Revista RI 10 - 2009-2.pmd - Unicuritiba
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Walace Ferreira 1<br />
RELAÇÕES<br />
INTERNACIONAIS<br />
NO MUNDO ATUAL<br />
ENTIDADE MANTENEDORA:<br />
ADMINISTRADORA EDUCACIONAL NOVO ATENEU<br />
ISSN 1518-9368<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual Curitiba a. 9 n. <strong>10</strong> p. 1-197 <strong>2009</strong>-2<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
2<br />
EXPEDIENTE<br />
RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO MUNDO ATUAL é uma publicação do<br />
UNICU<strong>RI</strong>TIBA<br />
Endereço: Rua Chile, 1.678 – CEP 80220-181 – Curitiba, PR – Brasil<br />
Telefone: (41) 3213-8700<br />
Site: www.unicuritiba.edu.br<br />
E-mail: npea@unicuritiba.edu.br<br />
UNICU<strong>RI</strong>TIBA<br />
Reitor: Eric David Cohen<br />
Pró-Reitor Administrativo: Jamil Abdanur Júnior<br />
Comissão Editorial: Cristina Luiza C. Surek, Fábio Tokars, Marlus Vinicius Forigo,<br />
Nilson Cesar Fraga, Olga Maria Coutinho Pépece, Benedito Costa Neto Filho.<br />
Revisão: Antonio Carlos Amaral Lincoln<br />
Diagramação: Tatiane Andrade<br />
Impressão: Administradora Educacional Novo Ateneu (AENA)<br />
Tiragem: 300 exemplares<br />
Data: <strong>2009</strong><br />
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />
Biblioteca do Centro Universitário Curitiba<br />
Relações internacionais no mundo atual / UNICU<strong>RI</strong>TIBA – Centro Universitário<br />
Curitiba. – A. 1, n. 1, (2000) . – Curitiba: UNICU<strong>RI</strong>TIBA, 2000 – .<br />
24 cm.<br />
Anual.<br />
A partir do a. 4, n. 4, 2004, a revista sofreu reformulações quanto à padronização.<br />
Continuação de: <strong>RI</strong>MA: relações internacionais no mundo atual.<br />
ISSN 1518-9368<br />
1. Relações internacionais – Periódicos. 2. Ciência política – Periódicos.<br />
3. Relações econômicas internacionais. I. UNICU<strong>RI</strong>TIBA<br />
CDD (21. ed.) – 327.05
COMISSÃO EDITO<strong>RI</strong>AL<br />
Cristina Luiza C. Surek<br />
Fábio Tokars<br />
Marlus Vinicius Forigo<br />
Nilson Cesar Fraga<br />
Olga Maria Coutinho Pépece<br />
Benedito Costa Neto Filho<br />
CONSELHO CIENTÍFICO<br />
Angela Moreira<br />
Carlos Magno Esteves Vasconcellos<br />
Cíntia Rubim de Souza Netto<br />
Claudio José Luchesa<br />
Gilvan Damiani Brogini<br />
Juliano Da Silva Cortinhas<br />
Nilson Cesar Fraga<br />
Rafael Pons Reis<br />
Renato Augusto Carneiro<br />
Wilson Maske<br />
CONSELHO EDITO<strong>RI</strong>AL<br />
Antônio Carlos Lessa (UNB) – Brasília, DF<br />
Henrique Altemani de Oliveira (PUC) – São Paulo, SP<br />
Israel Roberto Barnabé (UFRGS) – Porto Alegre, RS<br />
José Luis da Costa Fiori (UFRJ) – Rio de Janeiro<br />
Luiz Otávio Pimentel (UFSC) – Florianópolis, SC<br />
Marcos Wachowicz (UFSC) – Florianópolis, SC<br />
Paulo Roberto de Almeida (Instituto Rio Branco-MRE e Uniceub) – Brasília, DF<br />
Raquel Bezerra Cavalcanti Leal de Melo (UEPB) – João Pessoa<br />
Ricardo Antônio Silva Seitenfus (UFSM e FADISMA) – Santa Maria, RS<br />
Shiguenoli Miyamoto (UNICAMP) – Campinas, SP<br />
EDITOR<br />
Marlus Vinicius Forigo<br />
3
APRESENTAÇÃO<br />
O periódico Relações Internacionais no Mundo Atual, nº <strong>10</strong>, refe-<br />
rente ao segundo semestre de <strong>2009</strong>, publicação do Centro Universitário<br />
Curitiba (UNICU<strong>RI</strong>TIBA), tem a grata satisfação de tornar públicos alguns<br />
dos muitos trabalhos de pesquisa científica de interesse para a área das<br />
Relações Internacionais. Com a iniciativa não somente contribuímos para<br />
a divulgação do conhecimento, mas também estimulamos a realização<br />
de novas pesquisas, ao reconhecer o mérito dos pesquisadores por meio<br />
da publicação de seus estudos.<br />
Dezenas de artigos foram enviados a esta Editoria, e o trabalho de<br />
seleção não foi tarefa fácil, dada a qualidade dos textos. Infelizmente não<br />
podemos publicar todos, o que torna ainda maior o valor dos que foram<br />
escolhidos para compor esta edição.<br />
Este décimo número é composto de sete artigos e duas resenhas.<br />
Quatro dos artigos resultam de pesquisas realizadas por doutorandos,<br />
caso de Walace Ferreira, em Sociologia; Cláudio Júnior Damin, em Ciên-<br />
cia Política; Marcelo M. Valença, em Relações Internacionais, e André<br />
Luís Nascimento dos Santos, que, apesar de ser doutorando em Adminis-<br />
tração, produziu um artigo de interesse para os internacionalistas.<br />
Para os mestrandos Pascoal Teófilo Carvalho Gonçalves, Caroli-<br />
na Dantas Nogueira e Mariana Pimenta Oliveira Baccarini, em Relações<br />
Internacionais, tomando-se por referência a qualidade de seus artigos,<br />
não resta dúvida de que o Doutorado será apenas uma questão de tem-<br />
po. Comentários semelhantes podem ser extensivos aos autores das re-<br />
senhas: Renata Tavares Henrique, mestranda, e Rafael Rosa Cedro,<br />
mestre em Direito e Políticas Públicas.<br />
A leitura e estudo dos trabalhos aqui apresentados são a melhor<br />
forma de comprovar as afirmações feitas por esta Editoria.<br />
Marlus Vinicius Forigo<br />
EDITOR<br />
5
SUMÁ<strong>RI</strong>O<br />
DUAS REGIÕES E DUAS POLÍTICAS EXTERNAS:<br />
ESPECULAÇÕES SOBRE APROXIMAÇÕES E<br />
DISTANCIAMENTOS DAS POLÍTICAS<br />
EXTERNAS DE FHC E LULA EM RELAÇÃO<br />
À AMÉ<strong>RI</strong>CA DO SUL E ÁF<strong>RI</strong>CA<br />
Walace Ferreira ...................................................................................... 9<br />
A CRÍTICA NEOCONSERVADORA AO PROGRAMA<br />
DE PESQUISA REALISTA: RELAÇÕES ENTRE<br />
IDEOLOGIA, POLÍTICA E CIÊNCIA<br />
Cláudio Júnior Damin ............................................................................ 33<br />
O TRATAMENTO DE FATORES ECONÔMICOS<br />
PELAS TEO<strong>RI</strong>AS DE SEGURANÇA INTERNACIONAL:<br />
UMA DISCUSSÃO SOBRE POSSIBILIDADES<br />
Marcelo M. Valença ............................................................................... 63<br />
REGIMES INTERNACIONAIS E MEIO AMBIENTE<br />
Carolina Dantas Nogueira ..................................................................... 91<br />
SEGURANÇA COLETIVA E REGIMES DE SEGURANÇA<br />
Mariana Pimenta Oliveira Baccarini .................................................... <strong>10</strong>7<br />
POTÊNCIAS MÉDIAS NA ECONOMIA POLÍTICA<br />
INTERNACIONAL: PARÂMETROS ANALÍTICOS<br />
DA ESCOLHA RACIONAL<br />
Pascoal Teófilo Carvalho Gonçalves ................................................... 125<br />
7
8<br />
BANCO MUNDIAL E AGENDA DE REFORMA DO<br />
JUDICIÁ<strong>RI</strong>O LATINO-AME<strong>RI</strong>CANO: UMA BREVE<br />
ANÁLISE DO BINÔMIO RETÓ<strong>RI</strong>CA-AÇÃO<br />
André Luis Nascimento dos Santos .................................................... 147<br />
SEÇÃO DE RESENHAS<br />
CONSTRUTIVISMO<br />
Renata Tavares Henrique .................................................................... 173<br />
CHUTANDO A ESCADA<br />
Rafael Rosa Cedro .............................................................................. 181<br />
NORMAS EDITO<strong>RI</strong>AIS ...................................................................... 191
Walace Ferreira 9<br />
DUAS REGIÕES E DUAS<br />
POLÍTICAS EXTERNAS:<br />
ESPECULAÇÕES SOBRE<br />
APROXIMAÇÕES E<br />
DISTANCIAMENTOS DAS<br />
POLÍTICAS EXTERNAS DE FHC<br />
E LULA EM RELAÇÃO À<br />
AMÉ<strong>RI</strong>CA DO SUL E ÁF<strong>RI</strong>CA 1<br />
WALACE FERREIRA<br />
___________________________________________________________<br />
Doutorando em Sociologia<br />
(Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ),<br />
Professor Substituto na Faculdade de Ciências Sociais da UERJ.<br />
1 Este artigo é fruto do meu projeto de Doutorado, o qual diz respeito a uma abordagem<br />
das políticas externas de FHC e Lula em relação à América do Sul e a África.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
<strong>10</strong><br />
Duas Regiões e Duas Políticas Externas: Especulações sobre...<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
Walace Ferreira 11<br />
RESUMO<br />
As especulações levantadas neste artigo tratam da política externa brasileira<br />
dos governos Fernando Henrique Cardoso (1995 - 2002) e Luiz Inácio<br />
Lula da Silva (2003 – 20<strong>10</strong>). Ao fim da Guerra Fria e passados os difíceis<br />
primeiros anos da década de 90, ambos os governos marcam um novo<br />
rumo para a política externa brasileira, principalmente no que se refere à<br />
solidez de propostas. A despeito das aproximações e diferenças, tratadas<br />
aqui, ao executarem 16 anos de mandato, os dois são determinantes para<br />
a evolução do modelo brasileiro de inserção internacional na passagem<br />
do século XX para o XXI.<br />
Palavras-chave: Política externa, De FHC a Lula, inserção internacional,<br />
aproximações e diferenças.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
12<br />
Duas Regiões e Duas Políticas Externas: Especulações sobre...<br />
ABSTRACT<br />
The venture raised at this article represents Brazilian foreign policy<br />
administration of Fernando Henrique Cardoso (1995 - 2002) and Luiz Inácio<br />
Lula da Silva (2003 - 20<strong>10</strong>). At the end of the Cold War and after the<br />
difficult first years of the 90s, both governments mark a new direction to<br />
Brazilian foreign policy, especially as regards the soundness of proposals.<br />
Despite the similarities and differences, signed here, at about 16 years in<br />
office, both are crucial to the evolution of the Brazilian international insertion<br />
at the turn of the twentieth to the twenty-first century.<br />
Keywords: Foreign Policy; FHC to Lula; international integration;<br />
similarities and differences.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
Walace Ferreira 13<br />
1 INTRODUÇÃO<br />
As especulações levantadas neste artigo focalizam-se na política<br />
externa brasileira dos governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2002),<br />
em dois mandatos, e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-20<strong>10</strong>), também em<br />
dois mandatos – o último ainda em andamento. Dessa forma, procura-se<br />
dar conta de um período recente de nossa política externa, a qual se<br />
insere num momento de profundas transformações internacionais que se<br />
sucederam ao fim da guerra fria no final da década de 80 e início da<br />
década de 90.<br />
O triunfo do capitalismo sobre o socialismo soviético, em 1989, deu<br />
impulso a uma nova dimensão da globalização. Segundo Cervo e Bueno<br />
(2008), três fatores influíram sobre o reordenamento das Relações Internacionais,<br />
a saber: a ideologia neoliberal, a supremacia do mercado e a superioridade<br />
militar dos Estados Unidos, decorrente de terem sido os reais<br />
vencedores da era bipolar. Nesse rumo, a globalização engendrou uma<br />
nova realidade econômica, marcada pelo aumento dos fluxos financeiros,<br />
por uma readequação dos processos de produção e por um flexibilização<br />
regulatória dos Estados. Ao lado desses aspectos, avançou a tendência de<br />
formação de blocos econômicos, de maneira a garantir o fortalecimento<br />
das regiões diante da competitividade internacional.<br />
No pós-guerra fria, as relações em torno do poder modificaram-se<br />
consideravelmente, tornando-o mais flexível e cambiante, com geometrias<br />
variáveis que se fazem e desfazem a cada momento, de acordo com o<br />
tema da agenda. A superação do conflito bipolar removeu a rigidez das<br />
alianças e o congelamento em torno do poder mundial. Atualmente, as<br />
relações entre Estados Unidos e União Europeia, por exemplo, ora são<br />
de convergência e aproximação, ora são de conflito e afastamento. Os<br />
países em desenvolvimento, por sua vez, ora unem seus esforços na<br />
promoção de objetivos comuns, ora se afastam na defesa de interesses<br />
particulares. Quanto à união de esforços, pode-se mencionar o acrônimo<br />
dos B<strong>RI</strong>Cs 2 , composto de Brasil, Rússia, Índia e China, grupo dos quatro<br />
maiores emergentes da atualidade, que têm juntado esforços para reivin-<br />
2 Este B<strong>RI</strong>C é a designação do grupo, criado em novembro de 2001 pelo economista Jim<br />
O´Neill, do Grupo Goldman Sachs, para designar os quatro principais países emergentes<br />
(Brasil, Rússia, India e China) no relatório “Building Better Global Economic Brics”.<br />
Usando as últimas projeções demográficas e modelos de acumulação de capital e crescimento<br />
de produtividade, o Grupo Goldman Sachs mapeou as economias dos países<br />
B<strong>RI</strong>Cs até 2050, especulando que esses países poderão tornar-se a maior força na<br />
economia mundial. Segundo Lacerda (2007), o destaque de tais emergentes no cenário<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
14<br />
Duas Regiões e Duas Políticas Externas: Especulações sobre...<br />
dicar voz nos fóruns de decisão. Quanto ao afastamento, pode-se mencionar<br />
o caso em que a China se recusou a apoiar a ampliação do número<br />
de assentos permanentes no Conselho de Segurança da Organização<br />
das Nações Unidas (ONU), em 2005, indo contra um interesse amplamente<br />
defendido pelo Brasil; ou ainda o caso recente, de julho de 2008,<br />
na Rodada de Doha, em que o Brasil era favorável ao acordo proposto<br />
pelos países mais industrializados, mas Índia e China não o aceitaram,<br />
levando a rodada ao fracasso. 3<br />
Muitas têm sido as leituras diante do rearranjo geopolítico internacional.<br />
Uma delas é a de Zakaria (2008), que, falando antes da crise econômica<br />
atual e olhando de dentro dos Estados Unidos, acredita que estamos<br />
vivenciando o terceiro grande deslocamento de poder da história moderna.<br />
O primeiro teria sido a ascensão do Ocidente, por volta do século XV, a<br />
qual resultou na formação da estrutura moderna tal como a conhecemos,<br />
composta do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, do comércio e<br />
do capitalismo, além de todas as grandes revoluções, entre as quais a<br />
internacional não ocorre sem motivos. O autor nos informa que, no ranking dos dez<br />
maiores países segundo PIB (produto interno bruto) por paridade de poder de compra<br />
(PPC), encontram-se todos os B<strong>RI</strong>Cs. Conforme dados do FMI, com base no ano de<br />
2007, a China está em segundo lugar, com um PIB-PPC de US$ 6,9 trilhões, logo após<br />
os EUA. A Índia, com um PIB-PPC de US$ 2,9 trilhões aparece em quarto lugar, vindo<br />
depois do Japão e antecedendo a Alemanha. Em sexto lugar está o Brasil, com PIB-PPC<br />
de 2,8 trilhões. Em seguida vem o Reino Unido e, depois, a Rússia, com PIB-PPC de<br />
pouco mais de 2 trilhões. Para verificar a listagem completa, assim como a lista elaborada<br />
também pelo Banco Mundial e pela CIA World Factbook, ver . Acesso em:<br />
<strong>10</strong> jan. 20<strong>10</strong>. Embora os B<strong>RI</strong>Cs não sejam propriamente um grupo institucionalizado, o<br />
acrônimo B<strong>RI</strong>C possibilita que seus países se articulem – como já tem ocorrido em<br />
determinadas negociações – por maiores reivindicações políticas na agenda internacional,<br />
tendo em vista a pujança econômica que detém e que tende a se ampliar conforme<br />
as previsões.<br />
3 No pacote apresentado aos países emergentes, os EUA, entre outras coisas, se comprometeram<br />
a estabelecer um limite de US$ 14,5 bilhões por ano para o subsídio doméstico<br />
a seus agricultores. Atualmente, esse limite é de US$ 40 bilhões, mas a redução<br />
teria pouco valor prático, pois o valor total do subsídio pago nos EUA em 2007, por<br />
exemplo, foi de US$ 8 bilhões. A União Europeia, por sua vez, aceitou reduzir 80% de<br />
seus subsídios domésticos para um limite máximo de US$ 36 bilhões por ano. Em<br />
contrapartida, os países ricos pediam uma maior abertura dos mercados emergentes<br />
para seus produtos industrializados (com corte médio de tarifas em torno de 54%) e para<br />
os setores de bens e serviços públicos. A troca, no entanto, não foi considerada vantajosa<br />
pela maioria dos países que compõem o G-20, uma vez que não se garantia a<br />
competitividade de seus produtos nos mercados dos países ricos. Pelo contrário, poderia<br />
desproteger milhões de agricultores russos e chineses. (Disponível em: . Acesso em: <strong>10</strong> jan. 20<strong>10</strong>).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
Walace Ferreira 15<br />
agrícola e a industrial. O segundo ocorreu no fim do século XIX com a<br />
ascensão dos Estados Unidos como grande potência ocidental, o que a<br />
despeito dos momentos de crise, como a de 1929, permaneceu firme por<br />
grande parte do século XX. Esse período, denominado “Pax Americana”,<br />
em que a economia global se acelerou drasticamente, seria a mola propulsora<br />
por trás do terceiro grande deslocamento de poder, traduzida pelo fim<br />
da “Pax Americana” e pela ascensão dos demais países e de novas arenas<br />
de poder – o que o autor considera “ascensão do resto”.<br />
Em outro sentido, Haass (2008, p. 1) entende que o mundo atual<br />
não é mais dominado por uma ou mais potências. Em sua ótica, o cenário<br />
contemporâneo é influenciado por dezenas de protagonistas, estatais e<br />
não estatais, que exercem diversos tipos de poder, bem diferente do período<br />
da guerra fria, em que duas nações eram os atores principais, ou da<br />
maior parte do século XX, em que alguns Estados foram os protagonistas.<br />
Em suas palavras: The principal characteristic of first-century<br />
international relations is turning out to be nonpolarity.<br />
Três fatores ocasionaram, em sua visão, essa não-polaridade. Em<br />
primeiro lugar, alguns Estados teriam conquistado poder à medida que suas<br />
influências econômicas cresceram; em segundo, a globalização teria enfraquecido<br />
o papel dos Estados, permitindo que outras entidades acumulassem<br />
um poder substancial; em terceiro, a política externa norte-americana<br />
teria acelerado o declínio relativo dos EUA em relação aos outros<br />
Estados, tendo em vista tomada de medidas externas equivocadas.<br />
Para Haass, além das sete grandes potências mundiais (Estados<br />
Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá), o antigo<br />
G-7, que passou a ser acompanhado da Rússia, formando o G-8, são<br />
numerosas as potências regionais, sendo forças importantes Brasil e<br />
México, na América Latina; Nigéria, África do Sul e Egito, na África; Irã,<br />
Israel e Arábia Saudita, no Oriente Médio; Paquistão, no Sul da Ásia;<br />
Austrália, Indonésia, Coreia do Sul, na Oceania e no Leste Asiático. Com<br />
essas forças, encontram-se os próprios blocos regionais, como Mercosul,<br />
Nafta, União Europeia, União Africana, Liga Árabe, Associação Sul-Asiática<br />
para a Cooperação Regional, entre outros. Em seu artigo, Haass<br />
menciona como centros de relevância internacional as organizações internacionais,<br />
tais como a ONU, além de grandes corporações financeiras,<br />
como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional; importantes<br />
organizações funcionais, como a Agência Internacional de Energia, a Organização<br />
dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), a Organização<br />
de Cooperação de Xangai e a Organização Mundial da Saúde. Por fim,<br />
outras entidades merecedoras de inclusão global, segundo o autor, concorrem<br />
para demonstrar um mundo não polar, seriam as redes de comu-<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
16<br />
Duas Regiões e Duas Políticas Externas: Especulações sobre...<br />
nicação de grande repercussão internacional (Al Jazeera, BBC e CNN);<br />
milícias de grandes causas regionais (Hamas, Hezbollah, Exército Mahdi,<br />
Talibã), organizações terroristas (como a Al Qaeda) e algumas ONGs internacionais<br />
(Fundação Bill e Melinda Gates Foundation, Médicos Sem<br />
Fronteiras, Greenpeace e Cruz Vermelha).<br />
Como alerta Amaral (2008), a capacidade de entender o processo<br />
global e seu rumo, antecipar decisões e políticas, dar uma resposta adequada<br />
às novas realidades é, em boa medida, o que distingue o êxito do<br />
fracasso, a capacidade de liderar ou ser objeto dessas transformações.<br />
Diante da globalização, os países que souberam se guiar na direção dessas<br />
transformações puderam colher vantagens, ao passo que nações que<br />
se viraram contra essa lógica passaram por graves dificuldades. Nesse<br />
sentido, a maior justificativa para se pensar o período proposto neste artigo<br />
encontra-se em compreender o rumo tomado pelo Brasil ao longo de<br />
dezesseis anos de governos FHC e Lula, que ao longo desse tempo puderam<br />
imprimir feições bastante peculiares à nossa política exterior.<br />
2 POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA AO FIM DA GUERRA F<strong>RI</strong>A<br />
Diante do cenário internacional que se descortinava ao fim da era<br />
bipolar, a política exterior do Brasil adaptou-se de maneira não simples,<br />
segundo análise de Cervo e Bueno (2008). Inicialmente, pareceu ter perdido<br />
o rumo que por 60 anos era marcado por uma política externa que<br />
ajudasse na promoção do desenvolvimento nacional.<br />
Entre 1990 e 1995, cinco ministros ocuparam a pasta das Relações<br />
Exteriores, o que revelava a ausência de um projeto contínuo por<br />
parte do Itamaraty. Essa ausência de rumo, no entanto, foi resultado das<br />
dificuldades políticas e econômicas que o Brasil enfrentou na época, caracterizada<br />
pela inflação descontrolada e pelas acusações de corrupção<br />
em relação ao governo Fernando Collor de Mello e sua consequente cassação<br />
(1992), o que o levou a ser sucedido pelo seu vice, Itamar Franco<br />
(1992-1994). Passados esses primeiros anos da década de 90, os governos<br />
Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, marcam,<br />
sem dúvida alguma, um novo rumo para a política externa brasileira, principalmente<br />
no que tange à solidez de propostas. A despeito das diferenças,<br />
ao executarem 16 anos de mandato, os dois serão determinantes<br />
para a evolução do modelo brasileiro de inserção internacional na passagem<br />
do século XX para o XXI.<br />
O governo FHC, cuja diretriz ideológica se alinhava com os valores<br />
do neoliberalismo, teve como primeiro chanceler Luiz Felipe<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
Walace Ferreira 17<br />
Lampreia 4 (1995-2000). Muitas foram as críticas em relação à Lampreia<br />
enquanto esteve a frente do Ministério das Relações Exteriores, principalmente<br />
no sentido de que ele teria defendido um “alinhamento automático”<br />
do Brasil às principais potências do mundo. De qualquer forma, nesse<br />
momento histórico, a globalização financeira comportou duas exigências<br />
dos países avançados sobre as economias emergentes. A primeira foi o<br />
fluxo de capitais, e a segunda a abertura do sistema financeiro. Resultado<br />
disso foi a política de privatizações, consumada pelo governo FHC, com<br />
vistas a sanear as contas das estatais e acumular dólares para amenizar as<br />
dívidas externas. Entretanto, esse governo teve de enfrentar relevantes<br />
crises financeiras que abalaram a economia brasileira (México em 1994-<br />
1995, Ásia em 1997-1998, Rússia em 1998 e Argentina em 2001), influenciando<br />
consideravelmente suas ações de adesão às propostas do FMI.<br />
Deve-se considerar que esse modelo de inserção neoliberal produziu<br />
efeitos nocivos para as relações internacionais do Brasil, mas também<br />
promoveu importantes conquistas (CERVO; BUENO, 2008). Entre<br />
os efeitos negativos estiveram a abertura sem contrapartida do mercado<br />
de consumo nacional, gerando déficit no comércio exterior; endividamento<br />
externo; a alienação de ativos de empresas brasileiras; a submissão a<br />
consensos e conselhos do centro do capitalismo; a obediência às regras<br />
de governança global traçada pelos ricos em seu benefício; o sacrifício<br />
das relações com os países emergentes em favor do primeiro mundo. Por<br />
outro lado, a abertura econômica resultou na modernização; no desenvolvimento<br />
industrial; e no aumento da competitividade sistêmica global<br />
da economia brasileira. Além disso, o liberalismo provocou a diminuição<br />
do Estado e a ascensão da sociedade na distribuição de responsabilidades<br />
sobre o crescimento e o desenvolvimento econômico, bem como favoreceu<br />
uma ampliação da ação externa brasileira em relação à expansão<br />
das relações com outros países, especialmente no campo comercial.<br />
Com o governo Lula, a ação multilateral foi eleita como meio de<br />
países como Brasil, desprovidos de poder efetivo nos foros internacionais,<br />
participarem das decisões internacionais. Imediatamente após suas<br />
posses, Lula e Amorim 5 declararam ser necessário reinterpretar as pre-<br />
4 Luís Felipe Lampreia deu lugar no Ministério à Luiz Felipe de Seixas Corrêa, que ocupou<br />
o cargo interinamente em janeiro de 2001 até passar a gestão da pasta para Celso Lafer,<br />
que controlou a pasta até o fim do governo FHC (2001 e 2002).<br />
5 A própria indicação de Amorim como ministro de Relações Exteriores manifestava a<br />
prioridade da área externa no governo Lula. Celso Amorim é diplomata de carreira e<br />
sempre defendeu uma postura autônoma do Brasil nos foros multilaterais, o que não<br />
significa isolamento do País, mas uma negativa à adoção acrítica de um alinhamento<br />
automático com qualquer outra nação.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
18<br />
Duas Regiões e Duas Políticas Externas: Especulações sobre...<br />
missas clássicas da política externa brasileira, dando a elas novo sentido.<br />
O objetivo seria garantir a sustentação de uma estratégia de inserção<br />
internacional do País, diferente daquela presente na maior parte do governo<br />
FHC e que fosse mais adequada à percepção do papel a ser ocupado<br />
pelo Estado brasileiro no mundo, voltando-se à inserção periférica<br />
dos países em desenvolvimento (OLIVEIRA, 2005). A diplomacia brasileira<br />
sob o governo Lula aprofundou a correção de rota iniciada em fins do<br />
segundo mandato de Cardoso, especialmente com Celso Lafer na gestão<br />
da pasta de Relações Exteriores. Daí entendermos que o discurso referente<br />
a se dar maior voz aos países pobres e em desenvolvimento já<br />
aparece no governo FHC, principalmente sob a intermediação de Lafer à<br />
frente do MRE. Contudo, é relevante em meu entender que tal<br />
posicionamento não esteve presente durante grande parte do governo do<br />
PSDB.<br />
Segundo Almeida (2004), a diplomacia do governo Lula reflete com<br />
considerável expressão o discurso do Partido dos Trabalhadores (PT) e<br />
essa nova linha de pensamento de sua política externa aparece já em<br />
2003, na Conferência Mundial do Comércio (OMC), em Cancún. Os países<br />
em desenvolvimento costumavam assistir as negociações, cabendolhes<br />
cumprir as regras estabelecidas. Desde Cancún, a proposta brasileira<br />
e dos emergentes era a de que, ou esses países se tornavam parte na<br />
confecção das regras, que se tornariam legítimas e justas, ou a produção<br />
dessas seria paralisada. De modo a criar um contrapoder, a diplomacia<br />
brasileira e dos outros emergentes formaram uma coalizão com o Sul,<br />
sendo a mais importante o G-20 6 , grupo de países organizados por conta<br />
da Conferência de Cancún. Outra mensagem de destaque da política<br />
6 O G-20 é um grupo de países em desenvolvimento criado em agosto de 2003, na fase<br />
final da preparação para a V Conferência Ministerial da OMC, realizada em Cancún. O<br />
grupo concentra sua atuação em agricultura e tem uma vasta e equilibrada representação<br />
geográfica, sendo atualmente integrado por 23 membros – 5 da África (África do Sul,<br />
Egito, Nigéria, Tanzânia e Zimbábue), 6 da Ásia (China, Filipinas, Índia, Indonésia,<br />
Paquistão e Tailândia) e 12 da América Latina (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Cuba,<br />
Equador, Guatemala, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela). Depois da falta de<br />
resultados concretos no encontro de Cancún, o G-20 dedicou-se a intensas consultas<br />
técnicas e políticas, visando injetar dinamismo nas negociações. Foram realizadas diversas<br />
reuniões ministeriais do grupo, além de frequentes reuniões entre chefes de delegação<br />
e altos funcionários dos países. O grupo promoveu, ainda, reuniões técnicas<br />
com vistas a discutir propostas específicas no contexto das negociações sobre agricultura<br />
da OMC e a preparar documentos técnicos, em apoio à posição comum adotada pelo<br />
grupo. A legitimidade do G-20 está, sobretudo, na importância de seus membros na<br />
produção e comércio agrícolas, representando quase 60% da população mundial, 70%<br />
da população rural em todo o mundo e 26% das exportações agrícolas mundiais.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
Walace Ferreira 19<br />
externa de Lula foi realizada logo em seu primeiro ano de Presidência, no<br />
Fórum Econômico Mundial de Davos, em 2003, em que o presidente falou<br />
abertamente da sua discordância diante do modelo neoliberal. Partilhando<br />
dessa ideia, Celso Amorim, seu chanceler desde o início do governo,<br />
tem insistido na idéia segundo a qual a fé cega na abertura dos<br />
mercados e na retração do Estado é incapaz de induzir o desenvolvimento<br />
e a igualdade entre as nações.<br />
Dessa maneira, ganha corpo, no governo, segundo Cervo e Bueno<br />
(2008), o conceito de “multilateralismo da reciprocidade” 7 , que deveria<br />
ser aplicada não só no comércio internacional, mas também em outras<br />
áreas, como segurança, questões ambientais, saúde e direitos humanos.<br />
Segundo esse conceito, a reciprocidade se estabelece quando as regras<br />
do ordenamento multilateral beneficiam todas as nações e não a apenas<br />
algumas. Um exemplo prático da aplicação do multilateralismo da reciprocidade<br />
tem aparecido exatamente no empenho brasileiro em formar<br />
coalizões ao Sul. É nesse sentido que surgiu o grupo de cooperação IBAS<br />
(ou IBSA), iniciativa de Índia, Brasil e África do Sul como resultado das<br />
discussões entre seus chefes de Estado na reunião do G-8, ocorrida em<br />
Evian, em 2003. 8<br />
A construção de um mundo multilateral, nesse sentido, tem-se<br />
mostrado estratégia de grande relevância para a política externa do governo<br />
atual. Verifica-se, nesse período, o esforço de aproximação não só<br />
com os países mencionados, mas também com países árabes e especialmente<br />
os da África. As relações com os países do Mercosul e outros<br />
projetos em relação à América do Sul também merecem atenção especi-<br />
7 O conceito envolve dois pressupostos: a existência de regras para compor o ordenamento<br />
internacional sem as quais irá prevalecer a disparidade de poder em benefício das grandes<br />
potências, e a elaboração conjunta dessas regras a fim de garantir reciprocidade de<br />
efeitos para que não realizem interesses de uns em detrimento de outros.<br />
8 Em julho de 2006, em Brasília, os ministros das Relações Exteriores dos respectivos<br />
países (Nkosazana Dlamini Zuma, da África do Sul; Celso Amorim, do Brasil; Yashwant<br />
Sinha, da Índia) lançaram o Fórum de Diálogo IBAS, formalizando o grupo com base na<br />
“Declaração de Brasília”. Os objetivos principais do Fórum do Diálogo IBAS são: a)<br />
promover o diálogo Sul-Sul, a cooperação e posições comuns em assuntos de importância<br />
internacional; b) promover oportunidades de comércio e investimento entre as três<br />
regiões das quais os países fazem parte; c) promover a redução internacional da pobreza<br />
e o desenvolvimento social; d) promover a troca de informação trilateral, melhores<br />
práticas internacionais, tecnologias e habilidades, assim como cumprimentar os respectivos<br />
esforços de sinergia coletiva; e) promover a cooperação em diversas áreas, como<br />
agricultura, mudança do clima, cultura, defesa, educação, energia, saúde, sociedade de<br />
informação, ciência e tecnologia, desenvolvimento social, comércio e investimento, turismo<br />
e transporte. (Disponível em: . Acesso em: <strong>10</strong> jan. 20<strong>10</strong>.)<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
20<br />
Duas Regiões e Duas Políticas Externas: Especulações sobre...<br />
al, dada a prioridade do governo em relação à região vizinha, o que também<br />
ocorria com a administração FHC. No entanto, como destaca Amorim<br />
(2005), são impostas, com Lula, inovações conceituais e diferenças práticas.<br />
Nesse espectro, Amorim considera a política externa do governo de<br />
que é participante “ativa e altiva”, o que significa possuir uma postura<br />
mais assertiva, de afirmação e defesa da soberania nacional e da igualdade<br />
entre as nações. E vai além, defendendo a ação diplomática do<br />
governo atual como relevante instrumento de apoio ao projeto de desenvolvimento<br />
social e econômico do País.<br />
3 POLÍTICA EXTERNA DE FHC E LULA COM RELAÇÃO<br />
À AMÉ<strong>RI</strong>CA DO SUL<br />
O Brasil faz fronteira com quase todos os países sul-americanos,<br />
excetuando-se Equador e Chile. Entretanto, a combinação de uma proximidade<br />
geográfica inescapável com a assimetria no tamanho econômico<br />
gerou uma síndrome de desconfiança entre o Brasil e os países da região,<br />
alimentada pelas diferenças de língua, trajetórias sociopolíticas e<br />
características culturais. No plano político, todavia, partilham o fato de<br />
terem saído de ditaduras militares e retornado a ordem democrática na<br />
década de 80. Desde então, por exemplo, foi permitido um contato mais<br />
próximo do Brasil com a Argentina, embora haja forte crítica brasileira em<br />
relação às dificuldades impostas pela Argentina no funcionamento do<br />
Mercosul.<br />
Do ponto de vista institucional, com exceção do Chile, os países<br />
do Sul estão integrados em dois blocos, o Mercosul 9 (Brasil, Argentina,<br />
Paraguai, Uruguai e “Venezuela”) e o Pacto Andino (Bolívia, Colômbia,<br />
Equador e Peru). Isso torna as relações mais fáceis, pois se resumem, de<br />
certa maneira, a uma correspondência entre o Mercosul e o Pacto Andino<br />
(JAGUA<strong>RI</strong>BE, 2008). Positivamente, existe a vontade de esses países se<br />
integrarem, facilitando as negociações em bloco. Por outro lado, como<br />
9 O Mercosul consiste numa união aduaneira entre os cinco países partes, embora devamos<br />
ressaltar que a participação definitiva da Venezuela depende da aprovação de seu<br />
ingresso no bloco pelo Congresso brasileiro, que tem relutado em fazê-lo, alegando a<br />
ausência de democracia plena no governo de Hugo Chávez. As discussões para a constituição<br />
de um mercado econômico regional para a América Latina remontam ao tratado<br />
que estabeleceu a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), desde a<br />
década de 60. Esse organismo foi sucedido pela Associação Latino-Americana de<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
Walace Ferreira 21<br />
Jaguaribe aponta, a marcante assimetria econômica entre os países da<br />
região consiste no problema estrutural mais sério para uma efetiva<br />
integração, o que acaba exigindo medidas compensatórias para os países<br />
mais pobres. Outra dificuldade reside na escolha dessas medidas, o<br />
que depende do tipo de ressalvas protecionistas das economias mais<br />
débeis, que devem ser, por um lado, satisfatórias para elas e, por outro<br />
lado, aceitáveis pelos países maiores.<br />
Cervo (2003) entende que a política externa de FHC geriu com<br />
senso realista o processo de integração posto em marcha no Cone Sul do<br />
continente. Com o regionalismo, pretendia-se realizar compensações econômicas<br />
e reforçar o poder político. Na prática, tal posicionamento obteve<br />
resultados positivos, como a empatia entre as inteligências brasileira e<br />
argentina, a criação de uma zona de paz regional, a expansão vertiginosa<br />
do comércio intrabloco, a elevação do Mercosul à condição de sujeito de<br />
Direito Internacional e a produção de uma imagem externa acima de sua<br />
própria realidade. Todavia, o processo de integração evidenciou, por outro<br />
lado, algumas fragilidades, como a não-convergência das políticas<br />
exteriores de todos os seus membros, a recusa em sacrificar a soberania<br />
em dose adequada, a adoção de medidas unilaterais perniciosas para os<br />
parceiros, a dificuldade em se enfrentar adequadamente as assimetrias e<br />
a incompatibilidade das políticas cambiais.<br />
Integração, na década de 80. À época, a Argentina e o Brasil fizeram progressos na<br />
matéria, assinando a Declaração de Iguaçu (1985), que estabelecia uma comissão bilateral,<br />
à qual se seguiram uma série de acordos comerciais no ano seguinte. O Tratado<br />
de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, , assinado entre ambos os países em<br />
1988, fixou como meta o estabelecimento de um mercado comum, ao qual outros países<br />
latino-americanos poderiam se unir. Com a adesão do Paraguai e do Uruguai, os quatro<br />
países se tornaram signatários do Tratado de Assunção (1991), que estabeleceu o Mercado<br />
Comum do Sul, uma aliança comercial visando dinamizar a economia regional,<br />
movimentando entre si mercadorias, pessoas, força de trabalho e capitais. Inicialmente<br />
foi estabelecida uma zona de livre comércio, em que os países signatários não tributariam<br />
ou restringiriam as importações um do outro. A partir de 1995, essa zona converteuse<br />
em união aduaneira, na qual todos os signatários poderiam cobrar as mesmas cotas<br />
nas importações dos demais países (tarifa externa comum). No ano seguinte, a Bolívia e<br />
o Chile adquiriram o status de associados do Mercosul. 4 No plano doméstico, grupos se<br />
digladiam denunciando que as pressões sobre a questão ambiental tem outros objetivos,<br />
inquietando sobretudo os defensores da preservação da região. Insatisfeitos com<br />
as políticas adotadas pelo governo, os ambientalistas têm-se oposto aos<br />
desenvolvimentistas que demonstram poucos cuidados com a Amazônia. O caso mais<br />
recente desse confronto resultou na queda de Marina da Silva do Ministério do Meio<br />
Ambiente, em 2008.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
22<br />
Duas Regiões e Duas Políticas Externas: Especulações sobre...<br />
Passando para uma análise da importância do Mercosul para a<br />
região, esse bloco econômico tem sido o principal foco da diplomacia<br />
brasileira na América do Sul, estratégia que perpassa os dois governos.<br />
Conforme entende Almeida (2004), os temas econômicos e comerciais<br />
tiveram, para FHC, prioridade sobre os demais na agenda do Mercosul,<br />
enquanto para Lula o social e o político parecem ter assumido a precedência<br />
no processo de integração. Os progressos, em todo caso, têm<br />
sido mais proclamados do que efetivos, em vista de dificuldades econômicas<br />
persistentes em cada um dos países. A falta de recursos financeiros<br />
pode representar um impedimento para a realização de muitas das<br />
iniciativas vinculadas à integração física, porém o mais importante parece<br />
ser a fragilidade econômica atual dos países membros, o que torna difícil<br />
a derrubada das barreiras comerciais entre os países. Outro aspecto que<br />
pode prejudicar o processo de integração consiste nas ásperas divergências<br />
entre o Brasil e seus vizinhos, simpáticos a posicionamentos mais<br />
radicais. São exemplos: a proposta do novo presidente do Paraguai,<br />
Fernando Lugo, de rever o tratado de Itaipu com o Brasil <strong>10</strong> ; as atitudes<br />
antidemocráticas de Chávez, a despeito da recente aprovação pelo Congresso<br />
Brasileiro acerca da sua entrada no MERCOSUL; o recente incidente<br />
entre a empresa brasileira Odebrecht e o governo equatoriano 11 ; e<br />
por fim, o incidente da Bolívia sob a presidência de Evo Morales, que em<br />
2006 nacionalizou a exploração de petróleo e gás, ocupando as empresas<br />
estrangeiras responsáveis por tal exploração, dentre elas a Petrobrás.<br />
Apesar de todos os problemas existentes, diversos especialistas nacionais<br />
defendem o Mercosul, exatamente pela expansão que o bloco pro-<br />
<strong>10</strong> Paraguai e Brasil anunciaram no dia 25 de julho de <strong>2009</strong>, em Assunção, um acordo que<br />
chamaram de “histórico” sobre a exploração da hidrelétrica de Itaipu: o Brasil passará a<br />
pagar ao Paraguai uma compensação anual de US$ 360 milhões pela energia consumida,<br />
contra US$ 120 milhões atualmente, satisfazendo antigas exigências paraguaias. Com<br />
o acordo, o Brasil praticamente triplicou a quantia que paga ao vizinho pela energia<br />
elétrica com a qual o Paraguai abastece a região sudeste brasileira. O acordo também<br />
permitirá que o governo de Assunção venda energia ao mercado brasileiro sem a mediação<br />
da estatal Eletrobrás, uma antiga reclamação paraguaia. Porém, essa medida entraria<br />
em vigor a partir de 2023. A justificativa do presidente Lula é que não interessa ao<br />
Brasil ter como vizinho e parceiro no Mercosul um país em condição econômica inferior.<br />
11 Nesse caso, o governo de Rafael Correa expulsou a empresa brasileira e ainda recorreu<br />
à arbitragem internacional ameaçando não pagar o empréstimo de US$ 243 milhões,<br />
vinculado ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Como<br />
reação, o governo do Brasil fez algo raro, ao chamar para consulta seu embaixador no<br />
Equador, Antonino Martes Porto, até a resolução do caso. Em janeiro de <strong>2009</strong>, o Equador<br />
pagou parte da dívida com o BNDES, e o embaixador brasileiro voltou ao Equador.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
Walace Ferreira 23<br />
porcionou para diversos setores da economia brasileira. Nesse sentido,<br />
as análises acerca das vantagens e desvantagens do regionalismo tendem<br />
a pesar para o lado da aceitação da integração como a melhor escolha<br />
que a política externa tem optado ao longo de todo esse período, de<br />
FHC a Lula.<br />
Ação concreta nesse rumo pode ser evidenciada na formação da<br />
União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), uma comunidade formada<br />
por doze países sul-americanos (Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai,<br />
Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Chile, Guiana, Suriname e Venezuela),<br />
cujo objetivo principal é propiciar a integração entre os países da América<br />
do Sul, respeitando determinadas particularidades que impedem a todos<br />
de se unirem no projeto Mercosul, por exemplo. Essa integração deverá<br />
ocorrer nas áreas econômica, social e política. Dentro desse objetivo,<br />
espera-se uma coordenação e cooperação maior em segmentos como<br />
educação, cultura, infraestrutura, energia, ciências e finanças. Além disso,<br />
tem-se a expectativa de avançar em pontos extremamente relevantes<br />
para a região, como na criação de um Conselho de Defesa da América do<br />
Sul, de um Parlamento Único, de uma moeda única e de um banco central<br />
para a comunidade (SUAPESQUISA.COM/ UNASUL, 2008). 12<br />
4 ENVOLVIMENTO DA POLÍTICA EXTERNA DE FHC E<br />
LULA EM RELAÇÃO À ÁF<strong>RI</strong>CA<br />
A inclusão de novos atores nas Relações Internacionais é um passo<br />
decisivo para a afirmação do multilateralismo. É com essa leitura que<br />
se pode verificar um aumento recente das relações brasileiras com o<br />
Continente Africano. Mas nem todos analistas veem essa proximidade<br />
positiva, como é o caso de Amaral (2008). Para ele o Brasil se encontra a<br />
meio caminho entre pobres e ricos, entre subdesenvolvidos e desenvolvidos,<br />
e as relações com a África são reflexo da falta de continuidade de<br />
12 O primeiro passo para a criação dessa união ocorreu em 8/12/2004, na cidade de Cuzco,<br />
no Peru, quando foi realizada a 3ª Reunião de Presidentes da América do Sul. Nessa<br />
ocasião, foi redigido um documento (Declaração de Cuzco) que criou as bases para a<br />
UNASUL. O projeto criado recebeu o nome de Casa (Comunidade Sul-Americana de<br />
Nações). Em 2007, durante a 1ª Reunião Energética da América do Sul (realizada na<br />
Venezuela), o nome foi modificado para UNASUL. Contudo, somente em 23/5/2008, em<br />
Brasília, representantes dos doze países assinaram efetivamente um tratado para criála.<br />
Ressalte-se que esse tratado ainda precisa ser ratificado pelos Congressos dos países<br />
membros.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
24<br />
Duas Regiões e Duas Políticas Externas: Especulações sobre...<br />
nossa política externa ao longo das décadas, visto que a atenção com<br />
esse continente é esporádica e os resultados questionáveis. Fato é que o<br />
Brasil ampliou suas relações diplomáticas com a África, de tal forma que<br />
foram criadas, nos últimos anos, novas embaixadas no continente (CAM-<br />
POS, 2008).<br />
Nos quatro primeiros anos do governo Lula, para se ter uma idéia,<br />
o Brasil abriu embaixadas desativadas no governo FHC e inaugurou novas<br />
representações diplomáticas e um consulado-geral, totalizando 13<br />
novos postos. A presença brasileira na África saltou de 18 para 30 embaixadas<br />
ao longo do governo Lula 13 , e dois consulados-gerais. Por outro<br />
lado, despertou-se o interesse de países africanos na abertura de postos<br />
diplomáticos no Brasil (Benin, Guiné-Conacri, Guiné Equatorial, Namíbia,<br />
Quênia, Sudão, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue), de modo que entre 2003<br />
e 2006 o número de embaixadores africanos por aqui saltou de 16 para<br />
25 (<strong>RI</strong>BEIRO, 2007a).<br />
A despeito do discurso da política externa atual de que o Brasil<br />
deve resgatar a integração com a África pelas proximidades históricas 14 ,<br />
o motivo mais plausível para essa aproximação é a busca por apoio na<br />
campanha brasileira por um assento permanente no Conselho de Segurança<br />
da ONU, o que pode ser facilitado pela maior cooperação internacional.<br />
Segundo o discurso do governo brasileiro, é necessário reformar a<br />
ONU e seu Conselho de Segurança, que deverá contar com novos membros<br />
permanentes vindos da Ásia, África e América Latina. Nesse rumo<br />
de integração, o Brasil tem buscado incentivar a cooperação sul-americana<br />
com a África e tem atuado no fortalecimento do diálogo político e da<br />
integração econômica com essa região, como aparece no acordo de co-<br />
13 Como resultado, o Itamaraty ampliou consideravelmente o número de vagas em seu<br />
concurso público anual.<br />
14 A relação entre Brasil e África começa no século XVI com a escravidão negra. A implantação<br />
do trabalho escravocrata no Brasil contribuiu para um desenho bastante peculiar<br />
na estrutura social brasileira. Hoje, o país possui a segunda maior população negra do<br />
mundo, só estando atrás da Nigéria. Segundo o IPEA, em 2006 eram negros no Brasil<br />
49,5% da população. Sabendo-se que em 2006 o Brasil tinha aproximadamente 187<br />
milhões de habitantes, a população auto-declarada negra equivale a quase 93 milhões<br />
de brasileiros. Podemos mencionar ainda que, desde o fim dos anos 1980, tem crescido<br />
na África a penetração da televisão brasileira, em especial com as telenovelas, com as<br />
igrejas evangélicas e com o estabelecimento ilícito de redes de contrabando, tráfico de<br />
drogas, armas e lavagem de dinheiro. Aspectos culturais e de segurança, assim, se<br />
tornaram agendas comuns no relacionamento entre as duas margens do Atlântico Sul.<br />
Além disso, o Brasil também tem recebido refugiados e imigrantes do continente africano,<br />
provenientes de guerras em pontos críticos da região.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
Walace Ferreira 25<br />
mércio preferencial do Mercosul com a União Aduaneira da África Austral<br />
(SACU). Esse organismo trata da cooperação econômica do Continente<br />
Africano, envolvendo África do Sul, Botswana, Lesoto, Namíbia e<br />
Suazilândia. Contudo, a África do Sul responde por mais de 95% do PIB<br />
da SACU. Segundo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, entre os<br />
950 itens incluídos pela SACU no Acordo de Comércio Preferencial estão<br />
150 itens do setor de alimentos (principalmente processados) e mais de<br />
200 itens do setor de máquinas, aparelhos e materiais elétricos. Há, atualmente,<br />
conversações no sentido de iniciar-se a negociação de um acordo<br />
de livre comércio entre o Mercosul, a Índia e a SACU (NEGOCIA-<br />
ÇÕES COMERCIAIS MERCOSUL-SACU/MRE, <strong>2009</strong>).<br />
Apesar de sua posição crítica, o próprio Amaral (2008) reconhece<br />
que, se programado em médio prazo e tendo foco e continuidade, o contato<br />
com a África poderá trazer retornos para o Brasil. Afinal, já há algumas<br />
parcerias com os países africanos de língua portuguesa (Angola,<br />
Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e<br />
Príncipe), tanto no campo econômico quanto em cooperação técnica. Em<br />
função da proximidade cultural e do diálogo político, algumas nações africanas<br />
oferecem atraentes oportunidades de investimentos para o Brasil,<br />
entre elas a ampliação do mercado de etanol, seja para o consumo, seja<br />
para o auxílio técnico na produção. Com tal incentivo, o Brasil e esses<br />
países podem vir a atuar no desenvolvimento de um mercado mundial<br />
para essa nova commodity.<br />
Fazendo um sintético levantamento histórico recente, com o governo<br />
Sarney, pode-se verificar algum contato brasileiro com o Continente<br />
Africano, mas a ascensão de Fernando Collor de Mello à Presidência e<br />
a adoção do neoliberalismo como política econômica abriram uma fase<br />
de distanciamento em relação à África, o que se acirrou depois que se<br />
criou o Mercosul, em 1991. Em 1993, Itamar Franco reativou a Zona de<br />
Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), que tem o objetivo do<br />
uso pacífico do hidroespaço atlântico pelos Estados ribeirinhos. A<br />
ZOPACAS havia sido criada em 1986, mas estava desativada. Além disso,<br />
realizou o Encontro de Chanceleres de Países de Língua Portuguesa,<br />
em Brasília, e apoiou bilateral e multilateralmente – via ONU – o processo<br />
de paz e reconstrução de alguns países do continente (CAMPOS, 2008).<br />
Já no governo FHC (1995-2002), o lugar da África na política externa<br />
brasileira continuou modesto, tendo havido algumas iniciativas de<br />
destaque. A partir de 1995, o Exército Brasileiro participou ativamente das<br />
missões de paz da ONU em Angola e em alguns outros países. Em 1996,<br />
o Presidente Fernando Henrique Cardoso visitou Angola e África do Sul,<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
26<br />
Duas Regiões e Duas Políticas Externas: Especulações sobre...<br />
firmando acordos em várias áreas, e, em 1998, Nelson Mandela, presidente<br />
sul-africano, visitou o Brasil, de maneira que a nova África do Sul 15 ,<br />
pós-apartheid, emergia como parceira importante para a política brasileira.<br />
No mesmo sentido, a cooperação no campo das políticas públicas<br />
cresceu bastante entre o Brasil e o Continente Africano, o que aparece na<br />
luta brasileira por quebrar os direitos de patente dos medicamentos contra<br />
a Aids, epidemia que assola a África austral. Quando o presidente, no<br />
contexto da crise do real, começou a criticar a “globalização assimétrica”,<br />
passou a haver uma maior convergência entre Brasil e África na diplomacia<br />
mundial. (VISENTINI; PEREIRA, 2008).<br />
Já com o governo Lula o Continente Africano passou a ser encarado<br />
como uma das áreas de maior investimento em termos diplomáticos,<br />
de modo que tanto Lula como Celso Amorim realizaram um roteiro de<br />
visitas, acompanhados de empresários, estabelecendo acordos sem precedentes<br />
em termos comparativos. Durante seu primeiro mandato, Lula<br />
realizou 4 viagens ao Continente Africano, visitando um total de 17 países<br />
em pouco mais de dois anos. Em novembro de 2003, esteve em São<br />
Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Namíbia e África do Sul. Em dezembro<br />
desse mesmo ano foi ao Egito e Líbia. Em julho de 2004, visitou<br />
São Tomé e Príncipe, Gabão e Cabo Verde; em abril de 2005, Camarões,<br />
Nigéria, Gana, Guiné-Bissau e Senegal. Em fevereiro de 2006, foi à Argélia,<br />
Benin, Botsuana e África do Sul.<br />
No plano das ações, a política externa brasileira para a África tem<br />
sido caracterizada pelo reiterado esforço do Itamaraty na promoção não só<br />
de viagens oficiais do executivo, mas também com vistas à implementação<br />
e renovação de projetos bilaterais e o estabelecimento de acordos de cooperação<br />
de âmbito multilateral, pelos quais se deduz a possibilidade de<br />
abertura e ampliação de acordos e mercados (<strong>RI</strong>BEIRO, 2007a).<br />
Nesse contexto de integração, o Brasil desenvolveu com países<br />
africanos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) 16 ,<br />
15 A África do Sul é um país com muitas riquezas naturais. Segundo Dupas (2006), possui<br />
40% das reservas mundiais de ouro, 25% das reservas de diamante, além da quase<br />
totalidade das de platina, manganês, cromo e vanádio. No início da década de 80, o<br />
acirramento das sanções em represália ao regime de segregação racial dificultou as<br />
condições econômicas do país. Somente no início da década de 90, com o fim do apartheid<br />
em 1992 e as eleições de Nelson Mandela para a Presidência, a África do Sul vai retomando<br />
aos poucos os contatos estratégicos com outros países fora do continente.<br />
16 A CPLP, criada em 1996, envolve uma população de 240 milhões de pessoas em vários<br />
continentes, sendo seus componentes: Brasil, Portugal, Timor Leste, Guiné-Bissau, Cabo<br />
Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Angola. Eles têm buscado cooperação nas<br />
áreas de segurança, negócios, saúde e educação.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
Walace Ferreira 27<br />
que é composto em grande parte de países africanos, fortes programas<br />
de cooperação bilateral. Entre os mais significativos estão a abertura de<br />
centros brasileiros de ensino técnico em Timor Leste (que fica na Ásia) e<br />
em Angola, e a disposição de urnas eletrônicas para o pleito de Guiné-<br />
Bissau, que acabou adiado por conta da tentativa de golpe militar ocorrido<br />
neste país em 2008. Foi negociada, ainda, em Moçambique, a instalação<br />
de uma fábrica de medicamentos antirretrovirais, trazendo grande<br />
entusiasmo aos integrantes da Comunidade. Também em Moçambique,<br />
a Companhia Vale está presente desde 2004 em Moatize, norte do país,<br />
após ganhar concurso internacional para a realização de pesquisas, naquela<br />
que é considerada uma das maiores reservas carboníferas do mundo<br />
(@VERDADE, 2007).<br />
Em Angola, a interação política tem favorecido enormemente as<br />
relações comerciais e os investimentos brasileiros no país. O atual governo<br />
brasileiro ampliou as linhas de crédito ao Estado angolano, de modo a permitir<br />
a conclusão da hidrelétrica de Capanda, as exportações de automóveis<br />
e viaturas de polícia, além da contratação de novos projetos nas áreas<br />
de infraestrutura, saneamento e agricultura (<strong>RI</strong>BEIRO, 2007b). Faz-se relevante<br />
mencionar, ainda, que as empresas brasileiras respondiam, em 2007,<br />
a <strong>10</strong>% do PIB angolano, conforme informação do embaixador brasileiro em<br />
Angola, Afonso José Sena Cardoso (SENADO FEDERAL, <strong>2009</strong>).<br />
A Petrobras, por sua vez, já está presente em sete países do continente<br />
– Nigéria, Angola, Guiné Equatorial, Líbia, Tanzânia, Moçambique<br />
e Senegal –, trabalhando com empresas locais e estrangeiras na<br />
prospecção em águas profundas e no segmento de exploração e produção.<br />
Por outro lado, existe a participação de empresa privada angolana<br />
na exploração de hidrocarbonetos no Brasil. A Somoil venceu disputa para<br />
explorar petróleo e gás na Bacia do Recôncavo, tornando-se a primeira<br />
empresa petrolífera angolana a trilhar o caminho da internacionalização<br />
(REVISTA O PETRÓLEO/ ANGOLA, 2007).<br />
6 CONCLUSÃO<br />
De Cardoso a Lula a política externa passa por mudanças substanciais,<br />
e aqui reside o argumento central deste artigo, apesar da breve<br />
explanação dos argumentos. Trata-se de uma pesquisa inicial que tenho<br />
desenvolvido, a qual pretende emergir nos discursos oficiais e na<br />
constatação dos dados que marcam as duas políticas externas no tocante<br />
às duas regiões estratégicas para o Brasil.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
28<br />
Duas Regiões e Duas Políticas Externas: Especulações sobre...<br />
Tendo em vista, no entanto, o que foi apresentado, podemos assumir<br />
algumas conclusões. A primeira é que o governo Fernando Henrique<br />
Cardoso desenvolveu uma política externa condizente com uma lógica<br />
de cunho neoliberal, o que estava de acordo com a conjuntura externa da<br />
época em que governou, com as exigências do FMI e do Consenso de<br />
Washington – que propunha reformas para a América Latina. Portanto, a<br />
política externa de grande parte do governo FHC seguia-se na esteira<br />
internacional diante da vitória norte-americana na guerra fria. Seu governo<br />
encarou as reformas como necessárias ao País, obtendo alguns sucessos<br />
e também fracassos, como os vínculos de dependência externa e<br />
de fragilidade na construção de uma autonomia nacional.<br />
Por outro lado, o governo Lula parece trabalhar por uma afirmação<br />
da identidade nacional, com uma política externa mais voltada para a<br />
plataforma ideológica do PT, logo mais próxima de uma esquerda moderada.<br />
No discurso de Lula, percebe-se uma diplomacia voltada aos interesses<br />
nacionais costumando ser mais enfático que seu antecessor nas<br />
decisões diplomáticas e propondo que o Brasil e outras nações sejam<br />
reconhecidos como agentes internacionais de grande expressão. Daí<br />
seu discurso voltar-se à defesa do multilateralismo, do desenvolvimento<br />
das coalizões ao Sul, de reformas institucionais, do combate às assimetrias<br />
e da aproximação com a África – a despeito da inegável existência de<br />
proximidades culturais.<br />
Em segundo lugar, devemos destacar que as transformações<br />
geopolíticas têm sido profundamente dinâmicas. No contexto do governo<br />
Fernando Henrique, as assimetrias internacionais eram mais acirradas, e<br />
o discurso de aceitação a elas no mundo era maior, pois havia pouco<br />
tempo depois do fim da guerra fria, e muitas eram as dúvidas acerca do<br />
futuro das Relações Internacionais. Na conjuntura do governo Lula, os<br />
países emergentes ganharam força política, principalmente pela importância<br />
que atualmente possuem no comércio internacional. Além disso,<br />
com a participação dos Estados Unidos em questões de terrorismo e guerras,<br />
houve um distanciamento político em relação à América do Sul –<br />
principalmente após o 11 de Setembro, abrindo brecha para a ampliação<br />
da influência brasileira na região, o que tem sido explorado pela diplomacia<br />
do governo Lula.<br />
Em terceiro lugar, o apoio à integração com a América do Sul, em<br />
especial no Mercosul, parece um ponto de aproximação entre os governos<br />
FHC e Lula, embora com o governo atual o Mercosul esteja enfrentado<br />
novos desafios, o que nos leva a pensar inclusive sobre a viabilidade<br />
de seu futuro. A região tem padecido de esquerdas com discursos radi-<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
Walace Ferreira 29<br />
cais e de medidas internas excessivamente populares que parecem refletir<br />
a falta de enfrentamento de problemas estruturais que definem seu<br />
subdesenvolvimento. Apesar disso, o Brasil tem privilegiado sua região,<br />
defendendo na maioria das vezes uma política de cooperação, respeitando<br />
as autonomias dos países e buscando acordos ainda incipientes, mas<br />
ambiciosos, como o caso da UNASUL.<br />
Em quarto lugar, as estratégias comerciais são diferentes nos dois<br />
períodos. Para além do Mercosul, o período FHC buscava maior aproximação<br />
com a Europa e os Estados Unidos, enquanto o governo Lula não<br />
abriu mão desse tipo de relacionamento, mas buscou maior contato com<br />
outras partes do globo, entre elas a África. Esse continente aparece como<br />
interessante aproximação da política externa do governo Lula, o que marca<br />
destacada diferença política, econômica e diplomática entre sua política<br />
exterior e a de seu antecessor.<br />
Por fim, ressalte-se a diferença em relação à ambição pelo poder<br />
internacional verificado nos dois governos. A assunção do papel do Brasil<br />
como líder era vista, por FHC, como o resultado da gradual preeminência<br />
econômica do País, o que deveria, em princípio, ser restrito à região,<br />
tendo em vista a limitação dos recursos efetivamente disponíveis para a<br />
ação externa do Estado. Para o governo Lula, a busca por maior presença<br />
internacional parece tratar-se de um dos grandes objetivos políticos,<br />
não necessariamente limitando-se à região. Enquanto FHC modulava esse<br />
objetivo em função das percepções dos parceiros regionais, Lula parece<br />
acreditar que esse papel pode ser conquistado com o ativismo diplomático<br />
e as alianças estratégicas que estão sendo desenvolvidas com os parceiros<br />
em várias partes do mundo. FHC tinha consciência dos limites estratégicos<br />
e da real capacidade econômica do Brasil, ao passo que para o<br />
governo Lula não parecem existir limitações estruturais a tal pretensão.<br />
Daí, verificarmos a expansão de críticas à nossa política externa atual:<br />
termos mais discurso do que propriamente ação.<br />
A política exterior do governo Lula é peculiar pelo momento histórico<br />
em que está inserida. Tem relevante marca diplomática na valorização<br />
das coalizões ao Sul. Tem um discurso favorável à redução das<br />
assimetrias internacionais, mas precisa estar atenta aos interesses da<br />
população interna, que deve ser o alvo de toda a ação externa. Só o<br />
tempo nos permitirá novas interpretações acerca das ações diplomáticas<br />
tomadas atualmente e só assim conheceremos o futuro do multilateralismo<br />
como estratégia pretensamente exitosa da nossa política externa.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
30<br />
Duas Regiões e Duas Políticas Externas: Especulações sobre...<br />
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Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 9-32, <strong>2009</strong>-2.
Cláudio Júnior Damin 33<br />
A CRÍTICA NEOCONSERVADORA<br />
AO PROGRAMA DE<br />
PESQUISA REALISTA:<br />
RELAÇÕES ENTRE IDEOLOGIA,<br />
POLÍTICA E CIÊNCIA<br />
CLÁUDIO JÚNIOR DAMIN<br />
___________________________________________________________<br />
Mestre em Ciência Política (UFRGS),<br />
Doutorando em Ciência Política (UFRGS)<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
34<br />
A Crítica Neoconservadora ao Programa de Pesquisa...<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
Cláudio Júnior Damin 35<br />
RESUMO<br />
O artigo tem o objetivo de estabelecer as principais críticas do pensamento<br />
neoconservador em relação ao programa de pesquisa realista em relações<br />
internacionais. O neoconservadorismo, influência ideológica da política<br />
externa norte-americana da administração George W. Bush (2001-<br />
<strong>2009</strong>), possui similitudes com a teoria realista, mas, por outro lado, suas<br />
principais premissas chocam-se frontalmente com muitas das assertivas<br />
do “núcleo duro” realista. Analisando as diferenças, discute-se a possibilidade<br />
do neoconservadorismo ser tratado como um novo programa de<br />
pesquisa, aos moldes lakatosianos, aplicado às relações internacionais.<br />
Palavras-chave: teoria das Relações Internacionais, neoconservadorismo,<br />
realismo, metodologia dos programas de pesquisa<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
36<br />
A Crítica Neoconservadora ao Programa de Pesquisa...<br />
ABSTRACT<br />
The article aims to establish the main criticisms of neocon thinking in relation<br />
to realistic research program in international relations. Neoconservatism,<br />
ideological influence the foreign policy of the U.S. George W. Bush<br />
administration (2001-<strong>2009</strong>), has similarities with the realist theory, but on<br />
the other hand, its main assumptions collide head-on with many of the<br />
assertions of the “hard core” realistic. Analyzing the differences, we discuss<br />
the possibility of neoconservatism be treated as a new research program<br />
in the mold Lakatosian, applied to international relations.<br />
Keywords: Theory of International Relations, Neoconservatism, Realism,<br />
Methodology of Research Programs<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
Cláudio Júnior Damin 37<br />
1 INTRODUÇÃO<br />
O artigo tem o objetivo de estabelecer as principais críticas do<br />
pensamento neoconservador em relação ao programa de pesquisa realista<br />
de Relações Internacionais. Inicialmente iremos identificar as<br />
discordâncias dos neoconservadores em relação à postura realista, estabelecendo,<br />
assim, diferenças e similitudes dos dois pensamentos; em<br />
seguida, pretendemos analisar teoricamente se o neoconservadorismo<br />
pode ser considerado como um novo programa de investigação científica<br />
aplicado às Relações Internacionais.<br />
Dividimos o artigo em três partes: na primeira, tecemos breves<br />
considerações acerca da classificação de realismo e neoconservadorismo;<br />
na segunda, expomos as principais críticas dos neoconservadores ao programa<br />
de pesquisa realista; por fim, expressamos algumas considerações<br />
sobre a possibilidade de o neoconservadorismo ser denominado<br />
novo programa de pesquisa lakatosiano.<br />
2 REALISMO E NEOCONSERVADO<strong>RI</strong>SMO: CONSIDERAÇÕES BÁSICAS<br />
Antes de apresentarmos as críticas neoconservadoras ao programa<br />
de investigação científica realista é importante que, mesmo que brevemente,<br />
façamos uma caracterização preliminar do realismo e do<br />
neoconservadorismo.<br />
O primeiro passo é responder à seguinte questão:<br />
Como podemos classificar o realismo e o neoconservadorismo?<br />
As alternativas são várias e se dispersam desde a classificação<br />
de teoria, ideologia e doutrina até justificativa ou prática política. Tomar<br />
conhecimento sobre o que estamos tratando será essencial para, especialmente<br />
na parte final do artigo, estabelecermos as possibilidades ou impossibilidades<br />
de o neoconservadorismo ser considerado como um programa<br />
de pesquisa em Relações Internacionais, sob pressupostos da teoria<br />
lakatosiana.<br />
Em relação ao realismo, Pecequilo (2005, p. 115) classifica como<br />
a “corrente teórica ainda dominante das relações internacionais”, sendo<br />
que a “elaboração da teoria realista” teria sido iniciada com os trabalhos<br />
seminais de E. H. Carr (Vinte anos de cirse) e Hans Morgenthau (A política<br />
entre as nações), mesmo que suas origens “pré-históricas” se deem<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
38<br />
A Crítica Neoconservadora ao Programa de Pesquisa...<br />
com as contribuições da obra clássica de Tucídides 1 , na Grécia Antiga e<br />
dos escritos de Nicolau Maquiavel (O príncipe e A arte da guerra) e Thomas<br />
Hobbes (O Leviatã).<br />
Já Baracuhy (2006, p. 359) acredita que “o realismo não é uma<br />
teoria.” Este seria uma “tradição político-filosófica das relações internacionais.”<br />
O autor não nega, no entanto, o caráter teórico do realismo, ao<br />
afirmar (Id., p. 360): “A tradição realista abrange e confere unidade a diferentes<br />
teorias, que procuram oferecer um olhar analítico sobre a realidade<br />
internacional.”<br />
Acreditamos que o debate acerca da classificação do realismo como<br />
uma teoria ou não das Relações Internacionais está superado. O realismo<br />
consolidou-se como uma teoria cujas vertentes buscam a explicação de<br />
múltiplos e diferentes fenômenos, e a vasta produção científica gestada<br />
nas universidades é um traço importante para essa consolidação.<br />
O realismo, depois de Morgenthau, viveu momento de profícuo<br />
debate teórico, seja com a estruturação do neorrealismo por Kenneth Waltz,<br />
do realismo neoclássico de Scheweller, do realismo ofensivo de<br />
Mearsheimer, entre outros. Todas as variantes do realismo mantiveram o<br />
“núcleo duro” de proposições básicas da teoria realista .<br />
Mas, além de uma teoria, o realismo foi usado por governos como<br />
doutrina política, especialmente nos Estados Unidos, durante a guerra<br />
fria, com suas concepções de balança de poder e dissuasão. Ao nos referirmos<br />
à doutrina, estamos tratando da “[...] enunciação formal da parte<br />
do chefe do Estado, ou de um homem político, responsável por uma linha<br />
política que seu país terá que seguir numa determinada área das relações<br />
internacionais.” (BINETTI, 1992, p. 382). Portanto, assumimos que,<br />
além de uma teoria, o realismo pode ser aplicado ao mundo real, gerando<br />
doutrinas de política externa.<br />
O mesmo consenso que cerca o realismo e sua classificação como<br />
uma teoria das Relações Internacionais não é encontrado quando o objeto<br />
de discussão é o neoconservadorismo, já que, a exemplo do anarquismo,<br />
ele não se reivindica como uma teoria da política.<br />
Em linhas gerais, o neoconservadorismo teve início durante a década<br />
de 60 (século XX), quando os Estados Unidos estavam envolvidos<br />
na Guerra do Vietnã e no movimento da contracultura. Intelectuais de<br />
esquerda, em geral com histórico familiar judaico, ex-trotskistas e<br />
1 A Guerra do Peloponeso, que, segundo Pecequilo (2005, p. 116), “analisa as origens,<br />
motivações e dinâmica do relacionamento entre Atenas e Esparta, elaborando os princípios<br />
do equilíbrio do poder.”<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
Cláudio Júnior Damin 39<br />
anticomunistas não assimilaram as críticas às atitudes norte-americanas<br />
na guerra, a florescência do relativismo cultural e, num momento posterior,<br />
as políticas estatais de bem-estar. O rompimento com os liberais de<br />
esquerda e a aproximação com a direita era, pois, apenas uma questão<br />
de tempo. Durante os anos 80, a maioria dos intelectuais, preocupados<br />
com as questões morais da sociedade norte-americana, já havia migrado<br />
para a direita ou para o neoconservadorismo. Dentre os grandes nomes<br />
do neoconservadorismo, destacaram-se Nathan Glazer, Norman<br />
Podhoretz, Jeane Kirkpatrick, Daniel Patrick Moynihan, Allan Bloom,<br />
Gertrude Himmelfarb e Irving Kristol, considerado o pai-fundador do<br />
neoconservadorismo (FRACHON; VERNET, 2006; K<strong>RI</strong>STOL, 1995;<br />
EASTON, 2002). Conforme destaca Cantell (2007), essa primeira geração<br />
de intelectuais neoconservadores manteve o foco de suas análises e<br />
estudos na moralidade da sociedade.<br />
Durante os anos 80 e principalmente durante os 90, houve uma<br />
inflexão neoconservadora para os temas de política internacional. E nesses<br />
temas destacam-se Robert Kagan, William Kristol, Charles<br />
Krauthammer, além de inúmeros intelectuais. O neoconservadorismo adquiriu<br />
grande influência durante os anos da administração de Ronald<br />
Reagan, em intensidade menor no governo de George H. Bush e desapareceu<br />
dos círculos de decisão durante os dois mandatos de Bill Clinton,<br />
vindo a ressuscitar com os atentados de 11 de setembro de 2001, durante<br />
o mandato de George W. Bush (FRACHON; VERNET, 2006; MURAVCHIK,<br />
2007).<br />
O dissenso sobre a classificação do que seria o<br />
neoconservadorismo é um dos grandes problemas que prejudicam o próprio<br />
desenvolvimento desse pensamento. Para Irving Kristol (2005, p.<br />
164-165), o neoconservadorismo não pode ser chamado de um “movimento”,<br />
mas de uma “persuasão”. Já Boot (apud CANTELL, 2007, p. 46)<br />
refere-se a “movimento” para tratar a organização da primeira geração de<br />
neoconservadores. Além disso, o próprio Irving Kristol afirma categoricamente<br />
que “[...] não há um conjunto de princípios neoconservadores<br />
concernentes à política externa, apenas um conjunto de atitudes derivadas<br />
da experiência histórica.” (K<strong>RI</strong>STOL, 2005, p. 167, tradução nossa).<br />
Fukuyama (2006, p. 25) vai além e conceitua o neoconservadorismo como<br />
“um conjunto coerente de ideias, argumentos e conclusões oriundos da<br />
experiência, que devem ser julgados com base na identidade étnica ou<br />
religiosa daqueles que adotam essas ideias”, mesmo que Cantell (2007)<br />
considere que o autor não explicita satisfatoriamente qual seria esse “conjunto<br />
coerente de ideias”.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
40<br />
A Crítica Neoconservadora ao Programa de Pesquisa...<br />
Para fins deste artigo, iremos classificar o neoconservadorismo<br />
como uma ideologia especificamente aplicada à política externa. E entendemos<br />
ideologia como um conjunto de ideias que tratam de como “o poder<br />
pode ser organizado na sociedade” (HOOVER apud CANTELL, 2007,<br />
p. 49, tradução nossa). Mais claro é este conceito de ideologia:<br />
A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações<br />
(ideias e valores) e de norma ou regras (de condutas) que<br />
indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar<br />
e como devem pensar, o que devem valorizar, o que devem sentir,<br />
o que devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo e prático<br />
de caráter prescritivo, normativo e regulador, cuja função é dar aos<br />
membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação<br />
racional para as diferenças sociais, culturais e políticas, sem jamais<br />
atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes. (CHAUÍ,<br />
1985, p. 113)<br />
Ainda segundo Chauí (1985, p. <strong>10</strong>6), “a ideologia é uma das formas<br />
da práxis social”, ou seja, “[...] aquela que, partindo da experiência<br />
imediata dos dados da vida social, constrói abstratamente um sistema de<br />
ideias ou representações sobre a realidade.” Já Ander-Egg (1995, p. 48,<br />
tradução nossa) salienta a existência de laços que ligam ciência, ideologia<br />
e práxis. Para o autor:<br />
Se ideologia e ciência não se separam, tampouco há divisão entre<br />
ideologia e práxis: não é possível conceber uma ação sem um “projeto”,<br />
uma “ideia”, um “modelo” que guie essa ação. [...] A teoria, a<br />
investigação e a práxis estão impregnadas e apoiadas em uma ideologia.<br />
Bobbio (2000, p. 74) identifica que, para uma pesquisa ser considerada<br />
científica, entre outros quesitos, faz-se preciso que ela não tenha<br />
“[...] a pretensão de emitir qualquer juízo de valor sobre as coisas das<br />
quais se ocupa deduzindo em seguida prescrições imediatamente úteis à<br />
práxis.” Tal concepção deita raiz na noção weberiana da objetividade do<br />
conhecimento, que pregava que, mesmo que houvesse valores definindo<br />
a escolha de determinado tema de pesquisa, tal condição não inviabilizaria<br />
a realização de uma pesquisa científica objetiva, ressalvando que o resultado<br />
da pesquisa não poderia justificar os valores.<br />
Para fins deste artigo – e longe de oferecer uma afirmação categórica<br />
–, entendemos que a ideologia se faz diferente da ciência não apenas<br />
porque aquela se baseia em crença e emite “juízo de valor” sobre<br />
seus objetos, mas também porque parece haver uma capacidade<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
Cláudio Júnior Damin 41<br />
popperiana de as teorias científicas serem falsificáveis. E, nesse sentido,<br />
classificamos o neoconservadorismo como uma ideologia.<br />
Mais precisamente, consideramos a ideologia como o produto de<br />
circunstâncias sociais de um período delimitado, minada de crenças e<br />
pré-conceitos acerca da realidade social, constituída de valores que nos<br />
auxiliam a julgar o mundo em que vivemos, oferecendo sentido à realidade<br />
a partir de uma “visão de mundo” que tende a gerar um conhecimento<br />
ilusório marcado pelo mascaramento dos conflitos sociais existentes.<br />
Ideologia, nesse sentido, distancia-se da teoria, justamente porque<br />
a primeira se constitui em um conhecimento não científico e tem preocupação<br />
com a tradução das crenças em ação política, ao passo que a<br />
teoria é conhecimento científico útil para explicar e analisar a realidade<br />
observada, devendo-se afastar de pré-noções ou julgamentos de valor.<br />
Seliger (apud CANTELL, 2007, p. 51, tradução nossa) destaca que<br />
“nem todas as ideologias são lógicas e nem todas são estruturas completamente<br />
ilógicas” e que “não há política sem ideologia.” Essa questão<br />
levantada é das mais importantes, já que, além de uma ideologia, consideramos<br />
o neoconservadorismo como uma prática política e um modo de<br />
justificação de atos de governos, especialmente a estratégia antiterrorista<br />
da administração de George W. Bush.<br />
Se Hobbes “havia escrito o seu De cive para defender o absolutismo<br />
a que aspirava Carlos I” e “O ensaio sobre o governo civil, de Locke, é<br />
a justificação doutrinária da revolução inglesa de 1688” (MOSCA;<br />
BOUTHOUL, 1975, p. 191-193), foram os neoconservadores que ofereceram<br />
a justificativa para o comportamento e a ação norte-americana pós-<br />
11 de Setembro, mesmo sem haver uma obra que condense toda a ideologia<br />
neoconservadora.<br />
Skinner (1993, p. <strong>10</strong>) assevera que, se estudarmos as ideologias<br />
e considerarmos sua importância, veremos que “as explicações do comportamento<br />
político dependem do estudo das ideias e dos princípios políticos”,<br />
advogando a tese de que há um vínculo entre ideologia e prática<br />
política. Por isso é que o autor recomenda a reflexão sobre “o que os<br />
autores estavam fazendo ao escrever” (Id., p. 11), pois bem poderiam<br />
estar engajados na luta política como protagonistas da defesa do status<br />
quo ou, ainda, como ferrenhos opositores de uma dada situação social.<br />
Nesse sentido é que, para Thomson (1973, p. 16, tradução nossa), o pensamento<br />
político, para ser entendido, necessita ser relacionado “[...] com<br />
seu tempo, com o ambiente, o lugar em que foi produzido e a personalidade<br />
de quem o concebeu e desenvolveu.”<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
42<br />
A Crítica Neoconservadora ao Programa de Pesquisa...<br />
Temos claro, portanto, que a ideologia pode gerar subsídios para<br />
a prática política e a justificativa das atitudes de governos. Referindo-se<br />
especificamente ao neoconservadorismo, é interessante notar o trabalho<br />
desenvolvido pelo Project for the New American Century’s (PNAC), um<br />
think thank neoconservador que tentou “influenciar a política externa norte-americana<br />
na década de 90” (CANTELL, 2007, p. 47) e que, sem dúvida<br />
alguma, realizou um trabalho ideológico, até que, com os atentados<br />
terroristas de 2001, suas principais premissas, como a política agressiva<br />
contra os rogue states e o exercício da “hegemonia benevolente”, foram<br />
“adotados” pelo governo de plantão. Ou seja, o que era ideologia se transfigurou<br />
para o campo da prática e da justificação política.<br />
Em termos gerais, a ideologia neoconservadora é nominada como<br />
a “doutrina Bush”, um conjunto de argumentos que formatou a política<br />
externa norte-americana pós-2001. Não é objetivo do artigo entrar em<br />
detalhes acerca da “doutrina Bush”, mas é preciso salientar que ela é o<br />
produto direto da influência da ideologia neoconservadora em Washington<br />
e que, conforme Jervis (2003), defende a importância do regime interno<br />
dos Estados (leia-se democracia) para uma transformação da política<br />
internacional, a guerra preventiva contra grandes ameaças à segurança<br />
norte-americana, o unilateralismo, quando necessário, e a crença de que<br />
a paz e a estabilidade serão conseguidas com a primazia norte-americana<br />
nas Relações Internacionais.<br />
Resta saber que uma das primeiras conclusões que podemos assumir<br />
é o fato de realismo e neoconservadorismo possibilitarem reflexões<br />
em níveis diferentes sobre o sistema internacional. Isso significa que,<br />
enquanto o realismo pode ser tratado como uma teoria, portanto dotado<br />
de credibilidade científica, o neoconservadorismo ainda não adquiriu esse<br />
status, sendo considerado por nós como uma ideologia e mais preocupado<br />
com a ação política do que com a compreensão “objetiva” da realidade.<br />
Tal fato, no entanto, faz surgir ainda mais indagações sobre a relação<br />
existente entre as premissas realistas e neoconservadoras, já que, mesmo<br />
que consideremos o realismo como uma teoria e o neoconservadorismo<br />
como uma ideologia, ambas correntes de pensamento possuem premissas.<br />
E uma dessas indagações, que será tratada no artigo, é se as críticas<br />
neoconservadoras ao programa de pesquisa realista em Relações<br />
Internacionais possibilitam considerarmos o neoconservadorismo como<br />
um novo programa de investigação científica.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
Cláudio Júnior Damin 43<br />
3 A CRÍTICA NEOCONSERVADORA AO PROGRAMA DE<br />
PESQUISA REALISTA EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS<br />
Realismo e neoconservadorismo comungam dos mesmos preceitos,<br />
quando se trata de Relações Internacionais? Seria o<br />
neoconservadorismo uma variante da escola realista?<br />
Se observarmos que os realistas criticaram a Guerra contra o Iraque, em<br />
2003, fomentada por ideais neoconservadores, poderemos dizer que realismo<br />
e neoconservadorismo são como “água e azeite” e que não se misturam.<br />
Mas o debate acerca das diferenças de uma e outra forma de pensamento<br />
em Relações Internacionais deve ir além daquilo que presenciamos<br />
desde os atentados de 2001 nos Estados Unidos. As conclusões de<br />
diferença entre realismo e neoconservadorismo baseadas no fato de que<br />
quase todos os realistas se opuseram à doutrina Bush é, certamente, um<br />
grande indício de que há contradições importantes; todavia, por outro lado,<br />
pode mascarar as similitudes e aproximações dos dois pensamentos.<br />
Neste artigo, iremos expressar as principais críticas que os intelectuais<br />
neoconservadores empreendem contra a tradição realista, em<br />
um esforço que objetiva verificar se podemos tratar o neoconservadorismo<br />
como um apêndice do realismo ou como algo significativamente<br />
dissonante.<br />
E se o propósito deste artigo é identificar as principais críticas dos<br />
neoconservadores à escola realista, precisamos radiografar o que se entende<br />
por “realismo”. Acreditamos que o que se tem “não é uma teoria<br />
realista, mas teorias realistas” (DOUGHERTY; PFALTZGRAFF, 2001, p.<br />
63, tradução nossa). Diversas teorias que se arrogaram o adjetivo “realista”<br />
avançaram nos objetos de estudo dessa escola de pensamento,<br />
complexificando conceitos, estabelecendo denominações próprias para a<br />
teoria de cada autor e criando, nos debates atuais, certa confusão sobre<br />
o que, enfim, poderia ser considerado como um pensamento eminentemente<br />
realista. Autores como Feng e Ruizhaung (2006), por exemplo, se<br />
esforçaram para classificar as diferentes variantes do realismo tendo em<br />
vista alguns critérios.<br />
Respondendo à indagação de como podemos identificar as críticas<br />
neoconservadoras ao realismo, se ele se apresenta tão “gelatinoso”,<br />
pode-se utilizar a teoria de Lakatos (1978), quando se refere ao “núcleo<br />
duro” dos programas de investigação científica, ou seja, suas “premissas<br />
fundamentais”, que, se modificadas, acabam resultando na modificação<br />
do programa de investigação científica (ELMAN; ELMAN, 2003).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
44<br />
A Crítica Neoconservadora ao Programa de Pesquisa...<br />
Nesse sentido, Dougherty e Pfaltzgraff (2001) conceituam o realismo<br />
clássico em cinco premissas básicas, a saber: a) o sistema internacional<br />
tem no Estado sua peça fundamental; b) a política internacional é<br />
baseada no conflito, com a existência da anarquia no sistema internacional,<br />
portanto com Estados lutando para garantir sua sobrevivência; c)<br />
Estados possuem diferentes níveis de capacidades objetivas, produzindo,<br />
por consequência, Estados fracos e fortes; d) Estados são atores racionais<br />
que baseiam suas escolhas com fundamento no interesse nacional;<br />
e) o poder é o conceito que melhor explica e prevê o comportamento<br />
dos Estados.<br />
Mearsheimer (2001), por sua vez, afirma que o realismo possui<br />
três postulados básicos. Por primeiro, os realistas acreditam que os Estados<br />
são os principais atores do sistema internacional; em segundo lugar,<br />
os realistas assumem que o comportamento dos Estados é influenciado<br />
principalmente por questões externas, não por suas características internas,<br />
ou seja, “a estrutura do sistema internacional formata”<br />
(MEARSHEIMER, 2001, p. 17, tradução nossa), em grande medida, a<br />
política externa dos Estados. Disso resulta o fato de que os realistas não<br />
desenham um mundo dividido entre “bons” e “maus” Estados, porque “[...]<br />
todos os grandes poderes agem de acordo com a mesma lógica, apesar<br />
de sua cultura, sistema político, ou como funciona o governo” (Id., p. 18,<br />
tradução nossa). Por último, os realistas acreditam que os Estados são<br />
dominados por cálculos de poder, o que acaba produzindo competição<br />
por poder no sistema internacional.<br />
Além dessas características básicas, Mearsheimer (2005) identifica<br />
que os realistas tendem a defender que vivemos em um mundo com<br />
balança de poder e que “[...] quando um Estado coloca seus punhos na<br />
face de outro, o Estado alvo geralmente não lança suas mãos para o alto<br />
e se rende” (MEARSHEIMER, 2005, tradução nossa). O que o Estado faz<br />
é procurar meios para defender-se e para isso teria grande predisposição<br />
para perseguir uma balança de forças – articulando alianças, por exemplo<br />
– contra o Estado ameaçador.<br />
Tais premissas podem ser utilizadas para identificar o que podemos<br />
ou não denominar “pensamento realista” de Relações Internacionais.<br />
Esse “núcleo duro” lakatosiano propiciou que fossem levados em<br />
conta diversos realismos: neorrealismo, realismo neoclássico, realismo<br />
ofensivo e outros. Esses realismos, filiando-se às premissas básicas, fazem<br />
parte dos programas de pesquisa realistas em Relações Internacionais.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
Cláudio Júnior Damin 45<br />
No artigo, defendemos que a crítica neoconservadora ao realismo<br />
reside em três questões fundamentais: em primeiro lugar, a crença realista<br />
de que o comportamento dos Estados é ditado por questões externas e<br />
não por fatores domésticos, o que possibilita o equilíbrio de poder no<br />
sistema internacional; em segundo, a premissa de que os Estado competem<br />
por poder, relegando o papel da moralidade e da ideologia na ação<br />
dos atores fundamentais do sistema; em terceiro, a visão realista acerca<br />
do interesse nacional definido em termos de poder, com a quantificação<br />
do poder dos Estados usando critérios geopolíticos e infraestruturais.<br />
Para cada um desses postulados realistas, os neoconservadores<br />
possuem uma visão alternativa que, como veremos a seguir, propõe inserir<br />
a moralidade e a ideologia dentro da análise das Relações Internacionais.<br />
3.1 BALANÇA DE PODER E UNIPOLA<strong>RI</strong>DADE<br />
Realistas e neoconservadores convergem na mesma caracterização<br />
do sistema internacional como essencialmente hobbesiano e anárquico.<br />
Ambos acreditam, como o neorealista Waltz (1979, p. 81, tradução<br />
nossa), que a “política doméstica é hierarquicamente ordenada”, mas que<br />
a política internacional não é ordenada por nada equivalente a instituições<br />
e agências que detêm o monopólio da força e que garantem a ordem<br />
e a estabilidade interna de cada Estado nacional.<br />
Neoconservadores como Kagan e Kristol (2000), por exemplo, denunciam<br />
os malefícios de um hipotético “governo mundial” e descarregam<br />
suas críticas a instituições de cunho universalista, como a Organização<br />
das Nações Unidas (ONU) e seu Conselho de Segurança. Para os<br />
neoconservadores, para sobreviver num mundo anárquico, as grandes<br />
potências, mais especialmente a potência hegemônica (para eles, atualmente<br />
os Estados Unidos) deve garantir sua sobrevivência e dominação<br />
a partir do exercício militar.<br />
Mas, para o objetivo deste artigo, precisamos verificar as<br />
consequências, para a teoria realista, da anarquia do sistema internacional.<br />
Mearsheimer (2001) destaca que a anarquia não significa que o sistema<br />
internacional seja caótico, afirmando que a ausência de uma estrutura<br />
formal que governe e coordene todos os Estados faz com que o objetivo<br />
dos Estados no sistema seja o de manter a sobrevivência.<br />
Ao defender o que ficou conhecido como realismo ofensivo,<br />
Mearsheimer (2001) caracterizou o sistema internacional como um espaço<br />
em que a “sobrevivência é o principal objetivo dos grandes poderes”,<br />
em especial “para Estados que procuram manter a integridade de seu<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
46<br />
A Crítica Neoconservadora ao Programa de Pesquisa...<br />
território e a autonomia da política doméstica” (MEARSHEIMER, 2001, p.<br />
31, tradução nossa). A sobrevivência também é um dos seis princípios da<br />
teoria realista de Morgenthau, e todas as nações seriam compelidas a<br />
proteger “sua identidade física, política e cultural contra a invasão de outras<br />
nações” (MORGENTHAU apud DOUGHERTY; PFALTZGRAFF, 2001,<br />
p. 76, tradução nossa).<br />
Essa incerteza da sobrevivência possui implicações importantes para a<br />
teoria realista. A fim de garantir a sobrevivência, os Estados seriam encorajados<br />
a valorizar os atributos militares como condição de garantir a sobrevivência.<br />
Segundo Waltz, “[...] entre homens, assim como entre Estados, a<br />
anarquia, ou a falta de governo, é associada com a ocorrência de violência”<br />
(WALTZ, 1979, p. <strong>10</strong>2, tradução nossa). De forma natural, os Estados<br />
tenderiam a uma balança de poder para não permitir que um Estado<br />
dominasse os demais ou um grupo deles. E esse “estado de guerra” velado<br />
entre os Estados impõe limites para a cooperação entre as unidades,<br />
justamente por causa da estrutura internacional, em que permeia a insegurança<br />
e a busca por sobrevivência.<br />
Essa situação anárquica e competitiva entre os Estados, que habita<br />
o sistema internacional, teria influência direta sobre o comportamento<br />
dos Estados, ou seja, os fatores externos acabam formatando as atitudes<br />
das unidades nacionais, e uma dessas atitudes é a busca da balança<br />
de poder (WALTZ, 1979).<br />
Segundo Wohlforth (2004, p. 214, tradução nossa), a teoria da<br />
balança de poder destaca que, por causa da anarquia do sistema internacional,<br />
os Estados têm interesse em garantir sua sobrevivência “considerando<br />
perigoso concentrações de poder (‘hegemonia’)”, e, por isso, com<br />
estímulo para desenvolver “suas próprias capacidades (‘balanço interno’)”<br />
ou agregar “suas capacidades com outros Estados a partir de alianças<br />
(‘balanço externo’)”.<br />
A balança de poder, baseada na premissa de que o comportamento<br />
dos Estados é produzido com apoio em condicionantes intrínsecos ao<br />
sistema internacional, indica que a teoria realista destina pouca atenção<br />
para os fatores domésticos, ou melhor, que eles não são determinantes<br />
para o comportamento dos atores dentro do sistema, o que, como veremos<br />
adiante, choca-se frontalmente com os postulados neoconservadores.<br />
E se os neoconservadores, como dissemos, concordam com os<br />
realistas em relação ao caráter hobbesiano e anárquico do sistema internacional,<br />
questões como a balança de poder e o desprezo pelo nível doméstico<br />
são criticadas pela ideologia neoconservadora aplicada às Relações<br />
Internacionais.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
Cláudio Júnior Damin 47<br />
Normativos, os neoconservadores estabelecem que o melhor para<br />
o sistema internacional não é a balança de poder, mas o bandwagoning e<br />
a supremacia dos Estados Unidos como a potência hegemônica. Mesmo<br />
durante o período da guerra fria, intelectuais neoconservadores defendiam<br />
uma atitude mais proativa em relação ao confronto Leste-Oeste, já<br />
que postulavam a vitória sobre o “império do mal” e a redenção do poder<br />
norte-americano.<br />
Criticando a noção de multipolaridade e balança de poder, Robert<br />
Kagan (1998, p. 31, tradução nossa), na tentativa de desqualificar a abordagem<br />
realista, argumenta que:<br />
É suficiente notar que durante o suposto auge da multipolaridade –<br />
século XVIII –, guerra entre grandes potências era um acontecimento<br />
regular, com conflitos maiores ou menores, globais ou locais explodindo<br />
quase que de década em década.<br />
Tal assertiva, vinda de um neoconservador, já denota que, para<br />
esses pensadores, a balança de poder é um indício não de estabilidade,<br />
mas de instabilidade provocada pela competição militar e por poder que<br />
existiria entre as potências, sem que houvesse um “árbitro” ou uma força<br />
maior que se apresente para impor sanções à busca desenfreada por<br />
poder. E para os neoconservadores, essa potência maior deveria ser<br />
hegemônica embebida de moralidade e ideologia.<br />
Na sequência de sua crítica sobre as pretensões multipolares da<br />
Europa, Robert Kagan (1998) afirma que os europeus não estariam preparados<br />
para pagar o preço de um mundo multipolar. E, para ele, as potências<br />
europeias desejariam uma “multipolaridade honorária”, o que, em<br />
outras palavras, significa dizer que os europeus anseiam influência no<br />
sistema internacional, mas sem pagar o preço do multipolarismo, tornando-se<br />
como que free riders do poder norte-americano.<br />
Charles Krauthammer (2002), no início dos anos 90, escreveu artigo<br />
defendendo a unipolaridade do sistema internacional depois do fim<br />
da guerra fria. Pouco mais de uma década depois, o autor defendeu mais<br />
uma vez sua previsão acerca da unipolaridade do sistema que, para ele,<br />
iniciou a “era unipolar” (KRAUTHAMMER, 2002, p. 17, tradução nossa).<br />
O que se tem visto, especialmente depois dos atentados de 11 de<br />
Setembro, para os neoconservadores, não é o enfraquecimento dos Estados<br />
Unidos como a potência hegemônica, mas o enfraquecimento dos<br />
outros poderes em detrimento do crescimento do poder norte-americano.<br />
O crescimento do poder teria ocorrido com o incremento do orçamento<br />
militar e o exercício do poder bélico norte-americano, um novo tipo de<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
48<br />
A Crítica Neoconservadora ao Programa de Pesquisa...<br />
força baseada na união, mobilização e ação em prol da guerra contra o<br />
terrorismo e a aceleração do realinhamento das grandes potências à política<br />
de Washington contra as redes terroristas mundiais<br />
(KRAUTHAMMER, 2002).<br />
Na visão neoconservadora:<br />
Nossa experiência com hegemonia historicamente mostra que inevitavelmente<br />
cria-se uma coalizão de países fracos que contrabalança<br />
a potência hegemônica, mais recentemente contra a França<br />
napoleônica e Alemanha (duas vezes) no século XX. Ainda durante<br />
a primeira década da unipolaridade americana nenhum<br />
contrabalanceamento ocorreu. (Id., p. 8, tradução nossa).<br />
Pelo contrário, os neoconservadores entendem que os grandes<br />
poderes se alinharam aos Estados Unidos na guerra contra o terrorismo,<br />
mencionando-se frequentemente o caso do Paquistão, da Índia, Rússia e<br />
China, consideradas grandes potências. Mas, se para os<br />
neoconservadores a balança de poder é algo perigoso demais, a<br />
hegemonia também o seria.<br />
Por que, então, eles aceitam a hegemonia norte-americana como<br />
condição para a estabilidade do sistema internacional?<br />
Eis outra questão fundamental do pensamento neoconservador<br />
em Relações Internacionais: o caráter “benevolente” da hegemonia norte-americana,<br />
ligado ao princípio do excepcionalismo. “Um mundo sem a<br />
primazia americana poderia ser um mundo com mais violência e desordem<br />
e menos democracia e crescimento econômico”, diz Samuel<br />
Huntington (apud KAGAN, 1998, p. 26, tradução nossa).<br />
Destaca Kagan (1998, p. 26, tradução nossa): “Se há de ter um<br />
único superpoder, é melhor para o mundo que este poder seja o dos Estados<br />
Unidos.” A noção de “hegemonia benevolente” é partilhada pelos<br />
neoconservadores, constituindo-se naquilo que se poderia denominar “núcleo<br />
duro” lakatosiano do neoconservadorismo aplicado às Relações Internacionais,<br />
se, obviamente, considerássemos o neoconservadorismo<br />
como um programa de pesquisa.<br />
Essa “hegemonia benevolente” é a peça-chave, no pensamento<br />
neoconservador, para a estabilidade do sistema internacional. Não basta<br />
que haja um hegemon, é preciso que esse ator superior esteja ciente de<br />
suas responsabilidades e missão no mundo sem balança de poder. E os<br />
norte-americanos, ao assumirem o comando do sistema e por serem considerados<br />
como uma força do “bem”, estariam auxiliando o sistema a caminhar<br />
rumo ao progresso da liberdade, que comumente os neoconservadores<br />
associam à extensão da democracia entre os Estados.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
Cláudio Júnior Damin 49<br />
Nesta discussão, cabe relembrar que, na Doutrina de Segurança<br />
Nacional, publicada em 2002, é flagrante a noção de que a única balança<br />
de poder a ser perseguida pelo governo norte-americano seria a “de poder<br />
que favoreça a liberdade humana” (WHITE HOUSE, 2002, p. 1, tradução<br />
nossa).<br />
Mearsheimer (2001), quando estruturou o realismo ofensivo, mostrou<br />
que a própria estrutura do sistema internacional encoraja os Estados<br />
a buscar a hegemonia, justamente porque o sistema é baseado no medo<br />
entre os grandes poderes. Segundo o autor, a busca do poder apenas<br />
cessa quando a hegemonia é conquistada, mas os outros poderes lutariam<br />
para contrabalançar as pretensões hegemônicas de outro Estado. O<br />
argumento central de Mearsheimer (2001, p. 41, tradução nossa), no entanto,<br />
é que “é virtualmente impossível para qualquer estado conquistar a<br />
hegemonia global”, seja pelo poder parador da água, seja pelas limitações<br />
logísticas, o que faz com que o autor considere os Estados Unidos<br />
não como uma potência hegemônica global, mas um regional hegemon.<br />
As limitações do poder norte-americano são consideradas por<br />
Robert Kagan. O neoconservador tenta diferenciar predominância de onipotência,<br />
afirmando que “[...] apenas porque os Estados Unidos têm mais<br />
poder do que qualquer um, isso não significa que ele pode impor suas<br />
vontades a qualquer um” (KAGAN, 2007, tradução nossa).<br />
Na tentativa de visualizar mais claramente as diferenças acerca<br />
da balança de poder realista e da unipolaridade neoconservadora, podese<br />
pensar a “guerra global contra o terrorismo” levada a cabo pelo governo<br />
norte-americano a partir de 2001 e que tem na invasão ao Iraque uma<br />
de suas estratégias. Para os neoconservadores, ao derrubar o regime de<br />
Saddam Hussein, ocorreria uma política de bandwagoing, em que os vizinhos<br />
dos Estados com pretensões a avançar seus programas nucleares<br />
ou desenvolver armas de destruição em massa acabariam sendo<br />
demovidos pelo medo de serem atacados, como o Iraque foi, pela potência<br />
hegemônica. Haveria uma espécie de efeito cascata no Oriente Médio,<br />
inclusive com a democratização de alguns países.<br />
A dissuasão realista é criticada, nesse sentido, pelos<br />
neoconservadores, que não conseguem visualizar uma estratégia da potência<br />
hegemônica baseada na negociação diante de rogue states que<br />
poderiam minar o poder do sistema unipolar. Para Krauthammer (2004,<br />
tradução nossa):<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
50<br />
A Crítica Neoconservadora ao Programa de Pesquisa...<br />
No mundo bipolar da Guerra Fria, com um adversário estável e não<br />
suicida, a disuassão poderia funcionar. Disuassão não funciona contra<br />
pessoas que anseiam pelo paraíso. [...] Em um mundo de terroristas,<br />
Estados terroristas e armas de destruição em massa, a opção<br />
pela preempção é especialmente necessária.<br />
Conforme Mearsheimer (2005, p. 4, tradução nossa), os realistas<br />
alertaram que nem Irã nem Coreia do Norte iriam abdicar de seus programas<br />
nucleares em função do ataque norte-americano ao Iraque, “[...] mas<br />
iriam trabalhar mais do que nunca para adquirir uma disuassão nuclear<br />
para imunizar-se contra o poder americano.” A concepção<br />
neoconservadora do “alinhar-se ao mais forte”, somada ao conceito de<br />
“hegemonia benevolente” acabariam, para os realistas, com consequências<br />
contrárias às pretendidas.<br />
A crítica neoconservadora à balança de poder realista é baseada,<br />
sobretudo, numa visão negativa de vários grandes poderes tendo as mesmas<br />
responsabilidades, o que tenderia a gerar crises e luta por poder<br />
traduzida em conflitos bélicos. Neoconservadores, portanto, criticam os<br />
realistas justamente porque estes não vislumbram que, numa situação de<br />
equilíbrio de poder, nenhum Estado consiga impor-se perante os outros.<br />
Pelo contrário, seria preciso uma força maior e benevolente comandando<br />
o sistema internacional e não permitindo o caos e o desequilíbrio.<br />
3.2 PODER E IDEOLOGIA<br />
Krauthammer (2002, p. 13, tradução nossa) escreveu que, “[...]<br />
para os realistas, o determinante mais importante para os mais básicos<br />
elementos da vida internacional – segurança, estabilidade e paz – é o<br />
poder.” Um dos princípios da teoria realista de Morgenthau é que os<br />
governantes agem em termos de interesse definido como poder, e esse<br />
poder deve-se à necessidade de garantir, prioritariamente, a sobrevivência<br />
e a segurança diante de um sistema internacional anárquico.<br />
Essa busca pelo poder é criticada pelos neoconservadores, para<br />
os quais o poder, por si só, não poderia ser considerado como um ponto<br />
positivo na relação entre as nações. Segundo o neoconservadorismo, os<br />
realistas “possuem todos os meios e nenhum fim”, o que faz referência ao<br />
fato de que os realistas não consideram que o poder deve ser usado e<br />
buscado no sentido de favorecer algum valor ou alguma ideologia. Os<br />
neoconservadores, ao contrário, pensam o poder em termos ideológicos,<br />
como um instrumento para a expansão da democracia no sistema internacional,<br />
revelando a afinidade entre o poder e a ideologia. Krauthammer<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
Cláudio Júnior Damin 51<br />
(2004, tradução nossa) resume a premissa quando afirma que o<br />
“globalismo democrático 2 considera que o engenho da história não é o<br />
desejo pelo poder, mas o anseio pela liberdade” e que o poder deve ser<br />
maximizado não tão somente para sobreviver à anarquia, mas também<br />
para propiciar, ao mundo, os benefícios que os neoconservadores enxergam<br />
no modelo democrático norte-americano.<br />
Da crítica neoconservadora resulta o fato de os neoconservadores<br />
considerarem o pensamento realista e sua premissa sobre o poder como<br />
algo desprovido de uma concepção ideológica e moral. O poder, para os<br />
neoconservadores, não faz parte de um jogo neutro. Pelo contrário, consideram<br />
o poder como um mecanismo que deve favorecer a realização<br />
de um objetivo claro, definido pela potência hegemônica e julgado em<br />
termos morais e ideológicos. A prática do poder pelo poder, nesse sentido,<br />
seria reprovada pelos neoconservadores.<br />
Não está o sistema internacional, pois, para os neoconservadores,<br />
permeado pela competição de poder, mas pela competição ideológica.<br />
Teria sido assim durante a guerra fria, quando se combateu o comunismo<br />
e seria agora com a ameaça inédita da conjunção de rogue states, armas<br />
de destruição em massa e fundamentalismo islâmico ameaçando a “era<br />
unipolar” (KRAUTHAMMER, 2002).<br />
É, certamente, discutível essa visão ideológica neoconservadora<br />
a respeito do exercício do poder, tendo em vista questões ideológicas, já<br />
que, se formos dominados por essa lógica, guerras e conflitos poderão<br />
ser justificados em decorrência de um bem maior que, no caso, é o avanço<br />
da democracia no sistema internacional. Se o exercício do poder, sob<br />
o pensamento realista, não é “contaminado” de ideologia ou moralidade,<br />
poder é importante para as duas correntes, mas são os objetivos que se<br />
distanciam. Enquanto realistas propõem utilizar-se do poder para manter<br />
a sobrevivência e maximizar segurança, neoconservadores entendem que<br />
o poder deve ser utilizado com apoio em finsa partir de fins ideológicos<br />
muito claros, em geral consoantes com os princípios da potência<br />
hegemônica do sistema unipolar, o que revela a crença arraigada na força<br />
das ideias influenciando o comportamento dos Estados.<br />
3.3 INTERESSE NACIONAL E VALOR<br />
A última crítica neoconservadora sobre o núcleo das ideias realistas<br />
refere-se ao conceito de interesse nacional. Mais uma vez a distinção<br />
2 É assim que o autor se refere ao neoconservadorismo.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
52<br />
A Crítica Neoconservadora ao Programa de Pesquisa...<br />
entre as interpretações se dá com base no poder e na ideologia que, ao<br />
que parece, favorece o argumento para uma diferenciação inconciliável<br />
entre o programa de pesquisa realista em Relações Internacionais e o<br />
neoconservadorismo.<br />
O realismo admite, em seu seio teórico, o interesse nacional como<br />
definido em termos de poder. Assim, as ações dos Estados no exterior<br />
baseiam-se, prioritariamente, levando em conta o poder desvinculado das<br />
qualidades morais dos regimes. Tal situação seria o reflexo das próprias<br />
características do sistema internacional que formata, para os realistas, o<br />
comportamento dos atores e estes, por sua vez, deveriam agir no sentido<br />
de sobreviver mantendo ou maximizando poder e(ou) segurança.<br />
Interesse nacional fundamentado em cálculos de poder requer que<br />
pensemos na ausência de julgamentos ideológicos acerca da natureza<br />
doméstica dos regimes, uma vez que ela é preterida em razão dos<br />
condicionantes externos. Por essa razão, os realistas mensuram o poder<br />
dos Estados de forma quantitativa, com base em questões materiais e<br />
não de forma qualitativa ou ideológica. Waltz (1979, p. 99, tradução nossa)<br />
esclarece esse ponto de vista realista, ao considerar que:<br />
Nós [os realistas] não perguntamos se Estados são revolucionários<br />
ou legítimos, autoritários ou democráticos, ideológicos ou pragmáticos.<br />
Nós abstraímos todos os atributos dos Estados, exceto suas<br />
capacidades.<br />
O poder militar é especialmente associado para medir o poder dos<br />
Estados no sistema internacional. Interpretando o pensamento de Waltz,<br />
Krieger e Roth (2007) expressam a noção de que um Estado garante<br />
poder e segurança quando dispõe de capacidade de realizar um segundo<br />
ataque nuclear para manter sua posição no sistema internacional, caso<br />
esta esteja sob ameaça de uma outra nação ou bloco de poder. Essa<br />
noção corrobora as próprias palavras de Waltz (1979, p. 98, tradução<br />
nossa), para quem o “poder é estimado pela comparação das capacidades<br />
de um número de unidades” ou seja, a partir das capacidades dos<br />
outros Estados.<br />
Waltz (1979, p. 183, tradução nossa), no entanto, acredita que a<br />
classificação das grandes potências no sistema internacional não pode<br />
ser feita apenas com a posse de armas nucleares, “[...] mas também porque<br />
seus imensos recursos possibilitam gerar e manter poder de todos os<br />
tipos, militar e outros, em níveis táticos estratégicos.”<br />
Essas considerações realistas são duramente criticadas pelos<br />
neoconservadores. Para os adeptos da doutrina Bush, o interesse nacio-<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
Cláudio Júnior Damin 53<br />
nal não pode estar apoiado em questões de poder objetivo, mas em questões<br />
ideológicas. Krauthammer (2004, tradução nossa), referindo-se ao<br />
neoconservadorismo salienta que ele é “uma política externa que define<br />
o interesse nacional não como um poder, mas sim como valores”, identificando<br />
“um valor supremo, o que John Kennedy denominou “o sucesso<br />
da liberdade”.<br />
Cantell (2007, p. 39, tradução nossa) identifica uma distinção dos<br />
neoconservadores em relação ao interesse nacional. Segundo o autor,<br />
interpretando o postulado neoconservador:<br />
Para uma grande potência, o “interesse nacional” não é, principalmente,<br />
uma condição geográfica como parece ser o caso para Estados<br />
com tamanho limitado. Nações grandes em território têm interesses<br />
mais amplos e, uma vez que suas identidades são ideológicas,<br />
possuem interesses ideológicos associados as suas preocupações<br />
materiais.<br />
Irving Kristol (2005, p. 168, tradução nossa) é claro ao salientar<br />
que, para os neoconservadores, o interesse nacional é alicerçado em<br />
interesses ideológicos e que, por isso, “complicados cálculos geopolíticos<br />
de interesse nacional não são necessários.”<br />
As estratégias de alianças, as ações no sistema internacional e o<br />
comportamento das nações, para os neoconservadores, deveriam ter base<br />
num julgamento moral acerca das condições internas dos Estados, em<br />
especial o seu regime político. Este deveria ser, por consequência, o critério<br />
que definiria o comportamento da potência hegemônica dentro de<br />
um sistema internacional unipolar. Para neoconservadores, o poder que<br />
as grande potências possuem – e o Estado hegemônico tem em abundância<br />
– deve ser usado com o propósito último de exportar o regime<br />
democrático para outros países. Contudo, o próprio exercício da<br />
“hegemonia benevolente” que, em última análise, faz parte do conceito<br />
de interesse nacional para os neoconservadores, requer que as condições<br />
materiais, como número de efetivos militares, armamento e condições<br />
de logística sejam levados em conta. Mas neoconservadores criticam<br />
realistas justamente porque eles não possuiriam a “visão” necessária<br />
– diremos, “messiânica” – para afirmar a democracia no mundo liberal<br />
e unipolar. Por isso é que há uma noção de amoralidade do realismo por<br />
parte dos críticos neoconservadores.<br />
Diferenciar, portanto, um Estado democrático de outro não democrático,<br />
é condição fundamental, segundo os neoconservadores, para<br />
exercitar ou não o interesse nacional a partir, por exemplo, do uso da<br />
força militar. Segundo Fukuyama (2006, p. 114), a importância destinada<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
54<br />
A Crítica Neoconservadora ao Programa de Pesquisa...<br />
ao tipo de regime político pelos neoconservadores reside no fato de que<br />
“[...] as democracias liberais tendem a respeitar os direitos humanos básicos<br />
de seus cidadãos e externamente são menos agressivas do que as<br />
ditaduras.” Dessa percepção nasce o grande objetivo dos<br />
neoconservadores, “[...] libertar os povos da tirania e promover a democracia<br />
em todo o mundo, atingindo os Estados por dentro e moldando<br />
suas instituições básicas.”<br />
Para neoconservadores, intervir militarmente em regimes não democráticos<br />
é um serviço à expansão da democracia, e não um ato que<br />
viola inclusive a soberania dos Estados, já que especialmente a potência<br />
hegemônica teria a missão de estabelecer-se como um remédio à anarquia<br />
do sistema internacional. Krauthammer (2004, tradução nossa) afirma<br />
isso sem meias palavras:<br />
Se alguém invadir sua casa, você chama a polícia. Quem você chama<br />
se alguém invadir seu país? Você liga para Washington. Num<br />
mundo unipolar, a coisa mais próxima de uma autoridade central,<br />
aquela que faz cumprir as normas, é a América – o poder americano.<br />
Por princípio, a escola realista, quando traduzida em doutrinas de<br />
política exterior, não assume a existência de Estados “bons” ou “maus”<br />
na estrutura do sistema internacional, uma vez que o que importa são<br />
suas condições materiais objetivas e o quanto eles podem interferir no<br />
equilíbrio de poder e na sobrevivência de Estados que se sentem ameaçados<br />
por seu poder ou por suas estratégias dentro do sistema.<br />
Neoconservadores professam que essa não-distinção entre as unidades<br />
do sistema é inconcebível, visto que a ideologia e os valores são excluídos<br />
da análise do comportamento dos Estados.<br />
Não é por acaso que, por influência neoconservadora, primeiro<br />
Ronald Reagan criou a pecha de “império do mal” para a União Soviética<br />
e, mais recentemente, George W. Bush cunhou a expressão “eixo do mal”<br />
para identificar Irã, Iraque e Coreia do Norte. Exercitar o poder a partir do<br />
interesse nacional, do ponto de vista neoconservador, significa agir como<br />
que messianicamente contra as não-democracias e a favor da liberdade<br />
para os povos, identificada como o regime democrático procedimental,<br />
tendo como parâmetro o exemplo norte-americano.<br />
Se o realismo carece de ideologia ou de julgamento moral, o<br />
neoconservadorismo superestima qualquer expectativa. Acreditar na força<br />
das ideias e submeter o poder com base em critérios geográficos ao<br />
poder da ideologia é mais uma das grandes diferenças que não conduzem<br />
a uma aproximação fácil do neoconservadorismo com o realismo.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
Cláudio Júnior Damin 55<br />
Entretanto, identificar discordâncias pontuais não significa que possamos<br />
classificar o neoconservadorismo como um programa de investigação científica<br />
das relações internacionais. E, por quê? Porque o<br />
neoconservadorismo é limitado em questões metodológicas e científicas,<br />
o que pode fazer com que as críticas ao realismo possuam pouca<br />
credibilidade científica, tornando-se, no limite, críticas ideológicas e<br />
apologéticas de outra forma de pensamento, de uma ideologia simplesmente.<br />
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: NEOCONSERVADO<strong>RI</strong>SMO<br />
COMO PROGRAMA DE PESQUISA INDEPENDENTE?<br />
Realismo e neoconservadorismo podem ser considerados como<br />
dois programas de investigação científica aos moldes lakatosianos?<br />
Essa é uma questão controversa, passível de discussões prolongadas, e,<br />
neste artigo, pretendeu-se apenas lançar reflexões para estudos posteriores.<br />
A preocupação principal de Imre Lakatos (1978), ao propor a<br />
metodologia dos programas de investigação científica, era estabelecer o<br />
critério que diferencia a ciência da pseudociência. Se para Popper o avanço<br />
do conhecimento e a “boa ciência” era aquela passível de falsificação,<br />
para Lakatos são os programas de investigação científica.<br />
Segundo o autor, cada programa de investigação científica é composto<br />
de um hard core, um núcleo fundamental, que estabelece o axioma<br />
do programa de investigação (ELMAN; ELMAN, 2003, p. 19). É esse núcleo<br />
o responsável pela singularidade de um programa de pesquisa e sua<br />
mudança acarreta modificações importantes para a ciência, com o<br />
surgimento de um novo programa.<br />
Um programa possui um “cinturão protetor de hipóteses auxiliares”,<br />
que pode ser conceituado como proposições que, pelo olhar sobre a<br />
realidade, são testadas e reajustadas. A mudança no “cinturão protetor”,<br />
com a adição de uma nova hipótese de um objeto empírico proporciona a<br />
criação de intraprogramas de investigação. Além disso, segundo Lakatos<br />
(1978, p. 31), há um conjunto de sugestões que resultam no desenvolvimento<br />
de teorias específicas dentro do programa, ou seja, uma “heurística<br />
positiva”, que<br />
“[...] define os problemas, esboça a construção de uma cintura de<br />
hipóteses auxiliares, prevê anomalias e transforma-as vitoriosamente<br />
em exemplos, tudo de acordo com um plano preconcebido.”<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
56<br />
A Crítica Neoconservadora ao Programa de Pesquisa...<br />
Lakatos propugna que os programas de investigação científica<br />
são os mais indicados para a diferenciação entre ciência e não-ciência,<br />
destacando o autor o caráter progressivo ou degenerativo dos programas<br />
científicos. O progresso da ciência seria julgado com base na capacidade<br />
dos programas de prever fatos novos, constituindo, portanto, uma teoria<br />
progressiva. Em sentido oposto, a teoria ou programa que não prevê fatos<br />
novos e que apenas explica os fatos, é considerada por Lakatos (1978)<br />
como uma teoria degenerativa, e o destino dela é ter a influência diminuída<br />
pelos programas progressivos com poder de predição. Disso resulta<br />
que, para o autor, as revoluções científicas ocorrem quando há a substituição<br />
de um programa que se tornou degenerativo por outro que prediz<br />
fatos novos.<br />
Lakatos escreveu especialmente a respeito das revoluções científicas<br />
das ciências naturais, não das ciências humanas. Segundo Elman e<br />
Elman (2003a, p. 45, tradução nossa): “Lakatos certamente não foi um fã<br />
das ciências sociais.”<br />
Há, nesse sentido, muitas críticas acerca da aplicação da<br />
metodologia de Lakatos às Relações Internacionais. Dessler (2003, p.<br />
383, tradução nossa), por exemplo, realiza três críticas pontuais à<br />
metodologia lakatosiana. Em primeiro lugar, ao escrever, por exemplo,<br />
sobre “núcleo fundamental”, “heurística positiva”, cinturão protetor”, Lakatos<br />
caracteriza esses elementos de forma geral, mas “[...] ele não oferece<br />
nenhuma orientação sobre o processo pelo qual um analista pode de forma<br />
não arbitrária definir um programa de pesquisa particular.” A segunda<br />
crítica está centrada no fato de que a discussão acerca da predição de<br />
“fatos novos”, a condição para o caráter progressivo do programa de pesquisa,<br />
seria minado de “ambiguidades e inconsistências”, ou seja, seria<br />
necessária uma definição mais clara sobre o que se pode definir como<br />
um “fato novo”.<br />
E a última crítica de Dessler afirma que Lakatos possui um “preconceito<br />
seletivo” nos aspectos científicos utilizados para formular a<br />
metodologia dos programas de investigação. Segundo o crítico, a investigação<br />
científica possui duas dimensões: a teórica e a histórica. O preconceito<br />
de Lakatos está em utilizar apenas o lado teórico da investigação,<br />
ignorando os aspectos históricos.<br />
Já Schweller (2003, p. 313-314) não acredita que Lakatos possa<br />
ser aplicado às Relações Internacionais e identifica quatro principais insuficiências<br />
da metodologia lakatosiana: a) há pouco consenso acerca<br />
das causas dos fatos nas Relações Internacionais, inclusive dentro dos<br />
programas de pesquisa; b) há discordâncias sobre o que constitui um<br />
programa de pesquisa de Relações Internacionais; c) há dúvidas sobre o<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
Cláudio Júnior Damin 57<br />
que pode ser ou não ser considerado como um “fato novo” na teoria de<br />
relações internacionais; d) como decidir se um programa é progressivo<br />
ou degenerativo e qual o ator ou estrutura que decide isso.<br />
A despeito das críticas à metodologia lakatosiana, acreditamos que<br />
ela pode ser aplicada às Relações Internacionais, mesmo que possua<br />
algumas dificuldades. Neste artigo, houve um esforço no sentido de estabelecer<br />
o hard core do realismo e, aos moldes lakatosianos, conceitualizálo<br />
como um programa de investigação científica. Vimos que o programa<br />
de pesquisa realista deu origem a outros programas de pesquisa dentro<br />
do programa realista e a variantes como o neorrealismo, o realismo<br />
neoclássico, além de outros programas de pesquisa.<br />
O artigo destacou que há contradições significativas entre<br />
neoconservadorismo e realismo, as quais acabam afastando o primeiro<br />
do segundo. Logo, é preciso saber se essas diferenças podem produzir<br />
um novo programa de pesquisa nas Relações Internacionais, com núcleo<br />
fundamental bem definido e com pretensões de prever fatos novos.<br />
Exercitando, poderíamos visualizar o hard core neoconservador<br />
aplicado às Relações Internacionais como a crença na unipolaridade e<br />
“hegemonia benevolente”, ênfase na competição ideológica e inserção<br />
da moralidade e da ideologia na conceituação de interesse nacional. Além<br />
disso, afirma-se que o neoconservadorismo, com base nos escritos de<br />
seus intelectuais, talvez não tenha previsto a pretensa ameaça existencial<br />
do terrorismo religioso fundamentalista conjugado com os rogue states<br />
e armas de destruição em massa, porém, de certo modo, criado tal ameaça<br />
com sua maximização desmesurada, construindo, assim, uma profecia<br />
autocumprida. O exercício é de difícil equacionamento analítico, pois<br />
não temos elementos mais sólidos para crer no neoconservadorismo como<br />
um programa de pesquisa científica.<br />
O neoconservadorismo, conforme qualificado no início deste artigo,<br />
não é uma teoria, mas uma ideologia que inicialmente tratou das questões<br />
sociais morais dos Estados Unidos e que, nos anos 80, a partir de<br />
Reagan, ganhou projeção na área da política externa. Irving Kristol, por<br />
exemplo, não possui um livro específico que trata de uma “política externa<br />
neoconservadora”; aliás, seus livros são compilações de artigos escritos<br />
em revistas e jornais. E essa parece ser uma escolha dos escritores<br />
neoconservadores, ou seja, escrever para a massa com linguagem acessível,<br />
textos curtos e em periódicos de grande penetração nos Estados<br />
Unidos.<br />
As dificuldades de empregar o termo “programa de investigação<br />
científica” ao neoconservadorismo residem mais em questões materiais<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
58<br />
A Crítica Neoconservadora ao Programa de Pesquisa...<br />
não resolvidas do que propriamente na capacidade cognitiva de seus<br />
autores. Mesmo que muitos dos autores neoconservadores tenham formação<br />
acadêmica, seus artigos, por vezes, carecem de uma metodologia<br />
mais científica, inclusive respeitando as premissas básicas daquilo que<br />
conceituamos ciência. Seus artigos são defesas de um ponto de vista, de<br />
uma ideologia, e não há um livro ou um autor que tenha sistematizado o<br />
corolário neoconservador para as relações internacionais.<br />
Há, também, um problema de duração do neoconservadorismo. O<br />
tempo pode fazer surgir um intelectual que, observando o rigor científico,<br />
acabe reunindo o conhecimento já produzido acerca dos postulados<br />
neoconservadores e produza uma tese que unifique e defenda o<br />
neoconservadorismo como mais um programa de investigação científica<br />
nas Relações Internacionais, desvinculado do realismo. Há, no entanto,<br />
que se refletir se o caráter ideológico do neoconservadorismo não pode<br />
acabar prejudicando a construção de uma “teoria neoconservadora”. Cabe<br />
salientar que ideologias costumam tornar-se objetos de estudo e que, no<br />
caso da ideologia marxista e liberal, mostraram seu potencial científico.<br />
Charles Krauthammer (2004a), um dos maiores expoentes do<br />
neoconservadorismo dos anos 90, na década seguinte acabou desdenhando<br />
o caráter universalista democrático dos neoconservadores e iniciou<br />
a defesa do “realismo democrático”, que propõe intervir onde é estrategicamente<br />
interessante para a potência hegemônica. Um caso mais<br />
emblemático de deserção é o de Francis Fukuyama (2006), que rompeu<br />
com o neoconservadorismo para defender o “wilsonianismo realista”, destinando<br />
maior importância à diplomacia e criticando a pretensa ameaça<br />
existencial do fundamentalismo islâmico. Depois dessas situações intelectuais,<br />
fica a questão a seguir.<br />
Na verdade, o neoconservadorismo não seria uma anomalia do<br />
programa de pesquisa realista? Ou a própria degeneração do programa<br />
realista?<br />
Note-se que tanto Krauthammer quanto Fukuyama, ao tentar um<br />
afastamento da ideologia neoconservadora, recorrem ao “realismo” para<br />
sustentar suas visões especiais. E os dois rompem – Fukuyama numa<br />
intensidade bem maior – com a noção de “hegemonia benevolente”, central<br />
para o neoconservadorismo.<br />
Nesse sentido, permanece a questão: haveria condições da consolidação<br />
do neoconservadorismo como um programa de pesquisa ou as<br />
defecções de seus autores acabarão levando-os aos braços do programa<br />
realista e seus cinturões protetores.<br />
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Cláudio Júnior Damin 59<br />
Não há, por hora, uma resposta satisfatória para isso, e o que<br />
concluímos é que o neoconservadorismo, mesmo que tenha discordâncias<br />
em relação à teoria realista, não pode ser considerado nem como teoria<br />
nem como programa de investigação científica.<br />
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Recebido em: junho de <strong>2009</strong>.<br />
Aprovado em: agosto de <strong>2009</strong>.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 33-62, <strong>2009</strong>-2.
Marcelo M. Valença 63<br />
O TRATAMENTO DE<br />
FATORES ECONÔMICOS<br />
PELAS TEO<strong>RI</strong>AS DE<br />
SEGURANÇA INTERNACIONAL:<br />
UMA DISCUSSÃO SOBRE<br />
POSSIBILIDADES<br />
MARCELO M. VALENÇA<br />
____________________________________________________________<br />
Doutorando em Relações Internacionais (PUC-Rio),<br />
Mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio,<br />
Coordenador do Grupo de Trabalho sobre Paz e Segurança Regional<br />
do Grupo de Análise de Prevenção de Conflitos Internacionais<br />
(GAPCon)<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
64<br />
O Tratamento de Fatores Econômicos pelas Teorias de Segurança...<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
Marcelo M. Valença 65<br />
RESUMO<br />
O artigo analisa o tratamento de fatores econômicos nos debates teóricos<br />
de segurança internacional, levantando as possibilidades de diálogo entre<br />
essas teorias, a prática nas relações internacionais e o impacto desses<br />
fatores. Explorando a ideia de que fatores econômicos são necessários<br />
na própria realização das proposições teóricas do campo da segurança<br />
internacional, percebe-se que a possibilidade de trabalhar com fatores<br />
econômicos neste debate exige a politização do próprio conceito de<br />
segurança, para identificá-lo como um processo relacional, contínuo e<br />
em constante revisão.<br />
Palavras-chave: segurança internacional, fatores econômicos, teorias de<br />
Relações Internacionais.<br />
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66<br />
O Tratamento de Fatores Econômicos pelas Teorias de Segurança...<br />
ABSTRACT<br />
This article discusses the impacts of economical factors on the theoretical<br />
debates of International Security, in order to verify the possibilities of dialogue<br />
between this area of research and these factors. By proposing that<br />
economical factors are necessary elements to the fulfillment of the<br />
propositions of security studies theories, the article concludes that the<br />
concept of security should be gain a political dimension. In that fashion,<br />
this concept should be treated as a relational process, dynamic and<br />
constantly revised, in order to maintain its relevance.<br />
Keywords: international security, economical factors, theories of<br />
International Relations.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
Marcelo M. Valença 67<br />
1 INTRODUÇÃO<br />
Este trabalho tem como objetivo perceber o tratamento de fatores<br />
econômicos nos debates de segurança internacional, inquirindo as possibilidades<br />
de diálogo e influência daqueles nestes. Para perceber essa<br />
conexão, exploraremos a hipótese de que fatores econômicos, ainda que<br />
marginalizados no debate de segurança internacional, oferecem a possibilidade<br />
de realização das teorias desse campo, proporcionando as condições<br />
nas quais a definição de segurança é concebida pela conexão<br />
estabelecida entre economia e política. Teorias tradicionais vão explorar<br />
fatores econômicos, à medida que tais fatores colaborem para assegurar<br />
a capacidade e legitimidade do Estado de agir, privilegiando a política em<br />
detrimento da economia; os liberais romperão com a submissão da economia<br />
à política, mostrando os efeitos daquela nesta; teorias críticas, por<br />
sua vez, tomarão os fatores econômicos como parte integrante da proposta<br />
emancipatória que sugerem.<br />
Nossa pesquisa se baseia na proposta de que teorias de segurança<br />
internacional andam de mãos dadas com teorias de Relações Internacionais<br />
(<strong>RI</strong>), recebendo influência direta dos avanços e debates da área.<br />
Nosso argumento se divide em três partes. Na seção 2, exploraremos<br />
brevemente a polêmica em torno do conceito de segurança, especialmente<br />
a partir da década de 1990. Isso nos permitirá analisar o debate<br />
entre três grupos de estudos 1 de segurança: tradicionalistas,<br />
ampliacionistas – divididos em liberais e a Escola de Copenhague – e os<br />
estudos críticos de segurança 2 , que exploraremos na seção 3. Na seção<br />
4, apresentaremos nossa conclusão.<br />
Faz-se necessário, antes de entrarmos em nosso argumento, traçar<br />
a distinção que este trabalho faz entre fatores econômicos e segurança<br />
econômica. Não entendemos as duas expressões como sinônimas,<br />
mas como elementos distintos, porém complementares, que permitem a<br />
estabilização de um determinado sistema. Enquanto a segurança econômica<br />
se volta para a manutenção de um sistema, internacional ou domés-<br />
1 TANNO, Grace. A contribuição da Escola de Copenhague aos estudos de segurança<br />
internacional. In: Contexto Internacional n. 25, v. 1, p. 47-80, 2003.<br />
2 Steve Smith aponta uma série de divisões teóricas nos estudos de segurança, ressaltando<br />
as contribuições pós-modernas, feminista, construtivista e de outras posições críticas.<br />
Acreditamos, entretanto, que essas posições possam ser alocadas dentro da divisão<br />
tripartite sugerida. SMITH, Steve. The contested concept of security. In: BOOTH,<br />
Ken. (Ed.). Critical security studies and world politics. Londres: L. Rienner, 2005. p. 27-<br />
62.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
68<br />
O Tratamento de Fatores Econômicos pelas Teorias de Segurança...<br />
tico, os fatores econômicos são variáveis, de origem doméstica ou internacional,<br />
e permitem explorar impactos econômicos na esfera política.<br />
2 CONCEITO DE SEGURANÇA<br />
O conceito de segurança é tido como de difícil estabelecimento<br />
pelas características que assume. Steve Smith, ao afirmar que qualquer<br />
conceito de segurança assume valores normativos por se prender a uma<br />
teoria 3 , dialoga com McSweeney, para quem o termo assume proporções<br />
morais que impedem sua conceituação objetiva. 4 Haftendorn crê que não<br />
haja um consenso quanto ao que é segurança, impedindo sua concepção<br />
e a definição das perguntas de pesquisa relevantes para a área 5 , corroborando<br />
Buzan que afirma que o conceito, ainda que muito debatido, é pouco<br />
desenvolvido, porque é um conceito derivado que em si mesmo não<br />
apresenta significado e pressupõe algo a ser segurado ou porque o resultado<br />
dos debates recairia sobre questões empíricas, não conceituais 6 .<br />
Baldwin concorda que o termo é complexo, não por causa de suas múltiplas<br />
possibilidades, mas porque justamente é visto como vago e relacional,<br />
criticando Buzan 7 . Essa polêmica mostra que o analista deve ter consciência<br />
do que é seu objeto de estudo para evitar questionar a própria disciplina,<br />
uma vez que a indeterminação levaria à imprecisão teórica.<br />
O medo de imprecisão conceitual e deterioração teórica basearam<br />
os estudos tradicionais de segurança, que buscavam proporcionar<br />
um caráter científico à disciplina 8 . Durante a Guerra Fria, os estudos de<br />
segurança tiveram como objeto exclusivamente aspectos militares, pois<br />
era mais fácil apontar consenso e atrair as atenções para ameaças vindas<br />
de fora, reais ou imaginárias e que deveriam ser combatidas com o<br />
uso da força, refletindo a prática política norte-americana, exportadas essas<br />
3 Ibid., p. 28.<br />
4 MCSWEENEY, Bill. Security, identity and interests: sociology of international relations,<br />
New York: Cambridge University, 1999. p. 83.<br />
5 HAFTENDORN, Helga. The security puzzle: theory building and discipline-building in<br />
international security. International Studies Quarterly, n. 35, p. 3-17, 1991.<br />
6 BUZAN, Barry. People, states and fear: an agenda for international securities in the<br />
post-cold war era. Londres: Harvester Wheatsheaf, 1981.<br />
7 BALDWIN, David A. The concept of security. Review of International Studies, n. 23,<br />
p. 5-26, 1997.<br />
8 WALT, Stephen. The renaissance of security studies. International Security Quarterly,<br />
v. 35, n. 2, p. 211-239, 1991.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
Marcelo M. Valença 69<br />
diretrizes para outros países 9 e consolidando essa forma de pensar, mesmo<br />
depois do fim desse “conflito”. Ademais, os conceitos de segurança<br />
remetiam constantemente à “segurança nacional” <strong>10</strong> , associando a garantia<br />
de segurança do Estado como elemento necessário para a preservação<br />
da comunidade política dentro dele. 11<br />
Uma das primeiras tentativas de expansão do conceito veio por<br />
Richard Ullman, que sugeria que as necessidades do ator deveriam ser<br />
consideradas na definição de segurança. Ullman busca superar as limitações<br />
da prática política norte-americana, mas esbarra na dificuldade de<br />
conceber segurança de maneira precisa e coerente. Contudo, seu esforço<br />
permitiu que novas ameaças surgissem nas agendas políticas, ainda<br />
que de forma difusa.<br />
Diante dos questionamentos à visão militarista, Stephen Walt realizou<br />
um estudo defendendo que a perspectiva tradicional de segurança<br />
se mostrava adequada e englobava, coerente e cientificamente, as ameaças<br />
relevantes para a política e academia. Ele relaciona o objeto de<br />
estudo da segurança ao fenômeno da guerra e à prática do statecraft 12 ,<br />
refletindo a imagem realista predominante na política internacional. Sua<br />
perspectiva busca variáveis manipuláveis, compatíveis com a ideia de<br />
Estado unitário, egoísta e autointeressado em sua sobrevivência na política<br />
internacional. Essa delimitação no escopo da segurança exclui elementos<br />
políticos de natureza não militar como meio ambiente, saúde e<br />
pobreza, sob a alegação de que essa ampliação excessiva do campo<br />
levaria à destruição da coerência intelectual da área e dificultaria a busca<br />
por soluções para a sobrevivência estatal. Entretanto, Walt não nega importância<br />
a essas questões, pois apenas o poder militar não garantiria o<br />
bem-estar. Esses “problemas” deveriam ser tratados por outras áreas do<br />
conhecimento, pois não ameaçariam a sobrevivência do Estado.<br />
A lógica de Walt se sustenta na lógica realista, já que seu argumento<br />
segue uma progressão linear que pretende gerar uma forma de<br />
conhecimento além do tempo e da história, buscando leis causais objetivas<br />
que governam o fenômeno humano, garantindo uma definição mais<br />
pragmática e preocupada com a coerência na delimitação do conceito.<br />
Posição semelhante assume David Baldwin, que se preocupa em enten-<br />
<strong>10</strong> BUZAN, 1981, p. 81.<br />
11 Alan Collins (2007, p. 3) apresenta uma série de conceitos que reforçam essa posição.<br />
12 WALT, op. cit., p. 212.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
70<br />
O Tratamento de Fatores Econômicos pelas Teorias de Segurança...<br />
der segurança dentro de um conceito coerente que possa ser teorizado e<br />
aplicado. 13<br />
Concordando com Walt, Baldwin sugere o foco nos custos políticos<br />
empregados pelo Estado para atingir sua sobrevivência, separandoa<br />
da ideia de elemento vital: por tornar a definição excessivamente ampla<br />
e imprecisa, Baldwin opta por analisar custos, percebendo o quanto a<br />
sobrevivência afetaria as capacidades dos Estados na arena internacional.<br />
Ambos veem a segurança como ligada à capacidades do Estado,<br />
logo elementos que não garantissem os interesses estatais não poderiam<br />
ser tomados como segurança. Para ele, a crítica ampliacionista estaria<br />
mais preocupada em expandir o campo de atuação da segurança do que<br />
explorar a ampliação do conceito. 14<br />
A proposta de ampliação da segurança veio acompanhada não<br />
apenas das mudanças na política internacional, mas também dos debates<br />
teóricos de <strong>RI</strong> 15 . Apesar de o debate crítico ter chegado a <strong>RI</strong> durante<br />
a década de 80, essa teoria se aproximaria dos estudos de segurança na<br />
década seguinte. Mas contribuições como a de Ullman e Buzan permitiram<br />
o início das discussões nos mesmos termos realista e estadocêntrico<br />
dos tradicionalistas.<br />
Ullman trouxe um novo conjunto de ameaças para os estudos de<br />
segurança, porém sua contribuição pecou por uma ampliação de temas<br />
relacionados aos aspectos militares 16 , mas o impulso inicial fora dado e,<br />
com ele, uma série de proposições surgiria, buscando rever não só o<br />
conceito de segurança, como seus atores e a área de atuação. E, na<br />
esteira dessa revisão conceitual, novas ameaças passariam a entrar na<br />
definição de segurança, à medida que <strong>RI</strong> e estudos de segurança passavam<br />
a dialogar.<br />
A posição tradicional, associada à obra de Walt, se tornou alvo<br />
das críticas dos ampliacionistas. Se os tradicionalistas viam a segurança<br />
como uma propriedade dos objetos, as críticas demandavam o reconhecimento<br />
de que a segurança exigia uma perspectiva política, pois definir<br />
ameaça ao agente é tarefa contínua e dinâmica, não algo congelado no<br />
tempo e replicado indefinidamente. Diferentemente da visão tradicional,<br />
que separa a política doméstica da internacional, os ampliacionistas de-<br />
13 BALDWIN, op. cit., p. 6-7.<br />
14 Ibid., p. 5.<br />
15 TANNO, op. cit., p. 71.<br />
16 SHEEHAN, Michael. International Security: an analytical survey. Londres: Lynne Rienner,<br />
2005. p. 46.<br />
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Marcelo M. Valença 71<br />
fendem que doméstico e internacional não podem ser facilmente separados,<br />
pois definir como ou o que proteger é tarefa essencialmente política<br />
17 . Críticas semelhantes a essas surgiam às teorias mainstream de <strong>RI</strong>,<br />
questionando as premissas realistas e propondo novos rumos para a disciplina.<br />
18<br />
Barry Buzan foi particularmente importante para essa crítica, por<br />
sistematizar de maneira coerente setores de análise diferentes que não<br />
poderiam ser considerados isoladamente em relação aos demais, evidenciando<br />
a inter-relação e a sobreposição de áreas antes ignoradas. Se<br />
os teóricos de segurança inclinados para uma perspectiva realista consideravam<br />
a capacidade dos Estados como essenciais para a segurança, a<br />
análise setorial proporcionava claras linhas de ação para se entender não<br />
só que capacidades eram essas, mas também seus impactos em escalas<br />
diferentes em várias áreas das sociedades.<br />
No que tange aos atores envolvidos, críticas liberais e pós-modernas<br />
em <strong>RI</strong> ao Estado como ator central contribuíram decisivamente para<br />
a discussão sobre ampliação do conceito de segurança, visto que não<br />
mais apenas a perpetuação do Estado estava na agenda política: movimentos<br />
nacionalistas começavam a ganhar corpo na política internacional<br />
e chamar a atenção dos policymakers 19 . Quanto aos temas que deveriam<br />
ser segurados, a interdependência proporcionada pelos processos<br />
de globalização fazia com que questões nacionais não pudessem ser separadas<br />
de discussões regionais e globais, aumentando a proximidade<br />
entre os processos decisórios em Estado e os impactos noutro 20 . Indivíduos<br />
e comunidades não estatais passaram a ser considerados na análise<br />
de segurança, trazendo novas questões ao debate. Não era mais suficiente<br />
pensar apenas em fenômenos militares, nem tampouco o paradigma<br />
realista se mostrava capaz de suportar essas mudanças.<br />
17 FIERKE, K. M. Critical approaches to international security. Cambridge: Polity Press,<br />
2007. p. 13.<br />
18 Uma dessas críticas pode ser encontrada em Rob Walker, que questiona as fronteiras<br />
entre o estudo do doméstico e do internacional e a separação das áreas de Ciência<br />
Política e Relações Internacionais como campos distintos, em razão do local onde a<br />
política se encontraria. Para ele, tal separação não deveria existir, sugestão que pode<br />
ser apreendida do próprio título de seu livro. Ver WALKER, R. B. J. Inside/outside:<br />
international relations as political theory. Cambridge: Cambridge University, 1993.<br />
19 Sobre o tema, ver MCWILLIAMS, Wayne C.; PIOTROWSKI, Harry. The world since<br />
1945: a history of international relations. Londres: Lynne Rienner, 2005. p. 496-502.<br />
20 BUZAN, Barry; WÆVER, Ole. Regions and powers: the structure of international security.<br />
Cambridge: Cambridge University, 2004.<br />
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72<br />
O Tratamento de Fatores Econômicos pelas Teorias de Segurança...<br />
A articulação de novas ameaças a novos atores requeria, portanto,<br />
um novo referencial teórico e não um alargamento do mainstream 21 . O<br />
debate fazia o conceito de segurança transitar entre os níveis individual,<br />
estatal e internacional, que influenciariam o debate na área e a maneira<br />
como a política e seus componentes atuavam sobre os atores, ao mesmo<br />
tempo em que um debate de mesma natureza afetava o campo de <strong>RI</strong>.<br />
3 REVISÃO DOS ESTUDOS DE SEGURANÇA: PERCEBENDO O<br />
TRATAMENTO DE FATORES ECONÔMICOS.<br />
Apesar das propostas de Ullman e Buzan nos anos 1980, foi na<br />
década seguinte que houve o aumento nas propostas ampliacionistas impulsionadas<br />
pela revisão de literatura e fechamento do campo de estudos<br />
de segurança feitos por Walt. Ainda contribuíram as mudanças políticas e<br />
os debates teóricos na área de <strong>RI</strong>, que questionavam a predominância<br />
realista na disciplina e a separação entre o doméstico e o internacional,<br />
bem como a posição central assumida pelo Estado nas teorias que eram<br />
construídas. Revisaremos aqui alguns dos debates sobre segurança que<br />
se apresentaram nas últimas três décadas. Para organizar nosso argumento,<br />
utilizaremos a classificação tripartite de tradicionalistas,<br />
ampliacionistas e críticos 22 , que nos oferece, em linhas gerais, o status do<br />
debate sobre segurança nas últimas décadas 23 .<br />
Visando responder à pergunta proposta no início deste trabalho,<br />
apresentaremos o argumento central trazido por essas posições e como<br />
este se relacionaria com o tratamento de fatores econômicos. Em 3.1<br />
trabalharemos com o debate tradicionalista. O debate ampliacionista foi<br />
dividido em duas partes, ainda que ambas sejam críticas do tradicionalismo.<br />
Em 3.2 abordaremos as esferas liberal e da escola de Copenhague do<br />
ampliacionismo, dado que esses grupos realizam suas críticas dentro da<br />
possibilidade do Estado. A seção 3.3 discutirá os estudos críticos de segurança,<br />
os quais defendem a ideia de emancipação e segurança huma-<br />
21 WALKER, Rob. The subject of security. In: KRAUSE, K.; WILLIAMS, M. C. (Orgs.). Critical<br />
security studies, Minnesota: Minnesota University, 1997. p. 61-81.<br />
22 TANNO, op. Cit., p. 50.<br />
23 Steve Smith (2005) aponta uma série de divisões teóricas nos estudos de segurança,<br />
ressaltando as contribuições pós-moderna, feminista, construtivista e de outras posições<br />
críticas. Acreditamos, entretanto, que essas posições possam ser alocadas dentro<br />
da divisão tripartite sugerida.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
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na, pensando na ampliação para além do Estado. Buscando associar essas<br />
posições com os debates teóricos em <strong>RI</strong>, mostraremos que o tratamento<br />
dispensado a questões econômicas por esses debates consiste na realização<br />
de suas propostas teóricas.<br />
3.1 POSIÇÃO TRADICIONALISTA<br />
O tradicionalismo é comumente sintetizado na revisão de literatura<br />
promovida por Stephen Walt 24 , que buscou apontar os méritos de uma<br />
análise de segurança baseada em pressupostos neorrealista para explicar<br />
o campo. Segundo ele, mesmo a incapacidade dessa teoria de prever<br />
o fim da guerra fria não afetaria o poder explicativo de sua análise.<br />
A lógica tradicional de segurança define o objeto e o ator de referência<br />
da segurança de modo preciso. Os estudos de segurança se concentram<br />
no estudo da ameaça, uso e controle da força militar, e o poder<br />
militar constitui a fonte mais séria, mas não a única, da segurança, incluindo<br />
o statecraft, i.e., o controle de armamentos, diplomacia e administração<br />
de crises, estabelecendo uma relação direta com a probabilidade e<br />
caráter da guerra 25 . Estudos de segurança consistiriam nas práticas políticas<br />
dos Estados para se prevenir, preparar ou entrar em guerra, analisando<br />
as condições nas quais o uso da força se torna provável e como<br />
esse uso afetaria indivíduos, Estados e sociedades: whether a state<br />
survives or not depends on its capacity to perform the security roles that it<br />
alone can execute 26 . Fenômenos não militares não seriam considerados<br />
na concepção de segurança, sendo tratados, quando o caso, por teorias<br />
de guerra e paz.<br />
Em função da natureza das ameaças, o estudo da segurança não<br />
comportaria sua ampliação para outros atores, tampouco outros setores<br />
de atuação 27 . Encaixando-se confortavelmente no paradigma realista, os<br />
tradicionalistas buscam nessa tradição os pressupostos que guiariam sua<br />
linha de pesquisa, mantendo sua coerência intelectual.<br />
24 WALT, op. cit.<br />
25 Ibid., p. 222<br />
26 KOLODZIEJ, Edward. Security and international relations. Cambridge: Cambridge<br />
University, 2005. p. 129.<br />
27 “The material capacity of a state constitutes its ability to decisively influence not only the<br />
behavior of other states but the system or balance of power prevailing between states<br />
itself. Other forms of power or influence, including scientific, technological, and economical<br />
power, are viewed as subordinated to, and in the service of, the use or threat of force.”<br />
(KOLODZIEJ, 2005, p. 129-130, grifo nosso).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
74<br />
O Tratamento de Fatores Econômicos pelas Teorias de Segurança...<br />
No realismo, o Estado é encarado como ator central nas relações<br />
internacionais. Com a separação entre as esferas doméstica e internacional,<br />
a política ocorre apenas dentro do Estado, enquanto, fora dele, haveria<br />
apenas relações de poder baseadas no uso da força 28 . Nessa lógica<br />
hobbesiana, a relação entre Estados dar-se-ia, assim, por meio da guerra,<br />
que ameaçaria a existência dos Estados e faria com que esses buscassem<br />
sua sobrevivência de maneira autointeressada e egoísta 29 . A permanência<br />
do Estado no cenário internacional está vinculada à sua capacidade<br />
de se impor aos demais, donde decorreria a ideia de que a segurança<br />
é intimamente conectada ao desenvolvimento de condições que<br />
aumentem suas capacidades sobre os demais e/ou impeçam que os adversários<br />
cresçam e modifiquem a distribuição de capacidades no sistema:<br />
a state’s effective power is ultimately a function of its military forces<br />
and how they compare with the military forces of rival states. 30<br />
Diante disso, como se dá o tratamento de fatores econômicos pelas<br />
teorias tradicionais de segurança?<br />
A lógica que guiará essa abordagem é a manifestada por Walt,<br />
imbuída no pensamento neorrealista e que prevê o Estado agindo de<br />
maneira a garantir sua posição no sistema internacional. O Estado é visto<br />
como um ator unitário assemelhado a uma bola de bilhar, e os fatores<br />
domésticos não são levados em consideração para sua atuação internacional.<br />
Com isso, o impacto de atores domésticos na construção do conceito<br />
de segurança é eliminado, visto que sua participação no plano internacional<br />
é irrelevante.<br />
A questão a se levantar é: sob que aspectos os fatores econômicos<br />
podem ser considerados para o desenvolvimento das capacidades<br />
do Estado?<br />
Justamente por serem os Estados iguais funcionalmente,<br />
desconsidera-se a análise de elementos de ordem doméstica. Torna-se<br />
coerente afirmar que problemas de bem-estar não fazem parte da agenda<br />
de segurança porque não contribuem para as capacidades do Estado.<br />
A variável mais importante de análise no realismo é o poder, representado<br />
pela força ou capacidades militares. John Mearsheimer acrescenta<br />
que a capacidade de um Estado reflete a dimensão demográfica e<br />
28 WIGHT, Martin. A política do poder. Brasília: Ed. da UnB, 2002. p. 1.<br />
29 KOLODZIEJ, 2005, p. 135<br />
30 MEARSHEIMER, John J. The tragedy of great power politics. New York: W. W. Norton,<br />
2001. p. 55.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
Marcelo M. Valença 75<br />
a dimensão econômica (grifo nosso) do poder 31 . Fatores econômicos só<br />
seriam considerados relevantes pelos estudos de segurança, uma vez<br />
que afetem o desempenho do Estado em sua capacidade de usar a força<br />
militar ou caso se tornasse uma razão em potencial para os conflitos internacionais<br />
ou, ainda, diminuísse as possibilidades de conflito diante de<br />
sanções econômicas aplicadas na esfera diplomática. Logo, Walt reconhece<br />
que questões econômicas podem importar desde que afetem o<br />
desempenho militar do Estado 32 :<br />
[…] wealth is important because a state cannot build a powerful military<br />
if it does not have the money and technology to equip, train, and<br />
continually modernize its fighting forces. 33<br />
A junção entre segurança e economia se daria, apenas e tão somente,<br />
quando esta penetrasse no campo da guerra e das políticas estatais<br />
para lidar com esse fenômeno, visto que afetaria a habilidade do Estado<br />
de se valer da força ou de exercer seu poder de coerção por meio de<br />
vias diplomáticas. Quanto maior o desenvolvimento econômico de um<br />
Estado maiores são suas capacidades de mobilização para a guerra. 34<br />
Em suma, fatores econômicos serão abordados pelas teorias tradicionais<br />
de segurança, uma vez que importem para potencializar as capacidades<br />
do Estado perante os demais, influenciando a escolha de políticas<br />
a serem seguidas. Há a submissão da economia à política, logo<br />
fatores econômicos serão meramente instrumentos que conduzirão ao<br />
aumento das capacidades de um Estado. Em qualquer outro caso, como<br />
para o bem-estar de sua população, tratar-se-á de outro tema, mas não<br />
segurança: o paradigma realista não se preocupa com elementos domésticos<br />
para a condução da política internacional, logo tampouco as teorias<br />
tradicionais de segurança.<br />
31 Ibid., p. 61.<br />
32 WALT, op cit., p. 229.<br />
33 MEARSHEIMER, op.cit., p. 61<br />
34 O que corresponde ao que Kaldor descreve como economia centralizada de guerra: os<br />
esforços econômicos são destinados para o aumento da capacidade do Estado perante<br />
seus adversários e têm como objetivo maior a produção de uma força maciça que possibilite<br />
a vitória militar e a consequente superação do estado de guerra. Ver KALDOR,<br />
Mary. New & old wars: organized violence in a global era. Stanford: Stanford University.<br />
2001, p. 90-91.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
76<br />
O Tratamento de Fatores Econômicos pelas Teorias de Segurança...<br />
3.2 DEBATE AMPLIACIONISTA<br />
A posição ampliacionista é marcada por uma variedade grande de<br />
autores e tendências, todos críticos ao tradicionalismo, que sugerem –<br />
cada qual a seu modo – a dilatação do conceito de segurança, de sua<br />
agenda de pesquisa e dos sujeitos envolvidos 35 . Esse movimento busca<br />
– em maior ou menor extensão – romper com a dominância política e<br />
intelectual do realismo nos estudos de segurança, questionando para o<br />
que e a quem o conceito de segurança aponta. Perguntas como o que é<br />
segurança, como estudá-la e qual seu objeto devem ser feitas pelas teorias.<br />
No ampliacionsimo, separamos três grandes grupos.<br />
O primeiro, de inspiração liberal, promove a ampliação dos estudos<br />
de segurança com a inclusão de elementos de ordem social, quebrando<br />
o ente estatal e mostrando que este é formado por diferentes grupos,<br />
com interesses distintos, que promoveriam pressões para atingir seus<br />
objetivos. Dessa maneira, a segurança decorreria da estabilização das<br />
relações socioeconômicas dentro e fora do Estado.<br />
A segunda corrente é formada pelos teóricos da escola de Copenhague<br />
(EC) 36 . Liderada por Barry Buzan e Ole Wæver, a EC lida com as<br />
dinâmicas sociais da política mundial e com as formas nas quais a segurança<br />
é percebida por meio do significado e da natureza das práticas de<br />
segurança. A ampliação de seus domínios permitiria que outras áreas –<br />
os setores – fossem explorados, além da tradicional segurança militar.<br />
Esses setores seriam interligados e sobrepor-se-iam uns aos outros, com<br />
prioridade variável conforme a ameaça promovida. O objetivo da EC é<br />
desenvolver uma abordagem abrangente para os estudos de segurança<br />
a partir da inclusão, ou não, de novos temas de forma coerente, levando<br />
a sério as críticas levantadas por Walt.<br />
O terceiro grupo é formado pelos estudos críticos de segurança,<br />
que assumem posições pós-positivistas 37 no debate teórico de <strong>RI</strong> e bus-<br />
35 Cabe ressaltar que a expressão “críticos” tem duplo significado: o primeiro é o de teóricos<br />
críticos ao realismo; o segundo, do conjunto de pensadores de teoria crítica que<br />
buscam a emancipação humana (WILLIAMS, Paul. Critical security studies. In: BELLAMY,<br />
Alex (Ed.). International society and its critics. Oxford: Oxford University, 2005. p. 135-<br />
150.<br />
36 O nome é atribuído em razão do Centro de Pesquisas para a Paz, de Copenhague.<br />
37 Utilizando o termo proposto por Lapid (1989), entendemos como estudos críticos de<br />
segurança a corrente apontada por Steve Smith, que reúne diferentes correntes teóricas<br />
insatisfeitas com os padrões tradicionais de se pensar segurança e que buscam uma<br />
nova agenda para o campo (SMITH, 2005, p. 41).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
Marcelo M. Valença 77<br />
cam a ruptura com os padrões tradicionais de política, questionando seu<br />
lócus e buscando alternativas para os problemas de exclusão produzidos<br />
pela modernidade, especialmente quanto à emancipação. Os estudos<br />
críticos consideram a visão tradicional como pertencente aos estudos<br />
de segurança, compondo uma subárea, os estudos estratégicos 38 .<br />
A coerência buscada por Walt se encontraria satisfeita naquela categoria,<br />
visto que a mudança de estudos estratégicos para estudos de segurança<br />
conduz à expansão de categorias e áreas de análise além da<br />
visão tradicional. 39<br />
3.2.1 Posição Liberal<br />
A posição liberal rompe com o Estado como ator unitário e central<br />
em <strong>RI</strong> e nos estudos de segurança, questionando seu papel não só em<br />
relação aos demais Estados, como também em face dos grupos dentro<br />
dele. O pensamento liberal critica a imutabilidade realista, propondo novos<br />
padrões de ação com base na racionalidade humana. A ameaça militar<br />
deixa de ser a única a pairar sobre o Estado, que deve se preocupar<br />
primeiramente em satisfazer as necessidades daqueles que legitimariam<br />
sua autoridade.<br />
Edward Kolodziej 40 crítica Walt diretamente, afirmando que o foco<br />
no Estado é apenas uma das diversas possibilidades que existem na segurança.<br />
Mesmo não respondendo aos problemas de coerência trazidos<br />
por Walt, Kolodziej identifica falhas em sua compreensão e propõe uma<br />
compreensão de segurança conceitualmente mais rica, teoricamente mais<br />
inclusiva e politicamente mais relevante. Sugere que o foco dos estudos<br />
de segurança deveria ser nas guerras civis, pois levantariam problemas<br />
fundamentais de segurança, inclusive quanto à legitimidade do Estado<br />
como autoridade capaz de usar a força. Ressalta que, diante de um cenário<br />
de crescente interdependência, a legitimidade de um regime particular<br />
38 KRAUSE, Keith; WILLIAMS Michael C.. From strategy to security: foundations of critical<br />
security studies”. In: KRAUSE, K.; WILLIAMS, M. C. (Org.). Critical security studies.<br />
Minnesota: Minnesota University, 1997. p. 33-60.<br />
39 Como ensina Collins (2007, p. 2), […] [t]he absence of threats is sufficiently far-reaching<br />
that security studies encompasses dangers that range from pandemics […] and<br />
environmental degradation through to the more readily associated security concerns of<br />
direct violence, such as terrorism and inter-state armed conflict. The latter, which so<br />
dominated the discipline that during the cold war it became synonymous with security<br />
studies, is actually a sub-field of security studies and is known as strategic studies.<br />
40 KOLODZIEJ, 1992.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
78<br />
O Tratamento de Fatores Econômicos pelas Teorias de Segurança...<br />
se torna uma questão crítica de segurança. Assim, é necessário que os<br />
estudos de segurança abram a caixa-preta do Estado para analisar como<br />
esse proporcionaria a proteção à sua população. Se a segurança deriva<br />
da condição de cidadão, logo o que se questiona não é apenas a<br />
centralidade do Estado nos estudos de segurança, mas a forma como ele<br />
resolveria o problema da ordem diante do surgimento de novas entidades<br />
políticas e da expansão das conexões de interdependência. A segurança<br />
do indivíduo não pode ser separada das reivindicações do grupo e de<br />
estruturas coletivas em que se insere, tornando possível a adoção de<br />
uma identidade e de projetos coletivos, pois tais elementos estariam vinculados<br />
à legitimidade do Estado. Mais do que se conectar às capacidades<br />
do Estado de sobreviver internacionalmente, a segurança assume<br />
aspectos ideacionais – travestidos em legitimidade política – que não excluem<br />
a importância de elementos materiais no exercício do papel de<br />
Estado.<br />
Percebe-se a importância da legitimidade da autoridade política<br />
por sua população, independentemente das capacidades desse Estado.<br />
Se a visão tradicional toma essa legitimidade preestabelecida, Kolodziej<br />
problematiza esse aspecto. Afirma que nenhum Estado ou governo pode<br />
resistir ou ignorar as demandas populacionais por progresso material com<br />
base na alegação de um bem maior voltado para o crescimento econômico<br />
do Estado ou seu desenvolvimento técnico-científico. 41<br />
Para a perspectiva liberal, como se poderia entender o impacto de<br />
fatores econômicos?<br />
Inicialmente, é preciso deixar evidente que o Estado assume dimensão<br />
plural, portanto seu interesse se torna ambíguo ou, ao menos,<br />
indeterminado. O conceito de interesse nacional passa a ser determinado<br />
por diferentes grupos em diferentes questões, em diferentes tempos, sem<br />
que haja hierarquia de objetivos 42 . Há menor chance de se ver o Estado<br />
como unido ou coerente no trato com seus pares, porque se comportarão<br />
buscando o compartilhamento de interesses e não mais a defesa de seu<br />
interesse nacional, apresentando-se, assim, multifacetados.<br />
41 O caso soviético ilustra bem essas possibilidades, já que o poder central teve de ceder<br />
às pressões sociais que punham em xeque sua legitimidade e promover uma reforma<br />
fundamental do sistema de bem-estar (KOLODZIEJ, 1991, p. 424-426).<br />
42 KEOHANE, Robert; NYE, Joseph. Realism and complex interdependence. In: VIOTTI,<br />
Paul; KAUPPI, Mark. International relations: realism, pluralism, globalism and beyond.<br />
Boson: Allyn and Bacon, 1999. p. 307-318.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
Marcelo M. Valença 79<br />
Os liberais associam segurança do Estado à sua capacidade de<br />
oferecer bens e serviços à população, reconhecendo os impactos produzidos<br />
pela economia e sociedade no Estado. Fugindo do dogmatismo<br />
realista, a política deixa de prevalecer sobre as demais esferas sociais. A<br />
garantia de bem-estar e desenvolvimento social funcionará como os elementos<br />
que promoverão a segurança que será reforçada pelos laços de<br />
interdependência entre os Estados: questões de economia passam a assumir<br />
a agenda internacional e deixam a ameaça militar em segundo plano<br />
43 . Os mesmos fatores que eram desconsiderados pela abordagem tradicional<br />
passam a ser elementos-chave para a consolidação da segurança.<br />
Fatores econômicos causariam impacto no bem-estar das comunidades<br />
políticas na medida em que influenciariam a distribuição e a satisfação<br />
dos bens políticos esperados por parte da autoridade estatal. O colapso<br />
soviético é apenas um dos exemplos que podem ser resgatados<br />
para evidenciar o impacto desses fatores. 44<br />
Com os Estados constrangidos por seus grupos domésticos, a submissão<br />
da economia ao militar é enfraquecida. Estados até podem considerar<br />
a conexão entre esses dois temas, mas o recurso à força será cada<br />
vez menor. De forma a garantir o apoio dos grupos domésticos, devem<br />
ser oferecidas condições de bem-estar para garantir a estabilidade. Como<br />
a militarização perde força, Estados mais poderosos utilizarão menos desse<br />
aspecto para se manterem predominantes, voltando-se para elementos<br />
que permitam seu desenvolvimento econômico. Por outro lado, Estados<br />
mais fracos verão menos risco em valer-se da força. Tendo menos a perder,<br />
podem-se valer de recursos que os fortes não têm. A utilidade da<br />
43 Id., 1990.<br />
44 O próprio campo de estudos dos conflitos demonstra essa tendência. Afastando-se da<br />
expectativa do Estado como ator exclusivo na guerra, as discussões teóricas sobre a<br />
natureza dos conflitos internacionais contemporâneos demonstram como o impacto de<br />
fatores econômicos corrobora o argumento desenvolvido por Kolodziej e os<br />
ampliacionistas. Mary Kaldor (2001), ao tratar das novas guerras, mostra como essas<br />
se iniciam por questões ideacionais, mas se perpetuam em razão de elementos econômicos<br />
que fragmentam a legitimidade do Estado e remetem a formas alternativas de<br />
promover a sobrevivência de comunidades políticas. Na mesma área, K. J. Holsti discute<br />
as implicações da legitimidade econômica do Estado – vertical e horizontalmente – na<br />
preservação de sua capacidade de governança e a consequente prestação de bens<br />
políticos e serviços para sua população. Havendo o questionamento a essa legitimidade,<br />
especialmente em Estados recentes e cuja autoridade política não é integralmente<br />
legitimada, tem-se um cenário propício para a eclosão do que Holsti denominaria guerras<br />
de terceiro tipo (HOLSTI, Kalevi J. The state, war, and the state of war. Cambridge:<br />
Cambridge University, 1996).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
80<br />
O Tratamento de Fatores Econômicos pelas Teorias de Segurança...<br />
força declina, mas a necessidade de oferecer condições de desenvolvimento<br />
estável aumenta, afetando a vulnerabilidade dos Estados vis-à-vis<br />
sua legitimidade doméstica.<br />
A proposta liberalizante, em razão da quebra de hierarquia entre<br />
objetivos estatais e da maior observância a questões econômicas, traz<br />
padrões políticos que não são percebidos pelo realismo, o mesmo ocorrendo<br />
nos estudos de segurança. Novos fatores passam a incorporar o<br />
campo da segurança que não podem ser explicados da maneira tradicional<br />
45 , com a presença de fatores econômicos de origem e atuação eminentemente<br />
domésticos sendo alguns deles.<br />
3.2.2 Escola de Copenhague<br />
A EC é conhecida pelas contribuições de Barry Buzan e Ole Wæver<br />
na ampliação dos debates de segurança, tanto no nível de análise quanto<br />
nos setores em que as ameaças são postas 46 , contribuindo para sanar as<br />
propostas ampliacionistas, como a de Ullman. A crítica ampliacionista<br />
ganhou novos ares com essa contribuição, uma vez que definir ameaça<br />
existencial tornou-se contingente não apenas ao sujeito, mas também ao<br />
tempo e ao local analisados.<br />
Levando a sério as críticas de Walt, Buzan e seus colegas 47 mostram-se<br />
conscientes de que a ampliação dos estudos de segurança gera<br />
riscos de incoerência intelectual, pois uma agenda de pesquisa ampla<br />
aumenta a gama de conhecimento e compreensão necessários para análise.<br />
Contudo, defendem que coerência não implica confinamento da segurança<br />
às questões militares, mas exploração da lógica da segurança<br />
em si, para encontrar o que diferenciaria segurança do meramente político,<br />
aplicando a preocupação com segurança militar a outros setores. 48<br />
45 KOLODZIEJ, 1992, p. 434.<br />
46 SHEEHAN, 2005, p. 47<br />
47 BUZAN, Barry; WÆVER, Ole; DE WILDE, Jaap. Security: a new framework for analysis.<br />
Boulder: Lynne Rienner, 1998.<br />
48 Buzan, Wæver e De Wilde assumem, implicitamente, o pressuposto realista de separação<br />
entre política e assuntos de segurança. Para eles, enquanto a política é essencialmente<br />
doméstica, a questão de segurança deveria ser tratada como além da sociedade.<br />
Ao mesmo tempo em que, se por um lado, algumas das proposições podem encaixar-se<br />
na abordagem crítica dos estudos de segurança que busca alternativas à ortodoxia realista<br />
e estadocêntrica; por outro, não há nenhum compromisso a priori com as posições<br />
antiestadocêntrica e antirrealista.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
Marcelo M. Valença 81<br />
Os estudos de segurança devem observar três elementos quanto<br />
a seu escopo: a segurança internacional tem agenda distinta do âmbito<br />
doméstico; diz respeito à ameaça existencial de um agente de referência,<br />
entendido tradicionalmente como o Estado; por ameaçar a sobrevivência,<br />
gera uma condição de emergência que deve ter prioridade sobre os demais<br />
assuntos políticos, exigindo e justificando o uso de medidas extraordinárias<br />
para lidar com elas. Suas propostas de ampliação são pautadas,<br />
portanto, por duas questões. A primeira é reconhecer que a função política<br />
da expressão “segurança” causa a mobilização estatal 49 para um maior<br />
número de ameaças. O segundo envolve desconsiderar a segurança<br />
como um tipo universal de bem a ser alcançado, para o qual todas as<br />
relações deveriam se mover: segurança não é uma coisa boa, mas algo<br />
que ameaça a sobrevivência. O ideal é restringir o uso do termo “segurança”,<br />
ao mesmo tempo em que se permite mobilidade para que cada<br />
agente defina sua própria agenda. 50<br />
A divisão em setores faz parte da estratégia de se buscar o objeto<br />
referente para a segurança além do Estado, ao evidenciar a demanda por<br />
outros grupos e atores na análise das ameaças. Isso permite desagregar<br />
um objeto para exame, selecionando padrões distintivos de interação que<br />
não existiriam de maneira independente: a divisão por setores pode identificar<br />
padrões distintos, mas estes setores permanecem inseparáveis do<br />
todo. O objetivo desse movimento é, ao restringir o escopo da pesquisa,<br />
reduzir o número de variáveis, permitindo sua manipulação e seu controle<br />
e apontando o relacionamento entre elas que ocorrerá em três arenas<br />
distintas: o privado, o político e a segurança.<br />
A maioria dos temas está localizada na esfera privada, mas isso<br />
não é uma regra. Pela própria dinâmica social, um tema pode transitar –<br />
dependendo da sociedade – do privado para o público e de lá para a<br />
segurança. Entre os problemas colocados na esfera pública, poucos<br />
impactam a segurança, logo essa esfera conteria menos temas que as<br />
demais. Isso mostra o caráter dinâmico da segurança, variando conforme<br />
49 Portanto, quando se refere a atores não estatais participando da política, fala-se necessariamente<br />
de coletividades políticas organizadas, pois a atividade política pressupõe a<br />
organização social de indivíduos: indivíduos isolados poderiam ser o objeto a preservarse,<br />
mas entendidos dentro de um ambiente social. Fala-se, portanto, não de ameaças à<br />
existência, mas ameaças sociais à existência (BUZAN, 1991, p. 19), já que os perigos<br />
são tomados a partir da relação do objeto com outros agentes (BUZAN; DE WILDE;<br />
WÆVER, 1998, p. <strong>10</strong>).<br />
50 SHEEHAN, 2005, p. 54<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
82<br />
O Tratamento de Fatores Econômicos pelas Teorias de Segurança...<br />
a sociedade e o momento analisados: um mesmo tema pode relacionarse<br />
à segurança de um ator, enquanto outro não.<br />
O processo pelo qual esses assuntos são levados para a esfera<br />
da segurança é securitização, quando ocorre um movimento que leva o<br />
tema em foco para além da política e o coloca como um tipo especial de<br />
política ou como algo acima dela, tornando o processo de securitização<br />
uma versão extrema da politização 51 . Esse processo assume dimensões<br />
intersubjetivas, pois pressupõe que um ator perceba uma ameaça e produza<br />
um discurso de securitização voltado para essa questão, enquanto<br />
uma audiência se torna alvo do discurso e o aceite 52 . A lógica da<br />
securitização aplicada à análise setorial ajuda a ampliar a agenda e<br />
percebê-la como instrumento de superação da preocupação estritamente<br />
militar na segurança do Estado, abarcando outras esferas sociais e permitindo,<br />
inclusive, notar a relação de interdependência e superposição<br />
entre os diferentes setores.<br />
Nesse cenário, como pensar o tratamento aos fatores econômicos?<br />
Uma leitura inicial poderia nos dizer que a atenção aos elementos<br />
integrantes do setor econômico permitiria identificar quais são as ameaças<br />
à segurança. Mas essa não é a solução apresentada por Buzan et al:<br />
torna-se imperativo perceber que atores promovem a securitização, concebendo<br />
daí quais são e qual a natureza das ameaças.<br />
A análise do setor econômico é controversa, pois assume um nível<br />
alto de politização: ao mesmo tempo em que se estuda os impactos<br />
das ameaças nesse setor, é necessário perceber que as ameaças existenciais<br />
remetem a inter-relação com outros setores de análise, pois aquelas<br />
não se referem necessariamente a fatores econômicos per si,<br />
[…] [t]he idea of economic security is located squarely in the<br />
unresolved and highly political debates about international political<br />
economy concerning the nature of the relationship between the political<br />
structure of anarchy and the economic structure of the market. 53<br />
51 WÆVER, Ole. Securitization and desecuritization. In: LIPSCHUTZ, Ronnie D. (Ed.). On<br />
security. Nova York: Columbia University, 1995. p. 46-86. O movimento reverso, quando<br />
um tema deixa de ser relativo à esfera da segurança, denomina-se “dessecuritização” e<br />
também é trabalhado por Wæver.<br />
52 BUZAN et al, 1998, p. 34-36<br />
53 Ibid., 1998, p. 95.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
Marcelo M. Valença 83<br />
Buzan et al afirmam existir uma relação entre a forma como o sujeito<br />
que promove o discurso de securitização enxerga a relação entre<br />
política e economia e as ameaças no setor econômico 54 . No debate contemporâneo<br />
sobre segurança, há a predominância dos liberais, o que faz<br />
com que os objetivos econômicos sejam privilegiados e que os demais<br />
setores sociais promovam as condições necessárias para que o mercado<br />
funcione de maneira livre e independente. 55<br />
Os atores nessa esfera seriam de diferentes níveis, desde indivíduos<br />
e classes até a figura abstrata do mercado. Cada um deles atuaria<br />
em uma dinâmica própria, enquanto suas ações influenciariam os demais<br />
atores, mas apenas duas lógicas de securitização se aplicariam aqui: micro,<br />
relacionada a indivíduos e empresas que se veriam afetados por ameaças<br />
decorrentes de fracassos econômicos, e a macro, envolvendo políticas<br />
governamentais destinadas a solucionar questões de nível micro 56 . O<br />
governo deve promover medidas para solucionar essas ameaças e garantir<br />
a sobrevida das empresas, principais atores em uma economia liberal.<br />
Mas Buzan et al não afirmam que a securitização ocorre em razão<br />
do setor econômico ou do impacto causados em outros setores, especialmente<br />
o político-militar.<br />
Voltando-se à busca das ameaças, entende-se que a insegurança<br />
é inerente à lógica mercadológica. As ameaças são dirigidas a cada ator<br />
envolvido na securitização, causando impactos distintos em cada um deles<br />
57 . Mas essas ameaças não podem ser legitimamente invocadas pelos<br />
liberais como ameaças existenciais, não ameaçando o setor econômico,<br />
o que não se pode dizer do impacto causado por essas ameaças em<br />
outros setores. A securitização de fatores econômicos leva o analista a<br />
promover uma confusão com temas de economia política internacional,<br />
provocando o spill-over da economia sobre outros setores.<br />
Somente em níveis básicos a lógica de sobrevivência é restrita ao<br />
setor econômico (BUZAN et al, 1998, p. 115). Dentro do panorama político<br />
liberal, o setor econômico se torna inseparável dos demais setores<br />
sociais, porque seus fracassos e sucessos impactam diretamente prática<br />
política desenvolvida em outros setores (BUZAN et al, 1998, p. 116),<br />
54 Mercantilistas e neomercantilistas priorizariam a política em detrimento à economia; no<br />
caso dos liberais, a prioridade seria inversa. Socialistas, por sua vez, orbitam entre esses<br />
dois extremos (Ibid., 1998, p. 95-96).<br />
55 Ibid., 1998, p. 97<br />
56 Ibid, 1998, p. <strong>10</strong>0-<strong>10</strong>1.<br />
57 Afinal, não se pode falar em ameaça à sobrevivência do Estado, quando a ameaça é de<br />
falência: o Estado continuará existindo, mesmo que suas capacidades estejam em risco<br />
(Ibid., 1998, p. <strong>10</strong>5).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
84<br />
O Tratamento de Fatores Econômicos pelas Teorias de Segurança...<br />
[…] [t]his overspill quality means that much of what is talked about as<br />
“economic security” has in fact to do with logics of survival in other<br />
sectors and not the economic one.<br />
Logo, nessa vertente do ampliacionismo, os fatores econômicos<br />
servem – mais do que elementos em qualquer outro setor – para indicar<br />
como as diferentes esferas sociais estão integradas e conduzem a um<br />
pensamento holístico para melhor compreender as dinâmicas de segurança<br />
que afetam os atores.<br />
3.3 ESTUDOS CRÍTICOS DE SEGURANÇA<br />
Defendendo a idéia de que o Estado não deve ser visto como fonte<br />
última de segurança, mas como potencial agravador da insegurança,<br />
os estudos críticos de segurança 58 (“ECS”) buscam superar não apenas a<br />
limitação de definir segurança em termos militares, mas também privilegiar<br />
o indivíduo, isolado ou organizado socialmente: “security must make<br />
sense at the basic level of the individual human being for it to make sense<br />
at the international level”. 59 Localizados na perspectiva pós-positivista nas<br />
<strong>RI</strong> 60 , este grupo questiona não só a disciplina, como também a própria<br />
política. Buscando a reconceitualização da segurança, os ECS realizam<br />
três movimentos: aprofundar o conceito, entendendo-o como contingente<br />
aos diferentes meios e referentes que ele assume; ampliar seu entendimento,<br />
mostrando que a força militar não é a única, nem a mais importante,<br />
forma de promover segurança; e focar a teoria e a prática em propostas<br />
de emancipação. 61<br />
No primeiro, percebe que a visão tradicional está longe de ser um<br />
panorama neutro dos estudos de segurança: Walt cria uma hierarquia<br />
epistêmica, definindo uma leitura particular do significado e evolução da<br />
história dos estudos de segurança, concebendo daí um argumento de<br />
autoridade disciplinar. 62 Entretanto, há uma série de argumentos basilares<br />
que são apresentados como fatos não problematizados. O mais impor-<br />
58 Estudos críticos de segurança neste trabalho “consists of alternatives for security studies<br />
o that offered by the mainstream. It is explicit in its rejection of realism, but it does not add<br />
up an alternative theory” (Smith, 2005, p. 45). Usaremos nessa seção teóricos de orientação<br />
pós-moderna, adeptos da Teoria Crítica e afiliados aos Estudos de Paz – todos<br />
críticos ao realismo – para desenvolver nosso argumento.<br />
58 McSweeney, 1999, p. 16.<br />
60 Ver nota 3937.<br />
61 Williams, 2005, p. 138.<br />
62 Krause e Williams, 1997<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
Marcelo M. Valença 85<br />
tante deles – e que torna o conceito de segurança etnocêntrico 63 – diz<br />
respeito à centralidade do Estado como sujeito da segurança, excluindo<br />
questões que não se encaixam na esfera militar. Para os ECS, questões<br />
que levem à reflexão sobre quais são as condições nas quais é possível<br />
pensar, falar e fazer argumentos de autoridade sobre segurança têm como<br />
respostas os diferentes graus em que as versões modernas de segurança<br />
articulam a relação entre as estruturas e práticas estatais.<br />
O segundo movimento ambicionado pelos ECS foca-se nos limites<br />
colocados pelos tradicionalistas, que não apenas geram argumentos<br />
de autoridade, mas também restringem a imaginação política contemporânea,<br />
tomando o Estado como resposta para os desafios da modernidade<br />
quando, na verdade, ele seria uma resposta meramente satisfatória às<br />
perguntas sobre o caráter e o lócus da vida política. 64 A reformulação<br />
proposta pela perspectiva crítica aconteceria de duas formas principais,<br />
dirigindo-se ao número e à qualidade das ameaças e também ao objeto<br />
da segurança. 65 No primeiro caso há uma demanda por uma compreensão<br />
mais ampla do que a segurança envolve, o que significa ser seguro e<br />
do que se está seguro. Tenta-se definir a segurança a partir de processos<br />
sociais, culturais, econômicos e ecológicos, além da preocupação tradicional<br />
com a segurança física decorrente de ameaças militares. Assim,<br />
junto ao conceito da segurança tradicional viriam idéias como violência<br />
estrutural, 66 ampliando o entendimento de ameaças.<br />
Quanto ao objeto, o aumento da interdependência mundial implica<br />
pensar em uma concepção mais ampla de segurança, não apenas na<br />
condição de cidadão, mas como atributo do indivíduo inserido em comunidades<br />
políticas. A segurança dos Estados é predominante marginalizando<br />
outras vozes pela operacionalização política: a segurança residiria<br />
na política e a política reside no Estado, logo o binômio segurança-Estado<br />
é inseparável. Entretanto, os argumentos do Estado soberano são<br />
uma articulação histórica específica de relações de universalidade/particularidade.<br />
Fugindo desse panorama, os ECS pensam em formas além do<br />
Estado a para entender a segurança. Se o argumento tradicionalista critica<br />
o alargamento por englobar tudo dentro do Estado, perdendo a coe-<br />
63 Fierke, 2007.<br />
64 Walker, 1997.<br />
65 Walker, 1997; Fierke, 2007.<br />
66 GALTUNG, Johan. “Violence and Peace”. In: A Reader in Peace Studies, Nova York:<br />
Pergamon Press, 1990, p. 9-14.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
86<br />
O Tratamento de Fatores Econômicos pelas Teorias de Segurança...<br />
rência, e os defensores da securitização são acusados de estender comportamentos<br />
militares para a esfera social, os ECS apontam que alargar o<br />
conceito de segurança não é o problema: as dificuldades surgem com o<br />
tipo de alargamento que se busca, já que as tentativas são feitas visando<br />
à adequação do Estado como sujeito das mudanças. O significado da<br />
segurança é apreendido das práticas a ele incorporadas. 67<br />
Dessa forma, quando pensamos em sujeito de segurança, a primeira<br />
coisa a fazer é perguntar como este é constituído e a que tipo de<br />
segurança se refere. Estas reflexões oferecem desafios à própria ordem<br />
estabelecida, como o da estabilidade do sistema de Estados como garantidor<br />
de segurança aos indivíduos: 68 “only a project of emancipation can<br />
make the prospect of security more likely”. 69<br />
Entendemos emancipação como “freeing people from those<br />
constraints that stop them carrying out what freely they would choose to<br />
do, of which war, poverty, oppression, and poor education are a few”. 70<br />
Identificamos os seus ideais com as propostas de segurança humana 71 e<br />
acreditamos que os fatores econômicos podem ser abordados a partir da<br />
conjunção desses dois conceitos, pois segurança e emancipação são duas<br />
faces da mesma moeda. 72 Além disso, ambos os conceitos exigem definição<br />
contingente ao objeto e o tempo da análise, bem como sugerem a<br />
mudança do foco da análise do Estado para os indivíduos e implicam a<br />
ausência de qualquer tipo de violência, inclusive a estrutural, 73 de modo a<br />
assegurar a liberdade de querer e a libertação do medo. 74 Com isso,<br />
como perceber os fatores econômicos?<br />
67 McSweeney, 1999.<br />
68 OSTERGAARD, Geoffrey. “A Gandhian Perspective on Development”. In: A Reader in<br />
Peace Studies, Nova York: Pergamon Press, 1990, p. 206-209.<br />
69 Smith, 2005, p. 42.<br />
70 Booth, Ken. “Security in Anarchy: utopian realism in theory and practice”. International<br />
Affairs (2001) n. 67, v. 3, p. 527-545 apud TARRY, Sarah. “‘Deepening ‘ and ‘Widening’:<br />
an analysis of security definitions in the 1990s”. Disponível em < http://www.jmss.org/<br />
1999/article3.html>. Acesso em: 13 de junho de 2008. Publicado em 2000?.<br />
71 Sobre o tema, HUMAN SECU<strong>RI</strong>TY CENTRE. “What is Human Security”. Acesso em: 12<br />
de junho de 2008. Disponível em: < http://www.humansecurityreport.info/<br />
index.php?option=content&task=view&id=24&>.<br />
72 Booth, 1991 apud Tarry, 2000?, sp..<br />
73 O conceito de violência estrutural é definido por qualquer elemento que promova a<br />
assimetria entre o potencial de realização de um indivíduo e o aproveitamento real de<br />
suas capacidades (Galtung, 1990).<br />
74 No inglês, em original, “freedom from want and freedom from fear” (Fierke, 2007:145).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
Marcelo M. Valença 87<br />
Os ECS não abordam explicitamente esses fatores. Das propostas<br />
de emancipação e de segurança humana decorre a idéia de que não<br />
pode haver ameaças ou impeditivos para que o pleno potencial individual<br />
se realize. Mas o que seriam esses impeditivos? Como as duas propostas<br />
pressupõem análise contingencial, não se podem estabelecer bases<br />
delimitadoras destes projetos, logo a definição de elementos impeditivos<br />
deve ser percebida caso a caso.<br />
Os ECS buscariam prolongar os limites da não-violência para que<br />
as condições que impeçam o desenvolvimento do indivíduo sejam extirpadas<br />
e um conceito mais amplo de segurança – e, conseqüentemente,<br />
bem-estar social – possa ser vislumbrado. 75 O tratamento dessa corrente<br />
crítica aos fatores econômicos tenderá, portanto, a perceber o impacto<br />
que produzirão no bem-estar e nas condições do indivíduo e das comunidades<br />
políticas, tornando-se problemático e fonte de insegurança uma<br />
vez que impeçam o projeto emancipatório ser concluído.<br />
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Nosso trabalho buscou demonstrar como fatores econômicos são<br />
tratados pelas teorias de segurança internacional, investigando as possibilidades<br />
existentes de se traçar uma análise envolvendo esses fatores e<br />
o desenvolvimento dos estudos de segurança. Para tanto, apresentamos<br />
o conceito de segurança, ressaltando as dificuldades em tomar uma definição<br />
consistente e consensual. Exploramos, na seção seguinte, o debate<br />
teórico de segurança em três correntes e tentando relacioná-los, ainda<br />
que marginalmente, aos debates na área das <strong>RI</strong>, para entender como os<br />
fatores econômicos são abordados.<br />
Para os tradicionalistas, centrados na figura do Estado e inspirados<br />
pelo paradigma realista, elementos econômicos se tornam importantes<br />
na medida em que contribuem para aumentar as capacidades dos<br />
Estados de utilizar a força militar, melhorando a posição estatal no sistema<br />
e/ou perante seus pares. Sua abordagem para a esfera doméstica é<br />
irrelevante, pois não contribuiria para desenvolver as capacidades estatais.<br />
Walt explora as possibilidades de seu estudo em um cenário pós-<br />
Guerra Fria nessas condições, ignorando eventuais contribuições para o<br />
bem-estar social.<br />
75 CARTER, April. “Nonviolence as a Strategy for Change”. In: A Reader in Peace Studies,<br />
Nova York: Pergamon Press, 1990, p. 2<strong>10</strong>-216.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
88<br />
O Tratamento de Fatores Econômicos pelas Teorias de Segurança...<br />
Os ampliacionistas, por sua vez, constituem um grupo amplo e<br />
diverso, mas que compartilha certos princípios. Assim, dividimos o grupo<br />
em três subdivisões e exploramos a idéia liberal, a EC e os ECS, cada<br />
qual com suas particularidades.<br />
Os liberais, rompendo a centralidade do Estado, associam segurança<br />
à estabilidade promovida pelas relações de interdependência entre<br />
grupos domésticos e internacionais, apontando que questões de legitimidade<br />
devem estar na pauta dos estudos de segurança. São esses elementos<br />
que põem à prova o papel do Estado, que deve se preocupar em<br />
garantir as condições demandadas pelos grupos de pressão no seu interior,<br />
fazendo com que guerras civis motivadas por questionamento à sua<br />
autoridade se tornassem alvo da segurança. O Estado pluralista seria<br />
responsável por atender os pleitos sociais e, com isso, garantindo sua<br />
sobrevivência. Não se trata aqui de fatores econômicos especificamente,<br />
mas de bem-estar lato senso.<br />
A EC, com uma análise setorial e baseada em elementos<br />
contextuais, mas guardando peculiaridades do tradicionalismo – talvez<br />
para manter a coerência proposta por Walt – acusa a política internacional<br />
de ser dominada pela leitura liberal, dificultando a percepção de como<br />
os fatores econômicos são impactados pelas teorias de segurança. Dividindo<br />
o Estado em setores e reconhecendo diferentes grupos dentro dele,<br />
Buzan et al sucumbem ao pluralismo liberal e admitem que questões econômicas<br />
são de difícil trato, pois confundir-se-iam com e sobrepor-se-iam<br />
às ameaças existenciais pertinentes a outros setores, graças à<br />
interdependência existente entre esses setores sociais. Ao mesmo tempo<br />
em que alega que as ameaças são socialmente construídas pelos atores<br />
securitizadores, a EC flerta com o liberalismo por creditar a grupos<br />
domésticos a definição da agenda política e, assim, permitir ver o Estado<br />
como ente multifacetado e cujos interesses são contingentes ao momento<br />
analisado e aos grupos de maior repercussão política.<br />
Os ECS, por sua vez, carrega a crítica aos modelos tradicionais,<br />
propondo a saída do foco político do Estado, alojando-o nos indivíduos<br />
e comunidades políticas. Os projetos visando à segurança humana e à<br />
emancipação defendem que a segurança, para fazer sentido no nível<br />
estatal, carece ser pensada primeiramente no nível individual, garantindo<br />
a plena potencialidade dos indivíduos no trato social e político. Com<br />
isso, qualquer elemento que produza violência estrutural é considerado<br />
impede o projeto de emancipação e, conseqüentemente, o alcance da<br />
segurança humana. Nesta teoria, fatores econômicos devem ser tratados<br />
tendo aqueles ideais em mente e, mesmo não explicitados pelos<br />
ECS, podemos extrapolar o seu argumento propondo que se tornarão<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
Marcelo M. Valença 89<br />
parte dos estudos de segurança uma vez que sejam considerados violência<br />
estrutural.<br />
Desta síntese, percebemos que fatores econômicos per si são<br />
negligenciados pelas teorias de segurança internacional, mas são elementos<br />
subjacentes a elas, permitindo a sua própria realização. A<br />
maneira como os elementos econômicos são tratados garante a<br />
concretização dos seus objetivos, adequando-se – mais ou menos<br />
confortavelmente – aos princípios que procuram defender. Teorias<br />
buscam a adequação de seu escopo aos seus postulados,<br />
problematizando em maior ou menor escala determinados elementos,<br />
conforme justifiquem seus argumentos centrais, enquanto outros são<br />
tomados como dados e, por isso, afastados do debate político. O modo<br />
como a política e outros setores se relacionam nas teorias é fundamental<br />
para que estas se concretizem, pois define o seu escopo e os sujeitos<br />
que dela participam. Uma análise mais restrita, como a tradicionalista,<br />
submete à política todos os demais temas, tornando-os uma função<br />
daquela. Visões amplas tratam essa relação como de<br />
interdependência, rompendo a hierarquia de temas e sujeitos.<br />
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Recebido em: agosto de <strong>2009</strong>.<br />
Aprovado em: setembro de <strong>2009</strong>.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 63-90, <strong>2009</strong>-2.
Carolina Dantas Nogueira 91<br />
REGIMES<br />
INTERNACIONAIS<br />
E MEIO AMBIENTE<br />
CAROLINA DANTAS NOGUEIRA<br />
____________________________________________________________<br />
Mestranda em Relações Internacionais (PUC Minas)<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 91-<strong>10</strong>5, <strong>2009</strong>-2.
92<br />
Regimes Internacionais e Meio Ambiente<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 91-<strong>10</strong>5, <strong>2009</strong>-2.
Carolina Dantas Nogueira 93<br />
RESUMO<br />
O uso diferenciado do meio ambiente acarreta conflitos globais. O problema<br />
gera a institucionalização de arenas de diálogo internacional. Procurou-se<br />
compreender o processo de formulação de políticas e a estruturação<br />
de diretrizes internacionais no nível doméstico. Apresentou-se a questão<br />
da ação coletiva, o debate sobre os regimes internacionais e a questão<br />
da heterogeneidade de atores, percebendo a sua importância e a necessidade<br />
de se discutir suas implicações e consequências para as negociações<br />
políticas. Percebeu-se a necessidade de incluir as questões locais<br />
no debate internacional e a importância dos regimes internacionais.<br />
Palavras-chave: ação coletiva, heterogeneidade, regimes internacionais,<br />
cooperação internacional.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 91-<strong>10</strong>5, <strong>2009</strong>-2.
94<br />
ABSTRACT<br />
Regimes Internacionais e Meio Ambiente<br />
The different use of the environment causes global conflicts. The problem<br />
generates the institutionalization of international arenas for dialogue. The<br />
paper sought to understand the process of policymaking and the structuring<br />
of international guidelines on the domestic level. We also presented the<br />
collective action problem, the discussion about international regimes and<br />
the problem of the heterogeneity of actors. We realized its importance and<br />
the urge to discuss its implications and consequences for political<br />
negotiations. It was perceived the necessity to include local issues in the<br />
international debate and the importance of international regimes.<br />
Keywords: collective action, heterogeneity, international regimes,<br />
international cooperation.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 91-<strong>10</strong>5, <strong>2009</strong>-2.
Carolina Dantas Nogueira 95<br />
1 INTRODUÇÃO<br />
A temática ambiental torna-se cada vez mais objeto de estudo das<br />
Relações Internacionais. Para Porter (2000) a questão ambiental adquiriu<br />
destaque na agenda internacional, quando pontos como segurança deixaram<br />
de ser principais, principalmente depois dos 80, com o fim da guerra<br />
fria. O movimento ambientalista começou a divulgar internacionalmente<br />
diversas questões. Como demografia, necessidade de recursos, energia<br />
e suprimentos, desmatamento e desertificação, e iniciou-se um processo<br />
de busca por melhorias de alcance global.<br />
Entretanto, por causa do uso diferenciado dos recursos ambientais<br />
nos diferentes países, ocorre uma descaracterização do meio ambiente e<br />
dos conflitos na área, muito embora os danos consequentes sejam sentidos<br />
por todos. Para Porter (2000), esse problema interliga os diferentes<br />
atores em diálogos multilaterais e atinge a questão econômica nos processos<br />
de barganha política. O entendimento da dimensão propriamente<br />
política da temática ambiental impulsiona a institucionalização de arenas<br />
de diálogo, locais em que as decisões políticas e orientações debatidas<br />
são assimiladas pelos Estados em suas políticas domésticas. Diante disso,<br />
a discussão da temática ambiental à luz das abordagens teóricas das<br />
Relações Internacionais, especialmente dos regimes internacionais, se<br />
faz necessária, a fim de se compreender o processo de formulação de<br />
políticas ambientais e a convergência e estruturação de diretrizes internacionais<br />
no nível doméstico. Nesse contexto, a questão da<br />
heterogeneidade entre os atores envolvidos em tal processo é importante,<br />
pois, pela pluralidade deles, problemas de escala ou metodológicos<br />
podem dificultar a aplicação de regras e normas acordadas no regime.<br />
Para tanto, apresenta-se a questão da ação coletiva na arena doméstica,<br />
o debate sobre os regimes internacionais no sistema internacional<br />
e a questão do grau de heterogeneidade de atores; identificando os<br />
elementos abordados pelos autores, contribuições e possíveis problemas<br />
observados no debate. Em seguida, apresenta-se a conclusão do estudo<br />
bem como sugestões de pesquisa identificadas ao longo do trabalho.<br />
2 REGIMES INTERNACIONAIS E A QUESTÃO DA HETEROGENEIDADE<br />
O estudo da política internacional é importante quando se considera<br />
a reflexão sobre a ação de um determinado Estado ou a relação<br />
entre os Estados no sistema internacional. O desafio parece estar em<br />
como organizar essas ações, de modo que os Estados sigam uma deter-<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 91-<strong>10</strong>5, <strong>2009</strong>-2.
96<br />
Regimes Internacionais e Meio Ambiente<br />
minada diretriz, ou diretrizes, em uma temática específica. Ao incluir-se a<br />
dinâmica doméstica, a análise perpassa pelo dilema de ação coletiva.<br />
O dilema de ação coletiva, tema bastante debatido nos estudos<br />
em Ciência Política, refere-se à discussão do comportamento do indivíduo<br />
e das coletividades, além dos mecanismos necessários à manutenção<br />
ou perpetuação da sociedade. Dentro da temática ambiental, questões<br />
da esfera doméstica mesclam-se à esfera internacional, portanto uma<br />
análise que englobe os dois níveis se faz necessária.<br />
Garret Hardin (1968) discute o dilema da provisão de ordem e de<br />
bens públicos. O autor argumenta que se todo indivíduo agisse tendo em<br />
vista seu próprio interesse, ter-se-ia a depredação dos bens. Em função<br />
do crescimento populacional, da necessidade de socialização e<br />
consequente regulamentação das coletividades, o que antes funcionava<br />
como lógica individual passa a ser trágico para o coletivo.<br />
Russel Hardin (1997) argumenta que, quando as interações se<br />
expandem para mais de dois indivíduos ou jogadores, em uma arena qualquer,<br />
torna-se mais fácil uma apropriação unilateral das vantagens percebidas<br />
em uma dada situação. Então, a inserção de componentes<br />
normativos neste contexto se faz necessária.<br />
Ao se discutir as vantagens da aquisição de pequenos benefícios<br />
em oposição a uma grande rede de benefícios, tem-se que a provisão<br />
coletiva teria vantagens sobre a provisão individual desses benefícios.<br />
Apresenta-se, assim, um problema de natureza coletiva (pública), qual<br />
seja, a necessidade de políticas para a preservação da ordem pública.<br />
Fábio Reis (1984) aprofunda essa discussão argumentando que é<br />
objeto da política o conjunto de preferências ou objetivos, cuja realização<br />
afeta ou envolve outras pessoas, ou ainda, as que só se realizam por meio<br />
da cooperação com outros, o que ele denomina problema constitucional:<br />
[...] entendido como o problema de minimizar as externalidades que<br />
o comportamento de uns acarreta para os outros e envolvendo por<br />
definição aspectos de cooperação (comunicação) em jogo com aspectos<br />
de luta e divergência de interesses, ou aspectos estratégicos<br />
em sentido estrito. (REIS, 1984, p.115).<br />
Nessa linha de pesquisa, Mancur Olson (1999) apresenta a discussão<br />
sobre a dificuldade de cooperação entre os indivíduos racionais e<br />
os problemas relacionados à obtenção do bem público. Afirma que os<br />
indivíduos são egoisticamente motivados e não agiriam em função do<br />
coletivo ou da natureza do bem público. Indivíduos racionais<br />
maximizadores de ganhos tendem a não cooperar para a obtenção dos<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 91-<strong>10</strong>5, <strong>2009</strong>-2.
Carolina Dantas Nogueira 97<br />
objetivos grupais ou coletivos, a menos que sejam coagidos a fazê-lo ou<br />
que obtenham bens privados ou incentivos seletivos.<br />
Essa maximização de objetivos pessoais dos indivíduos é explicada<br />
pela teoria da escolha racional, sistematizada por Guy Peters (1999), em<br />
que seu enfoque interpreta as instituições como um<br />
[...] conjunto de regras e incentivos que fixam as condições para a<br />
racionalidade restritiva e estabelecem um espaço político dentro do<br />
qual podem funcionar muitos atores interdependentes. (PETERS,<br />
1999, p.72).<br />
As ações maximizadoras dos indivíduos estariam restritas pelo<br />
conjunto de regras de uma ou mais instituições em que atuam. Assim, os<br />
indivíduos escolhem racionalmente, movidos pelo interesse de maximizar<br />
seus benefícios individuais, embora estejam restritos por sua filiação às<br />
instituições. É possível, então, considerar as instituições como um conjunto<br />
de motivações positivas (incentivos) e negativas (regulamentações)<br />
para os indivíduos, sendo a maximização do benefício individual a fonte<br />
da dinâmica do comportamento.<br />
Nessa linha, o institucionalismo de escolha racional afirma que a<br />
interação entre o indivíduo e a instituição se tornaria bidirecional, pois tanto<br />
as estruturas institucionais exteriores ao indivíduo modelariam sua conduta<br />
como os indivíduos modelariam os comportamentos das instituições e seriam<br />
considerados causa das atividades institucionais. Como tomadores de<br />
decisão, os indivíduos tratam de maximizar seus benefícios, modificando<br />
assim as instituições, mas tendo suas decisões moldadas pelas escolhas<br />
institucionais anteriores. Dessa forma, os seres humanos desenham e criam<br />
as instituições, sendo logo constrangidos por elas.<br />
Terry Moe (2006) argumenta que as instituições políticas podem ser<br />
entendidas como estruturas de cooperação voluntária que resolvem problemas<br />
de ação coletiva, beneficiando tanto os indivíduos quanto a coletividade.<br />
Todavia, seriam estruturas de poder, uma vez que seriam criadas em<br />
benefício de alguns grupos por meio da imposição de sua vontade e interesses.<br />
Para ele, o dilema está em como se originam estruturas de cooperação<br />
entre atores sociais que estão em busca da realização de seus interesses<br />
particulares em um contexto de escolha voluntária.<br />
Moe (2006) destaca os processos cooperativos e conflitivos no<br />
tempo. Os processos cooperativos e a consequente criação de instituições<br />
ocorrem quando há vontade das partes, expectativas de benefícios<br />
mútuos e condições sociais favoráveis. Entretanto, quando o quadro social<br />
é desfavorável, imerso por interesses e benefícios divergentes, ocor-<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 91-<strong>10</strong>5, <strong>2009</strong>-2.
98<br />
Regimes Internacionais e Meio Ambiente<br />
rem disputas de poder, em que um grupo sobressai, criando-se regras e<br />
instituições favoráveis a esse grupo e as impondo aos demais segmentos<br />
da sociedade. Em ambos os processos, todavia, ocorre uma produção de<br />
regras e instituições sociais.<br />
Para Lisa Martin e Beth Simmons (1998), é preciso pesquisar sobre<br />
como as instituições importam em moldar o comportamento de atores<br />
importantes na política mundial. Desde os anos 50, a ideia de que instituições<br />
internacionais podem influenciar o comportamento dos Estados pela<br />
ação de políticas domésticas esteve presente nas análises. Contudo, percepções<br />
recentes passaram a incluir o reconhecimento de que a natureza<br />
do sistema político internacional provê um contexto para a efetividade<br />
de instituições internacionais, podendo ser esse um objeto de investigação<br />
científica.<br />
Em meados da década de 70, o estudo sobre regimes internacionais<br />
cresceu e esse movimento representou um esforço para substituir o<br />
entendimento de organizações internacionais para o entendimento de<br />
governança internacional mais ampla. As autoras sintetizam que, ao se<br />
tratar os Estados como atores unitários racionais com preferências e benefícios<br />
fixos, negligenciam-se os meios nos quais outros atores em política<br />
internacional podem usar as instituições e os meios nos quais a natureza<br />
ou interesse do Estado são eles mesmos potencialmente mudados<br />
pela ação das instituições. Assim, um dos meios mais fundamentais em<br />
que instituições podem alterar o comportamento dos Estados, para elas,<br />
é substituindo práticas domésticas, a partir do momento em que políticas<br />
domésticas são formuladas no nível internacional.<br />
As autoras apontam que ao se aceitar que as instituições são simultaneamente<br />
causas e efeitos, sendo ambas objeto de escolha e<br />
consequência de um Estado, novos programas de pesquisa foram surgindo,<br />
como as teorias em regimes internacionais e o construtivismo, que<br />
incluíam cada vez mais o lado local ou micro nas análises.<br />
Keohane (1982) trata da demanda por regimes internacionais. Para<br />
ele, os regimes podem ser entendidos como artifícios para reduzir os riscos<br />
substantivos na política internacional, uma vez que criam regras, normas,<br />
procedimentos e princípios que auxiliam na superação de eventuais<br />
falhas de mercado que poderiam desencorajar acordos. A demanda por<br />
regimes dependerá do interesse dos Estados em firmar acordos e da capacidade<br />
dos regimes em facilitar a produção desses acordos, bem como<br />
da capacidade de garantir benefícios a seus integrantes.<br />
Para Keohane (1982), as principais condições para a demanda<br />
por regimes seriam a ausência de uma estrutura internacional legal e<br />
clara que gere confiabilidade, as informações imperfeitas existentes acer-<br />
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Carolina Dantas Nogueira 99<br />
ca dos recursos disponíveis e os custos de transação positivos, pois os<br />
benefícios de sua criação seriam maiores que seus custos.<br />
Keohane (1984) procurou conceituar os regimes internacionais como padrões<br />
de cooperação em âmbito internacional, sendo essa cooperação<br />
entendida como um processo de barganha política, que envolve disputas<br />
ou conflitos de objetivos e interesses. Destaca a dificuldade de se definir<br />
regimes, em função da multiplicidade de componentes a ser analisados,<br />
porém a formação de regimes, para ele, não altera a dinâmica do sistema<br />
internacional, que se mantém pautado pela soberania dos Estados e pelo<br />
comportamento autointeressado.<br />
Entretanto, os regimes podem afetar o interesse, expectativas e<br />
valores dos atores envolvidos. O autor alerta para o fato de que a ação<br />
racional é constrangida pela distribuição de poder no sistema internacional,<br />
bem como pelos padrões de conduta. Concorda com o argumento de<br />
barganha política e afirma que o estabelecimento dos regimes ajuda a<br />
criar padrões de cooperação internacional.<br />
Young (1994) discute a barganha institucional como um modelo<br />
alternativo para se analisar o processo de formação de regimes, particularmente<br />
o estágio de negociação. Para ele, a formação de regimes internacionais<br />
visa alcançar acordos nos termos de providências satisfatórias<br />
e mutuamente aceitas, expressas na forma de documentos que são tratados<br />
como contratos constitucionais. Argumenta que o processo de formação<br />
de regimes centra no estabelecimento de um conjunto de regras que<br />
pretendem guiar o comportamento daqueles envolvidos em áreas<br />
temáticas relevantes.<br />
No caso do regime de mudança climática, por exemplo, o autor<br />
comenta que a negociação teve início com a primeira sessão do Comitê<br />
Intergovernamental de Negociação, em fevereiro de 1991, e terminou com<br />
a assinatura da Convenção de Mudança do Clima, no Rio de Janeiro, em<br />
junho de 1992. Esse modelo de barganha institucional enfatiza a barganha<br />
entre partes autointeressadas que procuram colher ganhos conjuntos,<br />
ao se criar arranjos institucionais para evitar ou superar problemas<br />
de ação coletiva.<br />
Stokke (1997), discute sobre duas críticas comuns às análises de<br />
regimes que afirmam que o conceito não é claro e que a teoria é basicamente<br />
conservadora, pois focaliza-se na ordem, na estabilidade e na<br />
centralidade dos Estados em administrar as relações mundiais. Sobre os<br />
processos em análises de regimes, introduz a discussão dos mecanismos<br />
causais como explicação para o desenvolvimento dos regimes. Para<br />
ele, a mudança do foco analítico para seus processos não é problemática<br />
e lembra que é um fenômeno recente na teoria de regimes.<br />
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<strong>10</strong>0<br />
Regimes Internacionais e Meio Ambiente<br />
O autor aborda a importância dos processos domésticos e dos<br />
atores não estatais no desenvolvimento internacional. Lembra que a teoria<br />
de regimes criticou o estatismo desde o início, mas a forma como as<br />
instituições e a interdependência eram trabalhadas foi pouco discutida<br />
até meados de 1980 e ainda é pouco abordada.<br />
Para ele, o desafio importante é combinar as percepções e generalizações<br />
baseadas no Estado-unitário com modelos mais sofisticados<br />
sobre como o comportamento externo dos Estados é formado, e conclui<br />
que a tendência na teoria de regimes é o alerta para possíveis caminhos<br />
analíticos sobre mecanismos causais em que os regimes internacionais<br />
estão inseridos.<br />
Desse modo, as análises referentes à temática ambiental merecem<br />
atenção tanto no que se refere aos problemas de ação coletiva discutidos<br />
na ciência política quanto aos problemas de cooperação no sistema<br />
internacional discutidos pela teoria dos regimes internacionais.<br />
Para Keohane e Ostrom (1995), o problema de Hardin (1968) estaria<br />
superado pelo próprio compartilhamento do uso de um bem, uma<br />
vez que o resultado irracional se modificaria com o uso. Assim, superado<br />
o uso irracional, afirmam que a construção de regimes, tanto locais quanto<br />
globais, seria capaz de resolver os problemas dentro da temática<br />
ambiental de common pool resources (CPRs) ou bens comuns, pois seriam<br />
acordos de organização para o bem comum, aproximando-se da teoria<br />
da escolha racional.<br />
Ao avaliar os princípios que pensam o local e que são analisados<br />
para o global, Susan Buck (1998) argumenta que o problema está no<br />
controle dos pequenos agentes na regulação dos CPRs e na adoção de<br />
regras e normas definidas por regimes internacionais. Os CPRs caracterizam-se<br />
como espaços abertos, difíceis de serem preservados localmente<br />
por meio de incentivos como limpeza para o bem de todos ou preservação<br />
da biosfera para gerações futuras.<br />
Para Susan Buck (1998), os recursos são aqueles utilizados para<br />
satisfazer as necessidades de um organismo, possuem domínios ou dimensões<br />
espaciais fixas em que podem ser encontrados e que possuem<br />
direitos de propriedade, definidos como o conjunto de direitos de acesso,<br />
exclusão, extração, venda, transferência ou herança. Assim, os regimes<br />
de propriedades seriam os conjuntos de regras que definiriam os direitos<br />
de propriedade. Logo, os CPRs podem ser encontrados em domínios comuns,<br />
compartilhados por vários atores, como o Mar Mediterrâneo, por<br />
exemplo, e domínios de acesso comum, como o espaço sideral.<br />
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Carolina Dantas Nogueira <strong>10</strong>1<br />
Os regimes internacionais, para ela, estariam relacionados à articulação<br />
de diversos fatores como as preocupações nacionais, as informações<br />
científicas existentes, a influência de organismos internacionais<br />
e organizações não-governamentais, as condições de ratificação de acordos<br />
internacionais e os incentivos à cooperação entre os atores. Poderiam,<br />
ainda, priorizar determinados usos dos recursos disponíveis.<br />
Dessa forma, o ingresso em um regime internacional definiria as<br />
regras, e o passo seguinte seria o de como aplicar tais regras definidas<br />
globalmente no nível local. Para a autora, o contexto histórico é indispensável<br />
para se tentar entender as decisões políticas relacionadas à gestão<br />
de bens de CPRs, e a sustentabilidade ecológica e institucional seria a<br />
baliza mais adequada e legítima para se analisar as metas e objetivos<br />
relacionados aos global commons, sendo o padrão no qual os regimes<br />
deveriam ser medidos.<br />
Todavia, Keohane e Ostrom (1995) apontam que toda formulação<br />
teórica precisa reconhecer a existência de muitas variáveis importantes<br />
que em conjunto afetam os resultados das análises, principalmente em<br />
regimes internacionais. Em especial, destacam o número de atores envolvidos,<br />
questões de identidade e como isso afeta interesses e o grau de<br />
heterogeneidade entre os atores. Utilizando o viés da escolha racional e<br />
ação coletiva, procuram analisar principalmente o impacto do número de<br />
atores envolvidos, tanto nas questões de CPRs quanto nas Relações Internacionais,<br />
e o grau de heterogeneidade desses atores envolvidos.<br />
Sobre a heterogeneidade, para eles não se pode deixar de analisar<br />
dois fatos importantes, quais sejam, os recursos ou capabilities de um<br />
ator e suas preferências. Além disso, as informações e crenças, bem como<br />
as estruturas de tomada de decisão e autoridade doméstica, são igualmente<br />
importantes. Nas questões de CPRs, apontam que as discussões<br />
tendem a definir a heterogeneidade como inibidora de cooperação e, com<br />
relação às Relações Internacionais, sugerem que a heterogeneidade pode<br />
facilitar a cooperação.<br />
Os autores entendem a heterogeneidade nas questões de CPRs<br />
como uma dificuldade por causa da pluralidade dos atores, seus interesses<br />
e entendimentos. Discutem, porém, a questão do ponto de vista do<br />
Estado como caixa-preta, sem discutir jogos de dois níveis. Assim, ocorre<br />
o problema de como aplicar modelos desenhados para o local no nível<br />
global, pelas questões de escala e metodologia envolvidas.<br />
Para eles, a questão é analisar em quais condições a<br />
heterogeneidade inibe ou auxilia ações coletivas efetivas. Argumentam<br />
que os problemas metodológicos envolvem estruturas de preferências,<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 91-<strong>10</strong>5, <strong>2009</strong>-2.
<strong>10</strong>2<br />
Regimes Internacionais e Meio Ambiente<br />
custos de monitoramento, interesses dos indivíduos, redes de comunicação,<br />
mapeamento, informação, custos e benefícios distributivos. Assim, o<br />
alto número de atores envolvidos no CPR local é um dificultador pelas<br />
várias assimetrias existentes. Já no nível global, o número de atores é<br />
menor e isso se torna um facilitador no processo, pois, para eles, o ator<br />
mais interessado aceitaria arcar com os custos, em função dos benefícios<br />
almejados, como pretende a teoria da estabilidade hegemônica.<br />
Em síntese, afirmam que a concentração de recursos em alguns<br />
atores pode facilitar a provisão de bens comuns ou CPRs, mas apenas se<br />
esses atores se beneficiarem significativamente de tais provisões. A<br />
heterogeneidade das preferências pode levar a ganhos de trocas, por<br />
isso possibilita a cooperação. Por outro lado, a heterogeneidade de informações<br />
particulares pode ser um grande empecilho nas negociações de<br />
acordos sobre os CPRs.<br />
Lisa Martin (1995) afirma que a assimetria de interesses e de poder<br />
entre os atores nem sempre implica agravamento dos conflitos de<br />
interesses, uma vez que as diferenças relacionadas aos recursos e interesses<br />
colocam a heterogeneidade como uma das principais variáveis da<br />
cooperação internacional. Para ela, a decisão sobre qual instituição será<br />
adotada resulta de um processo de barganha e reflete as preferências<br />
dos mais poderosos. Mesmo que o poder estivesse distribuído de maneira<br />
mais equitativa, o processo de cooperação em si criaria heterogeneidade<br />
pela diferenciação funcional, gerando então um padrão alternativo de soluções<br />
institucionais.<br />
A autora aponta que a heterogeneidade de recursos afeta a resolução<br />
de problemas de cooperação e a heterogeneidade de preferências<br />
aumenta a demanda por conexões temáticas. Dessa forma, os incentivos<br />
à defecção podem ser minimizados por meio da ação institucional com<br />
vistas à solidificação dessas conexões e do fomento à cooperação entre<br />
Estados heterogêneos.<br />
A presença da heterogeneidade, para ela, sugere a adoção de um<br />
novo padrão de cooperação entre os Estados, com base em acordos de<br />
self-enforcing, padrões hierárquicos de autoridade e diferenciação<br />
institucional por meio do desenho institucional. Além da heterogeneidade<br />
na distribuição de poder entre os atores envolvidos, a intensidade das<br />
preferências pode ser heterogênea para Martin (1995). O peso atribuído<br />
pelos atores a cada questão favorece a utilização das conexões temáticas,<br />
aumentando as possibilidades de cooperação, uma vez que amplia o conjunto<br />
de possíveis acordos. Assim, Estados heterogêneos tenderão a criar<br />
instituições com maior delegação no nível operacional do que no nível<br />
decisório.<br />
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Carolina Dantas Nogueira <strong>10</strong>3<br />
Snidal (1995) concorda que um grande número de atores pode<br />
limitar ou dificultar a cooperação, ou seja, nas relações internacionais<br />
quanto maior o número de atores mais difícil serão as negociações. Todavia,<br />
argumenta que a heterogeneidade é bem vista, pois será o desenho<br />
institucional que determinará a relevância ou não dos atores envolvidos.<br />
Tanto o número de atores envolvidos quanto a heterogeneidade entre os<br />
mesmos parecem ser variáveis dependentes e independentes no processo<br />
ao mesmo tempo.<br />
Em relação ao CPRs, todavia, quanto maior homogeneidade melhor,<br />
já que será dada em função dos usuários e, dessa forma, diminuirse-ão<br />
os problemas de assimetrias. Para o autor, as regras de<br />
pertencimento é que diferenciarão os problemas enfrentados nos CPRs<br />
locais e nas Relações Internacionais, uma vez que as regras são<br />
endógenas ao processo e os critérios acabam sendo majoritariamente<br />
políticos. Snidal (1995) argumenta que é possível se criar homogeneidade<br />
ou heterogeneidade pelas próprias regras, possibilitando a cooperação<br />
entre os atores. Tanto o nível local quanto o global são comparáveis para<br />
ele, porque ambos levam a problemas de ação coletiva. Portanto, o problema<br />
está em como provocar um comportamento cooperativo de partida<br />
nos atores envolvidos.<br />
3 CONCLUSÃO<br />
Este estudo teve por objetivo apresentar a questão da ação coletiva<br />
na arena doméstica, o debate sobre os regimes internacionais no sistema<br />
internacional e a questão da heterogeneidade de atores, identificando<br />
os elementos abordados pelos autores, contribuições e possíveis problemas<br />
destacados no debate.<br />
Sobre a questão da ação coletiva na arena doméstica, percebeuse<br />
a importância do debate e a necessidade de incluir as questões locais<br />
no debate internacional, tanto pelos problemas de aplicação das regras<br />
internacionais no nível local quanto pelos ligados aos interesses e preferências<br />
dos atores locais envolvidos.<br />
Sobre o debate acerca dos regimes internacionais no sistema internacional,<br />
percebeu-se a importância dele, da formação e perpetuação<br />
de um regime, além de algumas lacunas, como a dificuldade metodológica<br />
dos regimes e a falta de debates e pesquisa nessa área mais prática dos<br />
regimes.<br />
Sobre a questão da heterogeneidade de atores envolvidos, percebeu-se<br />
a importância dessa questão e a necessidade de se discutir as<br />
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<strong>10</strong>4<br />
Regimes Internacionais e Meio Ambiente<br />
implicações da heterogeneidade e suas consequências para as negociações<br />
políticas. As questões de capabilities, preferências, informações,<br />
crenças e autoridade doméstica precisam ser efetivamente incluídas nas<br />
análises internacionais, ainda que os programas de pesquisa priorizem a<br />
estrutura decisória estatal como ponto de referência nos debates internacionais,<br />
para que a cooperação ocorra.<br />
A discussão em jogos de dois níveis pode auxiliar no problema de<br />
como aplicar os modelos locais no nível global, pois dessa forma as questões<br />
metodológicas passariam a integrar as questões correntemente debatidas.<br />
As instituições internacionais como variáveis causais e<br />
intervenientes ampliariam igualmente o campo de discussão e poderiam<br />
auxiliar na estruturação dos acordos efetivados.<br />
Percebeu-se que a importância dos estudos teóricos, para as<br />
análises de cenário e previsões, é inconteste. É possível ampliar o conjunto<br />
de opções teóricas com base nos exercícios de análise e testes<br />
empíricos, contribuindo para a evolução dos estudos e construção da<br />
área do conhecimento em questão. Debates ainda no campo da teoria<br />
de regimes internacionais das Relações Internacionais tentam ampliar<br />
a discussão, e os debates construtivistas surgem igualmente como alternativas<br />
analíticas.<br />
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Recebido em: maio de <strong>2009</strong>.<br />
Aprovado em: julho de <strong>2009</strong>.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 91-<strong>10</strong>5, <strong>2009</strong>-2.
Mariana Pimenta Oliveira Baccarini <strong>10</strong>7<br />
SEGURANÇA COLETIVA E<br />
REGIMES DE SEGURANÇA<br />
MA<strong>RI</strong>ANA PIMENTA OLIVEIRA BACCA<strong>RI</strong>NI<br />
____________________________________________________________<br />
Especialista em Estudos Diplomáticos<br />
pela Faculdade Milton Campos,<br />
Mestranda em Relações Internacionais (PUC Minas)<br />
O presente trabalho foi realizado com o<br />
apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento<br />
Científico e Tecnológico (CNPq).<br />
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<strong>10</strong>8<br />
Segurança Coletiva e Regimes de Segurança<br />
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Mariana Pimenta Oliveira Baccarini <strong>10</strong>9<br />
RESUMO<br />
Este artigo pretende analisar a evolução do conceito de segurança coletiva<br />
e do que é denominado regime de segurança, ilustrando de que forma<br />
esses conceitos são reflexos do que foi observado desde sua primeira<br />
experiência, o Concerto Europeu, ao que atualmente se encontra na Organização<br />
das Nações Unidas, no antes e no pós-guerra fria. Dessa forma,<br />
objetiva-se demonstrar que não há um consenso entre os autores do<br />
que significa a segurança coletiva, apresentando cada corrente teórica<br />
um diferente entendimento sobre o assunto.<br />
Palavras-chave: segurança coletiva, regimes de segurança, Concerto<br />
Europeu, Liga das Nações, Organização das Nações<br />
Unidas.<br />
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1<strong>10</strong><br />
Segurança Coletiva e Regimes de Segurança<br />
ABSTRACT<br />
This paper aims to analyse the evolution of the collective security concept,<br />
and of what is named security regimes, illustrating how these concepts<br />
are reflections of what is observed since the first experience, the European<br />
Concert, to what today we meet in the United Nation Organization, during<br />
and in the post-cold war. Then, we aim to demonstrate that there is no<br />
consensus between the authors of the significance of Collective Security,<br />
presenting, each theoretical approach, a different explanation about the<br />
subject.<br />
Keywords: collective security, security regimes, European Concert, League<br />
of Nations, United Nations Organization.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. <strong>10</strong>7-124, <strong>2009</strong>-2.
Mariana Pimenta Oliveira Baccarini 111<br />
1 INTRODUÇÃO<br />
Vários foram os autores e as tentativas de se estabelecer um conceito<br />
para segurança coletiva, aproximando-o ora do observado durante<br />
o Concerto Europeu, ora da Liga das Nações ou da Organização das<br />
Nações Unidas (ONU). A falta de um conceito final, capaz de dar continuidade<br />
a uma teoria da segurança coletiva é o foco deste artigo, que pretende<br />
fazer uma compilação de alguns conceitos já levantados e ampliar<br />
o conhecimento sobre o assunto. Dessa forma, a conexão de cada um<br />
desses conceitos com seu momento histórico é relevante ao demonstrar<br />
que, apesar do ideal envolvido na segurança coletiva, não só por parte<br />
dos Estados como também da população mundial, ainda não conseguimos<br />
visualizar um corpo integrado de proposições, ou uma teoria, capaz<br />
de cobrir todos os modos de conduta e predizer padrões futuros de comportamento.<br />
2 CONCEITO DE SEGURANÇA COLETIVA<br />
Roland N. Stromberg (1956) afirma que, qualquer que seja o conceito<br />
exato de segurança coletiva, esse está ligado a uma crença de que:<br />
a) todas as disputas internacionais estão sujeitas a resoluções pacíficas; b)<br />
a maioria das nações é inclinada à paz e não à guerra; c) a guerra é resultado<br />
da culpabilidade de um lado em tomar uma ação deliberadamente<br />
agressiva; d) dessa forma, o agressor deve ser contido logo nas primeiras<br />
etapas, para não gerar uma agressão ainda maior com o decorrer do tempo;<br />
e) todos os Estados têm interesse em uma guerra, não importa onde<br />
ela ocorra, devendo todos ajudar a suprimi-la (STROMBERG, 1956, p. 255).<br />
Assim, acredita-se, com base nesses princípios, na possibilidade<br />
de uma ordem mundial final e justa com a existência de um status quo<br />
estável e razoável que agrade a todos. A guerra, nessa ordem mundial,<br />
seria causada por um agressor, apesar de que nem a Liga das Nações,<br />
nem a ONU, chegaram a uma definição de agressão, sendo esta sempre<br />
condicionada a opiniões morais e subjetivas. Stromberg (1956) critica essa<br />
visão afirmando que o conflito é real e constante no mundo, não devendo<br />
ser considerado um desvio irracional por ser racionalmente fundamentado<br />
em fatos econômicos, etnológicos e culturais, e não há lado certo ou<br />
errado.<br />
Para o autor, deve-se abandonar o próprio conceito de segurança<br />
coletiva e a crença de que todas as guerras se alimentam e são indivisíveis,<br />
pois, mesmo que em algumas situações isso tenha sido observado, como<br />
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112<br />
Segurança Coletiva e Regimes de Segurança<br />
na Primeira e na Segunda Guerra, a maioria não se constitui dessa forma.<br />
Ainda, para o autor, somente em algumas situações excepcionais em<br />
que houve o desenvolvimento de uma segurança coletiva para conter um<br />
Estado poderoso insaciável, esse conceito pode ser aplicado, como o<br />
ocorrido nas Guerras Napoleônicas. Mesmo na ONU, o que guia os Estados<br />
a tomarem suas decisões são os interesses nacionais, pautados no<br />
nacionalismo, que, coincidentemente, podem ter a mesma direção em<br />
uma determinada situação.<br />
Já Ernest B. Haas (1955), em seu artigo Types of collective security:<br />
an examination of operational concepts, aponta para dois possíveis entendimentos<br />
acerca do conceito de segurança coletiva: as “obrigações<br />
morais universais” e o concerto entre as grandes potências. O primeiro<br />
seria característico da Liga das Nações, o segundo referente à ONU.<br />
Nas “obrigações morais universais” governaria a regra da unanimidade<br />
da tomada de decisão, ou um consenso global a respeito da democracia<br />
e da autodeterminação nacional, ou ao menos a preferência<br />
pela paz e estabilidade em detrimento da guerra e anarquia.<br />
Já no concerto entre as grandes potências, a tomada de decisão<br />
deveria ser feita por intermédio do Conselho de Segurança, em que atualmente,<br />
se faz necessária a unanimidade entre os membros permanentes<br />
(grandes potências) e o voto afirmativo de quatro membros não permanentes<br />
(antes dois). Além disso, o poder de veto das grandes potências<br />
garante que nenhuma decisão será tomada em oposição a seus interesses,<br />
ou seja, o concerto funciona para questões que não estejam em<br />
disputa entre as grandes potências, pressupondo uma identidade política<br />
geral ou expectativa de que diferenças entre elas possam ser resolvidas<br />
privadamente.<br />
A esses dois conceitos, dois novos são apresentados pelo autor,<br />
ainda na guerra fria, pois seriam mais capazes de explicar a<br />
operacionalização da segurança coletiva. O primeiro seria o permissive<br />
enforcement, conectado à política e aos valores anticomunistas norteamericanos.<br />
O segundo conceito seria o de balanceamento, representando<br />
a tensão entre os membros da ONU.<br />
O permissive enforcement, diferentemente do concerto entre as<br />
potências pode ser direcionada contra uma das garantidoras da segurança<br />
coletiva, supondo uma mobilização dos membros da ONU contra estratégias<br />
expansivas de qualquer membro da organização, mesmo que<br />
este seja um membro permanente do Conselho de Segurança. Dessa<br />
forma, em caso de paralisação do Conselho, a Assembleia-Geral será a<br />
responsável por administrar a segurança coletiva, recomendando medidas<br />
coletivas contra um agressor em casos de atos de agressão, amea-<br />
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Mariana Pimenta Oliveira Baccarini 113<br />
ças à paz ou ruptura da paz, por meio do Uniting for Peace Resolution, de<br />
1950. Essa resolução constituía numa ação norte-americana para tornar<br />
o permissive enforcement o conceito dominante de segurança coletiva,<br />
levando um novo papel para a Assembleia-Geral das Nações Unidas. Por<br />
não ter caráter obrigatório, e sim recomendatório, o enforcement é considerado<br />
permissivo. Muito utilizado pelos Estados Unidos durante a guerra<br />
fria, o permissive enforcement é considerado por Haas um conceito<br />
que incita a luta e não a negociação. Assim, uma grande potência, como<br />
os Estados Unidos, poderia justificar medidas econômicas e militares contra<br />
um suposto agressor, justificando uma política nacional em termos de<br />
símbolos globais por deter, mesmo ambiguamente, o aval da ONU. No<br />
entanto, o conceito necessita de um sentimento de urgência ou emergência,<br />
uma identidade global com os interesse anticomunistas norte-americanos,<br />
o que não foi acatado por muitas nações importantes, como Estados<br />
árabes e asiáticos e mesmo alguns dissidentes da OTAN. O permissive<br />
enforcement teve então como maior função acalorar o debate e o<br />
surgimento do conceito de balanceamento.<br />
O balanceamento, por sua vez, pressupõe a utilização da ONU<br />
como uma agência de conciliação e mediação para amenizar a guerra fria<br />
e induzir as superpotências a aceitarem soluções de comprometimento. A<br />
balança de influência e de poder entre as superpotências leva em consideração<br />
o bloco não comprometido com nenhum dos lados para não se<br />
indispor com os aliados ou ofender algum Estado neutro importante. A<br />
mediação e a conciliação seriam conduzidas pelo bloco árabe-asiático,<br />
consistente com a política indiana de neutralismo dinâmico. Membros dissidentes<br />
da OTAN também poderiam realizar esse papel de balanceador,<br />
de alguma forma se opondo à liderança norte-americana. Além disso, era<br />
esperado um comportamento de retenção por parte das superpotências,<br />
os Estados Unidos não querendo ser taxado de unilateralista, e a ex-<br />
União Soviética não querendo ser considerada uma agressora. Dessa<br />
maneira, o conceito permite uma maior negociação entre os opositores<br />
do que o oferecido pelo permissive enforcement.<br />
Para Haas, esses conceitos se mantêm ligados a condições específicas<br />
mundiais, não podendo ser generalizados a ponto de ser considerados<br />
uma teoria de segurança coletiva. No entanto, o autor aponta a<br />
relevância do conceito de balanceamento por transcender o conflito entre<br />
realismo e idealismo, sendo capaz de transformar a ONU em um local<br />
para mediação por um balanceador neutro, favorecendo a conciliação,<br />
tréguas e plebiscito, que podem ser tornar práticas padronizadas. Então,<br />
a ONU se transformaria no próprio balanceador.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. <strong>10</strong>7-124, <strong>2009</strong>-2.
114<br />
3 REGIMES DE SEGURANÇA<br />
Segurança Coletiva e Regimes de Segurança<br />
Andrew Bennett e Joseph Lepgold (1993) apresentam uma nova<br />
visão baseada na teoria de regimes. Para os autores, o conceito de segurança<br />
coletiva pode se fundamentar em duas formulações distintas: uma<br />
que considera a segurança coletiva um regime, elaborado para sustentar<br />
um determinado status quo; outra que busca garantir que as mudanças<br />
ocorram de forma pacífica e a força seja utilizada para autodefesa.<br />
O primeiro conceito se aproxima do de Stromberg (1956) e do apresentado<br />
por Haas de “obrigação moral universal”, em que qualquer<br />
agressor pode ser confrontado pelas sanções coletivas, o que requer uma<br />
definição comum de agressão e a disposição de agir onde quer que a<br />
agressão ocorra.<br />
No segundo conceito, não existe uma declaração explícita do que<br />
seja agressão, mas é ele amparado pela evolução da “Carta das Nações<br />
Unidas”, por suas provisões e pelo seu uso na Guerra do Golfo. Nessa<br />
interpretação, a Carta não limita a autoridade do Conselho de Segurança<br />
a atos específicos de agressão; o Conselho age quando julga necessário<br />
preservar a paz.<br />
No entanto, esses conceitos são diferentemente considerados pelas<br />
várias correntes teóricas. Para os realistas, por exemplo, a questão da<br />
autoajuda e o número de grandes potências afetariam ou impediriam a<br />
segurança coletiva. Assim, seria necessário um concerto entre as potências<br />
para derrotar um aspirante à hegemonia, se dissolvendo quando interesses<br />
entrassem em conflito. Os autores retomam a teoria dos jogos e<br />
dos jogos iterativos, comparando-os com os concertos, pois há uma alteração<br />
de preferências dos Estados pela mútua cooperação em detrimento<br />
da mútua defecção. Desse modo, a cooperação seria possível, principalmente<br />
se o sistema se tornasse multipolar, visto que diminuiria o medo<br />
de exploração por parte de uma grande potência na existência de instituições<br />
confiáveis. Contudo, essa cooperação ocorreria até que os pay offs<br />
retornassem a seus valores usuais.<br />
Outras variáveis seriam importantes para a ocorrência da cooperação.<br />
A “sombra do futuro” deve ser bastante longa, para que as interações<br />
futuras sejam consideradas mais valorosas do que as atuais, e deve haver<br />
disponibilidade de informação sobre a ação dos outros. No campo<br />
militar, um desarmamento parcial seria necessário, a fim de que os custos<br />
de barrar um agressor não sejam muito altos. Além disso, uma distinção<br />
entre armas ofensivas e defensivas deveria ser feita, pois a tecnologia<br />
pode tornar mais difícil ou mais fácil tomar e manter um território.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. <strong>10</strong>7-124, <strong>2009</strong>-2.
Mariana Pimenta Oliveira Baccarini 115<br />
Os liberais, por sua vez, apontam duas condições para a segurança<br />
coletiva. Primeiramente, as afinidades e antagonismos ideológicos,<br />
étnicos e culturais entre os Estados não devem evitar a cooperação ou o<br />
enforcement entre eles. Por fim, o relacionamento entre segurança internacional<br />
e governança interna deve ser acordado entre os Estados, havendo<br />
um comprometimento com um tipo de regime político, ou seja, a<br />
democracia.<br />
Na visão institucionalista, o impacto de definições compartilhadas<br />
de problemas no comportamento dos Estados, as expectativas convergentes<br />
e os constrangimentos e ferramentas institucionais são aspectos<br />
relevantes. O comportamento orientado por regras pode tornar-se uma<br />
variável interveniente. A questão que é levantada então é se os ganhos<br />
absolutos podem ser adquiridos por meio da segurança coletiva em detrimento<br />
do foco nos ganhos relativos. Os institucionalistas acreditam que a<br />
segurança coletiva poderá ser “[...] consistente com os pressupostos egoístas<br />
sobre os interesses dos Estados, se o valor da manutenção do regime<br />
for maior do que o da defecção em um dado caso.” (BENNET;<br />
LEPGOLD, 1993. p. 221, tradução livre).<br />
A preocupação com a reputação que, se perdida em um determinado<br />
regime, pode afetar outros, o aumento de transparência e a diminuição<br />
dos custos de transação fazem com que as instituições afetem a<br />
disposição dos Estados para cooperar em longo prazo. Assim, caso acreditem<br />
que medidas coletivas não os colocarão em uma posição competitiva<br />
pior, tendem a não tomar medidas preventivas. Por fim,<br />
[...] se os ganhos conjuntos podem ser realizados através de um<br />
concerto em base global, a previsibilidade que isto gera pode fazer<br />
com que o comportamento cooperativo se torne mais crível. (BENNET;<br />
LEPGOLD, 1993. p. 222., tradução livre).<br />
Isso ocorreria, principalmente, se as instituições facilitassem ações<br />
coletivas que de outra forma seriam impossíveis.<br />
Robert Jervis (1962), por sua vez, levanta a dificuldade em se vencer<br />
o dilema do prisioneiro, por causa do dilema de segurança, em que o<br />
aumento da segurança de um Estado automaticamente diminui a segurança<br />
do outro. Por isso, para o autor, os regimes de segurança seriam<br />
valiosos e difíceis de serem alcançados. Seriam valiosos, porque ações<br />
individualistas podem ser custosas, perigosas e difíceis, pois o medo da<br />
violação dos entendimentos comuns é um grande incentivo para que os<br />
atores abandonem o regime, mesmo querendo que este prospere. A diferença<br />
entre questões de segurança e outras, como econômicas, por exem-<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. <strong>10</strong>7-124, <strong>2009</strong>-2.
116<br />
Segurança Coletiva e Regimes de Segurança<br />
plo, se devem à maior competição entre os atores nessa área; à indiferença<br />
de comportamento entre motivos de segurança ofensivos ou defensivos;<br />
à segurança ser o objetivo mais valioso para o Estado, podendo, mesmo<br />
em caso de pequenos erros, gerar grandes consequências; à dificuldade<br />
de detectar o que os outros estão fazendo ou medir sua própria segurança<br />
(incerteza). Dessa forma, os regimes de segurança, que clamam por<br />
limitações e restrições mútuas, raramente atraem os Estados.<br />
Assim, Jervis (1956) aponta algumas condições para a formação<br />
de um regime de segurança: a) as grandes potências desejam estabelecêlo,<br />
ou seja, o interesse por um ambiente mais regulamentado, o que pressupõe<br />
uma satisfação razoável com o status quo; b) os atores acreditam<br />
que os outros valorizam da mesma forma a cooperação e a segurança<br />
mútua; c) nenhum ator acredita que sua segurança é mais bem garantida<br />
a partir de expansão; d) a guerra e a busca individualista pela segurança<br />
devem ser vistas como custosas; e) em relação às armas e políticas ofensivas<br />
e defensivas, a condição mais propícia para a formação de um regime<br />
se refere a casos em que estas são distinguíveis, mas as ofensivas<br />
são mais baratas e efetivas que as defensivas, ou quando elas não são<br />
distinguíveis ou quando seja mais fácil defender do que atacar.<br />
4 CONCERTO EUROPEU<br />
Para Jervis (1982), o Concerto Europeu prevaleceu fortemente de<br />
1815 a 1823 e, de forma atenuada, até a Guerra da Crimeia, tendo os<br />
atores moderado suas demandas e comportamento, levando em consideração<br />
os interesses uns dos outros. A guerra e o conflito não foram<br />
banidos, mas regulados. No entanto, não se pode negar que os Estados<br />
continuavam colocando em primeiro lugar sua segurança e seu bem-estar,<br />
porém o autointeresse (self-interess) teve seu sentido alargado. Assim,<br />
os Estados acreditavam que estariam mais seguros, se os outros<br />
também estivessem. A menos que houvesse fortes razões contrárias, seus<br />
interesses seriam respeitados.<br />
O concerto foi apoiado pelos Estados, em função da vontade de se<br />
evitar a guerra, da série destrutiva de guerras enfrentadas para combater<br />
Napoleão e da necessidade de se controlar a instabilidade interna. Conservadores<br />
temiam que as guerras levassem à revolução, liberais às associavam<br />
com a autocracia, e todos temiam por sua segurança. A Revolução<br />
Francesa tinha ensinado que evoluções se espalham e causam guerras.<br />
Havia o risco da caída de um país levar à caída dos outros. No entanto,<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. <strong>10</strong>7-124, <strong>2009</strong>-2.
Mariana Pimenta Oliveira Baccarini 117<br />
[...] para que este sistema funcionasse, cada estado deveria acreditar<br />
que os sacrifícios atuais trariam benefícios de longo prazo, e que<br />
os outros não iriam renegar seus comprometimentos implícitos quando<br />
se encontrassem em posições tentadoras. Isto implica em uma crença<br />
de que os conflitos de interesses poderiam ser limitados e contidos<br />
por interesses comuns, inclusive o interesse em manter o regime.<br />
(JERVIS, 1982, p. 364, tradução livre).<br />
Segundo o autor, mais importante ainda é notar que, após as condições<br />
iniciais se atenuarem, o regime se perpetuou por influenciar no<br />
comportamento dos Estados. Para Jervis, foram quatro as razões: a) as<br />
expectativas da continuação do regime ajudaram a mantê-lo por meio de<br />
dinâmicas familiares, fazendo com que os atores investissem no regime<br />
pela perspectiva da manutenção da paz; b) o concerto desencorajava<br />
movimentos expansionistas por exercer grande oposição à mudança do<br />
status quo, garantindo a um Estado que, ao atuar em coalizão para impedir<br />
o revés de um outro Estado, teria mais chance de ser apoiado, se<br />
virasse alvo de predação; c) pela norma de reciprocidade que codificava<br />
os relacionamentos de cooperação, os Estados poderiam cooperar mesmo<br />
em situações em que não o fariam na ausência da norma, podendo<br />
fazer concessões sem medo de serem vistos como fracos ou alimentarem<br />
expectativas de novas concessões, o que valorizava ainda mais o<br />
concerto, ou seja, havia uma diminuição dos custos do comportamento<br />
cooperativo; d) o regime se tornou um fator independente ao ter ao menos<br />
um grau limitado de institucionalização.<br />
A partir de 1823, o regime começou a decair por causa do esquecimento<br />
da devastação ocasionada nas Guerras Napoleônicas, por diminuição<br />
do medo do desassossego doméstico e seu contágio, conectado<br />
às guerras, e por desavenças entre os Estados. O controle das revoluções<br />
se tornou ponto de discussão entre França e Grã-Bretanha de um<br />
lado, por permitirem maior liberdade doméstica, e Prússia, Áustria e Rússia<br />
de outro. Além disso, surgiram suspeitas de que o concerto estava sendo<br />
usado para interesses nacionais competitivos. Cada Estado pensava estar<br />
pagando mais e recebendo menos do que os outros pela manutenção<br />
do regime que, por não ser totalmente institucionalizado e não ter desenvolvido<br />
lealdades supranacionais, começou a ruir. O mundo já não parecia<br />
tão perigoso, e o regime não tinha mais motivos para se desenvolver.<br />
Por fim. a busca por ganhos individuais diminuiu a expectativa da duração<br />
da moderação e da reciprocidade, dando ainda mais incentivos para<br />
uma perspectiva de curto-prazo.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. <strong>10</strong>7-124, <strong>2009</strong>-2.
118<br />
5 LIGA DAS NAÇÕES<br />
Segurança Coletiva e Regimes de Segurança<br />
Para Andrew Bennet e Joseph Lepgold (1993), em oposição ao<br />
Concerto Europeu, à Liga das Nações faltava um consenso entre as grandes<br />
potências, pois Japão, Alemanha e Itália se opunham ao status quo.<br />
O Tratado de Versalhes fora altamente punitivo, não permitindo um concerto<br />
de interesses.<br />
Ronald N. Stromberg (1956), por sua vez, acreditava que a própria<br />
ideia de segurança coletiva era um “símbolo místico”, idealizado por jornalistas,<br />
moralistas, políticos populistas e pela própria população, principalmente<br />
anglo-saxônica. No entanto, a Primeira Guerra havia aumentado<br />
o nacionalismo, apesar de apelos à possibilidade da segurança coletiva<br />
transformar a guerra em obsoleta. Para o autor, a ideia remetia às<br />
comunidades na ausência de um sistema organizacional de direito e policial,<br />
assim, os próprios cidadãos saiam em busca do criminoso. Além<br />
disso, havia a ideia da mediação compulsória, em que uma maioria, amante<br />
da paz, exerceu coerção sobre uma minoria amante da guerra. Dessa<br />
forma, a comunidade internacional definiu a existência de um ato de agressão<br />
e seus membros se uniram para suprimir este ato.<br />
No entanto, a Liga das Nações falhou em prevenir a deterioração<br />
e a guerra. Os Estados Unidos se mantiveram fora da organização, e a<br />
Grã-Bretanha se uniu, porém com grandes reservas. Esses Estados não<br />
se comprometeriam a ir à guerra onde quer que esta ocorresse. A França<br />
era a maior entusiasta, mas por medo de uma recuperação alemã. Para o<br />
autor, na frase a seguir, de Arnold Toynbee, podemos substituir “a Liga”<br />
por “a política externa dos Estados Unidos e Grã-Bretanha, e “a Convenção”<br />
por “sua oposição à Alemanha e ao Japão”:<br />
1 Survey of International Affairs.In: The World in March 1939 (1952) apud STROMBERG,<br />
1956, p. 253.<br />
The reason why the League failed (to prevent World War II) was that<br />
the enforcement of the Covenant had been backed by insufficient<br />
armed power and insufficient resolution to use such power as was<br />
available. 1 (STROMBERG, 1956, p. 253).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. <strong>10</strong>7-124, <strong>2009</strong>-2.
Mariana Pimenta Oliveira Baccarini 119<br />
6 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS<br />
6.1 PÓS-SEGUNDA GUERRA E GUERRA F<strong>RI</strong>A<br />
Já a Organização das Nações Unidas, para Stromberg (1956),<br />
aceitou o fato de que a segurança coletiva não funciona em relação às<br />
grandes potências. Com a instituição do poder de veto, tornou-se necessário,<br />
em oposição à Liga das Nações, a aquiescências dos membros<br />
permanentes do Conselho de Segurança, considerados grandes potências,<br />
na crença de que, o consenso entre elas inibiria uma grande guerra.<br />
Para Ernest B. Haas (1955), ao contrário da Liga das Nações Unidas, que<br />
se baseava nas “obrigações morais universais”, a ONU, com seu Conselho<br />
de Segurança, era uma nova forma de concerto entre potências que<br />
só funcionaria quando, por razões quaisquer, as grandes potências, membros<br />
permanentes do Conselho de Segurança, se posicionassem no mesmo<br />
lado de um determinado conflito. Caso isso não ocorresse, principalmente<br />
em decorrência da guerra fria e da bipolarização, o que se observava<br />
era a paralisação do Conselho de Segurança por meio do poder de<br />
veto. Esse conceito de segurança coletiva com base no concerto de poder<br />
entre as grandes potências<br />
[...] permanece analiticamente relevante em situações que não envolvem<br />
diretamente os interesses das superpotências e relacionadas<br />
com áreas não comprometidas com a guerra fria ou não afetadas<br />
por esta. (HAAS, 1955, p. 47).<br />
Em outras situações, segundo o autor, o observado era situações<br />
de permissive enforcement, como, por exemplo, com a decisão pela intervenção<br />
na Coréia, em 27/6/1950, e as primeiras fases da intervenção<br />
nesse país e na União pela Resolução de Paz. Com a decadência do<br />
permissive enforcement por causa de pressões sofridas pelos Estados<br />
Unidas pela Índia, pelo bloco árabe-asiático e por dissidentes da OTAN,<br />
observou-se a prevalência do conceito de balanceamento, ilustrado já na<br />
busca pela trégua do conflito na Coreia desde 1951.<br />
Robert Jervis (1982) argumenta que a questão sobre se o regime<br />
de segurança regulamenta as relações entre as superpotências, durante<br />
a época em que escreve, é tão complexa que fica difícil saber se os interesses<br />
imediatos, autocentrados foram removidos para a construção de<br />
um regime. Para o autor, o fato de que houve uma cooperação para manutenção<br />
da paz entre Estados Unidos e ex-União Soviética não significa<br />
a emergência de um regime, pois as restrições a seus comportamentos<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. <strong>10</strong>7-124, <strong>2009</strong>-2.
120<br />
Segurança Coletiva e Regimes de Segurança<br />
foram resultados de autointeresses estreitos e de curto prazo por medo<br />
de confrontação direta e destruição própria. O respeito às esferas de influência<br />
não significa expectativas de reciprocidade ou desenvolvimento<br />
de interesse em relação à segurança do outro,<br />
[...] significa meramente que cada um é capaz de proteger o que<br />
considera mais valioso e que cada um pode ver que ameaçar as<br />
maiores preocupações do outro envolve custos maiores do que os<br />
ganhos esperados. (JERVIS, 1982, p. 371, tradução livre).<br />
Além disso, não há uma explicitação de quais atividades são permitidas,<br />
e os Estados mudam e rompem a regra de acordo com mudanças<br />
em seus interesses. Uma das condições necessárias para a emergência<br />
de um regime é que as potências prefiram o status quo e suas<br />
possibilidades de alteração por forças políticas não coercitivas, à busca<br />
individualista por ganhos e possíveis perdas – condição não observada<br />
durante a guerra fria. Para Robert Jervis (1982, p. 374, tradução livre),<br />
“[...] se a Rússia se sente segura somente na medida em que os Estados<br />
Unidos estão fracos e inseguros, as prospectivas para um regime de segurança<br />
são ofuscadas.” Mesmo que os dois polos tivessem concepções<br />
parecidas de interesses de segurança, as doutrinas militares e tecnológicas<br />
se constituiriam em impedimentos para a formação do regime. A doutrina<br />
de que a segurança provém da “capacidade do segundo ataque”, com a<br />
certeza da destruição mútua, escapa da lógica do regime de segurança,<br />
pois está será garantida mesmo que as potências não considerem os<br />
requerimentos de segurança do outro, se preocupem com o longo prazo<br />
ou desenvolvam regras e expectativas de restrição. Não se faz necessário<br />
o desenvolvimento de entendimentos cooperativos.<br />
No entanto, segundo o autor, os norte-americanos nunca seguiram<br />
a Mutual Assured Destruction (MAD), sendo mais ofensivos, assim<br />
como as políticas declaratórias e a postura militar russas pareceram negar<br />
a lógica do MAD, apresentando como contrapartida a crença de que<br />
sua segurança requeria a insegurança do outro. Para Jervis, os russos<br />
estavam mais próximos de fazer com que os norte-americanos adotassem<br />
suas ideias do que o oposto. Assim, apesar de passarem a ter a<br />
mesma doutrina, não haveria espaço para políticas coordenadas. Outra<br />
possibilidade seria a observância pelos russos de sua incapacidade de<br />
competir com os Estados Unidos, levando-os a buscar acordos mais atrativos<br />
do que as políticas individualistas irrestritas.<br />
Para Jervis (1982, p. 378, tradução livre),<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. <strong>10</strong>7-124, <strong>2009</strong>-2.
Mariana Pimenta Oliveira Baccarini 121<br />
6.2 NO PÓS-GUERRA F<strong>RI</strong>A<br />
[...] é duvidoso que haja fortes pressões políticas em favor de um<br />
regime a menos que haja uma dramática evidência de que as políticas<br />
de segurança individualistas estão levando a um desastre.<br />
Os rearranjos da distribuição internacional de poder e a queda da<br />
ex-União Soviética possibilitaram a emergência de um concerto liberal<br />
que inclui as potências da Eurásia e os Estados Unidos. A proliferação<br />
das tecnologias nuclear e balística torna ainda mais difícil a estruturação<br />
da segurança coletiva a custos aceitáveis, assim como os conflitos préanunciados<br />
(BENNETT; LEPGOLD, 1993).<br />
Segundo esses autores, haveria então três interpretações: a realista,<br />
a liberal e a institucionalista. Para a corrente realista, a difusão de<br />
poder entre as potências e a grande diferença entre eles tornam mais<br />
difíceis um consenso entre as grandes potências. Os autores apresentam<br />
opiniões divergentes sobre se a mudança da bipolaridade para a<br />
multipolaridade leva a mais ou menos conflitos. Para Waltz (BENNETT;<br />
LEPGOLD, 1993) a bipolaridade seria mais estável que a multipolaridade<br />
e menos propensa ao conflito, enquanto para Gilpin (BENNETT; LEPGOLD,<br />
1993) por exemplo, a multipolaridade induz a um comportamento de<br />
balanceamento mais fluido, e as incertezas quanto ao comprometimento<br />
das alianças ajuda a deter o uso da força.<br />
Em relação à balança ofensiva-defensiva, os realistas são otimistas,<br />
mas acreditam que<br />
[...] o esforço coletivo será mais difícil se as forças ofensivas locais<br />
favorecerem os agressores regionais mas as forças defensivas locais<br />
dominarem contra as grandes potências distantes. (BENNETT;<br />
LEPGOLD, 1993, p. 225, tradução livre).<br />
No entanto, global ou localmente, pela tecnologia, pela diferença<br />
de terreno e pelo tamanho dos atores, as armas ofensivas ou defensivas<br />
podem ser mais potentes em relação uma a outra.<br />
Por fim, para os realistas, apesar do fim da guerra fria, existe uma<br />
falta de incentivo normativo para mudanças no status quo, utilizando-se a<br />
força, norma, aliás, que vem sendo reforçada. Para Andrew Nennett e<br />
Joseph Legpold, a renovação dos antagonismos étnicos pode promover<br />
o conflito e essa norma. Apesar de não impedir a desintegração de Estados,<br />
é capaz de conter os efeitos externos dessas implosões e legitimar o<br />
esforço coletivo do Terceiro Mundo. No entanto, “[...] as perspectivas de<br />
um concerto de interesses entre as grandes potências é melhor agora do<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. <strong>10</strong>7-124, <strong>2009</strong>-2.
122<br />
Segurança Coletiva e Regimes de Segurança<br />
que em qualquer momento desde 1945.” (BENNETT; LEPGOLD, 1993, p.<br />
227, tradução livre), e Estados Unidos e Rússia podem pressionar ainda<br />
mais forte por seus interesses comuns, como o desencorajamento da proliferação<br />
nuclear, já que não mais disputam por aliados do Terceiro Mundo.<br />
Para os liberais, a OTAN, “vencendo” a guerra fria, facilitou a continuação<br />
da cooperação ao perdurar os efeitos da desintegração soviética<br />
e da unificação alemã. Contudo, a democratização soviética proporcionou<br />
uma dinâmica diferente, pautada não pelo medo, mas pela segurança<br />
compartilhada, interesses políticos e econômicos que incluíam o antigo<br />
hegemona. Assim, os incentivos do mercado, a aproximação dos interesses<br />
e o fim da autarquia reverteram os antigos métodos da política<br />
externa, aumentando os ganhos da mútua cooperação e os custos da<br />
defecção mútua.<br />
Para institucionalistas, a possibilidade de ganhos mútuos e a possibilidade<br />
de adaptação das normas das Nações Unidas como veículo da<br />
segurança coletiva se somariam às condições apresentadas por realistas e<br />
liberais. Na opinião desses autores, as instituições ajudam a regularizar os<br />
interesses dos Estados se envolvendo no início da disputa e minimizando<br />
os incentivos para o escalonamento de ambições ou do medo. Por isso, os<br />
acordos pacíficos das disputas e o enforcement estão relacionados e quanto<br />
mais confiança os Estados têm de que as decisões do Conselho de Segurança<br />
serão impostas é mais provável que essas sejam estabelecidas pacificamente.<br />
Todavia, para os institucionalistas, o aumento no número de atores<br />
complica a cooperação entre o grupo das grandes potências; por outro<br />
lado, se dois atores que prefiram a mútua defecção nunca cooperaram, em<br />
um número grande com interesses harmoniosos haverá cooperação. Por<br />
fim, regimes podem monitorar e compartilhar informações “[...] de forma<br />
não vista antes de 1945 e não inaceitável durante a guerra fria.” (BENNETT;<br />
LEPGOLD, 1993, p. 229, tradução livre).<br />
Em resumo,<br />
[...] realistas enfatizam que a segurança coletiva deve se basear em<br />
um concerto entre as grandes potências, que estes Estados devem<br />
concordar entre si sobre o que é necessário para preservar a paz e a<br />
ordem em casos específicos, que estes devem preferir a cooperação<br />
mútua a mútua defecção, e que interajam repetidamente. Liberais<br />
salientam a falta de ligações no nível nacional fortes o suficiente<br />
para impedir o enforcement e a potência entre democracias de mercado<br />
para uma comunidade de segurança pluralista. Institucionalistas<br />
enfatizam a capacidade do regime de minimizar os custos para Estados<br />
de cooperação não requerida. (BENNETT; LEPGOLD, 1993, p.<br />
233, tradução livre).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. <strong>10</strong>7-124, <strong>2009</strong>-2.
Mariana Pimenta Oliveira Baccarini 123<br />
Assim, as perspectivas de uma segurança coletiva são mais promissoras<br />
hoje do que nunca. Para os autores emergem então cinco temas<br />
para orientar a literatura: a) os novos links entre peacekeeping,<br />
enforcement e prevenção de conflitos; b) a inclusão ou não de novos<br />
membros no Conselho de Segurança e, dessa forma, nas decisões referentes<br />
à segurança coletiva; c) a diluição do poder de veto; d) o atrelamento<br />
entre eficácia e legitimidade da segurança coletiva e a não-imposição do<br />
forte sobre o fraco de soluções, destacando-se o papel das organizações<br />
regionais; e) a definição de condições para limitar às jurisdições nacionais.<br />
7 CONCLUSÃO<br />
Não há uma conceitualização exata do que se pode denominar<br />
segurança coletiva acordada entre os diversos teóricos de <strong>RI</strong>. Alguns a<br />
consideram enquanto concerto entre potências, como “obrigações morais<br />
universais” e um balanceamento entre os principais atores. Mas o<br />
que se observa é uma relativização do conceito, dependendo do momento<br />
histórico e político em que é aplicado. Assim, os diversos conceitos são<br />
modelados e alterados, caso se refiram ao Concerto Europeu, à Liga das<br />
Nações e à ONU, como no pós-Segunda Guerra, durante a guerra fria e<br />
no pós-guerra fria.<br />
Essa maleabilidade dificulta o estabelecimento e o desenvolvimento<br />
de uma teoria capaz de prever e mesmo descrever o que, em diversos<br />
momentos, vem recebendo o nome de segurança coletiva. Dessa maneira,<br />
as principais correntes teóricas de Relações Internacionais apresentam<br />
seu entendimento a respeito do que seria a segurança coletiva, sua<br />
função, condições e implicações, tornando-a dependente de pressupostos<br />
teóricos já estabelecidos pelas teorias.<br />
Apesar dos apelos da população mundial e dos interesses dos<br />
povos em manter e assegurar a paz e a segurança internacionais, a forma<br />
com que isso é feito não pode ser definida pelo que se denomina<br />
segurança coletiva, visto que o próprio conceito é indefinido. Isso posto,<br />
faz-se necessário um esforço teórico para atingir ao menos um mínimo<br />
denominador comum, facilitando o próprio entendimento entre os teóricos,<br />
a fim de desenvolver não só o conceito, mas também as próprias<br />
bases para uma teoria de segurança coletiva. Caso contrário, depararnos-emos<br />
com uma miscelânea teórica que tende mais a confundir do<br />
que a esclarecer a relação entre os Estados.<br />
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124<br />
Segurança Coletiva e Regimes de Segurança<br />
REFERÊNCIAS<br />
BENNETT, Andrew; LEGPOLD, Joseph. Reiventing collective security after<br />
the cold war and gulf conflict. In: Political Science Quarterly, v. <strong>10</strong>8,<br />
Issue 2, p. 213-237, 1993.<br />
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Science Review, v. 49, Issue 1, p. 40-62, March 1955.<br />
JERVIS, Robert. Security regimes. International Organization, v. 36, Issue<br />
2, p. 357- 378, Spring 1982. International Regimes.<br />
STROMBERG, Roland N. The idea of collective security. In: Journal of<br />
History of Ideas, v. 17, Issue 2, p. 250-263, April 1956.<br />
Recebido em: junho de <strong>2009</strong>.<br />
Aprovado em: julho de <strong>2009</strong>.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. <strong>10</strong>7-124, <strong>2009</strong>-2.
Pascoal Teófilo Carvalho Gonçalves 125<br />
POTÊNCIAS MÉDIAS NA<br />
ECONOMIA POLÍTICA<br />
INTERNACIONAL:<br />
PARÂMETROS ANALÍTICOS<br />
DA ESCOLHA RACIONAL<br />
PASCOAL TEÓFILO CARVALHO GONÇALVES<br />
____________________________________________________________<br />
Mestrando (PUC Minas)<br />
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126<br />
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Pascoal Teófilo Carvalho Gonçalves 127<br />
RESUMO<br />
O presente trabalho tem por objetivo estabelecer parâmetros para análise<br />
de países médios em desenvolvimento e suas coalizões na economia<br />
política internacional contemporânea. Destacamos, assim, os principais<br />
aspectos teóricos, que dizem respeito à definição desses países e ao<br />
estudo do comportamento de tais Estados. Discutimos os aspectos regionais<br />
inerentes à análise desses países, e tratamos os principais conceitos,<br />
modelos e correntes teóricas nas Relações Internacionais ligadas ao<br />
tema. Em último lugar, consideramos as abordagens que nos permitem<br />
um entendimento de suas coalizões em agendas multilaterais.<br />
Palavras-chave: Potências médias; economia política internacional; escolha<br />
racional<br />
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Potências Médias na Economia Política Internacional: Parâmetros...<br />
ABSTRACT<br />
The present paper aims to establish the conceptual framework necessary<br />
for the analysis of developing middle powers and their coalitions in<br />
contemporary international political economy. Thus, we present the main<br />
theoretical aspects concerned to the definition of these countries and to<br />
the study of their behavior. Then, we discuss the regional aspects necessary<br />
to analyze the middle powers, particularly the concepts, models and<br />
theories in International Relations linked to the subject. Finally, we consider<br />
the approaches that allow us to understand these countries’ coalitions in<br />
multilateral agendas.<br />
Keywords: Middle powers; international political economy; rational choice<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
Pascoal Teófilo Carvalho Gonçalves 129<br />
1 INTRODUÇÃO<br />
Os Estados intermediários não se confundem com as grandes<br />
potências dominantes ou com a grande massa de países pequenos ou<br />
pouco expressivos no sistema internacional. Caracterizadas por um peso<br />
significativo no ambiente regional no qual estão inseridas, as potências<br />
médias possuem, por um lado, peso suficiente na esfera multilateral para<br />
não serem desconsideradas e, por outro, não possuem a capacidade de<br />
influenciar o sistema como as grandes potências.<br />
O presente trabalho tem por objetivo estabelecer parâmetros para<br />
análise de países médios em desenvolvimento e suas coalizões na economia<br />
política internacional contemporânea. Por meio de uma revisão<br />
bibliográfica sobre o tema, apresentaremos os principais conceitos e teorias<br />
necessárias para discutirmos esses países isoladamente, em suas<br />
respectivas regiões, ou em conjunto, em coalizões internacionais.<br />
Apesar de a maior parte da literatura sobre o tema dar preferência<br />
a potências médias industrializadas, como o Canadá, França ou mesmo<br />
Japão, ainda é incipiente a pesquisa voltada para países médios do mundo<br />
em desenvolvimento, notadamente os países que, como o Brasil, se<br />
industrializaram a partir da Segunda Guerra Mundial. Dessa maneira, este<br />
trabalho parte do conceito de potência média recém-industrializada, desenvolvido<br />
por Lima (1986) e apresentado por Sennes (1998), em que os<br />
principais aspectos e referenciais teóricos, que dizem respeito à definição<br />
e o estudo do comportamento desses países, são destacados. Posteriormente,<br />
passamos à discussão acerca dos aspectos regionais inerentes<br />
ao estudo desses países, e destacaremos os principais conceitos, modelos<br />
e correntes teóricas nas Relações Internacionais ligadas ao tema.<br />
Apresentam-se, inicialmente, as teorias sistêmicas, posteriormente as<br />
abordagens que focalizam o impacto da interdependência regional e, finalmente,<br />
as teorias que enfatizam a importância de fatores domésticos,<br />
conforme a análise de Hurrell (1995).<br />
Passaremos, então, às abordagens que nos permitem um entendimento<br />
conjunto desses países médios recém-industrializados,<br />
notadamente suas coalizões. A respeito desse aspecto, apresentar-se-ão<br />
as principais explicações e os modelos teóricos desenvolvidos para a<br />
análise de coalizões tipo IBSA (Índia, Brasil e África do Sul).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
130<br />
Potências Médias na Economia Política Internacional: Parâmetros...<br />
2 POTÊNCIAS EMERGENTES: CONCEITOS E AÇÕES<br />
Sennes (1998, p. 396), depois de uma revisão bibliográfica de seis<br />
conceitos distintos utilizados para classificar potências médias, conclui<br />
que o ponto comum de todas as abordagens revisadas é uma posição<br />
intermediária no sistema internacional global, na condição de Estado que<br />
afeta o sistema internacional, e uma participação expressiva nos sistemas<br />
regionais e sub-regionais em que estão inseridos. Segundo o autor,<br />
é pela combinação dessas duas características que as potências médias<br />
se destacam como atores relevantes, atuantes e estruturantes do sistema<br />
internacional.<br />
Entretanto a preocupação da maior parte da bibliografia sobre o<br />
tema é com potências médias industrializadas, como Canadá, Suécia e<br />
Austrália, deixando de fora países médios em desenvolvimento ou recém-industrializados,<br />
como Brasil, Índia e México. Notadamente, o comportamento<br />
destes Estados passou a ser mais autônomo, ao passo que,<br />
a partir de meados do século XX, o rápido crescimento econômico e a<br />
industrialização os levaram a uma nova forma de inserção internacional.<br />
Mesmo que ainda condicionadas, suas capacidades de negociação, ou<br />
seus poderes relativos, na esfera internacional aumentaram assim como<br />
suas respectivas integrações à economia mundial. Observou-se, porém,<br />
que o comportamento dos Estados recém-industrializados se fracionou<br />
em duas formas distintas. Uma parte permaneceu totalmente alinhada<br />
com as grandes potências e os países desenvolvidos, projetando um tipo<br />
de ação internacional de baixo impacto. Por outro lado, outros passaram<br />
a buscar uma posição de liderança política, tanto no nível regional como<br />
no global, defendendo reformulações no ordenamento político e econômico<br />
internacional (SENNES, 1998).<br />
Lima (1986), por sua vez, propôs um modelo de análise capaz de<br />
captar e explicar as múltiplas opções estratégicas desses países, admitindo<br />
que elas variam de acordo com um conjunto de condicionantes e<br />
possibilidades internas e externas. Para a autora, o traço mais marcante<br />
das ações externa de tais países é o comportamento de natureza<br />
multifacetada, ou seja, em razão de sua condição intermediária e recémindustrializada<br />
comportam-se ora como países fortes, ora como países<br />
fracos, ora autônomos, ora dependentes, por isso desenvolvem formas<br />
compostas de ação internacional.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
Pascoal Teófilo Carvalho Gonçalves 131<br />
Lima (1986) utiliza o instrumental da ação coletiva para atribuir à<br />
diversidade de estratégias adotadas por esses países o fato de estarem<br />
perseguindo ações externas simultaneamente distributivas e expansivas.<br />
Estabelecem estratégias para se beneficiar das possibilidades abertas no<br />
sistema internacional – free riding – e buscam, ao mesmo tempo, um<br />
remodelamento desses últimos, a fim de que todos os países do Terceiro<br />
Mundo sejam beneficiados. A necessidade de adotarem uma multiplicidade<br />
de estratégias externas seria derivada do jogo cruzado de pressões que<br />
os países recém-industrializados sofrem em diversos campos do sistema<br />
internacional e do desequilíbrio de seus recursos de poder, gerando capacidade<br />
e vulnerabilidades variadas de acordo com o campo de ação. A<br />
multiplicidade de ações desses atores políticos pode ainda ser compreendida<br />
pela motivação de seus interesses individuais e pelo uso da<br />
racionalidade estrita.<br />
Embora a perspectiva da escolha racional afaste o modelo de Lima<br />
de uma abordagem sistêmica para compreender a ação dos Estados segundo<br />
suas configurações específicas e individuais, a análise da autora<br />
ganha em flexibilidade e em capacidade de explicação ao admitir e<br />
estruturar coerentemente o comportamento multifacetado dos países recém-industrializados<br />
(SENNES, 1998).<br />
Três elementos devem ser considerados em análises de ações<br />
multifacetadas: o grau de presença internacional do país estudado, o peso<br />
e a efetividade da presença regional e a tendência a compor um quadro<br />
acentuadamente variado de estratégias internacionais. O primeiro elemento<br />
envolve a ponderação de um conjunto mínimo de dados empíricos<br />
acerca de presença física, econômica, populacional comercial, diplomática<br />
e militar em relação aos demais atores do sistema internacional, assim<br />
como o teor da agenda externa, de posturas diante dos acordos e tratados<br />
multilaterais, do perfil dos laços econômicos, comerciais, financeiros<br />
e qualquer outro indicador da capacidade de ação internacional do ator<br />
(SENNES, 1998).<br />
A inserção regional pode ser aferida por meio de dados sobre a<br />
presença geográfica do país na região e do grau de prioridade que os<br />
temas regionais ocupam em sua agenda externa – tipos de ação diplomática,<br />
acordos e tratados regionais, laços econômicos, comerciais, financeiros<br />
e teor das disputas políticas ocorridas entre seus membros<br />
(SENNES, 1998).<br />
Finalmente, a multiplicidade de estratégias internacionais é fruto<br />
da condição simultânea de vulnerabilidade e de autonomia que esses<br />
países tendem a demonstrar. Dessa maneira, a aparente incoerência de<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
132<br />
Potências Médias na Economia Política Internacional: Parâmetros...<br />
ação externa das potências médias decorre de seu padrão não uniforme,<br />
que possui um componente estrutural, e que não pode ser atribuída à<br />
deficiente racionalidade dos condutores dessas políticas (SENNES, 1998).<br />
Em relação aos padrões de comportamento das potências médias, Sennes<br />
distingue na literatura as relações multilaterais, bilaterais em relação às<br />
grandes e pequenas potências e no âmbito regional. Em relação à<br />
multilateralidade são observadas duas tendências: a) as potências médias<br />
tendem a atuar nos fóruns multilaterais e apoiar instituições internacionais<br />
a estabelecerem relações bilaterais que envolvam as grandes potências;<br />
b) as potências médias tendem a buscar alianças e ações coletivas<br />
para viabilizar o acúmulo de poder necessário e se fazerem presentes<br />
no cenário internacional (KEOHANE, 1969 apud SENNES, 1998).<br />
No âmbito bilateral, no que tange às grandes potências, as potências<br />
médias buscam manter-se livres de influência direta em relação aos<br />
assuntos internos e regionais. Quanto às pequenas potências, por outro<br />
lado, as potências médias buscam exercer ao máximo sua capacidade de<br />
influência e suas relações vantajosas, enfatizando, assim, as relações<br />
bilaterais e não buscando evitá-las (MARES, 1988 apud SENNES, 1998).<br />
No âmbito regional, as potências médias agem como potências regionais<br />
hegemônicas constituindo o espaço referencial do engajamento político<br />
internacional das potências médias e a arena em que veem seus interesses<br />
mais diretamente envolvidos. Assim, por um lado, as potências médias<br />
buscam reforçar sua influência e presença regional e, por outro, evitam<br />
que potências extrarregionais interfiram ou incrementem sua presença<br />
e influência na região (SENNES, 1998).<br />
3 ASPECTOS REGIONAIS<br />
O ponto de partida para entendermos “região” e “regionalismo” é a<br />
proximidade geográfica, que, embora nos diga pouco acerca do sentido<br />
desses termos, nos informa minimante sobre organizações não globais. Os<br />
problemas derivam, em grande medida, da atenção acadêmica despendida<br />
nas décadas de 60 e 70, que buscou analisar o regionalismo em termos de<br />
coesão social, econômica e organizacional, e da ideia de interdependência<br />
regional. Entretanto, as tentativas de se delimitar o campo “cientificamente”<br />
produziram pouco e incertos resultados (HURRELL, 1995).<br />
Os fatores que podem estar relacionados com o crescimento do<br />
regionalismo são amplos e incluem as dimensões econômicas, sociais,<br />
políticas, culturais e históricas, mas o debate contemporâneo nos lembra<br />
que regiões “naturais”, definições de “região” e indicadores de<br />
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Pascoal Teófilo Carvalho Gonçalves 133<br />
regionalidade variam de acordo com o problema ou questão particular<br />
sob investigação. O ponto crítico é, então, como os atores políticos percebem<br />
e interpretam a ideia de região, pois todos as regiões são socialmente<br />
construídas e, assim, politicamente contestadas (HURRELL, 1995).<br />
3.1 MODELOS DE REGIONALISMO<br />
Lima e Coutinho (2006) apontam para a existência de dois modelos<br />
fundamentais de regionalismo: o modelo aberto e o regionalismo geográfico.<br />
O primeiro, decorrente do Consenso do Washington, dominou a<br />
orientação e a legitimação dos processos de regionalização na década<br />
de 90; o segundo passou, ou voltou, a imperar a partir dos primeiros anos<br />
do século XXI.<br />
O liberalismo aberto diz respeito à ideia de abertura de mercados<br />
e globalização financeira e produtiva e um regionalismo não exclusivo, ou<br />
seja, uma modalidade de integração regional que seria criadora de comércio,<br />
sem provocar seu desvio para fora da região. Assim, a visão de<br />
regionalismo que predominava nos anos 90 era estritamente comercial,<br />
em que acordos de livre comércio fixavam as iniciativas de abertura comercial<br />
que a periferia estava implementando (LIMA; COUTINHO, 2006).<br />
Os acordos de livre comércio levaram a duas consequências no<br />
campo da cooperação internacional: a distância geográfica deixou de ser<br />
impeditiva de colaboração comercial e a formação de áreas de livre comércio<br />
com grandes assimetrias entre os parceiros. Os acordos de livre<br />
comércio, de toda forma, ocorreram e se expandiram mais rapidamente<br />
em economias já relativamente integradas e complementares, e seu<br />
aprofundamento costuma causar maiores graus de oposição doméstica,<br />
pois o conflito distributivo gerado pelo deslocamento de setores econômicos<br />
e a respectiva mão-de-obra são capazes de politizar a cooperação<br />
regional (LIMA; COUTINHO, 2006).<br />
O regionalismo aberto deu lugar, a partir dos anos 2000, à noção<br />
de região como espaço geográfico, tal como era tradicionalmente entendida.<br />
Isso ocorreu em função da valorização política e física das regiões,<br />
decorrente, em primeiro lugar, dos atentados de 11 de setembro de 2001,<br />
o que levou a uma reavaliação da segurança internacional e à alegada<br />
ameaça provocada por Estados “fracos” ou “falidos” que passaram a potenciais<br />
hospedeiros de redes terroristas internacionais. Em segundo lugar,<br />
há a preocupação da comunidade internacional em criar capacidade<br />
institucional e política nas áreas periféricas, mirando os Estados com<br />
maiores capacidades e recursos e propondo o aumento da<br />
representatividade das regiões nos espaços de decisão global. Assim, as<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
134<br />
Potências Médias na Economia Política Internacional: Parâmetros...<br />
regiões periféricas passaram de mercados emergentes e áreas potenciais<br />
de livre comércio para a condição de atores políticos, ocultos pelo<br />
processo de globalização. O fim da guerra fria e a regionalização voltaram<br />
à questão de integração física e social (LIMA; COUTINHO, 2006).<br />
Existe um caráter distintivo entre os dois modelos de regionalismo<br />
no que se refere aos mecanismos operacionais para a construção regional.<br />
O regionalismo aberto exige menor capacidade operacional do Estado<br />
e depende mais dos agentes econômicos do mercado, ao passo que,<br />
além de depender de maior coordenação dos Estados, a integração física<br />
demanda a existência de poder infraestrutural suficiente, uma vez que<br />
supõe uma visão estratégica de região, e atores com capacidades estratégicas<br />
como são os Estados e não os atores de mercado (LIMA;<br />
COUTINHO, 2006).<br />
3.2 ASPECTOS TEÓ<strong>RI</strong>COS: REGIONALISMO E<br />
RELAÇÕES INTERNACIONAIS<br />
As explicações teóricas para o regionalismo na política mundial<br />
serão tratadas da seguinte maneira: primeiramente serão consideradas<br />
as teorias sistêmicas, notadamente o neorrealismo e a interdependência<br />
estrutural; posteriormente, serão tratadas as abordagens que focalizam o<br />
impacto da interdependência regional, o neofuncionalismo e o<br />
institucionalismo neoliberal; finalmente, as teorias que enfatizam a importância<br />
de fatores domésticos (HURRELL, 1995).<br />
As teorias sistêmicas estão voltadas para a importância de estruturas<br />
políticas e econômicas dentro das quais estão imersos os arranjos<br />
regionais que produzem impactos e pressões externas nas regiões. Tomando<br />
o neorrealismo em primeiro lugar, essa teoria nos chama a atenção<br />
para os constrangimentos do sistema internacional anárquico e a<br />
importância da política de poder competitiva. Nesse sentido, a cooperação<br />
regional sempre constituiu um desafio ao realismo (HURRELL, 1995).<br />
Para neorrealistas, as políticas de regionalismo e o surgimento de<br />
alinhamentos regionais têm muito em comum com formação de alianças.<br />
O regionalismo é entendido pela observação externa da região e pela<br />
análise do local ocupado por essa região no sistema internacional mais<br />
amplo. Agrupamentos regionais se formam em resposta a desafios externos<br />
e não há diferenças essenciais entes regionalismo econômicos e políticos.<br />
Por essa perspectiva, os objetivos econômicos da integração regional<br />
derivam da relação estreita que existe entre riqueza econômica e<br />
poder político e da “inerente” preocupação estatal com ganhos e perdas<br />
relativas (HURRELL, 1995).<br />
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Pascoal Teófilo Carvalho Gonçalves 135<br />
Segundo o entendimento realista, a existência de uma hegemonia<br />
pode estimular o regionalismo e a criação de instituições regionais de diversas<br />
maneiras. Primeiramente, grupos sub-regionais geralmente se formam<br />
em resposta à existência de um poder hegemônico constituído ou<br />
potencial. O regionalismo pode surgir da tentativa de restringir o livre exercício<br />
do poder hegemônico mediante a criação de instituições regionais.<br />
Uma terceira consequência de um poder hegemônico para o regionalismo<br />
seria o fenômeno bandwagoning, no qual Estados fracos buscam se acomodar<br />
com o hegêmona local, a fim de receberem recompensas especiais.<br />
Finalmente, o surgimento da cooperação e a criação de instituições internacionais<br />
podem ser associados a uma hegemonia em ascensão, interessada<br />
na construção de instituições regionais (HURRELL, 1995).<br />
O neorrealismo, portanto, dá pouca atenção para regionalização,<br />
ou integração econômica regional. A teoria é útil ao apontar para como<br />
constrangimentos externos e a estrutura do sistema internacional moldam<br />
as opções regionalistas dos Estados, especialmente dos pequenos. Também<br />
é um bom referencial ao apontar a lógica da interação estratégica,<br />
quando a identidade dos atores e a natureza de seus interesses são conhecidas<br />
e compreendidas. Por outro lado, o neorrealismo é limitado no<br />
que se refere ao caráter da cooperação regional, uma vez estabelecida, e<br />
as formas nas quais hábitos de cooperação mantidos através do tempo<br />
podem envolver estruturas institucionais muito diferentes das ideias tradicionais<br />
de coalizão, aliança ou organizações internacionais tradicionais. O<br />
funcionamento de tais instituições pode levar a novas definições de interesse<br />
e, talvez, a novas concepções do self dos atores (HURRELL, 1995).<br />
A forma como o neorrealismo caracteriza o sistema internacional<br />
não leva em conta a forma como a natureza da competição política e<br />
econômica e, consequentemente, a definição de interesses estatais, são<br />
afetados por mudanças no sistema econômico global. A interdependência<br />
sistematizada na obra de Nye e Keohane, na década de 70, surgiu e<br />
cresceu tendo em vista essas limitações da teoria realista. Entretanto, o<br />
foco estrutural ou sistêmico desenvolvido por esses autores passou a se<br />
concentrar nas ligações entre interdependência e poder estatal e na natureza<br />
do papel desempenhado pelos regimes na gerência da<br />
interdependência dentro de uma área temática específica. A preocupação<br />
inicial com novos atores foi substituída por um forte viés estatocêntrico<br />
(HURRELL, 1995).<br />
A globalização se tornou um importante tema no pós-guerra fria,<br />
e, embora careça de uma conceituação teórica, o termo é uma significativa<br />
metáfora para uma gama de processos universais que interconectam<br />
e geram interdependência entre Estados e entre sociedades. Os argu-<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
136<br />
Potências Médias na Economia Política Internacional: Parâmetros...<br />
mentos contemporâneos principais em favor do termo “globalização” dizem<br />
respeito ao aumento da densidade e da profundidade da<br />
interdependência econômica; a revolução nos meios de informação tem<br />
desempenhado um papel destacado na difusão de conhecimento,<br />
tecnologia e ideias; no fato de que Esses desenvolvimentos criam a<br />
infraestrutura material para fortalecer a interdependência social que, com<br />
a influência integradora e homogeneizadora das forças de mercado, facilitam<br />
fluxos crescentes de valores, conhecimento e ideias, favorecendo<br />
grupos com ideias similares, para que se organizem através das fronteiras<br />
nacionais, criando uma sociedade civil transacional que inclua tanto<br />
comunidades políticas transnacionais como movimentos sociais<br />
transnacionais; e que isso tem levado a uma crescente, e inédita,<br />
conscientização de problemas globais e de pertencimento a uma única<br />
comunidade humana (HURRELL, 1995).<br />
Em relação ao regionalismo, essas ideias têm consequências a<br />
favor e contra. Contra o regionalismo pesam, primeiramente, os níveis de<br />
interdependência econômica, que paralelamente ao surgimento de questões<br />
globais, criaram uma poderosa demanda por instituições internacionais<br />
globais e não regionais. Em segundo lugar, a expansão da<br />
interdependência econômica e o desenvolvimento da cooperação política,<br />
econômica e de segurança através do mundo pela OCDE (Organização<br />
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) criaram elementos<br />
poderosos de coesão ocidental e não especificamente regional. A balança<br />
ente globalização e regionalização da atividade econômica é complexa.<br />
Embora exista uma mudança para o lado da regionalização, há<br />
muita ambiguidade nos dados e há forças integrativas poderosos, especialmente<br />
quando tendências no comércio são consideradas ao lado de<br />
desenvolvimentos nas finanças globais e de estruturas de produção globais<br />
envolvendo alianças entre Estados e firmas que transpassam regiões<br />
(HURRELL, 1995).<br />
Por outro lado, acerca de fatores que pesam a favor da globalização<br />
em relação ao regionalismo temos, em primeiro lugar, que<br />
aprofundamentos na integração levam a problemas de ação coletiva e a<br />
formas particulares de administração de regulamentação desses problemas<br />
que são intrínsecos aos assuntos domésticos e às prerrogativas de<br />
soberania dos Estados. Assim sendo, o ambiente regional favorece a viabilidade<br />
política dessas instituições em detrimento do ambiente global,<br />
uma vez que semelhanças culturais, histórica, a homogeneidade de sistemas<br />
sociais e de valores, a convergência de interesses políticos e de<br />
segurança e as características das coalizões domésticas facilitam a aceitação<br />
da regulamentação externa (HURRELL, 1995).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
Pascoal Teófilo Carvalho Gonçalves 137<br />
Em segundo lugar, o caráter global de muitas questões é exagerado.<br />
A maioria dos temas possui efeitos em determinadas regiões, sendo<br />
nestes locais que interesses e incentivos devem pressionar por respostas<br />
políticas. Em terceiro, há um forte argumento que sustenta que o regionalismo<br />
representa o nível mais viável para reconciliar o mercado o mercado<br />
integrativo e as pressões tecnológicas a favor da globalização e<br />
integração de um lado, e a igualmente visível tendência a favor da fissão<br />
e fragmentação do outro lado (HURRELL, 1995).<br />
A integração global pode atuar como um forte estímulo para o regionalismo<br />
econômico, na medida em que altera e intensifica padrões de<br />
competição econômica mercantilista. Mudanças associadas à<br />
globalização, como nas telecomunicações, tecnologia ou no mercado global,<br />
impactaram a forma como os governos definem os dois objetivos<br />
mais importantes de política externa: desenvolvimento econômico e autonomia<br />
política, assim como o arranjo de trade-offs aceitáveis entre eles<br />
(HURRELL, 1995).<br />
A globalização significa que os Estados enfrentam fortes pressões<br />
a favor da homogeneização de políticas econômicas no intuito de atrair<br />
tecnologias e investimentos estrangeiros. Isso leva a pressões no sentido<br />
de políticas liberais de comércio tanto no nível local como no global. Por<br />
outro lado, a natureza da competição pressiona a favor da formação de<br />
grandes unidades para maior eficiência econômica e no sentido de assegurar<br />
o poder político necessário para barganhas efetivas sobre regras e<br />
instituições que governam o mundo econômico (HURRELL, 1995).<br />
Com relação às abordagens que focalizam o impacto da<br />
interdependência regional, temos o neofuncionalismo, o institucionalismo<br />
neoliberal e o construtivismo. Em contraste às abordagens que tomam o<br />
sistema com um todo, este segundo arcabouço de teorias vê uma ligação<br />
estreita entre regionalismo e interdependência regional (HURRELL, 1995).<br />
O neofuncionalismo, principal corrente desenvolvida na construção<br />
teórica do processo europeu de integração, sustenta que níveis altos<br />
ou crescentes de interdependência desencadeariam um contínuo processo<br />
de cooperação que levaria eventualmente à integração política. A hipótese<br />
central dessa teoria é que integração se torna autossustentada e a<br />
metáfora central é o spill-over. Existem dois tipos: spill-over funcional, no<br />
qual os primeiros movimentos no sentido da integração criariam problemas<br />
que somente poderiam ser resolvidos por uma cooperação posterior;<br />
spill-over político, no qual a existência de instituições supranacionais<br />
em um processo de autorreforço de construção institucional e o<br />
gerenciamento da interdependência complexa requerem administração<br />
tecnocrata centralizada (HURRELL, 1995).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
138<br />
Potências Médias na Economia Política Internacional: Parâmetros...<br />
Entretanto, o neofuncionalismo concentra-se mais no papel das<br />
instituições do que nos fatores que explicam o nascimento do regionalismo.<br />
A hipótese acerca do declínio gradual do Estado em relação a instituições<br />
centrais diverge radicalmente da orientação estatocêntrica da maioria<br />
dos arranjos regionais fora da União Europeia. A teoria se concentra<br />
demasiado nas instituições e isso limita sua efetividade diante da maioria<br />
dos esquemas regionais que possuem baixo nível de institucionalização<br />
(HURRELL, 1995).<br />
Por sua vez, o institucionalismo neoliberal se fundamenta em três<br />
argumentos principais: a) níveis crescentes de interdependência levam a<br />
demandas crescentes por cooperação internacional. Instituições são entendidas<br />
como soluções propositais para diferentes tipos de problemas<br />
de ação coletiva; b) o Estado é o principal ator caracterizado como egoísta<br />
racional e que enfrenta dilemas de ação coletiva que podem levar à<br />
cooperação, pressuposto que mantém as premissas básicas do realismo;<br />
c) as instituições importam em razão dos benefícios que elas proveem e<br />
por causa de seus impactos nos cálculos dos atores e forma como os<br />
Estados definem seus interesses (HURRELL, 1995).<br />
Apesar da força do institucionalismo neoliberal, sua maior fraqueza<br />
está na não-percepção de que a regionalização extensiva e a cooperação<br />
regional constante podem minar o caráter monolítico do Estado,<br />
levando à criação de alianças burocráticas intergovernamentais, a jogos<br />
de múltiplos níveis e jogadores e à formação de novos tipos de identidades<br />
acima e abaixo dos Estados territoriais. Esses elementos são<br />
notadamente difíceis de incorporar ao modelo de escolha racional e perspectivas<br />
e barganhas estatais que dominam o debate (HURRELL, 1995).<br />
As teorias construtivistas se apoiam em noções como regional<br />
awareness e “identidade regional” – no senso compartilhado de<br />
pertencimento a uma comunidade regional específica – e “regionalismo<br />
cognitivo”. Ao invés de se apoiarem exclusivamente em incentivos materiais,<br />
os construtivistas enfatizam a importância de conhecimentos, aprendizados,<br />
forças ideacionais e estruturas normativas e institucionais compartilhadas.<br />
Assim, o entendimento de estruturas intersubjetivas nos permitiria<br />
traçar as formas nas quais interesses e identidades mudam ao<br />
longo do tempo e como novas formas de cooperação e comunidade podem,<br />
assim, emergir. Neorrealistas e racionalistas sugerem, entretanto,<br />
que as teorias construtivistas superestimam a importância de identidades<br />
regionais e discursos sobre região e regionalização. Dessa maneira os<br />
críticos apontam que conflitos violentos geralmente ocorrem dentro de<br />
comunidades altamente integradas que compartilham valores e crenças<br />
(HURRELL, 1995).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
Pascoal Teófilo Carvalho Gonçalves 139<br />
Existem ainda as teorias que se focam no papel de atributos ou<br />
características domésticas compartilhados. Há três formas genéricas em<br />
que podemos relacionar fatores domésticos com o regionalismo contemporâneo.<br />
Primeiramente, temos a relação entre regionalismo e a coerência<br />
estatal. Cooperação regional e integração são dependentes da coerência<br />
e viabilidade dos Estados e suas estruturas. A falta de Estados<br />
viáveis torna o processo de regionalização difícil ou impossível. Esse problema<br />
é o principal obstáculo para o desenvolvimento de regionalismos<br />
efetivos em lugares como África, Oriente Médio e Sul da Ásia. Os exemplos<br />
de regionalismos mais elaborados (como UE, Nafta, Asean e Mercosul)<br />
são de regiões nas quais as estruturas dos Estados se mantiveram relativamente<br />
fortes e em que a legitimidade de fronteiras e regimes não é<br />
recorrentemente questionada (HURRELL, 1995).<br />
Em segundo lugar, há o tipo de regime e democratização. Democracia<br />
faz uma diferença fundamental nos processos de regionalização e<br />
manutenção da paz. A possível existência de uniões pacíficas regionais é<br />
de fundamental importância para o entendimento das dinâmicas do regionalismo<br />
contemporâneo. Desde meados da década de 90 qualquer teoria<br />
de integração tem considerado a relação entre instituições utilizadas<br />
para gerenciar a interdependência e questões de representação, responsabilidade<br />
e legitimidade política (HURRELL, 1995).<br />
Finalmente, as teorias de convergência entendem as dinâmicas<br />
da cooperação regional e, principalmente, integração econômica regional<br />
em termos de convergência de preferências políticas domésticas entre<br />
Estados em uma região. Nesse sentido, integração não seria almejada<br />
como parte de um grande projeto de ir além do Estado-nação, mas como<br />
o melhor meio de abrigar ou proteger um projeto doméstico particular<br />
construído em torno do bem-estar econômico e social keynesiano, bem<br />
como de arranjos sociais corporativos (HURRELL, 1995).<br />
4 IMPLICAÇÕES INSTITUCIONAIS PARA O REGIONALISMO:<br />
NÍVEL DOMÉSTICO<br />
Moravcsik (1993), buscando avançar nas abordagens<br />
neofuncionalistas, toma a União Europeia como caso para estudo e sugere<br />
que o bloco pode ser analisado como um regime intergovernamental<br />
exitoso, que visa administrar a interdependência econômica pela coordenação<br />
política negociada. Apesar do foco em um bloco regional caracterizado<br />
por potências médias já industrializadas, o autor lança luz sobre o<br />
papel dos arranjos institucionais regionais e sobre a política doméstica<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
140<br />
Potências Médias na Economia Política Internacional: Parâmetros...<br />
dos países envolvidos. Consideramos, assim, que o autor contribui teoricamente<br />
para a análises de outros blocos.<br />
A teoria de regimes funcionalista vê as instituições internacionais<br />
como um conjunto de regras passivas, redutoras de custos de transação.<br />
Dessa forma, a teoria entende as instituições da UE como um arcabouço<br />
para a negociação de decisões maiores. As instituições promovem a cooperação<br />
provendo um fórum negociador com instituições burocráticas que<br />
disseminam informações e ideias políticas. Constituem um local para a<br />
representatividade e discussão de interesses convergentes de diversos<br />
tipos de atores, tais como os de negócios, partidos políticos, burocracias<br />
nacionais e grupos de interesses. As instituições também constituem um<br />
conjunto comum de normas legais e políticas e ajudam no monitoramento<br />
e definição de aquiescência nacional, de forma que maior informação e<br />
previsibilidade reduzem os custos de barganha e os riscos de não aquiescência<br />
unilateral (MORAVCSIK, 1993).<br />
Entretanto, ao voltarmos nossa atenção do processo decisório constitucional<br />
maior para o processo legislativo corriqueiro, administração e<br />
aquiescência, a UE parecerá bem menos uma instituição internacional<br />
comum. O autor destaca dois pontos de divergência com outros regimes<br />
internacionais, a saber: acumulando soberania nacional por meio de regras<br />
de votação com base em maioria qualificada e delegando poderes<br />
soberanos à instituições centrais semiautônomas (MORAVCSIK, 1993).<br />
A fim de entendermos as condições nas quais os Estados membros<br />
abdicarão de decisões ad hoc sob uma regra de unanimidade em<br />
favor de um acordo comum para acumular ou delegar soberania, deve-se<br />
ampliar o entendimento da teoria de regimes. O autor sugere, então que<br />
tomemos a análise da escolha coletiva (public choice analyses) de escolhas<br />
domésticas constitucionais. A teoria intergovernamentalista entende<br />
a decisão de se adotar uma votação baseada em maioria qualificada ou<br />
delegação a instituições comuns como o resultado de uma análise de<br />
custo-benefício do curso de decisões substantivas futuras esperadas de<br />
arranjos institucionais alternativos (MORAVCSIK, 1993).<br />
Para os membros individuais se valerem de tal cálculo custo-benefício,<br />
a decisão de delegar ou acumular soberania aponta para a vontade<br />
de os governos nacionais aceitarem um risco político maior de serem, individualmente,<br />
voto vencido ou sobrerregrados em qualquer questão específica<br />
em troca de maior eficiência no processo de tomada de decisão coletiva.<br />
Dessa maneira, ações além de votação unânime e negociações ad hoc<br />
para uma classe de decisões podem ser entendidas como um meio de<br />
encorajar deliberadamente linkages implícitos por meio de várias questões<br />
dentro de um jogo interativo entre governos (MORAVCSIK, 1993).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
Pascoal Teófilo Carvalho Gonçalves 141<br />
A teoria tradicional de regimes focaliza-se no papel deles na redução<br />
de custos de transação e no processo de tomada de decisão de governos<br />
nacionais. Moravcsik (1993) sugere então que as instituições da<br />
UE desempenham uma segunda função, que seria alterar o peso das<br />
iniciativas e influências domésticas. Comparativamente, essa alteração<br />
fortaleceria a autonomia política dos governos nacionais às custas de<br />
grupo específicos. Nesse sentido, onde interesses domésticos são fracos,<br />
as instituições da UE foram deliberadamente construídas para auxiliar<br />
os governos nacionais a superarem oposições domésticas. Governos<br />
nacionais empregam as instituições da UE como parte de uma estratégia<br />
tipo “jogo de dois níveis” com o intuito de superar oposições domésticas<br />
com mais eficácia.<br />
Putnam (1988), principal teórico de análises em dois níveis, rejeita<br />
o pressuposto do Estado unitário adotado pelas principais teorias das<br />
Relações Internacionais. Apesar de localizar sua perspectiva dentro do<br />
institucionalismo de escolha racional, o autor enfatiza a importância do<br />
papel desempenhado por aspectos políticos domésticos, que incluem<br />
partidos, classes sociais, grupos de interesse (tanto econômicos como<br />
não econômicos), legisladores e mesmo a opinião pública e as eleições,<br />
e não apenas chefes de governo e arranjos institucionais. Esses atores e<br />
condicionantes serão, segundo o autor, determinantes nas negociações<br />
internacionais que levarão eventualmente à adoção de uma determinada<br />
política.<br />
As negociações internacionais devem ser entendidas com base<br />
em dois níveis de análise: as negociações no nível nacional e internacional,<br />
que se influenciam mutuamente. No nível nacional, os grupos de interesse<br />
exercem pressão sobre os governos, e os partidos políticos formam<br />
coalizões com esses grupos na busca pelo poder (PUTNAM, 1988).<br />
No nível internacional, os governos nacionais buscam maximizar sua própria<br />
capacidade de satisfazer as pressões domésticas, ao mesmo tempo<br />
em que minimizam as consequências adversas dos desenvolvimentos<br />
exteriores. Cada líder político nacional estaria presente nas mesas de<br />
negociação internacionais e nacionais. No âmbito internacional, as negociações<br />
ocorrem com líderes estrangeiros, sob os olhares de diplomatas<br />
e outros conselheiros. No âmbito doméstico, o líder nacional interage com<br />
seus conselheiros políticos e demais atores que compõem os grupos domésticos,<br />
tais como figuras do partido e do Parlamento, porta-vozes de<br />
agências domésticas e representantes de grupos de interesse. Os resultados<br />
de ambas as negociações só podem ser analisados considerandose<br />
suas interações mútuas, uma vez que o que é racional em uma instância<br />
pode encontrar resistências políticas em outra (PUTNAM, 1988).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
142<br />
Potências Médias na Economia Política Internacional: Parâmetros...<br />
O processo de negociação entre dois ou mais atores estatais no<br />
âmbito internacional pode, segundo Putnam (1988), ser analiticamente<br />
decomposto em duas fases:<br />
a) nível I – barganha entre os negociadores no âmbito internacional,<br />
que levam a acordos provisórios (fase de negociação);<br />
b) nível II – discussões dentro de cada grupo de constituintes sobre<br />
a ratificação ou não de um acordo (fase de ratificação). A<br />
ratificação inclui procedimentos formais e informais para<br />
implementação dos acordos firmados no nível I.<br />
A interação entre esses dois níveis constitui o “jogo de dois níveis”.<br />
No nível II, o acordo deve ser aceito ou rejeitado “por inteiro”, não<br />
sendo permitidas emendas, as quais levariam o acordo novamente à mesa<br />
de negociações do nível I. As negociações ocorridas neste nível, por seu<br />
turno, dependem do tamanho dos win-sets dos respectivos países. Winset<br />
é definido como o conjunto de todos os acordos possíveis no nível I,<br />
que poderiam ser aprovados no processo de ratificação ocorrido no nível<br />
II. Dessa definição, deduz-se que: win-sets maiores elevam a possibilidade<br />
de ocorrência de um acordo, ceteris paribus, favorecendo a convergência<br />
mútua em um ou mais pontos; o tamanho relativo dos win-sets<br />
respectivos no nível II afeta a distribuição de ganhos conjuntos derivados<br />
da barganha internacional (PUTNAM, 1988).<br />
5 POTÊNCIAS MÉDIAS E COALIZÕES<br />
Andrew Hurrell (2006) distingue quatro razões para tomarmos países<br />
como China, Rússia, Índia e Brasil conjuntamente. Primeiramente,<br />
todos possuem recursos de poder (econômico, militar e político), alguma<br />
capacidade de contribuir na produção da ordem internacional (regional<br />
ou globalmente) e algum nível de coesão internacional e capacidade para<br />
efetiva ação estatal. Índia e China se destacam pelos altos níveis de crescimento<br />
econômico e pelas projeções sobre seus desenvolvimentos econômicos<br />
futuros e as possíveis implicações geopolíticas e geoeconômicas.<br />
Por outro lado, Brasil é tido como um dos dez maiores mercados emergentes,<br />
ao lado de Índia e China, que estão adquirindo poder suficiente<br />
para mudar economia e política globais.<br />
Em segundo lugar, esses países compartilham a crença de que<br />
devem desempenhar um papel mais influente nos assuntos mundiais.<br />
Desafios à legitimidade da ordem internacional raramente derivam de pro-<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
Pascoal Teófilo Carvalho Gonçalves 143<br />
testos dos fracos; ao contrário, geralmente decorrem dos Estados ou pessoas<br />
com a capacidade e organização política para requerer uma revisão<br />
da ordem e das normas estabelecidas, de forma que reflitam seus próprios<br />
interesses, preocupações e valores. Embora a possibilidade de confronto<br />
entre grandes potências tenha diminuído, a questão do reconhecimento<br />
tem-se acirrado pelo crescimento da ideia de que a sociedade internacional<br />
busca a promoção de valores e propósitos compartilhados da<br />
simples coexistência e manutenção do conflito em níveis mínimos<br />
(HURRELL, 2006).<br />
A terceira razão decorre do desenvolvimento de relações entre<br />
eles. Podemos mencionar a criação do G-20 dentro da OMC e o<br />
estreitamento de relações, promovido por Brasil e Índia, com África do<br />
Sul, com a formação IBSA. Finalmente, Hurrell (2006) nos aponta que<br />
esses países se diferenciam ainda de outros middle powers, já que, tanto<br />
no caso brasileiro como no indiano, esses países se mantiveram críticos<br />
e, ao menos no nível retórico, afastados do bloco ocidental que emergiu<br />
no pós-Segunda Guerra Mundial. Os casos chinês e russo foram marcados<br />
pelo afastamento radical do Ocidente em função dos processos revolucionários.<br />
Um dos temas mais importantes neste debate está relacionado à<br />
capacidade de esses países se engajarem em coalizões que exercem<br />
pressões sobre os fóruns internacionais multilaterais. Nesse sentido, a<br />
OMC constitui o maior campo de estudo acerca de tais coalizões e sobre<br />
o papel dos middle powers nas negociações multilaterais.<br />
Narlikar e Tussie (2004) abordam essa temática sob aspectos teóricos.<br />
Para as autoras, a ação dos países em desenvolvimento na reunião<br />
ministerial de Cancún foi imprevista e inovadora, conseguindo resultados<br />
efetivos pela coalizão G-20 no âmbito das negociações sobre agricultura.<br />
Apesar de não ser a primeira tentativa de coalizões no âmbito da OMC, o<br />
alinhamento EUA-União Europeia forçou os principais países em desenvolvimento<br />
a se engajarem em coalizões nas negociações sobre algodão,<br />
a agenda Cingapura, produtos estratégicos e mecanismos de salvaguardas<br />
e a agricultura.<br />
O G-20 tem sua origem na Declaração de Brasília, de 2003, entre<br />
Brasil, Índia e África do Sul, e constituiu uma resposta ao alinhamento<br />
entre EUA e UE nas negociações sobre agricultura. Responsáveis por<br />
69% da produção mundial de alimentos e com nada menos de 2/3 da<br />
população mundial, o G-20 aproximou países extremamente distintos e,<br />
segundo as autoras, constituiu uma nova fase na diplomacia proativa de<br />
seus principais fundadores, conseguindo efetivar-se como um novo ator<br />
nas negociações (NARLIKAR; TUSSIE, 2004).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
144<br />
Potências Médias na Economia Política Internacional: Parâmetros...<br />
O arcabouço teórico examinado pelas autoras aponta para dois<br />
problemas centrais em relação às coalizões de países em desenvolvimento:<br />
peso mínimo, uma vez que em geral os países são pequenos na<br />
economia global; risco de fragmentação, pois dependem da coalizão em<br />
si, dos interesses dos países envolvidos, das estratégias de negociação<br />
e das outras partes (NARLIKAR; TUSSIE, 2004).<br />
Primeiramente, o peso pequeno pode ser superado de três maneiras:<br />
a) reorganizando a coalizão com economias maiores, com ocorreu<br />
no Grupo de Cairns, que contava, por exemplo, com Austrália; b) coalizões<br />
de países pequenos e fracos podem aumentar seu poder de barganha,<br />
apoiando-se em membros maiores, que aumentam o tamanho do<br />
mercado, a legitimidade da agenda e, principalmente, a recusa de acordos<br />
sub-ótimos; c) países pequenos podem também promover uma pesquisa<br />
profunda sobre o objeto em negociação e encontrar uma posição<br />
comum (NARLIKAR e TUSSIE, 2004).<br />
Por outro lado, o risco de fragmentação é maior em coalizões de<br />
países em desenvolvimento, por causa da menor capacidade de esses<br />
países resistirem às pressões, das diferentes prioridades dos membros,<br />
da diversidade de questões, da estratégia negocial dentro da coalizão<br />
(estratégia distributiva) e do risco de free riding dos membros menores<br />
(NARLIKAR; TUSSIE, 2004). As autoras distinguem dois tipos de coalizões:<br />
tipo bloco e alianças em temas. O primeiro deriva de razões ideológicas<br />
e fatores relacionados à identidade. Ocorre entre países like minded,<br />
que busca adotar posições coletivas através do tempo e de áreas<br />
temáticas. O segundo tipo, as alianças em temas, se assenta em razões<br />
instrumentais, geralmente se formam direcionadas a ameaças específicas<br />
e se dissipam logo após o encaminhamento da questão.<br />
As coalizões tipo bloco dominaram os arranjos terceiro-mundistas<br />
até meados da década de 80. As alianças em temas vieram com a Rodada<br />
Uruguai, da OMC. O fato de o G-20 ter sobrevivido a Cancún aponta<br />
para os mais de 20 anos de experiência desses países na formação de<br />
blocos e congrega, ao menos na percepção das autoras, elementos dos<br />
dois tipos de coalizões. As coalizões de Doha e Cancún se caracterizam<br />
pela presença de países em desenvolvimento, pela perpetuação das questões<br />
em foco, pela operação através de temas (across issues) e pelo<br />
compartilhamento da ideia de que o mundo em desenvolvimento possui<br />
problemas em comum e necessita de ações coletivas para resolvê-los.<br />
Resulta disso uma abertura para outras coalizões em oposição aos modelos<br />
anteriores de “nós” contra “eles”, assim como foco maior em um<br />
menor número de questões. Isso se constitui em coalizões de terceira<br />
geração (NARLIKAR; TUSSIE, 2004).<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
Pascoal Teófilo Carvalho Gonçalves 145<br />
No caso do G-20, os três maiores membros, Brasil, Índia e China,<br />
tiveram um papel decisivo na manutenção da coerência dos interesses e<br />
na redução das deserções dos membros menores. A coesão do grupo<br />
perante interesses muito divergentes, como, por exemplo, o caso do interesse<br />
protecionista indiano na agricultura, diante do ímpeto liberalizante<br />
brasileiro e argentino, o que foi equacionado por meio de pesquisa e análise,<br />
prévias e cuidadosas, sobre a proposta da coalizão, quando foi possível<br />
revelar as divergências e superá-las (NARLIKAR; TUSSIE, 2004).<br />
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
A revisão aponta, de forma geral, para a necessidade de termos<br />
em mente a questão regional e o conceito de potências médias em desenvolvimento,<br />
assim como os aspectos teóricos relacionados à<br />
regionalização, que estão ligados às teorias de Relações Internacionais,<br />
à formação de coalizões e aos conceitos estabelecidos e desenvolvidos<br />
pela literatura. A despeito do desenvolvimento teórico existente para abordarmos<br />
o tema, muita pesquisa empírica ainda se faz necessária para<br />
sustentar várias conjecturas racionalistas presentes na bibliografia, como,<br />
por exemplo, interdependência e regionalização no contexto da<br />
globalização. Apesar dessa carência, o âmbito regional é inevitavelmente<br />
o principal ambiente para a projeção internacional de qualquer país, sendo<br />
especialmente sensível para as potências médias.<br />
A abordagem em “jogos de dois níveis” talvez seja um dos maiores<br />
campos para investigação dentro da economia política contemporânea. A<br />
perspectiva teórico-metodológica apresenta avanços expressivos para as<br />
teorias baseadas na escolha racional, pois oferece uma ferramenta para<br />
tratarmos os Estados de forma mais complexa do que simplesmente “caixas-pretas”.<br />
A abordagem oferece instrumentos para expandirmos o entendimento<br />
e análise da formação das preferências dos Estados, obviamente<br />
em perspectiva diferente daquelas construtivistas, mas que contribui decisivamente<br />
para o institucionalismo de escolha racional.<br />
Finalmente, a formação de coalizões pelas potências médias é,<br />
sem dúvidas, um dos temas que mais vêm recebendo atenção tanto acadêmica<br />
como midiática. O papel dos países médios recém-industrializados<br />
nas negociações da OMC foi decisivo, tal como apontado no decorrer<br />
do texto. Mas, além do regime de comércio, outras agendas, como o regime<br />
de mudanças climáticas e até o G-20 proposto pelos Estados Unidos<br />
para lidar com a crise das hipotecas norte-americanas, constituem-se em<br />
instigante campo de investigação para os estudiosos interessados. De<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
146<br />
Potências Médias na Economia Política Internacional: Parâmetros...<br />
toda forma, a investigação empírica ainda é incipiente em relação às coalizões.<br />
REFERÊNCIAS<br />
HURRELL, Andrew. Explaining the resurgence of regionalism in world<br />
politics. Review of International Studies, (21: 4), 1995.<br />
______. Hegemony, liberalism and global order: what space for would-be<br />
great powers? International Affairs, v. 82, n. 1, 2006.<br />
______; NARLIKAR, Amrita. A new politics of confrontation?: developing<br />
countries at Cancún and beyond. Global Society, v. 20, n. 4, 2006.<br />
LIMA, M. R. Soares de. The political economy of Brazilian foreign<br />
policy: nuclear energy, trade and Itaipu. Ph.D. Dissertation in Political<br />
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______; COUTINHO, M. V. Integração Moderna: análise de conjuntura.<br />
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MORAVCSIK, A. Preferences and power in the European Community: a<br />
liberal intergovernmentalist approach. Journal of Common Markets<br />
Studies, v. 31, n. 4, 1993.<br />
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PUTNAM, Robert. Diplomacy and domestic politics: the logic of two-level<br />
games. International Organization, v. 42, n. 3, 1988.<br />
SENNES, Ricardo Ubiraci. Potência média recém-industrializada:<br />
parâmetros para analisar o Brasil. Contexto Internacional, v. 20, n. 2,<br />
1998.<br />
Recebido em: junho de <strong>2009</strong>.<br />
Aprovado em: agosto de <strong>2009</strong>.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 125-146, <strong>2009</strong>-2.
André Luis Nascimento dos Santos 147<br />
BANCO MUNDIAL E AGENDA<br />
DE REFORMA DO JUDICIÁ<strong>RI</strong>O<br />
LATINO-AME<strong>RI</strong>CANO:<br />
UMA BREVE ANÁLISE DO<br />
BINÔMIO RETÓ<strong>RI</strong>CA-AÇÃO<br />
ANDRÉ LUIS NASCIMENTO DOS SANTOS<br />
____________________________________________________________<br />
Mestre em Administração pela UFBA,<br />
Doutorando na Escola de Administração,<br />
Especialista em Direito do Estado pela UFBA,<br />
Pesquisador do Laboratório de Análise<br />
de Política Mundial (LABMUNDO),<br />
Professor de Teoria das <strong>RI</strong>s da UNIJORGE e<br />
no Curso de Especialização em<br />
Relações Internacionais da UFBA(CE<strong>RI</strong>A)<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
148<br />
Banco Mundial e Agenda de Reforma do Judiciário Latino-Americano...<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
André Luis Nascimento dos Santos 149<br />
RESUMO<br />
No âmbito da agenda neoliberal de reforma do Estado para a América<br />
Latina, sobretudo na década de 90 (século XXI), destaca-se a plataforma<br />
dirigida especificamente aos Judiciários latino-americanos. Sob a justificativa<br />
de que o fortalecimento das instituições judiciais seria de fundamental<br />
importância para a consolidação da ordem democrática, a garantia<br />
dos direitos humanos e a sustentação do desenvolvimento econômico,<br />
uma série de atores internacionais (agências de cooperação, organizações<br />
internacionais, instituições financeiras, Estados, ONGs, etc.) desprendeu<br />
esforços para a consecução dessa reforma. Diante dessa conjuntura,<br />
diversos documentos publicados a partir do final da década de 90<br />
alegavam que, de um modo geral, as instituições judiciárias da América<br />
Latina e Caribe não satisfaziam as crescentes necessidades do setor privado,<br />
do público e, em especial, a necessidade dos pobres. O presente<br />
artigo, fruto de nossa dissertação de Mestrado, buscará analisar o papel<br />
do Judiciário na condução da governabilidade democrática latino-americana<br />
e os interesses implícitos e explícitos das organizações internacionais<br />
(OIs), em especial do Banco Mundial, analisando, assim, as estratégias<br />
e discursos desse ator em prol da referida agenda para os Judiciários<br />
da região. A partir dessa análise, buscaremos refletir sobre os desdobramentos<br />
dessa agenda na condução dos processos de integração latino-americana,<br />
via padronização de procedimentos jurídicos.<br />
Palavras-chave: reforma do Estado, reforma do Judiciário, América Latina,<br />
neoliberalismo, Banco Mundial.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
150<br />
Banco Mundial e Agenda de Reforma do Judiciário Latino-Americano...<br />
ABSTRACT<br />
The neoliberal agenda of state reform in Latin America, especially in the<br />
90th (century), stands a platform aimed specifically for Judiciary Latin<br />
America. The justification that the strengthening of judicial institutions would<br />
be fundamental importance for the democratic order, human rights<br />
guarantees and support economic development. A great number of<br />
international actors (agencies, financial institutions, governments, NGOs,<br />
etc.) made efforts to achieve this reform.Various documents published since<br />
the late 90 claimed that, in general, the judicial institutions of Latin America<br />
and the Caribbean didn´t meet the private sector’ needs, the public sector´s<br />
needs and, in particular, the poor’s needs. It was necessary structure a<br />
reform plan that would privilege the judicial independence of judges, the<br />
efficiency of the courts, the speeds of processes, the changes in procedurals<br />
law, access to justice, among other sensitive issues in the conduct of the<br />
Judiciary. Among the major agencies that defend these discourses can be<br />
highlighted as a priority, the World Bank which, in the 90s, published three<br />
papers focused entirely on the Judiciary Latin America and their respective<br />
agenda of reform. Thus, between 1995 and 1996 were published two very<br />
important papers: the numbers 280 and 319 World Technical paper, the<br />
first brings the diagnoses made on the situation of the judiciary in Latin<br />
America and the second, one propose. In the same documents, the World<br />
Bank has proposed a prescription for reform of the Judiciary and assessed<br />
the experiences of reforms in two countries in the region. In the other<br />
hand, other international agencies such as the IDB, UNDP, US-AID, and<br />
even the UN itself and advocating the need for reform of judiciary, especially<br />
during the 90s. However, none of them reached the level of articulation<br />
and the ability rhetoric presented by the World Bank. This bank is also the<br />
agency with greater capacity to influence the field of development in the<br />
90’s. In this paper, the result of our research masters, we intend to examine<br />
the role of the judiciary in the conduct of democratic governance in<br />
Latin America, the implicit and explicit interests of International<br />
Organizations and their strategies and discourses emanating from the<br />
World Bank in support of that agenda for the Judiciary in the region. Finally,<br />
we seek to reflect the possible implications World Bank’s rhetorical strategy<br />
of action in the process of catalysis Latin American’s integration.<br />
Keywords: State reform, judicial reform, Latin America, neoliberalism,<br />
World Bank.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
André Luis Nascimento dos Santos 151<br />
1 INTRODUÇÃO<br />
No âmbito da agenda neoliberal de reforma do Estado para a América<br />
Latina, sobretudo na década de 90 (século XXI), destaca-se a plataforma<br />
dirigida especificamente aos Judiciários latino-americanos. Sob a<br />
justificativa de que o fortalecimento das instituições judiciais seria de fundamental<br />
importância para a consolidação da ordem democrática, garantia<br />
dos direitos humanos e sustentação do desenvolvimento econômico,<br />
uma série de atores internacionais (agências de cooperação, instituições<br />
financeiras, Estados, ONGs, etc.) desprendeu esforços para a consecução<br />
dessa reforma.<br />
Diante dessa conjuntura, diversos documentos publicados a partir do<br />
final da década de 90 alegavam que, de um modo geral, as instituições judiciárias<br />
da América Latina e Caribe não satisfaziam as crescentes necessidades<br />
do setor privado, do público e, em especial, a necessidade dos pobres.<br />
Portanto, era necessário a estruturação de um plano de reforma judicial 1 que<br />
privilegiasse a independência dos juízes, a eficiência dos Tribunais, a<br />
celeridade dos processos, a alteração das leis processuais, o acesso à Justiça,<br />
entre outros temas sensíveis na condução desses Judiciários.<br />
Dentre as principais agências defensoras desses discursos, podese<br />
destacar, prioritariamente, o Banco Mundial (BM) que, na década de<br />
90, publicou três documentos inteiramente focalizados nos Judiciários<br />
latino-americanos e a sua respectiva pauta de reforma. Assim, entre 1995<br />
e 1996 foram publicados os documentos WTP 280, WTP 319 e WTP 350<br />
(WORLD BANK, 1995, 1996), nos quais se realizaram diagnósticos sobre<br />
a situação do Poder Judiciário nos países da América Latina. Nos mesmos<br />
documentos, o BM propôs um receituário para a reforma dos Judiciários<br />
e avaliou as experiências de reformas empreendidas em dois 2 países<br />
da região.<br />
1 “Por otra parte, cabe mencionar que tanto el Banco Mundial como el Banco Interamericano<br />
para el Desarrollo, la Organización de los Estados Americanos, entre otros, han auspiciado<br />
múltiples conferencias focalizadas en el tema de las reformas judiciales, tales como el<br />
‘Encuentro sobre Reforma de la Administración de la Justicia’, realizado en Buenos Aires,<br />
Argentina, los días 5 y 6 de diciembre de 1994, y la ‘Conferencias Internacional sobre<br />
Resultados de las Reformas Judiciales en América Latina: avances y obstáculos para el<br />
nuevo siglo’, organizada por la Cooperación Excelencia en la Justicia, en la ciudad de<br />
Bogotá, Colombia, del 28 al 31 de julio de 1998.” (ÁLVAREZ, Gladis Stella. La mediación<br />
y el acceso a justicia. Santa Fé, Argentina: Rubinzal-Culzoni Editores, 1ª edição, 2003.<br />
p. 18.)<br />
2 O WTP 350 analisa as experiências de reforma do Judiciário realizadas na Argentina e<br />
no Equador.<br />
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Banco Mundial e Agenda de Reforma do Judiciário Latino-Americano...<br />
Além do BM, outras agências internacionais, tais como o BID, o<br />
PNUD, a USAID, e, até mesmo a própria ONU, Propugnaram a necessidade<br />
de reformas desses Judiciários, sobretudo ao longo da década de 90.<br />
Todavia, nenhuma delas atingiu o grau de articulação e a capacidade retórica<br />
apresentada pelo BM. Esse banco é, também, a agência com maior<br />
capacidade de influência no campo do desenvolvimento na década de 90.<br />
No presente artigo, fruto de nossa pesquisa de Mestrado, temos a<br />
intenção de analisar o papel do Judiciário na condução da governabilidade<br />
democrática latino-americana, os interesses implícitos e explícitos das<br />
OIs e as respectivas estratégias e discursos emanados pelo BM em prol<br />
da referida agenda para os Judiciários da região. Ao final, buscaremos<br />
refletir as possíveis implicações dessa estratégia de retórica-ação do BM<br />
nos processos de catálise da integração latino-americana.<br />
2 IMPORTÂNCIA DOS JUDICIÁ<strong>RI</strong>OS NA CONSTRUÇÃO DA<br />
GOVERNABILIDADE DEMOCRÁTICA NOS ESTADOS<br />
LATINO-AME<strong>RI</strong>CANOS<br />
A Justiça, enquanto campo de estudo, constitui-se em uma área<br />
pública, polimórfica que afeta diversos setores da vida econômica, política<br />
e social de um país (ROLLÓN, 2005). Pensar nos Judiciários para<br />
além da administração da Justiça e da série de instituições auxiliares que<br />
o constituem, é pensar também na função de serviço público que eles<br />
exercem para com os cidadãos e, principalmente, na sua função de poder<br />
de Estado que faz parte da estrutura política de um país (ROLLÓN, 2005;<br />
SADEK, 2004).<br />
Não por outro modo, a pesquisa nesse campo complexo reivindica<br />
o uso de recursos multidisciplinares que envolvam o Direito, os Estudos<br />
Organizacionais, a Ciência Política, as Relações Internacionais, entre<br />
tantas outras áreas do conhecimento aplicado, a fim de permitir uma<br />
diversidade de tratamentos analíticos sobre os temas situados nas fronteiras<br />
da interdisciplinaridade. Contudo, esse enfoque interdisciplinar da<br />
Justiça e do poder judicial ainda é um campo recente dentro das Ciências<br />
Sociais, especialmente, no Brasil (ROLLÓN, 2005).<br />
Segundo Boaventura de Souza Santos (2001), o interesse teórico<br />
das Ciências Sociais, sobretudo, da Sociologia do Direito, deslocou-se<br />
dos interesses puramente normativos para os aspectos mais processuais,<br />
institucionais e organizacionais do Direito, principalmente, pela junção<br />
de uma série de condições teóricas e sociais emergidas entre as<br />
décadas de 50 e 60.<br />
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André Luis Nascimento dos Santos 153<br />
Entre as condições teóricas, o autor aponta para:<br />
a) o desenvolvimento da Sociologia das organizações, em especial,<br />
a organização judiciária, tendo os Tribunais como pano de<br />
fundo;<br />
b) o desenvolvimento da Ciência Política e o interesse pelos Tribunais,<br />
enquanto locus da decisão e de poder político;<br />
c) o desenvolvimento da Antropologia do Direito e da Etnologia<br />
Jurídica que transcenderam o estudo das sociedades pós-coloniais,<br />
passando a focalizar suas atenções nos novos países africanos<br />
e asiáticos, bem como nos países em desenvolvimento<br />
da América Latina.<br />
Em relação às condições sociais, o mesmo autor destaca, em primeiro<br />
lugar, a contestação política de grupos, cujas bandeiras de luta<br />
contribuem para trazer à tona temas como a igualdade e o acesso ao<br />
Direito e à Justiça. Em segundo lugar, a crise da administração da Justiça<br />
iniciada na década de 60, muito em razão do aumento da procura da<br />
Justiça causada pelos novos direitos sociais conquistados e a crise do<br />
Estado, razão pela qual a Justiça se tornou imóvel para expandir e aperfeiçoar<br />
suas atividades em concomitância com o aumento da demanda.<br />
Nesse contexto, no qual condições teóricas e sociais dialogam<br />
entre si, o estudo dos Judiciários ganha relevo na teoria democrática,<br />
haja vista o papel dessas instituições em primar por julgamentos justos<br />
de acordo com o “princípio da lei”. Guillermo O’Donnell (1998), em seu<br />
artigo clássico “Poliarquias e a (in)efetividade da lei na América Latina”,<br />
elege o “princípio da lei” ou “Estado de Direito” como sendo o critério<br />
mínimo de justeza e igualdade de tratamentos, principalmente, no âmbito<br />
dos julgados que um Estado deve oferecer para se autonomear como<br />
uma democracia. Esse seria, para Guillermo O’Donnell (1998), o caráter<br />
intermediário entre as democracias meramente formais e as democracias<br />
dotadas de completude de acessos socioeconômicos.<br />
Marisa Ramos Rollón (2005) identifica que o Poder Judiciário se<br />
situa, enquanto instituição, no núcleo dos sistemas democráticos, em função<br />
de três razões:<br />
a) os Judiciários são os garantes dos direitos e das liberdades fundamentais,<br />
sendo eles o representante da manutenção do Estado<br />
Democrático de Direito;<br />
b) por ser um poder que se inter-relaciona com os outros poderes<br />
de Estado, seu fortalecimento auxilia na manutenção dos pesos<br />
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Banco Mundial e Agenda de Reforma do Judiciário Latino-Americano...<br />
e contrapesos que a teoria clássica da democracia definiu como<br />
parâmetro para as democracias representativas;<br />
c) o funcionamento eficaz da administração da Justiça materializase<br />
em um serviço público central para o exercício adequado dos<br />
direitos e deveres dos cidadãos em sociedades democráticas.<br />
No que tange à América Latina, a temática dos Judiciários e eventuais<br />
processos de reformas ganharam fôlego, notadamente a partir da<br />
década de 80, com os movimentos de democratização e o debate público<br />
sobre a crise do Judiciário. Tal agendamento continuou na pauta ao longo<br />
da década de 90 e se estende até os dias atuais, por conta dos reclames<br />
dos organismos internacionais, em especial do BM, acerca da construção<br />
de uma governança guiada pelo fortalecimento de instituições.<br />
O tema da crise do Judiciário, que Boaventura de Souza Santos<br />
(2001) elege como uma das condições sociais para o desenvolvimento<br />
da sociologia dos tribunais é, sem dúvida, um tema que se coloca para os<br />
países da América Latina e, consequentemente, abre espaço para justificar<br />
a necessidade de reformá-lo. Gladys Stella Álvarez, juíza argentina,<br />
inicia sua obra La mediación y el accesso a justicia (2003) comentando o<br />
processo de profunda crise que os sistemas judiciais atravessam. Para<br />
tal, a autora recupera uma série de pesquisas de opinião realizadas com<br />
atores da sociedade civil de diferentes países latino-americanos, a fim de<br />
medir a opinião dos atores em relação ao desempenho das instituições<br />
judiciais desses países.<br />
Dentre algumas dessas pesquisas referenciadas pela autora, destaca-se<br />
o caso argentino, no qual uma série de entrevistas realizada pelo<br />
Instituto Guallup, com a cooperação da Agência Internacional para o Desenvolvimento<br />
(USAID), demonstraram os seguintes resultados: a grande<br />
maioria da população não encontra aspectos positivos na Justiça argentina<br />
(80%). Quanto aos aspectos negativos, 35% da população elegem<br />
a lentidão e a burocracia como os principais vilões, ao passo que os<br />
outros aspectos apontados foram a falta de justiça, parcialidade, privilégio<br />
para os mais ricos, corrupção, impunidade, falta de independência,<br />
politização, relações de amizades e leis brandas e desatualizadas (entre<br />
9% a 4%) (ÁLVAREZ, 2003).<br />
Se tomarmos como exemplo o caso do Brasil, o processo de crise<br />
do Judiciário e o consequente clamor por reformas podem ser vistos como<br />
um movimento de mão dupla que envolve o nacional e o global. Em relação<br />
ao primeiro, a crise passou a ser percebida por amplos setores da<br />
população brasileira, não ficando esse debate circunscrito às classes<br />
políticas e aos operadores do Direito (SADEK, 2004). O ambiente global,<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
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por sua vez, pode ser observado pela conjunção de discursos e práticas<br />
emanadas pelos organismos internacionais para os fins de reforma, bem<br />
como pela anuência dos Estados em relação a essas agendas.<br />
Assim, o cenário sugere que a retórica-ação das OIs têm como<br />
projeto para América Latina e Caribe ambientes de livre mercado, dotados<br />
de previsibilidade e segurança jurídica, cujos regimes democráticos<br />
sejam capazes de justificar o sistema, via liberdade dos cidadãos e igualdade<br />
aparente 3 de acessos. Não à toa, a inquietação de pesquisa da<br />
Professora Cristina Carvalho Pacheco (2000), quando de sua dissertação<br />
de Mestrado, trabalhava em que medida as reformas liberalizantes<br />
do Estado, nos anos 90, contribuíam para a consolidação democrática do<br />
Brasil:<br />
Em que medida a proposta elaborada pelo Banco Mundial de reforma<br />
do Judiciário latino-americano, em nome de maior rapidez, economia<br />
e segurança nas decisões judiciais e de um Judiciário que<br />
atenda a comunidade carente e os excluídos, constitui-se de fato<br />
numa reforma? Em que medida não contém, nessa nova roupagem,<br />
a possibilidade de perpetuação de um modelo de instituição forjado<br />
nos séculos XVIII e XIX, fundamental para a continuidade do capitalismo?<br />
Se é verdade que num processo de consolidação democrática<br />
o Sistema da Justiça constitui a arena mais importante para que<br />
se consolide o princípio da lei, através da denúncia contínua dos que<br />
não cumprem as regras constitucionais, em que medida o papel desempenhado<br />
pelo STF, enquanto guardião da Constituição brasileira,<br />
vem contribuindo efetivamente para a consolidação da democracia<br />
no país?<br />
Tais questões relacionadas à reforma das instituições judiciais, para<br />
além da realidade brasileira, colocam-se, em maior e menor grau, para<br />
grande parte dos países da América Latina, onde o Brasil é um dos<br />
partícipes, não obstante a histórica dificuldade de este integrar-se com as<br />
nações vizinhas. A peça-chave nesse “baralho” de intenções aparentemente<br />
virtuosas e meritórias esconde a dupla tensão entre o fortalecimento<br />
das democracias neófitas vis-à-vis: a construção e a estabilização<br />
de um novo marco regulatório para arejamento do sistema capitalista.<br />
3 “Aparente” porque não nos parece que a igualdade propugnada por esses organismos<br />
consiga ir para além do desejo utilitário de justificação do sistema posto. Essa talvez seja<br />
a grande discussão sobre democracias completas, democracias formais e a expressão<br />
intermediária de Estado de Direito.<br />
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Banco Mundial e Agenda de Reforma do Judiciário Latino-Americano...<br />
3 ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS E INTERESSES IMPLÍCITOS<br />
E EXPLÍCITOS PARA REFORMA DO JUDICIÁ<strong>RI</strong>O<br />
LATINO-AME<strong>RI</strong>CANO: O CASO BANCO MUNDIAL<br />
A análise dos discursos e das práticas emanadas por muitas das<br />
OIs, que de algum modo se ocuparam do Judiciário latino-americano na<br />
década de 90, nos leva a identificar, em maior ou menor grau, a junção do<br />
binômio retórica-ação nos esforços empreendidos em prol das ditas reformas.<br />
Entre essas agências, o comportamento do BM, do BID 4 , do PNUD 5<br />
e da USAID 6 parece ter extrapolado a retórica e empreendido uma verdadeira<br />
práxis em prol da execução dessas reformas de fato.<br />
Não por outro motivo, a apresentação do livro editado pelo BID,<br />
em 1999 – La Justicia más allá de nuestras fronteras: experiencias de<br />
reforma útiles para América Latina y el Caribe – informa veemente aos<br />
leitores que, desde 1993, esse banco assumiu compromisso com o setor<br />
judicial da América Latina e Caribe e que, a partir de então, vem desenhando<br />
e executando projetos e programas de apoio dos processos de<br />
reforma e modernização da Justiça na região. Nessa interessante publicação,<br />
o BID, utilizando-se de uma análise comparativa de experiências<br />
de reformas do Judiciário executadas em outras regiões do mundo que<br />
não a América Latina (Canadá, Austrália, países da Europa e Japão),<br />
sugere que os modelos exitosos devam ser adotados pelos Estados da<br />
região (independentemente de tradições jurídicas).<br />
O PNUD, também, usando o binômio retórica-ação, destaca-se<br />
pelo esforço de problematizar a democracia na região. Em pesquisa<br />
publicada no ano de 2004, por exemplo, essa agência emitiu um amplo<br />
diagnóstico da democracia latino-americana sugerindo, ao longo dessa<br />
pesquisa, a necessidade de uma reforma do Estado que tenha, como<br />
parâmetro a cidadania e como modo de ação a ser perseguido, a efetivação<br />
dos regimes democráticos na região. Assim o fazendo, terminaria por tra-<br />
4 BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) é uma instituição financeira internacional<br />
nascida em 1959 com o objetivo de financiar projetos de desenvolvimento econômico,<br />
social e institucional, além de promover a integração regional na América Latina e<br />
Caribe.<br />
5 PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) é uma agência do sistema<br />
ONU, a qual em seus discursos estabelece como objetivos o desenvolvimento e a<br />
diminuição da pobreza.<br />
6 USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) é uma agência<br />
do governo dos Estados Unidos, criada na administração Kennedy, em 1961, e tem<br />
como objetivo coordenar a cooperação norte-americana para o desenvolvimento.<br />
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tar de uma variável de extrema relevância para os discursos sobre a reforma<br />
dos sistemas judiciais da América latina: o acesso à Justiça. Não<br />
por outro modo, seguindo a mesma matriz retórica, essa agência tem<br />
desenvolvido e financiado muitos programas na área do acesso à Justiça<br />
7 , justificando-a como problemática sine qua non para se conquistar a<br />
governabilidade democrática na região.<br />
Outra agência, cuja ação é sintomática nos esforços em prol da<br />
reforma dos Judiciários latino-americanos, a partir da década de 90, é a<br />
USAID. Essa agência norte-americana, que tem por foco de atuação no<br />
cenário mundial a cooperação internacional, aparentemente tem<br />
direcionado sua ação para os Judiciários do entorno dos Estados Unidos.<br />
Assim, países da região central da América Latina, tais com El Salvador,<br />
Nicarágua, Guatemala, Panamá, México, entre outros, contaram e ainda<br />
contam com a cooperação dessa agência, a fim de estruturarem os tópicos<br />
dessa agenda de reforma do Judiciário.<br />
Com base em uma breve análise desse cenário, não há como negar<br />
que, dentre as ações retóricas e práticas de todas as OIs em relação<br />
aos Judiciários latino-americanos, a que mais se destaca é a atuação do<br />
BM, tanto do ponto de vista simbólico como da materialidade da ação. Ao<br />
longo de uma década, o BM formulou diagnóstico, propôs agenda, financiou<br />
projetos e avaliou resultados. Não por outra razão, foram três documentos<br />
direcionados, exclusivamente, ao setor judicial latino-americano<br />
e à necessidade de se executarem reformas.<br />
Sob o ponto de vista do BM, a América Latina e Caribe encontram-se<br />
em um processo de desenvolvimento econômico, na qual a década<br />
de 80 foi um período significativo para a consecução da agenda<br />
macroeconômica, mais sob a coordenação do FMI que do BM. Nesse<br />
período, segundo o posicionamento do banco, a estabilização das economias,<br />
resultado das reformas econômicas, criou uma atmosfera propícia<br />
para uma segunda geração de reformas focalizadas nas instituições públicas<br />
e na microeconomia (anos 90).<br />
Por esse contexto, as instituições judiciais seriam um dos campos<br />
estratégicos para a aplicação dessas reformas de segunda geração. Na<br />
visão do BM, Judiciários eficazes e eficientes seriam instrumentos valio-<br />
7 Aqui no Brasil, por exemplo, o PNUD vem desenvolvendo vários projetos de diagnóstico<br />
do acesso à Justiça em parceria com a Secretaria de Reforma do Judiciário. Desse<br />
modo, algumas pesquisas, fruto dessa parceria, tais como o diagnóstico do Poder Judiciário,<br />
o mapeamento nacional de programas públicos e não-governamentais de acesso<br />
à Justiça por meios alternativos de administração de conflitos e o diagnóstico da Defensoria<br />
Pública, foram publicadas nos últimos anos.<br />
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Banco Mundial e Agenda de Reforma do Judiciário Latino-Americano...<br />
sos para o desenvolvimento do setor privado, o encorajamento do desenvolvimento<br />
de toda a sociedade, alívio da pobreza e consolidação da democracia:<br />
Durante a década de 80, os esforços do desenvolvimento foram voltados<br />
para a agenda macroeconômica que, devido às necessidades,<br />
teve prioridade sobre as reformas institucionais. “Durante décadas,<br />
os governos da América Latina falharam em desenvolver as instituições<br />
necessárias para gerir os problemas básicos das suas populações<br />
porque concentram a maior parte de seus recursos no<br />
gerenciamento dos arranjos econômicos e na regularização de quase<br />
todos os aspectos da vida econômica”. Todavia, como a estabilidade<br />
econômica tornou-se parte da realidade, muitos países começaram<br />
a trabalhar para alcançar a equidade social bem como reformas<br />
políticas e econômicas. Como resultado, o processo de desenvolvimento<br />
agora evoluiu em uma segunda geração de reformas com<br />
um objetivo mais abrangente que incide sobre as reformas<br />
institucionais como por exemplo a reforma judicial. Nas palavras de<br />
um ministro da Justiça, “não é suficiente construir rodovias e fábricas<br />
para modernizar o estado [...] é também necessário um confiável<br />
sistema de justiça”. Um governo eficaz exige instituições jurídicas e<br />
judiciais que funcionem para realizar objetivos inter-relacionados de<br />
promover o desenvolvimento do sector privado, de incentivar o desenvolvimento<br />
de todas as outras instituições sociais, reduzindo a<br />
pobreza e consolidando a democracia. Os princípios jurídicos que<br />
apoiam o sistema econômico vigente na América Latina são nominalmente<br />
baseados na liberdade de exercitar direitos individuais e<br />
de propriedade. Mas, a legislação não tem sentido sem um sistema<br />
judicial eficaz para aplicá-la. (WORLD BANK, 1996, p. 1, tradução<br />
nossa).<br />
Ao longo da introdução do documento WTP 319, que versa sobre<br />
o receituário para os Judiciários da América Latina e Caribe, o BM argumenta<br />
que os Judiciários dessa região, tais como se apresentam para a<br />
sociedade civil dos seus respectivos Estados, são danosos para a produção,<br />
para o empresariado e, consequentemente, para a iniciativa privada<br />
de um modo geral. Esse discurso sugere que as motivações do banco<br />
para o Judiciário, em específico, são preponderantemente instrumentais 8 ,<br />
haja vista que o que importa, na verdade, é a criação de ambientes favoráveis<br />
a economia de mercado.<br />
8 Vale ressaltar que, no tópico introdutório desse documento, o próprio banco deixa claro<br />
que, muito embora todo o receituário prescrito possa ser adotado por todas as áreas que<br />
envolvem o Judiciário, o documento, em específico, tratará do campo civil, não se estendendo<br />
ao campo penal, por não ser uma área de interesse do banco. Ora, isso demonstra<br />
que a reforma está focalizada em um âmbito essencialmente privado e economicista.<br />
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Nesse mesmo documento, no primeiro capítulo, que trata das metas<br />
da reforma, o BM salienta, veementemente, que a reforma do Judiciário<br />
para América Latina e Caribe surgiu por uma demanda externa, fruto da<br />
globalização financeira que se dá no cenário internacional. Nesse relato,<br />
fica implícito que a abertura das economias pelos países da região gera a<br />
necessidade de instituições formais que decidam com certo grau de imparcialidade<br />
e que, consequentemente, favoreçam as relações comerciais.<br />
Ainda, argumenta que a ausência de estruturas formais dotadas de<br />
habilidades e recursos para a resolução de conflitos sob uma dada margem<br />
de segurança termina por criar ambientes propícios para a resolução<br />
informal daqueles e, consequentemente, para o aumento dos riscos<br />
nas transações comerciais, fato que gera a baixa alocação de recursos.<br />
Seguindo outra matriz argumentativa, o BM salienta que os processos<br />
de integração econômica em espaços regionais, tais como<br />
Mercosul e Nafta, criam demandas crescentes em prol de ambientes cujas<br />
normas estejam minimamente uniformizadas. Essa uniformização dar-seia,<br />
principalmente, na seara dos procedimentos comerciais, a fim de que<br />
os trâmites burocráticos se quedem mitigados, e a circulação de riquezas<br />
seja assegurada sob a aureola da plena liberdade. Para tal, o banco advoga<br />
a necessidade de Judiciários modernizados que comportem os reclames<br />
dessa arena internacional em emergência. 9<br />
Além disso, o aumento da integração econômica entre os países e<br />
regiões exige um sistema judiciário que cumpre as normas internacionais.<br />
Por exemplo, a OMC, Mercosul e Nafta exigem certos princípios<br />
para reger as questões comerciais. A integração econômica exige<br />
uma maior harmonização das legislações, que, por sua vez, exige<br />
que elas sejam constantemente aplicadas pelos países membros.<br />
Os países membros devem ter garantias de que as leis serão aplicadas<br />
e interpretadas de acordo com essas normas internacionais ou<br />
regionais. Desta forma, os países de todo o mundo devem modernizar<br />
os seus sistemas judiciais, a fim de atender essas demandas e<br />
providenciar um nível de condições equitativas na cena internacional.<br />
(WORLD BANK, 1996, p. 3-4, 1996, tradução nossa).<br />
9 Questão que não pode deixar de ser problematizada é justamente a natureza dos<br />
institutos jurídicos defendidos pela agenda de Reforma do Banco Mundial para os Judiciários<br />
latino-americanos. Tais institutos estão muito mais próximos da tradição de common<br />
law, cuja matriz é eminentemente anglo-saxônica, do que da tradição romana que é a<br />
cultura que forjou os Judiciários latinos. Assim, para além de um roteiro de mudança<br />
cultural, tal encaminhamento sugere certo comprometimento do Banco Mundial com a<br />
adequação das instituições jurídicas latino-americanas ao modelo judicial da nação<br />
hegemônica do Continente Americano.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
160<br />
Banco Mundial e Agenda de Reforma do Judiciário Latino-Americano...<br />
Nesse sentido, observa-se que, nas fundamentações institucionais<br />
esboçadas pelo banco, o que importa e motiva esse roteiro de recomendações<br />
é o cenário econômico internacional. Isso sugere que os cenários<br />
locais são muito pouco valorados, enquanto motivações de uma política<br />
regional. Ora, o que se está questionando não é o efeito benéfico ou<br />
danoso das prescrições, mas, na verdade, seu caráter utilitário que permeia<br />
todo o discurso institucional.<br />
Desse modo, até mesmo a visão de democracia esboçada no discurso<br />
de reforma, sugere seu caráter meramente instrumental. Essa observação<br />
só reforça os comentários já emitidos pelo cientista político argentino<br />
Guillermo O’Donnell (1998), quando explica a insuficiência do tratamento<br />
do “princípio da lei” em termos instrumentais. Muito embora pensar<br />
a democracia nesses termos seja eficiente, do ponto de vista das<br />
metas e prescrições internacionais, ainda é um modo muito limitado de<br />
concepção, sobretudo para agências como o BM, que tenciona ser uma<br />
instituição reguladora da governança mundial.<br />
4 ESTRATÉGIAS DO BANCO MUNDIAL PARA CATALISAR<br />
PROCESSOS DE REFORMA DO JUDICIÁ<strong>RI</strong>O NA AMÉ<strong>RI</strong>CA<br />
LATINA NA DÉCADA DE 90: WORLD BANK TECHINICAL<br />
PAPER 280 (WTP 280) E WORLD BANK TECHINICAL<br />
PAPER 319 (WTP 319)<br />
Enquanto estratégia de ação para a construção de uma agenda de<br />
reforma do Judiciário a ser estruturada pelos Estados latino-americanos, o<br />
BM liderou um processo de mobilização de atores, aliado à formação de<br />
uma retórica que legitimou o movimento e serviu como pari passu da ação.<br />
Nesse sentido, por meio de seu Departamento Técnico e de sua unidade<br />
de modernização do setor público, o banco procedeu a um amplo diagnóstico,<br />
objetivando mapear as principais debilidades do setor na região, sob a<br />
ótica de diferentes atores e Estados. Desse modo, em 13 e 14/6/1994,<br />
realizou-se uma conferência internacional, a fim de tratar da temática dentro<br />
de uma perspectiva de intercâmbio das experiências locais.<br />
Foi a partir dessa conferência que se desencadearam três publicações,<br />
editadas em 1995 e 1996, além de uma série de programas de<br />
financiamento específicos para os Estados da região, os quais se propusessem<br />
a adotar as prescrições do plano.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
André Luis Nascimento dos Santos 161<br />
Nesta sessão, centrar-nos-emos nos diagnósticos e discursos<br />
emanados no WTP 280 e no WTP 319, por entendermos serem estes os<br />
documentos mais significativos no movimento de reforma do Judiciário<br />
propugnado pelas OIs, na década de 90.<br />
O World Tecnical Paper 280 (WTP 280), de 1995, é, justamente,<br />
uma tentativa de transcrição de todos os discursos e artigos defendidos<br />
na mencionada conferência. Assim, além das observações emitidas por<br />
representantes do banco, tem-se, também, uma série de papers de autoria<br />
de juristas da América Latina, bem como de juristas de outros países,<br />
cujas experiências bem-sucedidas pudessem influir no plano de reformas<br />
para a América Latina.<br />
Entre os diagnósticos do WTP 280, de modo geral, o banco mapeou<br />
problemas sintomáticos desses Judiciários, tais como morosidade da justiça,<br />
problemas na transparência, limitação do acesso à Justiça, pouca<br />
modernização da estrutura burocrática, enfim, ineficiência e ineficácia na<br />
administração da Justiça.<br />
Na América Latina e no Caribe os indicadores de ineficiência e ineficácia<br />
da administração da justiça incluem longos casos de atraso,<br />
extensa acumulação de casos, o acesso limitado à justiça, a falta de<br />
transparência e previsibilidade nas decisões judiciais, e uma fraca<br />
confiança dos cidadãos no sistema judicial. A carente atuação do<br />
sector judicial é o produto de muitas deficiências, incluindo:<br />
* Legislações e procedimentos arcaicos e complexos.<br />
* A falta de independência do poder judicial.<br />
* Tribunais com uma inadequada capacidade administrativa.<br />
* Deficiência na gestão dos casos.<br />
* A carência de juízes e outros recursos.<br />
* Políticas e práticas de emprego não competitivas.<br />
* Controle dos sistemas de despesas com falta transparência.<br />
* Uma educação e formação jurídica inadequada.<br />
* Fracas sanções por comportamento antiético.<br />
* Um sistema de taxas judiciais que aumenta os custos de acesso.<br />
* A falta de mecanismos alternativos de resolução de disputas.<br />
(WORLD BANK, 1995, p. 9, tradução nossa).<br />
Ainda, nesse paper diagnóstico, o documento final emitido pela<br />
conferência (pelos atores nela presentes) aponta para o consenso de que<br />
o modelo de reforma a ser adotado deve seguir as estratégias já utilizadas<br />
na administração de Judiciários de países desenvolvidos. São estratégias<br />
que poderiam ser replicadas no espaço regional da América Latina<br />
e Caribe.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
162<br />
Banco Mundial e Agenda de Reforma do Judiciário Latino-Americano...<br />
A conferência sobre a reforma judiciária identificou estratégias para<br />
melhorar a administração da justiça, com um foco sobre estes temas:<br />
* Reforma judiciária e o seu papel no desenvolvimento econômico.<br />
* Os custos e benefícios econômicos da reforma judicial.<br />
* Reformas processuais.<br />
* Administração dos tribunais.<br />
* Mecanismos alternativos de resolução de litígios.<br />
* O acesso à Justiça.<br />
* A profissão jurídica.<br />
* Formação judiciária e educação jurídica.<br />
Este relatório da Conferência discute ações legais. (WORLD BANK,<br />
1995, p. 9, tradução nossa).<br />
Partindo da conferência e de seu documento técnico (WTP 280), o<br />
BM, em 1996, lançou seu receituário para a reforma do Judiciário, propriamente<br />
dito. Assim, o documento WTP 319 é o posicionamento genuinamente<br />
institucional do itinerário de reforma do Judiciário a ser seguido na<br />
região da América Latina e Caribe. Diferentemente do primeiro paper de<br />
1995, que é uma mescla de debates em torno do tema, o WTP 319 contém<br />
tão somente a versão do BM para a reforma, ou seja, seu receituário<br />
para as organizações judiciais da região.<br />
Nesse receituário, extrapolando o constructo retórico erigido, uma<br />
série de temáticas-chave é sugerida para ação dos governos, da comunidade<br />
jurídica e da sociedade civil de um modo geral. Entre as principais<br />
temáticas apontadas pelo BM estão: a independência do Judiciário, a boa<br />
administração da instituição judicial, reformulações dos códigos de procedimento,<br />
o acesso à Justiça, a educação jurídica e as associações de<br />
advogados.<br />
4.1 INDEPENDÊNCIA DO JUDICIÁ<strong>RI</strong>O<br />
Segundo o BM, a independência do Judiciário deve ser o imperativo<br />
de qualquer reforma nessa esfera de poder. Nesse sentido, o banco<br />
entende que a independência do Judiciário é muito mais do que a liberdade<br />
dos juízes, em face das influências políticas; ela passa por outros níveis<br />
de complexidade contendo a independência relativa às partes em<br />
juízo, sua autonomia individual, enquanto juiz, em face da estrutura burocrática<br />
do Judiciário; por fim, a independência em relação à estrutura política<br />
e, sobretudo, em relação a outras instituições governamentais.<br />
Todavia, nesse eixo temático, o BM centra suas atenções para<br />
independência do Judiciário, no que se refere ao âmbito administrativo e<br />
organizacional, haja em vista que os outros níveis de independência são,<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
André Luis Nascimento dos Santos 163<br />
essencialmente, de matriz constitucional. Nesse sentido, o banco parte<br />
do pressuposto de que, mesmo com garantias constitucionais, os Judiciários<br />
latino-americanos não têm conseguido prover o Judiciário da independência<br />
necessária para bons julgados.<br />
Sobre esse aspecto, o banco faz uma reflexão acerca da importância<br />
da independência funcional, bem como da independência pessoal<br />
do juiz. Em relação à primeira, o banco salienta a importância da habilidade<br />
de fazer sentenças de acordo com a lei e não de acordo com fatores<br />
políticos externos. Essa independência protege os juízes da ingerência<br />
de outros poderes e, em alguns casos, da influência da estrutura hierarquia<br />
do próprio Judiciário. O banco ilustra que, no caso latino-americano,<br />
historicamente, os Judiciários não têm sido hábeis no sentido de coibir a<br />
influência política e os abusos de poder do Legislativo e do Executivo.<br />
Já na esfera da independência pessoal dos juízes, o BM salienta a<br />
importância da segurança no que se refere a valores de salários, controle<br />
na designação de casos e transferências de Cortes imotivadamente. Essa<br />
modalidade de independência pode ser garantida por métodos apropriados<br />
de mandatos, remoção e supervisão. Ademais, em adição a esse<br />
aspecto, os juízes, além de independentes e imparciais, devem estar sujeitos<br />
ao accountability, ou seja, a prestação de contas para a população<br />
que servem.<br />
Por fim, o banco aponta para a tensão corrente entre a democracia,<br />
as reformas econômicas e as políticas sociais existentes na América<br />
Latina e Caribe. Sobre essa questão recai o argumento de que Judiciários<br />
pouco independentes beneficiariam reformas, sobretudo, quando os<br />
Executivos, em nome da política econômica de seus países, ditam decretos<br />
que abusam de seu poder de legislar (que extrapolam seu poder de<br />
regulamentação).<br />
Por essa razão, o BM argumenta que uma reforma judicial que<br />
revise o papel da independência seria a chave para a consecução das<br />
reformas econômicas. Assim, sem o crivo da legalidade jurídica, as reformas<br />
econômicas podem ser forjadas sob o manto da insegurança e da<br />
contestação.<br />
Quanto às recomendações para o fortalecimento da independência<br />
do Judiciário, o banco aponta que, no âmbito administrativo e<br />
organizacional, deve-se incluir: autonomia orçamentária do Judiciário;<br />
uniformização do sistema de nomeações de juízes; estabilidade da função;<br />
sistema disciplinar; adequados salários e benefícios para os juízes;<br />
transparência nos métodos de seleção, nomeação, remoção, transferências<br />
de juízes e a ascensão na carreira.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
164<br />
Banco Mundial e Agenda de Reforma do Judiciário Latino-Americano...<br />
4.2 ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA<br />
De acordo com o BM, em muitos países da América Latina, os<br />
Judiciários são vistos com muitas reservas. Baixos salários, burocracia<br />
despreparada, grande lacuna tecnológica; enfim, barreiras que dificultam<br />
o desempenho de todo o Judiciário.<br />
Diante desse contexto, o banco sugere uma revisão nas estruturas<br />
administrativas dos Judiciários latino-americanos. Para tanto,<br />
categoriza a administração judicial em duas subáreas: administração de<br />
Cortes e administração de casos.<br />
Entende-se por administração de Cortes a função administrativa<br />
dos Tribunais, propriamente ditos, incluindo administração dos escritórios<br />
(gabinetes, cartórios), pessoal, orçamento, sistemas de informação, estatísticas,<br />
planejamento e manutenção dos Tribunais.<br />
Já por administração de casos, estão inclusos o processamento dos casos<br />
e sua trajetória ao longo de todo o processo. De acordo com o BM,<br />
estratégias de monitoramento dos processos seriam fundamentais para<br />
acelerar os julgados e permitir o accoutability do sistema, de um modo<br />
geral pelos cidadãos.<br />
Quanto às principais recomendações do banco para esse tópico<br />
da reforma, encontram-se:<br />
a) avaliação da necessidade de pessoal capacitado para o provimento<br />
de cargos, bem como um sistema de promoções baseadas<br />
na avaliação de desempenho;<br />
b) estrutura administrativa full time permanentemente na estrutura<br />
judicial;<br />
c) aposta na descentralização dos serviços judiciais;<br />
d) delegação de certas responsabilidades administrativas até então<br />
praticadas pelos juízes para funcionários qualificados com<br />
formação jurídica;<br />
e) autonomia orçamentária dos Judiciários.<br />
4.3 CÓDIGOS DE PROCEDIMENTO<br />
O banco sugere que, no processo de reforma os países latino-americanos,<br />
devem revisar seus códigos processuais, a fim de tornar os processos<br />
mais rápidos, menos formais e mais transparentes. Nesse sentido,<br />
recomenda procedimentos orais, formas alternativas de solução de contendas,<br />
assim como a abolição de procedimentos em que os juízes realizam<br />
entrevistas particulares com os advogados, a fim de coibir a corrupção.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
André Luis Nascimento dos Santos 165<br />
4.4 ACESSO À JUSTIÇA<br />
Segundo o discurso do BM, o acesso à Justiça é um dos pontos<br />
mais importantes da reforma do Judiciário, haja em vista que essa é uma<br />
esfera essencial para se prover os serviços básicos da sociedade, alcançar<br />
as metas de democratização e institucionalização e redefinir a relação<br />
entre Estado e sociedade. Por essa razão, o banco advoga pela<br />
acessibilidade ao Judiciário, principalmente para as parcelas menos abastadas<br />
da sociedade, cujos níveis de confiança nas instituições judiciais é<br />
muito baixo.<br />
Para o BM, uma série de questões pode servir como guia de avaliação<br />
da acessibilidade à Justiça:<br />
a) tempo de julgamento dos casos;<br />
b) o custo do litígio;<br />
c) acessibilidade das informações no que diz respeito aos procedimentos,<br />
bem como ao caso particular do usuário do serviço;<br />
d) acesso físico aos Tribunais.<br />
O acesso pode ser avaliado por uma série de fatores: o tempo que<br />
leva para julgar um caso, as partes os custos diretos e indiretos dos<br />
litígios das partes (as despesas de depósito, as taxas das cortes, os<br />
honorários de compensação dos advogados, os salários perdidos,<br />
etc.), a habilidade dos potenciais usuários de conhecer, entender e<br />
seguir as etapas processuais durante o desenvolvimento de um caso,<br />
e o acesso físico aos tribunais. Em outras palavras, um sistema judicial<br />
pode apresentar barreiras econômicas, psicológicas, informativas<br />
e físicas para as pessoas que necessitam de seus serviços. Existe<br />
um número de soluções para superar ou diminuir determinadas barreiras<br />
econômicas à justiça, incluindo a redução dos custos de<br />
contencioso incidental, fornecendo apoio judiciário eficiente e criando<br />
programas menos dispendioso e formas alternativas de justiça.<br />
(WORLD BANK, 1996, p. 37, tradução nossa).<br />
Como fica claro no final trecho do documento WTP 319, o banco<br />
sugere a inclusão de formas alternativas de resolução de conflitos, que<br />
venham a ser uma tecnologia jurídico-social oriunda do Direito norte-americano<br />
e que tem sido difundida pelo mundo todo. A partir das ADRs<br />
(Alternative dispute resolution), as próprias partes podem, extrajudicial e<br />
amigavelmente, administrar e solucionar seus conflitos sem a presença<br />
da figura do juiz.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
166<br />
Banco Mundial e Agenda de Reforma do Judiciário Latino-Americano...<br />
O discurso do BM explica que as ADRs, além de diminuir as formalidades<br />
dos julgados, é ainda uma metodologia que oportuniza aumentar<br />
o acesso ao Judiciário para os mais pobres, em função de seu<br />
baixo custo pela possibilidade da ausência de advogados.<br />
O banco alerta sobre a existência de várias modalidades alternativas<br />
de resolução de conflitos, no entanto, para fins desse documento<br />
sobre a reforma, apontou as principais metodologias: a) arbitragem; b)<br />
mediação; c) conciliação; e d) justiça de paz.<br />
Ao longo do tópico de acesso à Justiça, o banco propõe outras<br />
medidas que possibilitem a diminuição de barreiras para esse acesso.<br />
Assim, a diminuição de alguns custos do processo, a implementação de<br />
programas de assistência jurídica, a instituição de Cortes de pequenas<br />
causas, da mesma forma que o uso de mecanismos coletivos de ação<br />
pública, podem auxiliar na efetivação do acesso à Justiça, de modo universal.<br />
Por fim, o BM sugere atenção especial às questões de gênero<br />
ligadas ao acesso à Justiça. No caso latino-americano, a condição desfavorável<br />
da mulher coloca esta em uma situação de vulnerabilidade na<br />
sociedade e, sobretudo, diante de barreiras desproporcionais de acesso<br />
à Justiça em relação a outros grupos sociais.<br />
O gênero cria obstáculos para as mulheres, impedindo-as de aceder<br />
ao sistema jurídico e judicial para fazer valer os seus direitos. Incluindo<br />
as questões de gênero nos programas reforma judicial é uma<br />
parte importante a fim de aliviar a pobreza e alcançar o crescimento<br />
econômico. As mulheres constituem a maioria dos indivíduos que<br />
utilizam os serviços de apoio jurídico, e, por consequência, por necessidade,<br />
os programas deveriam centrar-se em áreas que afetam<br />
mais as mulheres. No Peru, quase metade dos processos arquivados<br />
pelos escritórios de apoio judiciário é relacionada a questões<br />
familiares e a maioria dos seus usuários são mulheres. No Equador<br />
foram encontrados resultados semelhantes. 244 Estas estatísticas<br />
indicam que os programas de reforma judicial devem abordar as<br />
questões de Direito Familiar que afetam a maioria das mulheres, com<br />
o apoio judiciário. (WORLD BANK, 1996, p. 53, tradução nossa).<br />
4.5 EDUCAÇÃO LEGAL E TREINAMENTO<br />
Neste tópico da reforma, o BM centra sua análise na formação<br />
jurídica enquanto caminho-chave para o sucesso do plano de reforma.<br />
Com essa visão, o banco sugere que a qualidade da educação e treinamento<br />
jurídico é importante em todos os níveis de atuação no sistema<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
André Luis Nascimento dos Santos 167<br />
jurídico; todavia, o processo de mudança deve começar nas faculdades<br />
de Direito.<br />
Segundo o banco, muitos países da América Latina carecem de<br />
planos nacionais de ensino e de critérios mais rígidos para a entrada nas<br />
universidades. Ainda, o banco recomenda uma ampla revisão nos currículos<br />
dos cursos de Direito, com o objetivo de incluir temas como propriedade<br />
intelectual, lei e economia, leis ambientais, finanças, contabilidade,<br />
ou seja, temas que, a nosso ver, tangenciam a agenda internacional<br />
proposta pelo próprio banco.<br />
Do ponto de vista dos professores, o discurso do banco vai no<br />
sentido de oportunizar condições que permitam ao magistério maior dedicação<br />
à sala de aula, o acompanhamento de pesquisas e práticas jurídicas.<br />
Ademais, o banco advoga pela existência de programas de educação<br />
continuada que complementem a formação de novos advogados e<br />
juízes, com o objetivo de suprir as deficiências oriundas da falta de experiência.<br />
4.6 ASSOCIAÇÕES DE ADVOGADOS<br />
O BM (1996, p. 62-63) defende a necessidade de associações de<br />
classe de advogados, a fim de que elas regulem a profissão mediante<br />
sistemas disciplinares, oferecimento de programas de treinamentos para<br />
os membros, prestação de serviços básicos de ordem legal para comunidade<br />
e de que estejam ideologicamente comprometidos com os princípios<br />
da reforma.<br />
As associações de advogados devem assumir um papel mais ativo<br />
no monitoramento das profissões jurídicas, bem como do sistema<br />
judicial e devem estabelecer normas éticas claras. Estas normas<br />
deveriam ser aplicadas por um eficaz sistema disciplinar, que pode<br />
impor sanções adequadas. Todos os procedimentos éticos devem<br />
ser publicados e postos à disposição dos profissionais jurídicos e da<br />
comunidade em geral. Além disso, o advogado deve ter uma formação<br />
legal continua e apoiar a formação prática dos novos graduados<br />
em direito, como acontece na Venezuela. A associação de advogados<br />
deve também ajudar na melhoria do acesso à justiça, fornecendo<br />
uma assessoria jurídica pelos pobres. Muitas das reformas judiciais<br />
afetarão a profissão jurídica, assim que é importante que eles<br />
participem e apoiam o processo de reforma. Esse apoio pode ser<br />
conseguido através da participação em grupos de trabalho, bem como<br />
através de incentivar as associações de advogados a iniciar programas<br />
de reforma, como está sendo feito com a mediação dos programas<br />
piloto em Peru.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
168<br />
Banco Mundial e Agenda de Reforma do Judiciário Latino-Americano...<br />
Enfim, à luz dessas principais temáticas, o BM propõe-se a assessorar<br />
os Estados da América Latina e Caribe para que vislumbrem<br />
uma ampla reforma em suas instituições judiciais. Assim, de acordo com<br />
o discurso do banco, mesmo tendo em vista a existência de um receituário-padrão,<br />
as necessidades específicas dos países devem ser levadas<br />
em consideração por processos de reformas desse calão.<br />
O banco argumenta que os Estados que se propuserem a introduzir<br />
a reforma do Judiciário devem ter entre seus objetivos o binômio vontade-consenso.<br />
Ora, essa cobservação, em certa medida, não deixa de<br />
conter certa dose de cinismo por parte do banco. Para além da vontade<br />
dos Estados, não há como se negar que tal reforma, assim como outras<br />
que compuseram o repertório da década de 90, foram frutos de constrangimentos<br />
impostos aos países da região, principalmente, no auge das<br />
crises econômicas da década de 80 e 90 pelo Consenso de Washington.<br />
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
À luz dessa agenda de reforma dos judiciários latino-americanos,<br />
movimentada pelas OIs, em especial, pelo BM, algumas reflexões se nos<br />
colocam à guisa de considerações finais, gerando novas inquietações e,<br />
consequentemente, uma agenda de pesquisa a ser explorada. Essas reflexões<br />
envolvem desde considerações sobre os processos particulares<br />
de cada Estado no sentido de aceitação ou não dessa agenda, passando<br />
pelas possíveis implicações desses roteiros nos processos de integração<br />
regional no âmbito das Américas.<br />
A existência de um receituário standard editado por uma OI para a<br />
América Latina, por certo, não significa a adoção uniforme por todos os<br />
países da região. Outras variáveis estão em jogo e movimentam o cálculo<br />
das escolhas e condicionalidades de cada cenário nacional. Se por um<br />
lado, a agenda neoliberal, própria da década de 90 e dos anos 2000, não<br />
permitiu grandes escolhas no que se refere aos seus ajustes propugnados,<br />
não há como negar que esse modelo, dada sua característica de resiliência,<br />
se adaptou a distintas realidades, criando agendas particulares na medida<br />
dos problemas apresentados e dos respectivos enfrentamentos e escolhas<br />
nacionais.<br />
Nesse sentido, a agenda dos Judiciários sugere certo poder de<br />
abarcamento do que seria um Judiciário ideal, condicionando os Estados<br />
a perseguirem em suas políticas públicas os pontos de dissonância entre<br />
a realidade e o modelo propugnado. Como cada país respondeu a essa<br />
demanda reivindicada pela governança regional, regida pelo BM, é um<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
André Luis Nascimento dos Santos 169<br />
braço de uma ampla agenda de pesquisa que permite o desenvolvimento<br />
de conceitos nacionais à luz de um cenário regional, global.<br />
Essa agenda de pesquisa está muito próxima do que vem defendendo<br />
o Professor Amado Cervo (2008), no que tange à compreensão dos<br />
aspectos nacionais não mais à luz de teorias das Relações Internacionais,<br />
mas dos conceitos nacionais construídos por um Estado. Ainda que tal pensamento<br />
guarde certo radicalismo quanto à função dos conceitos em relação<br />
às teorias das Relações Internacionais, não resta dúvida de que os<br />
Estados latino-americanos ainda carecem de conceitos nacionais para o<br />
entendimento de suas próprias realidades regionais e globais.<br />
Já no que diz respeito a eventuais implicações dessa agenda nos<br />
processo de integração regional, o binômio retórica-ação para os Judiciários<br />
latino-americanos, engendrado pelo BM, tem muito a dizer. Nesse<br />
sentido, tais roteiros propostos são a expressão de um projeto regulatório<br />
que busca facilitar a integração econômica, via uniformização jurídica continental.<br />
Assim, a partir de legislações mais ou menos uniformizadas ou,<br />
pelo menos, próximas entre si, os Estados da região estariam “preparados”<br />
para tratados de livre comércio, viabilizando assim o ideário da<br />
integração dos mercados e das sociedades, segundo padrões liberais.<br />
Desse modo, a formação de um direito comunitário aparece como<br />
uma exigência dos espaços econômicos da atualidade. A questão que<br />
está posta é exatamente em que medida as conferências, os encontros<br />
internacionais organizados na década de 90 pelo BM e os informes emitidos<br />
para as reformas institucionais do Estado latino-americano, entre elas<br />
a do Judiciário, refletem a participação efetiva desses países na formulação<br />
de um direito comum para o Continente Americano. Essa indagação<br />
abre espaço para novos estudos sobre a recente emergência do direito<br />
comunitário entre Estados, tema que vem paulatinamente ganhando relevância<br />
no contexto atual dos blocos econômicos cada vez mais<br />
regionalizados, mormente no caso europeu.<br />
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Latina y el Caribe. Washington, D.C.: Banco Interamericano de Desarrollo,<br />
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170<br />
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CERVO, A. L. Inserção internacional: formação dos conceitos brasileiros.<br />
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O’DONNELL, Guillermo. Poliarquias e a (in)efetividade da lei na América<br />
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PACHECO, Cristina Carvalho. Poder judiciário, reformas liberalizantes<br />
e construção democrática nos anos 90: alguns prismas desse confronto<br />
no ordenamento jurídico brasileiro. Campinas, SP: [S.n.], 2000.<br />
PNUD. Ideias e contribuições à democracia na América Latina: rumo<br />
a uma democracia de cidadãs e cidadãos. Brasília, Brasil: PNUD, 2004.<br />
ROLLÓN, Marisa Ramos. Sistemas judiciales y democracia en<br />
Centroamérica: la perspectiva de los jueces. Documentos CIDOB, n. 8.<br />
(Serie América Latina).<br />
SADEK, Maria Tereza. Judiciário: mudanças e reformas. Estudos avançados,<br />
18 (51), 2004. Disponível em: . Acesso em: <strong>10</strong> jan. 2007.<br />
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: social e o político na<br />
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Washington, D.C., World Bank Technical Paper, n. 280, June 1995.<br />
______. The judicial sector in Latin America and the Caribbean: elements<br />
of reform. DAKOLIAS, Maria (Ed.). Washington, D.C.. World Bank<br />
Technical Paper, n. 319, June 1996.<br />
Recebido em: maio de <strong>2009</strong>.<br />
Aprovado em: junho de <strong>2009</strong>.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 147-170, <strong>2009</strong>-2.
SEÇÃO DE RESENHAS
Renata Tavares Henrique 173<br />
CONSTRUTIVISMO<br />
RENATA TAVARES HEN<strong>RI</strong>QUE<br />
____________________________________________________________<br />
Mestranda em Relações Internacionais<br />
(PUC Minas)<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 173-180, <strong>2009</strong>-2.
174<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 173-180, <strong>2009</strong>-2.<br />
Construtivismo
Renata Tavares Henrique 175<br />
RESENHA<br />
O construtivismo é uma das abordagens teóricas de maior destaque<br />
das Relações Internacionais e obteve grande repercussão na década<br />
de 90. Trata-se de uma perspectiva holista (sociedade constrói o agente)<br />
e subjetivista (interação entre agentes), o que remete à discussão agência-estrutura<br />
protagonizada por muitos de seus membros. Nicholas Onuf<br />
e Alexander Wendt, autores que analisaremos nesta seção, são considerados<br />
construtivistas por compartilharem algumas percepções acerca das<br />
Relações Internacionais, como a ideia de que o mundo é construído socialmente<br />
e as forças materiais não formam sozinhas a estrutura, que é<br />
entendida por meio de elementos sociais. Por causa disso, o construtivismo<br />
é uma corrente muitas vezes recorrida para entender fenômenos internacionais<br />
que envolvem elementos culturais e identitários, ignorados pelas<br />
demais abordagens teóricas que privilegiam poder e recursos materiais<br />
em suas análises. Para muitos, trata-se de um modo de pensar que envolve<br />
múltiplas versões, como as de Onuf e Wendt, pois cada um desses<br />
autores marca posições bem diferentes dentro da teoria. Suas perspectivas<br />
devem ser entendidas separadamente por conter premissas e resultados<br />
diferentes na análise internacional. O esforço, porém, será contrastar<br />
esses autores.<br />
É possível perceber vários pontos de contato e de tensão entre<br />
eles. Apesar de nem todos poderem ser abordados aqui, vale lembrar<br />
alguns aspectos que são mais relevantes para o entendimento desses<br />
dois autores, com base no quadro a seguir.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 173-180, <strong>2009</strong>-2.
176<br />
QUADRO 1 – CONSTRUTIVISMO DE WENDT E ONUF<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 173-180, <strong>2009</strong>-2.<br />
Construtivismo<br />
Um dos pontos em comum entre Onuf e Wendt se encontra na<br />
ideia de que o mundo é uma construção social, e esta se dá na mesma<br />
medida da ação ou interação dos agentes. Nesse mesmo raciocínio, outro<br />
ponto comum emerge: não há predominância entre agência ou estru-
Renata Tavares Henrique 177<br />
tura, como é apresentado nas correntes anteriores (o realismo é claramente<br />
estruturalista). A estrutura e a agência se determinam, sem que<br />
haja uma precedência ontológica entre elas. Essa hipótese pode ser entendida<br />
como “co-constituição” entre indivíduos e sociedade (NOGUEI-<br />
RA; MESSA<strong>RI</strong>, 2005, p. 166). Ambos recorrem à teoria social de Anthony<br />
Giddens para compreender essa relação entre agência e estrutura. Wendt<br />
destaca quatro pontos fundamentais dentro da Teoria da Estruturação:<br />
1) Em oposição aos individualistas, eles [teóricos sociais] aceitam a<br />
importância da realidade e da exposição das estruturas sociais<br />
irredutíveis e potencialmente não observáveis que geram agentes.<br />
2) Em oposição aos estruturalistas, eles se opõem ao funcionalismo<br />
e enfatizam ‘a necessidade de uma teoria que busque razões práticas<br />
e conscientes que possam contar com a intencionalidade e motivação<br />
humanas’. 3) Essas oposições são reconciliadas pela junção<br />
agentes e estruturas numa “síntese dialética” que supera a subordinação<br />
de uma em relação à outra, que são características tanto do<br />
individualismo como do estruturalismo. 4) Finalmente, eles argumentam<br />
que estruturas sociais são inseparáveis das estruturas espaciais<br />
e temporais, e que tempo e espaço devem, assim, ser incorporados<br />
diretamente e explicitamente dentro da pesquisa teórica e social concreta.<br />
(WENDT, 1987, p. 356, tradução livre).<br />
Para Wendt (1987), as estruturas sociais decorrem de interações<br />
entre os sujeitos e são formadas por um conjunto de elementos que<br />
podem ser os agentes. Estes dependem de sua posição na estrutura,<br />
ou seja, cada unidade implica diversidade. Tanto Wendt quanto Onuf se<br />
deparam com a questão da dualidade da estrutura apresentada por<br />
Giddens, concordando ambos com a importância que a agência e a estrutura<br />
social possuem nos fenômenos sociais. Assim, as propriedades<br />
estruturais do sistema social são tanto meio como resultado das práticas<br />
(ONUF, 1989, p. 61).<br />
Onuf (1989) já apresenta um maior questionamento em relação à<br />
teoria da estruturação e acrescenta à relação agentes-estrutura, as regras.<br />
Embora essa já seja uma consideração de Giddens, Onuf (1989)<br />
não considera as regras propriedade da estrutura. A estrutura é mais bem<br />
entendida como arranjo social formada pela sociedade e por instituições<br />
que, por sua vez, são espaços de atuação dos agentes, cujas regras e<br />
práticas são associadas por padrões duráveis de intencionalidade. As regras<br />
têm propriedade material, são orientações para a ação. Isso quer<br />
dizer que as regras definem as escolhas dos agentes. Onuf (1998a) entende<br />
que a realidade internacional pode ser modificada, pois as regras e<br />
os agentes se fazem mutuamente. As regras assumem forma de discurso<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 173-180, <strong>2009</strong>-2.
178<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 173-180, <strong>2009</strong>-2.<br />
Construtivismo<br />
pela generalização entre emissor e receptor. As regras podem levar a<br />
diferentes distribuições de poder ou formas de domínio. O quadro 2 a<br />
seguir resume as considerações teóricas de Onuf acerca das relações<br />
sociais, inclusive as internacionais.<br />
QUADRO 2 – REGRA, DISCURSO E DOMÍNIO PARA ONUF<br />
Os dois autores apresentam leituras distintas quanto à anarquia<br />
nas relações internacionais. Onuf (1989) discute o pressuposto das abordagens<br />
de Relações Internacionais que consideram a anarquia como condição<br />
para a existência da sociedade internacional. Para ele, a sociedade<br />
internacional é construída pelos agentes e, por isso, é histórica. Pela construção<br />
da realidade internacional tal qual a vemos hoje, a anarquia se<br />
tornou prevalecente, mas não é inerente à estrutura como a maioria dos<br />
autores apresenta, inclusive Wendt (1992). A anarquia seria “vazia de<br />
conteúdo”, para Onuf (1989). As instituições para ele não são meros desdobramentos<br />
do acaso; são construídas por regras e discursos que alteram<br />
a lógica da anarquia. A sociedade internacional é uma sociedade<br />
política em que são dispostos limites para a conduta dos seus agentes e<br />
distribuição de privilégios que pode ser entendida como uma heteronomia.<br />
1 A heteronomia é um dos conceitos de Onuf mais discutidos na disciplina de <strong>RI</strong>. Nesse<br />
quadro, tentamos apresentar uma forma simplificada de ligar regras, discursos e domínios.<br />
adiante, trataremos da heteronomia diante da anarquia.
Renata Tavares Henrique 179<br />
Esse ponto da teoria de Onuf é bastante criticado pelos demais autores<br />
das Relações Internacionais. Wendt (1992) por outro lado, questiona a<br />
anarquia internacional sob bases diferentes das de Onuf, levantando dúvidas<br />
quanto à sua imutabilidade e sua lógica. Para ele, a anarquia é o<br />
que os Estados fazem dela 2 , ou seja, atualmente os Estados vivem um<br />
sistema de autoajuda, em função de práticas anteriores. Essas práticas<br />
podem ser alteradas e com elas os significados que constituem a realidade<br />
internacional. Wendt (1992) não considera que as preferências dos<br />
Estados sejam exógenas e que eles ajam de forma puramente racional e<br />
egoísta, como o realismo e o institucionalismo apontam. Para ele, a anarquia<br />
é parte da estrutura social vista hoje, mas esta é constituída pelos<br />
agentes numa via de mão dupla, sem se afastar da causalidade. O autor<br />
destaca elementos, como identidade, pertencimento, valores e integração,<br />
fundamentais para as práticas de soberania na atualidade.<br />
Um dos pontos que diferenciam os dois autores diz respeito à consideração<br />
por Onuf (1989) da importância do discurso na análise das<br />
Relações Internacionais. Embora ambos considerem a importância das<br />
forças não materiais, Wendt não explora essa questão em sua obra. Onuf,<br />
assim como Kratochwil (1989), remeteu-se a autores do Direito, da<br />
Linguística (Wittgenstein) e da teoria crítica (Habermas) para tentar entender<br />
as falhas das abordagens de Relações Internacionais. Mas ele<br />
ainda buscou em Teoria social, de Anthony Giddens, as perspectivas sociológicas<br />
para explicar a construção do mundo social. Para Onuf (1998a),<br />
as regras regulam os discursos, conferindo a eles o valor de uma ação<br />
porque as palavras transformam a realidade e o mundo social. São denominados<br />
os “atos de fala”: Falar é agir. A importância que esses autores<br />
dão ao discurso tem origem na “virada linguística”, ponto forte da teoria<br />
de Onuf e de outros construtivistas.<br />
Adentrando uma discussão ontológica e epistemológica nas Relações<br />
Internacionais, Wendt (1999) busca se firmar como uma “via média”<br />
que busca conciliar uma ontologia idealista com uma epistemologia<br />
racionalista, ou seja, cientificista. Essa tentativa de criar diálogos entre<br />
positivistas e pós-positivistas fez com que Wendt fosse bastante criticado<br />
por ambos os lados. Sua preocupação central com os Estados e sua<br />
omissão em relação à virada linguística são alvos de várias críticas no<br />
meio acadêmico. Para Zehfuss (2002), por exemplo, não haverá possibilidade<br />
de o construtivismo ser visto como teoria com capacidade crítica<br />
2 Título de seu artigo de 1992: “Anarchy is what states make of it: the social construction<br />
of power politics”.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 173-180, <strong>2009</strong>-2.
180<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 173-180, <strong>2009</strong>-2.<br />
Construtivismo<br />
suficiente, se não for considerada a virada linguística (NOGUEIRA;<br />
MESSA<strong>RI</strong>, 2005, p. 184). Essa posição frágil de Wendt faz com que seu<br />
construtivismo seja colocado do lado oposto ao de Onuf e Kratochwil.<br />
Falar do construtivismo como uma abordagem homogênea é claramente<br />
impossível, como é possível perceber.<br />
REFERÊNCIAS<br />
KRATOCHWIL, Friedrich V. Rules, norms and decisions: on the conditions<br />
of practical and legal reasoning in international relations and domestic<br />
affairs. Cambridge Studies in International Relations, 2, 1989.<br />
NOGUEIRA, João Pontes; MESSA<strong>RI</strong>, Nizar. Teoria das relações internacionais:<br />
correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.<br />
ONUF, Nicholas. World of our making: rules and rule in social theory and<br />
international relations. Columbia: University of South Carolina, 1989.<br />
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Recebido em: junho de <strong>2009</strong>.<br />
Aprovado em: agosto de <strong>2009</strong>.
Rafael Rosa Cedro 181<br />
CHUTANDO A ESCADA<br />
CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia de<br />
desenvolvimento em perspectiva comparada.<br />
Título original: Kicking away the ladder:<br />
development strategy in historical perspective.<br />
São Paulo: Ed. da UNESP, 2004.<br />
RAFAEL ROSA CEDRO<br />
____________________________________________________________<br />
Especialista em Políticas Públicas e<br />
Gestão Governamental do Ministério do Planejamento,<br />
Mestre em Direito e Políticas Públicas (CEUB),<br />
Membro do Grupo de Pesquisa de Direito Internacional Econômico em<br />
Sistemas Regionais de Integração (GIDE).<br />
É negociador para a Rodada Doha, da OMC.<br />
Foi pesquisador-visitante no Instituto de Altos Estudos Internacionais e<br />
do Desenvolvimento – Universidade de Genebra, na Suíça.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 181-190, <strong>2009</strong>-2.
182<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 181-190, <strong>2009</strong>-2.<br />
Chutando a Escada
Rafael Rosa Cedro 183<br />
RESENHA<br />
A obra-objeto desta resenha é de autoria do sul-coreano Ha-Joon<br />
Chang, diretor-assistente de Estudos sobre o Desenvolvimento, na Universidade<br />
de Cambridge, no Reino Unido. O tema trabalhado em Chutando<br />
a escada: a estratégia de desenvolvimento em perspectiva comparada<br />
é o desenvolvimento econômico no mundo. Dentro desse tema, Chang<br />
faz uma delimitação original que resulta em uma análise instigante, a qual<br />
se mostra extremamente atual no contexto de crise econômica mundial,<br />
em <strong>2009</strong>. Em essência, ele se debruça sobre uma avaliação compreensiva<br />
das políticas e instituições que os países correntemente desenvolvidos<br />
utilizaram durante seu processo de desenvolvimento, contrapondoas<br />
aos tipos de políticas e instituições que esses mesmos países, ao menos<br />
até 2008, pressionavam os países mais pobres ou em desenvolvimento,<br />
por meio de tratados internacionais e outros instrumentos, a adotarem.<br />
Assim, para o desenvolvimento de sua pesquisa, Ha-Joon Chang<br />
parte de um questionamento mais geral sobre “como os países ricos enriqueceram<br />
de fato” (CHANG, p. 13). Ele reescreve, então, essa questão<br />
em forma de uma pergunta central, que dá início à sua pesquisa e fornece<br />
uma linha clara de estruturação de todo o seu trabalho. É ela:<br />
Os países desenvolvidos estão tentando “chutar a escada” pela qual<br />
subiram ao topo, impedindo as nações em desenvolvimento de adotarem<br />
as políticas e instituições que eles próprios adotaram? (CHANG,<br />
p. 25-26).<br />
O autor problematiza muito bem a questão e deixa explícita desde<br />
o começo sua hipótese de que os países desenvolvidos não seriam o que<br />
são atualmente, se houvessem seguido as políticas e as instituições que<br />
estão tentando agora prescrever aos países menos avançados. Dessa<br />
forma, o trabalho segue no sentido de apresentar elementos para comprovar<br />
essa hipótese. O livro de Ha-Joon Chang está dividido em quatro<br />
capítulos, cada um com aproximadamente quatro subdivisões, além das<br />
referências bibliográficas e um índice remissivo.<br />
No primeiro capítulo, além da introdução geral, contextualização<br />
do problema de pesquisa e apresentação da hipótese, Chang apresenta<br />
uma seção específica sobre os aspectos metodológicos de seu trabalho.<br />
Nessa parte metodológica, ele deixa clara sua opção por uma abordagem<br />
de investigação baseada em uma análise histórica, conforme preconizada<br />
pelo economista alemão do século XIX, Friedrich List. Além de explicar<br />
seus argumentos para tal escolha, Ha-Joon Chang destaca que essa abor-<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 181-190, <strong>2009</strong>-2.
184<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 181-190, <strong>2009</strong>-2.<br />
Chutando a Escada<br />
dagem – a qual ele caracteriza como concreta e indutiva – contrasta de<br />
forma intensa com o enfoque metodológico da economia neoclássica.<br />
Segundo o autor, esse enfoque, hegemônico nas últimas duas ou três<br />
décadas em estudos sobre a temática abordada em Chutando a escada,<br />
seria com base em métodos abstratos e dedutivos. Para Chang, no entanto,<br />
os resultados de pesquisa obtidos com esse enfoque careciam de<br />
coerência, quando contrastados com a realidade empírica e histórica. O<br />
autor destaca que sua escolha metodológica está relacionada a um dos<br />
objetivos específicos que pretendia alcançar com o trabalho. Esse objetivo<br />
era o de reafirmar a utilidade desse método de trabalho – histórico,<br />
com foco no concreto e no indutivo –, como meio de propiciar uma crítica<br />
ao amplamente difundido discurso da existência de “boas políticas” e “boa<br />
governança”’ universalmente aplicáveis, tanto advogado pelos países atualmente<br />
desenvolvidos.<br />
É importante destacar que a análise de Chang em Chutando a<br />
escada, finalizada ainda no começo do presente século, se vê materializada<br />
concretamente no que se vivencia presentemente no início do ano<br />
de <strong>2009</strong>, no contexto da crise econômica mundial. Essa crise se iniciou<br />
em países desenvolvidos, e, em seguida, propagou-se amplamente, repercutindo<br />
sobre o conjunto das economias no globo, prejudicando também<br />
intensamente as menos avançadas. O fato de destaque verificado<br />
nesse cenário é que os países desenvolvidos, ao verem os primeiros sinais<br />
de recrudescimento de suas economias, não hesitaram em desdizer<br />
tudo aquilo que vinham pregando desde as últimas duas décadas do século<br />
anterior e passaram a lançar mão exatamente de todo o arsenal de<br />
políticas, instrumentos e institucionalidade que eles taxavam como “negativos”<br />
e “errados”, quando algum país em desenvolvimento os tentava<br />
adotar, mesmo em contextos de crise. Essa observação factual coincide<br />
com o argumento que era levantado por Chang em sua hipótese de pesquisa,<br />
pondo em cheque o discurso dos países desenvolvidos perante<br />
suas praticas concretas em termos de medidas voltadas para a promoção<br />
do fortalecimento de suas economias.<br />
Prosseguindo ainda com o primeiro capítulo, Chang faz então uma<br />
exposição de como a metodologia por ele adotada e seu marco teórico<br />
estão situados diante de diferentes escolas de pensamento. Adicionalmente,<br />
e ainda sobre o aspecto metodológico, Chang procura destacar<br />
de forma clara o horizonte temporal o qual buscou abarcar. O foco escolhido<br />
da análise assentou-se sobre o século XIX e o início do século XX,<br />
especificamente entre o fim das guerras napoleônicas (em 1815) e o princípio<br />
da Primeira Guerra Mundial (em 1914). Ele justifica esse recorte
Rafael Rosa Cedro 185<br />
temporal pelo fato de que, no período em questão, a maior parte dos<br />
países hoje desenvolvidos estava vivenciando o processo da Revolução<br />
Industrial. Não obstante esse marco temporal seja bem definido, Chang<br />
justifica a utilização de algumas exceções. Nota-se, sobre esse aspecto,<br />
que ele teve bastante atenção no sentido de não se permitir estender seu<br />
horizonte temporal de análise para casos que fossem desnecessários.<br />
Nas situações em que expande o período de análise, portanto, há sempre<br />
um intuito objetivo e explicitado, intimamente relacionado a elementos<br />
que são considerados por ele essenciais para se chegar a um resultado<br />
de pesquisa mais preciso. Nesse sentido, ele justifica a análise histórica<br />
que faz da Grã-Bretanha desde o século XV, significativamente antes do<br />
período-base trabalhado, pelo papel pioneiro que ela teve no mundo em<br />
termos de inovações de desenvolvimento institucional e política econômica.<br />
De forma similar, ele utiliza o exemplo da Prússia do século XVIII para<br />
destacar as reformas burocráticas e novos métodos estatais de fomento<br />
à industrialização que vinham surgindo. Enfim, nas outras poucas fugas<br />
que faz ao marco temporal proposto, há sempre uma clara justificação, o<br />
que facilita o entendimento do leitor em relação aos motivos que o levaram<br />
a realizar tais exceções.<br />
No que diz respeito ao universo de análise, Chang apresenta considerações<br />
explicando a intenção de abarcar um contingente de países<br />
desenvolvidos que fosse além do grupo de nações que ele denomina<br />
“mais importantes”, ou “mais conhecidas” (CHANG, p. 23). Ele expõe sua<br />
opção por trabalhar com um conjunto de países que vai além de Grã-<br />
Bretanha, Estados Unidos, França e Japão, como uma forma de propiciar<br />
a extração de lições ou elementos mais gerais sobre quais políticas e<br />
instituições apresentam um maior potencial de geração de desenvolvimento,<br />
conforme verificado historicamente. A escolha, por conseguinte,<br />
segue em linha com o objetivo geral da pesquisa de responder à pergunta<br />
ambiciosa que se coloca no início do trabalho: “Como os países ricos<br />
enriqueceram de fato?” (CHANG, p. 13). Sobre esse aspecto, cabe destacar<br />
que, apesar da amplitude da questão e sua consequente dificuldade<br />
de resolução pela abrangência geral em termos do conjunto de países<br />
abarcados, Chang buscou ajustar seus meios de pesquisa ao grau de<br />
ambição a que ele se propôs a enfrentar. Nesse sentido, contou com a<br />
ajuda de outros pesquisadores para a coleta e sistematização de informações,<br />
inclusive em diferentes idiomas.<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 181-190, <strong>2009</strong>-2.
186<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 181-190, <strong>2009</strong>-2.<br />
Chutando a Escada<br />
Um outro aspecto importante que Chang destaca<br />
metodologicamente é a opção que fez de distinção entre políticas e instituições.<br />
Ele assume essa distinção como necessariamente arbitrária.<br />
Mesmo destacando essa arbitrariedade, ele explica, no entanto, a utilidade<br />
de se fazer essa distinção no contexto do livro. Nas palavras de<br />
Chang (p. 23-24):<br />
A distinção entre políticas e instituições adotada no livro é inevitavelmente<br />
arbitrária. Em relação ao senso comum, poder-se-ia dizer que<br />
as instituições são dispositivos mais permanentes, ao passo que as<br />
políticas são mais facilmente cambiáveis. Por exemplo, o aumento<br />
de tarifas para certas indústrias pode constituir uma “política”, enquanto<br />
uma tarifa em si há de ser considerada uma “instituição”. Mas<br />
essa distinção simplista arriscaria perder facilmente a eficácia. Por<br />
exemplo, conquanto se possa considerar a Lei de Patentes uma “instituição”,<br />
um país tem a possibilidade de adotar uma “política” de não<br />
reconhecimento de patentes – como a Suíça e a Holanda fizeram<br />
efetivamente até o começo do século XX. Do mesmo modo, ao examinar<br />
a Lei da Concorrência, nós o faremos no contexto das instituições<br />
incorporadas ao governo, mas também como parte de uma<br />
política industrial.<br />
Assim, Chang busca contrastar em sua análise o que seriam as<br />
supostas boas políticas e boas instituições, defendidas na aurora do século<br />
XXI pelos países atualmente desenvolvidos como as únicas políticas<br />
a serem adotadas, em comparação às políticas e instituições que esses<br />
países efetivamente utilizaram ao longo de seus processos de desenvolvimento.<br />
Na descrição do autor (p. 11-12):<br />
Segundo essa agenda [defendida pelos países desenvolvidos na alvorada<br />
do século XXI], “boas” são as políticas prescritas pelo chamado<br />
Consenso de Washington em geral. Entre elas, figuram políticas<br />
macroeconômicas restritivas, a liberalização do comércio internacional<br />
e dos investimentos, a privatização e a desregulamentação.<br />
“Instituições boas” são, essencialmente, as existentes nos países<br />
desenvolvidos, sobretudo nos anglo-saxônicos. Entre as instituiçõeschave,<br />
incluem-se a democracia, a burocracia ‘boa’, o Judiciário independente,<br />
a forte proteção dos direitos de propriedade privada (inclusive<br />
a intelectual) e uma governança empresarial, transparente e<br />
orientada para o mercado, assim como instituições financeiras (inclusive<br />
um banco central politicamente independente).
Rafael Rosa Cedro 187<br />
Chang argumenta, então, que não necessariamente aquelas políticas<br />
e instituições ditas ou induzidas como “boas” foram as que eram<br />
adotadas pelos países hoje desenvolvidos durante seu processo de desenvolvimento.<br />
Assim, o restante do livro prossegue em uma sequência<br />
encadeada que busca justificar historicamente esse argumento.<br />
O segundo capítulo do livro aborda em essência as atualmente<br />
denominadas políticas industrial, comercial e tecnológica. Ha-Joon Chang<br />
indica essa delimitação do capítulo como decorrente do fato de serem<br />
justamente as diferenças nesses tipos de políticas que viabilizaram o<br />
diferencial que potencializaram o processo de desenvolvimento dos países<br />
agora avançados, em contraste aos países que permaneceram em<br />
um baixo estágio de desenvolvimento estrutural e econômico. Ele adota<br />
nessa etapa do livro, sobre as políticas, uma análise focalizada em um<br />
número um pouco mais restrito de países. Chang apresenta uma justificativa<br />
para tal estreitamento de análise, nesse ponto. Segundo ele, optou<br />
por utilizar um foco menor aqui em decorrência do caráter de maior<br />
variabilidade e maior dificuldade de caracterização das políticas, em<br />
comparação às instituições. É interessante notar que, em determinados<br />
momentos, Chang encontrou dificuldades em sua pesquisa, que o levaram<br />
a fazer ajustes pontuais em sua metodologia de trabalho, como<br />
nesse caso. Não obstante, destaca-se o mérito dele de, sempre que<br />
diante de alguma dificuldade, fazer escolhas de adaptação metodológica,<br />
porém sempre justificando, a cada vez, por que fez aquela escolha específica<br />
e não outras. Assim, sobre o aspecto específico de ter concentrado<br />
a análise do segundo capítulo em um número menos amplo de<br />
países, Chang explica (p. 24-25):<br />
Ao contrário dos capítulos seguintes, dedicados às instituições, o<br />
capítulo 2º se concentra em um número menor de países. Isso ocorre<br />
sobretudo porque as políticas, por serem mais variáveis, como já<br />
observamos, são muito mais difíceis de caracterizar do que as instituições.<br />
Por exemplo, podemos datar facilmente a legislação formal<br />
que regula a responsabilidade limitada ou os bancos centrais (embora<br />
não seja tão fácil determinar o momento preciso em que a instituição<br />
em questão passou a ser amplamente efetiva e reconhecida),<br />
porém é muito mais difícil determinar, por exemplo, se a França teve<br />
uma política de livre comércio no fim do século XIX. Pela dificuldade<br />
de identificar claramente a existência e a intensidade de cada política,<br />
pareceu-me necessário um número maior de análises baseadas<br />
em países, o que, por sua vez, me impossibilitou de examinar tantas<br />
nações.<br />
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Chutando a Escada<br />
O terceiro capítulo da obra abrange um número mais amplo de<br />
países e trabalha com uma diversidade maior de exemplos históricos para<br />
análise. Ele aborda de forma compreensiva um conjunto consideravelmente<br />
extenso de instituições. Sobre essa opção, Chang apresenta uma<br />
justificação para os resultados que pretende alcançar. Segundo ele, a<br />
razão pela escolha de uma amplitude de análise maior nesse capítulo<br />
(p.25) se deve:<br />
[...] em parte pela complexidade institucional das sociedades modernas,<br />
mas também porque é limitada a nossa compreensão de quais<br />
são as instituições verdadeiramente decisivas para o desenvolvimento<br />
econômico. Entre elas, encontram-se a democracia, a burocracia, o<br />
Judiciário, os direitos de propriedade (particularmente os de propriedade<br />
intelectual), as instituições de governança empresarial (responsabilidade<br />
limitada, Lei de Falências, exigências de auditoria/<br />
disclosure, Lei de Concorrência), as instituições financeiras (bancos,<br />
banco central, regulamentação dos seguros, instituições públicas de<br />
crédito), as instituições sociais e trabalhistas (leis do trabalho infantil,<br />
instituições de regulamentação da jornada e das condições do trabalho<br />
adulto).<br />
O último capítulo, o quarto, retoma o problema de partida da pesquisa<br />
sobre se as nações desenvolvidas não se estariam utilizando do<br />
pretexto de recomendar políticas e instituições ditas como “boas” para,<br />
em realidade, restringir o acesso dos países em desenvolvimento às mesmas<br />
políticas e instituições que eles utilizaram no passado como meios<br />
de atingirem suas fases atuais de desenvolvimento. Com base na análise<br />
dos capítulos anteriores, Chang argumenta que a política ortodoxa –<br />
hegemônica no final do século XX e início do século XXI – fazia o possível<br />
para “chutar a escada” do desenvolvimento. Sobre as políticas, o autor<br />
conclui que o impedimento aos países em desenvolvimento de utilizarem<br />
hoje aqueles tipos de políticas que os países atualmente desenvolvidos<br />
implementaram no passado constitui uma séria limitação à capacidade<br />
daqueles de promoverem seus respectivos processos de desenvolvimento.<br />
No que tange às instituições, Ha-Joon Chang expõe que os resultados<br />
da sua pesquisa o levam a concluir que uma grande parte daquelas que<br />
hoje são advogadas como indispensáveis para a promoção do desenvolvimento,<br />
em realidade, seriam historicamente mais consequências do que<br />
causas do desenvolvimento econômico das nações atualmente desenvolvidas.<br />
Assim, ao fim do último capítulo, então, o autor busca tirar algumas<br />
lições para o futuro.
Rafael Rosa Cedro 189<br />
Com relação às políticas, Chang sugere a necessidade de um novo<br />
enfoque à elaboração internacional para as políticas de desenvolvimento.<br />
Nesse sentido, ele defende uma mudança radical nas condicionalidades<br />
impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial, quando da realização de suas<br />
ajudas financeiras, e pelos governos dos países desenvolvidos. Adicionalmente,<br />
ele considera essencial modificarem-se as regras que vêm sendo<br />
estabelecidas no âmbito da Organização Mundial do Comércio e de<br />
outros acordos multilaterais de comércio, de modo a possibilitar aos países<br />
em desenvolvimento uma utilização mais ativa dos instrumentos de<br />
promoção da indústria nascente, a exemplo de tarifas e subsídios.<br />
Sobre as instituições, Chang (p. 231) não nega que deva ser fomentado<br />
o aprimoramento institucional nos países em desenvolvimento.<br />
Afirma que<br />
[...] se deve estimular o aprimoramento institucional, sobretudo diante<br />
do enorme potencial de crescimento que uma combinação de (verdadeiramente)<br />
boas políticas e boas instituições pode gerar.<br />
Contudo, logo em seguida (p. 231), ele faz a ressalva de que esse<br />
estímulo não deve ser confundido “[...] com a imposição de um conjunto<br />
fixo de instituições anglo-americanas a todos os países.” Segundo essa<br />
conclusão do autor, é necessário avaliar quais instituições são efetivamente<br />
essenciais ou benéficas para cada tipo de país.<br />
Finalmente, ele encerra as lições apreendidas com a pesquisa,<br />
propondo que políticas e instituições mais apropriadas ao estágio de desenvolvimento<br />
e às circunstâncias específicas dos países em desenvolvimento<br />
possam ser permitidas e adotadas, como forma de possibilitar a<br />
esses países a entrada em um processo de crescimento e desenvolvimento<br />
mais acelerado. Segundo o autor, o reconhecimento e a estruturação<br />
disso traria benefícios não apenas para os próprios países em desenvolvimento,<br />
mas também, em longo prazo, para os países atualmente desenvolvidos.<br />
O benefício a estes seria decorrente do aumento do comércio<br />
e das oportunidades de investimentos que seriam gerados com o crescimento<br />
econômico daqueles primeiros (CHANG, p. 231-232).<br />
Como comentário final, destaca-se que, para desenvolver a pesquisa<br />
que deu origem ao livro Chutando a escada: a estratégia de desenvolvimento<br />
em perspectiva comparada, Ha-Joon Chang trabalhou efetivamente<br />
com uma bibliografia consideravelmente extensa e abrangente,<br />
oriunda de diversos países. Esse fato, por si, denota o enorme esforço<br />
realizado pelo autor e seus assistentes de pesquisa para dar conta de<br />
cobrir um montante de materiais e documentos de análise suficientes,<br />
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Chutando a Escada<br />
para que ele pudesse esboçar uma resposta à pergunta de pesquisa a<br />
que se propôs enfrentar no começo da investigação.<br />
Enfim, é um texto bastante recomendável e que auxilia a entender<br />
a ausência de pudor denotada pelos países desenvolvidos, no presente<br />
contexto de crise, ao adotarem, em seus territórios, diversas daquelas<br />
políticas e instituições que eles próprios condenavam internacionalmente,<br />
quando eram ensaiadas por países em desenvolvimento até muito<br />
pouco tempo atrás.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ONUF, Nicholas. Constructivism: a user’s manual. In: KUBÁLKOVÁ, V.;<br />
ONUF, N.; KOWERT, P. (Ed.). International Relations in a constructed<br />
world. Londers: M. E. Sharpe, 1998a.<br />
______. World of our making: rules and rule in social theory and<br />
international relations. Columbia: University of South Carolina, 1989.<br />
WENDT, Alexander. The agent-structure problem in international relations<br />
theory. International Organizations, 41(3), 1987.<br />
______. Anarchy is what states make of it: the social construction of power.<br />
International Organizations, 46(2), 1992.<br />
Recebido em: maio de <strong>2009</strong>.<br />
Aprovado em: julho de <strong>2009</strong>.
Conselho Editorial 191<br />
NORMAS EDITO<strong>RI</strong>AIS<br />
Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 191-197, <strong>2009</strong>-2.
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Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. <strong>10</strong>, p. 191-197, <strong>2009</strong>-2.<br />
Normas Editoriais
Conselho Editorial 193<br />
NORMAS EDITO<strong>RI</strong>AIS<br />
A REVISTA RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO MUNDO ATUAL,<br />
publicação oficial do UNICU<strong>RI</strong>TIBA, de circulação nacional e internacional,<br />
com periodicidade anual, destina-se à veiculação de artigos científicos<br />
e resenhas, frutos das atividades de pesquisas, leituras e discussões<br />
acadêmicas na área de Relações Internacionais, Ciência Política, Economia<br />
Política Internacional, Direito Internacional e História, sob o enfoque<br />
interdisciplinar.<br />
Sua principal vocação é agregar valor científico ao debate sobre<br />
os temas relacionados às Relações Internacionais, trazendo a contribuição<br />
de trabalhos escritos em vários idiomas e vinculados a programas de<br />
graduação e pós-graduação do Brasil e do exterior.<br />
Visando à qualificação dos debates e tendo em vista o projeto de<br />
inserção da <strong>Revista</strong> no sistema Qualis, da CAPES (órgão oficial do Ministério<br />
da Educação brasileiro), rege-se a publicação pelas normas editoriais<br />
a seguir, para a elaboração, a apresentação e a análise de textos,<br />
propostas pela Editoria da <strong>Revista</strong> e aprovadas pela Comissão Editorial<br />
do UNICU<strong>RI</strong>TIBA.<br />
1 Só veicula artigos inéditos, os quais deverão contribuir para a<br />
compreensão das Relações Internacionais. Deverão ser enviados à<br />
Editoria da <strong>Revista</strong>, em meio eletrônico (arquivos para o seguinte endereço:<br />
npea@unicuritiba.edu.br), conforme datas a serem estipuladas anualmente<br />
nas chamadas de artigos para a <strong>Revista</strong>.<br />
2 Todos os artigos devem apresentar a seguinte estrutura:<br />
a) como elementos pré-textuais – título (em fonte tamanho 14,<br />
em negrito e centralizado, com versões em inglês e em algum<br />
outro idioma de caráter internacional) seguido, à direita, da identificação<br />
da autoria e das credenciais desta (nomes completos<br />
de autores e co-autores, titulações, vínculos institucionais e atividades<br />
profissionais atuais), menção às subvenções recebidas,<br />
apoios e financiamentos, sumário (contendo os tópicos em<br />
que se divide o artigo, logo abaixo do título e dos nomes dos<br />
articulistas), resumo e palavras-chave em língua vernácula, resumo<br />
e palavras-chave em inglês e resumo e palavras-chave<br />
em outra língua estrangeira;<br />
b) como elementos textuais – introdução, desenvolvimento e<br />
conclusão;<br />
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Normas Editoriais<br />
c) como elementos pós-textuais – lista de referências (somente<br />
as obras efetivamente citadas no texto deverão aparecer nas<br />
referências).<br />
3 Os trabalhos para a seção “Artigos Científicos” deverão ter entre<br />
<strong>10</strong> e 25 páginas e ser digitados em Word 7.0 ou versão mais atualizada,<br />
formato do papel A4, fonte arial tamanho 12 e com espacejamento 1,5<br />
entre as linhas, para o texto normal; para as citações diretas de mais de<br />
três linhas, notas de rodapé, paginação e legendas de ilustrações e tabelas,<br />
o tamanho da fonte passa a ser o <strong>10</strong>, e o espacejamento, simples.<br />
4 As páginas devem apresentar margem esquerda e superior de<br />
3 cm, direita e inferior de 2 cm, e as citações diretas de mais de três linhas<br />
devem ser destacadas em parágrafo próprio com recuo de 4 cm da margem<br />
esquerda e sem aspas.<br />
5 No texto, as citações devem ser indicadas pelo sistema de chamada<br />
autor-data (exemplo: WARAT, 1985, p. 30), o qual admite somente<br />
notas de rodapé explicativas.<br />
6 As referências bibliográficas devem vir em lista única ao final do<br />
trabalho, ordenadas pelo sistema alfabético, digitadas em espaço simples,<br />
separadas entre si por espaço 1,5.<br />
7 As locuções em língua estrangeira e destaques deverão ser redigidos<br />
em itálico.<br />
8 Todos os textos devem seguir as demais normas da Associação<br />
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) sobre citações e notas de rodapé,<br />
referências em documentos e outras especificidades (ver, notadamente a<br />
NBR 14724, a NBR <strong>10</strong>520 e a NBR 6023, todas de agosto de 2002).<br />
9 Os textos deverão ter suas introduções antecedidas por resumos<br />
em português e correspondentes em inglês (abstract) e em mais um<br />
idioma de divulgação internacional que não o do próprio texto (résumé,<br />
resumen, riassunto, resumo, etc.) de até <strong>10</strong> linhas, bem como de 3 a 6<br />
palavras-chave também com as correspondentes em inglês (keywords) e<br />
em mais um idioma de caráter internacional que não o do próprio texto<br />
(mots clés, palabras clave, parole-chiave, palavras-chave, etc.), para fins<br />
de adequada indexação.
Conselho Editorial 195<br />
<strong>10</strong> As colaborações para a seção “Resenha” deverão conter de<br />
2 a 5 páginas, enquadrar-se na temática do número da <strong>Revista</strong> e versar<br />
sobre obra clássica, ainda não publicada no Brasil ou muito recente, desde<br />
que tenha impacto na temática da <strong>Revista</strong>, nada obstando que a obra<br />
reúna mais de uma dessas características<br />
11 Artigos científicos e resenhas não poderão ser assinados por<br />
meio de pseudônimos. A identificação da autoria das resenhas segue os<br />
mesmos requisitos da dos artigos.<br />
12 Tanto no caso de artigos quanto no de resenhas, os autores ou<br />
co-autores deverão encaminhar seus trabalhos com ofício datado, contendo<br />
a declaração de ineditismo do texto, além dos seguintes dados:<br />
título do trabalho, nomes completos, endereços completos (inclusive os<br />
eletrônicos) e telefones. Deverão ainda veicular a autorização para a publicação<br />
e a cedência formal dos direitos de publicação, pelo preenchimento<br />
e anexação da Ficha de Autorização de Publicação de Obra Intelectual,<br />
disponível em www.unicuritiba.edu.br, link Núcleo de Pesquisa ’<br />
Publicações ’ <strong>Revista</strong> de Relações Internacionais no Mundo Atual.<br />
13 A permissão para o uso de ilustrações, imagens, tabelas, etc.,<br />
extraídas de outras publicações, bem como quaisquer outras licenças ou<br />
aprovações perante entidades detentoras de direitos autorais, é de plena<br />
responsabilidade dos autores dos artigos e das resenhas.<br />
14 Os artigos ou resenhas internacionais redigidos em espanhol<br />
deverão ser encaminhados e serão publicados em seu idioma original,<br />
caso em que, além dos resúmenes e palabras clave traduzidos em inglês,<br />
poderão também ter esses correspondentes em língua portuguesa.<br />
14.1 Artigos ou resenhas internacionais redigidos em outros idiomas,<br />
que não o espanhol, deverão ser encaminhados nos idiomas originais<br />
e terão tradução para o vernáculo (publicação bilíngüe).<br />
14.2 Artigos ou resenhas escritos por acadêmicos somente serão<br />
recebidos para análise se apresentados em co-autoria com professores<br />
orientadores de projetos de pesquisa, de extensão, de trabalhos de conclusão<br />
de cursos de graduação ou de pós-graduação (especialização,<br />
mestrado, doutorado e pós-doutorado).<br />
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Normas Editoriais<br />
15 A publicação das colaborações recebidas estará condicionada<br />
à avaliação do Conselho Científico da <strong>Revista</strong> e de eventuais avaliadores<br />
ad hoc, que poderão aprová-las na íntegra, sugerir alterações ou recusálas<br />
definitivamente.<br />
16 A Editoria da <strong>Revista</strong> enviará correspondência eletrônica confirmando<br />
o recebimento dos trabalhos, bem como a lista daqueles que<br />
forem selecionados para a respectiva publicação.<br />
17 A Editoria da <strong>Revista</strong> poderá executar, com ou sem recomendação<br />
do Conselho Científico e dos avaliadores ad hoc, pequenas alterações<br />
de caráter meramente formal nos textos recebidos, de modo a<br />
adequá-los aos padrões da ABNT, não sendo admitidas modificações de<br />
estrutura, conteúdo ou estilo, sem o prévio consentimento dos autores.<br />
18 Os autores de artigos e resenhas aprovados para publicação<br />
com sugestões de alterações (correções de linguagem, adequações à<br />
ABNT, etc.) por parte dos avaliadores ou da Editoria da <strong>Revista</strong> serão<br />
contatados pela Instituição para realizá-las e, depois disso, emitir nova<br />
autorização de publicação. A Editoria pode recusar a publicação dos artigos<br />
ou das resenhas em relação aos quais foram feitas ressalvas pelos<br />
avaliadores, caso essas não tenham sido consideradas pelos respectivos<br />
autores.<br />
19 O Conselho Editorial, integrado por membros dotados de maturidade<br />
científica e senioridade em pesquisa, representantes de mais de<br />
um Estado da Federação brasileira e futuramente de alguns países, auxilia<br />
a Editoria na definição do projeto editorial (temática) de cada número<br />
da <strong>Revista</strong> e na resolução de dúvidas a ele pertinentes.<br />
20 O Conselho Científico, composto de professores do Curso de<br />
Relações Internacionais do UNICU<strong>RI</strong>TIBA e de alguns convidados externos,<br />
auxilia a Editoria da <strong>Revista</strong> tanto na revisão dos artigos recebidos<br />
(Ficha de Avaliação de Artigos) quanto na indicação de avaliadores ad<br />
hoc (internos ou externos à Instituição), quando necessário, como na captação<br />
de artigos conforme as temáticas da <strong>Revista</strong>. Na avaliação dos artigos<br />
serão mantidas em sigilo suas autorias.<br />
21 A <strong>Revista</strong> adota uma política de combate à endogenia, seguindo<br />
as diretrizes da CAPES, no sentido de que seja o menor possível o número<br />
de artigos publicados de autoria de professores da própria Instituição.
Conselho Editorial 197<br />
22 A publicação não implica nenhuma espécie de remuneração,<br />
somente cabendo aos autores de artigos e resenhas o encaminhamento,<br />
gratuito, de 3 (três) exemplares do número da <strong>Revista</strong> em que tiver<br />
sido veiculada sua colaboração, havendo também o encaminhamento de<br />
1 (um) exemplar para cada membro dos conselhos e aos revisores ad hoc.<br />
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