strong>da</strong> indi­<br />

viduo (V SHOWALTER, Elaine.<br />

A Lilerature oI' Their Own.<br />

Princeton: Princeton Univ.<br />

Press, 1982, 3-36.<br />

5. EI esfuerzo de la artista esta­<br />

dounidense Judy Chicago de<br />

concientizar a las mujeres so­<br />

bre el trabajo estético que pro­<br />

ducen en 8US propias casas ha<br />

sido revolucionaria. La novela<br />

de Laura EsquiveI está escrita<br />

como un reconocimiento me­<br />

xicano de esta forma artística<br />

de mujeres. Judy Chicago es­<br />

cribe: "Una cena donde las tra­<br />

diciones de la familia son pa­<br />

sa<strong>da</strong>s de generación a genera­<br />

ción como el mantel hecho por<br />

la ama<strong>da</strong> abuela y guar<strong>da</strong>do<br />

con cui<strong>da</strong>do. Una cena donde<br />

las mujeres proveen un am­<br />

biente de comodi<strong>da</strong>d. un arre­<br />

glo elegante. y una comi<strong>da</strong> nu­<br />

tritiva y estéticamente agra<strong>da</strong>­<br />

ble. Una cena donde las<br />

mujeres logran que los invita­<br />

dos estén cómodos y facilitan<br />

la comunicación entre todos.<br />

Una cena, una obra tradicional<br />

de mujeres, que requiere tanto<br />

de generosi<strong>da</strong>d como de sacri­<br />

ficio personal" (V CHICAGO,<br />

Judy. Emhmiderinl! Our Heritalle.<br />

Garden City, NJ: DOllble<strong>da</strong>y,<br />

1980,8-21; mi trad.).<br />

6. La novela y la película han<br />

recibido numerosas resefias al-


ededor dei mundo. Ca<strong>da</strong> crítico<br />

encuentra puntos de com·<br />

paración a la cultura local y, de<br />

modos diversos, expresafascinación<br />

o desrnayo a lo que él o<br />

ella lIama el realismo mágico<br />

de la novela o la película. Claro<br />

que realismo mágico es una<br />

categoría inventa<strong>da</strong> por críticos<br />

que no son de nuestra<br />

América Latina. Las di men­<br />

siones de la reali<strong>da</strong>d latinoamericana<br />

son parte de la tradición<br />

oral y la ereación híbri<strong>da</strong><br />

de extrema heterogenei<strong>da</strong>d. La<br />

mejor reseiía latinoamerieana<br />

que yo he leído es la de Carmen<br />

Ramos Eseand6n (Receta<br />

y femenei<strong>da</strong>d en Como al:ua<br />

para chocolate. fem.15.102<br />

(1991): 45-48.<br />

7 BEN-PORAT, Ziva. Method in<br />

Madness: Notes on the Strueture<br />

of Parody, Based on MAD<br />

TV Satires. Politics To<strong>da</strong>)'<br />

1:245-72, 1979.<br />

". SOUSTELLE, Jaeques. La vi<strong>da</strong><br />

cotidiana de los aztecas. Tr.<br />

Carlos Villegas. México: Fondo<br />

de Cultura Económiea,<br />

1970.<br />

La creativi<strong>da</strong>d artistica de la mujer 99<br />

de diversas maneras; primero, intitula su novela, Como agua para chocolate,<br />

que es no sólo en sí parte deI código lingüístico que quiere decir agua aI punto<br />

de hervir, y que se usa en México como símil para describir una ocurrencia o<br />

una relación que es tan tensa, caliente y extraordinaria que sólo se compara<br />

aI agua ardiendo que se necesita para la preparación de esa mexicanísima<br />

bebi<strong>da</strong> que <strong>da</strong>ta deI siglo trece: chocolate.8 Segundo, el subtítulo, tomado<br />

directamente deI modelo: "Novela de entregas mensuales con recetas, amores<br />

y remedios caseros." EI título y el subtítulo cubren el modelo y la parodia.<br />

Tercero, la lectora se encuentra aI abrir el Iibro, no con un epígrafe de una<br />

autori<strong>da</strong>d culta sino que con un proverbio tradicional mexicano: "A la mesa<br />

y a la cama, una sola vez se llama." EI grabado que decora la página es la<br />

tradicional estufa de cocinar deI siglo diecinueve. La cuarta y más explícita<br />

técnica paródica es que EsquiveI reproduce el formato de su modelo a través<br />

deI texto. Ca<strong>da</strong> capítulo lleva el mes, la receta deI mes y la lista de los<br />

ingredientes. La narración que sigue es una combinación de instrucciones<br />

directas de cómo preparar el plato deI mes, mezcla<strong>da</strong> con una relación de los<br />

amores en los días de la tía abuela de la narradora.<br />

La narración pasa de primera persona a la voz de tercera persona de la<br />

narradora omnisciente. Ca<strong>da</strong> capítulo termina con la información que la<br />

historia continuará y un anuncio de cuál será la receta deI mes siguiente, es<br />

decir, el siguiente capítulo. Estos elementos que siguen aI modelo no son<br />

mera decoración. Las recetas y su preparación así como los remedios caseros<br />

y su aplicación son parte intrínseca de la historia. Por lo tanto, hay una<br />

relación simbiótica entre la novela y su modelo en la experiencia de lectura.<br />

Ca<strong>da</strong> una se nutre de la otra.<br />

En este ensayo me interesa profundizar sobre la forma de vi<strong>da</strong> deI sujeto<br />

humano, específicamente cómo se desarrolla el sujeto femenino en y a través<br />

de la lengua y su significación visual en el contexto específico de lugar y<br />

tiempo. Las imágenes verbales de la novela utilizan un elaborado sistema<br />

significativo de la lengua como un mundo hecho, una vi vencia. La imagen<br />

visual que expande la narrativa aI principio deI film, pronto toma su propio<br />

lugar como un sistema significante, no lingüístico, nutriéndose de su propio<br />

repertorio de referenciali<strong>da</strong>d, y establece un modelo diferente deI sujeto<br />

humano que aquel eluci<strong>da</strong>do sólo por la imagen verbal. Mi intención es<br />

examinar el sistema significante novelístico y el modelo así establecido y<br />

luego seguir con el sistema significante cinemático y su modelo.<br />

La voz narrativa o el sujeto hablante en la novela, se caracteriza a sí<br />

misma, como Emile Benveniste ha sefíalado, como la presencia viva que<br />

habla. La voz narrativa comienza en primera persona, hablando en el espafíol<br />

mexicano de conversación coloquial de una mujer deI norte de México, cerca<br />

de la frontera de los Estados Unidos. Como to<strong>da</strong> habla mexicana, está claramente<br />

marca<strong>da</strong> por un registro e indicadores socioculturales de la clase


100 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, na 3<br />

media. mezclando el uso coloquial con el espano!. El punto de entra<strong>da</strong> es<br />

siempre el mismo, una mujer dirigiéndose a otras, diciéndoles cómo preparar<br />

el platillo que está recomen<strong>da</strong>ndo. Mientras cocina, es natural que la cocinera<br />

haga interesante la sesión contando una historia inspira<strong>da</strong> por la preparación<br />

previa de esta receta. Sin esfuerzo pasa de instructora culinaria en primera<br />

persona a narradora de historias, cambiando a tercera persona y, gradualmente,<br />

se apropia deI tiempo y lugar y refigura un mundo social.<br />

Surge una imagen verbal de la mujer perteneciente a la clase media rural:<br />

debe ser fuerte y más inteligente que los hombres que se supone la protegen.<br />

Debe ser piadosa, esposa y madre. Tiene que tener sumo cui<strong>da</strong>do en sus<br />

relaciones sentimentales y, de gran importancia, debe de estar en control de<br />

todo en su casa, lo cual quiere decir, esencialmente, la cocina y el dormitorio,<br />

es decir, comi<strong>da</strong> y sexo.<br />

Hay cuatro mujeres en la familia: Elena, la madre, y sus tres hijas:<br />

Rosaura, Gertrudis y Josefita, llama<strong>da</strong> Tita. La manera de vivir dentro de los<br />

límites de este modelo está demostra<strong>da</strong> primero por la madre que se piensa la<br />

reencarnación deI modelo. La interpretación de Elena deI modelo es de<br />

control y dominio completo de to<strong>da</strong> su casa y de todos en su casa. Está<br />

representa<strong>da</strong> a través de un filtro de asombro y temor, ya que la fuente<br />

narrativa es el diario-recetario de cocina de Tita, que lo empezó a escribir en<br />

1910 cuando tenía quince anos, y que ahora nos es transmitido por su sobrina<br />

nieta. Las imágenes visuales que caracterizan a Mamá Elena deben entenderse<br />

como las que tiene de ella su hija menor, Tita, quien desde pequena ha sido<br />

transforma<strong>da</strong> en su sirvienta persona!.<br />

Mamá Elena está presenta<strong>da</strong> como una mujer autosuficiente. fuerte, con<br />

autori<strong>da</strong>d absoluta sobre sus hijas y sirvientes. especialmente Tita, quien<br />

desde su nacimiento ha sido destina<strong>da</strong> a la soltería porque tiene que cui<strong>da</strong>r y<br />

dedicarse totalmente a su madre mientras ésta viva. Mamá Elena cree en<br />

guar<strong>da</strong>r las regIas, sus regIas. Aunque sigue las normas de su socie<strong>da</strong>d e<br />

iglesia, secretamente ha tenido una relación adúltera con un mulato y su<br />

segun<strong>da</strong> hija, Gertrudis, es el fruto de esa relación. Esta transgresión de las<br />

normas de conducta permanece escondi<strong>da</strong> de todos, aunque hay rumores,<br />

pero Tita sólo descubre que Gertrudis es su media hermana después de la<br />

muerte de su madre. La tiranía impuesta sobre las tres hermanas es el modelo<br />

rígido, disenado sin clemencia por Mamá Elena y ca<strong>da</strong> una de las tres hijas<br />

responde a su manera.<br />

Rosaura, la mayor, nunca du<strong>da</strong> de la suma autori<strong>da</strong>d de su madre y la<br />

obedece a ciegas; después de su matrimonio con Pedro se convierte en una<br />

insignificante imitación de Mamá Elena. Le falta la fuerza y la determinación<br />

de Mamá Elena y trata de compensar esta falta invocando el modelo de su<br />

madre como la autori<strong>da</strong>d absoluta. Por lo tanto, trata de vivir su vi<strong>da</strong> reme-


9 EI trabajo previo de Laura<br />

EsquiveI había sido como<br />

guionista cinematográfica. Su<br />

guión para la película Chido<br />

Guan, el Tacos de Oro (1985)<br />

fue nominado para un Ariel en<br />

México, premio que ganó<br />

acho afios después por Como<br />

uKua para chocolate.<br />

La creativi<strong>da</strong>d artistica de la mujer 101<br />

<strong>da</strong>ndo a Mamá Elena, pero no logra más que una débil imitación ya que ella<br />

misma no tiene autori<strong>da</strong>d alguna,<br />

Gertrudis, la segun<strong>da</strong> de las tres hijas, no reta a su madre pero responde<br />

a sus propias emociones y pasiones de una manera directa, no apropia<strong>da</strong> a su<br />

situación social. Esto la lleva a fugarse de su casa y de la autori<strong>da</strong>d de su<br />

madre. Después escapa deI prostíbulo donde había ido a <strong>da</strong>r y se une aI<br />

ejército revolucionario llegando aI grado de general, toma un subordinado<br />

como amante y después marido. Cuando regresa aI rancho de su familia va<br />

vesti<strong>da</strong> como hombre y <strong>da</strong> órdenes como un hombre.<br />

Tita.la más jo\"en de las tres. se queja de las regIas arbitrarias de su madre<br />

pero no puede escapar hasta que temporalmente pierde la razón. Tita puede<br />

sobrevivir ya que transfiere su amor. alegría. tristeza e ira a la preparación de<br />

la comi<strong>da</strong>. Las emociones y pasiones de Tita son el ímpetu para su expresión<br />

y acción pero no a través de las normas acostumbra<strong>da</strong>s de comunicación sino<br />

que a través de la comi<strong>da</strong> que prepara. Por lo tanto, puede consumar su amor<br />

con Pedro a través de su arte culinario:<br />

Tal parecía que en un extraiío fenómeno de alquimia su ser se había disuelto en la salsa<br />

de rosas, en el cuerpo de las codornices. en el vino y en ca<strong>da</strong> uno de los olores de la<br />

comi<strong>da</strong>. De esta manera penetraba en el cuerpo de Pedro, voluptuosa, aromática,<br />

calurosa, <strong>completa</strong>mente sensual (57).<br />

Está claro que esto es mucho más que comunicación a través de comi<strong>da</strong>,<br />

o un afrodisiaco, ésta es una especie de transubstanciación sexual por la cual<br />

la salsa de pétalos de rosa y las codornices se han convertido en el cuerpo de<br />

Tita.<br />

Es así como la lectora, o ellector, lIega a conocer a estas mujeres como<br />

personas, pero sobre todo se involucra con el sujeto deI pasado que habla,<br />

representa<strong>da</strong> por la sobrina nieta que transmite su historia y su arte culinario.<br />

La lectora recibe comi<strong>da</strong> verbal para la refiguración imaginativa de la<br />

respuesta de una mujer aI modelo que se le ha impuesto por un accidente de<br />

nacimiento. EI cuerpo de estas mujeres es el lugar habitado. Las cuestiones<br />

esenciales de salud, enferme<strong>da</strong>d, prefiez, parto y sexuali<strong>da</strong>d están ata<strong>da</strong>s<br />

directamente en esta novela a las necesi<strong>da</strong>des físicas y emocionales deI<br />

cuerpo. EI preparar y comer es la representación simbólica deI vivir y ellibro<br />

de cocina de Tita <strong>da</strong> a su sobrina Esperanza, y a la hija de ésta, la creación de<br />

un espacio propio de mujer en un mundo hóstil.<br />

La a<strong>da</strong>ptación fílmica no sólo ha sido escrita por la autora de la novela,<br />

sino que en este caso el escribir este guión de la película representa un regreso<br />

de Laura EsquiveI aI género más practicado por ella antes de escribir la<br />

novela.9 Hay muchas indicaciones de factores cinematográficos en la novela<br />

sobre todo de numerosos cortes y fade-outs de la historia que <strong>da</strong>n prominen-


102 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

cia a la preparaci6n de comi<strong>da</strong>. Ellenguaje visual de la cámara es intruso y<br />

puede envolver a su sujeto en un lenguaje visual que es el de un voyeur, o<br />

puede reemplazar la referenciali<strong>da</strong>d verbal y envolver aI vidente por completo<br />

en una corporali<strong>da</strong>d concreta. Por ejemplo, la prirnera escena aI comenzar<br />

la película llena la pantalla con una cebolla que se está cortando y que<br />

sumerge ai vidente en la preparaci6n de comi<strong>da</strong> de una manera que ninguna<br />

palabra habla<strong>da</strong> puede igualar por su efecto inmediato. De igual manera, las<br />

numerosas escenas enfoca<strong>da</strong>s en preparar, servir y comer los alimentos,<br />

elevan el dominio de la presentaci6n de preparar comi<strong>da</strong> y comerIa tanto a<br />

una de consumo y ritual social. Podemos hacer un contraste de estas imágenes<br />

y este énfasis en la alegría, sensuali<strong>da</strong>d y hasta lujuria de comer la comi<strong>da</strong><br />

mexicana de la cocina de Tita con las escenas de los monjes comiendo en El<br />

nombre de la rosa de AnnaudlO o con la carne cru <strong>da</strong> en el refectorio deI<br />

monasterio donde el énfasis reside en la negación deI cuerpo a través de<br />

moritificaciones. Por otra parte, la película La fiesta de Babete de Gabriel<br />

Axelll contiene los dos polos opuestos entre gratificaci6n y mortificaci6n deI<br />

cuerpo. Las dos hijas deI pastor protestante substituyen a la vi<strong>da</strong> con la<br />

práctica religiosa y comen para castigar aI cuerpo; de repente, están expuestas<br />

ai refinamiento de comi<strong>da</strong> como arte, placer y gratificaci6n. En el film Como<br />

agua para chocolate la preparaci6n de la comi<strong>da</strong> está expresa<strong>da</strong> visualmente<br />

y el consumo de la comi<strong>da</strong> se ve en la cara de los que comen, pero hay que<br />

enfatizar que hay una gama <strong>completa</strong> de efectos aquí que van deI extasis a la<br />

nausea.<br />

Quizás la diferencia más grande entre la novela y el filmo está en que hay<br />

en la película un intertexto que evoca el cuento de ha<strong>da</strong>s de Cenicienta aI usar<br />

las apariciones fantasmales de la madre y aI hacer que su muerte sea el<br />

resultado deI as alto aI rancho por los revolucionarios. En la novela ella muere<br />

mucho después deI ataque y languidece en una casi Iocura, convenci<strong>da</strong> de que<br />

Tita la está tratando de envenenar. AI recortar en el film la muerte de Mamá<br />

Elena a un episodio violento y hacer que su espectro regrese a amenazar a<br />

Tita hasta que Tita pue<strong>da</strong> renunciar su herencia, el film hace de Tita una<br />

especie de Cenicienta, víctima de abuso personal. En la novela la rigidez y<br />

frial<strong>da</strong>d de Mamá Elena es ante todo sociocultural y no especialmente dirigido<br />

a Tita como víctima.<br />

El intertexto visual en lenguaje de cuento de ha<strong>da</strong>s crea un subtexto<br />

efectivo en la pelicula subrayando la opresión de la protagonista y su transcendencia<br />

mágica. En vez de la madrina ha<strong>da</strong>, Tita tiene la voz de Nacha, la<br />

cocinera de la familia que la ha criado desde su nacimiento entre los aromas<br />

y sonidos de la cocina. En lugar de la transformación deI vestido de gala y<br />

carroza para ir aI baile deI principe, Tita puede hacer el amor a través de la<br />

comi<strong>da</strong> que prepara; sin embargo, también puede provocar tristeza y una<br />

agu<strong>da</strong> incomodi<strong>da</strong>d. Tita logra que Pedro no tenga relaciones sexuales con<br />

10. The Name of lhe Rose. Dir.<br />

Jean-Jaeques Annaud. ltalia­<br />

Alemania-Francia, 1986. 130<br />

mino<br />

11. Babená Feast. Dir. Gabriel<br />

Axel. Dinamarca, 1987.<br />

102min.


104 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

mujeres, se pierde un poco en la traducción a otras lenguas, ya que como aI<br />

cocinar el substituir ingredientes cambia el sabor. La representación de las<br />

mujeres en esta novela y película toca esa reserva de significado que es el<br />

cuerpo humano descrito, visto y, en un nivel más profundo, comprendido<br />

como el origen de la identi<strong>da</strong>d.<br />

Las ideas de Giles Deleuze sobre ellenguaje de represión sexual aumentan<br />

considerablemente el peso de una segun<strong>da</strong> lectura de la relación entre<br />

Mamá Elena y Tita. La dominante imposición de la madre de una rotina y<br />

trabajo contínuo en la casa, tiene el resultado superficial de desexualizar la<br />

situación tan carga<strong>da</strong> que se crea cuando Pedro y Rosaura comienzan su vi<strong>da</strong><br />

de casados en el rancho con Mamá Elena y Tita. La obsesión de Pedro por el<br />

cuerpo de Tita y el sentimiento de Tita de ser una mujer castra<strong>da</strong>, crea la<br />

tensión sexual. La sexuali<strong>da</strong>d nunca está reconoci<strong>da</strong>, denota<strong>da</strong> o manifesta<strong>da</strong>.<br />

Es sólo una alusión, una chispa de deseo aI pasar cerca el ser amado, pero en<br />

esta casa toma un lugar más importante que en otra casa donde estuviera<br />

reconoci<strong>da</strong>. Lo más que se niega la sexuali<strong>da</strong>d, lo más que la energía de<br />

desexualización tiene que aplicarse. Lo más que las activi<strong>da</strong>des de Tita se<br />

visten con una febril sexuali<strong>da</strong>d simbólica lo más que la lectora se fija con<br />

atención en todos los gestos, to<strong>da</strong>s las indicaciones que sefialan la atracción<br />

sexual, deseo, pasión, obsesión y, finalmente, fuego. Por lo tanto, se puede<br />

proponer que Mamá Elena, muy a su pesar, es la incitadora de la sexualización<br />

de las acciones de Tita y lleva la atracción primordial de un joven hacia<br />

una jovencita a convertirse en obsesión. Por su parte, Tita trata de escapar de<br />

la condena de castración impuesta por su madre. Lucha por escaparse aI<br />

sublimar su deseo a través de su cocinar, de alimentar con su pecho a su<br />

sobrino Roberto y, cuando esto le es negado, a fugarse temporalmente a<br />

través de la locura. Puede salir de la maldición castrante después de la muerte<br />

de su madre y comprender la represión sexual de Mamá Elena de la cual ella<br />

fue la infeliz víctima.<br />

La separación de la comi<strong>da</strong> de la fisiología deI cuerpo humano tiene su<br />

paralelo cuando se niega la sexuali<strong>da</strong>d cuyo resultado es negar que las<br />

funciones sexuales deI cuerpo también son naturales. Este rechazo deI cuerpo<br />

es el hilo que une a la novela. Desde su nacimiento Titaha sido predestina<strong>da</strong><br />

por su madre a ser nega<strong>da</strong> las funciones sexuales normales: no podrá hacer el<br />

amor, tener un hijo, alimentarlo, sentir afecto íntimo y, mucho menos, placer.<br />

Las razones de Mamá Elena son en parte conveniencia propia y en parte, se<br />

puede suponer, venganza por su propia frustración sexual. Desde su adolescencia<br />

hasta su muerte Tita se revela contra esta condena. Transmite la<br />

sensuali<strong>da</strong>d de una joven enamora<strong>da</strong> a la comi<strong>da</strong> que prepara, aI ambiente que<br />

crea alrededor de sí. La preparación de la comi<strong>da</strong> está directamente liga<strong>da</strong> a<br />

su sexuali<strong>da</strong>d nega<strong>da</strong>. Cuando descubre que sus pechos se han llenado de<br />

leche, en contra de la fisiología deI cuerpo, no comprende cómo es que puede<br />

alimentar a la criatura, pero sí sabe que ha tenido uno de los más profundos


108 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

liberar as obras de suas determinações de época ou de lugar. Em outras<br />

palavras, propôs que, ao invés de se pensar as criações literárias na sua<br />

relação com seu período ou espaço geográfico de produção, como faz a<br />

História <strong>da</strong> Literatura ao associar as obras às regiões onde foram escritas ou<br />

ao momento quando foram publica<strong>da</strong>s, procure-se examiná-Ias enquanto<br />

resposta a uma questão fun<strong>da</strong>mental: como pressupuseram elas a comunicação<br />

com seu interlocutor principal, o leitor? Aresposta a essa pergunta supera<br />

as condições de produção de um texto, pois todos supostamente querem<br />

dialogar com o público; e supera igualmente as delimitações de época e lugar,<br />

porque outra ambição <strong>da</strong> obra literária é permanecer váli<strong>da</strong>. quer dizer,<br />

legível, para além de seu tempo e do espaço geográfico em que foi concebi<strong>da</strong><br />

e realiza<strong>da</strong>.<br />

Machado de Assis e Jorge Luís Borges foram dois escritores que se<br />

depararam com essa questão e tematizaram-na em seus textos. Concebem<br />

uma imagem do leitor, mas também introduzem-na na tessitura do texto. Ao<br />

fazê-lo, revelam que estavam interessados em manter vivo e aceso o diálogo<br />

com o leitor, o que aponta para o caráter social de suas obras. Com isso,<br />

desfazem a crítica de que muitas vezes foram alvo, acusados de se afastarem<br />

de questões políticas marcantes no tempo em que viveram ou até de assumirem<br />

posições conservadoras. Ao fertilizarem seus textos com uma proposta<br />

criativa e multifaceta<strong>da</strong> de comunicação com o leitor, propõem outro modelo<br />

de participação social. Simultaneamente, resolvem um problema candente <strong>da</strong><br />

cultura latino-americana, que, por decorrer do processo de colonização européia<br />

e tender a reproduzi-Ia, pesquisa de modo obsessivo sua originali<strong>da</strong>de,<br />

Eles revelam que o encontro <strong>da</strong> autentici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> literatura não consiste na<br />

representação <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de ou <strong>da</strong>s peculiari<strong>da</strong>des locais, contrapostas às<br />

que migraram do Velho para o Novo Continente. Consiste, isto sim, na<br />

proposta de um confronto com o leitor. agudizando suas percepções e fazendo-o<br />

entender a literatura, por extensão. o mundo que o circun<strong>da</strong>, independentemente<br />

do representado no texto ser conhecido ou ter componentes<br />

realistas. Eis por que se analisam duas criações desses escritores. o poema<br />

"Páli<strong>da</strong> Elvira", de Machado de Assis, e o conto "Tema dei traidor y dei<br />

héroe", de Jorge Luís Borges, que têm em comum não apenas a tematização<br />

<strong>da</strong> relação entre o leitor e a obra ou o leitor e a vi<strong>da</strong>. mas também o fato de<br />

que rejeitam os princípios <strong>da</strong> mimese nativista. Li<strong>da</strong>ndo com figuras fictícias<br />

de tempos e espaços distantes, estão próximos porque seu objeto somos nós<br />

mesmos, seus leitores reais.<br />

O poema "Páli<strong>da</strong> Elvira", publicado em 1870, no livro Falenas, constitui-se<br />

de 97 estrofes, ca<strong>da</strong> uma contendo oito versos decassílabos, num total<br />

de 776 linhas. 5 Nele, um escritor, misto de poeta e pesquisador de manuscritos<br />

antigos, apresenta a história de Elvira, moça que, com o tio, o velho Antero<br />

(p. 184), habita numa casa, junto à encosta de um outeiro (p. 181), à beira de<br />

5 MACHADO DE ASSIS. Páli<strong>da</strong><br />

Elvira. Falenas. In: Machado<br />

de Assis. Poesias. São Paulo:<br />

Mérito. 1959. p. 180-212. To<strong>da</strong>s<br />

as citações provêm dessa<br />

edição; indicaremos apenas as<br />

páginas onde se encontram. O<br />

poema foi publicado originalmente<br />

em 1869. no Jornal <strong>da</strong>s<br />

F amflias, <strong>revista</strong> patrocina<strong>da</strong><br />

pela editora Garnier; no ano de<br />

1870, Machado de Assis in­<br />

cluiu-o no volume de poesias<br />

que denominou Falenas.


o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 109<br />

um lago. O poema é narrativo e, ao longo dos seus versos, conta o romance<br />

<strong>da</strong> moça e de Heitor, poeta que aparece em casa de Antero, promete casar com<br />

a sobrinha, seduz a jovem e foge. Depois de muito vagar pelo mundo, Heitor<br />

retoma, para descobrir que Elvira morrera, mas lhe deixara um filho. Desconsolado,<br />

o rapaz se atira às águas do lago e morre. A última estrofe, logo após<br />

referir o suicídio de Heitor, é interrompi<strong>da</strong>, porque o manuscrito, fonte de<br />

informações do narrador, termina abruptamente. Diz a estrofe:<br />

Pouco tempo depois ouviu-se um grito,<br />

Som de um corpo nas águas resvalado;<br />

À flor <strong>da</strong>s mgas veio um corpo aflito.<br />

Depois ... o sol tranqüilo e o mar calado.<br />

Depois ... Aqui termina o manuscrito,<br />

Que ora em letra de fôrma é publicado,<br />

Nestas estrofes páli<strong>da</strong>s e mansas.<br />

Para te divertir de outras lembranças. (p. 212)<br />

Esta estrofe, a de número CVII, encerra um diálogo encetado no primeiro<br />

verso do poema. Aqui, o narrador se dirige à leitora amiga (p. 180), em que<br />

supõe de imediato uma série de sentimentos e sensações, pois situa a abertura<br />

no texto no horário crepuscular, quando ( ... ) no ocidente / surge a tarde esmaia<strong>da</strong><br />

e pensativa e vem apontando a noite, e a casta diva / [sobe] lentamente pe lo<br />

espaço.(p. 180) Que o cenário se apresente nesses termos é importante, porque<br />

determina as condições para a leitora entender a interiori<strong>da</strong>de de Elvira, protagonista<br />

<strong>da</strong> narrativa a seguir. Porque essa é uma hora de amor e de tristeza, a<br />

leitora pode voar às lúci<strong>da</strong>s esferas, e então entender Elvira<br />

Que assenta<strong>da</strong> à janela, erguendo o rosto,<br />

O V()o solta ti alma que delira<br />

E mergulha IlO azul de um céu de agosto;<br />

Entenderás então porque suspira,<br />

Vítima já de um íntimo desgosto,<br />

A meiga virgem, páli<strong>da</strong> e cala<strong>da</strong>,<br />

Sonhadora, ansiosa e namora<strong>da</strong>. (p. 181)<br />

Assim, a última frase do poema encerra o diálogo começado na primeira;<br />

mas, ao mesmo tempo, dá-lhe outro sentido. O narrador invoca de início uma<br />

leitora amiga que, diante <strong>da</strong> natureza sugestiva, divaga e se alça a vôos<br />

poéticos, as lúci<strong>da</strong>s esferas cita<strong>da</strong>s na segun<strong>da</strong> estrofe, razão pela qual pode<br />

compreender Elvira e se comunicar com a personagem, estabelecendo uma<br />

ponte com ela, condição primeira para o acompanhamento e leitura <strong>da</strong> história<br />

subseqüente, apresenta<strong>da</strong> pelo narrador amistoso. Este, porém, ao final,<br />

apresenta outra faceta de sua amizade: ele deseja distrair o leitor, afastando-o<br />

de outras lembranças. Confessa ter composto um texto ilusionista, que, se faz


110 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

voar, como fazem a leitora e Elvira, também retira-as do contato com a<br />

reali<strong>da</strong>de imediata, talvez menos desejável, porém mais dura.<br />

Eis a contradição aparente do poema de Machado de Assis, nasci<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

proposta do texto, qual seja, o diálogo entre o narrador e o leitor. Este tipo de<br />

interlocução não é exclusivo desta obra, estando presente em outros escritos<br />

de Machado de Assis, autor que amplia as possibili<strong>da</strong>des de representação de<br />

situações de leitura numa obra literária.<br />

Uma dessas possibili<strong>da</strong>des diz respeito à apresentação de cenas de leitura,<br />

como ocorre em vários dos Contos fluminenses,61ivro coetâneo de "Páli<strong>da</strong><br />

Elvira". Nesse, ou nas novelas publica<strong>da</strong>s no período e não aproveita<strong>da</strong>s<br />

naquela coletânea, as personagens, se não são leitoras exemplares, têm suas<br />

preferências demarca<strong>da</strong>s, Paulo e Virgínia sendo a mais constante e mais<br />

característica, como se verifica no trecho abaixo, extraí<strong>da</strong> de um dos textos<br />

mais antigos de Machado de Assis, o conto "Questão de vai<strong>da</strong>de", de 1864:<br />

Na sala. sobre a mesa. estava um livro aberto. Eduardo procurou ler o que era;<br />

levantou-se e foi saciar a curiosi<strong>da</strong>de. Era Paulo e Virgínia Um lenço marcado com<br />

a.firma de Sara. atirado sobre aspllhas abertas. para marcar a página. indicava quem<br />

estivera lendo a obra-prima de Saint-Pierre.7<br />

Outra técnica de Machado de Assis leva-o a segui<strong>da</strong>mente invocar o<br />

leitor de seu próprio texto, estabelecendo com ele afini<strong>da</strong>de e parceria,<br />

segundo um companheirismo que coloca a ambos, narrador e leitor, acima <strong>da</strong><br />

média <strong>da</strong>s personagens e, por conseqüência, acima <strong>da</strong> situação concreta<br />

representa<strong>da</strong> no texto, que, pelo seu realismo, está muito próxima <strong>da</strong> experiência<br />

existencial do público do escritor. Essa familiari<strong>da</strong>de pode ser verifica<strong>da</strong><br />

no mesmo "Questão de vai<strong>da</strong>de", em que o narrador imagina uma cena<br />

em que ambos, ele e o leitor, este um indivíduo perspicaz e apto para sofrer<br />

uma narrativa de princípio afim, compartilham um ambiente comum, íntimo<br />

e qualificado para a apresentação de histórias, ficcionais ou verídicas:<br />

Suponha o leitor que somos conhecidos velhos. Estamos ambos entre as quatro<br />

paredes de uma sala; o leitor assentado em uma cadeira com as pernas sobre a mesa.<br />

à mo<strong>da</strong> americana. eu a.fio comprido em uma rede do Pará que se balouça voluptuosamente.<br />

à mo<strong>da</strong> brasileira. ambos enchendo o ar de leves e capriclwsasfumaças. à<br />

mo<strong>da</strong> de to<strong>da</strong> gente.<br />

Imagine mais que é Iloite. A janela aberta deixa entrar as brisas aromáticas do<br />

jardim. por entre cujos arbustos se descobre a lua surgindo em um límpido horizonte.<br />

Sobre a mesa ferve em aparelho próprio uma pouca de água parafazer uma tintura<br />

de chá. Não sei se o leitor adora como eu a deliciosa .fiJlha <strong>da</strong> Índia. Se não. pode<br />

man<strong>da</strong>r vir café e fazer com a mesma água a bebi<strong>da</strong> de sua predileção.<br />

Ora. como é noite, e como não hajam cui<strong>da</strong>dos para nós, temos ambos percorrido to<strong>da</strong><br />

a planície do passado, apanhando afolha do arbusto que secou ou a ruína do edifício<br />

que abateu.<br />

6. Contos fluminenses reúne<br />

contos que Machado de Assis<br />

publicou no Jornal <strong>da</strong>s Famílias,<br />

<strong>da</strong> Garnier, entre 1865 e<br />

1869. O livro foi lançado em<br />

1870.<br />

7 Machado de Assis. Questão<br />

de vai<strong>da</strong>de. In: Machado de<br />

Assis. Histrírias românticas.<br />

São Paulo: Mérito, 1959. p.<br />

30-31.


o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 111<br />

Do passaiÜJ vamos ao presente, e as nossas mais íntimas confidências se trocam<br />

com aquela abundância de coração própria dos m()Ços, dos namorados e dos poetas.<br />

Finalmente, nem o futum nos escapa. Com o mágico pincel <strong>da</strong> imaginação traçamos<br />

e colorimos os quadros mais grandiosos, aos quais <strong>da</strong>mos as cores de nossas esperanças<br />

e <strong>da</strong> nossa confiança.<br />

Suponha o leitor que temos feito tudo isto e que nos apercebemos de que, ao terminar<br />

a nossa viagem pelo tempo. é já meia-noite. Seriam horas de dormir se tivéssemos<br />

sono. mas ca<strong>da</strong> qual de nús. a\'ivado o espírito pela conversação, mais e mais deseja<br />

estar acor<strong>da</strong>do.<br />

Então o leitor. que é perspica: e apto para sofrer uma narrativa de princípio a .fim.<br />

descobre que eu também me entrego {UJ5 contos e novelas. e pede que IheflJrje alguma<br />

coisa do gênero.<br />

E eu para ir mais ao encontro iÜJS desejos do leitor imaginoso. não lhe forjo na<strong>da</strong>.<br />

alinhavo alguns episódios de unia histôria que sei. história ver<strong>da</strong>deira. cheia de<br />

interesse e de vi<strong>da</strong>. E para melhor convencer o meu leitor vou tirar de uma gaveta<br />

algumas cartas em papel amarelado. e antes ck começar a narrativa. leio-as. para<br />

orientá-lo no que vou lhe contar.<br />

O leitor arranja as suas pernas. mu<strong>da</strong> de charuto. e tira <strong>da</strong> algibeira um lenço para o<br />

caso de ser preciso derramar algumas lágrimas. E. feito isto. ouve as minhas cartas e<br />

a minha narrativa.<br />

Suponha o leitor tudo isto e tome as páginas que mi ler como uma conversa à noite.<br />

sem pretensão nem desejo de publici<strong>da</strong>de. (p. 7-9)<br />

"Páli<strong>da</strong> Elvira" e "Questão de vai<strong>da</strong>de" partem <strong>da</strong> mesma situação inicial:<br />

narrador e leitor estabelecem uma relação amistosa e igualitária, condição<br />

para a audição <strong>da</strong> história. Além disso, o leitor está posicionado num<br />

ambiente apropriado ao entendimento <strong>da</strong> narrativa, o que, somado ao privilégio<br />

de se equiparar ao narrador, confere-lhe superiori<strong>da</strong>de.<br />

"Questão de vai<strong>da</strong>de", contudo, não se encerra pela ruptura indica<strong>da</strong> a<br />

propósito de "Páli<strong>da</strong> Elvira". Depois de encerrar a história, diz o narrador à<br />

guisa de conclusão:<br />

CONCLUSÃO<br />

Depois de contar e.vta história. o leitor e eu tomamos a nossa última gota de chá ou<br />

café. e deitamos ao ar a nossa última fumaça do charuto.<br />

Vem rompendo a aurora e esta vista desfaz as idéia.v. porventura melancólica.v. que<br />

a minha narrativa tenhafeifo nascer. (p. 89-90) .<br />

Eis aí a primeira razão para a ruptura: enquanto que o narrador de<br />

"Questão de vai<strong>da</strong>de" faz o relato para um ouvinte masculino, o de "Páli<strong>da</strong><br />

Elvira" escreve para uma leitora amiga. Além disso, ele vai aos poucos<br />

desfazendo essa amizade por estabelecer mediações que o distanciam <strong>da</strong><br />

destinatária do texto. A primeira dessas mediações foi referi<strong>da</strong>: decorre <strong>da</strong><br />

divisão de papéis sexuais, sendo que leitores homens e leitoras mulheres<br />

comportam-se de modo diferente, e a leitura conforme o modelo feminino<br />

não aparece como aconselhável.


112 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n D 3<br />

A leitora feminina, a quem se dirige o narrador. é aquela capaz de<br />

entender Elvira. Mas, ao contrário do leitor perspicaz e apto de "Questão de<br />

vai<strong>da</strong>de", que, junto com o narrador, analisa personagens e situações relata<strong>da</strong>s,8<br />

a leitora de "Páli<strong>da</strong> Elvira" só pode entender a protagonista por se<br />

identificar a ela, por ter vivido situações semelhantes, portanto, por experimentar<br />

o assunto pelo lado emocional. Essa concepção de leitura é tão forte<br />

no texto, que se reproduz na sua interiori<strong>da</strong>de: também Elvira é leitora, e<br />

leitora de Lamartine, o mesmo que amou uma Elvira e escreveu o poema "Le<br />

Lac", inspirador dos sentimentos manifestados pela personagem do poema de<br />

Machado de Assis:<br />

Sobre uma mesa havia um livro aberto;<br />

Lamartine, o cantor aéreo e vago,<br />

Que enche de amor um coração deserto;<br />

Tinha-o lido; era a página do Lago.<br />

Amava-o; tinha-o sempre ali bem perto,<br />

Era-lhe o anjo bom, o deus, o orago;<br />

Chorava aos cantos <strong>da</strong> divina lira ...<br />

É que o grande poeta amava Elvira! (p. 182)<br />

A trajetória posterior de Elvira é determina<strong>da</strong> por essa circunstância:<br />

admiradora de Lamartine, apaixona-se por um poeta, o jovem Heitor que<br />

aparece em sua casa e conquista seu coração. A situação é p<strong>revista</strong> antes de<br />

que o rapaz apareça, pois a atitude <strong>da</strong> moça perante o amor é determina<strong>da</strong> pela<br />

sua leitura predileta:<br />

Elvira! o mesmo nome' a moça os lia.<br />

Com lágrimas de amor, os versos santos.<br />

Aquela ete'f"l e lângui<strong>da</strong> harmonia<br />

Forma<strong>da</strong> com suspiros e com prantos;<br />

Quanto escutava a musa <strong>da</strong> elegia<br />

Cantar de Elvira os mágicos encantos,<br />

Entrava-lhe a voar a alma inquieta,<br />

E com o amor sonhava de um poeta.<br />

Ai, o amor de um poeta! anUir subido!<br />

Indelével, puríssimo, exaltado,<br />

Amor eternamente convencido,<br />

Que vai além de um túmulo fechado,<br />

E que através dos séculos ouvido,<br />

O nome leva do objeto amado,<br />

Quefaz de Laura um culto, e tem por sorte<br />

Negrafoice quebrar nas mãos <strong>da</strong> morte. (p. 183)<br />

A identificação é a atitude que pauta a leitura de Elvira, criando-lhe<br />

expectativas para o futuro e fazendo-a entender o mundo e as pessoas a partir<br />

8. No conto Questão de vai<strong>da</strong>de,<br />

são comuns expressões do<br />

narrador dirigi<strong>da</strong>s ao leitor,<br />

como a que se encontra na p.<br />

37: Perguntará o lei/or como é<br />

que um homem de tão bom<br />

senso como Pedm Elói parecia<br />

tão amigo de Eduardo.


o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 113<br />

dos livros consumidos. Não é outra, porém, a atitude <strong>da</strong> leitora de Machado:<br />

também ela, conforme previa a abertu<strong>da</strong> do poema, continua compreendendo<br />

o desenrolar <strong>da</strong> história de Elvira desde suas experiências pessoais, facultando<br />

a aproximação entre as duas criaturas, a protagonista e a leitora, com a<br />

conseqüente identificação. Sem esse tipo de afini<strong>da</strong>de, não há meios de se<br />

decifrarem os acontecimentos presenciados no texto, só assim pode-se saber<br />

por que, visto pela primeira vez o poeta Heitor, a jovem por ele se apaixone<br />

perdi<strong>da</strong>mente:<br />

E trava-lhe <strong>da</strong> mão, e bran<strong>da</strong>mente<br />

Leva-o junto d'Elvira. A moça estava<br />

Encosta<strong>da</strong> à janela, e a esquiva mente<br />

Pela extensão dos ares lhe vagava.<br />

Voltou-se distraí<strong>da</strong>, e de repente,<br />

Mal nos olhos de Heitor o olharfitava,<br />

Sentiu ... Inútilfllra relatá-lo;<br />

Julgue-o quem não puder exp 'rimentá-lo.<br />

Entra a leitora numa sala cheia;<br />

Vai isenta, vai livre de cui<strong>da</strong>do:<br />

Na cabeça gentil nenhuma idéia,<br />

Nenhum amor no coração fechado.<br />

Livre como a andorinha que volteia<br />

E corre loucamente o ar azulado,<br />

Venham dois olhos, dois. que a alma buscava.<br />

Eras senhora? ficarás escrava' (p. 189-190)<br />

Tanto a leitora de Machado, interlocutora do poema "Páli<strong>da</strong> Elvira",<br />

quanto a leitora de Lamartine, a Elvira do poema, não estabelecem o devido<br />

distanciamento entre o lido e o vivido. O leitor masculino age de modo<br />

diferente, e a definição dessa segun<strong>da</strong> atitude de leitura corresponde a outra<br />

<strong>da</strong>s mediações entre o narrador e a leitora amiga, determinantes <strong>da</strong> ruptura<br />

verifica<strong>da</strong> ao final do texto.<br />

Igualmente o leitor masculino atua nos dois planos construídos pelo<br />

poema, um deles sendo o do diálogo entre o narrador e seu destinatário, o<br />

outro sendo o <strong>da</strong>s personagens, elas igualmente leitoras. Portanto, "Páli<strong>da</strong><br />

Elvira" pressupõe também ser lido por representantes do sexo masculino;<br />

estes, to<strong>da</strong>via, não são genéricos, como a leitora amiga, mas primeiramente<br />

profissionais <strong>da</strong> leitura, vale dizer, críticos literários. Eis por que quando o<br />

narrador se dirige ao leitor homem refere-se à sua ativi<strong>da</strong>de, como no trecho<br />

a segUIr:<br />

Não me censure o crítico exigente<br />

O ser páli<strong>da</strong> a moça; é meu costume<br />

Obedecer à lei de to<strong>da</strong> a gente<br />

Que uma obra compije de algum volume. (p. 182)


114 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

ou ao fato de dominar as regras de poética, circunstância própria ao leitor<br />

mais qualificado como é o leitor profissional:.<br />

( ... ) Perdão, leitores.<br />

Eu bem sei que é preceito dominante<br />

Não misturar comi<strong>da</strong>s com amores; Ip. 1851<br />

o mesmo se passa no âmbito <strong>da</strong> história narra<strong>da</strong>: Antero, o tio de Elvira,<br />

em casa de quem vive a moça e onde chega o jovem Heitor. é<br />

Erudito etilôsofo pn!fundo,<br />

Que sabia de cor o vel/w Homero,<br />

E compunha os anais do Novo Mundo;<br />

Que escrevera uma vi<strong>da</strong> de Severo,<br />

Obra de grande tomo e de alto fundo;<br />

Que resumia em si a Grécia e Lácio,<br />

E num salão falava como Horácio; (p. 184)<br />

É O mesmo Antero quem diz a Heitor que um bom poeta é hoje quase um<br />

mito (p. 189), frase que o coloca no mesmo paradigma do leitor-homem<br />

sisudo, que rejeita obras como a que o narrador lhe oferece agora:<br />

( ... ) Neste lance<br />

Se o meu leitor é já homem sisudo,<br />

Fecha trallqüilamente o meu romance,<br />

Que niio sen'e a recreio nem li estudo; (p. 183)<br />

Homens sisudos, críticos exigentes. eruditos não são leitores de "Páli<strong>da</strong><br />

Elvira". Aproximam-se do texto por exigência <strong>da</strong> profissão ou do gosto. mas<br />

se afastam dele porque a obra não corresponde às suas expectativas. Não<br />

serve para o estudo, é demasia<strong>da</strong>mente fiel ao cânone do gênero. falta-lhe a<br />

densi<strong>da</strong>de dos clássicos - preocupações, to<strong>da</strong>s essas. <strong>da</strong> leitura mas.::ulina.<br />

Aqueles não são parceiros para um texto dessa natureza. par.::eria a ser<br />

transferi<strong>da</strong> para a mulher, mas, ao fim e ao cabo, indeseja<strong>da</strong> pelo narrador. A<br />

presença <strong>da</strong> ironia é a última <strong>da</strong>s mediações emprega<strong>da</strong>s. a que deixa a leitora<br />

amiga fora do campo <strong>da</strong>s pretensões do narrador.<br />

Que a ironia recorta o texto sugerem-no as citações anteriores, onde se<br />

verificam o uso exagerado <strong>da</strong> linguagem empola<strong>da</strong> do Ultra Romantismo, o<br />

excesso de exclamações e a presença de personagens estereotipa<strong>da</strong>s, como a<br />

virgem páli<strong>da</strong>, o sedutor leviano e depois arrependido e o tio severo, porém<br />

acolhedor. Porém, ela se aplica com mais intensi<strong>da</strong>de, sobretudo quando o<br />

narrador desconstrói as regras de composição de narrativas sentimentais.<br />

Procedimentos diferentes possibilitam a realização dessa tarefa, como o fato<br />

de o narrador conferir chão materialista à história e às personagens:


o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 115<br />

(. .. ) Eu não vi, nem sei se algum amante<br />

Vive de orvalho ou pétalas deflores;<br />

Namorados estômagos consomeml<br />

Comem Romeus, e Julietas comem. (p. 185)<br />

Ou a confissão de que apenas segue a nonna <strong>da</strong> poética do gênero<br />

escolhido para desmascará-la, confonne acontece na cena em que, logo após<br />

ter aureolado o poeta Heitor, comenta:<br />

Demais, era poeta. Era-o. Trazia<br />

Naquele olhar não sei que luz estranha<br />

Que indicava um aluno <strong>da</strong> poesia.<br />

Um morador <strong>da</strong> clássica montanha,<br />

Um ci<strong>da</strong>dão <strong>da</strong> terra <strong>da</strong> harmonia,<br />

(. .. ).<br />

Um poeta! e de noite! e de capote!<br />

Que é isso, amigo autor? Leitor amigo,<br />

Imagina que estás num camarote<br />

Vendo passar em cena um drama antigo.<br />

Sem lança não conheço D. Quixote<br />

Sem espa<strong>da</strong> é apócrifiJ um Rodrigo;<br />

Herói que às regras clássicas escapa,<br />

Pode não ser herói, mas traz a capa. (p. J 88)<br />

Ou ain<strong>da</strong> a observação de que precisa controlar seu discurso para não<br />

perder a atenção do leitor, sinal evidente de que tem pleno domínio sobre a<br />

matéria ficcional:<br />

Resumamos, leitora, a narrativa.<br />

Tanta estrofe a cantar etéreas chamas<br />

Pede compensaçüo, musa insensiva,<br />

Quefatigais sem pena o ouvido às <strong>da</strong>mas.<br />

Demais, é regra certa e positiva<br />

Que muitas vezes as maiores famas<br />

Perde-as uma ambição de tagarela;<br />

Musa, aprende a lição; musa, cautela! (p. 198)<br />

Todos estes são sintomas de que o escritor conhece as regras do fazer<br />

literário e pode desarticulá-las, sem perder de vista os objetivos de sua<br />

escrita, Ao mesmo tempo, indicam que, embora ele represente, dentro e fora<br />

do relato, leitores possíveis, não espera que seu leitor implícito se identifique<br />

com esses modelos,<br />

Com efeito, nem a leitora amiga, nem o homem sisudo parecem se situar<br />

no horizonte <strong>da</strong>s expectativas de leitura de "Páli<strong>da</strong> Elvira", Da primeira o<br />

narrador se despede antes de a história terminar, porque, quando isto acontece,<br />

ele já tem outro sujeito leitor em mente; do segundo o narrador espera o


116 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

abandono, pois, como o romance (. .. ) não serve a recreio nem a estudo, o<br />

"homem sisudo" condena tudo; / Abre um volume sério, farto e enorme, /<br />

Algumasfolhas lê, boceja ... e dorme. (p. 183) "Páli<strong>da</strong> Elvira" não se dirige<br />

nem a um, nem a outra, e sim àquele que, conhecendo as regras do gênero<br />

ultra-romântico sentimental e de aventuras, não mais acredita nelas, podendo<br />

então se distanciar o suficiente para se divertir com os efeitos obtidos por<br />

quem as critica e desconstrói. O poema foi efetivamente escrito para divertir<br />

de outras lembranças, como proclama o último verso. isto é. para afastar do<br />

conhecido e abrir caminho para novas experiências.<br />

Com isso, Machado contradiz igualmente a norma de leitura que está na<br />

base do comportamento <strong>da</strong> leitora amiga e de Elvira: a leitura não está aí para<br />

facultar a identificação e, assim, impedir o distanciamento que diverte e<br />

conscientiza. Leituras <strong>da</strong>quela espécie são virtualmente condenáveis, e não é<br />

para leitores desse tipo que Machado deseja escrever. Mas, como também não<br />

pode evitar os leitores disponíveis, sintetizados na leitora amiga, no homem<br />

sisudo e no crítico exigente, mostra que quem o lê - seja que for - não segue<br />

esse caminho, estando, pelo contrário, na direção certa deseja<strong>da</strong> pelo escritor.<br />

A identificação é substituí<strong>da</strong> pela pe<strong>da</strong>gogia, e o leitor converte-se no bom<br />

aluno que vai acompanhar as pega<strong>da</strong>s designa<strong>da</strong>s pelo mestre de leitura.<br />

Outra é a proposta apresenta<strong>da</strong> por Jorge Luís Borges em "Tema dei<br />

traidor y dei héroe", conto, pertencente à coleção de Ficciones, publica<strong>da</strong> em<br />

1944, em que se discute, por outro percurso, o lugar <strong>da</strong> leitura na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />

socie<strong>da</strong>de. O narrador se apresenta em primeira pessoa no parágrafo inicial<br />

do relato, para indicar que está imaginando escrever um texto com o argumento<br />

que resume a seguir. Conforme o plano ain<strong>da</strong> em esboço, um outro<br />

narrador, Ryan, bisneto do conspirador, mas heróico, Fergus Kilpatrick, quer<br />

escrever a biografia do bisavô. Aexecução do plano depende do deciframento<br />

do enigma relativo ao assassinato de Kilpatrick, eliminado en la víspera de<br />

la rebelión victoriosa que había premeditado y sofíado.9<br />

Ryan se detém nos eventos que precederam o assassinato de Kilpatrick,<br />

ocorrido num teatro, como os anúncios para não estar presente naquele local,<br />

os indícios de que seria traído, os presságios inexplicáveis racionalmente. O<br />

narrador crê encontrar aqui um paralelismo entre a história do bisavô e a de<br />

César, sendo induzido a supor una secreta forma dei tiempo, um dibujo de<br />

líneas que se repiten (p. 497). À teoria de que a história se repete a si mesma<br />

acrescenta outra: a história copia a literatura, pois outros eventos ocorridos<br />

na noite do crime reproduzem cenas de tragédias de William Shakespeare.<br />

Ryan conclui: Que la historia hubiera copiado a la historia ya era suficientemente<br />

pasmoso; que la historia copie a la literatura es inconcebible ... (p.<br />

497).<br />

A investigação, contudo, não encerra nesse ponto: Ryan se volta à biografia<br />

de James Alexander Nolan, el más antiguo de los compafíeros del<br />

'. BORGES, Jorge Luis. Tema<br />

deI traidor y deI héroe. Ficciones.<br />

In. Borges, Jorge Luis.<br />

Obra.l· <strong>completa</strong>,. Buenos Aires:<br />

Emecé Editores, 1974. p.<br />

496-498. To<strong>da</strong>s as citações<br />

provêm dessa edição; indicaremos<br />

apenas as páginas onde<br />

se encontram.


o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 11 7<br />

héroe (p. 497), e descobre que ele fora intérprete de Shakespeare e tradutor<br />

de Júlio César para o gaélico. Por ocasião <strong>da</strong> morte de Kilpatrick, havia sido<br />

incumbido de descobrir e revelar o traidor que se escondia entre os rebeldes<br />

irlandeses. Nolan denuncia o próprio Kilpatrick com provas irrefutáveis, e<br />

Kilpatrick não nega que tenha traído seus companheiros; pede apenas que seu<br />

castigo não prejudique a pátria. A solução surge de uma idéia de Nolan, que<br />

concebe o assassinato de Kilpatrick num teatro, para que o traidor, até aí<br />

figura idolatra<strong>da</strong> pelos irlandeses, morresse como um herói e não prejudicasse<br />

a rebelião. Para executar a idéia. Nolan precisa de um roteiro, encontrado<br />

no enemigo inglés William Shakespeare (p. 498):<br />

Repetió escenas de Macbeth, de Julio César. La pública y secreta representación<br />

comprendiá varios días. El condenado emrá en Dublill. discutiri, obrá, rezá, reprobá,<br />

pronunciá palabras patéticas y ca<strong>da</strong> UIIO de esos actos que refZejaría la gloria, habia<br />

sido prefijado por Nolan. Centenares de actores colaboramn con el protagonista; el<br />

rol de algunosfue completo; el de otros. momentâneo. Las cosas que dijeran e hicieran<br />

perduran en los libros históricos, en la memoria apasiona<strong>da</strong> de Irlan<strong>da</strong>. Kilpatrick,<br />

arrebatado por ése minucioso destino que lo redilll{a ." que lo perdia, lilás de una vez<br />

enriquecúi con aclOS y palabras improvisa<strong>da</strong>s el texto de su juez. As{fue desplegándose<br />

en el tiempo el populoso drama, haSIll que el 6 de agosto de 1824, en un palco de<br />

.funerarias cortinas que prefiguraba el de Lillcolll. 1111 balaZl! anhelado entrá en el<br />

pecho dei traidor y dei héroe, que apenas pudo articular. entre dos efusiones de brusca<br />

sangre, algunas palabras p<strong>revista</strong>s. (p. 498)<br />

As investigações de Ryan não o levam apenas a descobrir que a morte de<br />

Kilpatrick consistia numa soma de punição e consagração, fornecendo à<br />

revolução emergente as personagens imprescindíveis ao sucesso: o herói<br />

vitimado e o criminoso não identificado, fator fun<strong>da</strong>mental para incendiar a<br />

revolta contra o povo opressor, o inglês. Aprofun<strong>da</strong>ndo a pesquisa, verifica<br />

que um lugar fora deixado para ser preenchido no futuro, o do próprio<br />

investigador que se deparasse com a ver<strong>da</strong>de:<br />

Ryall sospeclw que el autor los intercalá para que una prsona, en el porvenir, diera<br />

con la \·er<strong>da</strong>d. Compreellde que él tambiénfárma parte de la trama de Nolafl ... (p. 498)<br />

Talvez por essa razão resolva contrariar o roteiro e silenciar el descubrimiento,<br />

publicando un livro dedicado a la gloria dei héroe (p. 498); mas o<br />

narrador conclui, encerrando o relato: también eso, tal vez, estaba previsto.<br />

(p.498).<br />

À semelhança do poema de Machado de Assis, o conto de Borges constrói-se<br />

sobre dois planos. Em "Páli<strong>da</strong> Elvira", os dois planos dividiam-se<br />

entre os leitores, o <strong>da</strong> leitora amiga, com quem dialogava o narrador, e o de<br />

Elvira, admiradora de Lamartine. No "Tema dei traidor y dei héroe", os<br />

planos repartem-se entre dois narradores; um emprega a primeira pessoa e


118 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

confessa estar projetando um argumento que ya de algún modo me justifica,<br />

en las tardes inútiles (p. 496); o segundo é 'Ryan, mais comprometido que o<br />

outro, porque ambiciona redigir a biografia do heróico bisavô e resolver os<br />

enigmas que cercam seu assassinato. O primeiro narrador deixa claro que seu<br />

argumento li<strong>da</strong> com <strong>da</strong>dos fictícios, tanto que, no início do segundo parágrafo,<br />

ain<strong>da</strong> não decidiu onde e quando situará a ação; escolhe a Irlan<strong>da</strong> e a <strong>da</strong>ta<br />

de 1824 para comodi<strong>da</strong>d narrativa (p. 496). Ryan. por seu turno, está convencido<br />

de que li<strong>da</strong> com um fato histórico, verídico, empanado por um<br />

enigma cujo deciframento lhe cabe, deixando-o ain<strong>da</strong> mais nítido para seus<br />

leitores, patriotas como ele e admiradores <strong>da</strong> sorte de seu país.<br />

A descontinui<strong>da</strong>de entre os dois narradores repete um processo de "Páli<strong>da</strong><br />

Elvira", não ao nível <strong>da</strong> leitura, mas ao nível <strong>da</strong> narração: ambos os<br />

narradores anônimos, o do poema de Machado e o do conto de Borges, tal<br />

como se apresenta no parágrafo inicial, desacreditam o fato relatado a seguir,<br />

gerando a intranqüili<strong>da</strong>de do leitor, que, por isso, se distancia do narrado. O<br />

segundo narrador do conto de Borges, o bem intencionado Ryan, se propõe,<br />

contudo, a interpretar a história, reexaminando o passado de seu país desde o<br />

ponto de vista dos heróis. A revelação surpreende-o duas vezes: descobre que<br />

o roteiro veio <strong>da</strong> literatura, mais especificamente de Shakespeare, comprovando<br />

até a veraci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> famosa frase do dramaturgo inglês, extraí<strong>da</strong> do<br />

mesmo Macbeth que serviu de inspiração a Nolan: Life 's but a walking<br />

shadow, a poor player / That struts and frets his hour upon the stage / And<br />

then is heard no more: its a tale / Told by an idiot, full of sound and fury, /<br />

Signifying nothing. IO E descobre que mesmo o papel, que desempenharia<br />

mais de cem anos depois, estava previsto. tanto ao tentar recusá-lo enquanto<br />

pesquisador <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, quanto ao render-se à sua execução. aju<strong>da</strong>ndo a<br />

propagar o mito.<br />

O conto li<strong>da</strong> com um tema caro às histórias nacionais para desmascarálo.<br />

Como Machado, Borges está desconstruindo um enredo conhecido, armado<br />

pelo Romantismo. Em "Páli<strong>da</strong> Elvira", trata-se de desmontar clichês<br />

sentimentais; no conto de Borges derruba-se o mito do herói, sobretudo<br />

àqueles que servem às causas libertárias e patrióticas. O escritor argentino vai<br />

até mais longe, pois não é difícil constatar no trecho citado acima, relativo ao<br />

projeto de Nolan, o pano de fundo oferecido pelo mito de Jesus de Nazaré,<br />

que, como Kilpatrick, entra na ci<strong>da</strong>de sagra<strong>da</strong>, Jerusalém, para ser aclamado<br />

e, depois, sacrificado, procedimento que colaborou sobremaneira à deificação<br />

do herói do Cristianismo. II<br />

O processo como os escritores procedem à desconstrução é igualmente<br />

significativo: Machado e Borges revelam como se forjam os mitos, indicando<br />

que sua fonte é a literatura. Seja ao seguir regras <strong>da</strong> poética dos gêneros<br />

sentimentais, seja ao buscar na tragédia um modelo de comportamento a<br />

10 SHAKESPEARE. William.<br />

Macheth. In: Shakespeare,<br />

William. Tral!edies. Londres:<br />

Dent Everyman's Library,<br />

1964. p. 477.<br />

li, Se quiséssemos, podería­<br />

mos ir ain<strong>da</strong> mais longe: a<br />

cena que Borges põe nas mãos<br />

de Nolan contém traços holy­<br />

woodianos, conforme o cine­<br />

ma narrou a história de Jesus,<br />

ao se referir a cenfenares de<br />

aclores que coluhoramn OJn<br />

el protagonista (p. 498).<br />

Quando o naITador indica que<br />

os livros históricos repetiram<br />

las cosas que dUeron e hicieron,<br />

a referência se estende aos<br />

Evangelhos, supostamente reprodutores<br />

fiéis e confiáveis,<br />

mas igualmente endeusadores,<br />

<strong>da</strong>s palavras de Cristo.


o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 119<br />

seguir, de um modo ou de outro é <strong>da</strong> ficção que provêm as referências<br />

necessárias à organização <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

Em "Páli<strong>da</strong> Elvira", a identificação determinava o comportamento <strong>da</strong>s<br />

duas leitoras indica<strong>da</strong>s no texto: tanto a leitora amiga como a protagonista<br />

retiravam <strong>da</strong>s leituras exemplos de atitudes e visão de mundo, através dos<br />

quais pautavam suas relações com a socie<strong>da</strong>de. Em "Tema deI traidor y deI<br />

héroe", é a socie<strong>da</strong>de como um todo que regula seu comportamento desde as<br />

leituras feitas. Não apenas isso: um grande leitor - no caso, Nolan - organiza<br />

a socie<strong>da</strong>de para que ela se reconheça como tal. Não houvesse ele forjado um<br />

mito, a revolução nem aconteceria, muito menos seria bem sucedi<strong>da</strong>. A<br />

história enquanto sucessão de eventos é caótica ou traiçoeira, a tale told by<br />

an idiot, full of sound and fury, signifying nothing. É preciso que um sentido<br />

lhe seja atribuído, e este é buscado na ficção, único lugar onde os fatos têm<br />

ordem e significação.<br />

Não é, pois, a história que rege nossas ações, e sim a fantasia, berço <strong>da</strong><br />

literatura. Igualmente esse roteiro está previsto no conto de Borges: o narrador<br />

primeiro, ao contrário de Ryan, não pesquisa o passado, e sim in venta um<br />

argumento, que, diz ele, escribiré tal vez (p. 496). A observação inicial, que<br />

a princípio, parece contrariar a veraci<strong>da</strong>de do relato, acaba, conforme uma<br />

leitura circular, por reafirmá-Ia, pois, a se acreditar no relato, a imaginação é<br />

que fornece os fatos históricos e dá-lhes substância. É por criar o que vai<br />

acontecer que o acontecido mostra-se ver<strong>da</strong>deiro. Mas o texto que leremos<br />

ain<strong>da</strong> não redigido, porque o narrador no momento apenas cogita escrevê-lo<br />

no futuro. Tal como Nolan, o narrador não li<strong>da</strong> com o passado, mas projeta o<br />

futuro; entretanto, o porvir não consiste num vir-a-ser, e sim numa nova<br />

compreensão do que aconteceu, descoberta que, <strong>da</strong> sua vez, não altera a<br />

versão dos eventos já consagra<strong>da</strong> pelo tempo. Tanto o narrador primeiro<br />

quanto Nolan sabem o que acontecerá: aparecerá Ryan, cujas investigações<br />

propiciarão conhecer o que ver<strong>da</strong>deiramente sucedeu, mas que não ousará<br />

contrariar o mito, não apenas deixando-o como está, mas ain<strong>da</strong> corroborando-o.<br />

Outra vez a narrativa confirma pressupostos que aparentemente negava.<br />

Enquanto investigava, Ryan chegou a suponer una secreta forma deI tiempo,<br />

um dibujo de líneas que se repiten (p. 497). A seqüência do relato parece<br />

desmentir essa suposição, pois a repetição se devia à apropriação do roteiro<br />

sugerido pelas tragédias de Shakespeare. A conclusão do conto, contudo, leva<br />

o leitor a retomar a abertura, e, nesse revisão, verificar que o futuro é<br />

unicamente escrita, escrita que se debruça invariável e incansavelmente sobre<br />

o passado. As linhas do tempo dão voltas contínuas, e o porvir consiste na<br />

eterna retoma<strong>da</strong>, para endossá-los, dos mitos cristalizados pelo tempo.<br />

É enquanto planejadores do futuro que Nolan e o narrador se confundem<br />

e se identificam. Nolan é, porém, também o leitor que extraiu <strong>da</strong> ficção


120<br />

modos de comportamento para os homens e formas de organização para a<br />

socie<strong>da</strong>de. Como a leitora amiga e Elvira, encontrou na arte possibili<strong>da</strong>des<br />

de experiência traduzi<strong>da</strong>s em atos concretos. Ao contrário dele, o leitor do<br />

"Tema deI traidor y deI héroe" fica sem alternativas de ação, embora consciente<br />

de que o fluxo <strong>da</strong> história pouco lhe diz, em contraposição à literatura,<br />

de onde retira tudo, a começar pela desconfiança perante o mito e os relatos<br />

do passado.<br />

Machado e Borges estão empenhados em desarticular as convicções de<br />

seus leitores; mas fazem-no confiando em que a leitura exerça seu papel, o de<br />

estabelecer o diálogo primordial sem o qual a literatura não subsiste, muito<br />

menos sua produção poética e ficcional. Eis aí a aposta que lançam, que os<br />

aproxima no tempo e que assinala a afini<strong>da</strong>de de ambos diante do universo<br />

do leitor.


I. BARRÉ, François. Préface.<br />

In: La ville: art et architecture<br />

en Eurol'e, 1870-1993. Paris:<br />

Centre Georges Pompidou,<br />

1994. p.12.<br />

2 SARLO, Beatriz. Moderni<strong>da</strong>d<br />

y mezcla cultural. El caso de<br />

Buenos Aires. In: BELuzzo,<br />

Ana Maria de Moraes, org.<br />

Moderni<strong>da</strong>de: vanguar<strong>da</strong>s artísticas<br />

na América Latina.<br />

São Paulo: Memorial <strong>da</strong> América<br />

Latina: UNESP, 1990.<br />

p.32.<br />

o histórico e o urbano<br />

Sob o signo do estorvo<br />

duas vertentes <strong>da</strong> narrativa<br />

brasileira contemporânea<br />

Renato Cordeiro Gomes<br />

À maneira de epígrafe, evocam-se dois textos que servem de baliza para<br />

uma reflexão sobre duas vertentes <strong>da</strong> narrativa brasileira contemporânea. São<br />

eles o "Prefácio", assinado por François Barré, do magnífico catálogo <strong>da</strong><br />

exposição La ville: art et architecture en Europe, 1870-1993, realiza<strong>da</strong> em<br />

1994, no Centre Georges Pompidou, em Paris; e o ensaio "A geração pós-perdi<strong>da</strong>",<br />

de Ivana Bentes, publicado no caderno Idéias, do Jornal do Brasil, em<br />

1991.<br />

A apresentação de Barré afirma, em forma de síntese, o que a exposição<br />

revelou: a ci<strong>da</strong>de e suas questões determinam nosso cotidiano e dá forma aos<br />

nossos quadros de vi<strong>da</strong>; é nosso presente turbulento e nossos velhos medos.<br />

Tornou-se ela, para a maioria de nós, o estabelecimento humano, nossa<br />

mora<strong>da</strong> incerta. 1 É uma grande questão desde a abertura dos tempos modernos.<br />

Um problema, uma paisagem inevitável, uma utopia e um inferno, a<br />

ci<strong>da</strong>de é pensa<strong>da</strong> enquanto espaço físico, mito cultural, condensação simbólica<br />

e material de mu<strong>da</strong>nça, e constitui-se, hoje, um debate pós-modeno, pois<br />

sabe-se que a era <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des ideais caiu por terra. 2 As megalópolis contemporâneas<br />

em crise levam a colocar sob suspeita as certezas <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de.<br />

Mora<strong>da</strong> incerta e inevitável, o mundo moderno, ain<strong>da</strong> mais quando visto <strong>da</strong><br />

periferia em relação aos centros hegemônicos, é representado ficcionalmente<br />

sob o signo do estorvo. De tal maneira se adere à armadura urbana que mal<br />

se sabe o que é ci<strong>da</strong>de e o que é indivíduo. A ci<strong>da</strong>de conjuga-se ao impasse:<br />

identi<strong>da</strong>des instáveis circunscritas pela história em turbulência.


13. Ver a respeito <strong>da</strong> cultura<br />

neo-individualista no contexto<br />

pós-moderno os seguintes tex­<br />

tos de Gilles Lipovetsky, de<br />

que aproveito aqui formula­<br />

ções:<br />

LIPOVETSKY, Gilles. Espace<br />

privé, espace public à l'âge<br />

postmoderne. In: BAUDRIL­<br />

LARD, Jean et a!. Paris: Esprit,<br />

1991.<br />

____ . L'àe du vide:<br />

Essais sur l'individualisme<br />

contemporain. Paris: Gallimard,1983.<br />

14 A título de exemplos, ver as<br />

seguintes obras que dramati­<br />

zam essas questões: de João<br />

Gilberto Noll (Bandoleiros;<br />

Rastros de verão; Hotel Atlântico;<br />

O quieto animal <strong>da</strong> esquina,<br />

Harma<strong>da</strong>); de Sérgio<br />

Sant' Anna (A Senhorita Simpson;<br />

Breve histária do e,\1Jírito;<br />

O monstro); de Caio Fernando<br />

Abreu (Onde an<strong>da</strong>rá<br />

Dulce Veiga:; Os draglies não<br />

conhecem o paraíso); de Rubem<br />

Fonseca (A grande arte;<br />

Vastw' emoçtJes e pensmnentos<br />

imperfeitos, O romance ne­<br />

gro).<br />

15 TORRES, Antônio. Um táxi<br />

para Viena d'Áustria. São<br />

Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras,<br />

1991. As ci tações deste ro­<br />

mance indica<strong>da</strong>s entre aspas,<br />

com as páginas entre parênte­<br />

ses, remetem a esta edição.<br />

o histórico e o urbano 125<br />

socie<strong>da</strong>de brasileira, hoje eminentemente urbana (75% <strong>da</strong> população vivem<br />

nas ci<strong>da</strong>des), em processo acelerado de massificação e pauperização, vê-se<br />

refleti<strong>da</strong> no mundo caótico e violento <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des. Os romances<br />

dramatizam a crise <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e suas marcas sociais e cuturais. Aí, o homem<br />

urbano contemporâneo. num universo ca<strong>da</strong> vez mais rarefeito, busca a identi<strong>da</strong>de<br />

individual. numa socie<strong>da</strong>de de trânsito engarrafado.<br />

Se, por um lado. assistiu-se. em nível internacional, a mu<strong>da</strong>nças radicais<br />

e velozes. que puseram em xeque as '"ver<strong>da</strong>des" <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de; por outro<br />

lado, no Brasil. verificou-se. sobretudo a partir dos anos 70, o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de de consumo, que condicionava valores e comportamentos<br />

sociais ligados ao modo de vi<strong>da</strong> impulsionado pelo reino dos objetos, de<br />

conforto e de lazer de massa, pano de fundo para o surgimento de uma nova<br />

cultura individual." Em meio ain<strong>da</strong> aos embates de um projeto moderno com<br />

que o discurso oficial pretende vencer o nosso perpétuo atraso, ao mesmo<br />

tempo que se ancora em estruturas arcaicas, vivemos, em contraste (continuamos<br />

a "terra de contrastes" como nos viu Roger Bastide, no seu clássico livro<br />

dos anos 50), com marcas do neo-individualismo <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des pós-modernas:<br />

a fragmentação individualista do corpo social, que redun<strong>da</strong> no consumismo<br />

privado, na retração individualista, na atomização dos seres, no hedonismo,<br />

no narcisismo, na esterilização <strong>da</strong>s crenças e dos dogmas comuns. Ao<br />

lado <strong>da</strong> miséria, acentuam-se, nas ci<strong>da</strong>des sobretudo, a imprecisão sistemática<br />

<strong>da</strong> esfera priva<strong>da</strong>, a erosão <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des sociais, a desestabilização<br />

acelera<strong>da</strong> <strong>da</strong>s personali<strong>da</strong>des, a desconfiança e o desinteresse pelo ideológico<br />

e pelo político. Num espaço-entre, na interseção, num ponto de encontro,<br />

vive o Brasil a crise que se arrasta e reflete-se contundentemente na cacofonia<br />

<strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des. 14<br />

Essa tela, aqui ligeiramente esboça<strong>da</strong>, parece oferecer os núcleos de<br />

tensão que as narrativas urbanas contemporâneas dramatizam. Neste sentido,<br />

é sintomática a imagem central do último romance de Antônio Torres, Um<br />

táxi para Viena d'Áustria (1991).15 O protagonista, Watson Rosavelti Campos,<br />

o Veltinho, migrante nordestino que veio para São Paulo e depois para o<br />

Rio de Janeiro em busca de sonho <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, enfrenta, como publicitário<br />

desempregado, a situação-limite, a crise, na reali<strong>da</strong>de precária <strong>da</strong> grande<br />

ci<strong>da</strong>de. O livro abre-se com "um indivíduo descendo apressado pelas esca<strong>da</strong>s<br />

do edifício n° 3 <strong>da</strong> rua Visconde de Pirajá, Ipanema, aqui no Rio de Janeiro"<br />

(p. 7). Ele acabara de assassinar um amigo, o escritor decadente Cabralzinho,<br />

que não via há 25 anos. Está fugindo; "( ... ) foi salvo <strong>da</strong> curiosi<strong>da</strong>de pública e<br />

priva<strong>da</strong> por um caminhão <strong>da</strong> Coca-Cola que capotou há instantes ali na<br />

esquina, justinho onde a rua Canning desemboca na Gomes Carneiro, bem no<br />

calcanhar desta nossa Visconde de Pirajá". (p. 11). Caos; rua bloquea<strong>da</strong> por<br />

engra<strong>da</strong>dos, garrafas, cacos. Entra num táxi, cujo rádio toca a "Missa em dó<br />

maior", de Mozart. Sente-se cansado. "Toca em frente" diz. Para Viena


126 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

d' Áustria, onde há música nas ruas. Adormece. Mas está literal e metaforicamente<br />

numa encruzilha<strong>da</strong>.<br />

A situação inicial que poderia gerar um romance policial, não se cumpre<br />

como tal. Funciona, antes, como núcleo complexificador que metaforiza o<br />

Brasil engarrafado. Adotando um narrador móvel que transita entre primeira<br />

e terceira pessoas, a narrativa centra-se no personagem encurralado dentro do<br />

táxi, simultaneamente réu e investigador, que busca as raízes perdi<strong>da</strong>s, ao<br />

mesmo tempo que tenta <strong>da</strong>r um rosto ao país. Mais do que uma escolha<br />

espacial, Antônio Torres optou por uma situação de inércia. em contradição<br />

com o progresso <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de que atraía o personagem publicitário (identi<strong>da</strong>de<br />

agora corroí<strong>da</strong> pelo desemprego). Inércia de trânsito parado que provoca<br />

uma escolha de ordem existencial liga<strong>da</strong> à vivência do tempo. Nesta<br />

inércia, o que dinamiza o personagem, na falência de seu projeto burguês. é<br />

a mistura de vozes do passado e do presente. Busca, por aí, "saí<strong>da</strong>s transversais<br />

para si e para o mundo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de". A descontinui<strong>da</strong>de entre passado e<br />

presente passa, então, a reger a dinâmica do mundo interior do protagonista,<br />

projetando-se na estrutura fragmenta<strong>da</strong> <strong>da</strong> narrativa que real oca citações,<br />

efetua colagens e procede por cortes, num universo impossível de totalização.<br />

O herói, ou antes o anti-herói, vencido, um eu à deriva, desenraizado na<br />

grande ci<strong>da</strong>de, está tragicamente só. Vê esgarçaram-se os laços familiares, do<br />

clã (seu passado, como lugar de origem, na província, é apenas uma lembrança<br />

parti<strong>da</strong> e vazia, sem dimensão no presente), perde os amigos, perde o<br />

emprego. E acabara de matar um homem. "Um urubu pousou na sua sorte"'.<br />

"Não chegamos porque não partimos". diz o motorista do táxi, quando o<br />

personagem acor<strong>da</strong>. Acor<strong>da</strong> para a reali<strong>da</strong>de imediata. Caótica. A busca e a<br />

fuga ficam aí sem resposta. Viena d' Áustria é o sonho impossível: "longe é<br />

qualquer lugar perto do paraíso". (p. 117). Mas ele está ali, no encontro de<br />

Copacabana e Ipanema. Aí, está o homem brasileiro exilado na urbani<strong>da</strong>de.<br />

É um sobrevivente que assimilou a destruição urbana produzi<strong>da</strong> pelas metrópoles,<br />

onde sua personali<strong>da</strong>de está desestabiliza<strong>da</strong>, gerando uma retração<br />

individualista que esteriliza os projetos coletivos e utópicos. Embora tenha<br />

memória e nostalgia e busque através delas <strong>da</strong>r um sentido à História e à sua<br />

historia, ele está encurrulado no agora, nas dobras do cotidiano dificílimo.<br />

Ele tornou-se um assassino, e o "assassinato é a metáfora mais adequa<strong>da</strong> para<br />

o impulso aniquilador e pre<strong>da</strong>tório <strong>da</strong> cultura contemporânea". 16 Resta-lhe,<br />

romanticamente, na situação de impasse, o sonho individualista de fuga para<br />

um lugar imaginário, "para um lugar tão longe que nem Deus sabe onde fica"<br />

(p. 180) que é como se fecha a narrativa. Não desconfia que "o indivíduo em<br />

busca de um lugar imaginário termina em cenários erguidos em meio a<br />

ruínas". I? Já que ruínas articulam o personagem, a ci<strong>da</strong>de e o país, só <strong>da</strong>quele<br />

lugar imaginário e improvável, ele pode vislumbrar um horizonte. Este momento<br />

final sintetiza o individualismo do protagonista, única ética possível<br />

16 PEIXOTO. Nelson Brissac.<br />

Cenário,\' em ruínas: a reali<strong>da</strong>de<br />

imaginária contemporânea.<br />

São Paulo: Brasiliense, 1987.<br />

p.220.<br />

17 Idem. ibidem, p. 225.


1". Idem, ibidem, p. 25.<br />

19. BUARQUE, Chico. Estorvo.<br />

São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Le­<br />

tras, 1991. As citações deste<br />

romance indica<strong>da</strong>s entre aspas,<br />

com as páginas entre pa­<br />

rênteses, remetem a esta edi­<br />

ção.<br />

20. CARONE, Modesto. Entre­<br />

vista à FolluJ de S. Paulo: Le­<br />

tras, I fev, 1992, p. 4, em que<br />

tece considerações sobre a<br />

obra de Kafka, aqui estendi<strong>da</strong>s<br />

ao romance de Chico Buarque.<br />

o histórico e o urbano 127<br />

num mundo em ruínas, num mundo de suspeitos e traições, 18 num mundo que<br />

perdeu as coordena<strong>da</strong>s éticas.<br />

Neste mesmo paradigma, situa-se Estorvo (1991 ),19 o romance de Chico<br />

Buarque, lançado com eficiente estratégia de marketing, permanecendo meses<br />

nas listas dos mais vendidos. Deste ângulo, frustou a expectativa de<br />

grande parte do público que esperava encontrar uma história facilmente<br />

digerível, como pensa serem as canções do famoso compositor <strong>da</strong> música<br />

popular brasileira. O livro funciona como um ver<strong>da</strong>deiro estorvo em relação<br />

à cultura de massa, como acontecera em 1969 com peça Ro<strong>da</strong> viva que,<br />

através <strong>da</strong> montagem revolucionária do diretor José Celso Martinez Correa,<br />

rompeu com a imagem de "bom moço" que vinha se criando, no início <strong>da</strong><br />

carreira do compositor, sobretudo com o sucesso <strong>da</strong> canção "A ban<strong>da</strong>". Sua<br />

obra, entretanto, com incursões também pelo teatro, traz as marcas de sua<br />

geração que amadureceu sob a truculência <strong>da</strong> ditadura militar e que pretendeu<br />

intervir, alterar os rumos <strong>da</strong> história do país. O recente romance, neste<br />

diapasão, é também desejo de denúncia, contudo não mais no sentido <strong>da</strong>s<br />

soluções totalizadoras e utópicas, apontando para o cumprimento pelo menos<br />

satisfatório dos destinos <strong>da</strong> Nação. É, antes, a denúncia de nossas impossibili<strong>da</strong>des,<br />

do encurralamento em que estamos metidos, <strong>da</strong> crise brasileira vista<br />

de dentro, através de um "olho mágico".<br />

"Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele<br />

sujeito através do olho mágico" (p. 11) assim se abre a narrativa, com o<br />

protagonista tentando, do lado de dentro, regular a vista para identificar um<br />

homem estranho que lhe bate à porta. Tematizando de saí<strong>da</strong> a questão <strong>da</strong><br />

identi<strong>da</strong>de e do olhar, a narrativa coloca em cena um personagem "fugindo<br />

ao contrário" de alguém que ele não sabe quem é e nem por que foge.<br />

Instalado no presente, este personagem-narrador em primeira pessoa centra a<br />

narrativa no que está vivendo. Seu olho-câmera capta o que' está no seu<br />

campo de visão, ou a partir do que vê, o que supõe, presume, hipoteticamente<br />

(cf. os verbos no futuro do presente ou do pretérito e os mo<strong>da</strong>lizantes: talvez,<br />

parecer, presumir, dever, poder, como se fosse etc). Supõe-se perseguido pelo<br />

estranho homem de barba que o procura. "Esse narrador anti-onis-ciente ou<br />

melhor, insciente, é a formalização de um estado do mundo onde o indivíduo<br />

perdeu a noção de totali<strong>da</strong>de".2o Dá-se, em consequência, o rebaixamento do<br />

horizonte <strong>da</strong> narrativa que se torna obscura. As fantasmagorias do personagem<br />

sinalizam a per<strong>da</strong> de clareza do indivíduo em relação ao rumo <strong>da</strong><br />

existência nas tramas do mundo administrado, para usar a expressão de<br />

Adorno. Este mundo é aqui representado emblematicamente pelo homem de<br />

barba, o delegado de polícia revelado no final <strong>da</strong> narrativa, símbolo de um<br />

superpoder que determina a existência individual de maneiras invisíveis. O<br />

personagem-narrador mescla, assim, reali<strong>da</strong>de e imaginário e, porque perde<br />

a capaci<strong>da</strong>de de totalização, trabalha com recortes, fragmentos, ditos por uma


128 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

fala que não é afirmativa, que abdica de to<strong>da</strong> certeza, de todo projeto utópico.<br />

O relato que dramatiza uma falta, vive de uma falta de lógica, de mu<strong>da</strong>nça,<br />

de transformação o que corrói a causali<strong>da</strong>de de uma possível linha horizontal<br />

produtora de sentido. Na trama sempre falta alguma coisa, falta chão que<br />

lhe dê sentido (nesta ótica, é exemplar a imagem dos pés do amigo que<br />

o protagonista não consegue visualizar em sua memória, a que se sobrepõe<br />

os pés mortos e, portanto, inúteis, do professor de ginástica assassinado<br />

(cf. p. 76-77).<br />

O campo de visão, concretizado na linguagem pela redundância dos<br />

verbos ver e olhar, elimina o horizonte, ausente até a lembrança ("na lembrança<br />

não entra o horizonte" p. 76). O personagem cola-se aos fatos, sem<br />

distanciamento. A abertura do ângulo de visão indica a intensi<strong>da</strong>de dos sinais<br />

dos estranhamentos que o acaso lhe apronta no circuito <strong>da</strong> fuga. Neste<br />

circuito, busca entender o que está acontecendo, mas não é um narrador<br />

detetive, não investiga pistas, vestígios, não é aquele que descobre. Se assim<br />

fosse, a partir do enigma estampado na cena inicial, se instauraria uma linha<br />

de romance policial que, afinal, não se cumpre (o que é deceptivo para o leitor<br />

imbuído dessa expectativa).<br />

Os fatos que vão compondo o (des)enredo, tornam-se ca<strong>da</strong> vez mais<br />

rarefeitos, perdem a densi<strong>da</strong>de e encaminham-se para a indeterminação, que,<br />

sem dúvi<strong>da</strong>, é o signo que circunscreve o protagonista. É um personagem sem<br />

nome, em processo de desagregação. Todos lhe perguntam quem ele é. Se se<br />

pode recompor traços de sua biografia (classe média urbana, carioca, pai<br />

militar autoritário, mãe viúva, irmã com casamento milionário, um casamento<br />

desfeito, o rompimento com o amigo, etc), o passado não se dimensiona no<br />

presente, como conseqüência, e perde a densi<strong>da</strong>de, vira barulho, ruído, a<br />

exemplo do que diz quando procura a ex-mulher: "tudo o que falamos antes<br />

virou barulho, fica difícil retomar a conversa" (p. 36); ou quando relembra o<br />

amigo: "ouço puramente a sua voz, lisa de palavras" (p. 42). Fica entre a<br />

ordem burguesa e a marginali<strong>da</strong>de, entre o desequilíbrio psicológico progressivo<br />

e o desajuste social. "Não pertencendo a nenhum setor <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, o<br />

protagonista é definido existencialmente e socialmente; ele é um bosta, um<br />

estorvo", como afirmou Augusto Massi. 21<br />

A fuga, sem causas determina<strong>da</strong>s, é o que movimenta o entrecho. Ela se<br />

dá no labirinto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, em suas margens, nos seus arredores. A ci<strong>da</strong>de do<br />

Rio de Janeiro tem sua presença implícita, implica<strong>da</strong>, na fonte ou na base <strong>da</strong><br />

mensagem, antes que em seu conteúdo. Embora não seja nomea<strong>da</strong>, aparece<br />

numa cartografia dinâmica, liga<strong>da</strong> às necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> trajetória do personagem,<br />

sem as referências topográficas e geográficas de cartão postal que<br />

tradicionalmente marcam o Rio. São essas "necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> fuga, com suas<br />

pressas e vagares, que filtram o sentimento <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de", como observou<br />

Roberto Schwarz. 22<br />

21. MASSI, Augusto. Resenha<br />

sem título do romance de Chi­<br />

co Buarque publica<strong>da</strong> na <strong>revista</strong><br />

Novos Estudos CEBRAP<br />

São Paulo, 31 out, 1991; 193-<br />

198.<br />

22 SCHWARZ, Roberto. Sopro<br />

novo. Veja. São Paulo, 7 ago.<br />

1991, p. 98-99.


23. GENETlE, Gérard. Vértige<br />

fixé. In: Figures. Paris: Seuil,<br />

1966, p. 89.<br />

24. BENJAMIN, WaIter. Paris,<br />

capitale du XIX' .• iec/e. Le livre<br />

des passages. Paris: Cerf,<br />

1989. p. 536.<br />

25. NUNES, Benedito. Estorvo é<br />

o relato exemplar de uma falha.<br />

Folha de S. Paulo: Ilustra<strong>da</strong>.<br />

São Paulo, 3 ago. 1991,<br />

p.3.<br />

- SANT' ANNA, Sérgio. Narrativa<br />

tensa. Jornal do Brasil:<br />

Idéias Livro .•. Rio de Janeiro, 3<br />

ago. 1991, p. 3.<br />

26. ScHWARZ, Roberto. Op. cil.<br />

27. Do texto de José Cardoso<br />

Pires que apresentou o livro, 110<br />

lançamento em Lisboa, nov<br />

1991. A citação foi recolbi<strong>da</strong> na<br />

Folha de S. PaultJ: Ilustra<strong>da</strong>.<br />

São Paulo, 1600v. 1991, p. 3.<br />

o histórico e o urbano 129<br />

A maneira com que o personagem se relaciona com o espaço é provisória,<br />

indicando a não-permanência. Instala-se ele no campo cambiante do<br />

provisório, num jogo sempre recomeçado. Caminha em círculos, sempre<br />

entrando e saindo de algum lugar, indo e vindo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e do sítio <strong>da</strong> família,<br />

na região serrana próxima ao Rio; vaga pelas ruas. Experimenta as aventuras<br />

<strong>da</strong> desordem, buscando os caminhos de antigamente, que na<strong>da</strong> resolvem: são<br />

sem saí<strong>da</strong>. Vaga em labirinto (pela ci<strong>da</strong>de e pelos discursos): "esta região<br />

desorientadora do ser em que se reagrupam, numa espécie de confusão<br />

rigorosa, os signos reversíveis <strong>da</strong> diferença e <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de".23 Signos, que<br />

caem, aqui, na indeterminação. Enquanto o personagem busca, é obrigado a<br />

proceder a mu<strong>da</strong>nças súbitas de direção, a retoma<strong>da</strong>s, retornos. O labirinto é<br />

paradoxalmente a ci<strong>da</strong>de aberta com sua flexibili<strong>da</strong>de, sua imprevisibili<strong>da</strong>de;<br />

e, ao mesmo tempo que lhe é familiar, torna-se sob seus olhos desconheci<strong>da</strong>,<br />

obscura, numa palavra, labiríntica. Principalmente, para ele que foge, que<br />

hesita, que perdeu os fios <strong>da</strong>s certezas: "o labirinto é a pátria <strong>da</strong>quele que<br />

hesita" e cai numa errância monótona, já dissera Walter Benjamin.24 Este<br />

jogo paradoxal do aberto e do fechado anula as oposições entre o campo e<br />

ci<strong>da</strong>de: o sítio <strong>da</strong> família é uma espécie de "waste land", onde penetrou a<br />

violência através de grupos organizados, do tráfico de drogas, <strong>da</strong> tecnologia<br />

de sucata, conforme se lê no texto de Augusto Massi.<br />

Nesta mesma perspectiva de indefinição, de contornos não nítidos, "a<br />

tônica do romance não está no antogonismo, mas na fluidez e na dissolução<br />

<strong>da</strong>s fronteiras entre as categorias sociais" (observação de Roberto Schwarz),<br />

diferente, por conseguinte, <strong>da</strong> linha de força que vincou o romance dos anos<br />

30 e foi retoma<strong>da</strong> nos anos 70, ou no teatro do próprio Chico Buarque.<br />

Como o romance citado de Antônio Torres, Estorvo quer captar também<br />

o homem brasileiro exilado na urbani<strong>da</strong>de, encravado no agora, num tempo<br />

de crise, que anula o passado e corre o risco de perder o futuro, que aponta<br />

par'a o pior, O protagonista, emblema de uma socie<strong>da</strong>de desagrega<strong>da</strong> e sem<br />

projetos, busca a si mesmo, sua identi<strong>da</strong>de, mesmo sendo seu movimento<br />

inconsequente.25 Acena final do suicídio-assassinato revela sintomaticamente<br />

"a disposição absur<strong>da</strong> de continuar igual em circunstâncias impossíveis",26<br />

como metáfora do Brasil contemporâneo.<br />

O romance de Chico Buarque, "uma peregrinação alucina<strong>da</strong> em deman<strong>da</strong><br />

de raízes perdi<strong>da</strong>s através dum percurso existencial povoado de assombro<br />

e de solidão",27 em que tudo dá errado para o protagonista, não veio para<br />

explicar o Brasil; funciona, antes, como um estorvo que num solo histórico,<br />

aponta para a perturbação de uma identi<strong>da</strong>de, Parece demonstrar que, em<br />

tempos "pós-modernos", para além dos populismos, já não há lugar para a<br />

"ópera do malandro", para o urubu macunaimicamente malandro <strong>da</strong> festa no<br />

céu. Demonstra que a instabili<strong>da</strong>de urbana determina nosso cotidiano: o<br />

presente turbulento por onde campeia a violência circunscreve a ci<strong>da</strong>de


130 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

enquanto nossa mora<strong>da</strong> incerta. Mora<strong>da</strong> incerta que é um "agora" precário a<br />

ser substituído por outro agora igualmente precário, quando a moderni<strong>da</strong>de<br />

perde fé em si mesma; o presente faz a crítica do futuro e passa a desalojá-lo,<br />

e ganham força os conflitos de ordem cultural.


Teoria <strong>da</strong> literatura:<br />

instituição apátri<strong>da</strong><br />

Heidrun Krieger Olinto<br />

o artista plástico coreano Nam June Paik, figura emblemática <strong>da</strong>s contradições<br />

radicais na cena atual <strong>da</strong> produção cultural <strong>da</strong> vídeo-arte, precisou de<br />

uma déca<strong>da</strong> para realizar um projeto de dimensão grandiosa e de efeito<br />

mágico e perturbador. A sua obra de vídeo-arte Hight Tech Allergy, exposta<br />

pela primeira vez em 1995, na retrospectiva do artista organiza<strong>da</strong> pelo museu<br />

de arte de Wolfsburg, não só emprestou brilho especial ao evento, mas marca<br />

de forma fascinante uma espécie de point of no return para o processo de<br />

criação artística e para os hábitos de compreender e apreciar obras de arte<br />

contemporâneas em geral.<br />

Uma parede gigantesca de três metros de altura e de dez metros de<br />

largura, monta<strong>da</strong> com mais de duzentos aparelhos de televisão ligados, ocupou<br />

o salão central do museu, oferecendo-se ao espectador como janela<br />

monumental e fantasmagórica para o mundo. Uma visão de simultanei<strong>da</strong>des<br />

velozes - de imagens, cores, movimentos, luzes e sons. Alucinantes. Essa<br />

instalação caleidoscópica de seqüências instantâneas de microfragmentos<br />

superpostos, substituídos em frações de segundos e imperceptíveis ao olhar<br />

atento, fascina pela possibili<strong>da</strong>de de estimular ao extremo percepções intelectuais<br />

e impressões sensoriais, tanto no instante pontual quanto na sucessão<br />

prolonga<strong>da</strong>, por mais paradoxal que isso possa parecer. Fenômenos sem<br />

contornos, maleáveis, num fluxo cambiante, ganhando vi<strong>da</strong> pela mescla


132 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

impressionante de ofertas mediáticas, nomeáveis apenas pelo artifício <strong>da</strong><br />

interrupção do movimento. Dizíveis, em suma, pelo falso gesto de congelar<br />

o ímpeto seqüencial no tempo.<br />

Mas é justamente essa impossibili<strong>da</strong>de de captar e cristalizar a experiência<br />

e, ao mesmo tempo, o desejo de integrá-la numa construção de sentido<br />

sem minimizar o seu efeito de inapreensível complexi<strong>da</strong>de que mobiliza o<br />

fruidor contemporâneo em sua aflição de compreender.<br />

High Tech A lle rgy , neste conjunto, se presta de modo exemplar para<br />

situar o difícil e fascinante circuito comunicativo <strong>da</strong>queles que transitam nos<br />

espaços de produção, transmissão; recepção e análise crítica dos fenômenos<br />

ain<strong>da</strong> chamados de artísticos. Hoje ninguém sabe de que se trata e, não<br />

obstante - ou por causa disso -, se multiplicam escolas. teorias, métodos,<br />

hipóteses interessantes e plausíveis (ou não), na ânsia de ofertar quadros,<br />

instrumentos e conceitos para cercear algo oscilante que escapa à descrição<br />

de valor estável.<br />

No âmbito <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> literatura a motivação temática de parte considerável<br />

de estudiosos gira em torno <strong>da</strong> construção de teoremas do múltiplo e do<br />

heterogêneo, desalojando o interesse por identi<strong>da</strong>des a favor de diferenças,<br />

paradoxias, contingências.<br />

Uma <strong>da</strong>s várias coletâneas publica<strong>da</strong>s em 1995, de "textos fun<strong>da</strong>mentais<br />

para a compreensão sistemática e propedêutica de categorias imprescindíveis<br />

para o estudo atual <strong>da</strong> literatura", inicia-se com uma afirmação sintomática e<br />

contundente dos organizadores. Segundo Fohrmann e Müller, o objeto <strong>da</strong><br />

ciência <strong>da</strong> literatura não existe simplesmente. Ao contrário, ficou evidente<br />

para a disciplina que a sua tarefa básica devia ser o constante processo de<br />

redesenhar o(s) campo(s) do(s) objeto(s) de sua reflexão. Uma tarefa de risco<br />

que alterna sentimentos de "felici<strong>da</strong>de e pavor".! A promessa de encanto pela<br />

constante inovação reflexiva assusta pelo impossível desenvolvimento de um<br />

saber cumulativo, linear. Desde os anos 70, a consciência agu<strong>da</strong> <strong>da</strong> falta de<br />

confiança em fun<strong>da</strong>mentos está, para uns, associa<strong>da</strong> à insuportável sensação<br />

de per<strong>da</strong> e provisorie<strong>da</strong>de. Já outros, militantes no cenário dos estudos <strong>da</strong><br />

literatura, sentem-se estimulados pela oportuni<strong>da</strong>de de infindáveis observações<br />

e auto-reflexões acerca <strong>da</strong>s práticas de uma disciplina que. de modo<br />

geral, ain<strong>da</strong> se entende como teoria <strong>da</strong> literatura, ciência <strong>da</strong> literatura, literary<br />

criticism, de acordo com os lugares geográficos, nacionais e culturais de sua<br />

atuação.<br />

As dificul<strong>da</strong>des situam-se, assim, entre o discurso oscilante sobre literatura,<br />

os pressupostos epistemológicos, metateóricos, teóricos e metodológicos,<br />

e a necessi<strong>da</strong>de simultânea de parar o fluxo e propor classificações,<br />

construções de sentido, pelo menos para pequenos momentos de duração. Os<br />

novos acentos mostram de modo claro que as alternativas propostas no<br />

mercado teórico, ain<strong>da</strong> que não permitam homogeneização, favorecem o<br />

I. FOHRMANN, Jürgen e MÜL­<br />

LER, Harro, orgs. Literaturwissenschaji.<br />

Munique, Fink,<br />

!995.


2 PECHLlVANOS, Miltos, RIE.<br />

GER, Steffen, SlRACK e WEITl,<br />

Michael. EinJuhrung in die Literactunvissenschaji.<br />

Weimar:<br />

Metzler, 1995.<br />

Teoria <strong>da</strong> literatura: instituição apátri<strong>da</strong> 133<br />

entendimento do fenômeno literário como convenção comunicativa e/ou<br />

ação social específica,<br />

A multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s questões sugeri<strong>da</strong>s desafia práticas tradicionais a<br />

partir do instante em que o comportamento sensocomunal <strong>da</strong> disciplina se<br />

afasta <strong>da</strong> idéia de que o seu campo possa ser definido exclusivamente a partir<br />

de objetos precisos ou proprie<strong>da</strong>des substanciais, Segundo os autores citados<br />

- e não só eles - o universo <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> literatura, transferido para a uni<strong>da</strong>de<br />

fun<strong>da</strong>nte texto-contexto, torna-se especialmente desafiante quando ensaia<br />

definições de fronteira entre arquivos próprios e alheios. Construções de<br />

sentido dependem dessas opções momentâneas cristaliza<strong>da</strong>s por convenções<br />

consensuais que esboçam possíveis limites (Fohrmann e Müller, 9).<br />

Enquanto teóricos, estamos à procura de teorias - uma superteoria? - que<br />

saiba li<strong>da</strong>r com soluções efêmeras e de alta complexi<strong>da</strong>de e que saiba circular<br />

com desenvoltura entre o campo de categorias arquiva<strong>da</strong>s e o espaço de<br />

processos móveis, inacabados. Na<strong>da</strong> fácil. A contracapa <strong>da</strong> coletânea permite<br />

uma antevisão do que está por vir. As já menciona<strong>da</strong>s "categorias indispensáveis<br />

para o estudo <strong>da</strong> literatura" apontam sintonias com teorias sistêmicas,<br />

desconstrutivistas e pós-estruturalistas, apropriando-se de conceitos e termos<br />

do campo <strong>da</strong> comunicação, <strong>da</strong> evolução de sistemas artísticos, <strong>da</strong> mídia;<br />

menciona questões relativas à função autoral, diferença, forma e retórica,<br />

seleção e processo, auto-referência, metalinguagem, psicanálise, gender, observação<br />

de segun<strong>da</strong> ordem e ética.<br />

O que esperar de tudo isso?<br />

Outro exemplo, uma coletânea também publica<strong>da</strong> no ano passado, ilustra<br />

uma situação dramática semelhante. Einführung in die Literaturwissenschaft<br />

(Introdução à teoria <strong>da</strong> literatura), organiza<strong>da</strong> a quatro mãos, dedica-se, no<br />

prefácio, à demarcação de possíveis fronteiras para literatura, ciência e teoria.<br />

Nas páginas iniciais, lêm-se afirmações como estas: ciências são determina<strong>da</strong>s<br />

pelo seu objeto e pelas técnicas de adquirir e transmitir conhecimento<br />

sobre ele. Além disso, são determina<strong>da</strong>s pela sua função social e por seu lugar<br />

institucional; no caso <strong>da</strong> ciência <strong>da</strong> literatura, em instituições como universi<strong>da</strong>des,<br />

além de editoras, <strong>revista</strong>s especializa<strong>da</strong>s e bibliotecas, sem esquecer<br />

dos seminários e congressos. Mas o que será o seu objeto? Dele fazem parte<br />

apenas as belas letras ou também as letras triviais? Apenas literatura ficcional<br />

ou também literatura específica? Seu campo de interesse abrange só os textos<br />

clássicos ou os mais recentes? E o que dizer sobre meios como o teatro,<br />

cinema, televisão e vídeo? Ou, colocando o problema em nível diferente: para<br />

que serve tudo aquilo que se ensina e aprende a respeito? Será que uma<br />

prática cultural (em fase de extinção?) encontra nesse espaço a sua última<br />

reserva? Será que um pensamento crítico oferece indispensáveis motivações<br />

para a ret1exão, ou será que as tecnologias <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de informatiza<strong>da</strong> e<br />

volta<strong>da</strong> para o lazer se preparam para ocupar o seu lugar?2


134 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

Uma mescla de in<strong>da</strong>gações - esboços de esclarecimentos que confundem.<br />

Problemas que, em sua maior parte, tocam questões de debate constante<br />

na esfera <strong>da</strong> cultura.<br />

Nos anos 70, ain<strong>da</strong> era possível que um manual de teoria <strong>da</strong> literatura em<br />

forma de antologia, como Issues in Contemporary Literary Criticism,3 se<br />

áuto-apresentasse, em seu prefácio, como "an iiltroduction ... designed to help<br />

the student become aware of what is at stake in a criticaI discussion, oI what<br />

issues are in play, so that he may better be able to engage in that process of<br />

colaboration which, as several critics included here affirms, is singular to the<br />

activity of literary criticism" (pp. vii). Duas déca<strong>da</strong>s depois, essa mesma<br />

expectativa não fun<strong>da</strong>menta o horizonte dos que militam profissionalmente<br />

nos campos dos estudos literários.<br />

O livro Compara tive Literature in the Age of Multicllltllralism, editado<br />

em 1995 por Charles Bernheimer,4 e idealizado como relatório encomen<strong>da</strong>do<br />

pela American Comparative Literature Association para situar a disciplina<br />

Literatura Compara<strong>da</strong> nos anos 50, 60 e 70, oferece uma ante visão <strong>da</strong> cartografia<br />

atual a partir do próprio e sugestivo título. Enquanto os relatórios<br />

anteriores creditavam o conceito de literatura compara<strong>da</strong> na era pós-guerra a<br />

uma nova perspectiva internacionalista que abrangia contextos mais amplos<br />

tanto na articulação de motivos, temas e tipos, quanto na compreensão de<br />

gêneros e modos (pp. 39), na ver<strong>da</strong>de, segundo Bernheimer, a ótica amplia<strong>da</strong><br />

não ia além <strong>da</strong> Europa e <strong>da</strong> linhagem <strong>da</strong> alta cultura européia. Neste sentido,<br />

o estudo comparado <strong>da</strong> literatura tendia a fortalecer uma identificação entre<br />

estados-nação e comuni<strong>da</strong>des imagina<strong>da</strong>s em função de identi<strong>da</strong>des nacionais<br />

e lingüísticas. Essa noção de literatura compara<strong>da</strong>, de vocação tradicionalmente<br />

internacionalista, sustenta paradoxalmente o domínio de algumas -<br />

poucas -literaturas nacionais européias. É a Europa vista como lar de originais<br />

canônicos e as "outras culturas" ocupando territórios periféricos. Uma<br />

segun<strong>da</strong> e deliciosa ambigüi<strong>da</strong>de. detecta<strong>da</strong> por Bernheimer. revela-se na<br />

conduta cautelosa "we must be alert!" (pp. 40). face ao crescimento de<br />

programas interdisciplinares. Se, por um lado. esse desenvolvimento é bemvindo,<br />

por outro, teme-se o excesso. "The crossing of disciplines involve a<br />

relaxing of discipline" (pp. 40). Na avaliação de Bernheimer. esses estudos<br />

se deitaram em berço contraditório. "Just as comparative literature serves to<br />

define national entities even as it puts them in relation to one another, so may<br />

also serve to reinforce disciplinary boun<strong>da</strong>ries even as it transgresses them"<br />

(pp.41).<br />

Uma terceira ameaça aos valores fun<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong> literatura compara<strong>da</strong> foi<br />

senti<strong>da</strong> na transformação progressiva dos Departamentos de Literatura Compara<strong>da</strong><br />

- e dos Departamentos de Inglês e de Francês em geral - em arenas<br />

para o estudo "of (literary) theory". O tom ansioso que transparece no relatório<br />

de 1975 sinaliza simultaneamente a reação assusta<strong>da</strong> e uma evidência:<br />

3 POLlETIA, Gregory T., org.<br />

[ssues in Contemporarv Literary<br />

Criticism. Boston: Little<br />

Brown and Company, 1973.<br />

4 BERNHEIMER, Charles. Comparative<br />

Ui/erature in the Al.'e<br />

of Multiculturalism. Baltimore:<br />

Johns Hopkins UP, 1995.


Teoria <strong>da</strong> literatura: instituição apátri<strong>da</strong> 135<br />

"the field was coming to look disturbingly foreign for some of its eminent<br />

authorities" (41). Numa retrospectiva de hoje, esses horizontes ampliados se<br />

tornaram quase imperceptíveis e ingênuos os perigos entrevistos.<br />

Para o relatório dos anos 90, um empreendimento "exciting and instructive",<br />

foram escolhidos "top scholars" variados de diversas instituições, cujos<br />

interesses e campos de pesquisa abrangiam desde teoria e estudos literários<br />

do século XIX, crítica feminista com ênfase em narrativa e genealogia do<br />

renascimento a partir <strong>da</strong> ótica do feminismo e dos estudos culturais, black<br />

studies e teoria crítica, estudos étnicos e literatura americana nativa, história<br />

intelectual e literária, literatura latino-americana, literatura medieval com<br />

ênfase em iconografia e música, até questões referentes a colonialismo e<br />

pós-colonialismo (pp. ix). O objetivo declarado: levantar controvérsias e não<br />

tentar encontrar "a confortable middle ground" neste processo de auto-análise<br />

<strong>da</strong> disciplina em busca de uma identi<strong>da</strong>de "at the end of the century" (pp.<br />

x). Se o resultado final oferecia um painel de diferenças, pelo menos havia<br />

um consenso surpreendente quanto às direções a serem escolhi<strong>da</strong>s pela disciplina.<br />

Uma análise do perfil do estudioso no espaço <strong>da</strong>s letras revela, no<br />

mínimo, uma conduta repleta de ansie<strong>da</strong>des. As suas leituras privilegia<strong>da</strong>s<br />

situam-se hoje, provavelmente, no campo <strong>da</strong> sociologia, antropologia, psicanálise,<br />

história e filosofia e os debates mais incandescentes travam-se em<br />

torno de questões teóricas e não de textos literários. A própria identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

literatura como objeto de estudo virou um problema e se transformou em<br />

questão política. Quando, em 1969, aconselhava-se aos estu<strong>da</strong>ntes de Harvard<br />

que substituíssem a bíblia de seus estudos literários, até então o livro<br />

Theory of Literature, de Warren e Welleck, pela leitura de Nietzsche, Freud e<br />

Marx, iniciava-se, nos Departamentos de Letras, nos Estados Unidos, um<br />

processo responsável pela mu<strong>da</strong>nça dos estudos retóricos, intrínsecos <strong>da</strong><br />

literatura, para a investigação de sua situação contextualiza<strong>da</strong>, seja do ponto<br />

de vista psicológico, histórico ou social. Desde então, não pára de crescer um<br />

repertório de questões relativas às relações entre literatura e experiência,<br />

estética e ideologia, gender e poder. Um conjunto de discursos variáveis<br />

sobre diferenciação social e interação conflitante e sobre a inserção de formas<br />

literárias em histórias coletivas e estruturas ideológicas contribuiu, entre<br />

outros, para o desenvolvimento de uma nova área - a de estudos coloniais e<br />

pós-coloniais.<br />

No presente momento, o campo se apresenta tão fragmentado numa<br />

multiplici<strong>da</strong>de de perspectivas teóricas diversas que o termo "contextualização"<br />

se transformou em senha para os discursos mais influentes sobre literatura.<br />

"History, culture, politics, location, gender, sexual orientation, class,<br />

race - a reading in the new mode has to try to take as many of these factors<br />

as possible into account" (pp. 8). A política atual do multiculturalismo,


6. CALVINO, ltalo. Seis propos­<br />

tas para () próximo milênio.<br />

São Paulo: Compauhia <strong>da</strong>s Letras,<br />

1990.<br />

7 Eco, Umberto. Seis passeios<br />

pelo.\' bosques <strong>da</strong> ficção. São<br />

Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras,<br />

1994.<br />

Teoria <strong>da</strong> literatura: instituição apátri<strong>da</strong> 137<br />

para a geração do ano 2000. Assim pelo menos o querem orelha e contracapa<br />

que apresentam o livrinho de cento e poucas páginas como testamento artístico<br />

de um dos protagonistas literários desse fim de milênio.6 Sendo o primeiro<br />

escritor italiano a ser convi<strong>da</strong>do a participar desse ciclo tradicional, Calvino<br />

preparou-se para a tarefa com a responsabili<strong>da</strong>de especial de representar<br />

uma tradição literária de séculos. Assim, a primeira <strong>da</strong>s seis - ou melhor,<br />

cinco - propostas, com o título de "Leveza", baliza-se em figuras consagra<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong> filosofia, <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> literatura, fazendo desfilar, desordena<strong>da</strong>mente,<br />

em vinte e seis páginas, nomes tais como Ovídio, Lucrécio, Kundera,<br />

Boccaccio, Cavalcanti, Dante, Emily Dickinson, Henry James, Shakespeare,<br />

Cervantes, Rabelais, Cyrano de Bergerac, Jonathan Swift, Newton, Gior<strong>da</strong>no<br />

Bruno, Luciano de Samósata, Ludovico Ariosto, Leopardi, Galileu, Voltaire,<br />

Leibniz, Pitágoras. A conferência explora caminhos novíssimos ou antigos,<br />

estilos e formas no universo infinito <strong>da</strong> literatura, articula o imaginário <strong>da</strong><br />

literatura com diferentes ramos <strong>da</strong> ciência, destacando mensagens do ADN,<br />

impulsos neurônicos, quanta, neutrinos e informática, fazendo com que reali<strong>da</strong>des<br />

físicas coexistam ao lado de fábulas mitológicas. Desliza para terrenos<br />

<strong>da</strong> antropologia e <strong>da</strong> etnologia, incluindo mulheres, bruxas e a Santa<br />

Inquisição. Aponta, ain<strong>da</strong>, a Morfologia do conto de Propp e oferece o<br />

resumo de uma história curta de Kafka, O cavaleiro <strong>da</strong> cuba.<br />

Matéria mistura<strong>da</strong> confusamente ao sabor do acaso, como o próprio<br />

Calvino classifica o conteúdo de Voyage <strong>da</strong>ns la lune, de Bergerac:<br />

Há demasiados l/os illlrillcalldo-se em um discurs01 Qual deles devo puxar para ter<br />

em IIUlos a cOllclusão' Há o .fio 'lue elllaça a lua, Leopardi, Newton, a gravitação<br />

univerSal e a lnitação .... Há o fio de Lucrécio, o atomismo, a filosofia do amor de<br />

Cavalcanti, a magia do Rellascimmto, Cyrano ... E há o fio <strong>da</strong> escrita como metáfilra<br />

<strong>da</strong> substância l'ull'erulellta dOl/lundo (1990: 3íi e 39).<br />

o segundo exemplo diz respeito a Seis passeios pelos bosques <strong>da</strong> ficção<br />

de Umberto Eco (1994),7 outro conferencista convi<strong>da</strong>do por Harvard. Se<br />

dermos crédito à orelha do livro, ain<strong>da</strong> que sem assinatura, trata-se de um<br />

pensador "inteligente" do mundo contemporâneo, examinando-o de diversos<br />

ângulos com incrível mobili<strong>da</strong>de de pensamento. Um pensador capaz de<br />

retroceder até às origens <strong>da</strong> narrativa ocidental para, em segui<strong>da</strong>, comentar o<br />

uso do tempo num filme pornográfico ou a maneira como o consumo de<br />

Coca-Cola afeta nossos hábitos de ler e pensar.<br />

Com uma erudição repleta de humor, Eco discorre sobre modos de<br />

recepção nos contos de fa<strong>da</strong>, nos romances policiais, nos noticiários de<br />

jornais, em cartas de leitores, na literatura dos séculos XIX e XX, com o<br />

fascínio de quem está contando uma história. Pensador original, em busca de<br />

parâmetros coerentes para dimensionar o mundo, ele sabe, também, estimular<br />

o interesse do grande público, casando a rigorosa formação acadêmica com


138 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, na 3<br />

a experiência de romancista. O autor consegue traduzir questões "delica<strong>da</strong>s"<br />

em termos que nos tocam diretamente, transformando-nos em viajantes pelos<br />

caminhos do bosque <strong>da</strong> ficção. A metáfora do bosque para o texto narrativo<br />

coloca em destaque o papel do leitor e do teórico profissionais, compelidos a<br />

tomar atitudes perante opções infindáveis. numa alusão direta ao "Jardim dos<br />

caminhos que se bifurcam" de Borges.<br />

Nas vinte e cinco páginas do primeiro capítulo. "Entrando no bosque"<br />

(1994: 7-31), tropeçamos novamente na para<strong>da</strong> descontrola<strong>da</strong> de nomes e<br />

assuntos ligados à linguagem e à literatura que alinham - em torno <strong>da</strong> figura<br />

do leitor e do processo de leitura - E.A.Poe, Julio Verne, Lawrence Sterne,<br />

Carolina Invernizio, Kant, J ane Austen, Fernando Pessoa, Dostoievski. Salinger,<br />

Nerval, Swift, Wittgenstein, Joyce, Iser, Calvino, Melville, Agatha Christie,<br />

Georges Poulet, Homero, Perrault, Grimm, Shakespeare, Flaubert, Eliot,<br />

Wayne Booth, Barthes, Todorov, E.D. Hirsch, Riffaterre, Genette, Foucault,<br />

Chatman, Fillmore, Pagliatti.<br />

Ain<strong>da</strong> que Eco admita que o formato preciso do repertório do saber<br />

solicitado pela leitura de um texto permaneça no campo <strong>da</strong> conjetura, ele<br />

próprio, não há dúvi<strong>da</strong>, aprecia o leitor de "competência enciclopédica"<br />

máxima (pp. 120). Ou seja, o profissional <strong>da</strong> academia, de quem se cobra uma<br />

cultura de dois milênios de tradição ocidental. Esse estudioso institucional<br />

não se permite encontros desarmados.<br />

As perguntas que se impõem, em função dos exemplos <strong>da</strong>dos, podem ser<br />

formula<strong>da</strong>s <strong>da</strong> seguinte forma: afinal, que produtores e consumidores são<br />

esses, que se comportam com tamanha voraci<strong>da</strong>de e obsessão? Que compulsão<br />

é essa, que obriga a desfral<strong>da</strong>r no espaço exíguo de poucas páginas uma<br />

cultura de dois milênios de tradição. sequer compreensível, nessa forma<br />

compacta<strong>da</strong>, para os próprios companheiros acadêmicos - ain<strong>da</strong> que esse fato<br />

permaneça na esfera dos segredos inconfessáveis entre pares? Diga-se de<br />

passagem, parceiros que militam, como se supõe, em campos de interesse<br />

pelo menos parcialmente comuns.<br />

O mais escan<strong>da</strong>loso, nessa situação, é que esses livrinhos se transformaram<br />

em citação quase obrigatória para estu<strong>da</strong>ntes e profissionais de letras,<br />

fascinados com as sínteses oferta<strong>da</strong>s por belas figuras metafóricas e pelas<br />

paisagens exóticas que circulam nessas páginas, em que o encanto se estende<br />

à leitura <strong>da</strong> miscelânea de nomes e textos velozmente citados.<br />

Em outras palavras, as nossas práticas intelectuais aproximam-se perigosamente<br />

dos hábitos de turistas apressados, referidos por Bernheimer como<br />

"having read a few guidebooks to faraway places", em busca de pequenos<br />

souvenirs palpáveis e, ao mesmo tempo, suficientemente curiosos e em mo<strong>da</strong>,<br />

para merecer um olhar fortuito quando passam a coabitar as nossas estantes,<br />

ao lado de livros nunca lidos porque disponíveis na forma sintética de dois,<br />

três parágrafos em nossos "guias turísiticos", repletos de citações oblíquas.


X. ROBERTS, T. J. An Aesthetics<br />

ol1unk Fiction. Athens: Georgia<br />

U.P., 1990.<br />

Teoria <strong>da</strong> literatura: instituição apátri<strong>da</strong> 139<br />

Por outro lado, o que fazer? O que fazer, quando, diante do número ca<strong>da</strong><br />

vez maior de opções, desaparece no horizonte <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des do intelectual<br />

a facul<strong>da</strong>de de julgar, de situar-se no equilíbrio justo entre o excesso de<br />

<strong>da</strong>dos e o desejo por algum tipo de racionalização?<br />

Volto a afirmar, portanto, que o profissional <strong>da</strong> área de letras não se pode<br />

permitir encontros desarmados. A sua investigação requer compromissos<br />

com a elaboração de sistemas categoriais e deman<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong>, um grau elevado<br />

de conhecimentos arquivados de forma ordena<strong>da</strong> e hierárquica, articulados<br />

em sistemas conceituais coerentes. Esse acadêmico que transita no espaço <strong>da</strong><br />

curiosi<strong>da</strong>de científica aproxima-se do seu objeto de estudo acompanhado por<br />

determina<strong>da</strong> competência, avaliza<strong>da</strong> pelos pares em função <strong>da</strong> dimensão do<br />

seu repertório de conhecimentos arquivados, tanto em relação a textos ficcionais<br />

quanto em relação a textos teóricos e textos acerca de textos literários.<br />

Neste sentido, o leitor especializado - distinto do amador que passeia pela<br />

literatura de modo distraído - enxerga na paisagem <strong>da</strong> ficção vizinhos intelectuais,<br />

preferências filosóficas, escolas, querelas estéticas, paixões políticas.<br />

Ele homenageia com a escolha a sua própria curiosi<strong>da</strong>de profissional de<br />

querer conhecer técnicas narrativas singulares, propostas temáticas inovadoras,<br />

a inserção do livro na produção conjunta de uma autor, ou na tradição<br />

vigente.<br />

O especialista produz comentários sobre textos literários, em outras<br />

palavras, cria o texto variorum. Todos os textos são percebidos na companhia<br />

de outros, incontáveis. Nesta ótica, o romance do século XVIII não se entende<br />

como sistema que produzia romances escritos no espaço <strong>da</strong>quele século, mas<br />

como objeto variorum, como megatexto que abrange tanto os romances<br />

<strong>da</strong>quele período, quanto os comentários produzidos a partir de então. No caso<br />

dos clássicos o cenário abrange séculos de explicações, análises e controvérsias<br />

críticas e teóricas que, de algum modo, são cobrados e vali<strong>da</strong>m, ou não,<br />

a competência do crítico e do teórico que milita na esfera institucional do<br />

profissional acadêmico.<br />

Esse cenário não tem transparência para o leigo. Não faz parte de suas<br />

expectativas aprofun<strong>da</strong>r o conhecimento de trabalhos críticos clássicos sobre<br />

Shakespeare, por exemplo, tais como explicações sobre alusões bíblicas,<br />

análises <strong>da</strong>s condições de produção e recepção <strong>da</strong>s obras, dos gêneros e<br />

estiros e conceitos de época; análises que nos últimos anos ofereceram perspectivas<br />

novas sobre suas peças; os diferentes instrumentos metodológicos<br />

usados; manuais, monografias sobre direito, medicina e botânica; obras de<br />

historiografia, livros sobre precursores e contemporâneos de Shakespeare,<br />

tratados sobre a estrutura de seu teatro, biografias; o conhecimento dos<br />

próprios textos em diferentes edições, formatos e combinações, com ou sem<br />

comentários, prefácios, introduções, apêndices, posfácios. Em resumo: "material<br />

para satisfazer a gulodice de uma vi<strong>da</strong> inteira".8


140 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

Esse hipertexto composto por, virtualmente, tudo que se escreveu e se<br />

escreve "acerca" de Shakespeare e a sua obra permanece invisível ao olhar<br />

amador. Quando este, por exemplo, conversa com um especialista sobre King<br />

Lear, os dois falam, certamente, de textos diferentes. Para o acadêmico o<br />

texto "palimpsesto", um caleidoscópio de to<strong>da</strong>s as variantes <strong>da</strong> peça, incluí<strong>da</strong><br />

a cadeia interminável de enunciados seculares sobre ela pelos mais considerados<br />

- e até obscuros - comentaristas, pode transformar-se em deleite que<br />

supera, talvez, o interesse pela leitura <strong>da</strong> própria peça teatral.<br />

Não deveria espantar, então, que, segundo levantamento estatístico, estudiosos<br />

americanos de literatura inglesa publicaram, em um ano, 544 trabalhos<br />

sobre Shakespeare.9 Mas espanta! Ain<strong>da</strong> que, certamente, não seja suficiente<br />

para saciar o apetite do crítico e do teórico. Se articularmos essa<br />

informação com um dos anuários <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des profissionais na área dos<br />

estudos literários, publicados regularmente pela Modem Language Association,<br />

teremos uma idéia do tamanho e <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de desse campo. O<br />

relatório assinala, em cinco volumes, quase três mil Ítens diferentes, distribuídos<br />

entre notas, edições, artigos, coletâneas, monografias e livros, reconhecendo,<br />

em ordem alfabética, a vigência <strong>da</strong>s seguintes abor<strong>da</strong>gens teóricas<br />

<strong>da</strong> literatura: estruturalista, feminista, filosófica, hermenêutica, lingüística,<br />

marxista, narrativista, neo-historicista, pós-estruturalista, pós-modernista,<br />

pragmática, psicanalítica, psicológica, reader-response criticism, recepcional,<br />

retórica, semiótica e sociológica (Roberts, 1990: 235).<br />

Consensual ou não, essa profusão de etiquetas, supostamente compondo<br />

a cartografia atual dos estudos de literatura, perturba. Ao menos o leigo. O<br />

especialista, em estado de graça, delira. Será?<br />

Gostaria de acreditar que não. Se por um lado este novo espaço multiopcional<br />

mobiliza o teórico institucional para travessias interdisciplinares e<br />

transdisciplinares, por outro, não só o próprio objeto de estudo mas, igualmente,<br />

o campo <strong>da</strong> sua investigação tornou-se opaco. Ele não sabe mapear e<br />

arquivar a hiperabundância de ofertas e torná-las disponíveis para uma atuação<br />

eficaz.<br />

A questão pode então ser formula<strong>da</strong> mais ou menos <strong>da</strong> seguinte forma:<br />

como esse profissional <strong>da</strong>s letras se comporta - e deveria, ou poderia se<br />

comportar - no cenário <strong>da</strong> nossa cultura mosaica diante <strong>da</strong> informação em<br />

excesso e <strong>da</strong> sua própria falta de tempo. <strong>da</strong> incapaci<strong>da</strong>de de assimilação e<br />

construção de sentido, de algum modo, compreensível? A pergunta refere-se<br />

tanto ao produtor quanto ao leitor teórico dessa cultura e à sua circulação num<br />

espaço profissional particular: a academia. Será que ain<strong>da</strong> existe alguma<br />

possibili<strong>da</strong>de, algum compromisso ou sequer desejo de querer transformar<br />

essa produção cultural em conhecimento arquivável e disponível em nossa<br />

memória, quando solicita<strong>da</strong>, conferindo-lhe deste modo alguma utili<strong>da</strong>de?<br />

9 RESCHER. N. The State Df<br />

Northamerican PhiJosophy<br />

To<strong>da</strong>y. Review o{ Methal'hysics.<br />

46, Jun., J 993.


Teoria <strong>da</strong> literatura: instituição apátri<strong>da</strong> 141<br />

Se ain<strong>da</strong> acrescentarmos às tendências interdisciplinares a internacionalização<br />

e globalização quase total dos bens culturais, estaremos diante de uma<br />

situação de intransparência radical. Portanto, a questão urgente que se impõe<br />

para o intelectual - e, de modo geral, para o produtor, leitor e teórico desse<br />

repertório cultural enciclopédico - será a seguinte: que tipo de socialização e<br />

profissionalização seria necessário para permitir o equilíbrio entre desdenhado<br />

generalismo e desprezível minimalismo, ou dito de outro modo, para<br />

evitar o ridículo entre os extremos de saber na<strong>da</strong> sobre tudo ou conhecer tudo<br />

sobre na<strong>da</strong>?<br />

É nesse ponto e nesse momento de hipercomplexi<strong>da</strong>des extremas que se<br />

deveriam atualizar as discussões sobre os estudos <strong>da</strong> literatura, procedendose<br />

a uma ret1exão renova<strong>da</strong> sobre as relações entre escrita, leitura, teoria e<br />

práticas de vi<strong>da</strong>.


1 NINA, Marcelo Della. O<br />

grande salto para a História.<br />

Jornal do Brasil. Idéias. Rio<br />

de Janeiro, 21 de setembro de<br />

1991. p. 6-8.<br />

Romance e história<br />

Letícia Malard<br />

Em urna reportagem intitula<strong>da</strong> "O grande salto para a História", Marcelo<br />

Della Nina ent<strong>revista</strong> algumas pessoas - professores de literatura, escritores<br />

e editores - sobre o boom, na déca<strong>da</strong> de 90, de romances pautados em fatos<br />

históricos. I Meus propósitos neste texto são, com o objetivo de ampliar o<br />

diálogo quatro anos depois, comentar o que disseram essas pessoas, e, corno<br />

desdobramento, especular sobre relações, tanto as perigosas quanto as seguras,<br />

entre Literatura e História.<br />

Paulo Amador, autor de Rei branco, rainha negra, romance que narra a<br />

vi<strong>da</strong> de Chica <strong>da</strong> Silva, declarou que o novo romance histórico tem três razões<br />

de ser: a necessi<strong>da</strong>de de se procurarem mitos de morali<strong>da</strong>de e de se reencontrarem<br />

heróis num país em crise; o comportamento do leitor - que entende o<br />

romance histórico, gosta dele e não tem vergonha de dizer que o está lendo;<br />

a saí<strong>da</strong> do impasse entre a chatice do nouveau roman e o best-seller americano<br />

de baixa quali<strong>da</strong>de.<br />

A questão <strong>da</strong> crise do País aponta<strong>da</strong> por Amador - o Brasil do empeachment<br />

de Fernando Collor - poderia ser estendi<strong>da</strong> para o mundo <strong>da</strong> globalização<br />

pós-que<strong>da</strong> do Muro de Berlim, urna vez que a atual corri<strong>da</strong> a fontes<br />

históricas para transformação em matéria romanesca é universal. A literatura<br />

reproduziria, dessa maneira, o que se passa na vi<strong>da</strong> político-social em suas<br />

tentativas de buscar mitos de morali<strong>da</strong>de no passado e reencontrar heróis.


144 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, na 3<br />

Sem entrar no mérito dos acontecimentos, nota-se que, por esse caminho,<br />

tanto na Literatura quanto na Vi<strong>da</strong>, ao invés de se construir o novo está-se<br />

tentando reconstruir o velho. Ou, em muitos casos. o velhíssimo. Vejamos um<br />

exemplo universalista: A ci<strong>da</strong>de russa de São Petersburgo, que já se chamou<br />

Petrogrado e depois Leningrado, volta a ter o nome cristão primitivo. Apagouse-lhe<br />

não só a memória urbanística, <strong>da</strong>s mais belas do planeta (edifica<strong>da</strong> por<br />

Pedro, o Grande, de quem herdou o nome em 191.+). como também a política<br />

(recebeu Lenin na volta do exílio, nela se iniciou a Revolução de Outubro e<br />

foi palco <strong>da</strong> resistência popular antinazista durante a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial).<br />

No que se pretendeu voltar às raízes identitárias atrayés <strong>da</strong> restauração<br />

do nome primitivo, acabou-se por trazer para a atuali<strong>da</strong>de. junto com o nome,<br />

todos os signos nele inscritos: São Petersburgo, nome que eyoca a era de<br />

esplendor dos czares e <strong>da</strong> nobreza - em especial a do sanguinário Nicolau II<br />

- era em que grassava a miséria entre o povo, a níveis insuportáveis. Nesse<br />

talvez falacioso reencontro <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de perdi<strong>da</strong>, Leningrado passa a ser.<br />

dentro de São Petersburgo, aquele resíduo de infelici<strong>da</strong>de referido por Marco<br />

Polo ao Grande Khan. No imaginário dos petersburgueses, os símbolos de<br />

Leningrado foram recalcados. Dela só restam cinzas recolhi<strong>da</strong>s por algum<br />

Marco. Jamais poderá ser reconstruí<strong>da</strong> nem recor<strong>da</strong><strong>da</strong>, diria ele.2 E a editora<br />

Ars Poética não perdeu tempo: em 1992, traduziu para o português o romance<br />

então de vanguar<strong>da</strong> Petersburgo, de Andrei Biéli, cuja última edição em russo<br />

era de 1928.<br />

Essa reconstrução do velho é uma faca de dois gumes e tem seus reflexos<br />

na literatura. Reencontrar heróis do passado (que passado?), visando a esquecer<br />

crises, pode corresponder não só a uma saudável busca de identi<strong>da</strong>de,<br />

como também à crença liberal saudosista de que existe uma nação concebi<strong>da</strong><br />

como de todos e/ou para todos. No caso do citado romance de Paulo Amador,<br />

de que gosto muito e que foi escrito especialmente com vistas à instituição<br />

escolar, teme-se que muitos professores desavisados induzam os estu<strong>da</strong>ntes<br />

a enxergarem no livro, já a partir do título, uma convivência entre raças<br />

idealiza<strong>da</strong> porque sem preconceitos, e, o que é pior: historicamente existente<br />

desde o Brasil-Colônia.<br />

Quanto ao gosto do leitor graças à clareza do texto (do romance histórico<br />

em geral), a seu entendimento e o orgulhar-se de estar lendo episódios<br />

ficcionalizados de nossa história, não há o que discutir. Acrescentaria, ain<strong>da</strong>,<br />

outro motivo: A preferência por esse tipo de literatura poderia corresponder<br />

à rejeição de narrativas inventa<strong>da</strong>s do na<strong>da</strong>, (ain<strong>da</strong> que se tenha como certo<br />

que to<strong>da</strong> narrativa se constitui em transformação <strong>da</strong>s que a antecederam) ou<br />

seja: os leitores comuns estariam perdendo o interesse por ficções originárias<br />

do imaginário/imaginação de um sujeito individualizado. Na era <strong>da</strong> mídia e<br />

<strong>da</strong> produção para o mercado altamente sofistica<strong>da</strong>s, os juízos de valor se<br />

pulverizam como nunca, os limites entre a boa e a má literatura estão obscu-<br />

2. Referência ao diálogo entre<br />

o viajante e o imperador. sobre<br />

a inexistência <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des descritas<br />

pelo primeiro, em: CAL­<br />

VINO, Ítalo. As ci<strong>da</strong>des invisíveis.<br />

São Paulo: Companhia<br />

<strong>da</strong>s Letras, 199 L p. 58.


146 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

desesperança e, ao invés de resgatar a memória nacional, serviria de consolação<br />

à desesperança do presente e até mesmo a do futuro. No final <strong>da</strong>s<br />

contas, talvez se esteja, mais uma vez, reconstruindo o velho ao invés de<br />

construir o novo ...<br />

AProfa. Teresa Cristina Cerdeira <strong>da</strong> Silva. pesquisadora de José Saramago,<br />

diz que o romance histórico se liga ao fascínio pela leitura <strong>da</strong> Nova<br />

História, que tem nesta o seu Outro, o seu objeto de desejo.4 E também por<br />

razões políticas: O Brasil passou por épocas em que pensar a História seriamente<br />

foi impossível. Agora, o resgate está sendo feito. tanto pela História<br />

quanto pela Arte.<br />

A fala de Cristina <strong>da</strong> Silva relaciona psicanálise e política. O nosso<br />

Outr%bjeto desejante é imune a juízos morais porque vivido no imaginário,<br />

na fantasia. Nesse campo, tanto posso viver a infeliz noiva pré-romântica<br />

Marília de Dirceu quanto a rainha louca Maria L Entretanto, esse encantamento<br />

pela Nova História apreendi<strong>da</strong> na leitura de romances corre o risco de<br />

conduzir o leitor a equívocos, na medi<strong>da</strong> em que ele possa tomar como reais,<br />

e documenta<strong>da</strong>mente acontecidos, fatos ou suas interpretações que não passam<br />

de ficções literárias que recheiam os episódios históricos. Esquecendo-se<br />

de que historiador é uma especialização profissional que não se confunde<br />

com a ativi<strong>da</strong>de do escritor que pesquisa. Do ponto de vista político, a plena<br />

democracia permite hoje pensar a História através de diferentes manifestações<br />

culturais e artísticas, sem patriota<strong>da</strong>s ufanistas como nos regimes anteriores.<br />

Nesses, o obscurantismo não somente confundia o factual com o ficcional,<br />

tomando romances e contos como retratos fiéis <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que não<br />

podia ser (d)enuncia<strong>da</strong>, como também determinava os limites dos enunciados<br />

e enunciações literários através <strong>da</strong> censura prévia. Hoje, na democracia plena,<br />

corre-se o mesmo risco <strong>da</strong> mistura. Contudo, sem qualquer censura.<br />

O historiador e autor de um romance histórico, Ioel Rufino dos Santos,5<br />

emite uma opinião de destaque. Diz ele que a História como Ciência perdeu<br />

a credibili<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>do o refluxo do marxismo e do materialismo histórico no<br />

mundo, bem como a falta generaliza<strong>da</strong> de estudos precisos de sociologia<br />

sobre o Brasil. Daí as pessoas procurarem narrativas "ver<strong>da</strong>deiras", que<br />

preencham as lacunas deixa<strong>da</strong>s pelas Ciências Humanas.<br />

Sem discor<strong>da</strong>r <strong>da</strong> avaliação de Rufino dos Santos, não vejo como vinculá-la<br />

ao sucesso do romance histórico, pois somente uma parcela mínima de<br />

seus leitores tem consciência de perceber as relações de causa e efeito aponta<strong>da</strong>s<br />

pelo historiador-romancista. Da mesma forma, a falta de estudos sociológicos<br />

não atinge à quase totali<strong>da</strong>de dos leitores. Portanto, eles não estariam<br />

trocando leitura científica por ficção que abor<strong>da</strong> o mesmo tema.<br />

Do exposto, pode-se perceber que os ent<strong>revista</strong>dos revelam ter um ponto<br />

comum: o alto cacife do romance histórico se justifica na busca <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />

4. Lembro que, segundo Peter<br />

Burke, não é fácil definir cate·<br />

goricamente a Nova História.<br />

Entretanto, ele a distingue <strong>da</strong><br />

antiga história por seis pontos.<br />

A Nova História: I. Interessa·<br />

se por to<strong>da</strong> a ativi<strong>da</strong>de humana,<br />

e não apenas pela política;<br />

2. Preocupa-se com a análise<br />

<strong>da</strong>s estruturas, e não dos acon­<br />

tecimentos; 3. Oferece uma visão<br />

de baixo, isto é, <strong>da</strong>s pessoas<br />

comuns e suas experiên­<br />

cias <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças sociais, em<br />

contraposição à visão de cima<br />

<strong>da</strong> antiga história, que só privi­<br />

legia os grandes homens; 4.<br />

Examina outros tipos de evi­<br />

dência, e não somente os documentos;<br />

5. Enfatiza a plurali<strong>da</strong>de<br />

causal; 6. Valoriza a subjetivi<strong>da</strong>de<br />

em detrimento <strong>da</strong><br />

objetivi<strong>da</strong>de. (BuRKE, Peter.<br />

Abertura: A Nova História,<br />

seu passado e seu futuro. In:<br />

___ , org. A escrita <strong>da</strong><br />

História, São Paulo: UNESP,<br />

1991. p. 7-37.<br />

5, SANTOS, Joel Rutlno dos.<br />

C/1)nica de indomáveis delírios.<br />

Rio de Janeiro: Rocco,<br />

1991. O romance tematiza Napoleão<br />

exilado na Ilha de Santa<br />

Helena influindo na Revolução<br />

Pernambucana de 1817 e<br />

na Rebelião Malês <strong>da</strong> Bahia.


148 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

coloca a etnologia a serviço <strong>da</strong> política e do expansionismo de outros mundos<br />

sobre nossa terra e nossa gente, fazendo com que o Brasil, com os primeiros<br />

e os últimos brasileiros, esteja em eterno processo de "descobrimento". 8<br />

Vejamos, a título de exemplo, o caso do indianismo via síntese crítico-analítica<br />

dos romances de Alencar e de Graciliano.<br />

No caso de Ubirajara: Apesar de não ter designado o seu romance de<br />

"histórico" e sim de "len<strong>da</strong>", talvez pelo fato de reconhecer a impossibili<strong>da</strong>de<br />

de se fazer romance histórico stricto sensu focalizando socie<strong>da</strong>des ágrafas,<br />

Alencar inventa uma narrativa intermediária entre a História e o Mito, utilizando-se<br />

dos estudos antropológicos à disposição em sua época. 9 Literarizando<br />

os antecedentes <strong>da</strong> História do Brasil, incorporando linguagens e arquétipos<br />

<strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des primitivas <strong>da</strong> América, o escritor constrói uma narrativa<br />

em que, além de mitificar o elemento autóctone que participará mais tarde <strong>da</strong><br />

constituição <strong>da</strong> "raça" brasileira, prepara o terreno para o estabelecimento<br />

pacífico <strong>da</strong> colonização, culminando com a união harmoniosa <strong>da</strong>s três raças<br />

formadoras <strong>da</strong> Nação.<br />

O herói Ubirajara conquista e pacifica o território inimigo, unindo<br />

duas nações indígenas mediante a aliança matrimonial com duas mulheres,<br />

uma de ca<strong>da</strong> nação.Essa inventivi<strong>da</strong>de histórica anterior ao achamento<br />

<strong>da</strong> terra acaba por legitimar ideologicamente a colonização inicia<strong>da</strong> de imediato,<br />

em que o herói português, simbolizado em Cabral, conquista a terra<br />

acha<strong>da</strong> e lhe impõe a sua cultura mediante a aliança <strong>da</strong> miscegenação, para<br />

<strong>da</strong>r origem a uma "raça" sem a marca <strong>da</strong> violência do colonizador nem do<br />

colonizado. 10<br />

No caso de Caetés: relendo os carapetões de Alencar e Gonçalves Dias<br />

aprendidos na escola primária, Graciliano/João Valério, nos primórdios do<br />

modernismo antropofágico em suas repercussões no Nordeste. desvela a<br />

permanência <strong>da</strong> mentali<strong>da</strong>de caeté na socie<strong>da</strong>de brasileira. A micro-história<br />

possível <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Palmeira dos Índios corre entrecruza<strong>da</strong> com o romance<br />

histórico impossível dos Caetés. Ao tentar. inutilmente, escrever a história<br />

dos índios que habitaram a região desde o período pré-cabralino, Valério, o<br />

escritor frustrado, acaba escrevendo a versão moderna desses índios - os<br />

habitantes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>dezinha - <strong>da</strong> qual é protagonista incapaz de assumir a<br />

alteri<strong>da</strong>de caeté, ain<strong>da</strong> que a anteveja em outras personagens. ll<br />

Na leitura de Luiz Costa Lima, Graciliano se coloca na encruzilha<strong>da</strong> do<br />

imaginário com o documental. Há poucas passagens em Caetés em que o<br />

escritor ultrapassa a mera documentação <strong>da</strong>s aflições do medíocre narrador<br />

(a <strong>da</strong> náusea e do grotesco <strong>da</strong> procissão, p. ex.), diz Costa Lima. Se o romance<br />

(de Graciliano e de Valério) fracassa, é devido ao veto ao ficcional, à incompetência<br />

para vi ver a alteri<strong>da</strong>de do caeté. 12<br />

Assim, a miscegenação idealiza<strong>da</strong> pacificamente, porque através de<br />

alianças (que ficará mais evidencia<strong>da</strong> em Iracema, apesar de prepara<strong>da</strong> me-<br />

S. Só falta aparecerem roman­<br />

ces "econômicos", de desco­<br />

blimento do paraíso dos juros<br />

para os capitais especulativos,<br />

como se está presenciando<br />

nesta metade de déca<strong>da</strong> 90.<br />

9. Viu-se a influência de O<br />

Brasil e a Oceania, de Gonçalves<br />

Dias. na configuração dos<br />

índios.<br />

lO. Para uma análise nessas<br />

coordena<strong>da</strong>s compara<strong>da</strong> com<br />

Iracema, ain<strong>da</strong>quernuito marca<strong>da</strong><br />

pelo estruturalismo, ver<br />

MALARD. Letícia. Relações entre<br />

o homem e a tena no ro­<br />

mance de Alencar. In<br />

Escritos de literatura hrasilei­<br />

ra. Belo Horizonte: Comuni­<br />

cação. 1981. p. 99-113.<br />

11. A configuração <strong>da</strong>s personagens<br />

do romance dentro do<br />

romance como índios caetés<br />

está em MALARD, Letícia. Ensaio<br />

de literatura hrasileira:<br />

Ideologia e reali<strong>da</strong>de em Graeiliano<br />

Ramos. Belo Horizon­<br />

tel São Paulo: ltatiaia/EDUSP.<br />

1976. p. 30-41.<br />

12 LIMA, Luiz Costa. Gracilia­<br />

no Ramos e a recusa do caeté.<br />

In: Socie<strong>da</strong>de e discurso .fieeional.<br />

Rio de Janeiro: Guanabara.<br />

1986. p. 220-42.


Romance e história 149<br />

taforicamente em Ubirajara, com a união <strong>da</strong>s tribos sacramenta<strong>da</strong> pelo matrimônio<br />

com as duas mulheres, uma de ca<strong>da</strong> tribo) é desconstruí<strong>da</strong> por<br />

Graciliano. Sua personagem/escritor, mesmo incompetente para viver a alteri<strong>da</strong>de<br />

do caeté conforme Costa Lima, reconhece a tatuagem do selvagem<br />

inscrita indelevelmente na "alma" do palmeirense (do brasileiro), tal como as<br />

digitais de sua identi<strong>da</strong>de. João Valéria, que no final do romance se reconhece<br />

como um caeté de olhos azuis, que fala um português ruim, é a metáfora do<br />

brasileiro vivenciando na fantasia, plenamente, sua identi<strong>da</strong>de: "civilizado"<br />

na aparência e "selvagem" (indianizado) na essência. Logo, no grau zero <strong>da</strong><br />

miscegenação, se se entende ser esta muito mais que um mero ultrapasse <strong>da</strong><br />

união sexual procriativa.<br />

É claro que o dito acima não passa de construções/desconstruções ficcionais<br />

<strong>da</strong> ciência (antropológica), pois essa é uma <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> Literatura. Se<br />

é certo que. nos parâmetros <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, somos seres absolutamente "civilizados".<br />

os Tupis estão para nós como os Vikings estão para os escandinavos.<br />

Só a Literatura é livre para dizer isso.


I. BORGES, Jorge Luis. Fifç"es.<br />

Trad. Carlos Nejar. 5' ed. São<br />

Paulo: Globo, 1989.<br />

'. SIMON, Sherry. Rites of Passage:<br />

Translation and its Intents.<br />

In: The Mussu<strong>da</strong>ssets<br />

Review. Springl Summer,<br />

1990.<br />

'. NAIPAUL, V S. The Enigma<br />

ofArrivul, New York: Vintage<br />

Books, 1987.<br />

.. MURRAY, David. Forked<br />

Tangaes: Speech, Writing &<br />

Representation in North Ame­<br />

rican Indian Texts. London:<br />

Pinter Publishers, 1991.<br />

o enigma <strong>da</strong> fusão<br />

ficção/crítica sobre<br />

tradução: rasura de<br />

limites?<br />

Célia Maria Magalhães<br />

Podemos começar seja com aficção, seja com o documentário. Mas, com qualquer um<br />

que se comece, inevitavelmente vamos nos deparar com o oatro.<br />

(Jean-Luc Go<strong>da</strong>rd)<br />

É uma característica dos textos literários pós-coloniais, especificamente os<br />

romances e contos, a reflexão teórica sobre tradução, Só para <strong>da</strong>r dois exemplos,<br />

entre tantos, podemos nos referir ao conto de Borges, "Pierre Menard,<br />

autor do Quixote", I já bem explorado pelos teóricos como fonte de teorização<br />

sobre tradução, e ao romance <strong>da</strong> escritora canadense, Nicole Brossard, entitulado<br />

Le désert mauve, sobre o qual há uma análise recente feita por Sherry<br />

Simon,2 <strong>da</strong> qual o resultado é uma teoria de tradução, que se afasta dos<br />

modelos tradicionais globalizantes e se aproxima de um recorte metonímico<br />

no pensamento sobre tradução literária.<br />

Enquanto o texto ficcional parece caminhar em direção à reflexão teórica,<br />

parece haver, do lado do texto teórico, um movimento inverso, em direção<br />

à ficção. Os textos de teoria de tradução têm apresentado, assim como os<br />

prefácios <strong>da</strong> tradução literária brasileira, características próprias ao texto<br />

literário. Para abor<strong>da</strong>r esta questão, meus pontos de parti<strong>da</strong> serão o romance<br />

de V. S. Naipaul, The Enigma of Arrival,3 e o texto introdutório do livro de<br />

David Murray.4<br />

No romance de Naipaul, o narrador só se insere como personagem<br />

principal após descrever com riqueza de detalhes e nuances de cores não<br />

apenas o jardim de Jack, que dá o título ao primeiro capítulo, mas também<br />

to<strong>da</strong> a paisagem e a vi<strong>da</strong> de uma pequena área rural no Con<strong>da</strong>do de Wiltshire.


152 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

próxima a Salisbury. No segundo capítulo, ele ganha a força de personagem<br />

principal do romance, descrevendo uma longa viagem, cujo passageiro é ele<br />

enquanto sujeito pós-colonial, em seus deslocamentos entre a Índia, onde<br />

nasceu, a ilha de Trini<strong>da</strong>d onde cresceu e foi educado sob a colonização<br />

inglesa, e a Inglaterra, para onde foi, ain<strong>da</strong> jovem, estu<strong>da</strong>r para ser escritor.<br />

Um fato importante, logo no início do segundo capítulo, impulsiona o<br />

narrador/escritor a escrever sobre a sua experiência de vi<strong>da</strong>: uma nova forma<br />

de escrever, sem deixar de se colocar enquanto sujeito desterritorializado, ou<br />

como ele próprio diz, sem "esconder-me <strong>da</strong> minha experiência", ou sem<br />

"esconder minha experiência de mim mesmo" (p. 288). Ao examinar livros<br />

numa biblioteca <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>dezinha rural onde vive na Inglaterra, depara com um<br />

livreto de reproduções <strong>da</strong>s pinturas de Giorgio de Chirico; entre elas, uma lhe<br />

chama mais a atenção, talvez por causa de seu título, que de uma maneira<br />

poética se referiria a alguma coisa em sua própria experiência. É a reprodução<br />

<strong>da</strong> tela O enigma <strong>da</strong> chega<strong>da</strong>, cujo título foi <strong>da</strong>do pelo poeta surrealista<br />

Apollinaire e sobre a qual o narrador nos diz:<br />

o que era interessante na pintura. ( ... ). era que - de novo. talvez por causa do títuloela<br />

mu<strong>da</strong>va na minha memória. O original (ou a reprodução no Livreto <strong>da</strong> Pequena<br />

Biblioteca de Artes) era sempre uma surpresa. Uma cena clássica, mediterrânea, na<br />

Roma antiga - ou, pelo menos assim eu a via. Um cais; ao fundo, por trás dos muros<br />

e portões (que parecem figuras recorta<strong>da</strong>s), o alto de um mastro de uma embarcação<br />

antiga; numa rua deserta do outro lado, em primeiro plano, duas figuras, ambas<br />

indistintas, uma talvez a pessoa que chegou, a outra talvez um nativo do porto. A cena<br />

é de desolação e mistério: fala do mistério <strong>da</strong> chega<strong>da</strong>. Falou disso para mim, como<br />

também para Apollinaire. (p. 98)<br />

o quadro de Chirico faz o narrador lembrar-se imediatamente de sua<br />

própria chega<strong>da</strong> à área rural em Wiltshire, os quatro dias de brumas e chuvas<br />

em que tudo ain<strong>da</strong> era muito nebuloso para ele. Ele passa a imaginar a história<br />

que poderia escrever inspirando-se no quadro de Chirico. O tempo <strong>da</strong> história<br />

seria o período clássico; o local, o Mediterrâneo, e a narrativa não teria<br />

preocupações com estilo de período ou com a explicação histórica deste. O<br />

narrador chegaria a esse porto clássico, por um motivo ain<strong>da</strong> a ser definido,<br />

passaria pela figura embaça<strong>da</strong> no cais, através de to<strong>da</strong> a desolação, vazio e<br />

silêncio, e entraria, por um dos portões, numa ci<strong>da</strong>de que logo o engoliria,<br />

com seu barulho e movimento de vi<strong>da</strong>; na sua imaginação, como uma cena<br />

de bazar indiano. Ele teria vindo numa missão que lhe traria aventuras e<br />

encontros, mas, gra<strong>da</strong>tivamente, se apossaria dele um sentimento de pânico,<br />

de ter vindo para na<strong>da</strong>, sem missão alguma, de estar perdido. Ele tentaria<br />

voltar para o cais, mas não saberia como, até que, num momento de crise, ele<br />

entraria por um dos portões e chegaria ao porto <strong>da</strong> chega<strong>da</strong>, sentindo-se a


5 ALEXANDRIAN, Sarane. O<br />

Surrealismo. Trad. Adelaide<br />

Penha e Costa. São Paulo:<br />

EDUSP, 1976.<br />

6, PASSERON, René. Histoire de<br />

la peinture surréaliste. Librarie<br />

Générale Française, 1968.<br />

7 CAVALCANTI, Carlos. Como<br />

entender a pintura moderna.<br />

S' ed. Rio de Janeiro: Ed. Rio,<br />

1981.<br />

o enigma <strong>da</strong> fusão ficção/crítica sobre tradução 153<br />

salvo, num mundo familiar à sua memória. Mas a vela e o barco já não<br />

estariam mais lá e não haveria mais como retornar.<br />

O narrador, com sua leitura do quadro de Chirico, está nos falando de sua<br />

própria experiência como sujeito pós-colonial, em busca de sua própria<br />

identi<strong>da</strong>de, dividi<strong>da</strong> entre sua cultura de origem e a cultura que lhe foi<br />

imposta. Esta cultura, por sua vez, o faz construir uma imagem idealiza<strong>da</strong> do<br />

seu espaço e do espaço do outro, o que lhe dá a sensação de que nunca está<br />

no lugar adequado, ou que tal espaço, uma vez apreendido, deveria ser<br />

imutável. Por exemplo, quando ele, aos dezoito anos, sobrevoa pela primeira<br />

vez a ilha de Trini<strong>da</strong>d, rumo à Inglaterra, a imagem que tem <strong>da</strong> ilha é<br />

totalmente diferente <strong>da</strong>quela que ele tinha antes: de uma imagem de pobreza<br />

e desorganização, a ilha, para usar suas próprias palavras, é "como uma<br />

paisagem num livro. como a paisagem de um país de ver<strong>da</strong>de". Por outro<br />

lado. quando ele reconhece na paisagem <strong>da</strong> área rural onde, vinte anos depois,<br />

vive na Inglaterra. a paisagem <strong>da</strong>s pinturas de John Constable, seu desejo, a<br />

princípio. é que essa paisagem se mantenha imutável para que ele possa ter,<br />

em sua memória, uma imagem do porto seguro.<br />

Naipaul se inspira em um dos "enigmas" de Chirico para escrever a sua<br />

obra. Segundo Sarane Alexandrian: 5<br />

Chirico é o pintor do silêncio; descreve o momento <strong>da</strong> espera "em que tudo se cala" e<br />

se paralisa, diante de um presságio ou de uma aparição que se anunciam. O seu<br />

universo está no limiar do acontecimento. Encerra nas suas linhas calmas e harmonio­<br />

sas o medo e a curiosi<strong>da</strong>de do que vai acontecer. (p. 60)<br />

É por isso que, ain<strong>da</strong> de acordo com Alexandrian, a Chirico, para conceber<br />

seus "enigmas", bastam elementos simples, tais como "um relógio, uma<br />

estátua vista de costas, uma sombra furtiva e os cheios vazios de uma arquitetura<br />

para a composição de quadros assombrados". Para autores como René<br />

Passeron,6 apesar de os títulos de seus quadros terem sido <strong>da</strong>dos por seus<br />

amigos poetas, especialmente Apollinaire,<br />

"( ... ) como negar que eles convenham ao mundo de expatriação através do qual Chirico<br />

coloca suas questões sem resposta? A ausência de resposta é simboliza<strong>da</strong> pelos perso­<br />

nagens-fantasmas de muitas composições que convi<strong>da</strong>m à análise psicológica.".<br />

(p.45)<br />

É ain<strong>da</strong> de acordo com o mesmo autor que Chirico, como Rimbaud e<br />

muitos outros, "não conseguiu fazer face ao absurdo, naquele ponto onde<br />

to<strong>da</strong>s as contradições se resolvem no vazio <strong>da</strong> interrogação sem resposta".<br />

Chirico inspirou os surrealistas franceses que, segundo Carlos Cavalcanti:7<br />

"( ... ) também conferiram aos simples objetos quotidianos significação estranha,<br />

mergulhando-os numa atmosfera de mistério e absurdo". (p.I78)


154 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

Chirico também inspira o narrador de Naipaul para contar sua história,<br />

pois como desterritorializado, ele também se vê sempre no limiar dos acontecimentos,<br />

no limiar dos espaços geográficos. mas. paradoxalmente. ele não<br />

se cala; ao contrário, procura respostas para a sua identi<strong>da</strong>de pós-colonial<br />

híbri<strong>da</strong>. Ele também procura resposta para sua identi<strong>da</strong>de dividi<strong>da</strong> entre o<br />

homem e o escritor. Conforme observa Suzana Schild:8<br />

Com a identi<strong>da</strong>de dispersa entre a formação por rituais indo-asiáticos. a vIvência na<br />

ilha caribenha, e a Inglaterra adota<strong>da</strong>, V. S. Naipaul debatia-se também entre os<br />

contornos mal delimitados entre o homem e o escritor, enti<strong>da</strong>des senti<strong>da</strong>s como<br />

separa<strong>da</strong>s, e que apenas vez por outra se intercomunicavam".(. .. ) "Apesar <strong>da</strong> angústia.<br />

Naipaul não tem pressa na chega<strong>da</strong>: chega devagar descrevendo com minúcias cami­<br />

nhos, vegetação e paisagens."<br />

Diferentemente de Chirico, Naipaul procura encontrar a resposta para<br />

seu problema de identi<strong>da</strong>de dispersa entre múltiplos espaços, Ele faz isso,<br />

usando para escrever, as técnicas que John Constable usava para retratar as<br />

paisagens inglesas: descreve, com ricos detalhes de cores a vegetação e a<br />

paisagem <strong>da</strong> área rural perto de Salisbury, Conforme considerações de vários<br />

autores, Constable introduz, na pintura <strong>da</strong> paisagem, uma técnica nova, a de<br />

aquarela e pintura ao ar livre, rompendo com os padrões acadêmicos anteriores,<br />

com o objetivo de retratar ca<strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça provoca<strong>da</strong> pelos efeitos de luz<br />

e sombra na natureza:<br />

"Do ponto de vista sensorial, ele (Constable) exprimirá rigorosamente as afini<strong>da</strong>des do<br />

artista com a natureza, suscitará também a criação de uma técnica própria; enfim, ele<br />

sugerirá problemas específicos que, ao longo de todo o século XIX, vão se opor às<br />

tradições acadêmicas", ( .. ,), ele prova a necessi<strong>da</strong>de de fixar a mobili<strong>da</strong>de essencial<br />

que aí (na natureza) descobre. Uma existência melancólica o leva a comover-se sobre<br />

a fuga do tempo, com o propósito de o eternizar. Estas são as inclinações que penniti­<br />

rão a Constable fazer viver uma paisagem. e então descobrir uma técnica nova para<br />

servir uma estética que inauguraria na pintura uma <strong>da</strong>s fonnas de Romantismo" 9<br />

(p. 45)<br />

Diz ain<strong>da</strong> Gina Pischel lo sobre a obra de Constable:<br />

Em Constable, existe um espírito quase caseiro, de submissão humilde à natureza;<br />

espírito que, num breve trecho de área rural inglesa ou de suas praias o levará a<br />

descobrir "motivos" infinitos de inspiração, "Dois dias, ou duas horas, nunca se<br />

assemelham. A partir <strong>da</strong> criação em diante, nunca existiram duas folhas idênticas",<br />

dizia ele. E, úmi<strong>da</strong> e fresca, sob céus luminosos e com as distãncias que a atmosfera<br />

torna diversas umas <strong>da</strong>s outras, esta mobili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Natureza é aquilo que ele apaixona<strong>da</strong>mente<br />

retratará, esquecendo o mundo. Cp. 134)<br />

8. SCHILD, Suzana. Um autor<br />

procura seu porto seguro. In:<br />

Idéias/Livros. Jornal do Brasil.<br />

12/3/94, p.5.<br />

\J. LES GRANDS SIECLES DE LA<br />

PEINTURE: le dix-neuvieme si eele.<br />

Geneve/Paris/N. York:<br />

Edilions Albel1 Skira, 1951.<br />

10. PrsCHEL, Gina. História<br />

Universal <strong>da</strong> Arle. 2' ed. V. 3.<br />

Trad. Raul de Polillo. São Pau­<br />

lo: Cia Melhoramentos de SP.<br />

1966.


156 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

de acedia, comunica-se com o primeiro através de poemas que escreve e que<br />

representariam uma forma de boas-vin<strong>da</strong>s. Ele deixa crescer no jardim <strong>da</strong>s<br />

casas de campo uma hera que recobre, especialmente a sua casa, simbolizando<br />

o seu afastamento do mundo exterior. Entretanto, ao se curar, ele passa a<br />

se comunicar com o narrador através de desenhos<br />

( ... ) estranhamente fluentes, praticados, fáceis, como se tivessem sido feitos muitas<br />

vezes antes, como se viessem de um segmento <strong>da</strong>quela vi<strong>da</strong> passa<strong>da</strong> <strong>da</strong> qual meu<br />

senhorio tinha acabado de se recuperar: desenhos do tipo de Beardsley, de outra época,<br />

com linhas longas e encaracola<strong>da</strong>s e pequenas áreas pontilha<strong>da</strong>s enfatizando as grandes<br />

áreas brancas. (p. 254)<br />

To<strong>da</strong>s as ligações com a pintura aponta<strong>da</strong>s na obra de Naipaul permitemnos<br />

dizer que se trata do gênero de romance denominado künstlerroman que,<br />

de acordo com Solange Ribeiro de Oliveira,13 abrange:<br />

( ... ) qualquer narrativa onde uma figura de artista ou uma obra de arte (real ou fictícia)<br />

desempenhe função estruturadora essencial, e, por extensão, obras literárias onde se<br />

procure um equivalente estilístico calcado em outras artes ( ... ) (p. 5).<br />

A autora reforça essa mesma idéia quando conclui que "a "leitura" de um<br />

quadro, C .. ,), pode resumir to<strong>da</strong> a estruturação de um romance C ... )" Cp. 9),<br />

acrescentando que:<br />

( ... ) o esforço <strong>da</strong> leitura - <strong>da</strong> própria obra ou <strong>da</strong> alheia - pode indicar também a busca<br />

do conhecimento, a elaboração do mundo pela mente. Ou, alternativamente, a obra de<br />

arte transforma-se em metáfora do romance. (p. 9)<br />

A obra de Naipaul parece encaixar-se, introduzindo algumas alterações<br />

de sinais, em to<strong>da</strong>s as alternativas de künstlerroman aponta<strong>da</strong>s pela autora: a<br />

tela de Chirico inspira o narrador/escritor na escritura <strong>da</strong> história de sua vi<strong>da</strong>,<br />

viagem em busca <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de e espaço dispersos, e que, segundo ele, tem<br />

muitos pontos em comum com a leitura que ele faz do quadro do pintor.<br />

Podemos dizer, então, que a pintura serve como ponto de parti<strong>da</strong> para o<br />

romance; ponto de parti<strong>da</strong> que será refletido e mu<strong>da</strong>do ao longo <strong>da</strong> narrativa.<br />

Conseqüentemente, usando, para escrever, a técnica paisagística que Constable<br />

usava para pintar no século XIX, ele está também procurando, na narrativa,<br />

um equivalente estilístico de outra arte, ao mesmo tempo que sugere,<br />

como resposta para o enigma homem/escritor, o impressionismo mais que o<br />

surrealismo como fonte de iluminação, Ao mesmo tempo, a tarefa de ler a<br />

obra dos pintores mencionados está estreitamente liga<strong>da</strong> ao processo de<br />

auto-conhecimento, de busca de identi<strong>da</strong>de e espaço pelo narrador. Por fim,<br />

a tela de Chirico, procurando traduzir o mistério que circun<strong>da</strong> momentos de<br />

13. OLIVEIRA. Solange Ribeiro<br />

de. Literatura e Artes Plásticas:<br />

o künstlerroman na ficção<br />

contemporânea. Ouro Preto:<br />

UFOP, 1993.


14 MURRAY, David. Opus Cit.<br />

o enigma <strong>da</strong> fusão ficção/crítica sobre tradução 157<br />

nebulosi<strong>da</strong>de e indefinição de impressões, tais como a chega<strong>da</strong> a um lugar<br />

distante, pode ser considera<strong>da</strong> não como metáfora, mas como metonímia do<br />

romance, Para tal consideração, é interessante uma análise <strong>da</strong> capa do romance.<br />

Se, no caso de O quarto fechado, de Lya Luft, Oliveira sugere que a tela<br />

imaginária li<strong>da</strong> pela personagem principal, transforma-se na metáfora do<br />

romance, portanto constituindo o espaço integral <strong>da</strong> capa deste, no caso do<br />

romance de Naipaul, há apenas uma reprodução pequena <strong>da</strong> tela de Chirico,<br />

à direita <strong>da</strong> capa. Em parte, talvez, tentando "reproduzir" a pequena reprodução<br />

que o narrador viu no livreto <strong>da</strong> biblioteca, mas também, certamente, para<br />

mostrar o papel apenas parcial que essa obra e os preceitos filosóficos subjacentes<br />

a ela têm para o narrador na busca de sua identi<strong>da</strong>de.<br />

Partindo <strong>da</strong>s várias alternativas de tipos de künstlerroman, levanta<strong>da</strong>s<br />

por Oliveira, vamos chegar também ao texto introdutório de Forked Tongues:<br />

speech, writing and representation in North American Indian Texts, de David<br />

Murray.14 O autor faz a leitura de um quadro de Frederic Remington O<br />

intérprete acenou para o jovem, que ilustra um relato, entitulado O caminho<br />

de um índio, no qual as relações entre Índios e brancos são retrata<strong>da</strong>s de forma<br />

característica, apagando-se a figura mediadora do intérprete, a respeito do<br />

qual sabemos apenas que se trata de um mestiço e na<strong>da</strong> mais. O quadro é<br />

insólito, continua o autor, pois ao mesmo tempo que faz do intérprete o centro<br />

de atenção, desloca o ponto de interesse do intérprete para o jovem para o<br />

qual o primeiro acena. Murray equaciona essa leitura <strong>da</strong> tela de Remington<br />

com a curiosa postura do intérprete que, só a custa do apagamento de sua<br />

identi<strong>da</strong>de, consegue ser o centro <strong>da</strong>s atenções. Um dos objetivos principais<br />

do seu livro é:<br />

( ... ) demonstrar as formas complexas e vmia<strong>da</strong>s pelas quais o processo de tradução,<br />

cultural e lingüístico, é obscurecido ou apagado numa ampla varie<strong>da</strong>de de textos que<br />

dizem representar ou descrever os índios, e que pressupostos culturais e ideológicos<br />

subjazem tal apagamento. (p. I)<br />

A partir disso, a proposta de Murray é focalizar o mediador ou o intérprete<br />

e não quem ele aponta, ou seja, é concentrar-se nas várias formas de<br />

mediação cultural ou lingüistica que permeiam os encontros de culturas,<br />

reduzindo o perigo de tornar o espaço que há entre os dois lados num abismo<br />

intransponível, em outras palavras, de transformar as diferenças em outri<strong>da</strong>de.<br />

Assim, o autor se propõe a analisar as várias vozes presentes nos textos<br />

que objetivam a representação <strong>da</strong> cultura indígena norte-americana, rejeitando<br />

a obliteração <strong>da</strong> diferença e <strong>da</strong> mediação, ênfase de um universalismo<br />

etnocentrista, e procurando analisá-la dentro de um constante jogo com as<br />

uni<strong>da</strong>des e continui<strong>da</strong>des interculturais.


I. ELAM, Keir. The Semiolics oI<br />

Theatre and Drama. Londres<br />

& N. York: Methuen, 1980.<br />

2 HONZL, Jindlich. A mobilio<br />

<strong>da</strong>de do signo teatral. In<br />

GUINSBURG, J., COELHO NETTO.<br />

J. Teixeira e CARDOSO, Reni<br />

Chaves, orgs. São Paulo: Pers·<br />

pectiva, 1988, p. 125-47. (O<br />

artigo foi escrito em 1940).<br />

Transcodificaçãoe<br />

metateatralização no<br />

teatro de Nelson<br />

Rodrigues<br />

Fred M. Clark<br />

o dramaturgo concebe e constrói seu mundo ficcional com palavras, isto é,<br />

dentro do código verbal. A representação teatral, a concretização pelo diretor<br />

do texto escrito em espaço e tempo determinados, constitui uma transcodificação,<br />

uma vez que é uma transferência (ou tradução) de signos do código<br />

verbal (escrito) para um conjunto complexo e complicado de múltiplos códigos<br />

ou subsistemas de signos teatrais. Desta transcodificação nascem os<br />

mundos possíveis do palco.<br />

Dentro <strong>da</strong> própria representação podem operar outras transcodificações.<br />

São estas transcodificações teatrais que interessam aqui, essas associa<strong>da</strong>s ao<br />

"fator <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de" (ou "a regra transformacional" <strong>da</strong> representação teatrai,<br />

1 noção caracteriza<strong>da</strong> pelos estruturalistas do Círculo de Praga. Honzl<br />

(1940)2 explica que qualquer veículo sígnico no palco (acessório, iluminação,<br />

movimento, etc.) pode significar qualquer classe de fenômeno, i.e., no<br />

signO' teatral as relações entre veículo sígnico e referente não são fixas, são<br />

variáveis: " ... no teatro ... a transformabili<strong>da</strong>de é a regra, e seu caráter específico"<br />

(Honzl, 141). O mundo possível do palco pode ser construído através do<br />

fator espacial, arquitetural ou pictorial, ou pode emergir por meio dos gestos<br />

e/ou do código verbal. Segundo Elam (15), a transcodificação ocorre no<br />

espetáculo quando "uma uni<strong>da</strong>de semântica específica (uma porta, por exempio)<br />

é evoca<strong>da</strong> através do sistema lingüístico ou gestual e não através do


160 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

sistema arquitetural ou pictorial". Quer dizer, uma informação que é geral­<br />

mente veicula<strong>da</strong> por um código é repassa<strong>da</strong> para os espectadores através de<br />

outro.<br />

Kowzan (1968)3 formulou uma taxonomia para o signo teatral composta<br />

de 13 sistemas, entre os quais a linguagem verbal, o tom, a mímica facial, o<br />

gesto, o movimento, a maquilagem, o penteado, o vestuário, o acessório, o<br />

cenário, a iluminação, a música e o ruído. O teórico refina a sua tipologia,<br />

classificando esses signos em termos de auditivos e visuais, de tempo e<br />

espaço, e em relação ao ator, i.e., se são localizados no ator ou fora dele. A<br />

sistematização de Kowzan dos fenômenos semi óticos teatrais ain<strong>da</strong> é a mais<br />

fun<strong>da</strong>mental no estudo dos sistemas sígnicos do palco. Mas, como no caso de<br />

qualquer redução de uma uni<strong>da</strong>de complexa a categorias específicas, há<br />

problemas inerentes ao seu estudo. Outros teóricos. percebendo as falhas <strong>da</strong><br />

classificação de Kowzan, acrescentam outros sistemas sígnicos, para incluir<br />

a arquitetura <strong>da</strong> própria casa de espetáculo (Elam 1980: 50; Esslin)4 e o<br />

próprio espectador (Van Zyl).5 Segundo Issacharoff,6 um dos problemas no<br />

trabalho de Kowzan é a inobservância do fenômeno <strong>da</strong> interrelação simultânea<br />

dos signos dos vários sistemas do espetáculo. A representação teatral,<br />

através do dinamismo criado pela mobili<strong>da</strong>de do signo, faz do palco um<br />

conjunto intersemiótico ("uma ver<strong>da</strong>deira polifonia informacional", como<br />

diz Barthes7 em que uma multiplici<strong>da</strong>de de signos dos vários sistemas existem<br />

e coexistem simultaneamente, com signos significando não só dentro de<br />

seu próprio sistema mas também dentro de outros.<br />

Para ilustrar a noção <strong>da</strong> transcodificação teatral usarei a taxonomia<br />

elabora<strong>da</strong> por Kowzan e buscarei exemplos concretos <strong>da</strong> peça Bonitinha mas<br />

ordinária (1962) de Nelson Rodrigues.8 Neste texto o dramaturgo retoma<br />

vários temas prediletos de seu teatro, especificamente a decadência e desintegração<br />

<strong>da</strong> família patriarcal. Como diz uma personagem em certo momento<br />

<strong>da</strong> peça:<br />

To<strong>da</strong> família tem um momento, um momento em que começa a apodrecer ... Pode ser<br />

a família mais decente, mais digna do mundo.<br />

Nelson focaliza a fragili<strong>da</strong>de desta instituição monolítica <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

brasileira para explorar temas mais abstratos e universais que sempre definem<br />

suas obras dramáticas: a instabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> percepção humana que resulta em<br />

uma reali<strong>da</strong>de cheia de ironias e caracteriza<strong>da</strong>, no mundo textual, por um<br />

contraste constante entre o real e o imaginado. Daí o elemento metateatral<br />

que sublinha seus mundos ficcionais: o seu teatro tira a máscara e se mostra<br />

como teatro, ao mesmo tempo em que Nelson tira a máscara <strong>da</strong> família<br />

patriarcal e revela sua hipocrisia e instabili<strong>da</strong>de.<br />

3 KOWZAN, Tadeusz. Signos<br />

no teatro - Introdução li semiologia<br />

<strong>da</strong> mle do espetáculo.<br />

In GUlNSBURG, 1., COELHO<br />

NETTO, 1. Teixeira e CARDOSO,<br />

Reni Chaves, orgs. São Paulo:<br />

Perspectiva, 1978, p. 93-123.<br />

4 ESSLlN, Martin. Tlle Fie/d oi<br />

Drama. Londres: Methuen.<br />

1987.<br />

5 VAN ZYL, John. Towards a<br />

Socio-Semiotic of Performan­<br />

ce. Semiofic Serne, 3 (2): 99-<br />

111,1979.<br />

6. IssAcHAROFF, Michael. Dra­<br />

ma and the Reader. Poelics To­<br />

<strong>da</strong>)', 2 (3): 255-63, 1981.<br />

7 BARTHES. Roland. Criticai<br />

Essa.l's. Trad. Richard Howard.<br />

Evanstone: Northwestem<br />

University Press, 1972.<br />

8. RODRIGUES, Nelson. Teatro<br />

completo. Vol. IV. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 1989.


Transcodificaçã0 e metateatralizaçãe no teatro de Nelson Rodrigues 161<br />

o mundo ficcional do texto focaliza o mundo de ilusões de duas mulheres<br />

(Ritinha e Maria Cecília) que vivem atrás <strong>da</strong> máscara imposta pela<br />

socie<strong>da</strong>de tradicional. Ambas vivem uma mentira; Ritinha ostenta a facha<strong>da</strong><br />

pública de uma pobre professora que trabalha para que as suas irmãs possam<br />

se casar virgens. Maria Cecília vem de uma família rica que insiste em que<br />

ela, mesmo tendo sido viola<strong>da</strong>, se case. Criando um triângulo relacional,<br />

entra a personagem Edgard, que trabalha para o pai de Maria Cecília (o Df.<br />

Werneck). Edgard é selecionado (comprado) para se casar com Maria Cecília,<br />

mas é Ritinha a quem ele adora. O dilema de Edgard é o seguinte: ou se casa<br />

com Maria Cecília, sabendo que é comprado, ou se casa com Ritinha, sabendo<br />

que ela é prostituta. No final, ele foge com Ritinha, ao saber que a violação<br />

de Maria Cecília é uma mentira, que foi planeja<strong>da</strong> por ela mesma, que ela não<br />

corresponde à imagem de menina pura projeta<strong>da</strong> pelo pai.<br />

O desmascaramento <strong>da</strong>s duas mulheres é realizado através de um recurso<br />

bastante comum no teatro rodrigueano: o flashback que constitui uma representação<br />

dentro <strong>da</strong> representação, com um espectador textual - aqui, Edgard<br />

- chegando a saber a ver<strong>da</strong>de ao mesmo tempo que o espectador extratextual.<br />

Esses recursos são realizados em parte pela transcodificação que enfatiza<br />

sobremaneira a metateatrali<strong>da</strong>de do texto.<br />

No Ato I1I, Edgard observa a cena em que Maria Cecília é viola<strong>da</strong>. Uma<br />

porção do palco é transforma<strong>da</strong> em outro palco enquanto o espaço é usado<br />

para a narração visual do estupro, a partir <strong>da</strong> perspectiva de Maria Cecília. O<br />

dramaturgo usa a luz em vez de acessórios para definir o espaço físico-temporal:<br />

Maria Cecília encaminha-se para uma área de luz. Peixoto aparece. Evocação do<br />

episódio. (298).<br />

Pouco depois Edgard e o espectador sabem> que a versão é puro teatro,<br />

que não passa de mentira.<br />

A ver<strong>da</strong>de sobre a vi<strong>da</strong> de Ritinha é revela<strong>da</strong> <strong>da</strong> mesma maneira. Um<br />

espaço do palco é aproveitado para uma narração em que o espectadcu vê que<br />

Ritinha foi explora<strong>da</strong> pelo chefe de sua mãe e que esta se torna, logo em<br />

segui<strong>da</strong>, prostituta com o objetivo de sustentar a família. Edgard fica em um<br />

lugar no palco enquanto Ritinha se afasta para outro espaço onde represental<br />

o passado. O fato de que o espaço dela constitui uma representação é afirmado<br />

duas vezes quando Ritinha, sem sair do lugar demarcando o passado,<br />

abandona a ação <strong>da</strong>quele espaço temporal e fala com Edgard no presente:<br />

"Sem sair do lugar, Ritinha vira-se e começa a falar para Edgar" (304);<br />

"Vira-se então para Edgard sem sair do lugar" (305). Neste caso o espectador<br />

percebe Edgard como espectador dentm do texto, e os dois aprendem nova<br />

informação sobre a vi<strong>da</strong> de Ritinha.


162 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

A transcodificação define dois recursos específicos que são usados na<br />

representação, recursos que, ao mesmo tempo, revelam o statlls ficcional do<br />

texto: a construção <strong>da</strong> cena pelos atores e o uso de projeções em uma tela no<br />

palco. Os dois são usados várias vezes, constituindo uma cadeia através do<br />

texto que constantemente rompe qualquer ilusão realista no palco. manipulando<br />

o espectador entre dois códigos nem sempre opostos: o código teatral<br />

(que o leva para mundos imaginários, i.e., o ficcional) e o metateatral (que<br />

leva para o real, i.e., o mundo extratextual). Emerge no texto um realismo não<br />

visto em obras tradicionais, um realismo mais amplo para capturar as complexi<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de caótica e ambígua do século XX.<br />

Em vários momentos do texto, o dramaturgo abandona o cenário naturalista<br />

e a representação realista (cf. Elam 13: "A representação dramática<br />

realista ou ilusionista limita rigi<strong>da</strong>mente a mobili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> relação sígnica: no<br />

teatro ocidental geralmente presumimos que a classe de objetos é significa<strong>da</strong><br />

por um veículo sígnico reconhecível, de alguma maneira, como membro <strong>da</strong><br />

classe"), criando o mundo ficcional com acessórios imaginários através <strong>da</strong><br />

pantomima. O movimento cênico do ator e o cenário, que constituem sistemas<br />

sígnicos independentes na classificação de Kowzan, substituem os sistemas<br />

- o pictorial e/ou o arquitetural - que geralmente seriam colocados na<br />

cena. No Ato I, os atores representando Ritinha e Edgard criam a cena em que<br />

as duas personagens viajam em um jipe:<br />

Ritinha e Edgard se dirigem para duas cadeiras. que vão funcionar como se fossem o<br />

jeep. Os dois vão mover as cadeiras para <strong>da</strong>r ilusão de veloci<strong>da</strong>de. curva, solavancos,<br />

etc. O suposto jeep parte aos trancas. (261)<br />

As duas cadeiras pertencem ao sistema do cenário. mas aqui perdem o<br />

seu valor representacional normal quando os atores as arranjam lado a lado<br />

como as poltronas dum automóvel, e fazem os gestos de entrar nele. Com seus<br />

corpos simulam os movimentos do carro. O código verbal é usado para<br />

<strong>completa</strong>r a cena. As personagens discutem a veloci<strong>da</strong>de do jipe:<br />

Ritinha: P'ra que essa veloci<strong>da</strong>de?<br />

Edgard: Gosto de correr. (261)<br />

Na estréia <strong>da</strong> obra no Rio em 1962, o diretor usou um jipe ver<strong>da</strong>deiro no<br />

palco, o que levou um crítico a notar que teria sido melhor seguir as instruções<br />

originais do dramaturgo. Como disse Fausto Wolff: "Não vi necessi<strong>da</strong>de<br />

de colocar um jipe, que mais parece um carro alegórico, em cena, quando<br />

poderia ter resolvido o problema com duas cadeiras e mímica".9 O uso do<br />

objeto real destruiria em parte o efeito metateatral realizado através <strong>da</strong> mímica,<br />

modificando a perspectiva do dramaturgo sobre a reali<strong>da</strong>de, e assim o<br />

9. MAGALDI, Sábato. Nelson<br />

Rodrig ues: DramaturK ia e encenaç"es.<br />

São Paulo: Perspectiva/EDUSP,<br />

1987.


10 BRECHT, Berto1d. Brecht on<br />

Theatre. WIUET, John, org. N.<br />

York: HiII and Wang, 1964.<br />

Transcodificação e metateatralização no teatro de Nelson Rodrigues 163<br />

realismo particular criado aqui e em outros textos rodrigueanos. Parece que<br />

Antunes Filho, diretor <strong>da</strong> produção em São Paulo em 1974, entendeu isso<br />

quando obedeceu a di<strong>da</strong>scália do texto. Sábato Magaldi comentou o seguinte<br />

sobre a produção de Antunes: "O propósito <strong>da</strong> montagem era dinamizar o<br />

texto. Na encenação original. no Rio, por exemplo, usava-se um jipe para o<br />

passeio dos protagonistas. Aqui, como o ator era o senhor do palco, ele usava<br />

o que estava a mão - duas cadeiras" (Magaldi, 153).<br />

O outro recurso é aquele que cria uma fusão e contraste entre o teatro e<br />

o cinema (e não estou considerando aqui as características cinematográficas<br />

<strong>da</strong> peça já comenta<strong>da</strong>s por vários críticos: cf. Magaldi, 43; 154). A resenha<br />

de Bárbara Heliodora sobre a produção de 1962 critica o uso de projeções;<br />

Heliodora insinua que o recurso foi imposto no texto pelo diretor e que, neste<br />

caso, não realizou o efeito usual:<br />

Nelson Rodrignes usa o método característico do expressionismo, as cenas muito<br />

curtas, pulando de um lugar para outro etc., etc., e Martim Gonçalves usa o outro<br />

método comum ao expressionismo, ou seja, as projeções devem ser liga<strong>da</strong>s a um certo<br />

critério, geralmente o de intensificar (dramaticamente) certas ações de maior significado<br />

... O resultado dessa confusão é que o filme não se integrou totalmente com a<br />

ação.<br />

(in Magaldi 1987: 147)<br />

Kowzan associa a projeção ao sistema de iluminação, mas diz que seu<br />

papel semi ótico ultrapassa aquele <strong>da</strong> luz, e ele indica que o filme realmente<br />

pertence a outro código artístico: "O emprego <strong>da</strong> projeção no teatro contemporâneo<br />

toma formas bastante varia<strong>da</strong>s: ela se tornou um meio técnico de<br />

comunicar signos pertencentes a sistemas diferentes, e mesmo situados fora<br />

deles" (1978: 113). O recurso constitui um experimento interessante no teatro<br />

de Nelson Rodrigues; não serve simplesmente para intensificar a ação, mas<br />

também para criar o estranhamento, o que possivelmente explica a confusão<br />

de que fala Heliodora. Este efeito, ao distanciar o espectador do palco,<br />

enfatiza o status ontológico do texto, descobrindo o palco como espaço<br />

ficcional, i.e., como teatro. Brecht usou projeções na sua primeira produção<br />

de Mãe coragem, com a intenção de criar essa distância que romperia qualquer<br />

identificação pessoal entre espectador e o que acontecia no palco: "As<br />

projeções não são simplesmente recursos mecânicos ... não servem para aju<strong>da</strong>r<br />

o espectador mas para dificultar a sua percepção; impedem a sua empatia<br />

<strong>completa</strong>, interrompem o seu envolvimento automático. Transformam o impacto<br />

em um impacto indireto",1o Brecht queria que seu espectador pensasse,<br />

que meditásse sobre o texto, especificamente sobre os aspectos políticos.<br />

O texto rodrigueano insiste em que os espectadores reconheçam o status<br />

ficcional do palco, fazendo com que estes meditem sobre o mundo extratextual,<br />

sobre a sua complexi<strong>da</strong>de e sobre as fronteiras frágeis entre o real e o


164 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

imaginado. Nelson focaliza essas fronteiras quando visualiza a história através<br />

<strong>da</strong> ação viva e <strong>da</strong>s projeções de uma maneira muito sutil: ele contrasta o<br />

recurso cinematográfico, que na 'Sua única dimensão plana na tela parece<br />

ficcional, com a multidimensionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ação viva do palco, com pessoas<br />

vivas em ações fisicamente ver<strong>da</strong>deiras. Por exemplo, há uma cena em que<br />

as personagens são representa<strong>da</strong>s na tela enquanto os atores representando as<br />

personagens aparecem no palco: "Projeção de D. Ivete e Edgard no tanque.<br />

Na frente <strong>da</strong> tela os dois vão viver, com gestos, a cena do tanque" (271).<br />

Produz-se uma situação irônica na medi<strong>da</strong> em que os dois aspectos - filme e<br />

ação viva - são parte de uma estrutura ficcional, i.e., a representação."<br />

A projeção metateatraliza o texto, mas ao mesmo tempo funciona como<br />

parte integrante <strong>da</strong> representação de uma maneira prática, servindo à evolução<br />

<strong>da</strong> história. Através <strong>da</strong>s projeções, o diretor cria o cenário em termos de<br />

espaço, e.g., "Projeção do edifício de Edgard" (271); dentro <strong>da</strong> cena cria-se<br />

a sensação de movimento: "Na tela, sucessão de paisagens, como se o carro<br />

é que estivesse em movimento" (296). A projeção significa deslocamento <strong>da</strong><br />

ação de um lugar para outro, e, às vezes, envolve um outro código, e.g., na<br />

cena cita<strong>da</strong> acima onde D. Ivete e Edgard representam a cena que está<br />

projeta<strong>da</strong> na tela ("os dois vão viver, com gestos, a cena do tanque"), e na<br />

seguinte onde o filme na tela cria o cenário do cemitério e a pantomima cria<br />

um acessório (o jipe): "Na tela o portão do Cemitério São Francisco Xavier.<br />

Edgard e Ritinha saltam do jeep" (288). As projeções servem para dramatizar<br />

certos momentos <strong>da</strong> ação, como na cena do suposto estupro de Maria Cecília,<br />

e na cena em que os espectadores vêem Maria Cecília e Peixoto mortos: "Na<br />

tela, o rosto ensangüentado de Peixoto. Maria Cecília corre pelo palco com<br />

os crioulões atrás. Na tela, a cara de Maria Cecília desfigura<strong>da</strong> pelo pavor. E,<br />

no palco, o negro alcança e domina Maria Cecília" (299); "Projeção - No<br />

assoalho Maria Cecília e Dr. Peixoto mortos" (323). A projeção se torna signo<br />

simbólico no final <strong>da</strong> representação quando os protagonistas, Edgard e Ritinha,<br />

fogem para o futuro: "Na tela, o amanhecer no mar" (326).<br />

O uso <strong>da</strong> transcodificação retoma uma tentativa inicia<strong>da</strong> em Vestido de<br />

noiva, de 1943, de criar um realismo bastante amplo para capturar as reali<strong>da</strong>des<br />

do século XX. Através dos vários recursos que transcodificam os signos<br />

teatrais, o dramaturgo rompe com a representação realista tradicional. O<br />

espectador não recebe passivamente o mundo ficcional do texto. O palco se<br />

torna um espaço em que espectador e ator coparticipam ativamente na criação<br />

do mundo ficcional. Ao enfatizar o aspecto metateatral na representação, a<br />

transcodificação faz com que o espectador oscile entre os códigos que definem<br />

o teatro como arte e aqueles que definem a reali<strong>da</strong>de extratextual,<br />

reali<strong>da</strong>de nem sempre definível em termos concretos e específicos, e nem<br />

sempre separa<strong>da</strong> facilmente <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de textual.


Texto preparado para a mesaredon<strong>da</strong><br />

"Globalização, Identi<strong>da</strong>des<br />

Nacionais e Culturas",<br />

do "Encontro de Cultura Brasileira",<br />

realizado em Brasília<br />

de 5 a 11 de novembro de<br />

1995.<br />

Identi<strong>da</strong>de nacional e<br />

socie<strong>da</strong>de multicultural<br />

Silva no Peloso<br />

Na Itália, o conceito de multiculturalismo está presente no debate cultural e<br />

político há pouco tempo, como conseqüência <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças em curso numa<br />

socie<strong>da</strong>de que se está tornando ca<strong>da</strong> vez mais multiétnica e multirracial. Isto<br />

não significa, porém, que ela se esteja tornando automaticamente multicultural.<br />

O adjetivo, que não é sinônimo obviamente dos precedentes, indica uma<br />

socie<strong>da</strong>de em que as culturas de raças e etnias diversas possam ser considera<strong>da</strong>s<br />

igualmente dignas e possam interagir entre si para produzir novos<br />

resultados culturais. A palavra portanto alude, mais do que a uma reali<strong>da</strong>de<br />

de fato, a um objetivo ain<strong>da</strong> difícil de se alcançar, e não só na Itália. As<br />

Américas no conjunto, e o Brasil em particular, onde a vi<strong>da</strong> mesma <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de se realiza como simultanei<strong>da</strong>de de civilizações, culturas e tradições<br />

diferentes, constituem, há quatrocentos anos, um extraordinário laboratório<br />

multicultural, que nos últimos anos foi objeto de estudos importantes,<br />

desenvolvidos com metodologias e fontes de pesquisa inovadoras e originais.<br />

O ponto de parti<strong>da</strong> comum será o reconhecimento de que a socie<strong>da</strong>de<br />

moderna ca<strong>da</strong> vez mais se configura, por um lado como um conjunto de<br />

mercados e de técnicas culturalmente neutras e, por outro, como um conjunto<br />

muito diversificado de orientações culturais. Neste sentido, não haverá um<br />

risco intrínseco na aceleração tipicamente moderna dos intercâmbios entre as<br />

culturas, na multiplicação dos contactos, na superabundância de comunica-


168 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

lari<strong>da</strong>de? E sobretudo confrontarmo-nos com modelos etnográficos diversos<br />

dos nossos: por exemplo, com esquemas de representação radicalmente dife­<br />

rentes, como aqueles nascidos no âmbito <strong>da</strong> tradição oral?<br />

Além <strong>da</strong>s soluções parciais e in<strong>completa</strong>s <strong>da</strong><strong>da</strong>s a problemas que não<br />

podem ser resolvidos a curto prazo, esta é com certeza uma <strong>da</strong>s perspectivas<br />

que mais será preciso desenvolver nos próximos anos. Nesta direção, situam­<br />

se algumas iniciativas que se vêm destacando no âmbito dos estudos ítalobrasileiros.<br />

Aludo, por exemplo, ao importante volume Novamente retrovato.<br />

Il Brasile in ltalia 1500-1995,7 fruto de uma pesquisa de mais de dez anos<br />

realiza<strong>da</strong> por uma equipe coordena<strong>da</strong> por Luciana Stegagno Picchio, e de que<br />

eu mesmo participei. Ela consistia na pesquisa e catalogação, em diferentes<br />

disciplinas, de tudo o que foi publicado na Itália sobre o Brasil, num panorama<br />

que se estende <strong>da</strong>s cartas de Américo Vespúcio ao Modernismo, ao futebol<br />

e às telenovelas. O volume representa, portanto, um grande repertório do que<br />

tem sido a imagem do Brasil na Itália ao longo dos séculos, reunindo, ao<br />

mesmo tempo, contribuições de especialistas de áreas diferentes num trabalho<br />

comum, baseado numa metodologia, que, utilizando uma definição recente,<br />

poderíamos chamar de "complexa". Tendo investigado pessoalmente, no<br />

âmbito deste trabalho, os primeiros documentos que se referem ao Brasil,8 as<br />

cartas de Américo Vespúcio, através <strong>da</strong>s quais o imaginário europeu e não só<br />

o italiano conheceu o Brasil- observe-se que a Carta de Pero Vaz de Caminha,<br />

considera<strong>da</strong> um segredo de Estado, ficou confina<strong>da</strong> por três séculos nos<br />

arquivos portugueses -, tive a possibili<strong>da</strong>de de considerar a importância deste<br />

"olhar outro" para uma reali<strong>da</strong>de que foi recria<strong>da</strong> e reinventa<strong>da</strong> por meio de<br />

estereótipos destinados a perpetuar-se até os nossos dias.<br />

Se é ver<strong>da</strong>de, como escreveu Oswald de Andrade,9 que, com as cartas<br />

de Vespúcio (de que há um testemunho direto na Utopia -1516 -de Thomas<br />

More) se inicia o que ele designa de "ciclo <strong>da</strong>s utopias", importante tanto para<br />

a Europa quanto para o Brasil, é por isso mesmo fun<strong>da</strong>mental voltar a<br />

investigar aquele período com uma metodologia inteiramente renova<strong>da</strong>, sobretudo<br />

em vista <strong>da</strong>s comemorações do quinto centenário do descobrimento<br />

do Brasil, que coincide com a abertura do novo milênio. Será preciso antes<br />

de mais na<strong>da</strong> evitar as duas maiores falhas evidencia<strong>da</strong>s nas recentes comemorações<br />

sobre Cristóvão Colombo: a exaltação acrítica e a condenação<br />

indiscrimina<strong>da</strong>. Acima de tudo, deve-se evitar o uso de critérios interpretativos<br />

vinculados à contemporanei<strong>da</strong>de e à sua lógica de política cultural basea<strong>da</strong><br />

em esquemas generalizadores. Continuar a falar, por exemplo, em colonização<br />

européia, tomando por base a oposição Europa vs. Novo Mundo, ou em<br />

viajante europeu, etc., só tem sentido na medi<strong>da</strong> em que se opera uma<br />

delimitação de campo. Numa etapa posterior, tal delimitação deverá ser<br />

substituí<strong>da</strong> por análises bem mais articula<strong>da</strong>s e aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>s, uma vez que a<br />

colonização portuguesa é bem diferente <strong>da</strong> espanhola ou <strong>da</strong> holandesa e que<br />

7. STEGAGNO PICCHIO, Luciana<br />

et alii. Novamente retrovato. II<br />

Brasile in Italia. 1500-1995.<br />

Roma: Presidenza deI Consi·<br />

glio dei Ministri, Dipartimento<br />

per l'Infonnazione e I' Editora,<br />

1995.<br />

8. PELOS O, Silvano. 11 Mondo<br />

Nuovo di Amerigo Vespucci.<br />

In: Idem, p. 18-21.<br />

". ANDRADE, Oswa1d de. A<br />

marcha <strong>da</strong>s utopias. In: Do<br />

Pau-Brasil e a utopias. Rio de<br />

Janeiro: Civilização Brasileira,<br />

1970, p. 147.


10 PELOS O, Silvano. 11 viaggio<br />

a Roma come evocazione e<br />

metafora nella tradizione brasiliana.<br />

In: Ejjetto Roma: il<br />

Vhlf.a?io. Roma: Bulzoni,<br />

1995, p. 83-100.<br />

11 TOURAINE, Alain. La società<br />

delIe mille etnie. In: L' Uni/à.<br />

Roma, 23 jan. 1995, p. 2.<br />

Identi<strong>da</strong>de nacional e socie<strong>da</strong>de multicultural 169<br />

o viajante italiano trabalha com modelos mentais e culturais diferentes dos<br />

utilizados pelo viajante alemão ou inglês, O panorama histórico, cultural e<br />

literário só tem a ganhar com uma análise que leve em consideração o<br />

multiplicar-se <strong>da</strong>s situações e dos pontos de vista, expressões de um contexto<br />

ca<strong>da</strong> vez mais variado e complexo: uma metodologia multicultural, que<br />

pressupõe, por sua \'ez, um trabalho intedisciplinar realizado por equipes<br />

forma<strong>da</strong>s por especialistas de diferentes áreas.<br />

É neste âmbito e visando a estes objetivos, bem como calca<strong>da</strong> neste<br />

horizonte teórico, que a Associação Cultural Italo-Luso-Brasileira, dirigi<strong>da</strong><br />

por Sonia N, Salomão e com sede em Viterbo, a ci<strong>da</strong>de de Pedro Hispano,<br />

está coordenando uma pesquisa volta<strong>da</strong> para o estudo e a catalogação de<br />

documentos brasileiros de cunho histórico-literário sobre a Itália, Trata-se de<br />

uma iniciativa na linha do que já chamamos de transcultura ou de antropologia<br />

recíproca, Os primeiros resultados deste tipo de trabalho estão sintetiza­<br />

dos num ensaio que publiquei este ano em Roma, em colaboração com o<br />

Istituto di Studi Romani, intitulado "Il viaggio a Roma come evocazione e<br />

metafora nella tradizione brasiliana",lo que reúne os mais variados testemunhos:<br />

desde o do padre Antônio Vieira, que viveu e pregou em Roma, passando<br />

pelos <strong>da</strong> corte do papa Clemente X e <strong>da</strong> rainha Cristina <strong>da</strong> Suécia, nos anos<br />

de 1669 a 1675, e pelos de Gonçalves de Magalhães, que lá morreu em 1882,<br />

até os de Cecília Meireles, que nos deixou belos poemas sobre os munumentos<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, produtos de uma viagem realiza<strong>da</strong> em 1953, e finalmente os de<br />

Murilo Mendes, que em Roma morou por quase vinte anos,<br />

Vale a pena tornar a sublinhar, mais uma vez, que a construção de uma<br />

socie<strong>da</strong>de ver<strong>da</strong>deiramente multicultural passa pela solução do falso dilema<br />

que obriga a escolher entre um etnocentrismo autoritário e um multiculturalismo<br />

sem limites. O cerne <strong>da</strong> democracia consiste, hoje, no reconhecimento<br />

de que é possível redescobrir alguns conceitos universais comuns, mesmo<br />

possuindo-se valores culturais muito diferentes, com a condição de que seja<br />

reconheci<strong>da</strong> esta diversi<strong>da</strong>de, isto é. o direito à existência de coletivi<strong>da</strong>des<br />

culturais, étnicas, religiosas. morais. diversas umas <strong>da</strong>s outras, A realização<br />

<strong>da</strong> própria identi<strong>da</strong>de nacional e cultural, construí<strong>da</strong> através <strong>da</strong> valorização<br />

<strong>da</strong> memória histórica no sentido amplo <strong>da</strong> palavra, portanto, não só não<br />

constitui obstáculo ao processo de aproximação ao "outro", ao "diverso",<br />

mas, muito pelo contrário, representa o único caminho para chegar até ele.<br />

Vale a pena concluir com as palavras de Alain Touraine: "A integração só tem<br />

sentido se é totalmente associa<strong>da</strong> ao reconhecimento do outro, não na sua<br />

diferença, mas na sua igual<strong>da</strong>de comigo mesmo, enquanto capaz, tanto como<br />

eu, de <strong>da</strong>r sentido a uma experiência que associa a razão científica e técnica<br />

à memória de uma cultura e de uma socie<strong>da</strong>de",ll


1 GARCIA CANCLlNI, Néstor.<br />

Consumidores e ci<strong>da</strong>dãos.<br />

Conflitos multi culturais <strong>da</strong><br />

globalização. Rio de Janeiro:<br />

Editora UFRJ, 1995, p. 120.<br />

A nação e<br />

as narrações híbri<strong>da</strong>s<br />

Literatura hispânica dos<br />

Estados Unidos<br />

Sonia Torres<br />

wasfun runnin' 'round descalza<br />

playing hopsco!ch<br />

correr sin pisar líneas<br />

Evangelina Vigil<br />

Neste breve espaço, desejo discutir o modelo de "nação", baseado no<br />

conceito de uni<strong>da</strong>de, em contraposição às práticas discursivas emprega<strong>da</strong>s na<br />

produção literária, que desconstroem o discurso totalizante por meio de<br />

textos híbridos, Embora a tendência a se narrar o multiculturalismo <strong>da</strong>s<br />

nações seja crescente, ain<strong>da</strong> podemos observar que nos conflitos interétnicos<br />

e internacionais, encontramos tendências que se obstinam em conceber ca<strong>da</strong><br />

identi<strong>da</strong>de como um núcleo sólido e compacto de resistência; por isso,<br />

exigem leal<strong>da</strong>des absolutas dos membros de ca<strong>da</strong> grupo e satanizam os que<br />

exercem a crítica ou a dissidência. A defesa <strong>da</strong> pureza se impõe em muitos<br />

países em oposição às correntes modernas que buscam relativizar o específico<br />

de ca<strong>da</strong> etnia e nação afim de construir formas democráticas de convivência,<br />

complementação e governabili<strong>da</strong>de multiculturaf.!<br />

'Como ponto de parti<strong>da</strong> para minha discussão, pincei dois exemplos de<br />

doutrina fun<strong>da</strong>mentalista de "nação", no discurso de dois porta-vozes de<br />

países do centro, O primeiro deles é um artigo recente, publicado no jornal<br />

inglês The Sun<strong>da</strong>y Times. Nele, seu autor lamenta a corrupção <strong>da</strong> língua<br />

inglesa pelos jargões tecnológicos, pela linguagem de computador e, last but<br />

not least, pelos norte-americanos, através do cinema e <strong>da</strong> mídia de uma<br />

maneira geral. Ele transcreve, ain<strong>da</strong>, as palavras de um representante <strong>da</strong>


172 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

hegemonia inglesa, o Príncipe de Gales, em apoio à campanha English 2000<br />

do Conselho Britânico:<br />

We must act now to ensure thal English, and Ihat to my way ofthinking means English<br />

English, maintains its position as the world language well into the next century2<br />

A insistência em defender uma língua-pátria "pura" e inadultera<strong>da</strong> surge<br />

quando as discussões sobre identi<strong>da</strong>de nacional encontram-se ancora<strong>da</strong>s à<br />

idéia de uni<strong>da</strong>de, que, por sua vez está diretamente associa<strong>da</strong> à preocupação<br />

com a supremacia. O referido artigo revela (embora não "diga" explicitamen­<br />

te) que, uma vez dissolvido o Império Britânico, e perdi<strong>da</strong> a hegemonia<br />

consegui<strong>da</strong> através <strong>da</strong> colonização, os ingleses passam a perceber que sua<br />

língua-mãe tornou-se "vítima de seu próprio sucesso". O que - significativa­<br />

mente - não é abor<strong>da</strong>do uma única vez é a própria situação interna <strong>da</strong><br />

Inglaterra: a presença de uma população ca<strong>da</strong> vez mais numerosa de sujeitos<br />

pós-coloniais que, lançando mão <strong>da</strong> língua inglesa para se expressarem,<br />

subvertem-na, no entanto, com interferências de sua cultura de origem. A<br />

questão nacional e o próprio conceito de nação adquirem contornos interes­<br />

santes neste caso, porque o conflito parece surgir do fato de a Inglaterra<br />

querer proclamar sua exclusivi<strong>da</strong>de hegemônica.O que parece subjazer ao<br />

lamento pelo triste destino <strong>da</strong> língua de origem (já em si um conceito complexo,<br />

visto que ele se encontra fortemente ligado ao mito de "autentici<strong>da</strong>de")<br />

é um sentimento de ansie<strong>da</strong>de ante o deslocamento do poder econômico para<br />

outra nação que não seja a Inglaterra. No caso, o que causa ruídos nos<br />

ofendidos e reais ouvidos ingleses é o poder dos EUA - um impérialismo sem<br />

colônias, dirigindo fluxos de capital, mercadorias, armamentos e a mídia em<br />

escala global. O último recurso que sobra para o antigo império é agarrar-se<br />

ao que lhe aparece como tábua de salvação - a língua inglesa "autêntica" -<br />

na tentativa de assegurar o mito de uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nação como força simbólica.<br />

Mas pensar a nação como totali<strong>da</strong>de homogênea revela-se complexo e pro­<br />

blemático, uma vez que a Inglaterra hoje se encontra "invadi<strong>da</strong>" por uma<br />

vasta on<strong>da</strong> de "imigrantes" pós-coloniais. Nas palavras de Stuart Hall,<br />

.. .in this very moment of the attempted symbolic restoration of the great English<br />

identities Ihat have mastered and dominated the world over three or four centuries,<br />

there come home to roost in English society some other British folks ( ... ) Just in the<br />

very moment when they decided they could do without us, we ali took the banana boat<br />

and carne right back home. We turned up saying "You said this was the mothercountry.<br />

Well, I just carne home". We now stand as a permanent reminder of that forgotten,<br />

suppressed, hidden history ( ... ) There we are, inside the cuIture, going to their schools,<br />

speaking their language, playing their music, walking down their streets, looking like<br />

we own a pari of the turf, looking like we belong.3<br />

2. MILLAR. Peter. Why we will<br />

soon be lost for words. Tile<br />

Sun<strong>da</strong>v Times. 2 abro 1995. p.<br />

lO e 12.<br />

] HALL, Stuart. Ethnicity:<br />

Identíty and Ditlerence. Radical<br />

America, 23 (4): 9-20,<br />

1991. p. 17-18.


.. ci!. por J. Ca!it,,, Declaring<br />

Eng!ish the Otlieia! Language:<br />

Prejudice Spoken Here. Harvard<br />

Civil Ri"hls-Civil Liher­<br />

ties Law RevielV, 24:321<br />

(1989). Al'ud FLORES, Juan &<br />

YúDICE, George. Living Borders/buscando<br />

America. Social<br />

Text, 24 (2): 8, 1990.<br />

S. BHABHA, Homi, org. Nafion<br />

IInd Narrarion. Londres: Rou­<br />

tledge, ! 993.<br />

•. id., ihid., p. I.<br />

A nação e as narrações híbri<strong>da</strong>s 173<br />

Paralelamente, podemos observar fenômeno parecido ocorrendo nos<br />

EUA, o país que está sendo atacado como sendo o culpado pela última coisa<br />

que ain<strong>da</strong> poderá garantir a posição hegemônica do English English "até o<br />

próximo século". A fim de garantir a posição hegemônica do American<br />

English até não se sabe quando, os norte-americanos atacam o uso do espanhol,<br />

que, já considerado segun<strong>da</strong> língua em nível nacional, constitui ameaça<br />

constante à segurança e uni<strong>da</strong>de dos EUA, As palavras de Terry Robbins,<br />

ex-chefe de "English operations" na Flóri<strong>da</strong> atestam esta afirmativa:<br />

There are misguided persons, specifically Hispanic immigrants, who have chosen to<br />

come here to enjoy our freedoms, who would legislate another language, Spanish, as<br />

co-equal and co-legal with English ( ... ) If Hispanics get their way, perhaps some<strong>da</strong>y<br />

Spanish could replace Engish entirely ( .. ) We ought to remind them, and better still<br />

educare them to the fact that the Cnited States is 11111 a n/olllirelnatiof/4 (o grifo é meu)<br />

Ao afirmar que os EUA não são uma nação mestiça, Robbins parece<br />

preferir ignorar que os mexicano-americanos, por exemplo, <strong>da</strong> mesma forma<br />

que os imigrantes pós-coloniais ingleses, sentem-se "em casa" ao atravessarem<br />

a fronteira entre o México e os EUA, visto que, para a maioria, trata-se<br />

de um retorno às suas terras ancestrais, conquista<strong>da</strong>s pelos norte-americanos.<br />

Ele também fecha os olhos, oportunamente, para o fato de que inúmeros dos<br />

imigrantes que lá se encontram, "gozando de (suas) liber<strong>da</strong>des", fogem de<br />

suas terras natais em conseqüência <strong>da</strong> política externa neocolonialista norteamericana.<br />

A fim de tentarmos compreender melhor essas contradições internas <strong>da</strong>s<br />

nações liberais modernas, gostaria de referir-me, neste ponto, à obra de Homi<br />

Bhabha, Nation and Narration. 5 Nela, o autor observa que as nações, <strong>da</strong><br />

mesma forma que as narrativas, perdem suas origens nos mitos do tempo e<br />

apenas realizam seus horizontes no nível do imaginário (Bhabha baseia-se<br />

fortemente na obra de Benedict Anderson, lmagined Communities, mesmo<br />

quando discor<strong>da</strong> dela). Acrescenta ain<strong>da</strong> que, embora tal imagem <strong>da</strong> nação<br />

aparente ser romântica e excessivamente metafórica, é dessa tradição de<br />

pensamento político e linguagem literária que surge a nação como idéia<br />

poderosa no Ocidente.6 Assim, "nação" seria apenas um espaço de significação<br />

cultural. Espreitando por trás desse espaço existe uma ambivalência entre<br />

dois níveis de discurso: o pe<strong>da</strong>gógico e o per formativo ("performative"). No<br />

primeiro, o povo é visto como presença histórica a priori, como mero objeto<br />

pe<strong>da</strong>gógico; no segundo, o povo como imagem de totali<strong>da</strong>de sofre a interferência<br />

<strong>da</strong> sua significação como signo diferenciador, do sujeito enquanto<br />

distinto do outro, ou do espaço de fora. Apesar <strong>da</strong> certeza com que os<br />

historiadores tradicionais falam <strong>da</strong>s "origens" <strong>da</strong> nação como sinal de "moderni<strong>da</strong>de"<br />

de sua socie<strong>da</strong>de, a tamporali<strong>da</strong>de cultural <strong>da</strong> nação inscreve uma<br />

reali<strong>da</strong>de social muito mais complexa: ao mesmo tempo em que a nação é


174 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

construí<strong>da</strong>, ela vai sendo desconstruí<strong>da</strong> por interpretações sucessivas, cujas<br />

contradições mútuas demonstram a ausência de qualquer "centro originário".<br />

A nação toma-se um espaço marcado internamente pela diferença cultural e<br />

pelas histórias heterogêneas de povos conflitantes, autori<strong>da</strong>des antagonistas<br />

e espaços culturais em constante tensão.7<br />

Examinemos um trecho do conto "Bien Pretty",8 <strong>da</strong> autora chicana<br />

Sandra Cisneros, em que duas amigas discutem a decisão de uma delas (a<br />

narradora) de ir morar no Texas, um estado emblemático <strong>da</strong> conquista territorial,<br />

<strong>da</strong> expansão de fronteiras e de conflitos sangrentos pela posse de terras<br />

norte-americanas - um estado que outrora pertenceu ao México, tendo sido<br />

independente durante um breve período, e, finalmente, incorporado ao território<br />

dos EUA; uma ver<strong>da</strong>deira fronteira em perpétuo movimento, por onde<br />

sempre transitaram os mexicanos, em um movimento incessante de ir-e-vir,<br />

e que deu origem ao mito e à popular bala<strong>da</strong> de fronteira sobre Gregório<br />

Cortez, aquele que teria combatido os Texas Rangers, los Rinches, "com<br />

apenas uma pistola na mão".9<br />

"TEX-as, whal are you going to do there?" Beatriz Soliz asked this, a criminallawyer<br />

by <strong>da</strong>y, an Aztec <strong>da</strong>nce instructor by night, and my c\osest comadre in ali the world.<br />

Beatriz and I go back a long way. Back to the grape·boycott demonstrations in front Df<br />

the Berkeley Safeway. And I mean thefirst grape strike.<br />

"I thought l'd give Texas a year maybe. At least that. !t can't be lhat bad."<br />

"Ayear!!! Lupe, are you crazy? They stilllynch Meskins down there. Everybody's<br />

got chain saws, gun racks and pickups and confederate flags. Aren 't you scared?"<br />

"Girlfriend, you watch too many John Wayne movies".<br />

To tell the truth, Texas did scare the hell out of me. Ali I knew about Texas was it<br />

was big. It was hol. And it was bad. Added to this, was my mama's term teja-NO-te<br />

for tejano, which is sort oflike "Texcessive", in a redneck sort of way. "!t was one Df<br />

those teja·NO·tes that started it", Mama would say. "You know how they are. Always<br />

looking for a fight". (p. 141-142)<br />

o diálogo <strong>da</strong>s duas comadres modernas parodia "remember the alamo",<br />

oferecendo uma versão chicana e feminina <strong>da</strong> historiografia do mexicanoamericano<br />

desde os conflitos de fronteira até as greves dos trabalhadores<br />

rurais, os braceros, sugerindo uma longa história de resistência, que iria<br />

desaguar no Movimento pelos Direitos Civis dos anos 60. O imaginário <strong>da</strong>s<br />

personagens está povoado de imagens que subvertem a história oficial, abrindo,<br />

desta forma, um espaço para que a margem possa narrar sua versão <strong>da</strong><br />

nação.<br />

Se o povo de determina<strong>da</strong> nação é a articulação do movimento ambivalente<br />

entre o pe<strong>da</strong>gógico e o performativo descrito por Bhabha, a própria<br />

nação deixa de ser o signo de moderni<strong>da</strong>de sob o qual as diferenças culturais<br />

são homogeneiza<strong>da</strong>s, em uma visão horizontal <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. A nação, ao<br />

contrário, revela, em sua representação ambivalente e vacilante, a etnografia<br />

1. ido Ihid., p. 298-299.<br />

X. OSNEROS, Sandra. In: WIIman<br />

Hollerinl( Creek (and Other<br />

Stolies). N. York: Random<br />

HOllse, 1991, p. 137-165.<br />

". Refiro o leitor à obra de<br />

Américo Paredes, With His<br />

Pistol in His Hand: a Bordel'<br />

Ballad and its Hero. 8' ed.<br />

Austin: U of Texas P, 1990<br />

onde o antropólogo chicano<br />

analisa a popular bala<strong>da</strong> de<br />

fronteira.


lO BHABHA, OI'. cit., p. 300.<br />

11. BHABHA, Homi. IntelTOga­<br />

ting ldentity. ICA Documents<br />

6. Londres: Institute of Con­<br />

temporary Arts, 1987, p. 6.<br />

A nação e as narrações híbri<strong>da</strong>s 175<br />

de sua própria historici<strong>da</strong>de e a abre a possibili<strong>da</strong>de para outras narrativas de<br />

seu povo e suas diferenças - o que Bhabha chama de "dissemi-nação".1O<br />

Sendo assim, as narrativas produzi<strong>da</strong>s por culturas em oposição ao cânone<br />

não somente assinalam como apagam as fronteiras totalizadoras, tanto reais<br />

quanto imaginárias, de discursos essencialistas como os que foram apresentados<br />

como exemplo na abertura deste estudo. A obra de Bhabha nos aju<strong>da</strong> a<br />

pensar de que forma, ain<strong>da</strong>, a língua, utiliza<strong>da</strong> como estratégia neoconservadora,<br />

a fim de garantir uma suposta homogenei<strong>da</strong>de cultural, pode também<br />

servir de instrumento para criticar concepções monolíticas de "nação". No<br />

caso específico <strong>da</strong> população hispânica dos EUA, que emprega o Spanglish<br />

como prática cultural, observamos que a identi<strong>da</strong>de do sujeito de origens<br />

hispânicas <strong>da</strong> América do Norte é busca<strong>da</strong> dentro do double bind gerado pela<br />

tensão entre duas culturas <strong>da</strong>s quais ele/ela faz parte - uma anglo-americana,<br />

outra latino-americana. Sendo assim, sua linguagem dissemina-se em línguas<br />

e tradições híbri<strong>da</strong>s que determinam seu lugar de fala como sendo outro, em<br />

oposição ao do espaço monocultural. O code-switching, mu<strong>da</strong>nça de código<br />

lingüístico, praticado ao longo <strong>da</strong>s narrativas dos chamados latinos assinala<br />

a heterogenei<strong>da</strong>de sócio-histórica <strong>da</strong> própria América do Norte.<br />

No mesmo conto de Sandra Cisneros, podemos observar, além do espanhol<br />

mesclado com o inglês, a função de duplo <strong>da</strong> narradora:<br />

Ay! to make love in Spanish, in a matter as intricate and devout as la Alhambra. To have<br />

a lover sigh mi vi<strong>da</strong>, mi preciosa, mi chiquitita, and whisper things in that language<br />

crooned to babies, that language murmured by grandmothers, those words that smelled<br />

like your house, like flour tortillas, and the inside of your <strong>da</strong>ddy's hat, like everyone<br />

talking in the kitchen at the same time ( ... ) That language. (p. 121)<br />

A duplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> narradora demonstra sua própria ambivalência em<br />

relação à sua cultura de pertencimento: ela se encontra dentro, e ao mesmo<br />

tempo fora <strong>da</strong> cultura mexicana, fato que marca tanto a possibili<strong>da</strong>de quanto<br />

a impossibili<strong>da</strong>de de identificação total com a cultura de origem. Somente<br />

através <strong>da</strong> compreensão dessa ambivalência, do "desejo do Outro", poderemos<br />

evitar a adoção fácil <strong>da</strong> noção de um outro homogêneo, como quer a<br />

culltura hegemônica. O momento vivido pela narradora de "Bien Cute"<br />

coincide com o que Homi Bhabha descreve como o momento de interrogação<br />

<strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de:<br />

( ... ) the encounter with Identity occurs at the point at which something exceeds the<br />

frame of the image, eludes the eye, evacuates the self as site of identity and autonomy<br />

and - most importantly - leaves a resistant trace, a stain of the subject, a sign of<br />

resistence. We are no longer confronted with an ontological problem of being but with<br />

the discursive strategy of the 'moment' of interrogation; a moment in which the<br />

demand for identification becomes, primarily, a response to other questions of signifi­<br />

cation and desire, culture and politics. 11


176 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

Ao fazer com que sua narradora interrogue a identi<strong>da</strong>de, através <strong>da</strong><br />

referência ao espanhol - uma <strong>da</strong>s línguas que (in)formam sua história, e<br />

portanto uma <strong>da</strong>s formas possíveis de identificaçãolidenti<strong>da</strong>de. Cisneros traz<br />

para a esfera pública precisamente o momento descrito acima. em que "a<br />

necessi<strong>da</strong>de de identificação torna-se. primeiramente. uma resposta a outras<br />

questões de significação e desejo, cultura e política". Juan Flores e George<br />

Yúdice observam que<br />

Language ( ... ) is the necessary terrain on which Latinos negotiate valuc and attempt to<br />

reshape the institutions through which it is distributed. This is not to say that Latino<br />

identity is reduced to its linguistic dimensions. Rather, in the current sociopolitical<br />

structure ofthe United States, such matters rooted in the 'private sphere', like language<br />

( ... ), sexuality, body, and family definition ( ... ) become the semiotic material around<br />

which identity is deployed in the 'public sphere',12<br />

Sem sacrificar o hibridismo de tradições que constitui sua identi<strong>da</strong>de, o<br />

sujeito latino procura inscrever-se como um norte-americano cujo lugar de<br />

fala possui elementos lingüísticos e culturais que ain<strong>da</strong> não foram ouvidos.<br />

No poema "AmeRícan",13 Tato Laviera não somente afirma sua condição<br />

como americano de origem porto-riquenha, como também abre uma nova<br />

perspectiva, através do jogo com a palavra "American", para o conceito de<br />

americano. Sua visão de "americano" não é uma proposta de fechamento,<br />

como quer o modelo monocultural do centro; ela propõe, antes, uma América<br />

"sendo inventa<strong>da</strong>":<br />

( ... )<br />

we gave birth to a new generation<br />

AmeRícan salutes ali folklores,<br />

european, indian, black, spanish,<br />

and anything else compatible:<br />

C.)<br />

AmeRícan,<br />

AmeRícan,<br />

AmeRícan,<br />

defining myself my own way any way many<br />

ways Am e Rícan, with the big R and the<br />

accent on the í'<br />

like the soul gliding talk of gospel boogie music!<br />

speaking new words in spanglish tenements,<br />

fast, tongue moving street comer "que<br />

corta" talk being invented at lhe insistence<br />

of smile!<br />

Em seu poema intitulado "Asimilao",14 Laviera demonstra que o sincretismo<br />

lingüístico-cultural não é uma forma de integração (assimilação)<br />

ao espaço hegemônico, e sim uma estratégia de ressignificação, através<br />

de articulações outras, sistematicamente ignora<strong>da</strong>s pelo mainstream norteamericano:<br />

12 FLOR'" &: YÚDrCE. O". á/.,<br />

P 61<br />

n. LAvrERA, Tato. AmeRícan.<br />

Houston: Arte Público Press.<br />

1.981. p. 94-95.<br />

14 id .. ihid., p. 54.


assimilated? Qué assimilated"<br />

brother, yo soy asimilao,<br />

así mi la o sí es ver<strong>da</strong>d<br />

tengo un lado asimilao ..<br />

you see, they went deep ........... Ass<br />

oh . . ....... they went deeper ....... SEE<br />

oh, oh ......... they went deeper ..... ME<br />

but the sound LAO was too black<br />

A nação e as narrações híbri<strong>da</strong>s 177<br />

for LATED, LAO could not be trans/med, assimilated"<br />

no, asimilao, mela0,<br />

it became a black<br />

spanish word but<br />

we do have asimilados<br />

perfumados and by the<br />

last count even they<br />

were being asimilao<br />

how can it be anal yzed<br />

as american? ( ... )<br />

Jogando com o som <strong>da</strong>s palavras asimilado/assimilated, Laviera mostra<br />

a impossibili<strong>da</strong>de de integração ao centro, pois para este ele é invisível: SEE<br />

ME. Como o Homem Invisível de Ralph Ellison, ele escapa ao olhar de uma<br />

socie<strong>da</strong>de que teima em não vê-lo. Nas palavras de Laviera, "o som LAO foi<br />

negro demais para eles". Seu "lado asimilao" é seu lado negro: graças à<br />

intluência africana em Porto Rico, a pronúncia <strong>da</strong> palavra espanhola "asimmilado"<br />

passou a ser pronuncia<strong>da</strong> "asimilao", Portanto, como "assimilated/asimilao",<br />

com seus diversos "lados", pode ser analisado como (norte<br />

)americano, dentro de uma tradição que concebe a identi<strong>da</strong>de como um<br />

objeto <strong>da</strong> visão acabado, totalizante? É esta a pergunta que o poeta nuyorican<br />

parece se fazer.<br />

Vimos, nas obras seleciona<strong>da</strong>s como exemplo, que os escritos dos norteamericanos<br />

de origem hispânica freqüentemente lançam mão do embricamenta<br />

de elementos culturais, históricos e lingüísticos norte-americanos<br />

(EUA) com os de seus países de origem, rearticulando-os de forma a narrar<br />

uma nação outra, que sugere contextos histórico-culturais que incluem tanto<br />

a experiência indígena ou de povo conquistado em sua própria terra (no caso<br />

dos chicanas) quanto a africana (no caso de autores e autoras do Caribe). A<br />

utilização de "padrões de interferência", como o emprego do Spanglish como<br />

prática discursiva torna-se um mecanismo poderoso de resistência ao atual<br />

apego neo-imperial com a etnici<strong>da</strong>de monoglóssica, como pudemos observar<br />

nos exemplos de discursos dos "guardiães" dos países do centro, para quem<br />

o "outro" representa ameaça constante à suposta experiência "comum" <strong>da</strong><br />

nação. O outro - assim como a "nação" - não constitui, no entanto, um todo<br />

homogêneo. E, assim, para concluir, gostaria de lembrar a existência de um<br />

paralelo a ser assinalado entre as vozes contra-hegemônicas trazi<strong>da</strong>s para este


178 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

estudo e os discursos literários dos países periféricos. Porque apontam a crise<br />

<strong>da</strong>s centrali<strong>da</strong>des, tanto os textos produzidos dentro <strong>da</strong>s margens do chamado<br />

Primeiro Mundo, quanto aqueles produzidos no (ain<strong>da</strong>) chamado Terceiro<br />

Mundo, desestabilizam a tentativa de se estabelecer uma idéia monocultural<br />

de nação, em um novo contexto globalizado, onde as nações já não são<br />

espacialmente delimita<strong>da</strong>s, e tampouco seus ci<strong>da</strong>dãos compartilham uma<br />

mesma experiência ou identi<strong>da</strong>de nacional. Ao contrário, acredito terem<br />

nossas nações periféricas um diálogo a ser travado com o Terceiro Mundo que<br />

habita, hoje, os países do centro. Nos escutando uns aos outros, e unindo<br />

nossas vozes "outras" talvez possamos desobstruir o caminho que aponta<br />

uma perspectiva de via única gera<strong>da</strong> pela tradição etnocêntrica e pelo rumo<br />

neoconservador que vem tomando a globalização, com a disputa dos responsáveis<br />

pela manutenção do status quo do centro por quem vai ser o "primeiro"<br />

no próximo milênio.


I. Cf. TABUCCHI, Antonio. Noturno<br />

indiano. Trad. Wander<br />

Melo Miran<strong>da</strong>. Rio de Janeiro:<br />

Roeco, 1991, p. 7. Daqui por<br />

dhmte como NI.<br />

As sombras <strong>da</strong> nação<br />

Luiz Alberto Brandão Santos<br />

Na nota introdutória de Sotumo indiano, Antonio Tabucchi afirma que, em<br />

seu livro, procura-se uma sombra. 1 Essa procura se dá através <strong>da</strong> viagem do<br />

narrador que cruza, com seus inúmeros deslocamentos, uma paisagem desconheci<strong>da</strong><br />

e misteriosa: a paisagem <strong>da</strong> Índia. A Índia surge como um espaço<br />

onde to<strong>da</strong>s as referências - sociais, econômicas, políticas e, sobretudo, cultu­<br />

rais e simbólicas - são imprecisas e fugidias. Buscar uma sombra, mover-se<br />

nesse espaço indefinido significa, assim, instaurar uma discussão sobre as<br />

possibili<strong>da</strong>des de delineamento de uma identi<strong>da</strong>de.<br />

No presente texto, também procuro uma sombra. Elejo também a Índia<br />

como um espaço de deslocamento, um espaço teórico para a investigação de<br />

uma concepção de nação. Seguindo a trilha de estudiosos como Benedict<br />

Anderson, Eric Hobsbawm e Homi Bhabha, que questionam o conceito de<br />

nação enquanto um conceito uno, homogêneo, totalizador, inserido numa<br />

visão histórica linear e contínua, me proponho a pensar a nação a partir de<br />

suas margens. Investigar não apenas a luminosi<strong>da</strong>de grandiloqüente que<br />

emana dos discursos que estabelecem a identi<strong>da</strong>de nacional como uma essência<br />

atemporal e originária, mas também as sombras que emergem, nos interstícios<br />

<strong>da</strong> luz, quando se passa a conceber a nação exatamente como uma<br />

construção discursiva, como uma comuni<strong>da</strong>de imagina<strong>da</strong>.


182 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, nO 3<br />

performático (o ver menos)(Bhabha, p. 297). A cultura nacional passa a ser<br />

entendi<strong>da</strong>, assim, como um espaço litigioso, performático <strong>da</strong> perplexi<strong>da</strong>de<br />

dos vivos no meio <strong>da</strong>s representações pe<strong>da</strong>gógicas <strong>da</strong> plenitude <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> (Ibid.,<br />

p.307).<br />

Em O fio do horizonte, de Tabucchi, uma massa de nuvens subitamente<br />

envolve o farol e as gruas do porto, dissolvendo-os em névoa. 5 A mesma e<br />

ligeira névoa que cobre, em certos momentos. o mar e a costa. Da ci<strong>da</strong>de,<br />

entretanto, essa névoa não é nota<strong>da</strong>. Só é possível percebê-la deslocando-se<br />

até a periferia (FH, p. 35).<br />

Entre o enigma e o óbvio<br />

"A Índia é misteriosa por definição". afirma o narrador de Noturno<br />

indiano. Assim, a busca do delineamento de uma identi<strong>da</strong>de, pessoal e nacional,<br />

nesse espaço desconhecido que é a Índia, configura-se enquanto tentativa<br />

de resolução de um enigma. Entretanto, à medi<strong>da</strong> que as pistas vão sendo<br />

segui<strong>da</strong>s, os rastros sendo trilhados, toma-se ca<strong>da</strong> vez mais agu<strong>da</strong> e presente<br />

a consciência de que tal enigma é um enigma sem solução.<br />

Também em O fio do horizonte, a personagem central, procurando recompor<br />

uma história obscura, tentando reconstruir um passado que assegure<br />

existência para um morto de identificação impossível, somente pode seguir<br />

indicações precárias e levantar hipóteses não comprováveis. O caráter detetivesco<br />

desse empreendimento tende a patentear, exatamente, que nenhum<br />

ponto final pode ser atingido, que nenhuma ver<strong>da</strong>de essencial pode ser<br />

revela<strong>da</strong>.<br />

O que se torna nítido é que a "arte do enigma" (N/, p. 42) não é o forte<br />

desse narrador e dessa personagem. Que o mundo <strong>da</strong>s sombras jamais pode<br />

ser <strong>completa</strong>mente iluminado.<br />

Da mesma forma, pode-se afirmar que o conceito de nação também é um<br />

conceito enigmático. Qualquer pista que, a princípio, parece levar a uma<br />

delimitação precisa do significado do termo nação acaba por se revelar, numa<br />

análise mais minuciosa, cerca<strong>da</strong> de incertezas. Segundo Francesco Rossolillo,<br />

"o conteúdo semântico do termo, apesar de sua imensa força emocional,<br />

permance ain<strong>da</strong> entre os mais confusos e incertos do dicionário políticO".6<br />

Essas imprecisões derivam do fato de também serem imprecisas as idéias<br />

comumente arrola<strong>da</strong>s como determinantes <strong>da</strong> concepção de nacionali<strong>da</strong>de.<br />

É o caso <strong>da</strong> idéia de "laços naturais", intimamente associa<strong>da</strong> à idéia de<br />

"raça". Como assinala Rossolillo, "não é preciso demorar muito para demonstrar<br />

que o termo "raça" não possibilita a identificação de grupos que<br />

possuem limites definidos e que, de qualquer forma, as classificações "raciais"<br />

tenta<strong>da</strong>s pelos antropólogos - mediante critérios que variam para ca<strong>da</strong><br />

5. TABUCCHI, Antonio. O fio do<br />

horizonte. Trad. Helena Domingos.<br />

Lisboa: Difel, s.d., p.<br />

21. Daqui por diante como<br />

FH.<br />

6, ROSSIOILILLO, Francesco.<br />

Nação. In: BOBBIO, Norberto et<br />

a!. Dicionário de político. 2'<br />

ed. Brasília: UNB, 1986, p.<br />

795.


184 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

Decreta<strong>da</strong> a obvie<strong>da</strong>de do nacional, estabeleci<strong>da</strong> a crença de que tudo possui<br />

uma "evidência definitiva", (FH, p. 20) torna-se desnecessário investigar o<br />

modo como se constrói a sua significação.<br />

Em Noturno indiano, a conjugação entre luz e sombra, entre a sensação<br />

de enigma e a sensação de obvie<strong>da</strong>de na percepção do espaço <strong>da</strong> Índia - e,<br />

conseqüentemente, do próprio espaço de uma identi<strong>da</strong>de nacional e individual<br />

- se dá em diversos níveis.<br />

Em alguns momentos, o que se ressalta é o sentido de exotismo <strong>da</strong><br />

paisagem. Vivenciando um tipo de "turismo de luxo",(NI. p. 87) em que a<br />

cabine do trem é "quase um aquário",(NI, p. 36), o narrador pode lançar seu<br />

olhar apenas como um olhar distanciado, um olhar de fora. Através desse<br />

olhar, o que há de enigmático na paisagem reveste-se de uma luminosi<strong>da</strong>de<br />

predetermina<strong>da</strong>. A Índia que se vê é a Índia que se quer I'e,-: uma Índia opaca,<br />

uma Índia já vista. O exotismo funciona como uma operação teatral que<br />

garante a segurança de mistérios programados, que simula o enigma através<br />

de recursos óbvios, como o porteiro, no Taj Mahal. "travestido de príncipe<br />

indiano, de faixa e turbante vermelhos" e "outros empregados também fantasiados<br />

de marajá" (NI, p. 31).<br />

Porém, para além <strong>da</strong>s "pesa<strong>da</strong>s cortinas de veludo verde" que "desliza­<br />

vam doces e macias como um pano de boca de um teatro" (NI, p. 31), para<br />

além <strong>da</strong>s luzes enganosas do exotismo. a presença incômo<strong>da</strong> e obscura dos<br />

corvos anuncia outras Índias. Com seus bicos sujos que carregam e espalham<br />

pe<strong>da</strong>ços de cadáveres, os corvos "não respeitam o 'direito de admissão'<br />

vigente no Taj Mahal". Desafiando a vigilância dos polidos empregados do<br />

hotel, revelam a Índia dos problemas higiênicos, dos ratos, dos insetos, <strong>da</strong>s<br />

infiltrações dos esgotos:(NI, p. 30) a Índia <strong>da</strong>s sombras.<br />

Para um olhar mais atento, o que a presença insistente dos corvos sinaliza<br />

é que o Taj Nahal não é somente um hotel. É, na reali<strong>da</strong>de, "uma ci<strong>da</strong>de<br />

dentro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de" (NI, p. 31). O espaço <strong>da</strong> nação passa a ser visto, dessa<br />

forma, não mais apenas como a delimitação de fronteiras externas, mas como<br />

um espaço marcado, fun<strong>da</strong>mentalmente, pela "liminari<strong>da</strong>de interna" (Bhabha,<br />

p. 300). O caráter uno <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de cinde-se pela diferença que se instala<br />

internamente. As margens <strong>da</strong> nação não estão do lado de lá de suas fronteiras,<br />

mas no seu próprio cerne. As narrativas pe<strong>da</strong>gógicas que se fun<strong>da</strong>m enquanto<br />

limites totalizadores se vêem confronta<strong>da</strong>s a contranarrativas que explicitam<br />

e rasuram esses limites.<br />

Assi.m, a ameaça <strong>da</strong> diferença deixa de ser apenas uma questão relativa<br />

a um outro povo (ou a uma outra identi<strong>da</strong>de, a uma outra nação) e passa a ser<br />

uma questão relativa à própria "outri<strong>da</strong>de" do povo-enquanto-um (ibidem, p.<br />

30 I), <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de enquanto heterogenei<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> nação enquanto conjunto<br />

antagônico de significações. Na paisagem óbvia, plenamente ilumina<strong>da</strong>,


As sombras <strong>da</strong> nação 185<br />

emergem, subrepticiamente, paisagens residuais e enigmáticas. Sobre o cenário<br />

límpido do Taj Nahal, sobrevoa a sombra dos corvos.<br />

A coruja que voa no crepúsculo<br />

Em Noturno indiano, a percepção de que a identi<strong>da</strong>de se estabelece em<br />

um espaço situado entre o narrar e o ser narrado se dá, exatamente, na Índia<br />

- esse lugar em que os homens se confundem com o pó, com meros nomes<br />

que se perdem na quanti<strong>da</strong>de infinita de papéis de um arquivo morto. Esse<br />

lugar que exige, como adverte o médico do hospital de Bombaim, que se<br />

abandone o "luxo excessivo" <strong>da</strong>s "categorias européias",(NI, p. 20) que se<br />

pare de conceber "o Ocidente cristão como o centro do mundo" (NI, p. 65).<br />

O que é necessário para se repensar o conceito de nação é, portanto, uma<br />

mu<strong>da</strong>nça de categorias. Tal mu<strong>da</strong>nça se efetua quando se percebe que o<br />

controle <strong>da</strong> narrativa que constitui o sentido de nacional não é monológico,<br />

quando a nação passa a ser encara<strong>da</strong> enquanto conjunto heterogêneo de<br />

significações ambivalentes.<br />

Instalando-se a identi<strong>da</strong>de enquanto jogo de narrativas, a Índia - esse<br />

país feito de propósito para se perder (NI, p. 20) - deixa vir à tona, sobretudo,<br />

a ambivalência particular que assombra a idéia dc nação: as certezas <strong>da</strong><br />

narrativa-pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong>queles que escrevem e postulam a seu respeito e a<br />

perplexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s narrativas-performances <strong>da</strong>queles que efetivamente a vivem<br />

(Bhabha, p. I).<br />

Investigar a nação a partir de sua margem implica a quebra do binarismo<br />

que opõe dentro e fora, identi<strong>da</strong>de e alteri<strong>da</strong>de. nacional e estrangeiro. Ao se<br />

pensar que "o 'outro' nunca está fora ou além de nós", mas que "emerge<br />

forçosamente dentro do discurso cultura]"' (ibid. p. 4), inaugura-se uma perspectiva<br />

internacional. Ao se considerar a nação enquanto espaço de circulação<br />

de narrativas, uma perspectiva trallsnacional é cria<strong>da</strong>.<br />

Em certa passagem do li\To. o narrador de Noturno indiano se lembra de<br />

suas antigas aulas dc astronomia. Nelas, aprendeu que "quando a massa de<br />

uma estrela agonizante é superior ao dobro <strong>da</strong> massa solar, não existe mais<br />

estado de matéria capaz de deter a concentração, e esta procede ao infinito;<br />

nenhuma radiação sai mais <strong>da</strong> estrela, que se transforma assim em um buraco<br />

negro" (SI. p. 79).<br />

Se no estado de adensamento absoluto as estrelas na<strong>da</strong> irradiam, desembocando<br />

em buracos negros para onde converge to<strong>da</strong> a luz, talvez seja mais<br />

interessante pensar a nação não mais como concentração de significações que<br />

se agregam ou que se anulam, mas como negociação dinâmica de sentidos,<br />

Como dispersão de sombras, divergência de significações, Como dissemiNação.


186 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

Hobsbawm sugere que não é impossível se pensar no declínio do nacionalismo<br />

e do Estado-nação. A partir desse declínio. "o 'ser' inglês, ou irlandês,<br />

ou judeu, ou uma combinação desses todos" passa a ser sentido como<br />

"somente um dos modos pelos quais as pessoas descrevem suas identi<strong>da</strong>des,<br />

entre muitas outras que elas usam para tal objetivo, como deman<strong>da</strong>s ocasionais".9<br />

O próprio fato de os historiadores estarem fazendo progressos nesse<br />

campo de estudos indica que o fenômeno já passou de seu apogeu. Nesse<br />

sentido, Hobsbawm lembra que "A coruja de Minerva que traz sabedoria.<br />

disse Hegel, voa no crepúsculo. É um bom sinal que agora está circun<strong>da</strong>ndo<br />

ao redor <strong>da</strong>s nações e do nacionalismo" (ibid. p. 215).<br />

Como um "amante de percursos incongruentes" (NI, p. 7), é esse vôo e<br />

esse sinal que o leitor de hoje pode rastrear no universo <strong>da</strong> literatura contemporânea.<br />

9. HOBSBAWM, Eric J. Naç"es e<br />

nacionalismo desde 1780;<br />

programa, mito e reali<strong>da</strong>de.<br />

Trad. Maria Celia Paoli e Anna<br />

Maria Quirino. Rio de Janeiro:<br />

Paz e Terra, 1991, p. 215.


4, O cineasta polonês Kryszrof<br />

Kieslowski, em recente entre­<br />

vista concedi<strong>da</strong> à <strong>revista</strong><br />

Newsweek, diz: Imagine trying<br />

to film the sentence: "He be­<br />

gan to come to see her leS5 end<br />

less, until he stopped coming<br />

altogether." This is a phrase<br />

that oeeurs often in literature.<br />

But you can 't film it. because<br />

it speacks 01' time. of a relantionship<br />

betwecn two people.<br />

Newsweek, 15 de moi o de<br />

1995, p. 56.<br />

5 Vide nota I .<br />

A passante e o "choque" 191<br />

localiza dentro do campo de relativa irreali<strong>da</strong>de que é a vi<strong>da</strong> interior. Esta<br />

recupera as imagens carrega<strong>da</strong>s de símbolos - sinônimos de irreali<strong>da</strong>de - para<br />

a reali<strong>da</strong>de contingente, imanente, como em 8 1/2 ou O Sétimo Selo, A<br />

combinação dos dois elementos, (reali<strong>da</strong>de contingente - e imediata - e<br />

irreali<strong>da</strong>de) conferem uma grande liber<strong>da</strong>de, permitindo que crie em nós uma<br />

unici<strong>da</strong>de de ordem imaginatiya, a qual nos proporciona uma clareza maior<br />

e a consciência <strong>da</strong>s raízes do ser - poesia. O cinema pode despertar em nós o<br />

sentimento poético, deixando aos espectadores a tarefa <strong>da</strong> poetização em si,<br />

que na literatura, porque as palanas têm menos força de presente do que as<br />

imagens, deve cumprir-se integralmente dentro do texto, sem deixar de exigir<br />

<strong>da</strong> imaginação dos leitores a análise <strong>da</strong> imagem, sua decomposição em nós,<br />

para voltarmos, em segui<strong>da</strong>, a senti-Ia.<br />

D'un r."filme lenr elle le dirigeair iei d'abord, puis là, puis ailleurs, vers un bonileur<br />

noble, 11ll1l1elhglble er précis. Et tout d'un coup, au point ou elle était arrivée et d' ou<br />

ti se préparair à la suivre, apres une pause d'un instant, brusquement elle changeait<br />

de d/recrion, et d'un mouvement nouveau, plus mpide, menu, mélancolique, incessant<br />

er dOlLt, elle l'entra/nair avec elle vers des perspectives inconnues, puis elle disparut.<br />

Não só trechos como os que tomamos seriam de difícil representação<br />

cinematográfica,4 No restante <strong>da</strong> obra, a ação efetiva mostra-se insatisfatória<br />

para Proust. Os momentos têm um encanto muito menor quando vividos, que<br />

quando revistos pela memória, diz ele, Quando Marcel joga o jogo do anel<br />

com Andrée, Albertine, Rosemonde e outras jovens, em Balbec, não experimenta<br />

encantamento, No entanto, Marcellembrar-se-á mais tarde deste episódio<br />

com um fascínio muito superior ao <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong> e representa<strong>da</strong><br />

por palavras,<br />

A diferença de formas de apreeensão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de é de expressão cinematográfica<br />

ain<strong>da</strong> mais difícil. No entanto, em Citizen Kane, a diferença de<br />

ambiente entre as cenas do noticioso e as dos relatos, em Xanadu, por<br />

exemplo, é indicativa de que é possível apresentar esta diferença, no cinema,<br />

segundo o olhar que lhe é lançado no tempo - pela câmara-narrador propriamente<br />

dita, ou por outro espectador, isto é, um dos ent<strong>revista</strong>dos por Thompson,5<br />

Bernstein, em seu relato, apresenta um Kane eufórico, mas em que já<br />

pesa uma ameaça de opressão, Evidentemente esta impressão é o resultado<br />

de considerações posteriores ao momento vivido, em que não haveria consciência<br />

possível, porque a defasagem seria inexistente, Como o relato é<br />

posterior ao acontecido, o acontecido, apesar de a imagem cinematográfica<br />

ter força de presente, e,stá carregado <strong>da</strong> análise que lhe é posterior, sendo esta<br />

expressa não por palavras, mas pela iluminação, pelas angulações, pela posição<br />

<strong>da</strong> câmara e pelos ambientes já sobrecarregados e fechados, que oprimem<br />

a personagem principal. O foco narrativo é capaz de fixar algo, na imagem<br />

como todo, que recupera plenamente, para o cinema, as características do


'. Proust m; 885.<br />

A passante e o "choque" 193<br />

soais, como é o caso de filmes de Kurosawa como Ran, ou como Harakiri.<br />

Claro que a dimensão metafísica (ou mística) do ser humano é a de representação<br />

cinematográfica mais difícil.<br />

Tel nom lu <strong>da</strong>ns un livre autrelóis, contient entre ses syllabes le vent rapide et le soleil<br />

brillant qu'i!faisait quand nous le lisions. De sorte que la littérature qui se contente<br />

de "décrire des choses", d'en donner seulement un misérable relevé de lignes et de<br />

surlaces, est celle qui tout en s' appellant réaliste, est la plus éloignée de la réalité,<br />

celle qui nous appauvrit et nous attriste le plus, car elle coupe brusquement toute<br />

communication de notre moi présent avec le passé. dont les choses gar<strong>da</strong>ient I' essence,<br />

et I' avenir, ou elles nous incitent à la gouter de Ilouveau. C' est elle que I' art digne de<br />

ce Ilom doit exprimer, et s'i! y échoue, on peut encore tirer de son impuissance un<br />

enseignement (tandis qu'on n'en tire aucun des réussites du réalisme) à savoir que<br />

cette essence est en partie subjective et incommunicable.7<br />

Este é o projeto mais ambicioso <strong>da</strong> literatura. Os projetos cinematográficos<br />

ambiciosos buscarão a representação dos aspectos que, no ser humano,<br />

se relacionam com o histórico e o social. A psique humana é representa<strong>da</strong> e<br />

se manifesta nas relações com o outro.<br />

A passante e o choque<br />

A descrição dos efeitos <strong>da</strong> música no ouvinte privilegiado que é Swann,<br />

em A la Recherche du Temps Perdu, percorre sinestesicamente diversos<br />

órgãos de sentidos, até serem todos enfeixados no amor desconhecido, em<br />

sentimentos fortes, plenos, mas o seu tanto indescritíveis, indefinidos, vinculados<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente à experiência estética, ou, em outras palavras, à<br />

experiência do belo:<br />

D 'UII rythllle lellt elle le d/riRemt ici d·abord. puis là, puis ailleurs, vers un bonheur<br />

nob!e, illilltelligible et précis. Et to//t d'un coup, au point ou elle était arrivée et d'ou<br />

il se préparait ti la mi\Te. apres //lIe pause d'un instant, brusquement elle challReait<br />

de directioll, et d' lIlI mo//vemellt lIouveau, plus rapide, menu, mélancolique, incessant<br />

et dow:, elle I'elltraillait avec elle vers des perspectives inconnues.<br />

Assim é que Proust introduz o topos <strong>da</strong> passante, topos que recorre em<br />

manifestações diferentes e de épocas diversas. Baudelaire dedica um poema<br />

a passante, estu<strong>da</strong>do por Benjamin, O mesmo topos aparece no cinema, Tem<br />

a ver com a tentativa de fixação do momento fugaz de apreensão <strong>da</strong> beleza<br />

física ou estética, que provoca sentimentos desta espécie de amor deconhecido<br />

do qual fala Proust. Como um dos problemas na passagem <strong>da</strong> literatura<br />

para o cinema é a representação <strong>da</strong> memória, trabalharei mais de perto com


A passante e o "choque" 197<br />

ato de vontade e <strong>da</strong> consciência do próprio olhar, a fim de suspender a<br />

contingência e a singulari<strong>da</strong>de.<br />

Uma amplificação destas é mais facilmente transmissível por palavras,<br />

do que por imagens, porque as imagens se apresentam ao espectador como<br />

reali<strong>da</strong>de - externa à consciência. Mas foi só fazendo a comparação entre<br />

literatura e cinema, e tomando como exemplo o filme de Orson Welles, que<br />

nos demos conta de que aquilo que parece ser mera vivência, fruto de choque,<br />

conforme Benjamin, pode ser vivido como experiência profun<strong>da</strong> e mesmo<br />

fun<strong>da</strong>mental. Os níveis de consciência humana podem ser diretamente afetados<br />

por contingências históricas - mas não é obrigatório. Assim, o cinema nos<br />

leva a suspender o determinismo na concepção <strong>da</strong>s relações entre ser humano<br />

e meio; nos leva a entender que as mu<strong>da</strong>nças e transformações no ser humano<br />

são possíveis ao longo de sua existência. Na<strong>da</strong> é. Tudo está.


'. CABRERA INFANTE, Guillermo.<br />

Tres tristes tigres. Barcelona,<br />

Sei x-BarraI, 1968, p.<br />

341.<br />

2. NERUDA, Pablo. Confieso<br />

que he vivido. Memorias. Barcelona:<br />

Seix-Barral, 1974,<br />

175-76.<br />

EI Sindrome de Merimée<br />

o la espanoli<strong>da</strong>d literaria<br />

de Alejo Carpentier<br />

Luisa Campuzano<br />

Cuando a fines de los sesenta un personaje de Tres tristes tigres llamó<br />

a Alejo Carpentier "eI último novelista francés que escribe en espanol", I<br />

o Neru<strong>da</strong>, a comienzos de los setenta se refirió a él como "un escritor<br />

francés",2 en ambas afirmaciones había, sin du<strong>da</strong>s, mucha mala intención<br />

y alguna inquina política, cierta influencia de la lectura aún cercana de<br />

El siglo de las luces (1962) y un gran apego a la ficha biográfica - su<br />

padre era bretón - y a los defectos, de pronunciación deI autor, quien<br />

como Cortázar, arrastraba la erre, y había residido muchos anos en Francia,<br />

Pero también eran evidentes un desconocimiento u olvido voluntario de<br />

aspectos esenciales de su obra y de su vi<strong>da</strong> - por ejemplo, que había vivido<br />

mucho más tiempo en Venezuela -, los que el curso de los anos y la<br />

sucesión de novelas y ensayos que publicaría en los setenta, o de distintos<br />

textos de otros tiempos puestos de nuevo en circulación, se encargarían de<br />

reforzar.<br />

Entre estos aspectos. esenciales de sus textos y también de su biografía,<br />

uno de los menos desestimables - que de haber sido capaces de distinguirlo<br />

sus detractores podría haber contribuido con más agudeza que el prontuario<br />

policiaco a la construcCÍón deI presunto "atfancesamiento" carpenteriano -<br />

es precisamente esa suerte de "síndrome de Merimée" - la "mo<strong>da</strong> espano la"<br />

que también padecieran Corneille, Moliere, Lesage -, que lo afecta en casi


200 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

to<strong>da</strong> su obra, lo que parafraseando un importante estudio de Juan Marinello<br />

sobre José Marti,3 tan paradójicamente aquejado deI mismo mal, me gustaría<br />

llamar la "espafíoli<strong>da</strong>d literaria" de Alejo Carpentier, demostrable en diversos<br />

registros de su hacer y a la que quiero acercarme de un modo forzosamente<br />

muy parcial, a través de un inventario comentado de sus escenarios espafíoles<br />

y de sus encuentros de todo tipo con el más universal de los hijos de Espafía:<br />

Miguel de Cervantes; para luego detenerme, siquiera brevemente, en la<br />

significativa presencia de éste en algunos textos deI cubano.<br />

Siendo la complejísima dialéctica de las relaciones deI Viejo y el Nuevo<br />

Mundo una de las preocupaciones sustantivas de Carpentier. - el motivo deI<br />

viaje es uno de los más frecuentes de su narrativa, y Espana. un escenario<br />

privilegiado en el constante ir y venir de sus personajes y sus ideas. Campo<br />

de batalla donde pelear las guerras más justas contra los franceses. contra los<br />

fascistas - y por ello en ocasiones escenario metonímico de los combates que<br />

no se <strong>da</strong>n - guerra de independencia a comienzos deI XIX - o que se han<br />

congelado - revolución izquierdista de los anos 30 - en su patria; crisol de<br />

razas, de culturas, de credos; espacio alternativo, especular, deI Caribe, su<br />

otro Mediterráneo; punto de parti<strong>da</strong> de to<strong>da</strong>s las aventuras posibles e imposibles,<br />

Espafía, desde los pasos de los Pirineos hasta el puerto de PaIos, desde<br />

la frontera portuguesa hasta las Islas Baleares, de Prudencio a San Juan, de<br />

Lope de Vega a García Lorca, de Flandes aI 2 de mayo, de Goya a Picasso,<br />

de Antonio Cabezón a Manuel de Falla, desde los emigrados de Bayona hasta<br />

las Briga<strong>da</strong>s Internacionales, es uno de los grandes temas de reflexión de<br />

Carpentier.<br />

Como amplio escenario y bien documentado contexto temporal, Espana<br />

aparece en cinco de sus novelas y dos de sus relatos, con lo que constituye,<br />

fuera de Cuba, el más frecuentado de los espacios y los tiempos narrativos de<br />

Carpentier. Procediendo cronológicamente, de acuerdo con la fecha de publicación<br />

de los textos, me propongo esbozar un somero inventario de su<br />

presencia en la narrativa deI cubano, el cual no será más que un indicio<br />

superficial de la dimensión profun<strong>da</strong>mente significativa de su alcance, cifrado<br />

en un vasto conocimiento de su historia, sus letras y su arte.<br />

En "Semejante a la noche" (1952), uno de los personajes que se preparan<br />

a partir hacia una empresa bélica, de sangre y rapifía disfraza<strong>da</strong>s de heroísmo,<br />

que en el relato se repite desde los tiempos de Troya hasta los de la Segun<strong>da</strong><br />

guerra mundial, es un espafíoI de comienzos deI siglo XVI que se apresta a<br />

embarcar rumbo a la conquista de América.<br />

En "EI camino de Santiago" (1958), un tambor de los tercios de Flandes<br />

a quien la peste le ha hecho prometer aI santo patrón de los ejércitos espafíoles<br />

que irá como peregrino a Compostela, es desviado de su ruta por las copas; y<br />

en Burgos se deja conquistar por el deseo de ir a las Indias, hacia donde sale<br />

después de recibir eJ permiso oficial en Sevilla. Tras una desafortuna<strong>da</strong><br />

l. Cf. sobre este tema MARI·<br />

NELLO, Juan. Espanoli<strong>da</strong>d literaria<br />

de José Marti. Dieciocho<br />

ensa)'os martianos. La Habana:<br />

Editora Política, 1980;<br />

VITIER, Cintio. Espana en Martí.<br />

Casa de las Américas, 35<br />

(198): 4-13, enero-marzo<br />

1995; y En un domingo de mucha<br />

luz. Cultura, historia y literatura<br />

espano las en la ohra<br />

de José Martí. Salamanca: Ed.<br />

Universi<strong>da</strong>d de Salamanca,<br />

1995.


El Sindrome de Merimée o la espano!i<strong>da</strong>d !iteraria de Alejo Carpentier 201<br />

estancia en la paupérrima Habana de comienzos deI sigla XVI y una tempora<strong>da</strong><br />

no menos desastrosa en un palenque de cimarrones deI interior de la Isla,<br />

vuelve el romero arrepentido a Espafia, pasando por las Islas Canarias, y de<br />

nuevo en Burgos y en Sevilla, y convertido en indiano, trasmite a otros el<br />

deseo de viajar a las nuevas tierras.<br />

En El siglo de las luces.la novela de 1962 que tematiza la trayectoria de<br />

la Revolución francesa en el Caribe, el desconsuelo y la rabia de Sofía y<br />

Esteban, los protagonistas cubanos defrau<strong>da</strong>dos por ella, encuentran un espacio<br />

de acción en la sublevación de los madrilefios contra los bonapartistas el<br />

2 de mayo de 1808. A manera de epílogo, su capítulo final se desarrolla en un<br />

Madrid aI que Ilega Carlos, el hermano sobreviviente, con la intención de<br />

in<strong>da</strong>gar por su destino, de descifrar el sentido de sus últimos afios y de recoger<br />

sus pertenencias.<br />

EI tercer capítulo de Concierto barroco (1974) narra las diverti<strong>da</strong>s an<strong>da</strong>nzas<br />

de un rico mexicano hijo de espafioles y de su criado, un negro<br />

cubano, por el Madrid de comienzos deI siglo XVIII, y el viaje que los lleva<br />

de esta ciu<strong>da</strong>d a Barcelona.<br />

La consagración de la primavera (1978), novela en la que Carpentier<br />

abor<strong>da</strong>, después de afias de intentos frustrados, el tema de la Revolución<br />

cubana, se inicia en la Valencia de 1937 a la que él concurriera como delegado<br />

aI 11 Congreso internacional de escritores antifascistas en.defensa de la cultura,<br />

y que ahora transitan sus personajes envueltos en los fragores de la<br />

Guerra civil espanola.<br />

En El arpa y la sombra (1979), su última novela, la segun<strong>da</strong> de sus tres<br />

partes, que en extensión equivale a las dos restantes, se ocupa de la larga<br />

preparación de Cristóbal Colón, moribundo, para enfrentar a su confesor y,<br />

en última instancia, a su Hacedor. El escenario es Valladolid en los primeros<br />

anos deI sigla XVI, pero el mundo referido por el memorioso recuento deI<br />

Almirante recorre sus itinerarios espanoles durante el último tercio deI sigla<br />

precedente.<br />

AI morir, el24 de abril de 1980, Alejo Carpentier dejó casi termina<strong>da</strong> una<br />

novela, Verídica historia cuyo protagonista también es un personaje histórico,<br />

Pablo Lafargue, el mulato de Santiago de Cuba, fun<strong>da</strong>dor de la Internacional<br />

y yerno de Carlos Marx. Uno de sus capítulos, publicado por la <strong>revista</strong><br />

Casa de las Américas en su entrega 177, de noviembre-diciembre de 1989, se<br />

desarrolla a comienzos de la déca<strong>da</strong> de los 70 del sigla pasado y en un Madrid<br />

aI que llegan el protagonista y su esposa tras un largo viaje en ferrocarril<br />

desde la frontera de Francia.<br />

Pero este interés de Carpentier por Espana no sólo se pondrá de relieve<br />

en sus tiempos y escenarios espanoles, en los cronotopos estrictamente ibéricos<br />

que ocupan tan gran dimensión en su mundo narrado, sino también en<br />

otros momentos y espacios de su obra, por las citas, alusiones, parodias y, en


202 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

fin, el gran cau<strong>da</strong>l de intertextuali<strong>da</strong>d de procedencia hispana que en ella se<br />

aprecia de modo tan evidente que ha sido motivo de estudios de distintos<br />

especialistas, como Frederick A. de Armas, que ha abor<strong>da</strong>do la huella de Lope<br />

y de Los trabajos de Persiles y Segismun<strong>da</strong> en ella; de Sharon Magnarelli y<br />

Rita Gnutzmann, que han in<strong>da</strong>gado en torno a sus relaciones con la picaresca;<br />

de Daniel Pageaux, que ha trabajado sobre lo que llamó su Espana novelesca;<br />

de Ignacio Díaz, que se ha referido a distintos registros de su hispani<strong>da</strong>d en<br />

Los pasos perdidos; de Manuel Aznar Soler, que ha investigado acerca de la<br />

experiencia personal deI autor en tiempos de la Guerra Civil Espanola y su<br />

transformación literaria; de Julio Rodriguez Puértolas. que ha coleccionado<br />

y estudiado sus crónicas espanolas; de Roberto González Echevarría que<br />

nombró su gran libro sobre nuestro novelista con un título de Lope de Vega:<br />

El peregrino en su patria; y de Rita de Maeseneer, que en un importante Iibro<br />

aún inédito, dedicado a las citas en Carpentier, ha cuantificado y analizado el<br />

sentido de esta fructífera relación intertextual.4<br />

Mas entre todos los autores de la lengua espanola el más presente en los<br />

textos deI cubano es Cervantes, con quien tiene, a lo largo de to<strong>da</strong> su vi<strong>da</strong> y<br />

en to<strong>da</strong> su obra, una profun<strong>da</strong> vinculación que se proyecta y amplifica en el<br />

tiempo, esa otra dimensión que obsesivamente recorren los personajes de<br />

Carpentier, devanándola en todos los sentidos, intentando reconstruir, recuperar<br />

la imposible isocronia de un Continente en que coexisten to<strong>da</strong>s las<br />

e<strong>da</strong>des dei hombre. Por eso Alejo Carpentier, tan amigo de viajar a los<br />

orígenes, de bucear en el pasado, como de encontrar lo circular, lo cíclico, la<br />

eterna espiral en el transcurso humano, decía en 1978, aI final dei discurso<br />

con que agradeciera el premio más alto de la lengua, el "Miguel de Cervantes",<br />

que había sido el primer hispanoamericano en alcanzar, estas palabras<br />

que develan la profecía ai mismo tiempo solemne y lúdrica de un destino<br />

marcado con piedra blanca, de un destino cumplido para nuestra común<br />

riqueza: "De nino yo jugaba aI pie de una estatua de Cervantes que hay en La<br />

Habana [ ... ] De viejo hallo nuevas ensenanzas, ca<strong>da</strong> día, en su obra inagotable<br />

... "; y esta devoción por el mayor escritor dei idioma - que como veremos,<br />

para él tenía timbres de gloria mucho más universales - se manifestó, a 10<br />

largo de los anos, en todos los registros de su vasta obra: composición musical<br />

y musicología, periodismo, crítica, ensayística, narrativa, promoción cultural,<br />

en los que asumió, por lo demás, los matices y las funciones que su<br />

impresionante cultura, su fértil imaginación, su afán de servir y el don<br />

supremo deI talento lo Ilevaban a privilegiar en ca<strong>da</strong> ocasión.<br />

Casi to<strong>da</strong> la obra de Cervantes, las figuras más polémicas de la exégesis<br />

cervantina, la variadísima gama de manifestaciones artísticas inspira<strong>da</strong>s por<br />

el Quijote - ballets, dfamas, óperas, filmes, poemas sinfónicos - merecen su<br />

atención. eon ellas coincide, polemiza, crea; se las apropia o las repudia, de<br />

modo tal que no seria hiperbólico considerar que un estudio de la presencia<br />

4. ARMAS, Frederick de. Lope<br />

de Vega y Carpentier. Aclas<br />

dei Simposio Internacional<br />

de ESludios Hispánicos.<br />

Bu<strong>da</strong>pest: Ed. de la Academia<br />

deCiencias, 1978, p. 363-373.<br />

___ . Metamorphosis as<br />

revolt: Cervantes' Persiles y<br />

Sigismun<strong>da</strong> and Carpentier's<br />

EI reino de esle mundo. Hispa­<br />

nic Review, 49, (3): 297-3 16,<br />

1981; MAGNARELLI, Sharon.<br />

"EI Camino de Santiago" de<br />

Alejo Carpentier y la Picaresca.<br />

Revista lheroamericana,<br />

40, (86): 65-86. enero-marzo<br />

1976; GNUTZMANN, Rita. Lo<br />

picaresco y el punto de vistaen<br />

El recurso del mélodo de Alejo<br />

Carpentier. In CRIADO DE VAL,<br />

org. La picaresca. Oríf.(enes,<br />

textos y estructuras. Madrid:<br />

Fun<strong>da</strong>ción Univ. Espanola,<br />

1979, p. 1151-58; PAGEAUX,<br />

Daniel. La Espana novelesca<br />

de Alejo Carpentier. In Mélan­<br />

ges ojJens a Maurice Molho.<br />

Paris: Ed. Hispaniques,<br />

1988, 11, p. 353-64; DIAZ,<br />

Ignacio. Alejo Carpentier y<br />

la conciencia hispánica. In<br />

Cahrera Infante y otros escri­<br />

tores latinoamericanos. México:<br />

UNAM, 1991, p. 99-107;<br />

AZNAR SOLER, Manuel. "Alejo<br />

Carpentier y la Guerra Civil<br />

Espaiíola: hacia La ('onsilKra­<br />

ciôn de la primavera. Escritura,<br />

[Caracas] 9, (17-18): 67-<br />

90, 1984; RODRIGUEZ PUERTO­<br />

LAS, Julio, org. Rajo e/ .úRno<br />

de la Ciheles. CrlÍnicas sohre<br />

Elpafia v los espalioles. 1925-<br />

1937 [de Alejo Carpentier].<br />

Madrid: Nuestra Cultura,<br />

1979; GONZALEZ ECHEVARRIA,<br />

Roberto. Alejo Carpentier:<br />

El pereKrino en su patria.<br />

México: UNAM, 1993;<br />

MAR,ENEER, Rita. Cervantes y<br />

Carpentier: una relectura múltiple.<br />

(Capítulo VII de un libra<br />

inédito sobre intertextuali<strong>da</strong>d<br />

en la obra de Alejo Carpentier,<br />

ed. <strong>da</strong>ctilografia<strong>da</strong>, 1994,<br />

pp.88-98).


5. RAMON CHAO. Alejo Carpentier:<br />

una literatura inmensa In<br />

CARPENrIER. Alejo. Ent<strong>revista</strong>s.<br />

La Habana: Letras Cubanas.<br />

1985, p. 220-27.<br />

6. CARPElmER. Alejo. Numancia.<br />

Carteles. La Habana: 22<br />

ago. 1937. p. 22-25.<br />

7. CARPENTIER, Alejo. La música<br />

en Cuha. La Habana: Letras<br />

Cubanas. 1988. p. 5 I.<br />

El Sindrome de Merimée o la espafio!i<strong>da</strong>d !iteraria de Alejo Carpentier 203<br />

de Cervantes en Carpentier, aI margen de su propio valor tendría el de<br />

trazarnos un retrato bastante completo deI novelista cubano. Pensando en esto<br />

último, seguiremos un orden cronológico en la presentación y comentario -<br />

que sólo de esto se trata - de nuestro tema, en el que forzosamente habrá que<br />

espigar los aspectos o los hechos de mayor interés, remitiendo, para los que<br />

sólo hemos podido rozar. a la bibliografía carpenteriana recopila<strong>da</strong> por Araceli<br />

García Carranza y a sus preciosos índices.<br />

No deja de ser significativo que la primera vez que Carpentier trabaja con<br />

Cervantes, lo hace como músico y. ai parecer. con mucho éxito. Es en París,<br />

en 1937, es decir. en medio de la Guerra Civil Espanola, cuando el entonces<br />

joven actor y director Jean Louis Barrault monta en el "Théatre Antoine" la<br />

Numancia. Es en esa ocasión cu ando Alejo Carpentier compone, a lo que<br />

sabemos. su única partitura, "escrita [ha dicho él en los setenta] premonitoriamellte.<br />

para gran aparato de percusión y voces humanas [ ... ] como hacen<br />

hoy muchas gentes de las nuevas generaciones".5 En agosto de 1937, pocas<br />

semanas después dei estreno, decía Carpentier en una de las crónicas que<br />

escribía desde Paris para la <strong>revista</strong> habanera Carteles:<br />

Me atrevo a afirmar que con Numancia hemos planteado la cuestión de la música de<br />

acompaí'íamiento dramático sobre bases nuevas, con un resultado cuya nove<strong>da</strong>d ha sido<br />

seiiala<strong>da</strong> por to<strong>da</strong> la cótica parisiense ... fi<br />

Traído de regreso a Cuba por el inicio de la Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial,<br />

hace en 1940 una a<strong>da</strong>ptación para la radio dei Quijote, y más adelante será<br />

también la música la que lo acerque a su autor, a través de las investigaciones<br />

que emprende para la preparación de La música en Cuba (1946), el importantísimo<br />

libro que le encargara el Fondo de Cultura Económica de México en<br />

1944. Estas búsque<strong>da</strong>s lo conducen ai estudio de los cantos y las <strong>da</strong>nzas<br />

nacidos en La Habana y otros puertos dei Caribe en los siglos XVI Y XVII,<br />

de la mezcla de sones europeos y africanos. Como lo atestiguan muchas de<br />

sus páginas, encuentra su rastro en los escritores espanoles de la época: en los<br />

entremeses, en Lope de Vega, en muchos otros poetas de los Siglos de Oro,<br />

donde descubre los batuques, los zarambeques, las chaconas que "De las<br />

Indias a Sevilla/[han] venido por la posta",?<br />

El celoso extremefío, la ejemplar noveleta cervantina, que no dejará de<br />

citar, a lo largo de to<strong>da</strong> su vi<strong>da</strong>, como fuente de su conocimiento sobre<br />

aspectos tan importantes de la historia de nuestra música como lo son su<br />

diseminación y su recepción en Espana, le proporcionará, además, el modelo<br />

de los dos personajes protagónicos de "EI camino de Santiago" (1958) y<br />

algunos de sus motivos, los cuales se van a repetir, con insistencia que he<br />

subrayado en otra ocasión, en Concierto barroco (1974) y La consagración<br />

de la primavera (1978). Tanto en el relato como en las dos novelas hay un


204 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

negro músico y un blanco, que en los dos primeros textos es, además, un<br />

indiano: el Indiano con mayúscula y todo. Como Luis, el negro músico de EI<br />

celoso extremefío, Golomón, acompanante deI primer Indiano, el de "El<br />

c'amino de Santiago", y Filomeno, acompanante deI segundo Indiano, el de<br />

Concierto barroco - y acaso descendiente deI primer Golomón, puesto que<br />

éste es su apellido -, son también músicos, como lo será Gaspar Blanco, el<br />

mulato trompetista de La consagración de la primavera. Ellos y los senores<br />

blancos a los cuales acompanan viajan de América a Europa y de Europa a<br />

América trazando el mapa de las relaciones temporales y espaciales entre el<br />

Viejo y el Nuevo Mundo, ese tema fun<strong>da</strong>mental en Carpentier; y descubriendo<br />

ai mismo tiempo, con la perspectiva que ofrece la lejanía, que su identi<strong>da</strong>d<br />

ya no es la dellinaje europeo cultivado por sus progenitores, o la deI gueto<br />

racial fabricado por sus amos, sino que poseen una nueva identi<strong>da</strong>d, tanto<br />

nacional (los blancos), como universal (los negros).<br />

Durante los muchos anos en que mantuvo una sección fija, "Letra y<br />

Solfa", en EI Nacional de Caracas, ciu<strong>da</strong>d en la que reside desde 1945 hasta<br />

1959, Carpentier se ocupa en numerosas ocasiones de Cervantes. Cronista de<br />

cuanto libro se publica sobre su obra, censor de los abominables filmes con<br />

que se traiciona la esencia deI Quijote, estudioso de las relaciones de las<br />

Novelas ejemplares con el surgimiento de los relatos largos, juez de la música<br />

que inspiran las hazanas deI pobre hi<strong>da</strong>lgo, Carpentier es sobre todo el cantor<br />

de las glorias dei Quijote, aI que tanto en estas páginas como en las incontables<br />

ent<strong>revista</strong>s en las que dedica amplias y profun<strong>da</strong>s reflexiones a Cervantes,<br />

le otorga el sitio cimero entre to<strong>da</strong>s las creaciones \iterarias. En una de<br />

esas crónicas compara la recepción que tiene el Quijote en todo el mundo con<br />

la que merecen las obras de Shakespeare, Dante, Milton y Goethe, y tras<br />

analizar, con detenimiento digno de páginas menos efímeras, "las razones<br />

que lo hacen universalmente inteligible", concluye asegurando: "Este es un<br />

privilegio que ni siquiera Homero podría arrebatarle".8<br />

Es por eso que, de regreso definitivo a Cuba en 1959, lo recomien<strong>da</strong><br />

como el primer libro que debe publicar la recién inaugura<strong>da</strong> Imprenta Nacional,<br />

y que cuando salen a la calle los cien mil ejemplares de aquella memorable<br />

edición, idea un medio que sólo a él podía ocurrírsele para promover su<br />

adquisisción y lectura: la puesta en escena, primero en la Sala Covarrubias<br />

dei también flamante Teatro Nacional, y después en todos los escenarios dei<br />

país, dei Retablo de Maese Pedro, la ópera de cámara de su amigo Manuel de<br />

FalIa, dirigi<strong>da</strong> por el cubano Vicente Revuelta, con un programa cuyo texto<br />

re<strong>da</strong>cta y que hasta en las ilustraciones de cubierta y reverso de cubierta, con<br />

fotografías de Falia toma<strong>da</strong>s en Venezuela, evidenciaba que había sido fraguado<br />

por Carpentier. La entra<strong>da</strong> para el espectáculo consistia, por supuesto,<br />

en la compra deI Quijote.<br />

8. CARPENTIER. Alejo. El libro<br />

sin fronteras. El Nacional,<br />

[Caracas], 19 sept. 1956; a<br />

la cabeza deI título: "Letra y<br />

solta".


206 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

En el prólogo famosísimo de El reino de este mundo. novela con la que<br />

Carpentier reinicia en 1949 su tránsito por el género que había abandonado<br />

hacía cerca de veinte anos, Cervantes encabeza, con un epígrafe tomado de<br />

Los trabajos de Persiles y Segismun<strong>da</strong>, lo que será uno de los documentos<br />

más importantes de la nueva narrativa latino americana, la exposición de la<br />

teoría carpenteriana de lo real maravilloso americano.<br />

En Los pasos perdidos (1953), la gran novela de la selva en que se<br />

adentra el protagonista narrador, un latinoamericano que desde hace muchos<br />

anos vive en una capital deI Primer Mundo, donde casi ha olvi<strong>da</strong>do su lengua<br />

materna y ha ido perdiendo sus contornos, el comienzo deI Quijote. rememorado<br />

a duras penas en el trayecto que lo conduce a su destino. comienza a<br />

devolverle sus esencias.<br />

Con El recurso dei método (1974) se abre un nuevo cicIo en la novelística<br />

de Carpentier, y hoy podemos decir que en to<strong>da</strong> la novelística hispanoamericana<br />

- pienso en la narrativa deI I1amado postboom - en el cual el humor<br />

alcanza una singular dimensión y la textura literaria, siempre densa, ostenta<br />

un dialogismo más evidente, en muchos casos polémico o irónicamente<br />

paródico. Por las características que acabamos de apuntar, en casi to<strong>da</strong>s las<br />

novelas de este período tendrán el Quijote, sanefa sanctorum de la parodia, y<br />

en sentido general, Cervantes, un lugar más importante que el que de modo<br />

explícito o implícito ocupaban en el resto de la producción narrativa de<br />

Carpentier.<br />

En El recurso ... buena parte deI tono, deI "espíritu de la época", deI<br />

escenario, de los personajes y hasta de los procedimientos son tomados de<br />

Proust - como la crítica no ha cesado de subrayarlo desde los dias de<br />

aparición de la novela -; aI tiempo que, invocados por el autor como musa<br />

propicia, los manes de la picaresca ron<strong>da</strong>n to<strong>da</strong>s las peripecias de la trama.<br />

Pero el Quijote, a su vez, desempena un papel na<strong>da</strong> desdenable, que he<br />

estudiado en un trabajo más amplio que, como prefiero repetirme que citarme,<br />

ahora voy a glosar.<br />

Comparado el capítulo inicial de El recurso ... con los seis primeros deI<br />

Quijote, es posible encontrar cierto paralelismo, ciertos armónicos que constituyen<br />

mucho más que meras coincidencias. En sentido general, en ambos<br />

textos se presenta la caracterización de un personaje que, de inmediato, se<br />

lanzará a la acción en medio de inacaIlable vocerio. "Aquí, aquí, valerosos<br />

cabalIeros", grita don Quijote aI comienzo de ese séptimo capítulo que lo<br />

lIevará a cargar contra molinos de viento; "jCono de madre! jHijo de puta!",<br />

aúlIa el Primer Magistrado, cuando descubre que deberá dejar París para<br />

sofocar un nuevo levantamiento.<br />

AI igual que la presencia y funciones de dona Tolosa y dona Molinera en<br />

la modestísima venta podrían corresponderse con las de las fantasiosas pupilas<br />

de Ma<strong>da</strong>me Yvonne en el burdel de lujo; y la graciosa manera que tuvo


El Sindrome de Merimée o la espanoli<strong>da</strong>d literaria de Alejo Carpentier 207<br />

don Quijote en armarse caballero podría encontrar remedo en la matinal<br />

llega<strong>da</strong> deI barbero y el sastre a la mansión de la Rue de Tilsitt; no cabe du<strong>da</strong><br />

de que la paternalista inspección que hace el Ilustre Académico a la biblioteca<br />

deI Primer Magistrado es una desternillante y funcional parodia deI donoso y<br />

grande escrutinio que el cura y el barbero hicieron en la Iibrería deI ingenioso<br />

hi<strong>da</strong>lgo.<br />

En ambos casos la revisión de las lecturas de los protagonistas afina en<br />

grado sumo su caracterización. Ya sabíamos que Alonso Quijano se había<br />

<strong>da</strong>do a leer libros de caballería con tanta afición y gusto que só 1 o se interesaba<br />

en ellos; ya conocÍamos. por los cuadros y esculturas que adornaban sus<br />

salones, que el dictador lo era de la especie "ilustra<strong>da</strong>", vale decir, afrancesa<strong>da</strong>.<br />

Pero ahora sabremos hasta qué punto son lo que se nos ha venido diciendo<br />

y, además, hasta qué punto marchan o no con las letras de su tiempo.<br />

Como es de sobras conocido, el escrutinio dei Quijote proyecta la visión<br />

de Cervantes sobre la literatura que le es contemporánea tanto más que sobre<br />

la precedente; es, junto con los capítulos XLVII y XLVIII de la primera parte,<br />

presentación de su crítica y de su poética, aunque estén en boca dei cura o dei<br />

canónigo. Mas las opiniones dei Académico y deI dictador no son, en absoluto,<br />

las opiniones de Carpentier, sino que representan, en todo el esplendor<br />

de su estulticia, los pareceres de dos voceros autorizadísimos de la "cultura<br />

oficial" de dos porciones dei mundo en las que los acontecimientos que están<br />

por ocurrir - Primera Guerra Mundial, Revolución Rusa -, y que son incapaces<br />

de prever, producirán grandes cambios. En estas páginas sería imposible<br />

glosar el contenido de ese inefable diálogo. Pero me gustaría afiadir dos cosas<br />

que no dije cuando lo estudié, y como tal vez nunca más retome el tema - con<br />

los afios una aprende que hay que irse despidiendo de proyectos - debo, por<br />

lo menos, enunciarias ahora. Y son, en primer lugar, el dialogismo evidente<br />

entre las páginas de El recurso ... , el escrutinio dei Quijote y el escrutinio de<br />

esa memorable, inconclusa, enigmática, paródica novela, muy visita<strong>da</strong> y<br />

revisita<strong>da</strong> por Carpentier, que es Bouvard)' Pécuchet, en la cualla huella de<br />

Cervantes es tan ostensible; y, en segundo lugar, la existencia - descubierta<br />

por Maeseneer - de una primera versión de este escrutinio carpenteriano,<br />

llena, por lo demás, de una notable carga de ese erotismo que nuestro autor<br />

comienza a desplegar en los textos de los últimos afios de su vi<strong>da</strong>, en su relato<br />

"EI derecho de asilo" (1972), en el que José Emilio Pacheco encontrara<br />

también el adelanto de lo que será el estilo y la perspectiva irónica dei<br />

novelista cubano a partir de El recurso dei método (1975).<br />

EI Embajador que precedió ai titular de la misión donde se aloja el<br />

protagonista de "EI derecho de asilo" se había dedicado a demostrar una tesis<br />

delirante, según la cual todos los prodigios que aparecen en las novelas de<br />

caballería habían sido hallados en nuestras tierras por los conquistadores. Por<br />

eso la residencia estaba llena de libros de caballerías a los que la esposa dei


208 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

Embajador llamaba "plomos". AI igual que Cervantes en el escrutinio deI<br />

Quijote, el asilado salva a Tirante el Blanco, pero no por las mismas razones<br />

que lo hace el cura, es decir, por su realismo, porque en esta novela "comen<br />

los caballeros, y duermen y mueren en sus camas, y hacen testamento antes<br />

de su muerte", 11 sino por su humor y por la presencia en ella de un erotismo<br />

tan contagioso, tan singularmente psicagógico, que le consigue el amor de la<br />

Embajadora (Maeseneer, 96).<br />

Por otra parte, y en un registro totalmente distinto, resulta deI mayor<br />

interés el aprovechamiento que hace Carpentier deI Quijote en Concierto<br />

barroco, texto que presenta motivos y personajes de El celoso extremeiío -<br />

como ya vimos -, tiene las dimensiones de algunas de las Novelas ejemplares,<br />

y cuyos escenarios extremos, las lacustres ciu<strong>da</strong>des de México y Venecia, de<br />

tanta importancia, más que por su paralelismo, por su función especular, en<br />

la estructura profun<strong>da</strong> deI relato, ya habían sido contrasta<strong>da</strong>s de modo admirable<br />

por Cervantes en Ellicenciado Vidriera, y antes por Francisco Cervantes<br />

de Salazar y Bemal Díaz deI Castillo.<br />

Situados en el contexto de la hilarante pero no menos severa requisitoria<br />

que exhibe esta noveleta - a la que Carpentier llamaba su Summa theologica,<br />

porque en ella había concentrado todos sus barroquismos - contra todo el<br />

arsenal temático de las letras europeas, desde los c1ásicos hasta Voltaire - a<br />

cuyas disímiles apelaciones intertextuales en distintos textos narrativos de<br />

Carpentier me he referido en otros trabajos -, resulta evidente que sólo el<br />

Quijote se salva de la chacota universal y que su presencia aquí no só I o va a<br />

ser alusiva, irónica, humorística, sino que va a orientar la lectura de la novela<br />

en momentos esenciales, lo que se advierte desde los capítulos 11 y 111,<br />

cuando, por una parte, el mexicano censura en los mismos términos en que el<br />

caballero manchego reprendía ai joven ayu<strong>da</strong>nte de Maese Pedro, el modo<br />

que tenía Filomeno de contar la historia de su bisabuelo Salvador Golomón;<br />

y por otra parte, cu ando el narrador, tras informamos que en su viaje de<br />

Madrid aI Levante el seíí.or trató de entretener a su criado narrándole la lucha<br />

de un hi<strong>da</strong>lgo loco contra unos molinos - lo que para el negro es un absoluto<br />

contrasentido -, nos describe Barcelona siguiendo a Carpentier palabra a<br />

palabra. Estas ai parecer jocosas e inocentes citas sin comillas, sin referencia<br />

ai autor o ai texto de donde se han tomado, se ven súbitamente actualiza<strong>da</strong>s<br />

y justifica<strong>da</strong>s en los capítulos VII y VIII, como lo ha demostrado Maeseneer<br />

(91-95), cu ando el mexicano, tras asistir ai ensayo de la ópera Motezuma de<br />

Vivaldi y ver to<strong>da</strong>s las modificaciones, escamoteos y falsas interpretaciones<br />

a que se somete en ella la historia de su país, asume su condición no ya de<br />

criollo, sino de mexicano, y dice a su criado: "De haber sido el Quijote deI<br />

Retablo de Maese Pedro, habría arremetido a lanza y a<strong>da</strong>rga, contra las gentes<br />

mías de cota y morrión",12 es decir, contra los espaíí.oles, a cuyo linaje se<br />

había sentido muy orgulloso.de pertenecer hasta ese momento. En Cervantes,<br />

11. CERVANTES Y SAAVEDRA.<br />

Miguel. Ohras <strong>completa</strong>s.<br />

Madrid: Aguilar, 1946, p.<br />

1137.<br />

12 CARPENTIER, Alejo. Con­<br />

cierfo harroco. México: Siglo<br />

XXI, 1974, p. 76.


210 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

mayor si tomamos en cuenta que ya en otra de sus novelas, en El arpa y la<br />

sombra, nuestro autor había recor<strong>da</strong>do las primeras líneas deI discurso deI<br />

Quijote a los cabreros para identificar esc "más allá geográfico, ignorado<br />

aunque presentido por los hombres desde «Ia dichosa e<strong>da</strong>d y siglos dichosos<br />

a quien los antiguos pusieron el nombre de dorados»",14 con el vasto mundo<br />

descubierto por Cristóbal Colón, escenario propicio para el cumplimiento de<br />

to<strong>da</strong>s las utopías.<br />

14 CARPENTIER, Alejo. EI arp"<br />

.\' la sombra. La Habana: Letras<br />

Cubanas, 1985. p. 49.


212 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

Luiz Costa Lima, Professor Titular de Literatura Compara<strong>da</strong> <strong>da</strong> Univ. do<br />

Estado do Rio de Janeiro. Autor de diversos livros de Teoria e Crítica Literárias,<br />

dentre os quais Por que Literatura, Lira e antilira, Estruturalismo e<br />

Teoria <strong>da</strong> Literatura, A metamorfose do silêncio, A perversão do trapezista,<br />

Mímesis e moderni<strong>da</strong>de, Dispersa deman<strong>da</strong>, O controle do imaginário, Socie<strong>da</strong>de<br />

e discurso ficcional, O fingidor e o censor, A aguarrás do tempo,<br />

Pensando nos trópicos, Limites <strong>da</strong> voz e Vi<strong>da</strong> e mímesis.<br />

Jeffrey T. Schnapp, Professor de Francês, Italiano e Literatura Compara<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Stanford, EUA. Autor de diversos livros, dentre os quais<br />

The Transfiguration of History at the Center of Dante 's Paradise e Staging<br />

Fascism: 18 BL and the Theater of Masses for Masses.<br />

João Cezar de Castro Rocha, Doutorando na Universi<strong>da</strong>de de Stanford<br />

(EUA). Organizador do volume Interseções; Imaginação, Materiali<strong>da</strong>de, Redes<br />

de Comunicação, no prelo.<br />

Tania Franco Carvalhal, Professora Titular de Teoria e Crítica Literárias <strong>da</strong><br />

Univ. Federal do Rio Grande do Sul. Autora de diversos livros, dentre os<br />

quais A evidência mascara<strong>da</strong>, Literatura Compara<strong>da</strong>, Um crítico à sombra<br />

<strong>da</strong> estante e Literatura Compara<strong>da</strong>: textos fun<strong>da</strong>dores(col. Eduardo F. Coutinho).<br />

Foi primeira Presidente <strong>da</strong> ABRALIC (gestão 1986-88). membro do<br />

Comitê Executivo <strong>da</strong> Associação Internacional de Literatura Compara<strong>da</strong><br />

(AILC) e Presidente <strong>da</strong> Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e<br />

Lingüística (ANPOLL).<br />

Eduardo F. Coutinho. Professor Titular de Literatura Compara<strong>da</strong> <strong>da</strong> Univ.<br />

Federal do Rio de Janeiro. Autor de diversos livros, dentre os quais The<br />

Process of Rel'italizatioll of lhe Language and Narrative Structure in the<br />

Fictioll of 1. Cortázar & G. Rosa, The "Synthesis Novel in Latin America, Em<br />

busca <strong>da</strong> terceira margem: ensaios sobre o Grande sertão: vere<strong>da</strong>s e Literatura<br />

Compara<strong>da</strong>: textos fun<strong>da</strong>dores (cal. Tania Franco Carvalhal). Foi Vice­<br />

Presidente <strong>da</strong> ANPOLL, e atual membro do Comitê Executivo <strong>da</strong> Associação<br />

Internacional de Literatura Compara<strong>da</strong> (AILC) e Presidente <strong>da</strong> ABRALIC.<br />

Irlemar Chiampi, Professora Titular de Literatura Hispano-Americana <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de de São Paulo. Suas publicações incluem os livros O realismo<br />

maravilhoso, A expressão americana - José Lezama Lima e Barroco e Moderni<strong>da</strong>de<br />

(no prelo), além de diversos ensaios.<br />

Benjamin Ab<strong>da</strong>la, Professor Titular <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo. Autor de<br />

diversos livros, dentre os quais Literatura, História e Política, A escrita<br />

neo-realista, História social <strong>da</strong> Literatura Portuguesa e Tempo <strong>da</strong> Literatura<br />

Brasileira. Foi Presidente <strong>da</strong> ABRALIC (gestão 1992-94).


Colaboradores deste número 213<br />

María Elena de Valdés, Professora de Literatura Hispano-Americana <strong>da</strong><br />

Univ. de Toronto (Canadá). Suas recentes publicações incluem Approaches<br />

to Gabriel García Márque: 's One Hundred Years of Solitude, New Visions of<br />

Creation: Feminist l/lllo\'atiolls ill Literary Theory e Latin America as its<br />

Literature.<br />

Regina Zilberman, Professora de Teoria Literária <strong>da</strong> Pontifícia Univ. Católica<br />

do Rio Grande do Sul. Autora de diversos livros, dentre os quais Simões<br />

Lopes Neto, São Bernardo e os processos <strong>da</strong> comunicação, Do mito ao<br />

romance, Érico Veríssimo e a Literatura Infantil, A Literatura no Rio Grande<br />

do Sul, Estética <strong>da</strong> Recepção e História <strong>da</strong> Literatura, Literatura Infantil<br />

Brasileira: História & histórias e A literatura infantil na escola.<br />

Renato Cordeiro Gomes, Professor de Brasileira <strong>da</strong> Univ. do Estado do Rio<br />

de Janeiro e do Depto. de Comunicação <strong>da</strong> Pontifícia Univ. Católica do Rio<br />

de Janeiro. Autor de diversos ensaios e do livro To<strong>da</strong>s as ci<strong>da</strong>des, a ci<strong>da</strong>de.<br />

Heidrun Krieger Olinto, Professora de Teoria Literária <strong>da</strong> Pontifícia Univ.<br />

Católica do Rio de Janeiro. Suas publicações incluem A palavra culpa<strong>da</strong>,<br />

Histórias de literatura, A ciência <strong>da</strong> literatura empírica e Leitura e leitores.<br />

Letícia Malard, Professora Titular <strong>da</strong> Univ. Federal de Minas Gerais. Autora<br />

de diversos livros, dentre os quais Ensaio de Literatura Brasileira: Ideologia<br />

e reali<strong>da</strong>de em Graciliano Ramos, Escritos de Literatura Brasileira e Hoje<br />

tem espetáculo: Avelino Fósco[o e seu romance.<br />

Célia Maria Magalhães, Professora de Língua e Literatura Inglesa <strong>da</strong> Univ.<br />

Federal de Ouro Preto. Suas publicações incluem o livro Filosofia, Ideologia<br />

e Ciência Social e diversos ensaios.<br />

Fred Clark, Professor Titular e Sub-Reitor <strong>da</strong> University of North Carolina,<br />

Chapel Hill, EUA. Suas publicações incluem diversos ensaios e os livros<br />

Impermanent Structures: Semiotic Readings of Nelson Rodrigues' Vestido de<br />

noiva, Album de família e Anjo negro e Spectator Character Text: Semiotics<br />

Readings of Nelson Rodrigues 'Theater.<br />

Silvano Peloso, Professor Titular de Língua e Literatura Portuguesa na Universi<strong>da</strong>de<br />

de Roma "La Sapienza". Suas publicações incluem os livros Medioevo<br />

nel Sertão, Amazzonia, mito e letteratura deI mondo perduto, La voce<br />

e il tempo, O canto e a memória. História e utopia no imaginário popular<br />

brasileiro e Pagine esoteriche.<br />

Sonia Torres, Professora de Literatura Norte-Americana <strong>da</strong> Univ. Federal<br />

Fluminense. Tem diversos ensaios publicados e foi tradutora do romance de<br />

Steven Lukes, The Curious Enlightenment.


214 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n° 3<br />

Luís Alberto Brandão Santos, Professor de Teoria <strong>da</strong> Literatura <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal de Minas Gerais. Tem diversos artigos publicados em <strong>revista</strong>s<br />

e periódicos especializados.<br />

Suzi Sperber, Professora de Teoria Literária e Literatura Brasileira <strong>da</strong><br />

UNICAMP. Suas publicações incluem diversos ensaios e os livros Signo e<br />

sentimento e Caos e Cosmos.<br />

Luisa Campuzano, Ensaista e Professora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de La Habana<br />

(Cuba). Autora de diversas publicações, dentre as quais os livros Breve<br />

esbozo de poética preplatónica, Las ideas [iterarias en el Satyricom (Premio<br />

de la Crítica, 1984) e Quirón o dei ensayo y otros eventos. Membro <strong>da</strong><br />

Diretoria <strong>da</strong> Casa de Las Américas, onde dirigiu o Centro de Investigaciones<br />

Literarias e atualmente coordena o Programa de Estudios de la Mujer.


Aos colaboradores<br />

1. A Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong> aceita trabalhos inéditos sob a<br />

forma de artigos e comentários de livros, de interesse voltado para os estudos de<br />

Literatura Compara<strong>da</strong>.<br />

2. Todos os trabalhos encaminhados para publicação serão submetidos à aprovação<br />

dos membros do Conselho Editorial. Eventuais sugestões de modificação de<br />

estrutura ou conteúdo, por parte do Conselho Editorial, serão comunica<strong>da</strong>s<br />

previamente aos autores.<br />

3. Os artigos devem ser apresentados em três vias, texto <strong>da</strong>tilografado em espaço<br />

duplo, com margem, além de <strong>da</strong>dos sobre o autor (cargo, áreas de pesquisa.<br />

últimas publicações, etc.).<br />

4. O original não deve exceder 30 páginas <strong>da</strong>tilografa<strong>da</strong>s; os comentários de livro,.<br />

em torno de 8 páginas.<br />

5. As notas de pé de página e referências bibliográficas devem ser restritas ao<br />

mínimo indispensável.<br />

6. As notas de pé de página devem ser apresenta<strong>da</strong>s observando-se a seguinte<br />

norma:<br />

Para livros:<br />

a) autor; b) título <strong>da</strong> obra (sublinhado); c) número <strong>da</strong> edição, se não for a<br />

primeira; d) local de publicação; e) nome <strong>da</strong> editora; f) <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> publicação; g)<br />

número <strong>da</strong> página.<br />

BOSI, Ecléa. Memória e socie<strong>da</strong>de: lembranças de velhos. São Paulo: T.A.Queiroz,<br />

1979, p. 31.<br />

Para artigos:<br />

a) autor; b) título do artigo; c) título do periódico (sublinhado); d) local de<br />

publicação; e) número do volume; t) número do fascículo; g) página inicial e<br />

final; h) mês e ano.<br />

ROUANET, Sergio Paulo. Do pós-moderno ao neo-moderno. Revista Tempo<br />

Brasileiro, Rio de Janeiro, n° I, p. 86-97, jan./mar., 1986.<br />

7. As ilustrações (gráficos, gravuras, fotografias, esquemas) são designados como<br />

FIGURAS, numerados no texto, de forma abrevia<strong>da</strong>, entre parênteses ou não,<br />

conforme a re<strong>da</strong>ção.<br />

Exemplo: FIG. 1, (FIG. 2)<br />

As ilustrações devem trazer um título ou legen<strong>da</strong>, abaixo <strong>da</strong> mesma, <strong>da</strong>tilografado<br />

na mesma largura desta.<br />

8. Os autores terão direito a 3 exemplares <strong>da</strong> <strong>revista</strong>. Os originais não aprovados<br />

não serão devolvidos.


E sta <strong>revista</strong> foi produ­<br />

zi<strong>da</strong> por In-Fólio, Produ­<br />

ção Editorial, Gráfica<br />

e Programação Visual<br />

LI<strong>da</strong>, na Rua <strong>da</strong>s Marre­<br />

cas, 36 - grupos 401 e<br />

407, Rio de Janeiro, no<br />

terceiro trimestre de<br />

mil novecentos e no­<br />

venta e seis, para a<br />

Associação Brasileira de<br />

Literatura Compara<strong>da</strong>.

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