Daisy Justus 1 (p. 1 1)
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ATRÁS DO PENSAMENTO<br />
A PALAVRA CLARICIANA<br />
<strong>Daisy</strong> <strong>Justus</strong><br />
Psúa nalista, antropóloga, Mestre em AntropologiaS oáa l (UFR]),<br />
Membro do Centro de Estudos Americanos de Fern ando Pessoa,<br />
i'vfembro da Associação Brasileira de Estética,<br />
Membro da AssociafàO Brasileira de Literatura Comparada.<br />
"É um ato de magia negra transformar a<br />
carne da mulher em du'<br />
Rcné Magn"tte<br />
''Estou atrás do que fim atrás do pensamento.<br />
Inútil querer me dassijicar: eu simplesmente esmpulo, não<br />
deixando, gênero não me pega maú'<br />
Clan·ce Lispector- Agua Viva 1 (p. 1 1)<br />
Inesgotáveis são as abordagens de uma obra. Mais ines<br />
gotáveis ainda quando se trata de Clarice Lispector. Sua pro<br />
dução inaugura uma nova fase não só para a prosa brasileira<br />
mas também para a latino-americana.<br />
Com um texto altamente instigante, marcado por uma<br />
ficção introspectiva, voltado para a direção do visceral e até<br />
mesmo do ancestral, Clarice tem na riqueza de seus perso<br />
nagens femininos uma das marcas de sua produção. Por esse<br />
motivo, e tantos outros, é geralmente considerada uma das<br />
grandes representantes do que se convencional chamar de<br />
"escrita feminina".<br />
É antiga a discussão sobre a questão se existe ou não<br />
uma escrita feminina. Algumas mulheres, escritoras ou leitoras,<br />
chegam a se sentir desconfortáveis quando são colocadas diante<br />
deste problema. Respondem que literatura não tem sexo, que<br />
literatura é sempre, e tão somente, literatura.<br />
I Todas as citaçôcs dcsre texto de autoria de Clarice Lispt:ctor foram extraídas do livro:<br />
LISPECTOR. Clarice Água Viva. Rio de Janeiro: Francisco Akes, 1994<br />
467
Porém o que parece estar latente nesse contexto é muito<br />
mais a dificuldade do enfrentamento do enigma da feminilidade<br />
que, de algum modo, invade a questão, pedindo mais uma vez a<br />
sua decifração (ou mesmo, mantendo-se na particular condição<br />
de enigma), do que propriamente a leitura que se faz de um<br />
livro, seja ele escrito por um homem ou uma mulher.<br />
Na conferência que recebeu o título "Feminilidade", em<br />
1932, Freud encarrega seu público de definir em que consistiria<br />
o referido enigma . Na conclusão ele sugere: "Se desejarem<br />
saber mais ,a respeito da feminilidade, indaguem a própria ex<br />
periência de vida dos senhores, ou consultem os poetas". 2<br />
É importante lembrar que, em suas produções, Clarice<br />
sempre particularizou a escrita e não a literatura. Deste modo,<br />
a escrita, ou escritura (como ela costumava chamá-la), assume<br />
uma dimensão princeps em sua obra. Talvez, por esse motivo,<br />
por diversas vezes negou sua identificação como escritora:<br />
era muito mais uma "não-escritora", já que não tratava sua<br />
atividade como trabalho. Dizia que escrevia porque era "in<br />
cumbida".<br />
Aqui, enfocaremos a dicção feminina de Clarice afastando<br />
qualquer possibilidade de referência ao gênero: tanto no que se<br />
refere à sexualidade quanto àquilo que diz respeito a um estilo<br />
literário. Eis por que, na condução deste texto, trataremos o<br />
pré-linguístico como um dos enfoques possíveis da referida<br />
"escrita feminina".<br />
Para fins de fundamentação teórica lancemos mão da<br />
assertiva lacaniana que, ao referir-se à anterioridade à Lei do<br />
Pai, aborda aquilo que é impossível de ser escrito.<br />
A referência ao Nome-do-Pai é puramente metafórica:<br />
mesmo sem um pai vivo, a criança, desde que nasce, se vê sub<br />
metida à Lei (ao Nome-do-Pai), à ordem simbólica, à ordem<br />
do significante. A palavra do Pai faz a circunscrição de suas<br />
leis, suas interdições, sua força determinante. Por sua relação<br />
com a linguagem, o sujeito tem sua fundação como entidade<br />
simbólica, já que esta ordem fala uma linguagem que traz a<br />
2 FREUD, Sigmund Novas Conferências Introdutórias de Psicanálise- Feminili
marca da diferença particular a cada sujeito. Mas o que se dá<br />
antes disso, em sua anterioridade, é impossível de ser escrito.<br />
Porque à palavra não basta a sua representação: ela exige a<br />
realidade processual do desejo que ela inscreve no discurso.<br />
Porque há interdição, há desejo.<br />
Mas exatamente por ser proibida, é que essa palavra quer se<br />
fazer ouvir. Afinal, contrariando 'W'ittegenstein3 , aquilo que não se<br />
pode falar, é preciso dizê-lo. Ou no caso, escrevê-lo. E esse impossível<br />
é especificamente o lugar do feminino. Se o inconsciente não pode<br />
nunca dizer tudo, lembramos que a figura maior desse "não-todo"<br />
é, em específico, a feminilidade.<br />
Lacan deu ênfase ao fato de que a linguagem é a presença que<br />
tenta preencher o lugar de uma ausência.A partir dessa referência, va<br />
mos desenvolver neste estudo a premissa de que a "escrita feminina"<br />
de Clarice, ou seja, a palavra clariciana, sustenta esse lugar exatamente<br />
por referir-se a escrita dessa ausência, uma escrita que não pára de<br />
falar da impossibilidade: uma escrita da feminilidade.<br />
Vamos considerá-la como um avesso: uma não-linguagem,<br />
uma escrita não-verbal, que "trataria de forma privilegiada das ex<br />
periências corporais mais remotas e das sensações e dos sentidos de<br />
uma forma geral... Trataria, ainda, ... de todas as produções humanas<br />
não linguageiras".4 Uma escrita para ser ouvida, além de ser lida.<br />
Uma escritura que pede leitura e escuta. A escuta do pensamento<br />
de Clarice Lispector.<br />
"O que faro por involuntário instinto não pode ser descrito.<br />
Que e.rtou fazendo ao te escrever? E.rtou tentando fotografar o perfume".<br />
(p.59)<br />
Sendo, então, Clarice Lispector, reconhecidamente um<br />
dos autores que melhor representam essa referida escritura,<br />
faremos a partir deste ponto um breve desenvolvimento da<br />
expressão "atrás do pensamento", recortada por ser uma<br />
presença notória em seu livro Água Viva, com o intuito de<br />
exemplificar e adensar a abordagem aqui proposta.<br />
3 Referimo-nos à conhecida asscrti,·a do lingüísta \'\'ittegenstein: "Aquilo que não se pode falar, é preciso<br />
calá-lo"<br />
4 JOR(;E, Marco Antonio Coutinho "Claricc Lispector c o poder da palavra" in DIDIER-\'\'EILL, Alain<br />
Nota Azul, Freud, Lacan e 1\rte Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997 p.108<br />
469
Em sua versão primeira, o livro Á gua Viva recebeu de<br />
Clarice o título Atrás do pensamento: Monólogo com a vida.<br />
Depois de fazer alguns cortes, "cortando e torturando durante<br />
três anos", Clarice passou a chamá-lo Objeto gritante. Final<br />
mente, Á gua Viva, o "romance sem romance".<br />
Clarice Lispector cria um texto híbrido, que transita entre<br />
o orgânico e o inorgânico, produto de intensa liberdade e uma<br />
postura revolucionária frente à escrita. Movido pela fluidez<br />
e pela agudeza o livro coloca de lado os princípios do texto<br />
convencional, abandonando as normas "começo/ meio/ fim",<br />
ou ainda, "sujeito/verbo/predicado". Desobriga-se das for<br />
malidades, fazendo uma verdadeira convulsão de linguagem,<br />
segundo a própria Clarice, em incessante movimento de deslo<br />
camento e descolamento. Uma linguagem que tem a marca do<br />
inconcluso, do não fechamento. A frase final do livro aponta<br />
exatamente para isso:<br />
"O que te eJCrevo continua, e eJtou enfeitiçada". (p. 1 O 1)<br />
Para Clarice cada palavra é uma idéia. Constrói uma<br />
espécie de revelação imediata do mundo, que leva o leitor a<br />
sentir-se imerso e edificado pela mesma trama que teceu as<br />
coisas, os objetos. Segundo Lucia Helena "com Á gua Viva a<br />
escrita de Lispector se insere na categoria dos textos "escre<br />
víveis", tratados por Roland Barthes. Ou seja, a cena fulgor<br />
vital da obra é a da própria escrita, como se aí se revelasse mais<br />
intensamente- no limiar, digamos- o aspecto transgressor da<br />
poética de Clarice Lispector". 5<br />
Á gua Viva é um monólogo. Uma poesia escrita em pro<br />
sa, onde o enredo tem importância secundária, assim como<br />
o espaço geográfico e o tempo, uma vez que a narrativa con<br />
centra-se no espaço emocional. Predomina também o tempo<br />
psicológico, onde essa mesma narrativa quer seguir o fluxo<br />
do pensamento.<br />
Lucia Castello Branco observa que Clarice sabia certa<br />
mente que a linguagem não alcança "o atrás do pensamento".<br />
Mas ao propor a expressão do indizível, ela vai lançar mão,<br />
5 LUCIA HELENA Nem Musa Nem Medusa. Rio de janeiro: EDUFr 1997 p. 84<br />
470
com precisão de mestre, "de uma construção de linguagem.<br />
E é nesse movimento, nessa dupla direção que sua escrita se<br />
dá: querendo o impossível e sabendo que o impossível é cir<br />
cunscrito pelo possível, buscando o ilimitado que os limites<br />
delimitam",6 sugerindo deste modo a instância pré-discursiva,<br />
a instância da feminilidade.<br />
Á gua que desliza, escorre, em fluxo incessante. Á gua de<br />
vida. Em processo de contínua abertura a palavra segue em seu<br />
processo de criação, falando das origens, jogando seu anzol<br />
até às profundezas (. .. "a palavra pen·ando o que não é palavra".<br />
ÚJ. 25)),buscando alcançar a escrita de um universo arcaico<br />
pré-reflexivo, ou seja, o âmago de tudo. Procura o que está<br />
atrás do pensamento, levando-nos a um momento silencioso<br />
ou carregado de ruído. Tanto faz. Um desejo regressivo.<br />
"Bem atrá.r do pen.ramento tenho um fundo muJical. Ma.r ainda<br />
mai.r atrá.r há o corarão batendo. A.rsim o mai.r profundo pen.ramento é<br />
um ··oração batendo". ÚJ. 51)<br />
Trata-se de uma escrita que se faz com o corpo inteiro,<br />
querendo alcançar até a impossível fixação do incorpóreo. A<br />
narradora, uma pintora, sem nome, que, ao optar por abrir<br />
mão do pincel, pinta através das palavras e assim vai tecendo o<br />
feminino como figuração. Em processo de despersonalização,<br />
ela se faz anônima. Não tem nem iniciais, como é a apresen<br />
tação que G. H. faz de si em A Paixão ... . Por meio da palavra,<br />
mergulha em direção ao vazio, estourando limites, tentando<br />
estancar o tempo, focando o instante-já. Forma fantasmática<br />
de paralisar o presente, mas que simultaneamente apreende a<br />
fluidez do tempo, através de um estilo desordenado.<br />
'trá.r do pen.ramento não há palavra: é-.re. Minha pintura não<br />
tem palavra.r: fira atrá.r do pen.ramento ". ÚJ. 33)<br />
São palavras pulsantes capazes de invocar algo mais<br />
além delas mesmas. Palavras que vêm de atrás do atrás do<br />
pensamento, escrevendo a história dos princípios. "Estranho<br />
estado de louca harmonia com as vibrações da matéria-prima<br />
da vida: e.rtado de contato. Fazer da escrita algo de tão louco<br />
6 BRANCO, Lucia Castcllo c BRI\NDÀO, Ruth Silviano Literaterras- as bordas do corpo literário.Sào<br />
Paulo: AnnaBlume, 1995 p. 80<br />
471
e intenso quanto a vida. Não uma representação desta, mas<br />
entrada para ela". 7<br />
A narradora segue sua trajetória, querendo chegar lá atrás do<br />
pensamento, em meio à escuridão, chegando a perder seu contorno,<br />
"tentando apagar-se a si própria, uma vez que ela é a própria origem".8<br />
Em Clarice narrar é sempre narrar-se.<br />
O atrás do pensamento aponta para um estágio em que as pré<br />
palavras constroem a "forma do informe". A autora deixa claro que a<br />
hipótese do lugar do psíquico em nada equivale a uma geografia da vida<br />
psíquica. É pura construção. Lugar do sonho, texto do inconsciente que<br />
pede um escriba. Linguagem de impossibilidades, calcada na experiência<br />
de travessia do espelho, metáfora da atitude amorosa do sujeito que<br />
possibilita sua ligação à sua própria imagem e que mediatiza suas rela<br />
ções com os objetos do mundo. Simulação de uma certa escritura, uma<br />
tentativa de apagar em definiti,·o a falta do texto original não escrito.<br />
Projeto impossínl.<br />
"Será que depoú da morte é a.rJim? O Jonho de um Jonho de um Jonho?"<br />
(p.100)<br />
Assim um pensamento provoca sempre um outro pensamento e<br />
segue no percurso de caminhos peculiares. Movimento incessante que<br />
tenta entoar o canto nascido da separação originária, fazendo ouvir um<br />
texto paralelo, que se compõe em forma de palimpsesto. Lê-lo consiste<br />
em ultrapassar os descaminhos enganadores da palavra que o escreveu,<br />
tecendo as reflexões mais diversas. Artes de Clarice.<br />
Á gua Viva "sugere o nascimento da palavra, o nascimento do<br />
sujeito, o nascimento do leitor e, no limite, a gestação do próprio autor".<br />
O nascimento do feminino.<br />
'Você que me lê que me ?f!Úde a na.rcer':(p. 41)<br />
Em texto comparável ao sonho, Clarice fala das obscuridades<br />
que a assediam, tomando a palavra sem medo de comprometer-se.<br />
Ao contrário, Clarice enfrenta o desconhecimento, o significante<br />
fechado e escondido, respeitando o secreto, sabendo-o incapaz de<br />
expressão, mas nem por isso abrindo mão de exprimir seu lugar,<br />
fazendo seu contorno, explicitando o mutismo com uma eloqüência<br />
incomparável.<br />
7 ALRlJQLTERQlJE, Paulo Germano Rarwzo Mulheres Claricianas- imagens amorosas. Rio de Janeiro:<br />
Rdumc Oumará, 2
"EHrevo por acrobátúaJ e aéreaJ piruetaJ - eJcrevo profundamente por<br />
querer falar': ( p.16)<br />
Podemos afirmar que Clarice engendra uma homenagem ao<br />
próprio ato da escrita, ao escrever a partir do balbucio, das primeiras<br />
emissões de sons da fala, do lugar que fica atrás do atrás do pensamen<br />
to. Uma vez que a vida pessoal e a escrita foram dois processos que se<br />
cruzaram no cotidiano da mulher Clarice Lispector, a produção desse<br />
texto radical, que contorna o vazio, em si mesmo um território limite,<br />
constitui-se, deste modo, em perigoso abismo. Ao introduzir os equí<br />
vocos do sentido e dando a entender uma verdade que não é imputável<br />
a ninguém, Clarice constrói uma escrita que se sustenta simplesmente<br />
como pré-linguagem, sem um código de tradução. Trata-se de uma<br />
escrita tecida em torno da presença da palavra viva, já que não existe<br />
discurso sobre a morte ou a loucura. Estas são, ambas, limites que não<br />
se prestam à sublimação, mesmo que possam ser idealizadas.<br />
"Será que paJJei .rem sentir para o outro lado? O outro lado é<br />
uma vida latejantemente infernal". (p.24)<br />
Essa aproximação delicada imprime ao sujeito-leitor<br />
autor um ritmo próprio de leitura, de respiração ofegante.<br />
"Tal impressão, que corresponde à percepção de um recorte<br />
temporal absolutamente singular, efetuado pela escrita femi<br />
nina, faz com que a leitura desses textos obedeça a um ritmo<br />
paradoxalmente lento e precipitado, amarrado e desenfreado,<br />
mais próximo das pulsações do corpo que das determinações<br />
do intelecto. Um ritmo deslizante mas também sobressaltado:<br />
ninguém escapa impunemente dos sustos, da alta velocidade e<br />
da clausura"10 que o texto de Clarice, por vezes, nos lança:<br />
"Criar de .ri próprio um .rer é muito grave. Estou me criando. E<br />
andar na eJcuridào completa à procura de nó.r meJmo.r é o que fazemoJ.<br />
Dói. 1\!Ia.r é dor de parto: na.rce uma coiJa que é. É-se." (p. 50)<br />
Livro campos to de fragmentos. Fragmentação esc ri tural,<br />
que leva ao limite. Livro-colagem. A escritura continua inaca<br />
bada, apontando para a impossibilidade de alcance da totali-<br />
10 RRANC01 Lucia Castcllo Escrita Feminina. São Paulo: Brasiliense: 1991 p.58<br />
473
dade, bem como para a busca de Clarice "pelo cerne último e<br />
primeiro da vida",11 aproximando-a, desse modo, "do limite<br />
de seu projeto estético".12<br />
"De tal modo a morte é apenaJjutura que há quem não agüente<br />
e Je Juicide. É como Je a vida diJJeJJe o Jeguinte: e Jimplesmente não<br />
houveJ.re o seguinte. Só o doiJ-pontoJ à eJpera ". (p. 90)<br />
A linguagem, através da estrutura literária, aponta sempre<br />
para um campo de possibilidades, para um campo montado<br />
em perspectivas inéditas. Singular, ambígua, irredutível em<br />
sua proposta polifônica, leva-nos a enfrentar uma área plena<br />
de explorações. Como nosso próprio corpo, ela nos oferece<br />
muito mais do que esperamos dela, "seja porque apreendemos<br />
nossos próprios pensamentos quando falamos, seja porque os<br />
apreendemos quando escutamos outros". n<br />
Realidade e ficção se entrecruzam, confundindo o lei<br />
tor, "a ponto de impedi-lo de definir a identidade das coisas,<br />
fazendo com que sinta que qualquer coisa pode ser todas as<br />
coisas. Dessa maneira, compreender ou dar significado ao<br />
mundo em que vivemos é o mesmo que estruturar a realidade<br />
de um modo especial e estilizado. Ao elaborarmos o mundo<br />
de uma maneira particular e, portanto, parcialmente ficcional,<br />
construir significado é fazer ficção. Não há experiência real<br />
do mundo, visto que nossa construção deste é parcialmente<br />
ficcional".14 Deste modo ao aproximar-nos da reflexividade<br />
do texto estamos nos aproximando da escritura própria a cada<br />
um de nós. Estamos mesmo elaborando-a, caminhando para<br />
junto de nossa subjetividade.<br />
Continuando essa abordagem, finalizamos colocando a<br />
seguinte questão: porque algumas pessoas se colocam tão na<br />
vizinhança de Clarice? Porque, para uns, um texto insuportá<br />
vel, e, para outros, ao contrário, um texto que propicia uma<br />
identificação e um reconhecer-se na pintora de Á gua Viva ou<br />
na escritora de A Paixão segundo G. H? Porque nos deixamos<br />
11 idem 8 p.54<br />
12 ibidcm p.54<br />
lJ MEIU.Ei\L:-PONTY, lvburicc "O Olho c o Espírito" in Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultura, 19HO<br />
14 BARTUCCI, GioYanna Borges: A Realidade da Construção. Rio de janeiro: Imago, 1996 p 104<br />
474
levar pela narradora/pintora a desvendar "o atrás do pensa<br />
mento"?<br />
De acordo com Otávio Paz, a gente escreve para vir a<br />
ser. Guimarães Rosa confirma dizendo que "a vida também é<br />
para ser lida". Sabemos que a escrita nos aproxima de nossa<br />
constituição como sujeito, possibilitando-nos, de algum modo,<br />
maiores alternativas frente aquilo que se configura como uma<br />
"uma fala pessoal, única", só nossa e de mais ninguém. 15<br />
Propomos como resposta à pergunta acima colocada,<br />
citando No e mi M. Kohn, quando ela afirma que Clarice Lis<br />
pector nos leva "a um desnudamento de nosso olhar anterior,<br />
uma surpresa frente ao desconhecimento que mantínhamos, um<br />
assombro frente à negação de nossas próprias forças geradoras,<br />
um susto por não termos percebido antes o quanto deixávamos<br />
de ver. A obra de Clarice nos empurra para o que poderíamos<br />
denominar de experiência estética do mundo, onde através do<br />
corpo e da linguagem se exibem as experiências reveladoras<br />
de um ser pré-reflexivo, que somos nós, sempre aquém e além<br />
dos fatos e das idéias."16<br />
Ao desconstruir o imaginário da palavra, Clarice nos<br />
presenteia com uma obra politemática, com um texto que nos<br />
coloca diante de sentidos vários. Ou melhor, todos os sentidos,<br />
possibilitando que sejamos levados por movimentos não senti<br />
dos. Deste modo um processo simultâneo de desconhecimento/<br />
reconhecimento de si se opera durante a leitura, que ao ser<br />
concluída nos deixará, ao menos, ligeiramente diferentes do<br />
que nos percebíamos ao iniciá-la.<br />
Um processo de deslocamento, que continua, mesmo<br />
depois de fechado o livro: uma elaboração permanente, em<br />
conseqüência de um intenso espanto. Provoca a capacidade<br />
do leitor de transitar entre identificações e desidentificações,<br />
tornando-se, sem o perceber com clareza, um outro. Esse olhar<br />
para as entranhas, onde o mundo se escreve como corpo no<br />
texto de Clarice se faz por um pensamento sem justificativa.<br />
15 FERREIRA, Luzilá Gonçalves- A Fala Feminina Revista Continente-Janeiro 2004<br />
16 KOI--IN, Noctni r-..toritz (]arice Lispector: "certas presenças permitem a transfiguração". Artigo escrito<br />
a partir da conferência feita no Encontro "Um olhar sobre Claricc"- Secretaria de Cultura do Estado de São<br />
Paulo - 1998 p. 7<br />
475
Sem porquê. Um texto de trabalho. Ao ler Clarice o leitor se co<br />
loca a elaborar o texto da sua própria identidade, experiência<br />
que pode ser dolorosa, mas será sempre renovadora.<br />
Concluímos com Yudith Rosenbaum, uma estudiosa de<br />
Clarice, que aponta para o legado clariciano afirmando que ele<br />
"penetra as vivências mais sutis em busca do núcleo essencial<br />
do ser. Em cada um, parece vibrar a nota da escrita dissonante<br />
de Clarice, rompendo o pacto do esperado e desvendando uma<br />
nova sensibilidade. Seu legado para o nosso tempo estaria,<br />
talvez, na força do estranhamento como vislumbre do que<br />
escapa ao olhar anestesiado pelo excesso de familiaridade. E<br />
o inesperado surge quando a palavra, desnudada também de<br />
seus enredamentos falseadores, sussurra sua verdade em meio<br />
às pausas de tantos ruídos".17<br />
Uma escrita que contorna essa alguma coisa da femi<br />
nilidade que permanece absolutamente fora do alcance da<br />
palavra, interdita no sentido mais forte do termo, presente no<br />
mutismo que se intercala entre os ditos. E se faz ao mesmo<br />
tempo, paradoxalmente, uma palavra especial, diferente, que<br />
tem caráter de fala, que ressoa por toda a parte, em ouvidos<br />
reais e surpreendidos.<br />
"Quem me awmpanha que me a.-ompanhe: a caminhada é longa,<br />
é sofrida mas é vivida. Porque agora te falo a sério: não estou brincando<br />
com palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveiJ que<br />
se enovelam para além da.r palavras. E um Jilêncio se evola sutil do<br />
entrerhoque da.rfra.fes". (p. 25)<br />
Referências Bibliográficas:<br />
1- GURGEL, Gabriela Lírio. A Procura da Palavra no Escuro.<br />
Rio de Janeiro: 7letras, 2001<br />
17 idem 8 p. 91<br />
476