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SUBJETIVIDADE E PERSONALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE *1<br />

RESUMO<br />

Marcelo Gomes Pereira Júnior **2<br />

Neste trabalho, descrevo diversas características da <strong>contemporaneidade</strong>, também<br />

chamada de pós-modernidade, como a expansão tecnológica, a globalização, a<br />

compressão do tempo e espaço, a saturação social, o pluralismo, o consumismo, a<br />

cultura de massa, dentre outras. Em seguida, abordo suas conseqüências sobre a<br />

<strong>subjetividade</strong>, como o <strong>na</strong>rcisismo, o hedonismo, a superficialidade, a falta de sentido<br />

existencial, a ansiedade, a angústia e o tédio. Através de uma teoria<br />

fenomenológico-existencial de <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong>, busco relacio<strong>na</strong>r a capacidade de<br />

ajustamento do sujeito à dinâmica macro-estrutural, através das categorias<br />

ontológicas de Ser-no-mundo, Temporalizar, Espacializar e Escolher.<br />

Palavras-chave: Contemporaneidade. Pós-Modenidade. Perso<strong>na</strong>lidade. Psicologia<br />

Fenomenológico-Existencial.<br />

Artigo Origi<strong>na</strong>l:<br />

Elaborado em: setembro / 2010.<br />

Recebido em: janeiro / 2011.<br />

Publicado em: janeiro / 2011.<br />

*1<br />

Trabalho apresentado no Congresso de Psicologia Fenomelógico-Existencial | <strong>Fundação</strong> Guimarães Rosa –<br />

2010.<br />

**2<br />

Psicólogo formado pela UFMG, especialista em Psicologia Clínica Fenomenológico-Existencial e Gestáltica<br />

pela FEAD e em Temas Filosóficos pela UFMG.<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas – <strong>Fundação</strong> Guimarães Rosa<br />

Pági<strong>na</strong> web: www.fgr.org.br l E-mail: bibliotecafgr@fgr.org.br


2 Subjetividade e <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> <strong>na</strong> <strong>contemporaneidade</strong><br />

INTRODUÇÃO<br />

A <strong>contemporaneidade</strong>, definida temporalmente como o período que se iniciou após a<br />

segunda guerra mundial e permanece até os dias de hoje, caracteriza-se pela<br />

emergência de características singulares <strong>na</strong> história huma<strong>na</strong>. Essas características<br />

impactam a vivência do sujeito contemporâneo, trazendo sofrimentos que, mesmo<br />

não sendo inéditos, se apresentam numa freqüência nunca antes observada.<br />

O objetivo desse trabalho é listar brevemente as características da<br />

<strong>contemporaneidade</strong> e da <strong>subjetividade</strong> contemporânea, e relacioná-las a uma teoria<br />

de <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> fenomenológico-existencial. A metodologia utilizada é a pesquisa<br />

bibliográfica, enfocando autores das áreas da Sociologia e da Psicologia que<br />

abordam a temática contemporânea, seja no aspecto sócio-político, econômico e<br />

cultural, seja no aspecto subjetivo; e autores que abordam uma perspectiva<br />

fenomenológico-existencial de <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong>.<br />

Vários termos têm sido usados para nomear a época em que vivemos, como pós-<br />

modernidade, capitalismo tardio, sociedade pós-industrial, entre outros. Optei por<br />

usar o termo ―<strong>contemporaneidade</strong>‖ para me referir à nossa época, mais<br />

especificamente, às últimas décadas do século XX e início do século XXI, por ser um<br />

termo de fácil entendimento, e não trazer em si referência direta a nenhuma teoria<br />

ou autor.<br />

DISCUSSÃO<br />

Por meio de pesquisa, busquei identificar diversas características da<br />

<strong>contemporaneidade</strong>, no aspecto social, econômico e político, e seu impacto <strong>na</strong><br />

vivência do sujeito atual. Farei uma breve listagem dos principais conceitos e<br />

categorias de análise de diversos autores que apontam para essas características.<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas – FGR, Belo Horizonte jan. 2011 p. 2 de 18


Marcelo Gomes Pereira Júnior 3<br />

É importante ressaltar, inicialmente, uma característica da <strong>contemporaneidade</strong> que é<br />

uma variável importante em quase todos os conceitos que serão apontados: a<br />

expansão tecnológica. Sem dúvida, o mundo foi reconfigurado e modificado<br />

intensamente por novas tecnologias, de uma forma mais intensa que em qualquer<br />

outro momento histórico. A popularização da televisão, o advento do computador, a<br />

difusão da internet, a telefonia celular, a corrida espacial e armamentista, as<br />

comunicações via satélite, a eficiência dos meios de transporte, e muitas outras<br />

tecnologias surgiram a partir da segunda metade do séc. XX, ou seja, há poucas<br />

décadas atrás.<br />

Uma consequência direta da expansão tecnológica é a intensificação sem<br />

precedentes da “Globalização”. Ressalto a ―intensificação‖, pois a globalização é um<br />

processo que se iniciou com a modernidade (GIDDENS apud HALL, 2000), e uma<br />

característica intrínseca ao capitalismo (WALLERSTEIN apud HALL, 2000). A<br />

globalização é ―um processo (ou conjunto de processos) que corporifica uma<br />

transformação da organização espacial das relações e transações sociais –<br />

avaliadas em termos de extensão, intensidade, velocidade e impacto –, gerando<br />

fluxos e redes transcontinentais e inter-regio<strong>na</strong>is de atividade, interação e exercício<br />

do poder‖ (HELD apud KUMAR, 2006, p.26).<br />

A importância dessas redes de interação no processo de globalização levou Manuel<br />

Castells a afirmar que vivemos numa ―sociedade de redes‖, ―uma sociedade<br />

composta por um macro sistema de sociedades locais, conectadas por redes de<br />

comunicação, de transporte, e de interdependência econômica‖ (SOAR FILHO,<br />

2005, p.37). Desta forma, não é exagero afirmar que uma crise num país do sudeste<br />

asiático pode gerar a perda do emprego de um operário no interior de São Paulo,<br />

sem que este tenha a menor ideia dessa conexão causal.<br />

Intimamente relacio<strong>na</strong>da à globalização e à sociedade de redes, está o que Harvey<br />

(1992) denomi<strong>na</strong> “compressão do tempo-espaço”. Segundo Soar Filho (2005, p.10)<br />

se refere a ‗processos que revolucio<strong>na</strong>m as qualidades objetivas do espaço<br />

e do tempo a ponto de nos forçarem a alterar, às vezes radicalmente, o<br />

modo como representamos o mundo para nós mesmos‘ (p. 219). Tais<br />

processos incluem a aceleração do tempo e a diminuição das distâncias<br />

que acompanham a rápida circulação do capital; o desenvolvimento de<br />

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4 Subjetividade e <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> <strong>na</strong> <strong>contemporaneidade</strong><br />

meios de transporte cada vez mais eficientes; a criação de uma rede<br />

mundial de telecomunicações que transforma o planeta numa ‗aldeia<br />

global‘; as relações de interdependência econômica e ambiental,<br />

acompanhadas do surgimento de uma consciência ecológica inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />

[...] A compressão do tempo-espaço inicia-se <strong>na</strong> Era Moder<strong>na</strong>, ganha<br />

impulso com a Revolução Industrial, e atinge um grau até então impensável<br />

<strong>na</strong>s últimas décadas. (SOAR FILHO, 2005, p.10)<br />

Assim, a compressão do tempo-espaço é possibilitada pela expansão tecnológica,<br />

que permite ao sujeito percorrer milhares de quilômetros em poucas horas, ou<br />

mesmo instantaneamente, se considerarmos a transmissão de dados (inclusive de<br />

voz e imagem) via internet. Atualmente, vídeos-conferência são recursos facilmente<br />

utilizados por empresas, algo provavelmente não visto por Harvey, quando escreveu<br />

―Condição Pós-Moder<strong>na</strong>‖, no fi<strong>na</strong>l da década de 80. A compressão do tempo-espaço<br />

é ao mesmo tempo objetiva (pelos recursos tecnológicos) e subjetiva, <strong>na</strong> medida em<br />

que é uma forma de percepção do mundo atual.<br />

Da ideia da sociedade globalizada e da compressão do tempo-espaço derivou-se o<br />

termo ―aldeia global”, que é uma metáfora que exprime a sensação de um mundo<br />

tão intensamente interconectado, que qualquer alteração numa região ou país<br />

repercute no todo. Além disso, circulam informações e produtos das mais diversas<br />

regiões, povos e culturas por todos os espaços, dando a impressão que o mundo<br />

pode ser experimentado como uma peque<strong>na</strong> comunidade. Uma metáfora disso são<br />

as praças de alimentação dos Shoppings Centers, onde podemos escolher comida<br />

chinesa, japonesa, árabe, italia<strong>na</strong>, alemã ou fast-food americano (é claro que muitas<br />

são adaptadas ao paladar local para serem mais ―vendáveis‖, enquanto outras são<br />

simulacros, como veremos adiante).<br />

A circulação de informações <strong>na</strong> <strong>contemporaneidade</strong> é tão intensa que a sociedade<br />

costuma ser chamada de sociedade de informação. O conceito de ―saturação social”<br />

(GERGEN apud SOAR FILHO, 2005) se refere a esse bombardeamento de<br />

informações. O exemplo de Gergen, aparentemente exagerado, não o é, podendo<br />

ser comprovado por qualquer um de nós:<br />

Assim, por exemplo, durante uma hora numa rua de cidade somos<br />

informados dos estilos de vestir de negros, brancos, classe alta, classe<br />

baixa, e mais. Podemos aprender as maneiras dos executivos japoneses,<br />

mulheres muambeiras, sikhs, Hare Krish<strong>na</strong>s, ou tocadores de flauta do<br />

Chile. Vemos como relações são mantidas entre mães e filhas, executivos,<br />

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Marcelo Gomes Pereira Júnior 5<br />

amigos adolescentes, e trabalhadores da construção civil. Uma hora num<br />

escritório de negócios pode nos expor aos pontos de vista de um<br />

empresário texano de petróleo, dum advogado de Chicago, e dum ativista<br />

gay de São Francisco. Comentadores de rádio compartilham idéias sobre<br />

boxe, poluição, e abuso infantil. [...] Via televisão, uma miríade de figuras é<br />

introduzida em nossos lares, as quais de outra forma jamais entrariam.<br />

Milhões de pessoas assistem TV, enquanto convidados de talk-shows –<br />

assassinos, estupradores, prisioneiras, abusadores de crianças, membros<br />

da KKK [Ku-Klux-Klan], pacientes psiquiátricos, e outros geralmente<br />

desacreditados – tentam fazer suas vidas inteligíveis. Há poucas crianças<br />

de seis anos de idade que não possam fazer pelo menos uma avaliação<br />

rudimentar sobre a vida <strong>na</strong>s vilas africa<strong>na</strong>s, sobre as preocupações dos<br />

pais que se divorciam, ou sobre o problema das drogas nos guetos. A cada<br />

hora nosso depósito de conhecimento social se expande em amplitude e<br />

sofisticação. (GERGEN, apud SOAR FILHO, 2005, p. 96-97)<br />

O bombardeamento contínuo de informações leva a uma característica onipresente<br />

<strong>na</strong> <strong>contemporaneidade</strong>: o pluralismo. Na perspectiva de Berger e Luckmann (2004),<br />

o pluralismo é consequência do desmantelamento de instituições mantenedoras e<br />

constituintes de supra-sentidos, como as religiosas, por exemplo. Essas instituições<br />

mantinham de forma exclusiva os sentidos últimos da existência huma<strong>na</strong>, em<br />

sociedades tradicio<strong>na</strong>is, e consequentemente estabeleciam normas e valores <strong>na</strong>s<br />

ações cotidia<strong>na</strong>s. Com o aumento da complexidade social e a interações entre<br />

projetos civilizatórios distintos, ocorre uma maior ―oferta‖ de sentidos válidos,<br />

resultando no pluralismo, que é exatamente esse processo de existência simultânea<br />

de várias visões de mundo.<br />

Essa ―oferta de sentido‖ nos leva ao conceito de “Indústria cultural”, formulado por<br />

Theodor Adorno e Max Horkheimer, em 1947. No livro ―Dialética do Esclarecimento‖,<br />

os autores demonstram a conversão da cultura em mercadoria de consumo pela<br />

ideologia capitalista. O principal produto da indústria cultural é a ―Cultura de massa”,<br />

que é ―toda cultura produzida para a população em geral — a despeito de<br />

heterogeneidades sociais, étnicas, etárias, sexuais ou psicológicas — e veiculada<br />

pelos meios de comunicação de massa‖ (CULTURA DE MASSA. In: WIKIPÉDIA). A<br />

cultura de massa, além de movimentar gigantescos recursos fi<strong>na</strong>nceiros, também<br />

possibilita uma massificação e homogeneização do conhecimento e da percepção<br />

da realidade, interferindo direta e intensamente <strong>na</strong> formação da <strong>subjetividade</strong>.<br />

A comercialização do conhecimento e da cultura revela uma característica mais<br />

ampla da sociedade contemporânea, que a tor<strong>na</strong> conhecida como ―Sociedade de<br />

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6 Subjetividade e <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> <strong>na</strong> <strong>contemporaneidade</strong><br />

consumo‖, um ―tipo de sociedade que se encontra numa avançada etapa de<br />

desenvolvimento industrial capitalista e que se caracteriza pelo consumo massivo de<br />

bens e serviços, disponíveis graças a elevada produção dos mesmos‖ (SOCIEDADE<br />

DE CONSUMO. In: WIKIPÉDIA). A atitude predomi<strong>na</strong>nte nessa sociedade é o<br />

―consumismo‖, um consumo obsessivo que parece ser o sustentáculo da economia<br />

capitalista atual. Exatamente pela sua importância, ocorre uma valorização insistente<br />

do consumismo pelos meios de comunicação e cultura de massa, influenciando as<br />

aspirações, desejos e frustrações do sujeito contemporâneo. Segundo Edgar Morin<br />

citado por Chaves (2003, p. 60), ―a cultura de massa que incita o consumo e a troca<br />

rápida, afirma que tudo deve ser usado e substituído muito depressa, em última<br />

instância, produz um incessante sentimento de esvaziamento‖.<br />

Porém, não é somente a elevada produção de bens e serviços para consumo que<br />

chama a atenção <strong>na</strong> sociedade contemporânea, mas também a habilidade de<br />

conversão de qualquer coisa em mercadoria de consumo, o que podemos<br />

denomi<strong>na</strong>r de ―mercantilização‖. A economia capitalista converteu todos os aspectos<br />

da vida individual e social em produtos, garantindo a existência de mercadorias e<br />

serviços capazes de satisfazer qualquer desejo e aliviar qualquer medo (KUMAR,<br />

2006).<br />

Uma parte importante nesse processo é a valorização social do <strong>na</strong>rcisismo, ―<strong>na</strong><br />

medida em que a mercantilização, no contexto do consumismo, promove a<br />

aparência a valor máximo, e vê o auto-desenvolvimento acima de tudo em termos de<br />

exibição‖ (GIDDENS, 2002, p.185). Estritamente relacio<strong>na</strong>do ao <strong>na</strong>rcisismo, temos a<br />

ênfase no hedonismo, que reduz a vida à busca de prazer, independente das<br />

dimensões éticas ou diferenças individuais. Ambos os aspectos se desenvolveram<br />

no contexto do surgimento do consumo de massa nos EUA (LIPOVETSKY apud<br />

CHAVES, 2002).<br />

A combi<strong>na</strong>ção da plasticidade do capitalismo, a globalização, a compressão do<br />

tempo-espaço, a saturação social, a cultura de massas e a expansão tecnológica,<br />

permite a compreensão do que Bauman (2001) chama de ―modernidade líquida‖. O<br />

capitalismo atual é fluido, contor<strong>na</strong> os obstáculos. O capital se move facilmente de<br />

um país a outro, num piscar de olhos. Tudo se acelera, flexibiliza e perde<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas – FGR, Belo Horizonte jan. 2011 p. 6 de 18


Marcelo Gomes Pereira Júnior 7<br />

estabilidade e solidez, até mesmo as identidades são voláteis. As crenças,<br />

ideologias e visões de mundo acompanham as variações da cultura de massa, que<br />

por sua vez flutua ao sabor do mercado. A célebre frase de Marx do Manifesto<br />

Comunista de 1848 parece mais atual que nunca: ―Tudo o que é sólido derrete-se no<br />

ar‖ (MARX; ENGELS, 2002, p. 14).<br />

Essa breve análise da <strong>contemporaneidade</strong> demonstra como uma grande quantidade<br />

de pensadores tem elaborado conceitos e reflexões acerca do mundo atual. Esse<br />

fato, por si só, demonstra um conceito extremamente importante: a ―reflexividade‖ da<br />

sociedade contemporânea. Esse conceito foi bem desenvolvido por Beck, Giddens e<br />

Lash (1997), que afirmam estarmos numa fase de modernização (ou modernidade)<br />

reflexiva. Segundo Beck,<br />

Uma tese elementar da modernização reflexiva afirma o seguinte: quanto<br />

mais as sociedades são modernizadas, mais os agentes (sujeitos) adquirem<br />

a capacidade de refletir sobre as condições sociais de sua existência e,<br />

assim, modificá-las. (BECK; GIDDENS; LASH, 1997, p.207)<br />

Por fim, a última característica da <strong>contemporaneidade</strong> a ser abordada neste trabalho<br />

é a consideração que vivemos atualmente numa ―Sociedade de risco”. Esse<br />

conceito, desenvolvido por Beck, diz respeito a uma fase no desenvolvimento da<br />

sociedade em que os riscos sociais, políticos, econômicos, ecológicos e individuais<br />

resultantes da industrialização e modernização começam a domi<strong>na</strong>r os debates e<br />

conflitos públicos, sejam eles políticos ou privados (BECK; GIDDENS; LASH, 1997,<br />

p. 15). Assim, cada vez mais são discutidos os riscos do efeito estufa devido ao<br />

excesso de emissão de CO2, o risco da falta de água potável devido à poluição, o<br />

risco do aumento da violência urba<strong>na</strong>, do aumento do desemprego, do surgimento<br />

de novas pandemias, das pesquisas envolvendo engenharia genética e alimentos<br />

transgênicos, do aumento da incidência de depressão, e muitos outros. Essa<br />

percepção do risco é consequência do desenvolvimento da reflexividade social, de<br />

forma que sociedade de risco e modernidade reflexiva são termos complementares.<br />

Dialogar com a análise sociológica da <strong>contemporaneidade</strong> revelou um processo de<br />

transformação macroestrutural, que resultou numa série de características<br />

socioculturais e econômicas que difere nossa época de qualquer outra. É importante<br />

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8 Subjetividade e <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> <strong>na</strong> <strong>contemporaneidade</strong><br />

apresentar de que forma essas características impactam a vivência do sujeito<br />

inserido nesse contexto.<br />

Duas características citadas anteriormente chamam inicialmente a atenção: a<br />

valorização social do <strong>na</strong>rcisismo e do hedonismo. O resultado disso é um sujeito<br />

excessivamente individualista, focado no culto ao prazer, ao corpo e a aparência.<br />

Esses valores são insistentemente veiculados e propagandeados, a ponto do<br />

indivíduo se sentir socialmente i<strong>na</strong>dequado se não consegue se enquadrar nos<br />

moldes de beleza e ostentação, seja através do corpo ou dos acessórios materiais<br />

(incluindo roupas, carros, casas, iates, etc.). O paradoxo é que o prazer se tor<strong>na</strong><br />

uma obrigação: bares, bebidas, boates, shows, viagens, tudo isso tem que ser<br />

desfrutado. A busca do prazer e da aparência se tor<strong>na</strong> patológica em alguns casos,<br />

por assumir um caráter compulsivo. Assim, por exemplo, aumentam os casos de<br />

transtornos alimentares, e compulsões pelo sexo, compras ou jogos. Novos<br />

transtornos, como a compulsão por exercícios físicos e cirurgias plásticas começam<br />

a se tor<strong>na</strong>r comuns. Segundo Lipovetsky citado por Giovanetti (1999), as desordens<br />

de tipo <strong>na</strong>rcísico substituíram as neuroses clássicas, nos tratamentos psíquicos dos<br />

terapeutas.<br />

Segundo Giddens (2002, p. 185), o <strong>na</strong>rcisismo é um tipo de patologia do<br />

comportamento associado ao caráter mercantilizante e consumista do capitalismo<br />

tardio. O consumismo se utiliza do <strong>na</strong>rcisismo, <strong>na</strong> medida em que ―promete as<br />

coisas mesmas que o <strong>na</strong>rcisismo deseja – charme, beleza e popularidade – através<br />

do consumo dos tipos ‗certos‘ de bens e serviços‖ (GIDDENS, 2002, p. 160).<br />

A mercantilizacão capitalista afeta o sujeito contemporâneo através de outro produto:<br />

a cultura de massas. Com seu alcance potencializado pela expansão tecnológica, o<br />

pensamento massificado circula através da televisão, rádio, cinema, imprensa e<br />

internet. Paradoxalmente, a sociedade de consumo capitalista veicula ao mesmo<br />

tempo o individualismo e a homogeneização. A origi<strong>na</strong>lidade e criatividade de<br />

pensamento e opinião é uma tarefa árdua ao sujeito, e a dimensão da profundidade<br />

e interioridade é desvalorizada em nome do que é superficial e efêmero<br />

(GIOVANETTI, 1999). O resultado é um sujeito esvaziado de sentido pessoal, que<br />

flutua ao sabor das noticias, programas, opiniões e teorias do momento. Lipovetsky<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas – FGR, Belo Horizonte jan. 2011 p. 8 de 18


Marcelo Gomes Pereira Júnior 9<br />

citado por Chaves (2003, p. 18) afirma que <strong>na</strong> civilização atual ―é possível viver sem<br />

fi<strong>na</strong>lidade nem sentido, numa espécie de sequência-flash‖.<br />

O psicólogo social Kenneth Gergen citado por Soar Filho (2005, p. 97) se refere a<br />

esse processo através do termo ―multifrenia”, que é caracterizada por ser ―uma<br />

síndrome normal da pós-modernidade caracterizada pela dissociação do indivíduo<br />

numa multiplicidade de investimentos‖. Desta forma<br />

a identidade já não é vivenciada como u<strong>na</strong> e estável, mas sim sujeita a uma<br />

multiplicidade de manifestações, por vezes díspares e inusitadas aos olhos<br />

de um observador externo. Enfim, já não existe mais uma essência<br />

individual à qual a pessoa permanece fiel ou comprometida. ‗A identidade é<br />

continuamente emergente, re-formada e redirecio<strong>na</strong>da <strong>na</strong> medida em que a<br />

pessoa se move num mar de relacio<strong>na</strong>mentos em constante mudança‘<br />

(GERGEN apud SOAR FILHO, p.16).<br />

O resultado desse processo é chamado de <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> pastiche, uma<br />

<strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> composta por uma coleção desorde<strong>na</strong>da de influências, instável e<br />

desorientada (SOAR FILHO, p.113).<br />

Tanto a multifrenia quanto a <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> pastiche estão associadas à saturação<br />

social de informações. Porém, essa saturação que nos leva a denomi<strong>na</strong>r nossa<br />

sociedade de sociedade de informação exerce outras influências subjetivas. O<br />

sujeito contemporâneo experimenta a ansiedade permanente de organizar toda<br />

informação recebida, devido à valorização social e profissio<strong>na</strong>l de indivíduos<br />

―ante<strong>na</strong>dos‖, atualizados com as últimas notícias, as últimas tecnologias,<br />

multilíngues, especializados e ao mesmo tempo generalistas. As pessoas têm que<br />

fazer cursos, atualizações, graduações, pós-graduações, etc. Se considerarmos<br />

somente a estrutura curricular do ensino médio, pode-se afirmar que hoje um<br />

adolescente pode acumular mais informações que as disponíveis aos gênios do<br />

iluminismo no século XVIII. Esse fetichismo informacio<strong>na</strong>l, além de gerador de<br />

ansiedade, é um dos componentes de mais uma compulsão i<strong>na</strong>ugurada <strong>na</strong><br />

atualidade: a compulsão pela internet.<br />

Toda essa fluidez, que justifica o termo modernidade líquida, desorienta e esvazia<br />

de sentido a vivência subjetiva. ―A falta de sentido pessoal – a sensação que a vida<br />

não tem <strong>na</strong>da a oferecer – tor<strong>na</strong>-se um problema psíquico fundamental <strong>na</strong><br />

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10 Subjetividade e <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> <strong>na</strong> <strong>contemporaneidade</strong><br />

modernidade tardia‖ (GIDDENS, 2002, p. 16). Somando-se a isso a ideia de<br />

sociedade de risco, exposta anteriormente, e tem-se a ideia de ―insegurança<br />

ontológica‖, que, para Giddens (2002), desestabiliza a identidade do individuo<br />

contemporâneo. Na tentativa de transitar por esse ambiente, uma defesa subjetiva é<br />

a constituição do que Rojas citado por Giovanetti (1999, p. 164) chama de ―homem<br />

light‖, aquele ―homem sem substância, sem conteúdo, entregue ao dinheiro, ao<br />

poder, ao sucesso e ao gozo ilimitado, sem restrições.‖ Coerentemente, o ―homem<br />

light‖ vive a ―sexualidade light‖, ―sexualidade sem importância, sem interesse,<br />

desvalorizada, carente de qualquer autêntica intimidade‖ (ROJAS apud<br />

GIOVANETTI, 1999, p. 173).<br />

Todo esse quadro aponta para uma vivência complexa e difícil, pautada pela<br />

ansiedade, desorientação e falta de sentido último de existência. Porém, faço uma<br />

ressalva a toda essa análise: a vivência subjetiva real, concreta, que estamos<br />

efetivamente desfrutando no aqui-agora, não se caracteriza por toda essa<br />

problemática assustadora e sombria. O que vemos em nossa realidade são pessoas,<br />

incluindo nós mesmos, que realmente sofrem a influência de todo esse macro-<br />

contexto, algumas inclusive de forma patológica, mas que não necessariamente se<br />

sentem desorientadas, ansiosas ou vivendo uma vida sem sentido. Podemos<br />

perceber pessoas que vivem vidas ricas de sentido, que transitam por nesse<br />

contexto com leveza, que consideram o pluralismo uma experiência de liberdade, e<br />

constituem relacio<strong>na</strong>mentos significativos e afetivos com as pessoas mais próximas.<br />

Como poderíamos compreender essa realidade paradoxal?<br />

Mesmo que a realidade macro estrutural aponte para uma vivência destituída de<br />

sentido, hedonista, ansiogênica e superficial, o sujeito pode se posicio<strong>na</strong>r de forma<br />

diferente. Isso é possível a partir de uma consideração da <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> huma<strong>na</strong>,<br />

numa perspectiva fenomenológico-existencial. Podemos conceituar <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong><br />

como<br />

o conjunto de características do existir humano, consideradas e descritas de<br />

acordo com o modo como são percebidas e compreendidas, pela pessoa,<br />

no decorrer da vivência cotidia<strong>na</strong> imediata e tendo como fundamento os<br />

seus aspectos fenomenológicos primordiais. (FORGHIERI, 1997, p. 26)<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas – FGR, Belo Horizonte jan. 2011 p. 10 de 18


Marcelo Gomes Pereira Júnior 11<br />

Forghieri (1997) apresenta quatro características básicas da <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> huma<strong>na</strong>,<br />

que são formas de existir no mundo. São elas: Ser-no-mundo, Temporalizar,<br />

Espacializar e Escolher.<br />

Ser-no-mundo é a ideia fundamental contida <strong>na</strong> palavra Dasein, que Heidegger<br />

utiliza para falar do homem. Significa que homem e mundo estão necessariamente<br />

ligados, o homem não pode ―ser‖ fora do mundo, ele está irremediavelmente lançado<br />

no mundo, e todas as suas ações, pensamentos e sentimentos partem dessa<br />

vivência concreta. Ao mesmo tempo, o homem é a consciência que capta o mundo,<br />

nesse sentido, é o próprio ―Ser‖ no mundo, pois <strong>na</strong> consciência do homem todas as<br />

coisas ganham seu sentido, <strong>na</strong> ideia fenomenológica da intencio<strong>na</strong>lidade. Assim, ―as<br />

coisas não podem ser [ter sentido] sem o homem e o homem não pode ser sem as<br />

coisas que encontra‖ (BOSS apud FORGHIERI, 1997, p.28). A vivência do mundo é<br />

pré-reflexiva, anterior a toda elaboração, mas a reflexão permite ao homem<br />

apreender os sentidos conferidos ao mundo. Ele não faz isso através de um<br />

distanciamento objetivo, uma vez que não pode sair do mundo para apreendê-lo, e<br />

sim através de um aprofundamento de sua experiência, o que a fenomenologia<br />

chama de redução. Forghieri (1997) aponta três aspectos do mundo: circundante,<br />

humano e próprio. O mundo circundante é o que chamamos de ambiente,<br />

abarcando concretamente as coisas com as quais lidamos, como objetos, animais,<br />

ciclos <strong>na</strong>turais, etc. O mundo humano ―é aquele que diz respeito ao encontro e<br />

convivência da pessoa com os seus semelhantes‖ (FORGHIERI, 1997, p. 31), e<br />

inclui a linguagem e a cultura. O mundo próprio ―consiste <strong>na</strong> relação que o indivíduo<br />

estabelece consigo, ou, em outras palavras, no seu ser-si-mesmo, <strong>na</strong> consciência de<br />

si e no autoconhecimento‖ (FORGHIERI, 1997, p. 32), e contém o sentido das<br />

experiências do sujeito e todos os seus conhecimentos de si e do mundo.<br />

Além dos três aspectos do mundo, Forghieri também aponta três maneiras de existir<br />

no mundo: preocupada, sintonizada e racio<strong>na</strong>l. Na existência preocupada, o sujeito<br />

oscila de um sentimento vago de intranquilidade até uma profunda sensação de<br />

angústia. ―Preocupação‖, aqui, não se refere ao termo utilizado no senso comum,<br />

mas a uma gama de sentimentos negativos que se manifestam em situações<br />

diversas, como frustração, raiva, medo, ansiedade, etc. Já <strong>na</strong> existência sintonizada,<br />

o sujeito oscila de um leve sentimento de tranquilidade até uma sensação de<br />

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12 Subjetividade e <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> <strong>na</strong> <strong>contemporaneidade</strong><br />

completa harmonia com o mundo. Na maneira racio<strong>na</strong>l de existir, o sujeito a<strong>na</strong>lisa e<br />

relacio<strong>na</strong> suas experiências, criando explicações, conceitos e teorias. Isso permite<br />

uma interpretação coerente do mundo, e um posicio<strong>na</strong>mento que coorde<strong>na</strong> suas<br />

ações. Essas três formas de existir são inerentes ao ser humano, variando em<br />

relação ao grau e frequência em que se manifestam.<br />

Temporalizar é a capacidade de experienciar o tempo, inerente ao existir humano.<br />

Apesar de o tempo ter sido a<strong>na</strong>lisado racio<strong>na</strong>lmente, objetivamente medido,<br />

particio<strong>na</strong>do e considerado <strong>na</strong>s suas dimensões de passado, presente e futuro,<br />

Forghieri (1997, p. 42-43) afirma que<br />

em nosso existir cotidiano imediato, vivenciamos o tempo como uma<br />

totalidade, que consiste num presente perene, abarcador, tanto do já<br />

acontecido como do que esperamos que venha acontecer. Costumamos<br />

experienciar o nosso existir como um fluxo contínuo, decorrendo numa<br />

‗velocidade‘ e intensidade que se alter<strong>na</strong>m de acordo com a nossa maneira<br />

de vivenciar as situações, que é sempre acompanhada de algum<br />

sentimento de agrado ou desagrado. [...] vivenciamos, simultaneamente,<br />

uma ‗extensibilidade‘, ou seja, nosso temporalizar estende-se, tanto em<br />

relação ao nosso passado como em direção ao futuro, com amplitude ou<br />

restrição. Assim sendo, posso vivenciar meu existir tendo como fundo um<br />

passado com poucas ou muitas experiências significativas e um futuro com<br />

poucas ou muitas possibilidades de prosseguir minha existência.<br />

(FORGHIERI, 1997, p. 42-43)<br />

As elaborações racio<strong>na</strong>is do tempo possibilitam ao homem uma impressão de<br />

controle e planejamento, mas ocasio<strong>na</strong>lmente é inevitável a sensação de que o<br />

tempo se abate sobre nós, independente de nossa vontade, e num ritmo que escapa<br />

ao nosso controle, seja ele lento e tedioso, ou frenético e angustiante.<br />

Espacializar é a capacidade de vivenciar o espaço no existir humano. Assim como o<br />

tempo, o espaço foi objetivado, medido e recortado, e as coisas e os lugares<br />

nomeados e mapeados. Porém, além dessa dimensão objetiva, que permite o<br />

deslocamento e a localização do homem no espaço, existe uma vivência subjetiva,<br />

que se manifesta em nossa existência de forma pré-reflexiva. Assim, podemos nos<br />

sentir próximos de pessoas ou locais objetivamente distantes, ou distanciados do<br />

local onde efetivamente nos encontramos. Um caminho longo pode nos parecer<br />

―logo ali‖, e um deslocamento até a casa de um vizinho pode parecer uma viagem.<br />

Podemos também vivenciar um espaço desconhecido de forma familiar, e<br />

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Marcelo Gomes Pereira Júnior 13<br />

eventualmente um lugar cotidiano pode causar grande estranheza. Além disso,<br />

nosso espaço não se reduz a onde estamos exatamente, pois a capacidade de<br />

espacializar inclui onde estive e onde posso estar. Forghieri (1997, p. 45) afirma que<br />

a vivência do espaço e a do tempo relacio<strong>na</strong>m-se intimamente e são<br />

experienciadas com amplitude ou restrição, de acordo com a visualização<br />

de possibilidades e esperança da pessoa de poder realizá-las, ou a<br />

restrição de perspectivas e desânimo por não vislumbrar meios de<br />

concretizá-la. (FORGHIERI, 1997, p. 45)<br />

Outra característica da <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> huma<strong>na</strong> é a capacidade de Escolher. Essa<br />

capacidade permite ao Homem, o Dasein, ser uma abertura para o mundo, um<br />

mundo de infinitas possibilidades. Segundo Boss citado por Forghieri (1997, p. 47):<br />

ape<strong>na</strong>s onde há uma muliplicidade de fenômenos, tor<strong>na</strong>-se possível a<br />

escolha e a decisão. [...] Tanto a abertura como a liberdade de escolha são<br />

fenômenos fundamentais que se revelam diretamente, não requerendo<br />

qualquer comprovação. Mas, como são ambos primordiais, é possível, para<br />

um deles, ser a condição de manifestação do outro. (FORGHIERI, 1997, p.<br />

47)<br />

A relação entre a liberdade de escolher e a abertura existencial evidencia que<br />

quanto maior a abertura, maior a liberdade. A abertura existencial é a capacidade<br />

huma<strong>na</strong> de percepção e compreensão de sua vivência, de acordo com a realidade<br />

intersubjetiva. A capacidade de escolher é também a capacidade de significar e<br />

valorizar as experiências. Entretanto, a mesma capacidade de escolher que<br />

representa a liberdade é o fundamento da limitação huma<strong>na</strong>, pois a escolha implica<br />

a impossibilidade de se realizar todas as possibilidades. Assim, cada escolha abre<br />

um caminho, ao mesmo tempo em que restringe outros. É a capacidade de escolher<br />

também que permite outro nível de existência huma<strong>na</strong>: a ação, que é o esforço de<br />

concretizar a opção de escolha. Muitas vezes, a i<strong>na</strong>tividade huma<strong>na</strong> vem justamente<br />

do desejo de preservar uma suposta plenitude de liberdade por não fazer escolhas.<br />

Desta forma, o sujeito julga que todos os caminhos se encontram permanentemente<br />

abertos. Porém, o tempo não respeita o desejo humano, e as possibilidades de<br />

escolha se esgotam <strong>na</strong>turalmente. A ação, portanto, é a concretização da liberdade,<br />

e não sua restrição.<br />

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14 Subjetividade e <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> <strong>na</strong> <strong>contemporaneidade</strong><br />

As características da <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> huma<strong>na</strong> apontam para um potencial de<br />

ajustamento possível do sujeito no mundo contemporâneo. Questões como<br />

globalização, compressão do tempo e espaço e interações por redes se referem à<br />

capacidade huma<strong>na</strong> de temporalizar e espacializar, ou seja, ainda que o sujeito<br />

possa se sentir desorientado em relação a esses aspectos, é inerente à capacidade<br />

huma<strong>na</strong> se orientar de forma ampla e flexível em relação aos mesmos. Mais ainda:<br />

se a sociedade contemporânea manifesta essas características, é exatamente por<br />

serem possíveis ontologicamente ao Homem, uma vez que todo o processo partiu<br />

dele, e por ele se mantém.<br />

O mesmo pode ser dito em relação à saturação social e cultura de massas quando<br />

pensamos <strong>na</strong> capacidade huma<strong>na</strong> de escolher. A abertura existencial nos põe em<br />

contato com o mundo, mas esse contato, por mais intenso que seja, não nos tira a<br />

capacidade existencial de dar sentido às coisas, e dessa forma recusar ou aceitar<br />

sentidos previamente dados. O <strong>na</strong>rcisismo, ou individualismo, ou o hedonismo se<br />

oferecem, mas não se impõe. Em última análise, só se incorporam à vivência<br />

quando escolhidos como valores, e sempre existe a possibilidade de serem<br />

posteriormente recusados. Aliás, todo o pluralismo da <strong>contemporaneidade</strong>, e toda<br />

produção de informação e conhecimento só podem ser explicadas pela capacidade<br />

de significar e escolher inerentes ao Homem.<br />

Assim, os desafios que o mundo contemporâneo traz ao sujeito dos dias atuais não<br />

superam sua capacidade de lidar com eles, por meio de potencialidades disponíveis<br />

<strong>na</strong> estrutura de <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong>. Pode acontecer, porém, que essas capacidades não<br />

se atualizem, e o resultado é a vivência do sofrimento, que pode ir da leve<br />

ansiedade até a psicopatologia mais grave. O sujeito enrijecido em suas<br />

possibilidades existenciais pode se sentir oprimido, por exemplo, pela compressão<br />

do tempo e espaço, pois sua limitação não permite um ajustamento criativo a esses<br />

desafios do ambiente. Exatamente por essa diferenciação de desenvolvimento de<br />

potencialidades existenciais, algumas pessoas vivem a <strong>contemporaneidade</strong> de forma<br />

mais ajustada – existência sintonizada –, e outras com mais sofrimento – existência<br />

preocupada. É possível, também, um ajustamento ape<strong>na</strong>s em alguns aspectos,<br />

como uma pessoa com boa capacidade de temporalizar, mas que se sente<br />

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Marcelo Gomes Pereira Júnior 15<br />

constantemente angustiada e sem rumo por uma desatualização em sua capacidade<br />

de escolher.<br />

O desenvolvimento das capacidades do sujeito está intimamente relacio<strong>na</strong>da com a<br />

dimensão racio<strong>na</strong>l, enquanto possibilidade da busca de sentido em suas ações,<br />

desejos, medos, crenças e relacio<strong>na</strong>mentos, possibilitando inclusive a descoberta de<br />

um sentido último de sua existência. Nesse sentido, a reflexividade da sociedade<br />

contemporânea é um auxílio ao desenvolvimento e ao ajustamento do ser humano,<br />

enquanto atividade individual. Pela busca de sentido nos mundos circundantes,<br />

humanos e próprios, o ser humano, enquanto Dasein, amplia sua abertura<br />

existencial, possibilitando uma existência sintonizada e rica de significado.<br />

CONCLUSÃO<br />

As diversas características macro-estruturais da <strong>contemporaneidade</strong> apontam para<br />

conseqüências negativas <strong>na</strong> vivência subjetiva. Ausência de sentido, ansiedade,<br />

<strong>na</strong>rcisismo, superficialidade, tédio e angústia existencial são sintomas possíveis do<br />

sujeito contemporâneo. Porém, as potencialidades existenciais da <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong><br />

huma<strong>na</strong> possibilitam ajustes a essa macro-estrutura, e explicam porque os sujeitos<br />

são afetados de formas diferentes, ainda que sujeitados a condições semelhantes.<br />

Nenhum sujeito tem o ―privilégio‖ de se retirar efetivamente do mundo, enquanto<br />

Dasein. No entanto, essa vivência pode ser de qualidades diferentes. Algumas<br />

vivências subjetivas podem ser mais sintonizadas, outras mais preocupadas,<br />

favorecendo ajustamentos que vão do bem-estar até a patologia.<br />

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16 Subjetividade e <strong>perso<strong>na</strong>lidade</strong> <strong>na</strong> <strong>contemporaneidade</strong><br />

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