Biotecnologia
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Vacina para Dengue<br />
ENTREVISTA<br />
Entrevista concedida a<br />
Evanildo da Silveira<br />
As perspectivas de uma vacina contra o virus da Dengue com a tecnologia do DNA recombinante<br />
odos os anos, algo entre 50 e 100 milhões de<br />
pessoas no mundo contraem algum dos quatro<br />
tipos de dengue. Calcula-se que cerca de dois<br />
bilhões de pessoas vivem em áreas de risco da<br />
doença. Apenas em 1995, foram notificados,<br />
somente nas três Américas, 250 mil casos de dengue, sete mil<br />
da forma grave da doença (hemorrágica).<br />
Segundo a Organização Mundial da Saúde, hoje as áreas de<br />
maior risco são as Américas Central e do Sul (exceto Argentina<br />
Chile e Paraguai), México, África, Austrália, Caribe (com<br />
exceção de Cuba e Ilhas Caymam), China, Índia e Sudeste<br />
Asiático. Embora nos Estados Unidos a dengue seja rara,<br />
houve registros de alguns casos no Texas, em 1995.<br />
No Brasil, a doença foi considerada erradicada já na<br />
década de 30 do século passado. Na época, o combate à febre<br />
amarela levou praticamente à extinção do mosquito transmissor<br />
da dengue, o Aedes aegypti, vetor das duas moléstias. No<br />
entanto, em 1981, a doença voltou a fazer vítimas, principalmente<br />
na Região Norte. A partir de então, a dengue começou<br />
a se alastrar para outras regiões do país, notadamente as mais<br />
quentes.<br />
As primeiras epidemias, depois do seu ressurgimento,<br />
foram registradas no Rio de Janeiro, uma em 1986-87, com<br />
cerca de 90 mil casos, e outra em 1990-91, com 100 mil. Daí<br />
em diante, o número de vítimas só fez crescer. Em 1998, foram<br />
registrados, segundo o Ministério da Saúde, mais de 570 mil.<br />
Campanhas de conscientização da população e o trabalho do<br />
governo no combate ao mosquito transmissor reduziram o<br />
número de vítimas para 210 mil, em 1999. No entanto, a queda<br />
do número de casos foi passageira, pois, desde então, o<br />
número de vítimas voltou a crescer: 240 mil em 2000 e 390.765<br />
casos em 2001. Neste ano, só em janeiro e fevereiro, foram<br />
registrados 190.389 casos em todo o país, segundo dados da<br />
Funasa. Além disso, o problema se agravou recentemente por<br />
causa da introdução de mais um sorotipo de dengue no Brasil.<br />
Antes, só havia a dengue tipo 1 e 2, agora o 3 também chegou.<br />
A dengue é uma doença infecciosa causada por um<br />
arbovírus, da classe dos flavivírus (existem quatro tipos diferentes<br />
de vírus do dengue- 1, 2, 3 e 4), que ocorre principalmente<br />
em áreas tropicais e subtropicais do mundo, como o<br />
Brasil. É transmitida principalmente por duas espécies de<br />
mosquitos, Aedes aegypti e Aedes albopictus. As epidemias, que<br />
são mais comuns no verão, estão, atualmente, se expandindo<br />
rapidamente. A previsão para os próximos anos é que<br />
aumentem em todo o planeta, principalmente nos trópicos.<br />
Apesar do esforço de cientistas de todo o mundo, ainda<br />
não existem vacinas contra a doença. A forma mais eficaz de<br />
evitá-la, por enquanto, é combater os mosquitos transmissores.<br />
A infecção causada por<br />
qualquer um dos quatro tipos<br />
do vírus da dengue produz<br />
manifestações semelhantes. Em<br />
mais de 95% dos casos, os<br />
sintomas são desconforto, febre<br />
alta, dor de cabeça e no<br />
corpo e, às vezes, vômitos.<br />
Também podem aparecer,<br />
três ou quatro dias após o<br />
início dos primeiros sintomas,<br />
coceira (prurido) e manchas<br />
vermelhas na pele, parecidas<br />
com as do sarampo ou rubéola.<br />
Além disso, é comum aparecer<br />
pequenos sangramentos<br />
no nariz e nas gengivas. A dengue, entretanto, raramente coloca<br />
em risco a vida da pessoa. A maioria das vítimas começa e<br />
melhorar após quatro ou cinco dias e recupera-se totalmente<br />
em cerca de dez dias.<br />
O médico pernambucano Ernesto Marques, doutor em<br />
Farmacologia e Ciências Moleculares pela prestigiada universidade<br />
norte-americana The Johns Hopkins University School of<br />
Medicine (JHU/SOM), de Baltimore, onde trabalha, tem um<br />
interesse pessoal em descobrir uma vacina contra a dengue. Em<br />
1998, no Recife, viu sua mãe, na época com 60 anos, contrair<br />
dengue. Marques imaginou, então, que o seu interesse por<br />
vacinas de DNA, que já vinha desde 1995, pudesse ajudar a<br />
combater uma doença que atinge milhões de pessoas em todo<br />
o mundo.<br />
Ele resolveu aproveitar sua experiência com a chamada<br />
tecnologia LAMP (Lysosome Associated Membrane Protein),<br />
em vacinas de DNA, que havia sido descoberta na JHU/SOM.<br />
“Meu primeiro projeto com essa tecnologia foi com HIV”,<br />
lembra. “Mas não estavámos progredindo muito rápido. Tínhamos<br />
alguns problemas que não estávamos conseguindo resolver<br />
com as nossas vacinas. Pensando sobre o assunto, achei<br />
que a dengue era um bom modelo para aplicar a tecnologia<br />
LAMP. Também imaginei que teria mais chance de encontrar<br />
uma vacina contra dengue do que contra HIV/AIDS.”<br />
Com sua equipe, ele começou, então, a trabalhar com<br />
dengue em colaboração com a Marinha Americana. “Foi<br />
evidente, desde o início, que estávamos tendo sucesso e<br />
progredíamos rápido”, conta. “Em dezembro 2000, fizemos<br />
uma descoberta que nos permitiu avançar muito em nosso<br />
programa de HIV e resolvemos, então, diminuir um pouco os<br />
nossos esforços com as pesquisas contra a dengue. Agora<br />
estamos trabalhando de novo, no entanto, com o máximo da<br />
4 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
nossa capacidade nos dois projetos.”<br />
Graduado em medicina em 1993, na<br />
Universidade Federal de Pernambuco<br />
(UFPE), Marques iniciou a carreira científica<br />
no Brasil, trabalhando com Biossensores<br />
para Vitamina C e Glicose. Em<br />
1994, ele ingressou no programa de pósgraduação<br />
da JHU/SOM e em 1999,<br />
concluiu o doutorado. “Fui imediatamente<br />
contratado para o corpo docente<br />
da JHU/SOM pelo Dr. Thomas August,<br />
na época chefe do departamento de<br />
Farmacologia”, orgulha-se. “Hoje, tenho<br />
cursos avançados em Biologia Molecular,<br />
Bioquímica, Biofísica, Genética, Biologia<br />
Celular, Imunologia, Virologia, Bioinformática<br />
entre outros.”<br />
Sua tese de doutorado envolveu a<br />
caracterização bioquímica e molecular<br />
da enzima Fucosiltransferase do Schistosoma<br />
mansoni e o desenvolvimento de<br />
inibidores para essa enzima, com o<br />
objetivo de criar uma nova droga para<br />
tratamento da esquistossomose. Publicou<br />
vários trabalhos nesse campo.<br />
Para que ele falasse sobre suas pesquisas<br />
com a vacina contra a dengue, a<br />
tecnologia LAMP e suas perspectivas, a<br />
revista <strong>Biotecnologia</strong>, Ciência & Desenvolvimento<br />
entrevistou o médico<br />
Ernesto Marques Jr., M.D./Ph.D, pesquisador<br />
associado do Departamento de<br />
Farmacologia e Ciências Moleculares, da<br />
Johns Hopkins University School of<br />
Medicine.<br />
BC&D - Desde quando o senhor está<br />
pesquisando uma vacina para a dengue?<br />
Ernesto Marques - Desde o final de<br />
1998, começo de 1999<br />
BC&D - Como surgiu o seu interesse<br />
por uma vacina para essa doença?<br />
Ernesto Marques - Bem, a idéia surgiu<br />
principalmente por conseqüência da<br />
epidemia que está ocorrendo no Brasil,<br />
inclusive até alguns familiares meus a<br />
tiveram também.<br />
BC&D - O senhor poderia explicar o<br />
que é a tecnologia “Naked DNA”?<br />
Ernesto Marques - É uma resposta longa,<br />
mas, de forma bastante simplificada,<br />
eu diria que o termo “Naked DNA” surgiu<br />
no início dos anos 90. Ele refere-se ao<br />
uso de DNA puro na forma de plasmídeos<br />
(vetores de expressão de proteínas)<br />
em células de animais, sem o uso de<br />
nenhum agente para revestir o DNA - por<br />
isso chamado de Naked (nu, despido). A<br />
grande surpresa foi a capacidade destes<br />
plasmídeos entrarem dentro das células<br />
dos animais vivos e produzirem a proteína<br />
codificada por eles (plasmídeos) sem<br />
a ajuda de um vetor. Como vacinas, de<br />
um modo geral, funcionam induzindo<br />
uma resposta imunológica contra antígenos<br />
- que são proteínas na maioria das<br />
vezes - se pensou, imediatamente, em<br />
aplicar esta tecnologia para desenvolvêlas.<br />
Hoje, com as tecnologias de engenharia<br />
genética é fácil construir plasmídeos<br />
capazes de sintetizar a proteína<br />
(antígeno) que se deseja. Um dos grandes<br />
contribuidores para o avanço das<br />
tecnologias de engenharia genética foi o<br />
Dr. Daniel Natans, nosso professor aqui<br />
na JHU e laureado com o prêmio Nobel<br />
de Medicina, em 1978, devido às suas<br />
descobertas de enzimas de restrição,<br />
que foram a base da engenharia genética.<br />
"O que se espera de uma vacina<br />
contra dengue é que ela seja<br />
capaz de prevenir a infecção dos<br />
quatro sorotipos dos vírus, não<br />
produza efeitos colaterais, seja<br />
muito segura, não aumente o<br />
risco da dengue hemorrágica e<br />
tenha um baixo custo."<br />
BC&D - O senhor poderia explicar a<br />
estratégia “LAMP”? O que ela significa?<br />
Como funciona?<br />
Ernesto Marques - LAMP é a abreviação<br />
de “Lysosome Associated Membrane<br />
Protein”. LAMP é uma proteína das nossas<br />
células que se localiza especificamente<br />
nos lisossomos, que são organelas<br />
celulares especializadas na digestão<br />
celular. A “estratégia LAMP”, se refere ao<br />
uso de uma pequena porção da proteína<br />
LAMP, que é responsável pela localização<br />
da mesma nos lisossomos, é um<br />
“sinal de tráfego celular”. Nós utilizamos<br />
este “sinal de tráfego celular” da proteína<br />
LAMP e o colocamos em outras proteínas<br />
para fazer com que elas também se<br />
dirijam aos lisossomos. No caso da vacina<br />
para dengue, colocamos o sinal LAMP<br />
na proteína do envelope do vírus da<br />
dengue e a fizemos se dirigir para o<br />
lisossomo. A vantagem de se colocar<br />
proteínas antigênicas direto no lisossomo<br />
é que, em certas células especializadas<br />
do sistema imune (células apresentadoras<br />
de antígenos, como as células<br />
dendríticas), os lisossomos são o centro<br />
de processamento dos antígenos. Ou<br />
seja, o direcionamento ao lisossomo<br />
torna os antígenos muito mais visíveis<br />
ao sistema imune e, portanto, às vacinas<br />
mais eficientes.<br />
BC&D - O senhor poderia explicar o<br />
que é exatamente o “sinal de tráfego<br />
celular” da proteína LAMP? O que é o<br />
tráfego celular”?<br />
Ernesto Marques - As células possuem<br />
vários compartimentos bem organizados<br />
que têm funções bem específicas e<br />
são chamados de organelas. As células<br />
transportam materiais entre estes compartimentos<br />
para serem processados. É<br />
como nós fazemos na indústria, por<br />
exemplo. Alguém coleta o minério de<br />
ferro e põe no caminhão para ser<br />
levado à usina siderúrgica. Na usina,<br />
eles fabricam o aço e o mandam para a<br />
indústria automobilística. E assim por<br />
diante. Quando o material é transportado<br />
de um local para o outro, você deve<br />
pôr o endereço do destinatário. As<br />
células têm sistemas similares. Os sinais<br />
de tráfego celulares são indicadores<br />
que determinam este endereçamento<br />
dentro da célula. O sinal celular da<br />
LAMP, portanto, é o sinal que determina<br />
que LAMP vai ser transportada ao compartimento<br />
endossomo/lisossomo (endossomo<br />
é organela, mais ou menos<br />
como o lisossomo).<br />
BC&D - Por que o senhor achou que<br />
dengue era um bom modelo para aplicar<br />
a tecnologia LAMP?<br />
Ernesto Marques - Por várias razões.<br />
Uma é que, quando uma pessoa se<br />
infecta com dengue, geralmente se cura<br />
e não pega mais a dengue do mesmo<br />
sorotipo, só de outro. O que significa<br />
que a pessoa se torna imune. Isto não<br />
acontece com outras doenças, como é<br />
o caso de HIV. Outra razão, é que se<br />
sabe quais são os mecanismos imunológicos<br />
que tornam a pessoa resistente<br />
ao vírus e se tem maneiras de testar a<br />
vacina em animais e saber se ela dá<br />
proteção ou não. No caso especifico do<br />
uso de LAMP, a vantagem é que o<br />
antígeno principal da dengue é uma<br />
proteína de membrana como LAMP e o<br />
tráfego celular funciona sem complicações.<br />
BC&D - Como o sinal de tráfego celu-<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 5
lar é colocado em outras proteínas?<br />
Ernesto Marques - O sinal de tráfego<br />
celular de LAMP se constitui em uma<br />
seqüência específica de aminoácidos,<br />
que determina o endereçamento celular.<br />
Por técnicas de biologia molecular e<br />
engenharia genética nós podemos construir<br />
proteínas quiméricas, compostas<br />
por partes de várias proteínas diferentes,<br />
colocando nestas quimeras o sinal que<br />
as endereça ao endossomo/lisossomo.<br />
No caso da vacina contra a dengue<br />
fizemos uma quimera com uma parte da<br />
proteína do envelope do vírus da dengue<br />
e uma outra parte com o sinal de tráfego<br />
celular de LAMP, para direcionar ao<br />
endosomo/lisossomo.<br />
BC&D - O que significa “alterar o tráfego<br />
do envelope da dengue”?<br />
Ernesto Marques - A proteína “envelope”<br />
normalmente não é levada ao lisossomo,<br />
mas quando nós colocamos o<br />
sinal LAMP ela passa a ser. E isto é que<br />
leva a vacina envelope/LAMP quimera a<br />
ser mais imunogênica.<br />
BC&D - O que vem a ser o “envelope da<br />
dengue”?<br />
Ernesto Marques - Alguns vírus são<br />
revestidos por uma membrana, como é o<br />
vírus da dengue, e esta membrana, junto<br />
com as proteínas que estão nela, é chamada<br />
de envelope. Estes vírus, para<br />
serem capazes de penetrar e infectar<br />
outras células, geralmente precisam se<br />
reconhecer e fundir-se a células especificas.<br />
Isto é mediado através das proteínas<br />
virais específicas que se localizam<br />
no envelope. O vírus da dengue só tem<br />
uma proteína (viral) no envelope (que é<br />
conhecida como envelope, que contém<br />
um fragmento chamado pré-membrana)<br />
mas outros vírus possuem mais. A existência<br />
destas glico-proteínas virais de<br />
membrana foi inicialmente identificada<br />
por Dr. Thomas August and Dra. Mette<br />
Strand, que foram orientadores da minha<br />
tese no doutorado.<br />
BC&D - Sua vacina é o que se pode<br />
chamar de “vacina gênica”?<br />
Ernesto Marques - Sim, eu diria que o<br />
uso de DNA ou RNA como vacina é o<br />
que caracteriza uma vacina gênica. O<br />
uso do DNA recombinante abre um<br />
leque infinito de possibilidades. Neste<br />
caso, nós usamos uma porção do LAMP<br />
para alterar o tráfego do envelope da<br />
dengue. Mas existem outras coisas que<br />
podemos fazer.<br />
BC&D - Por exemplo?<br />
Ernesto Marques - Associar moléculas<br />
que são estimuladoras do sistema imunológico<br />
como, GM-CSF ou IL-2, epitopos<br />
específicos, sinais do sistema imune<br />
nativo etc.<br />
BC&D - Há o risco desse DNA, usado<br />
nas vacinas, incorporar-se ao genoma<br />
das pessoas vacinadas e alterá-lo?<br />
Ernesto Marques - Isto tem sido investigado<br />
exaustivamente e até agora não se<br />
conseguiu nenhuma evidência de que<br />
isto esteja ocorrendo.<br />
BC&D - Por que essa certeza?<br />
Ernesto Marques - Vários testes de Vacinas<br />
de DNA já foram feitos, em diversas<br />
espécies de animais e também em<br />
humanos, e após algumas semanas de<br />
vacinação, o DNA da vacina não foi mais<br />
encontrado nos tecidos do vacinados<br />
por nenhuma das técnicas mais sensíveis<br />
que conhecemos.<br />
BC&D - A vacina que o senhor desenvolve<br />
usa vírus atenuado ou vivo?<br />
Ernesto Marques - Ela não usa vírus<br />
atenuado ou vivo. Os vírus, são agentes<br />
vivos, que infectam as células, se replicam<br />
e infectam mais células. Os vírus<br />
também tem o seu material genético<br />
(RNA ou DNA) e suas próprias proteínas.<br />
O plasmídeo, “Naked DNA”, não carrega<br />
consigo nenhuma proteína e só tem uma<br />
pequena fração do material genético do<br />
vírus. Não é capaz de se reproduzir nas<br />
células humanas ou transfectar novas<br />
células.<br />
BC&D - Quais são as etapas do desenvolvimento<br />
dessa vacina?<br />
Ernesto Marques - Desta e de quaisquer<br />
outras vacinas, o processo se inicia com<br />
um descoberta científica no laboratório.<br />
Em seguida, faz-se uma série de testes<br />
em animais, que se chamam estudos<br />
pré-clínicos. Se tudo correr bem, começam<br />
a ser feitos os estudos em pessoas.<br />
Há basicamente quatro fases:<br />
I – inicialmente, com poucas pessoas, se<br />
quer saber, principalmente, a toxicidade<br />
e qual a maior dose tolerada.<br />
II - já com um grupo maior, tenta-se<br />
saber os efeitos que a vacina causa,<br />
quais os tipos de respostas imunes, etc.<br />
Às vezes, fazem-se vários testes nesta<br />
fase.<br />
III – usa-se um grande grupo de pessoas.<br />
A principal questão é se a vacina realmente<br />
está funcionando ou não, e, também,<br />
se é segura. Caso sejam bem sucedidas<br />
todas as etapas, os órgãos reguladores<br />
dão a autorização do uso da<br />
vacina.<br />
IV – é quando se fazem estudos clínicos,<br />
para aperfeiçoar o uso da vacina.<br />
Na minha opinião, a questão mais difícil<br />
com relação à vacina de dengue é se a<br />
vacina pode ou não aumentar o risco da<br />
dengue hemorrágica e, caso isto realmente<br />
ocorra, em que situações este<br />
risco aumentado aparece.<br />
BC&D - Quais os resultados obtidos até<br />
agora?<br />
Ernesto Marques - Nós ainda estamos<br />
na fase pré-clínica. O que sabemos com<br />
certeza, até agora, é que a nossa vacina<br />
de DNA dengue/LAMP dá uma resposta<br />
de anticorpos que neutraliza o vírus,<br />
evitando que ele infecte as células, muito<br />
maior do que qualquer outras vacinas de<br />
DNA feitas contra dengue já existentes.<br />
Além disso, essa produção de anticorpos<br />
se mantém elevada por um longo<br />
tempo.<br />
BC&D - Quais as perspectivas da vacina?<br />
Ernesto Marques - O que se espera de<br />
uma vacina contra dengue é que ela seja<br />
capaz de prevenir a infecção dos quatro<br />
sorotipos dos vírus, não produza efeitos<br />
colaterais, seja muito segura, não aumente<br />
o risco da dengue hemorrágica e<br />
tenha um baixo custo. Existem boas<br />
candidatas para preencher esses requisitos.<br />
A nossa é uma delas. Existem as de<br />
vírus atenuados, entre as quais a mais<br />
avançada é uma que foi desenvolvida na<br />
Tailândia e hoje a empresa Aventis Pasteur<br />
está desenvolvendo. A estratégia<br />
dessa vacina apresenta algumas dificuldades,<br />
no entanto. Uma delas é o nível<br />
de reações adversas que esta vacina<br />
apresenta. Algumas pessoas podem se<br />
sentir mal por causa dela. Outra dificuldade<br />
é fazer uma formulação que seja<br />
eficaz para os quatro sorotipos, em todas<br />
as pessoas de uma área endêmica. Existem<br />
ainda, as quimeras virais, que combinam<br />
o vírus atenuado da vacina de<br />
febre amarela com o envelope da dengue.<br />
Esta estratégia talvez não tenha o<br />
primeiro problema da anterior, mas, pro-<br />
6 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
vavelmente, terá o segundo. Existem<br />
outros tipos de quimeras virais. E entre as<br />
vacinas de DNA, a maior dificuldade<br />
delas é que elas não são fortes o suficiente<br />
como as virais e também pelo fato<br />
de ser uma tecnologia muito nova, com<br />
a qual não se tem tanta experiência<br />
quanto com os outros tipos de vacinas.<br />
Nós achamos que melhoramos muito a<br />
questão da potência com o uso do<br />
LAMP. As vacinas de DNA são mais<br />
estáveis e, potencialmente, mais seguras<br />
do que as virais. Além de poderem ser<br />
mais baratas e não precisarem de refrigeração.<br />
BC&D - Quais são, enfim, as vacinas<br />
para a dengue mais promissoras?<br />
Ernesto Marques - Existem, como já<br />
disse, várias vacinas candidatas que têm<br />
boa chance de ser bem sucedidas. Nenhuma<br />
delas comprovou ainda que são<br />
seguras e eficazes em populações endêmicas.<br />
As mais avançadas são as de vírus<br />
atenuado, existem duas que eu conheço;<br />
as quimeras virais, que são o vírus<br />
vivo atenuado da febre amarela contendo<br />
partes do vírus da dengue e também<br />
a quimera do dengue-4 atenuado por<br />
biologia molecular com partes dos outros<br />
sorotipos de dengue, que já fez o<br />
seu primeiro estudo em humanos no<br />
ano passado aqui na Hopkins; e entre as<br />
de DNA a nossa é a mais promissora.<br />
Existem também as de proteína recombinante,<br />
mas aparentemente os resultados<br />
não estão sendo muito encorajadores<br />
com estas candidatas.<br />
BC&D - Em quanto tempo sua vacina<br />
poderá estar disponível para ser usada<br />
pela população?<br />
Ernesto Marques - Eu não sei precisamente,<br />
depende de muitos fatores como<br />
a quantidade de recursos disponíveis,<br />
dos problemas encontrados, etc. Eu posso<br />
dar uma estimativa me baseando no<br />
tempo que outros têm levado para passar<br />
pelas etapas que ainda tenho que<br />
passar, que seria em torno de 6 a 8 anos.<br />
Porém, o que é mais importante é que a<br />
vacina seja segura para as pessoas. Eu<br />
sei que a dengue é um problema grave e<br />
precisa de uma vacina o mais breve<br />
possível, porém não valeria a pena colocar<br />
a população em risco com uma<br />
vacina sem ter certeza absoluta se ela é<br />
segura. Por enquanto, o melhor método<br />
para combater a dengue ainda é o controle<br />
do mosquito, que precisa de muito<br />
apoio da população e da direção do<br />
governo. Também precisamos ser pacientes<br />
e determinados pois mesmo com todo<br />
apoio ainda vão ser levados alguns anos<br />
para controlar o mosquito.<br />
BC&D - Quem mais está envolvido nessa<br />
pesquisa e quem a financia?<br />
Ernesto Marques - A Marinha Americana<br />
com o grupo do Dr. Curtis Hayes, diretor<br />
da divisão de pesquisa de doenças infeciosas<br />
do Naval Medical Research Center<br />
(NMRC), e nós na JHU/SOM (Eu, Tom<br />
August, Ihid C. Leão, Priya Chichlikar,<br />
Luciana Arruda-Hinds e BJ Hart). O financiamento<br />
no nosso lado vem do NIH e de<br />
uma firma chamada Aarmedis. No lado da<br />
Marinha, vem do departamento de defesa.<br />
" As vacinas de DNA<br />
são mais estáveis e,<br />
potencialmente,<br />
mais seguras do<br />
que as virais."<br />
BC&D - Por que a Marinha Americana<br />
está financiando a pesquisa? Qual o<br />
interesse dela numa vacina contra a<br />
dengue?<br />
Ernesto Marques - O departamento de<br />
defesa tem vários papéis, e a segurança<br />
nacional também depende da saúde da<br />
população. A Marinha americana tem<br />
uma grande tradição de desenvolvimento<br />
de vacinas, entre outros, alguns exemplos<br />
são a da hepatite A, a da malária e a da<br />
dengue também; inclusive, os primeiros<br />
isolados do vírus da dengue foram feitos<br />
pela marinha americana. Recentemente,<br />
houve alguns surtos de dengue na região<br />
sudoeste dos Estados Unidos, no Texas, e<br />
o mosquito vetor se distribui por toda a<br />
região leste do país até o Maine, o que<br />
possibilita que a doença se espalhe.Por<br />
isto existe o interesse. Inclusive o vírus<br />
West Nile, que apareceu em Nova York, é<br />
um parente próximo da Dengue e também<br />
é transmitido pelo mesmo mosquito.<br />
BC&D - Porque o vírus West Nile pode<br />
ser considerado um parente próximo<br />
do vírus da dengue?<br />
Ernesto Marques - O West Nile também<br />
é um arbovírus e flavivírus. Possui as<br />
mesmas características, como envelope,<br />
+RNA, e codifica os mesmos tipos de<br />
proteínas, ou muito parecidas.<br />
BC&D - Quanto já foi e quanto será<br />
investido nas pesquisas dessa vacina?<br />
Ernesto Marques - No nosso grupo, algo<br />
em torno de U$1.5 milhão, e eu acredito<br />
que, após todas as etapas de estudos<br />
clínicos, o total investido deve ser próximo<br />
a U$ 15.0 milhões.<br />
BC&D - Para deixar bem claro, e resumindo,<br />
como funciona sua vacina?<br />
Ernesto Marques - Para ser mais didático,<br />
vou enumerar os passos:<br />
a – Constrói-se, por engenharia genética,<br />
um plasmídeo “DNA”, que carrega consigo<br />
uma pequena fração do material genético<br />
do vírus da dengue.<br />
b – O DNA é quem codifica a proteína, ou<br />
seja, é quem determina como a proteína<br />
vai ser feita. Então, por engenharia genética,<br />
nós criamos um código genético<br />
com pedaços dos genes do envelope e do<br />
sinal da LAMP, colados um no outro no<br />
DNA. Este novo código de DNA produzirá<br />
a proteína quimérica do envelope com<br />
o sinal LAMP.<br />
c – Esse plasmídeo “DNA” é capaz de<br />
produzir, dentro das células humanas,<br />
proteínas antigênicas do vírus da dengue<br />
capazes, por sua vez, de provocar uma<br />
reação imunológica do organismo humano<br />
(quer dizer, provoca a produção de<br />
anticorpos contra o vírus da dengue).<br />
d – Para otimizar esse processo, usa-se a<br />
“estratégia LAMP”.<br />
e – Essa pequena porção do LAMP,<br />
colada no envelope da dengue (Explicando:<br />
o plasmídeo não se dirige ao lisossomo,<br />
só a proteína codificada por ele) o<br />
dirige para o compartimento especializado<br />
para processamento de antígenos chamado<br />
MIIC, que é uma espécie de lisossomo.<br />
f – Dentro do compartimento MIIC, há a<br />
produção de antígenos de classe II.<br />
g – Essa maior produção de antígenos de<br />
classe II gera, por sua vez, uma quantidade<br />
muito maior de produção de anticorpos.<br />
h – Com isso, aumenta-se a eficiência da<br />
vacina. A pessoa torna-se imune à doença,<br />
pois a dengue é semelhante ao sarampo:<br />
só dá uma vez. Isto é verdade para um<br />
mesmo sorotipo, por isto se faz a vacina<br />
com os envelopes dos quatro sorotipos<br />
da dengue para proteger contra todos os<br />
quatro.<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 7
IRIS<br />
(Repete fotolito que saiu na pág. 08 , edição 24)
ANÚNCIO<br />
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(Repete fotolito que saiu na pág. 09 , edição 24)
Carta ao Leitor<br />
BIOTECNOLOGIA Ciência & Desenvolvimento<br />
KL3 Publicações<br />
Fundador<br />
Henrique da Silva Castro<br />
Direção Geral e Edição<br />
Ana Lúcia de Almeida<br />
Diretor de Arte<br />
Henrique S. Castro Fº<br />
Projeto Gráfico<br />
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www.agenciairis.com.br<br />
iris@agenciairis.com.br<br />
Gerente Administrativo<br />
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Secretária<br />
Vilma da Silva Duarte<br />
E-mail<br />
biotecnologia@biotecnologia.com.br<br />
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www.biotecnologia.com.br<br />
A cidade do Rio de Janeiro já tem em torno de 90.000 notificações<br />
de casos de dengue, conforme os dados da Secretaria Municipal de<br />
Saúde, e, no Estado de São Paulo, 46.124 já foram notificados desde<br />
1º de janeiro.<br />
De evolução benigna na forma clássica, e grave quando se<br />
apresenta na forma hemorrágica, não há tratamento específico<br />
para a dengue. Na verdade os pacientes tomam medicação para<br />
atenuar os sintomas e, no caso da dengue hemorrágica, o paciente<br />
precisa ser internado.<br />
Portanto, hoje a dengue pode ser considerada um grande problema<br />
de saúde pública, e uma vacina utilizando a tecnologia do DNA<br />
Recombinante é também uma de nossas esperanças. Por isso<br />
convidamos o Dr. Ernesto Marques Jr, pesquisador associado do<br />
departamento de Farmacologia e Ciências Moleculares, da Johns<br />
Hopkings University School of Medicine para falar do assunto.<br />
Dr. Henrique da Silva Castro<br />
Nota: Todas as edições da Revista <strong>Biotecnologia</strong> Ciência &<br />
Desenvolvimento estão sendo indexadas para o AGRIS<br />
(International Information System for the Agricultural Sciences<br />
and Technology) da FAO e para a AGROBASE (Base de Dados da<br />
Agricultura Brasileira).<br />
Departamento Comercial,<br />
Redação e Edição:<br />
SRTV/Sul - Quadra 701<br />
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Impressão: Gráfica São Francisco<br />
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A revista não tem vendedores autorizados.<br />
Os artigos assinados são de inteira<br />
responsabilidade de seus autores.<br />
10 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002<br />
ISSN 1414-4522
Conselho Científico<br />
Dr. Aluízio Borém - Genética e Melhoramento Vegetal<br />
Dr. Henrique da Silva Castro - Saúde;<br />
Dr. Ivan Rud de Moraes - Saúde - Toxicologia;<br />
Dr. João de Deus Medeiros - Embriologia Vegetal;<br />
Dr. Maçao Tadano - Agricultura;<br />
Dr. Naftale Katz - Saúde;<br />
Dr. Pedro Jurberg - Ciências;<br />
Dr. Sérgio Costa Oliveira - Imunologia e Vacinas;<br />
Dr. Vasco Ariston de Carvalho Azevedo - Genética de Microorganismos;<br />
Dr. William Gerson Matias - Toxicologia Ambiental.<br />
Conselho Brasileiro de Fitossanidade - Cobrafi<br />
Dr. Luís Carlos Bhering Nasser - Fitopatologia<br />
Fundação Dalmo Catauli Giacometti<br />
Dr. Eugen Silvano Gander - Engenharia Genética;<br />
Dr. José Manuel Cabral de Sousa Dias - Controle Biológico;<br />
Dra. Marisa de Goes - Recursos Genéticos<br />
Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares - IPEN<br />
Dr. José Roberto Rogero<br />
Sociedade Brasileira de <strong>Biotecnologia</strong> - SBBiotec<br />
Dr. Luiz Antonio Barreto de Castro - EMBRAPA<br />
Dr. Diógenes Santiago Santos - UFRGS<br />
Dr. José Luiz Lima Filho - UFPE<br />
Dra. Elba P. S. Bon - UFRJ<br />
Colaboraram nesta edição:<br />
Aline Maria da Silva;<br />
Ana Carla Oltramari;<br />
Andréa Queiroz Maranhão;<br />
Andréa R. Ramos Cruz;<br />
Carla Ianssen;<br />
Cáter Alexandre Neckel;<br />
Daniel John Rigden;<br />
Dionísio Bernardino Bach;<br />
Diva Maria de Alencar Dusi;<br />
Erasmo Tiepo;<br />
Ernesto Marques;<br />
Evanildo da Silveira;<br />
Gláucia Mendes Souza;<br />
Jairo Morais Teixeira;<br />
José Oswaldo Siqueira;<br />
Josiane M.Oliveira Duarte da Silva;<br />
L. Pedro Barrueto Cid;<br />
Lázaro E. P. Peres;<br />
Liliana Moura Massis;<br />
Luciane Vieira de Mello;<br />
Luís Carlos de Souza Ferreira;<br />
Marcelo de Macedo Brígido;<br />
Marcelo Maraschim;<br />
Marcio O. Lásaro;<br />
Márcio R. Lambais;<br />
Maria Elisabete Sbrogio de Almeida;<br />
Patrícia Sibila Araújo;<br />
Paulo Fernando Dias;<br />
Renata dos Passos Maraschim;<br />
Rosa Maria Ribeiro-do-Valle;<br />
Sidney L. Stürmer;<br />
Vera Tavares de Campos Carneiro.<br />
Entrevista<br />
Ernesto Marques Jr. pág. 04<br />
Pesquisa<br />
Fungos micorrízicos arbusculares pág. 12<br />
Salmonella vacinais pág. 22<br />
Novos moduladores da formação de vasos sanguíneos pág. 28<br />
Apomixia pág. 36<br />
Bases fisiológicas e genéticas da regeneração de plantas in vitro pág. 44<br />
Biorreatores de imersão permanente pág. 50<br />
Micropropagação de babosa (Aloe vera - Liliaceae) pág. 54<br />
SUCAST pág. 58<br />
Anotação funcional computacional de proteínas pág. 64<br />
Bio Notícias pág. 49<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 11
PESQUISA<br />
FUNGOS MICORRÍZICOS<br />
ARBUSCULARES<br />
Fotos e ilustrações cedidas pelos autores<br />
Características, associação simbiótica e aplicação na agricultura<br />
Figura 1. Segmento de raiz de gramínea, mostrando o aspecto<br />
microscópico da penetração e colonização do córtex por fungo<br />
micorrízico arbuscular<br />
José Oswaldo Siqueira<br />
Eng o Agr o Ph.D. Prof. Titular de<br />
Microbiologia do Solo<br />
Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG<br />
bolsista do CNPq<br />
siqueira@ufla.br<br />
Márcio R. Lambais<br />
Eng o Agr o Ph.D. Prof. Associado de<br />
Microbiologia do Solo<br />
Escola Superior de Agricultura “Luiz de<br />
Queiroz”, USP, Piracicaba, SP<br />
bolsista do CNPq<br />
mlambais@esalq.usp.br<br />
Sidney L. Stürmer<br />
Biólogo Ph.D. Prof. de Botânica na<br />
Universidade Regional de Blumenau – FURB<br />
Blumenau-SC<br />
sturmer@furb.br<br />
12 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002<br />
Origem e características dos fungos Glomaleanos<br />
s plantas terrestres estabelecem simbioses mutualísticas ou parasíticas<br />
com diversos microrganismos, os quais encontram ambientes favoráveis<br />
nas partes aéreas ou subterrâneas dos vegetais. As micorrizas são as<br />
relações mutualísticas mais comuns na natureza, sendo formadas por<br />
certos fungos do solo e as raízes da grande maioria das plantas (Smith & Read, 1997).<br />
Entre os sete tipos de micorrizas conhecidos, as micorrizas arbusculares (MAs),<br />
formadas por fungos da Ordem Glomales, são as mais comuns nos ecossistemas<br />
terrestres. Embora tradicionalmente classificados na Divisão Zygomycota, os fungos<br />
micorrízicos arbusculares (FMAs) apresentam divergências suficientes, com base na<br />
análise do RNA ribossômico 18S, para formarem uma<br />
nova Divisão. Schußler et al. (2001) propuseram a Divisão<br />
Glomeromycota para abrigar os organismos formadores<br />
de MAs, colocando esse grupo de fungos no mesmo nível<br />
da hierarquia taxonômica que os tradicionais grupos<br />
basidiomicetos e ascomicetos. Existem fortes evidências<br />
de que os FMAs desempenharam um papel crucial na<br />
conquista do ambiente terrestre pelas plantas (Redecker et<br />
al., 2000). Essa premissa é corroborada por evidências de<br />
estudos de biologia molecular que confirmam que a<br />
origem dos FMAs coincide com a origem das plantas<br />
terrestres, há cerca de 353-462 milhões de anos (Simon et<br />
al., 1993). A origem dos FMAs foi também confirmada por<br />
análises em materiais fósseis do Devoniano, os quais<br />
revelaram a presença de estruturas fúngicas similares<br />
àquelas formadas pelos fungos Glomaleanos atuais (Pirozynski,<br />
1981).<br />
Os FMAs são simbiotróficos obrigatórios, pois completam<br />
seu ciclo de vida apenas se estiverem associados a<br />
uma planta hospedeira, a qual lhes fornece carboidratos<br />
e outros fatores necessários ao seu desenvolvimento e<br />
esporulação (Siqueira et al., 1985). Essa aparente desvantagem<br />
da relação com a planta, no entanto, é compensada<br />
pela ausência de especificidade existente entre os FMAs e os hospedeiros. Normalmente,<br />
uma determinada espécie fúngica pode colonizar as raízes de vários<br />
hospedeiros entre as Angiospermas, Gimnospermas e Pteridófitas. Apesar de apenas<br />
3% das espécies vegetais terem sido examinadas para a presença de MAs, pode-se<br />
afirmar que cerca de 95% das espécies vegetais atuais pertencem a famílias que são<br />
caracteristicamente micorrízicas (Trappe, 1987). Assim, as MAs são a regra e não a<br />
exceção na natureza. Famílias de plantas tipicamente não-micorrízicas incluem<br />
Caryophylaceae, Brassicaceae, Chenopodiaceae, Juncaceae, Polygonaceae, Cyperaceae,<br />
que parecem ter perdido a capacidade de formar essa associação em tempos<br />
mais recentes, evolutivamente. Os FMAs podem ser encontrados em plantas<br />
herbáceas, arbustivas ou arbóreas que ocupam os mais diversos ecossistemas, como<br />
florestas, desertos, dunas, savanas, campos e agrossistemas. O longo tempo de coevolução<br />
entre os FMAs e as plantas pode explicar a presença ubíqua desses fungos<br />
nos ecossistemas. Eles invariavelmente associam-se à maioria das plantas nativas dos<br />
trópicos e a espécies de interesse econômico como café, soja, milho, sorgo, maçã,<br />
citrus, feijão, entre outras. No Brasil, os estudos realizados pelos autores sobre a
ocorrência dos FMAs em<br />
ecossistemas naturais e em<br />
agrossistemas indicam que o<br />
número de espécies pode<br />
variar de 35 em dunas costeiras<br />
até mais de 40 em cultivos<br />
de café e no cerrado nativo.<br />
Essa diversidade representa<br />
aproximadamente 1/3 de todas<br />
as espécies de Glomales<br />
descritas até o momento. A<br />
estrutura das comunidades<br />
de FMAs nos diferentes sistemas<br />
é bastante variável. Por<br />
exemplo, três espécies de<br />
Acaulospora (A. scrobiculata,<br />
A. morrowiae e A. mellea)<br />
são as mais freqüentemente<br />
encontradas em solos com<br />
cafeeiros, enquanto que no<br />
cerrado, Scutellospora pellucida,<br />
Gigaspora margarita e Paraglomus<br />
diaphanum são geralmente as espécies<br />
predominantes (Siqueira et al., 1989).<br />
Estudos sobre a ecologia desses simbiontes<br />
devem ser incentivados para obter-se<br />
um inventário mais completo de<br />
sua diversidade taxonômica, fisiológica<br />
e genética. Essas informações poderiam<br />
ser utilizadas para a seleção de isolados<br />
eficientes para a aplicação em processos<br />
biotecnológicos de interesse agrícola ou<br />
ambiental.<br />
Os FMAs não produzem alterações<br />
morfológicas visíveis nas raízes das plantas,<br />
e, desta forma, um processo de<br />
coloração e observação ao microscópio<br />
é necessário para a visualização das<br />
estruturas fúngicas nas raízes colonizadas<br />
(figura 1). As MAs possuem três<br />
componentes, quais sejam: a raiz da<br />
planta hospedeira, as estruturas formadas<br />
no córtex radicular (arbúsculos e<br />
vesículas) e o micélio e esporos extraradiculares<br />
(figura 2). As vesículas, estruturas<br />
globosas ou alongadas contendo<br />
grânulos de glicogênio e lipídios, são<br />
consideradas estruturas de estocagem<br />
dos fungos e podem ser formadas dentro<br />
ou fora das células do córtex. Os<br />
arbúsculos são as estruturas características<br />
das MAs. São formados pela intensa<br />
Figura 2. Ilustração esquemática da anatomia de uma raiz com<br />
micorriza arbuscular<br />
ramificação de hifas intracelulares e são<br />
responsáveis pela troca de nutrientes<br />
entre os simbiontes. O desenvolvimento<br />
de arbúsculos é acompanhado da invaginação<br />
da membrana plasmática vegetal,<br />
não comprometendo a integridade<br />
das células radiculares. As hifas intra e<br />
extra-radiculares são importantes como<br />
propágulos para iniciar nova colonização,<br />
para gerar novos esporos, para<br />
aquisição de nutrientes e ainda podem<br />
favorecer a agregação do solo. O micélio<br />
extra-radicular pode atingir de 14 a 50 m<br />
g -1 de solo, diferenciando-se em hifas<br />
absortivas, as quais formam uma rede<br />
dicotomicamente ramificada que se estende<br />
solo adentro para absorção de<br />
nutrientes e água.<br />
Os esporos formados pelos FMAs<br />
são assexuados e servem para sua disseminação<br />
e sobrevivência (figura 3). Possuem<br />
diâmetro que varia de 45 a 700 µm<br />
(os maiores encontrados no Reino Fungi),<br />
coloração hialina, amarelada, esverdeada,<br />
amarronzada ou mesmo preta, e<br />
forma globosa, alongada ou muitas vezes<br />
irregular (Morton, 1988), podendo ter<br />
parede lisa ou ornamentada. Os tipos de<br />
esporos são distinguíveis em função de<br />
sua ontogenia, que, juntamente com<br />
características estruturais, formam a base<br />
da taxonomia e sistemática<br />
dos FMAs. Alguns<br />
tipos de esporo e<br />
aspectos da sua germinação<br />
são ilustrados na<br />
figura 3. A diversidade<br />
estrutural nos esporos<br />
permite reconhecer atualmente<br />
cerca de 168<br />
espécies de fungos Glomaleanos,<br />
pertencentes<br />
a sete gêneros distribuídos<br />
em cinco famílias<br />
(figura 4). Apesar<br />
de germinarem facilmente<br />
em meios de<br />
cultura, o crescimento<br />
continuado e a esporulação<br />
dos FMAs não<br />
ocorrem na ausência<br />
de células vivas do hospedeiro.<br />
As dificuldades de se cultivar os<br />
FMAs in vitro representa um obstáculo<br />
ainda não superado, o qual tem limitado<br />
os estudos de sua biologia e desenvolvimento<br />
biotecnológico.<br />
Desenvolvimento da<br />
associação simbiótica<br />
Os mecanismos que regulam o desenvolvimento<br />
e funcionamento das MAs<br />
ainda não foram elucidados. Além do<br />
crescimento intercelular, o processo de<br />
colonização das raízes pelos FMAs é<br />
caracterizado pelo crescimento intracelular<br />
das hifas no tecido cortical e por<br />
diferenciação de hifas intracelulares terminais<br />
em arbúsculos (figura 2). Apesar<br />
do crescimento intrarradicular extensivo,<br />
normalmente observado nessa associação,<br />
as reações de defesa da planta<br />
são brandas e localizadas, sugerindo a<br />
existência de um mecanismo de reconhecimento<br />
mútuo entre os simbiontes,<br />
o qual é controlado por genes do fungo<br />
e da planta.<br />
A sinalização molecular entre os simbiontes<br />
deve ter início muito antes de seu<br />
contato físico. Os esporos germinam<br />
quando as condições de umidade, temperatura<br />
e pressão parcial de CO 2<br />
são<br />
Figura 3. Esporos de fungos Glomaleanos. (a) detalhe de célula suspensora bulbosa em Gigaspora sp.; (b) Scutellospora spp<br />
mostrando o escudo de germinação; (c) fotomicrografia de Gigaspora margarita mostrando tubo germinativo próximo à hifa<br />
de sustentação, (d) detalhe da base do tubo na parede do esporo, (e) detalhe de uma célula auxiliar produzida in vitro e<br />
(f) fotomicrografia de Glomus sp na rizosfera<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 13
Tabela 1 – As ações das micorrizas arbusculares no crescimento das plantas<br />
Ação<br />
Biofertilizadora<br />
Biocontroladora<br />
Biorreguladora<br />
Mecanismos principais<br />
Maior absorção e utilização de nutrientes do solo.<br />
Favorecimento da nodulação e fixação de N 2<br />
em leguminosas.<br />
Amenização de estresses nutricionais e nutrição balanceada.<br />
Acessos a nutrientes pouco disponíveis.<br />
Ação de biocontrole sobre certos patógenos e pragas.<br />
Redução de danos causados por pragas e doenças.<br />
Amenização de estresses causados por fatores diversos como metais pesados e poluentes orgânicos.<br />
Efeitos benéficos na agregação do solo, melhora a conservação da água e do solo.<br />
Atua na produção/acúmulo de substâncias reguladoras do crescimento (desenvolvimento e floração).<br />
Interfere favoravelmente na relação água-planta (aumenta tolerância a déficit hídrico);<br />
Alterações bioquímicas e fisiológicas (acúmulo de certos metabólitos secundários).<br />
favoráveis, e não há evidências de sinalização<br />
nesse estádio de desenvolvimento.<br />
No entanto, quando nas proximidades<br />
das raízes de plantas hospedeiras, o<br />
crescimento e a ramificação de hifas de<br />
esporos germinados são altamente estimulados<br />
(figura 5), sugerindo existência<br />
de uma sinalização específica. De fato,<br />
fatores presentes nos exsudatos de plantas<br />
hospedeiras estimulam o crescimento<br />
(figura 6) e a ramificação de hifas<br />
(figura 5), e sua divisão nuclear (Buee et<br />
al., 2000; Douds & Nagahashi, 2000). Ao<br />
contrário do que ocorre com células de<br />
hospedeiros, aquelas de não hospedeiros<br />
não estimulam o crescimento do<br />
fungo. A natureza dessas moléculas sinais<br />
ainda não foi determinada. Embora<br />
certos compostos fenólicos sintetizados<br />
por plantas, como os flavonóides, flavononas<br />
e isoflavonóides estimulem o crescimento<br />
de hifas in vitro (Nair et al., 1991;<br />
Bécard et al., 1992; Bécard et al., 1995) e<br />
a colonização micorrízica (Siqueira et<br />
al., 1991), a essencialidade desses compostos<br />
para o desenvolvimento da simbiose,<br />
como ocorre em interações leguminosas-rizóbios,<br />
não foi demonstrada.<br />
Estudos com mutantes de milho deficientes<br />
em chalcona sintase, enzima chave<br />
na síntese dos flavonóides, indicam<br />
que esses compostos fenólicos não são<br />
necessários para o desenvolvimento de<br />
MAs (Bécard et al., 1995). Essenciais ou<br />
não, flavonóides estimulam a colonização<br />
micorrízica e apresentam grande<br />
potencial de aplicação prática, como<br />
abordado neste artigo.<br />
A primeira e mais importante indicação<br />
de reconhecimento de um hospedeiro<br />
compatível é a diferenciação de<br />
hifas fúngicas em apressórios (Staples &<br />
Macko, 1980). A formação de um apressório<br />
funcional, após um período de<br />
proliferação e ramificação abundante<br />
Figura 4. Classificação atual dos FMAs<br />
mostrando as características que definem<br />
as famílias e gêneros de Glomales.<br />
Elaborada e atualizada conforme informações<br />
do INVAM<br />
(http://invam.caf.wvu.edu)<br />
14 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
Tabela 2 – Exemplos de culturas, fungos eficientes e efeitos da inoculação no Brasil (Siqueira & Klauberg Filho, 2000)<br />
Cultura<br />
Abacaxi<br />
Cafeeiro<br />
Citros<br />
Leguminosas<br />
Milho<br />
Mamão<br />
Tomate<br />
Plantas arbóreas:<br />
reflorestamento e<br />
frutíferas<br />
Fungos eficientes<br />
Glomus clarum, Gigaspora margarita e<br />
Glomus intraradices<br />
Glomus clarum, Gigaspora margarita,<br />
Glomus etunicatum<br />
Acaulospora morrowiae, Glomus clarum,<br />
Gl. etunicatum, Glomus intraradices,<br />
Glomus fasciculatum<br />
Glomus etunicatum, Glomus clarum<br />
Glomus clarum, Glomus etunicatum<br />
Glomus etunicatum, Entrophospora<br />
colombiana<br />
Glomus clarum, Glomus etunicatum,<br />
Gigaspora margarita<br />
Glomus clarum, Glomus etunicatum,<br />
Glomus fasciculatum<br />
Efeitos da inoculação<br />
Melhor desenvolvimento de mudas<br />
micropropagadas.<br />
Melhor desenvolvimento de mudas, melhor<br />
sobrevivência no campo e maior produção.<br />
Crescimento mais rápido de porta enxertos e de<br />
mudas no campo.<br />
Favorecimento da nodulação, do acúmulo de N,<br />
da produção de grãos e da tolerância ao déficit<br />
hídrico.<br />
Nutrição favorecida, melhor ia do crescimento e<br />
da produção.<br />
Melhor desenvolvimento inicial e de nutrição de<br />
mudas.<br />
Crescimento estimulado e maior eficiência de uso<br />
de fósforo.<br />
Essencial para o desenvolvimento de mudas de<br />
espécies de semente pequena e crescimento<br />
rápido.<br />
das hifas de FMAs na rizosfera do hospedeiro<br />
e adesão à superfície da célula<br />
vegetal, resulta em penetração e posterior<br />
colonização do tecido cortical. A<br />
formação de apressórios depende do<br />
genoma da planta hospedeira, de modo<br />
que o fungo não é capaz de formar<br />
apressórios funcionais em raízes de plantas<br />
não-hospedeiras, muito embora dilatações<br />
de hifas semelhantes a apressórios<br />
possam ser observadas quando o<br />
fungo é colocado próximo às raízes<br />
(figura 5). Esses resultados sugerem a<br />
existência de fatores essenciais para a<br />
completa diferenciação das hifas em<br />
apressórios funcionais (Giovannetti et<br />
al., 1993). Nagahashi & Douds (1997)<br />
observaram que a diferenciação de hifas<br />
em apressórios é dependente do reconhecimento<br />
específico da parede de<br />
células epidérmicas em plantas hospedeiras.<br />
O processo de colonização, propriamente<br />
dito, tem início na superfície da<br />
raiz, com a penetração resultante da<br />
combinação de pressão mecânica e degradação<br />
enzimática parcial da parede<br />
celular vegetal. A produção de enzimas<br />
hidrolíticas como pectinases, celulases e<br />
hemicelulases por FMAs tem sido documentada<br />
e pode ser essencial para o<br />
desenvolvimento da simbiose. A colonização<br />
intrarradicular é limitada aos tecidos<br />
externos à endoderme, e se dá pelo<br />
crescimento inter- e intracelular das hifas.<br />
O crescimento intracelular inicial é<br />
caracterizado pela formação de enovelamentos<br />
de hifas transcelulares e pela<br />
Figura 5. Esporo germinado e crescendo na rizosfera de uma planta<br />
hospedeira (a) e resposta induzida pela presença de componentes de<br />
exsudatos da planta (b)<br />
invaginação da membrana plasmática<br />
vegetal, de modo que não existe comprometimento<br />
da integridade das células<br />
hospedeiras. Esse processo é acompanhado<br />
também pela deposição de material<br />
semelhante à parede celular vegetal<br />
ao redor da hifa, criando uma região<br />
apoplástica (interface) com características<br />
bioquímicas específicas (figura 7).<br />
Em algumas células corticais, hifas intracelulares<br />
se diferenciam em arbúsculos.<br />
Durante esse processo, a parede celular<br />
fúngica se torna amorfa, desaparecendo<br />
as cadeias de quitina cristalina. Adicionalmente,<br />
intensa síntese de membrana<br />
plasmática, fragmentação do vacúolo,<br />
aumento do volume de citoplasma, decréscimo<br />
no número de amiloplastos,<br />
movimentação do núcleo, rearranjo do<br />
citoesqueleto e aumento da atividade de<br />
transcrição gênica são também alterações<br />
observáveis durante o desenvolvimento<br />
dos arbúsculos (Bonfante & Perotto,<br />
1995).<br />
Alterações bioquímicas no fungo e<br />
no hospedeiro ocorrem não somente<br />
durante o desenvolvimento de arbúsculos,<br />
mas também durante o processo de<br />
colonização intrarradicular. Evidências<br />
de alterações do metabolismo do fungo<br />
são dadas pelas observações da atividade<br />
e localização de ATPases e da atividade<br />
de fosfatase alcalina vacuolar (Saito,<br />
1995). Durante o crescimento de hifas de<br />
esporos germinados, ATPases ativas são<br />
localizadas próximo à extremidade das<br />
hifas, enquanto em hifas intercelulares e<br />
nos arbúsculos elas se localizam ao<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 15
Figura 6. Efeito da presença de suspensão de células de plantas hospedeiras e<br />
não hospedeiras (repolho) no crescimento micelial assimbiótico da Gigaspora<br />
gigantea em meio de cultura (Dados de Paula & Siqueira, 1990)<br />
longo de toda a membrana plasmática<br />
fúngica. Já a atividade de fosfatase alcalina<br />
vacuolar é maior durante o processo<br />
de colonização das raízes, comparada à<br />
atividade em hifas proveniente de esporos<br />
germinados. No hospedeiro, a expressão<br />
diferencial de vários genes envolvidos<br />
na defesa vegetal contra o ataque<br />
de patógenos, avaliada com base<br />
em atividades enzimáticas, acúmulo de<br />
proteínas e/ou de mRNAs, tem sido<br />
observada durante o desenvolvimento<br />
das MAs, podendo ter papel fundamental<br />
no controle da colonização intrarradicular<br />
(Lambais, 2000).<br />
O crescimento de FMAs no interior<br />
das raízes parece ser um processo “controlado”,<br />
já que a colonização de tecidos<br />
meristemáticos e/ou de vasos condutores<br />
não é observada. Adicionalmente,<br />
nem todas as células corticais são infectadas<br />
e a diferenciação de hifas terminais<br />
em arbúsculos ocorre somente em algumas<br />
das células colonizadas. No entanto,<br />
os fatores atuantes nesse controle são<br />
desconhecidos. A regulação do desenvolvimento<br />
e da funcionalidade das MAs<br />
envolve uma complexa troca de sinais<br />
entre os simbiontes, a qual pode ser<br />
afetada também pelas condições ambientais.<br />
O resultado dessa sinalização é a<br />
síntese dos simbiossomos, representados<br />
pelos arbúsculos, membrana periarbuscular<br />
e interfaces características (figura<br />
7).<br />
Apesar da colonização extensiva das<br />
raízes pelos FMAs, não há desenvolvimento<br />
de sintomas evidentes de resposta<br />
de hipersensibilidade (acúmulo de fitoalexinas<br />
e morte das células microbianas<br />
ou do hospedeiro) em MAs (Gianinazzi,<br />
1991). O acúmulo de fitoalexinas ocorre<br />
predominantemente nas fases mais tardias<br />
do desenvolvimento da simbiose, e<br />
atinge concentrações muito inferiores<br />
àquelas observadas em interações com<br />
fungos fitopatogênicos. A ausência de<br />
reações de hipersensibilidade é, da mesma<br />
forma, observada na simbiose entre<br />
leguminosas e rizóbios. Aparentemente,<br />
esses microssimbiontes são reconhecidos<br />
pelos hospedeiros de modo a formarem<br />
interações compatíveis de longa<br />
duração (Lambais & Mehdy, 1995).<br />
A utilização de modelos de sinalização<br />
e regulação gênica que ocorrem nas<br />
simbioses leguminosas-rizóbios tem contribuído<br />
para melhor entendimento dos<br />
processos atuantes em MAs. A existência<br />
de fatores comuns entre os dois tipos de<br />
simbiose tem sido sugerida pelo fato de<br />
que mutantes de plantas de ervilha que<br />
não são capazes de desenvolver micorriza<br />
típica, e têm a colonização bloqueada<br />
em um estádio imediatamente posterior<br />
à formação do apressório (myc -<br />
precoces), são também não-nodulantes,<br />
i.e., nod - (Gianinazzi-Pearson et al., 1995).<br />
Mutantes que formam nódulos não-fixadores,<br />
i.e., nod + fix - , também não desenvolvem<br />
micorriza típica. Nesse caso,<br />
ocorre penetração e colonização intercelular,<br />
mas não há formação de arbúsculos,<br />
definindo os mutantes myc - tardios<br />
(Lambais, 1996). Diferente dos mutantes<br />
myc - precoces de ervilha, mutantes<br />
de Lotus japonicus não-nodulantes têm o<br />
desenvolvimento da micorriza bloqueado<br />
na colonização do córtex, e foram<br />
denominados Coi - (“cortex invasion”)<br />
(Wegel et al., 1998). Raízes micorrizadas<br />
sintetizam também proteínas imunologicamente<br />
relacionadas com nodulinas,<br />
proteínas específicas de nódulos de leguminosas<br />
(Wyss et al., 1990; Perotto et<br />
al., 1994), e fatores Nod sintetizados por<br />
rizóbios são capazes de estimular a colonização<br />
intrarradicular de fungos micorrízicos<br />
(Xie et al., 1995).<br />
Tem sido sugerido que a colonização<br />
intrarradicular por FMAs depende da<br />
capacidade do fungo em evitar a ativação<br />
ou mesmo em suprimir o sistema de<br />
defesa vegetal. A não ativação do sistema<br />
de defesa vegetal pode estar associada à<br />
maior atividade de enzimas anti-oxidantes<br />
(catalase, por exemplo) em raízes<br />
micorrizadas (Lambais, 2000). As atividades<br />
de quitinases são induzidas nos<br />
estádios iniciais do desenvolvimento da<br />
simbiose, e suprimidas posteriormente a<br />
níveis inferiores aos observados em plantas<br />
sem micorrizas. Essa supressão é<br />
atenuada em condições de alto P, onde<br />
a colonização é inibida. Em condições<br />
de alto P, o acúmulo de mRNAs codificando<br />
uma isoforma ácida de quitinase<br />
é induzido em células contendo arbúsculos<br />
ou sua vizinhança (Lambais &<br />
Mehdy, 1993). As atividades de β-1,3-<br />
glucanases são também suprimidas em<br />
certos estádios do desenvolvimento da<br />
simbiose, e dependem da concentração<br />
de P. Em condições de baixo P, tem sido<br />
observado acúmulo de mRNAs codificando<br />
uma isoforma de β-1,3-glucanase,<br />
homóloga a uma isoforma básica de<br />
soja, em células contendo arbúsculos e<br />
suas imediações. Além da indução localizada,<br />
uma supressão sistêmica, em condições<br />
de alto P ou em raízes micorrizadas,<br />
também tem sido observada (Lambais<br />
& Mehdy, 1998). Os mecanismos<br />
que controlam o sistema de defesa vegetal<br />
podem envolver a regulação diferencial<br />
de isoformas de quitinases e β-1,3-<br />
glucanases, em conseqüência de alterações<br />
hormonais e/ou síntese de moléculas<br />
elicitoras/supressoras específicas (Lambais,<br />
2000).<br />
O desenvolvimento de novas técnicas<br />
de análise de expressão gênica, como<br />
hibridização em microarrays (arranjos<br />
ordenados de milhares de genes em<br />
lâminas de vidro especiais), análise sistemática<br />
de ESTs (Expressed Sequence<br />
Tags) e SAGE (Serial Analyses of Gene<br />
Expression), bem como a análise de<br />
proteomas de raízes micorrizadas por<br />
eletroforese bi-dimensional e espectrometria<br />
de massa, permitirá um melhor<br />
entendimento dos mecanismos que con-<br />
16 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
Figura 7. Enzimas e sinais moleculares de origem fúngica ou vegetal secretados<br />
na interface apoplástica de micorrizas arbusculares<br />
trolam a formação de MAs e poderá<br />
contribuir para a efetiva aplicação em<br />
larga escala dos FMAs na agricultura.<br />
Efeitos no crescimento<br />
das plantas<br />
Embora as MAs sejam conhecidas<br />
desde o início do século XIX, seus<br />
efeitos benéficos para as plantas só<br />
foram documentados no século passado,<br />
quando verificou-se que certas espécies<br />
vegetais apresentavam desenvolvimento<br />
retardado e sintomas de distúrbios<br />
(deficiências) nutricionais quando<br />
cultivadas em solos esterilizados para<br />
controle de patógenos. No<br />
período de 1950-60, experimentos<br />
confirmativos desenvolvidos<br />
na Inglaterra e nos<br />
Estados Unidos evidenciaram<br />
que plantas inoculadas<br />
com propágulos de fungos<br />
extraídos do solo desenvolviam-se<br />
melhor (figura 8),<br />
por conterem teores mais<br />
elevados de nutrientes minerais,<br />
especialmente daqueles<br />
pouco móveis no<br />
solo, como fósforo, zinco e<br />
cobre, cuja absorção é facilitada<br />
pelas hifas externas<br />
(figura 2). Sabe-se, no entanto,<br />
que, devido a efeitos<br />
secundários da micorrização,<br />
outros nutrientes são<br />
também absorvidos em maior<br />
quantidade em plantas<br />
micorrizadas. Embora os<br />
efeitos das MAs sejam mais<br />
consistentes para os nutrientes de baixa<br />
mobilidade, os FMAs interferem direta<br />
ou indiretamente na absorção de outros<br />
elementos como Br, I, Cl, Al e Si e metais<br />
pesados. Os efeitos nutricionais dependem<br />
da disponibilidade relativa dos elementos<br />
no meio de crescimento e da<br />
exigência da planta a eles, sendo mais<br />
acentuados em condições de deficiência,<br />
especialmente de P. A absorção de<br />
P tem relação direta com o crescimento<br />
da planta, sendo que quando este atinge<br />
concentrações próximas da adequada, a<br />
colonização das raízes é inibida por<br />
mecanismos auto-regulatórios da simbiose,<br />
tornando as MAs desnecessárias e<br />
Figura 8. Resposta do ipê: c - sem inoculação e m - inoculada (a)<br />
e do citros (b) à inoculação com FMAs. Foto de citros cedida por<br />
A. Colozzi-Filho-IAPAR- Londrina, correspondendo a plantas sem<br />
e com inoculação em solo fumigado e não fumigado<br />
incompatíveis com as condições de excesso<br />
de nutrientes no solo.<br />
A maior absorção de nutrientes resulta<br />
de inúmeros mecanismos, como<br />
aumento na superfície e capacidade de<br />
absorção das raízes, maior acessibilidade<br />
aos nutrientes, utilização de formas<br />
não disponíveis a raízes não-colonizadas,<br />
por solubilização e mineralização<br />
de nutrientes na rizosfera, e amenização<br />
de fatores adversos à absorção, como<br />
metais, compostos orgânicos tóxicos e<br />
patógenos que atacam o sistema radicular<br />
(Siqueira, 1994). A contribuição das<br />
micorrizas para a absorção de alguns<br />
nutrientes tem sido estimada em 80%<br />
para o P, 60% para o Cu e entre 10% a<br />
25% para os demais nutrientes (Marschner<br />
& Dell, 1994). Se a difusão química<br />
no solo é limitante, as hifas podem<br />
aumentar a área de absorção em até<br />
1800% (Okeefe & Sylvia, 1991). Além da<br />
alta capacidade e eficiência de absorção<br />
de P, as hifas crescem a partir das raízes<br />
solo adentro (figura 2), absorvendo este<br />
e outros nutrientes fora da zona de<br />
esgotamento que se desenvolve próximo<br />
à superfície das raízes absorventes,<br />
transferindo-os para o hospedeiro nos<br />
arbúsculos.<br />
Devido ao fato da disponibilidade de<br />
N e P ser o principal fator limitante para<br />
o crescimento e a produtividade das<br />
plantas, os FMAS apresentam grande<br />
potencial como insumo biológico para a<br />
agricultura. A inoculação de milho e soja<br />
com isolados fúngicos eficientes pode<br />
reduzir em 34% e 56% o requerimento<br />
externo de fertilizante fosfatado, respectivamente<br />
(Siqueira, 1994). Essa redução<br />
representa um efeito “biofertilizante<br />
equivalente” estimado<br />
de 30 e 60kg de P 2<br />
O 5<br />
aplicado<br />
ao solo, respectivamente, para<br />
essas culturas. Considerandose<br />
a área plantada com soja e<br />
milho no país, cerca de 28<br />
milhões de ha, e o efeito das<br />
MAs em condições de campo,<br />
aproximadamente um terço do<br />
que é observado em condições<br />
controladas, pode-se estimar<br />
que a contribuição dessa<br />
simbiose para a economia com<br />
fertilizantes fosfatados nestas<br />
culturas seria da ordem de US$<br />
250 milhões no Brasil. O efeito<br />
biofertilizante varia para as diferentes<br />
culturas em função<br />
da exigência nutricional, eficiência<br />
de absorção e de uso do<br />
nutriente, assim como da capacidade<br />
de formar uma simbiose<br />
eficiente com o fungo e<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 17
Figura 9. Atividades de Pesquisa e Desenvolvimento visando à aplicação de<br />
fungos micorrízicos arbusculares na agricultura<br />
do nível de fertilidade ou manejo da<br />
adubação. Em condições nutricionais<br />
ótimas, a colonização intrarradicular é<br />
reduzida, assim como os benefícios do<br />
fungo. No caso do N, as plantas com<br />
micorrizas absorvem mais o N disponível<br />
no solo e evidências recentes indicam<br />
que os FMAs são capazes de mineralizar<br />
N orgânico no solo, facilitando<br />
assim a nutrição nitrogenada das plantas.<br />
É interessante também o sinergismo<br />
que existe entre os FMAs e bactérias<br />
diazotróficas. No caso do rizóbio, a<br />
nodulação e a quantidade de N fixada<br />
pelas leguminosas é favorecida em plantas<br />
inoculadas com FMAs. Um dos mecanismos<br />
envolvidos nessa relação é a<br />
maior absorção de P do solo, nutriente<br />
exigido em grande quantidade para a<br />
fixação biológica de N 2<br />
. Em solo de<br />
cerrado adubado com metade da quantidade<br />
de fosfato ótima, a inoculação<br />
com FMAs dobrou a quantidade acumulada<br />
de N na soja. Em sistema de sorgo<br />
consorciado com soja, a inoculação<br />
com FMAs favoreceu a transferência de<br />
N da soja para o sorgo, de modo que a<br />
produção de grãos deste aumentou em<br />
67% e 157% na ausência ou presença de<br />
fungo micorrízico, respectivamente (Bressan,<br />
1996).<br />
Além dos efeitos nutricionais, as micorrizas<br />
exercem outros papéis sobre a<br />
planta hospedeira, os quais são resumidos<br />
na tabela 1. Plantas micorrizadas<br />
são menos danificadas por danos causados<br />
por diversos tipos de estresse do<br />
solo ou ambientais, facilitando seu estabelecimento<br />
e sobrevivência em locais<br />
adversos. As MAs são componentes essenciais<br />
em programas de recuperação<br />
de áreas degradadas e solos poluídos<br />
com metais pesados ou compostos orgânicos<br />
poluentes.<br />
Aplicação dos FMAs<br />
na agricultura<br />
Devido à sua natureza ubíqua, à<br />
ausência de especificidade hospedeira e<br />
à susceptibilidade generalizada das plantas<br />
à micorrização, os FMAs apresentam<br />
enorme potencial biotecnológico. Alguns<br />
exemplos da aplicação desses fungos<br />
na agricultura e no reflorestamento<br />
são apresentados na tabela 2. Sua exploração<br />
é viabilizada pelo aumento da taxa<br />
de micorrização das plantas, que pode<br />
ser conseguido: a) pela inoculação com<br />
isolados fúngicos selecionados; b) por<br />
práticas de manejo seletivo da população<br />
fúngica indígena dos solos agrícolas<br />
e; c) mais recentemente, pela aplicação<br />
de compostos estimulantes da micorrização.<br />
A inoculação garante efeitos benéficos,<br />
podendo ser efetuada no solo durante<br />
a semeadura de plantas anuais e de<br />
pastagens, na repicagem de mudas de<br />
plantas olerícolas, na formação de mudas<br />
de espécies arbustivas ou arbóreas<br />
(figura 9) com finalidades agronômica,<br />
florestal, de recuperação ambiental e de<br />
ornamentação. As respostas da inoculação<br />
variam de 10% a 800% em aumento<br />
da biomassa vegetal (Siqueira & Franco,<br />
1988), e são maiores, mais consistentes e<br />
promissoras em plantas que passam por<br />
fase de formação de mudas. No entanto,<br />
a aplicação desses fungos em larga escala<br />
é ainda muito limitada, principalmente<br />
pela falta de inoculante aceito comercialmente.<br />
A principal razão para essa falta<br />
de inoculante é o caráter biotrófico obrigatório<br />
do fungo, que exige que sua<br />
propagação seja feita em plantas multiplicadoras.<br />
São conhecidos vários sistemas<br />
para a multiplicação de propágulos,<br />
em solo desinfestado, substratos inertes,<br />
sistemas hidropônicos e aeropônicos, e<br />
produção de inoculantes. Em condições<br />
favoráveis apropriadas, pode-se obter<br />
até 200.000 esporos de FMAs por litro de<br />
substrato em 4 meses, o que seria suficiente<br />
para inocular de 2.000 a 3.000<br />
mudas. O estabelecimento de padrões<br />
de qualidade de inoculantes, considerando-se<br />
aspectos de pureza e sanidade,<br />
é essencial para o desenvolvimento comercial<br />
desses fungos. Pacotes tecnológicos<br />
para aplicações diversas já foram<br />
desenvolvidos, como é o caso da inoculação<br />
do cafeeiro (Saggin Júnior & Siqueira,<br />
1996), cuja viabilidade técnica já<br />
foi demonstrada no Brasil e sua aplicação<br />
é concretizada na Colômbia, onde<br />
existem várias empresas produtoras de<br />
inoculantes. Mudas inoculadas com esporos<br />
de fungos selecionados (figura<br />
10) desenvolvem-se mais rapidamente<br />
no viveiro, sobrevivem melhor quando<br />
transplantadas para o campo e produzem<br />
mais. Aumentos de produção no<br />
primeiro ano variam de 30% a 800%,<br />
enquanto que, nos anos seguintes, esses<br />
efeitos são muito inconsistentes. Valores<br />
médios para aumento de produção nos<br />
cinco primeiros anos, em diversos experimentos<br />
realizados em Lavras e Patrocínio<br />
(MG), são da ordem de 50% em<br />
relação às mudas sem inoculação na<br />
formação. Isso representa um aumento<br />
de produtividade acumulada de 35 sacas<br />
de café beneficiado por ha no período.<br />
Esses estudos revelaram efeitos complementares<br />
entre a aplicação de P com a<br />
18 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
Figura 10. Suspensão de esporos obtida de vasos de multiplicação pronta para<br />
uso em inoculações (a) e mudas de cafeeiro micorrizadas preparadas para o<br />
plantio no campo (b)<br />
resposta do cafeeiro à micorrização.<br />
Sem P não há resposta à inoculação e a<br />
dose de P necessária para atingir a<br />
produção máxima foi de 207 e 100 g de<br />
P 2<br />
O 5<br />
por planta, sem e com inoculação<br />
na formação, respectivamente. Portanto,<br />
em solos de cerrado, a micorriza pode<br />
reduzir a necessidade de P do cafeeiro à<br />
metade (Siqueira et al 1998).<br />
Nos cultivos anuais extensivos, a<br />
inoculação com FMAs não é viável,<br />
devido ao grande volume de inoculante<br />
que seria necessário. Nesse caso, uma<br />
alternativa seria o manejo da população<br />
de fungos indígenas que, embora presentes<br />
em todos os solos, não se encontram<br />
em quantidades suficientes para<br />
atingir, em tempo, taxas de colonização<br />
necessárias para garantir benefícios às<br />
culturas de ciclo curto como milho, soja,<br />
feijão. Conhecendo os fatores edáficos e<br />
culturais que influenciam os FMAs, suas<br />
populações podem ser manejadas. É<br />
relativamente fácil aumentar a densidade<br />
de propágulos no solo, porém difícil<br />
promover alterações qualitativas específicas.<br />
Em geral, o cultivo mínimo do solo,<br />
o uso reduzido de agroquímicos e o<br />
Figura 11. Representação esquemática das etapas da descoberta de substâncias<br />
vegetais bioativas e desenvolvimento de produtos estimulantes da<br />
micorrização<br />
cultivo com leguminosas favorecem os<br />
FMAs. Já, o cultivo com espécies não<br />
micotróficas, como crucíferas e membros<br />
da Chenopodiaceae, e monoculturas<br />
de gramíneas de uso prolongado<br />
reduzem a densidade de propágulos no<br />
solo.<br />
A identificação de compostos orgânicos<br />
ativos sobre os FMAs em exsudatos<br />
de plantas sob estresse nutricional<br />
(Nair et al., 1990, Paula e Siqueira, 1990)<br />
possibilitou o desenvolvimento de uma<br />
nova estratégia para estimular os propágulos<br />
desses fungos em solos agrícolas<br />
(figura 11). Compostos naturais de alta<br />
atividade sobre os FMAs in vitro e na<br />
micorrização foram encontrados e serviram<br />
de base para o desenvolvimento de<br />
produtos estimulantes da micorrização<br />
(US patent no. 5.002.603, de 03/1991).<br />
Durante a década de 90, estudos de P &<br />
D conduzidos por pesquisadores da<br />
Michigan State University (MSU), nos<br />
EUA, e da Universidade Federal de Lavras<br />
(MG) permitiram o desenvolvimento<br />
de formulações comerciais à base de<br />
formononetina sintética (figura 12) como<br />
o Myconate TM , atualmente produzido<br />
pela VAMTech (L.C.C.,EUA), sob licença<br />
da MSU. Em experimentos realizados em<br />
Lavras (MG), a aplicação de 60 a 100 g de<br />
Myconate no solo ou na semente aumentou<br />
a produtividade do milho de 8,0<br />
t ha -1 no controle para 10,4 t ha -1 no<br />
melhor tratamento, correspondendo a<br />
37 sacas ha -1 (figura 13). Respostas semelhantes<br />
foram encontradas para a<br />
soja no Brasil (figura 12) e para esta e<br />
outras culturas em outros países (Nair et<br />
al 1999). Devido à predominância de<br />
solos pobres e à alta exigência de P das<br />
culturas, o Brasil apresenta enorme potencial<br />
para essa tecnologia, a qual já foi<br />
licenciada para uma empresa nacional<br />
do ramo de insumos biológicos. Testes<br />
finais de campo estão sendo realizados<br />
visando ao registro e à comercialização<br />
do Myconate. Para obter-se sucesso com<br />
o emprego de produtos à base de isoflavonóides<br />
é importante considerar: a) a<br />
cultura deve ser micotrófica e apresentar<br />
alta compatibilidade com os fungos indígenas;<br />
b) deve haver propágulos viáveis<br />
no solo, porém em densidade abaixo da<br />
necessária para atingir máxima colonização;<br />
c) as condições nutricionais ou<br />
ambientais devem impor algum grau de<br />
estresse para garantir os benefícios da<br />
melhor micorrização; d) a viabilidade<br />
tecnológica depende de benefícios consistentes<br />
na produtividade e/ou redução<br />
no uso de insumos, como os fertilizantes<br />
fosfatados.<br />
A aplicação dos FMAs em larga esca-<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 19
Figura 12. Formononetina pura e incorporada em veículo para aplicação (a), lavoura experimental de milho tratada<br />
com Myconate (b), produção de soja em Lavras-MG (c), estrutura da Formononetina (7-hidroxi, 4´-metoxi-isoflavona) (d)<br />
la poderá contribuir para redução no<br />
uso de agroquímicos, diminuir as perdas<br />
das culturas causadas por estresses diversos<br />
e aumentar a produção, e, ao<br />
mesmo tempo, favorecer a conservação<br />
ambiental. Portanto, os FMAs são importantes<br />
componentes da produção agrícola<br />
e, se manejados adequadamente,<br />
podem contribuir substancialmente para<br />
a sustentabilidade dos agrossistemas. Nos<br />
trópicos também são componentes importantes<br />
na recuperação de áreas degradadas,<br />
especialmente quando se emprega<br />
a fitorremediação. Sua aplicação<br />
como insumo biológico dependerá de<br />
vários aspectos:<br />
a) exploração comercial em larga<br />
escala: está condicionada a avanços<br />
reais para produção de inoculantes, manipulação<br />
da população indígena através<br />
de manejo específico ou do emprego<br />
de produtos estimulantes da micorrização;<br />
b) é necessário ampliar a experimentação,<br />
em campo para obter-se resultados<br />
experimentais conclusivos e realizar<br />
análise da consistência, longevidade e<br />
custo/benefício da inoculação;<br />
c) o mercado de fertilizantes, no que<br />
diz respeito ao preço relativo do produto,<br />
disponibilidade dos adubos para os<br />
produtores e esgotamento de matériasprimas<br />
industriais, é de grande importância.<br />
Preços altos ou relações de troca<br />
com produtos desfavoráveis facilitarão a<br />
aplicação dos FMAs na agricultura;<br />
d) o enfoque ecológico da produção<br />
agrícola visando sustentabilidade, implicará<br />
na redução da mecanização e do<br />
uso de agroquímicos, facilitando o emprego<br />
dos FMAs. A maior conscientização<br />
dos agricultores e da sociedade<br />
sobre a necessidade de preservação ambiental<br />
e conservação de recursos naturais<br />
amplia as oportunidades para tecnologias<br />
biológicas seguras, como os FMAs,<br />
que são aliados ancestrais das plantas no<br />
ambiente terrestre.<br />
Figura 13. Efeitos de formulações de formononetina aplicadas na semente<br />
(sem) ou no solo na produção do milho (Romero, 2000, dissertação de<br />
mestrado-UFLA). Tukey a 5%<br />
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<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 21
Pesquisa<br />
Salmonella<br />
vacinais<br />
Foto cedida pelos autores<br />
Uma estratégia promissora para o desenvolvimento de vacinas orais multivalentes<br />
Maria Elisabete Sbrogio de Almeida<br />
Pesquisadora do Instituto Butantan,<br />
Centro de <strong>Biotecnologia</strong>,<br />
bsbrogio@usp.br<br />
Liliana Moura Massis<br />
Estagiária de Iniciação Científica,<br />
Departamento de Microbiologia da USP<br />
Luís Carlos de Souza Ferreira<br />
Prof. Titular, Departamento de Microbiologia da<br />
Universidade de São Paulo,<br />
lcsf@usp.br<br />
Figura 1: Micrografia eletrônica de<br />
flagelo híbrido de linhagem atenuada<br />
de S. Dublin fusionado a peptídeo<br />
heterólogo. Um peptídeo com 15<br />
aminoácidos, derivado do antígeno<br />
CFA/I de E. coli enterotoxigênica<br />
(ETEC) foi fusionado geneticamente<br />
com a flagelina de S. Muenchen<br />
expressa em linhagem vacinal de<br />
Salmonella. A presença do epitopo<br />
heterólogo fusionado com a flagelina<br />
é revelada pela marcação com<br />
anticorpos específicos para o CFA/I<br />
de ETEC, que são revelados pela<br />
presença de um segundo anticorpo<br />
marcado com ouro coloidal visto<br />
como pequenas partículas negras<br />
aderidas ao flagelo. A barra à esquerda<br />
mede o equivalente a 20 nm<br />
actérias do gênero Salmonella,<br />
em particular linhagens da<br />
espécie S. enterica, podem<br />
causar doenças como diarréia<br />
e gastroenterite, ou ainda infecções<br />
sistêmicas, muitas vezes letais, em diversas<br />
espécies de mamíferos. No homem,<br />
os principais sorovares, isto é,<br />
grupos de linhagens que compartilham<br />
antígenos de superfície reconhecidos<br />
por anticorpos específicos, responsáveis<br />
por infecções sistêmicas são<br />
representados pela S. enterica sorovar<br />
Typhi (ou S. Typhi), agente causador<br />
da febre tifóide – doença comum em<br />
muitos países em desenvolvimento e<br />
com elevados índices de mortalidade –<br />
e a S. enterica sorovar Paratyphi (ou S.<br />
Paratyphi), causadora da febre entérica<br />
ou paratifóide. Outros sorovares<br />
como S. Typhimurium, S. Dublin e S.<br />
Enteritidis causam distúrbios gastrointestinais<br />
em diversas espécies de mamíferos,<br />
aves e répteis. Em camundongos,<br />
linhagens de S. Typhimurium e<br />
S. Dublin, ao contrário do<br />
que se observa no homem<br />
ou em bovinos, provocam<br />
infecções sistêmicas semelhantes<br />
à febre tifóide no<br />
homem.<br />
O tratamento de infecções<br />
por Salmonella emprega,<br />
em geral, antibióticos,<br />
mas o problema da<br />
multirresistência bacteriana<br />
aos quimioterápicos e<br />
o elevado custo reduziram<br />
drasticamente a eficácia<br />
dessa estratégia terapêutica.<br />
Vacinas contra as<br />
salmoneloses são uma alternativa<br />
profilática com<br />
excelente relação custobenefício<br />
para regiões<br />
onde a bactéria é endêmica<br />
e prevalecem condições<br />
precárias de saneamento e higiene.<br />
A pesquisa de vacinas contra as<br />
salmoneloses humanas iniciou-se com<br />
a busca de uma formulação que conferisse<br />
proteção à febre tifóide, uma<br />
doença que preocupava os militares,<br />
em função do grande número de soldados<br />
infectados durante operações<br />
de guerra. A primeira vacina contra a<br />
febre tifóide foi desenvolvida no final<br />
do século 19 e consistia em bactérias<br />
mortas pelo calor, e preservadas em<br />
22 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
fenol, administradas por via parenteral.<br />
Essa vacina foi utilizada durante<br />
décadas e embora razoavelmente eficaz<br />
(60% a 70% de proteção por<br />
períodos de até 7 anos) causava fortes<br />
reações adversas como febre e convulsões<br />
em uma parcela dos indivíduos<br />
vacinados. Por causa desse problema,<br />
a partir da década de 70, a vacina<br />
contra a febre tifóide foi substituída<br />
por uma nova formulação baseada em<br />
bactérias vivas atenuadas, isto é, cepas<br />
que perderam a capacidade de<br />
causar doença, mas mantiveram o<br />
potencial de conferir proteção (Levine<br />
& Sztein, 1996).<br />
Nos últimos anos, o emprego de<br />
linhagens atenuadas de Salmonella<br />
como abordagem vacinal expandiuse<br />
rapidamente e extrapolou o problema<br />
das salmoneloses. A relativa<br />
facilidade na obtenção de linhagens<br />
atenuadas e a possibilidade de transformá-las<br />
em veículos para a expressão<br />
de antígenos heterólogos (antígenos<br />
codificados por genes oriundos de<br />
outros patógenos) transformou o uso<br />
dessas bactérias em uma promissora<br />
estratégia para o desenvolvimento de<br />
novas vacinas (Chatfield & Dougan,<br />
1997). Neste artigo discutimos aspectos<br />
relacionados com os processos de<br />
obtenção de linhagens atenuadas de<br />
Salmonella e a utilização dessas bactérias<br />
como formulações vacinais bivalentes.<br />
Vantagens das vacinas<br />
baseadas em Salmonella<br />
As vacinas baseadas em linhagens<br />
atenuadas de Salmonella podem e<br />
devem ser administradas por via oral,<br />
para diminuir os custos operacionais<br />
de sua produção e administração. Essas<br />
linhagens também são capazes de<br />
estimular uma ampla gama de respostas<br />
imunológicas, como a produção de<br />
anticorpos no sangue e na luz intestinal<br />
(IgA secretado ou sIgA) e ativação<br />
de macrófagos, linfócitos T e células<br />
citotóxicas. A produção de sIgA em<br />
superfície de mucosa, como o epitélio<br />
intestinal, mostra-se de particular importância,<br />
já que, em geral, essa produção<br />
não pode ser induzida por vacinas<br />
administradas por via parenteral.<br />
Por sua vez, a produção de sIgA em<br />
superfície de mucosa confere uma<br />
barreira à entrada de microrganismos<br />
pelo trato intestinal, respiratório ou<br />
genito-urinário (Lásaro & Ferreira,<br />
2000).<br />
Estratégias empregadas<br />
na atenuação de linhagens<br />
de Salmonella<br />
As salmonelas são caracteristicamente<br />
patogênicas aos seus hospedeiros<br />
e seus derivados naturalmente atenuados<br />
não são encontrados na natureza.<br />
A administração de 100 a 500<br />
bactérias vivas é suficiente para causar<br />
doenças como a febre tifóide e as<br />
gastroenterites, tanto em humanos<br />
como em animais. Acredita-se que cerca<br />
de 200 a 500 genes sejam necessários<br />
para que salmonelas causem doença a<br />
seus respectivos hospedeiros. Mutações<br />
nas Salmonella que levam à sua<br />
atenuação reduzem, de forma drástica,<br />
a patogenicidade da linhagem e, em<br />
geral, doses superiores a 10 9 bactérias<br />
vivas, administradas por via oral, não<br />
resultam em qualquer sintoma ou reação<br />
adversa nos indivíduos vacinados.<br />
Os genes responsáveis pela atenuação<br />
de bactérias patogênicas, em particular<br />
Salmonella, são divididos em três<br />
grandes grupos: genes envolvidos com<br />
a síntese de fatores relacionados com a<br />
virulência, genes envolvidos com o<br />
metabolismo biossintético e genes que<br />
participam de processos de regulação<br />
gênica (Tabela 1).<br />
A primeira linhagem vacinal de<br />
Salmonella, utilizada como vacina oral<br />
contra a febre tifóide, foi a cepa Ty21a<br />
de S. Typhi (Germanier & Furer, 1975).<br />
Essa linhagem foi selecionada no começo<br />
da década de 70, após ser submetida<br />
a um processo de mutagênese<br />
química. A natureza genética da atenuação<br />
dessa linhagem é desconhecida,<br />
mas foi inicialmente atribuída a uma<br />
mutação no gene galE, que codifica<br />
para uma enzima envolvida com síntese<br />
de lipopolissacarídeos, necessários<br />
à virulência da bactéria. Essa linhagem<br />
também se mostra incapaz de produzir<br />
o antígeno capsular Vi, material de<br />
natureza polissacarídica, também envolvido<br />
com a virulência. Três ou quatro<br />
doses da vacina, constituída de<br />
bactérias vivas liofilizadas, ingeridas na<br />
forma de cápsulas ou suspensas em<br />
líquido, resultaram em proteção de<br />
60% a 80% dos indivíduos vacinados<br />
por períodos de até 7 anos e sem<br />
ocorrência de qualquer efeito adverso.<br />
O loci genético SPI2 define uma das<br />
duas ilhas de patogenicidade encontradas<br />
em S.Typhimurium. Mutações<br />
em vários genes presentes nessa região<br />
reduzem a capacidade de infecção<br />
sistêmica e sobrevivência da bactéria<br />
no interior de fagócitos (Medina<br />
et al., 1999).<br />
Mutações em genes envolvidos na<br />
biossíntese de compostos aromáticos<br />
(aro) são freqüentemente empregadas<br />
na obtenção de linhagens atenuadas,<br />
tanto para Salmonella como para<br />
outras espécies de bactérias gram-negativas.<br />
A via de biossíntese de compostos<br />
aromáticos em bactérias é responsável<br />
pela produção dos aminoácidos<br />
aromáticos (tirosina, fenilalanina e<br />
triptofano), enteroquelina (um composto<br />
quelante de ferro), folato, ubiquinona<br />
e vitamina K. A maior parte<br />
desses compostos está disponível em<br />
meios ricos ou nos tecidos do hospedeiro,<br />
entretanto, o folato e a enteroquelina<br />
precisam ser sintetizados de<br />
novo a partir do ácido 2.3 dihidroxibenzóico,<br />
precursor não encontrado<br />
em tecidos de mamíferos. O folato, por<br />
sua vez, é necessário para a síntese de<br />
bases nitrogenadas e da formil-metionina,<br />
aminoácido usado exclusivamente<br />
pelas bactérias para iniciar a síntese<br />
protéica. Curiosamente, o folato está<br />
disponível em quantidades razoáveis<br />
em células de mamífero, mas as salmonelas,<br />
assim como outras bactérias, não<br />
dispõem de um sistema de transporte<br />
específico que permita a sua utilização.<br />
Após serem ingeridas, linhagens<br />
de Salmonella deficientes em genes<br />
aro permanecem nos tecidos do hospedeiro<br />
por alguns dias, mas, sem<br />
causarem qualquer sintoma ao hospedeiro,<br />
terminam por serem eliminadas<br />
pelos mecanismos de defesa imunológica.<br />
As principais mutações utilizadas<br />
para obtenção de linhagens atenuadas<br />
de Salmonella deficientes na via de<br />
síntese de compostos aromáticos incidem<br />
sobre os genes aroA, aroC e o<br />
aroD. Entre as Salmonella vacinais<br />
aro - destacam-se as linhagens SL3261<br />
de S. Typhimurium, SL5928 de S.<br />
Dublin e CVD908 de S. Typhi. Outros<br />
genes capazes de causar a atenuação<br />
de Salmonella por bloqueio de vias<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 23
Tabela 1: Genes empregados na atenuação de linhagens vacinais de Salmonella<br />
Genes ligados à virulência<br />
Genes ligados à biossíntese<br />
Genes relacionados com<br />
funções reguladoras<br />
GENES NOS QUAIS MUTAÇÕES LEVAM À ATENUACÃO<br />
galE<br />
SPI2<br />
aroA, C, D<br />
purA, B, E, H<br />
guaBA (operon)<br />
asd<br />
cya<br />
crp<br />
dam<br />
phoP/phoQ<br />
ompR<br />
hns<br />
htrA<br />
UDP 4-galactose epimerase (síntese de lipopolissacarídeos)<br />
Loci genético composto por diversos genes necessários à<br />
infecção sistêmica e sobrevivência no interior de fagócitos<br />
Enzimas envolvidas na via de síntese do ácido corísmico<br />
(biossíntese de compostos aromáticos)<br />
Enzimas envolvidas na síntese de purinas (síntese de DNA)<br />
Interfere na biossíntese de guanina<br />
Aspartato semi-aldeído desidrogenase (síntese da parede<br />
celular)<br />
Adenilato ciclase<br />
Proteína receptora de cAMP (regulação gênica)<br />
DNA metilase (reparo do DNA)<br />
Fosfatase (regulação da expressão gênica)<br />
Proteína ligadora ao DNA (regulação da expressão gênica0<br />
Proteína ligadora ao DNA (regulação da expressão gênica)<br />
Proteína ligada a estresse (serina protease)<br />
metabólicas estão envolvidos com a<br />
biossíntese de purinas (pur), guaninas<br />
(gua) e parede celular (asd) (Tabela<br />
1).<br />
A inativação de genes envolvidos<br />
com a regulação da expressão gênica<br />
pode levar à atenuação de Salmonella<br />
e de outras bactérias gram-negativas.<br />
Esses genes, na sua maioria, são responsáveis<br />
pela síntese de proteínas<br />
com características de repressores e/<br />
ou ativadores transcricionais ou podem<br />
participar na síntese de moléculas<br />
sinalizadoras, como o gene (cya), que<br />
codifica para a adenilato ciclase, responsável<br />
pela produção de AMP cíclido<br />
(cAMP) e o gene (crp), que codifica<br />
para proteína ligadora de cAMP. Outros<br />
reguladores como OmpR, PhoP,<br />
HNS e a DAM também levam à atenuação<br />
de bactérias quando inativos (Tabela<br />
1).<br />
Estratégias para a expressão<br />
de antígenos heterólogos<br />
em linhagens vacinais<br />
de Salmonella<br />
Linhagens vacinais bivalentes de<br />
Salmonella podem expressar antígenos<br />
heterólogos após receberem genes,<br />
sob controle de promotores bacterianos,<br />
clonados em plasmídeos ou<br />
inseridos no cromossoma. A grande<br />
proximidade filogenética permite que<br />
as técnicas de manipulação genética<br />
desenvolvidas para a E. coli K12 possam<br />
ser facilmente adaptadas a Salmonella.<br />
Diversos plasmídeos de expressão,<br />
originalmente desenvolvidos em<br />
E. coli, são utilizados para promover a<br />
expressão de antígenos heterólogos<br />
em linhagens atenuadas de Salmonella.<br />
No entanto, a expressão de antígenos<br />
a partir de plasmídeos pode levar<br />
à instabilidade da expressão gênica na<br />
linhagem vacinal, com a conseqüente<br />
perda da imunogenicidade. Uma alternativa<br />
para minimizar esse problema<br />
baseia-se na utilização de antibióticos<br />
que exerça pressão seletiva para a<br />
manutenção do plasmídeo recombinante<br />
durante a propagação da bactéria<br />
in vitro. Outra alternativa para controlar<br />
a estabilidade da expressão de<br />
antígenos por linhagens vacinais de<br />
Salmonella emprega um sistema letal<br />
balanceado (Curtiss III et al., 1989).<br />
Linhagens atenuadas de Salmonella<br />
são modificadas pela inativação do<br />
gene asd, necessário à síntese de ácido<br />
diaminopimélico, um componente<br />
essencial para a formação da parede<br />
celular bacteriana. Na ausência desse<br />
precursor, não disponível nos tecidos<br />
de mamíferos, a Salmonella não é<br />
capaz de manter a integridade de seu<br />
envoltório celular. Dessa forma, linhagens<br />
asd- de Salmonella são transformadas<br />
com plasmídeos que transportam<br />
uma cópia intacta do gene asd<br />
além do gene responsável pela síntese<br />
do antígeno vacinal. Quando esse sistema<br />
é combinado a linhagens atenuadas<br />
por mutação em genes crp/cya<br />
ou aro, a expressão do antígeno heterólogo<br />
é estabilizada e sua imunogenicidade<br />
no mamífero aumenta.<br />
Uma segunda alternativa para a<br />
estabilização da expressão gênica em<br />
linhagens vacinais de Salmonella consiste<br />
na inserção do gene heterólogo<br />
no DNA cromossômico. Diferentes sistemas<br />
genéticos permitem a inserção<br />
de genes em sítios específicos do cromossoma<br />
de Salmonella. Para isso,<br />
empregam-se os chamados plasmídeos<br />
suicidas, isto é, plasmídeos incapazes<br />
de se replicarem na linhagem vacinal.<br />
Quando introduzidos na Salmonella,<br />
esses plasmídeos segregam-se e<br />
são perdidos ou integram-se ao DNA<br />
cromossômico da bactéria através de<br />
um processo de recombinação por<br />
homologia. Esses recombinantes expressam,<br />
de forma mais estável, o<br />
antígeno heterólogo, mas a redução na<br />
quantidade do antígeno produzido<br />
pode reduzir sua imunogenicidade em<br />
relação ao sistema epissomal, isto é,<br />
aqueles que empregam plasmídeos,<br />
pela diminuição do número de cópias<br />
do gene presente em cada bactéria.<br />
Entretanto, o emprego de promotores<br />
bacterianos ativados em condições<br />
encontradas durante o trajeto da bactéria<br />
pelo organismo do hospedeiro pode<br />
aumentar muito a expressão e, conseqüentemente,<br />
a imunogenicidade do<br />
antígeno. O promotor do gene nirB,<br />
ativado em condições de anaerobiose,<br />
representa um exemplo de sistema de<br />
expressão capaz de aumentar a estabilidade<br />
sem o comprometimento da<br />
24 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
Tabela 2: Alguns exemplos de vacinas bivalentes baseadas em linhagens atenuadas de Salmonella e suas propriedades<br />
imunológicas<br />
Antígeno heterólogo ó Doença Salmonella vacinal ® Imunogenicidade ¡ Proteção ö<br />
I . Antígenos de natureza bacteriana<br />
Toxina tetânica (Clostridium tetani) Tétano S. Typhimurium aro - + +<br />
P.69/FHA/PTX-S (Bordetella pertussis) Coqueluche S. Typhimurium aro - + +<br />
LTB/K1/K88/CFA-I (Escherichia coli) Diarréia S. Typhimurium aro - + +<br />
28 kDa OMP (Neisseria meningitidis) Meningite S. Typhimurium aro - + ND<br />
CTB (Vibrio cholerae) Cólera S. Typhimurium aro - + ND<br />
S. Dublin aro - + ND<br />
F1 (Yersinia pestis) Peste S. Typhimurium aro - + +<br />
Proteína M (Streptococcus pyogenes) Choque Tóxico S. Typhimurium aro - + +<br />
SpaA (S. mutans, S. sobrinus) Cárie S. Typhimurium cya - crp - + ND<br />
Invasina (Yersinia pseudotuberculosis) Gastroenterite S. Typhimurium aro - + +<br />
Diversos (Treponema pallidum) Sífilis S. Typhimurium aro - + ND<br />
Diversos (Mycobacterium leprae) Lepra S. Typhimurium cya - crp - + ND<br />
Pneumolisina (Streptococcus pneumonia) Pneumonia S. Typhimurium aro - + ND<br />
LTB/CFA-I/CS3 (Escherichia coli) Diarréia S. Typhi aro - + ND<br />
Antígeno O (Shigella flexneri) * Diarréia S. Typhi aro - + +<br />
Antígeno O (Vibrio cholerae)* Cólera S. Typhi aro - + ++<br />
II. Antígenos de natureza viral<br />
NP (vírus influenza) Gripe S. Typhimurium aro - + +<br />
HA (vírus influenza) Gripe S. Dublin aro - + ND<br />
S1/S2/NP (vírus da hepatite B) Hepatite S. Typhimurium aro - + ND<br />
S. Typhimurium cya - crp + ND<br />
S. Dublin aro - + ND<br />
gp120 (HIV) AIDS S. Typhimurium aro - + ND<br />
gB1 (vírus herpes simplex) Herpes S. Typhimurium aro - + ND<br />
Proteína G (vírus respiratório sincicial) Pneumonia S. Typhimurium aro - ND ND<br />
III. Antígenos de natureza parasitária<br />
SREHP (Entamoeba histolytica) Amebíase S.Typhimurium cya - crp - + +<br />
gp63 (Leishmania major) Leishmaniose S. Typhimurium aro - + +<br />
CSP /MSP-1 (Plasmodium berghei ,<br />
Plasmodium yoelii) Malária murina S.Typhimurium cya - crp - + +<br />
S. Dublin aro - + +<br />
CSP (P.falciparum)* Malária humana S. Typhi aro - + ND<br />
ó – Antígenos derivados de diferentes patógenos expressos em linhagens atenuadas de Salmonella;<br />
® – Linhagem atenuada empregada nos ensaios in vivo: aro - , linhagens deficientes na síntese de compostos<br />
aromáticos; cya - crp - , linhagens deficiente na síntese de cAMP e proteína ligadora de cAMP;<br />
¡ – Detecção de resposta imune induzida (produção de anticorpos, atividade citotóxica, produção de citocinas,<br />
etc.) contra os antígenos heterólogos nos animais imunizados com as linhagens vacinais de Salmonella. Ensaios<br />
baseados em modelo murino, exceto naqueles indicados (*) nos quais foram feitos ensaios em voluntários<br />
humanos;<br />
ö – Animais imunizados com a linhagem vacinal foram total ou parcialmente protegidos contra desafio com o<br />
patógeno que forneceu o antígeno heterólogo<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 25
imunogenicidade de antígenos.<br />
A disponibilidade de técnicas de<br />
clonagem e expressão de genes heterólogos<br />
em Salmonella atenuada permitiu<br />
a construção de diversas vacinas<br />
baseadas em linhagens bivalentes que<br />
expressam antígenos de vírus, bactérias<br />
ou parasitos (Tabela 2). Essas vacinas<br />
foram testadas em sua grande<br />
maioria em modelos animais, mas, em<br />
alguns casos, mostraram resultados<br />
promissores também em voluntários<br />
humanos. Embora ainda não se disponha<br />
de uma vacina bivalente baseada<br />
em Salmonella atenuada, tais resultados<br />
indicam que no futuro essa abordagem<br />
possa ser efetivamente utilizada<br />
como alternativa profilática para várias<br />
doenças infecciosas do homem e animais<br />
domésticos.<br />
Um desdobramento técnico relacionado<br />
com a expressão de antígenos<br />
heterólogos por linhagens atenuadas<br />
de Salmonella envolve a fusão de<br />
peptídeos heterólogos com proteínas<br />
bacterianas. A utilização de peptídeos<br />
evita que reações de auto-imunidade,<br />
como a febre reumática, desencadeadas<br />
por alguns antígenos de natureza<br />
microbiana possam ser eliminadas sem<br />
o comprometimento da capacidade<br />
de indução de resposta imunológica<br />
protetora. A fusão genética de peptídeos,<br />
com 10 a 20 aminoácidos, com<br />
proteínas bacterianas representa uma<br />
alternativa simples e econômica para<br />
as vacinas baseadas em peptídeos sintéticos.<br />
O acoplamento genético do<br />
peptídeo heterólogo com uma proteína<br />
de Salmonella também pode atuar<br />
como um adjuvante natural e permite<br />
a administração pela via oral. Entre as<br />
proteínas de Salmonella mais utilizadas<br />
para a expressão de peptídeos<br />
heterólogos destaca-se a flagelina, subunidade<br />
estrutural do flagelo bacteriano<br />
(Figura 1). Esse modelo, inicialmente<br />
desenvolvido pela pesquisadora<br />
brasileira Salete Newton, permite<br />
que milhares de cópias do peptídeo de<br />
interesse sejam expressas na superfície<br />
da Salmonella em forma de flagelos,<br />
que permanecem, em geral, funcionais<br />
(Newton & Stocker, 1989).<br />
Linhagens atenuadas de Salmonella<br />
também podem ser utilizadas como<br />
veículos para vacinas de DNA. Nesse<br />
sistema, a Salmonella atenuada não se<br />
encarrega de expressar o antígeno<br />
codificado, mas transporta a mensagem<br />
genética que irá transfectar as células de<br />
defesa do hospedeiro (Lásaro e Ferreira,<br />
2000).<br />
A pesquisa de linhagens vacinais<br />
de Salmonella no Brasil<br />
A contribuição brasileira para a pesquisa<br />
de vacinas baseadas em Salmonella<br />
é significativa. Além do modelo de<br />
expressão de peptídeos fusionados à<br />
flagelina de Salmonella, outros grupos<br />
em universidades e institutos de pesquisa<br />
testam linhagens atenuadas como<br />
estratégia vacinal bivalente. Nosso grupo<br />
desenvolve pesquisas voltadas para<br />
a construção de vacinas bivalentes baseadas<br />
em S. Typhimurium aroA, capazes<br />
de expressar uma proteína envolvida na<br />
colonização do epitélio intestinal pela<br />
Escherichia coli enterotoxigênica<br />
(ETEC), o principal agente etiológico da<br />
diarréia dos viajantes. Os resultados obtidos<br />
até o momento atestam o potencial<br />
dessa abordagem e abrem perspectivas<br />
para o desenvolvimento de novas<br />
vacinas orais para controle de patógenos<br />
entéricos (Guillobel et al., 2000;<br />
Lásaro e Ferreira, 2000; Simões e Ferreira,<br />
2001).<br />
Conclusões e perspectivas<br />
Nos últimos anos, presenciamos um<br />
significativo progresso no uso experimental<br />
de linhagens vacinais de Salmonella<br />
como estratégia vacinal bivalente.<br />
Atualmente o conhecimento sobre a<br />
patogênese bacteriana e o aprimoramento<br />
de técnicas relacionadas com a<br />
manipulação genética de microrganismos<br />
permite que se criem, em curto<br />
espaço de tempo, linhagens vacinais<br />
seguras e eficazes. Além disso, as facilidades<br />
de produção, armazenamento e<br />
administração tornam essa estratégia uma<br />
alternativa vacinal interessante, sobretudo<br />
para países em desenvolvimento.<br />
Acreditamos que a formação de competência<br />
técnica e científica para geração<br />
e uso de linhagens vacinais de Salmonella<br />
poderá contribuir para a melhoria das<br />
condições de saúde de nossa população.<br />
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26 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
UNISCIENSE<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 27
Pesquisa<br />
Novos moduladores da formação de<br />
VASOS SANGUÍNEOS<br />
Fotos e ilustrações cedidas pelos autores<br />
Na regulação de processos de angiogênese, novas abordagens em patologia e terapêutica<br />
Paulo Fernando Dias<br />
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Farmacologia, CCB<br />
Professor do Departamento de Biologia Celular, Embriologia e Genética - CCB<br />
Universidade Federal de Santa Catarina.<br />
paulus@mbox1.ufsc.br<br />
Rosa Maria Ribeiro-do-Valle<br />
Prof. Dra. do Departamento de Farmacologia - CCB<br />
Universidade Federal de Santa Catarina.<br />
Renata dos Passos Maraschim<br />
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em <strong>Biotecnologia</strong>, CCA<br />
Universidade Federal de Santa Catarina.<br />
Marcelo Maraschim<br />
Prof, Dr. do Departamento de Fitotecnia - CCA<br />
Universidade Federal de Santa Catarina.<br />
28 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002<br />
o organismo humano, os vasos sangüíneos integram<br />
uma rede de 50 km de tubos responsáveis<br />
pelo fluxo do sangue e pela perfusão tecidual nos<br />
diversos sistemas (Fig. 1). Os vasos estão organizados<br />
em uma monocamada de células endoteliais,<br />
revestidos por moléculas de colágeno, elastina, glicoproteínas<br />
e proteoglicanas - matriz extracelular - e células com<br />
função de suporte (Koch,1998).<br />
Novos vasos sanguíneos são formados quando as células<br />
endoteliais e as células musculares lisas - que formam o<br />
revestimento interno e externo dos vasos - crescem em<br />
resposta a fatores ou sinais específicos. Esse processo fisiológico,<br />
conhecido como angiogênese, pode sofrer alterações e<br />
desencadear muitas doenças, como a<br />
psoríase, a cegueira na diabetes, a artrite<br />
e o câncer.<br />
O entendimento dos mecanismos celulares<br />
envolvidos na vascularização lança<br />
perspectivas sobre a promoção do<br />
crescimento vascular no restabelecimento<br />
do tecido isquêmico, e o bloqueio do<br />
crescimento de vasos para conter o avanço<br />
de patologias, como o câncer (Jain e<br />
Carmeliet, 2001).<br />
Em condições normais, as células endoteliais<br />
proliferam em um ritmo muito<br />
lento, apresentando longevidade acentuada.<br />
No organismo adulto somente<br />
0,01% das células endoteliais encontramse<br />
normalmente em processo de divisão,<br />
um valor bastante diferente daquele observado<br />
no epitélio intestinal, onde, aproximadamente,<br />
14% das células encontram-se em processo<br />
mitótico (Hanahan e Folkman, 1996).<br />
Nem sempre as células endoteliais mostram um percentual<br />
de divisão celular tão reduzido. No decorrer do<br />
período embrionário, entre 3,5 e 8 semanas do desenvolvimento<br />
humano, o sistema cardiovascular é um dos<br />
primeiros sistemas a se estabelecer. Nessa fase, as células<br />
são mobilizadas em intensos movimentos morfogenéticos<br />
integrados no tempo e no espaço para criar progressivamente<br />
a forma do corpo. A migração celular nesse período<br />
assemelha-se muito mais ao intenso tráfego nas autopistas<br />
de uma metrópole, que ao trânsito pacato e organizado de<br />
uma cidadezinha de interior. Durante aqueles eventos, que<br />
Figura 1 - Esquema mostrando a estrutura da parede vascular, onde a<br />
monocamada de células endoteliais limita internamente o vaso sanguíneo,<br />
separando o leito vascular da estrutura externa de suporte
Figura 2 - A remodelagem dos vasos sanguíneos possibilita a transição da<br />
rede de vasos primordiais típica do período de vasculogênese para a estrutura<br />
vascular definitiva resultante do processo de angiogênese; A- Estabilização<br />
das células endoteliais; B- Perda da adesão celular e desestabilização<br />
do vaso; C- Crescimento ou regressão vascular (Adaptado de Yancopoulos<br />
e col., 2000)<br />
envolvem diversos níveis de comunicação<br />
célula - célula, incluindo as interações<br />
entre diferentes linhagens celulares,<br />
o endotélio constitui o arcabouço<br />
em torno do qual o coração, as artérias,<br />
veias e capilares organizam-se para<br />
levar oxigênio e nutrientes a tecidos<br />
cada vez mais complexos e menos<br />
acessíveis (Carlson, 1996).<br />
O processo de desenvolvimento<br />
tissular implica concomitante o aumento<br />
na demanda de oxigênio. Em<br />
resposta à ocorrência de regiões de<br />
hipóxia, os tecidos secretam sinais que<br />
estimulam os mecanismos de proliferação,<br />
migração e diferenciação de<br />
células endoteliais, o que resulta no<br />
surgimento de vasos sanguíneos, ou<br />
no rápido crescimento dos vasos préexistentes,<br />
processos denominados de<br />
vasculogênese e angiogênese, respectivamente<br />
(Tobelem, 1990).<br />
Na vasculogênese, precursores das<br />
células endoteliais, denominados angioblastos,<br />
surgem no mesoderma da<br />
vesícula vitelínica. Os angioblastos organizam-se<br />
em agregados celulares ou<br />
ilhotas sanguíneas, diferenciando-se em<br />
uma rede vascular primordial, onde os<br />
canais endoteliais apresentam tamanho<br />
relativamente uniforme. Posteriormente,<br />
durante a angiogênese, ocorre<br />
uma remodelagem da vascularização<br />
primária e novos capilares surgem<br />
a partir dos vasos primordiais, organizando<br />
uma rede vascular estável e<br />
complexa, com vasos sanguíneos de<br />
tamanhos diferentes. A remodelagem<br />
vascular envolve tanto o crescimento<br />
como a regressão de vasos, eventos<br />
fisiológicos importantes principalmente<br />
na infância, durante o crescimento<br />
de tecidos e órgãos dos diferentes<br />
sistemas orgânicos. A remodelagem<br />
seguida do crescimento vascular também<br />
está presente no adulto, por exemplo,<br />
no crescimento dos cabelos, no<br />
reparo do tecido lesionado (cicatrização)<br />
e no ciclo reprodutivo feminino -<br />
vascularização nos ovários, vias genitais,<br />
glândulas mamárias e na organização<br />
da placenta (Jones e col., 2001).<br />
No organismo do adulto, a vascularização<br />
normalmente estável pode ser<br />
reativada por diversos fatores angiogênicos<br />
e desencadear a formação de<br />
vasos sanguíneos (neovascularização).<br />
Perturbações no delicado equilíbrio<br />
entre o crescimento e a regressão dos<br />
vasos existentes no organismo adulto<br />
podem contribuir para o desenvolvimento<br />
de diversos processos patológicos.<br />
O crescimento de tumores, por<br />
exemplo, depende da neovascularização,<br />
induzida direta ou indiretamente<br />
pelas próprias células tumorais, durante<br />
a transição entre os estágios de<br />
hiperplasia para neoplasia, a exemplo<br />
dos hemangiomas - tumores vasculares<br />
comuns e incapacitantes (Carmeliet<br />
e Jain, 2000).<br />
A angiogênese prolongada e acentuada<br />
também está relacionada com<br />
muitas outras patologias, entre as quais,<br />
desordens inflamatórias, a endometriose<br />
- crescimento do tecido endometrial<br />
na cavidade peritonial, as retinopatias<br />
- neovascularização do olho e<br />
cegueira em quadros de diabetes, a<br />
artrite reumatóide - condição inflamatória<br />
na qual capilares sanguíneos invadem<br />
e destroem a cartilagem das articulações<br />
e a psoríase - doença inflamatória<br />
da pele, onde as lesões são caracterizadas<br />
pelo aumento do calibre e do<br />
comprimento de vasos presentes na<br />
derme (Solimene e col., 1999).<br />
Modelo emergente de formação<br />
de vasos sanguíneos<br />
A ocorrência de eventuais falhas ou<br />
interferências na sinalização responsável<br />
pela estabilização das células endoteliais<br />
normalmente sujeita-as a uma<br />
terceira alternativa: a morte celular<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 29
Figura 3 - Representação da migração celular - evento dependente da<br />
atividade do citoesqueleto, do reconhecimento de sinais quimiotáticos e<br />
da adesão ao substrato - uma jornada das células no tempo e no espaço<br />
de sua própria diferenciação<br />
(apoptose) com a conseqüente regressão<br />
dos vasos sanguíneos. As moléculas<br />
sinalizadoras, de natureza pró e anti<br />
angiogênica, viabilizam um equilíbrio<br />
dinâmico necessário à manutenção do<br />
sistema biológico. Esse equilíbrio está<br />
baseado na coexistência desses sinais<br />
angiogênicos e angiostáticos em concentrações<br />
estritamente controladas,<br />
interagindo por sua vez com mediadores<br />
e receptores membranais e intracelulares,<br />
através dos quais, as células<br />
interagem em seu microcosmo (Melino,<br />
2001).<br />
Independência e morte<br />
O processo de remodelagem angiogênica<br />
é um evento decisivo na vascularização,<br />
pois a interação entre os fatores<br />
angiogênicos e angiostáticos presentes<br />
pode determinar a estabilização<br />
da rede vascular, ou acarretar a regressão<br />
de vasos sanguíneos (Jones e col.,<br />
2001).<br />
A estabilização dos vasos sanguíneos<br />
é uma condição em que células<br />
suporte periendoteliais são recrutadas<br />
para a parede do vaso e a matriz extracelular<br />
endotelial é reconstituída. Na<br />
ausência de contato com as células<br />
suporte e a matriz extracelular, os vasos<br />
sanguíneos tornam-se desprotegidos e<br />
sujeitos à regressão (Fig. 2A). Para as<br />
células endoteliais a regressão implica<br />
uma forma de apoptose ou anoikis -<br />
indução de morte celular programada,<br />
ocasionada pelo desligamento das células<br />
de seu suporte na matriz extracelular<br />
(Lockshin e Zakeri, 2001).<br />
A redução na adesão celular, durante<br />
o processo de remodelagem, também<br />
é imprescindível na fase de crescimento<br />
dos vasos - a ramificação angiogênica<br />
-, pois as células se tornam mais<br />
acessíveis aos fatores de crescimento<br />
vascular (Fig. 2B). Paradoxalmente, as<br />
células têm sua susceptibilidade à morte<br />
- a regressão dos vasos sanguíneos<br />
aumentada.<br />
Durante o crescimento dos vasos,<br />
as células endoteliais encontram-se diante<br />
de duas opções normalmente<br />
incompatíveis - a divisão celular (mitose)<br />
ou a migração e diferenciação celular.<br />
No transcorrer do processo de<br />
migração celular, as reações químicas<br />
entre as moléculas presentes na membrana<br />
citoplasmática viabilizam contatos<br />
pontuais e transitórios das células<br />
com moléculas de adesão e de reconhecimento<br />
presentes no ambiente<br />
(Yamada, 1991). Ao mover-se, a célula<br />
endotelial entra em contato com “uma<br />
nova vizinhança”, onde as moléculas<br />
de adesão celular desempenham um<br />
papel comparável a um código vital de<br />
endereçamento postal, sem o qual a<br />
célula estaria literalmente perdida<br />
(Fig.3). Essa sinalização orienta as células<br />
endoteliais de modo que se reúnam<br />
para formarem vasos.<br />
Morfogênese de vasos<br />
sanguíneos: Destruir<br />
para construir?<br />
Se eventuais falhas na sinalização<br />
responsável pela estabilização das células<br />
endoteliais podem sujeitá-las à<br />
morte (apoptose) e desencadear a<br />
regressão dos vasos sanguíneos), esse<br />
processo constitui uma alternativa à<br />
divisão (mitose) e à especialização<br />
celular (diferenciação) (Fig. 2C).<br />
Emerge a perspectiva de que a<br />
estabilidade dos vasos é mantida às<br />
expensas de sinais voltados não só<br />
para a sobrevivência, como também<br />
para a morte das células endoteliais.<br />
Tal fato implica que, para sobreviver,<br />
tanto as células, individualmente como<br />
os vasos sanguíneos, devem estar aptos<br />
a resistir constantemente a inúmeros<br />
sinais de morte.<br />
É possível considerar que a morte<br />
faça parte da vida desde cedo. Evidência<br />
disso é que se as mitoses ocorressem<br />
sem a intervenção de processos<br />
de apoptose, uma pessoa de 80 anos<br />
de idade poderia acumular até duas<br />
toneladas de medula óssea e linfonodos,<br />
ou desenvolver um intestino com<br />
mais de 15 km de comprimento (Melino,<br />
2001).<br />
O desenvolvimento de vasos sanguíneos,<br />
sob o controle de fatores pró<br />
e anti angiogênicos em equilíbrio dinâmico,<br />
depende essencialmente de<br />
adesões focais. Esses processos de<br />
adesão celular mediados por integrinas<br />
possibilitam uma comunicação bidirecional<br />
entre a matriz extracelular e o<br />
citoesqueleto, durante os eventos de<br />
proliferação, migração, diferenciação e<br />
morte celular (Geiger e col., 2001).<br />
Célula vascular endotelial -<br />
"Megalópole" de sinais e<br />
receptores<br />
Parte integrante da matriz extracelular,<br />
moléculas de proteoglicanas,<br />
como o sulfato de heparana, têm participação<br />
relevante nos processos de<br />
morfogênese e de organogênese. Essas<br />
macromoléculas podem atuar como<br />
um “reservatório” para fatores de crescimento<br />
pró-angiogênicos, como o<br />
bFGF (fator de crescimento de fibroblastos<br />
básico), os quais, quando “resgatados”<br />
da matriz, podem estimular o<br />
processo de diferenciação das células<br />
endoteliais (Katz e Yamada, 1997).<br />
O fator de crescimento de fibroblastos<br />
básico (bFGF ou FGF-2; PM =<br />
18 KDa), embora não possua especificidade<br />
para o endotélio, atua efetivamente<br />
no crescimento endotelial in<br />
vitro e é capaz de induzir, em quantidade<br />
nanograma, a angiogênese in<br />
vivo (Tobelem, 1990).<br />
Estudos sugerem que o bFGF estimula<br />
mitoses nas células vasculares<br />
endoteliais através de um mecanismo<br />
que envolve a formação intracelular de<br />
ácido araquidônico e a formação de<br />
eicosanóides (Fafeur e col.,1991; Friesel<br />
e Maciag, 1995).<br />
Até recentemente o fator de crescimento<br />
vascular endotelial (VEGF) era<br />
considerado o único fator específico<br />
para a formação de vasos sanguíneos,<br />
mas novos fatores de crescimento polipeptídicos<br />
vêm sendo identificados.<br />
Além de cinco membros da família<br />
30 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
Figura 4 - Sinalização na célula endotelial - tipos de sinais e receptores; adesão célula<br />
- célula mediada por cálcio; adesão focal ao citoesqueleto e à matriz extracelular; bloqueio<br />
à proliferação e à apoptose - estímulos para a sobrevivência e a migração celular<br />
(Baseado em Jones e col., 2001)<br />
VEGF - VEGF-A, VEGF-B,<br />
VEGF-C, VEGF-D, VEGF-E<br />
e PLGF (fator de crescimento<br />
placentário), estão incluídos<br />
entre os fatores angiogênicos<br />
quatro membros da<br />
família Ang - angiopoietinas<br />
1, 2, 3 e 4 - e ao menos um<br />
membro da família Eph -<br />
efrinas A1, B1 e B2. A exemplo<br />
da família FGF, outros<br />
fatores não específicos para<br />
o sistema vascular estão envolvidos<br />
nos processos de<br />
vascularização, como membros<br />
das famílias PDGF -<br />
fator de crescimento derivado<br />
de plaquetas e de fatores<br />
de transcrição (Yancopoulos,<br />
2000).<br />
No complexo jogo de<br />
processos celulares que resultam<br />
na formação de vasos<br />
sanguíneos funcionais, o<br />
time de fatores angiogênicos<br />
atua de modo integrado,<br />
sendo controlado a partir<br />
de receptores de membrana.<br />
Os receptores dos<br />
fatores de crescimento vascular<br />
endotelial - VEGF (VE-<br />
GFR-1, VEGFR-2 e VEGFR-<br />
3) e de angiopoietinas - Ang<br />
(Tie1, Tie2, Tie3 e Tie4) compreendem<br />
uma classe de moléculas relacionadas<br />
com a enzima quinase de tirosina,<br />
cuja ativação elicita uma resposta<br />
de transdução do sinal angiogênico,<br />
através de sucessivas reações de fosforilação.<br />
Nesses dois casos, a ligação de<br />
um sinal ao seu sítio de ativação faz<br />
com que os receptores organizem-se<br />
em dímeros (Gale e Yancopoulos,<br />
1999)<br />
Embora existam 4 subtipos de receptores<br />
Tie, todas as angiopoietinas<br />
ligam-se primariamente ao receptor<br />
Tie2, permanecendo sem identificação<br />
qualquer ligante para Tie1. Ang1 e<br />
Ang4 são agonistas de Tie2, enquanto<br />
ang2 e ang3 comportam-se como seus<br />
antagonistas competitivos (Fig. 4.1).<br />
O VEGF foi inicialmente chamado<br />
de fator de permeabilidade vascular,<br />
em face da sua habilidade em promover<br />
o aumento da permeabilidade e da<br />
proliferação entre as células endoteliais<br />
(Jones e col., 2001). Atualmente, o<br />
VEGF é considerado um fator preponderante<br />
na formação de vasos, tanto no<br />
período de vasculogênese como no de<br />
angiogênese, quando também são requeridos<br />
os sinais Ang1 ou Ang4 e Eph-<br />
B2, na tarefa de remodelagem e estabilização<br />
da vascularização imatura inicial<br />
(Fig. 2A).<br />
O receptor VEGFR-2 parece mediar<br />
a maior parte das respostas angiogênicas<br />
- inicialização, alongamento e<br />
permeabilidade de vasos sanguíneos -<br />
do VEGF-A, enquanto o VEGFR-1 exerceria<br />
apenas uma função moduladora<br />
no processo, principalmente seqüestrando<br />
o sinal ligante (VEGF) sem,<br />
efetivar uma resposta positiva na vascularização.<br />
Na remodelagem vascular, as ligações<br />
entre Ang1 e o receptor Tie2<br />
maximizam as interações entre células<br />
endoteliais, matriz extracelular e células<br />
suporte sendo fundamentais para o<br />
redimensionamento do tamanho dos<br />
vasos e a manutenção de sua estabilidade.<br />
A discriminação no desenvolvimento<br />
de artérias e veias é mediada<br />
pela sinalização de efrina-B2, que está<br />
diretamente relacionada com a diferenciação<br />
de vasos arteriais primordiais,<br />
e de efrina-B4, que sinaliza para a<br />
formação de vasos venosos (Witzenbichler<br />
e col., 1998; Thurston e Yancopoulos,<br />
2001).<br />
Estudos utilizando embriões de ratos<br />
demonstram a crítica relação existente<br />
entre a sinalização mediada pelos<br />
receptores VEGFR-2 e Tie2. Mutação<br />
envolvendo um único alelo do<br />
gene VEGF é suficiente para causar<br />
mortalidade embrionária, devido a severas<br />
anormalidades vasculares (Yancopoulos,<br />
e col., 2000). Na ausência da<br />
ligação entre Ang1 e o receptor Tie2,<br />
as células endoteliais falham em associar-se<br />
com as células suporte, sendo<br />
que embriões destituídos da via de<br />
sinalização do receptor Tie2, por exemplo,<br />
morrem entre o 9 º e 13 º dias do<br />
período embrionário como conseqüência<br />
da falta, tanto de expansão como<br />
de estabilidade do plexo vascular primário.<br />
Esses embriões mutantes também<br />
apresentam graves anomalias<br />
cardíacas (Miquerol e col., 2000).<br />
No adulto, falhas na sinalização exercida<br />
por Ang1, devido à ação de antagonistas<br />
competitivos de Ang1, tal como<br />
a Ang 2, coincidem com o reinício da<br />
remodelagem vascular periódica verificada<br />
no ciclo reprodutivo feminino e<br />
também em processos de vasculariza-<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 31
Figura 5 - Aspecto geral dos vasos sanguíneos na vasculogênese (A) e na<br />
angiogênese (B), característicos das membranas vitelínica e corioalantóica<br />
(corioalantoic membrane - CAM) de embriões de galinha (em). Enquanto a<br />
membrana vitelínica organiza-se já no primeiro dia de incubação do ovo, a<br />
CAM, formada na fusão de dois outros anexos - cório e alantóide (al), sofre<br />
intensa vascularização entre o 4º e o 8º dia do desenvolvimento embrionário<br />
da espécie<br />
ção anormal (neovascularização).<br />
Durante o processo de remodelagem<br />
vascular, o destino dos vasos<br />
depende fundamentalmente da disponibilidade<br />
de VEGF. Na presença<br />
desse fator, os vasos iniciam processo<br />
de crescimento, recapitulando a atividade<br />
angiogênica em taxa similar à do<br />
desenvolvimento embrionário, enquanto<br />
na ausência de VEGF, as células,<br />
destituídas de adesão, entram em apoptose<br />
e os vasos conseqüentemente<br />
regridem - Fig. 2C (Bergers e col.,<br />
1998).<br />
Promovendo a formação de<br />
vasos: Estímulo contínuo<br />
para a sobrevivência<br />
A adesão celular envolve a participação<br />
de moléculas, tais como as caderinas,<br />
integrinas e selectinas (Wagener<br />
e Ergün, 2000).<br />
Caderinas vasculares endoteliais, localizadas<br />
em junções aderentes, constituem<br />
uma barreira entre células endoteliais<br />
vizinhas, que é mediada por<br />
interações dependentes do cálcio (Fig.<br />
4.2). As caderinas estão conectadas a<br />
um complexo de proteínas ligadas ao<br />
citoesqueleto e também comunicamse<br />
com o receptor VEGFR-2 (Fig. 4.3).<br />
A sinalização, a partir do VEGFR-2, é<br />
uma das principais responsáveis pela<br />
sobrevivência da célula endotelial, através<br />
das reações de fosforilação envolvendo<br />
a proteína quinase B - PKB ou<br />
Akt - e a quinase lipídica fosfatidilinositol-3-hidroxi<br />
quinase - PI-3-K (Fig.<br />
4.4).<br />
As integrinas são proteínas diméricas<br />
que atravessam a membrana e<br />
emergem na superfície celular, onde<br />
atuam em contatos célula-célula, através<br />
de interações com a matriz extracelular<br />
ou com a lâmina basal - malha<br />
de colágeno tipo IV, glicoproteínas e<br />
proteoglicanas. A ligação entre integrinas<br />
e matriz extracelular ou lâmina<br />
basal, leva à ativação de moléculas<br />
localizadas no meio intracelular denominadas<br />
quinases de adesão focal -<br />
FAK (Fig. 4.5). Essas proteínas quinases,<br />
situadas nas proximidades da membrana,<br />
compõem a estrutura interna da<br />
adesão ao substrato (Koch e col., 1995).<br />
Sobrevivência<br />
dependente da adesão<br />
Uma vez ativadas, as FAK reagem<br />
recrutando outras proteínas quinases<br />
citoplasmáticas, como as tirosinas quinases<br />
citoplasmáticas, referidas como<br />
“SRC” - que sinergisticamente reagem<br />
fosforilando outros sítios de FAK. Esse<br />
tipo de ativação e reação recíproca<br />
entre FAK e SRC leva ao recrutamento<br />
de outras moléculas acopladoras. Algumas<br />
das moléculas recrutadas nesse<br />
processo são a Sos, a PI-3-K, a CAS e as<br />
paxilinas. O acoplamento dessas móleculas<br />
incrementa a adesão focal à medida<br />
em que se reflete em ativação ainda mais<br />
efetiva das FAK, otimizando o estímulo<br />
de sobrevivência da célula por meio da<br />
fosforilação e ativação de Akt (Fig. 4.6).<br />
A subunidade regulatória p85 da PI-3-<br />
K associa-se com os receptores fosforilados<br />
Tie2 e VEGFR-2, provavelmente<br />
através de um resíduo da proteína tirosina<br />
quinase 1100, resultando também em<br />
ativação de Akt. Por sua vez, a ativação<br />
de Akt leva à fosforilação da NO sintase<br />
endotelial. Como um antídoto para a<br />
morte celular, o óxido nítrico (NO) inativa<br />
proteínas pró-apoptóticas como Bad<br />
e Caspase-9 e pode ativar, nas células<br />
endoteliais, proteínas que inibem a apoptose,<br />
como a survivina - Fig. 4.7 (Blume-<br />
Jensen e Hunter, 2001).<br />
A migração das células<br />
endoteliais<br />
Durante a ramificação angiogênica, o<br />
estímulo à migração desencadeado pelos<br />
fatores angiogênicos implica alterações<br />
marcantes na arquitetura da células<br />
endoteliais. O citoesqueleto é mobilizado<br />
e ocorre secreção de enzimas proteolíticas,<br />
metaloproteinases que degradam<br />
a matriz extracelular permitindo<br />
assim, mobilidade celular para efetivação<br />
do processo morfogenético de tubulogênese<br />
(Fig. 4.8) (Brentani, 1992).<br />
Na migração celular, além dos receptores<br />
Tie2 e das proteínas FAK, um<br />
número significativo de moléculas acopladoras,<br />
tais como Nck e Dok-R, são<br />
implicadas na transdução de sinais para<br />
as proteínas contráteis do citoesqueleto<br />
(Fig. 4.9). Atuando de modo integrado,<br />
essas moléculas são responsáveis por<br />
uma economia de energia. O recrutamento<br />
de proteínas Dok-R para o receptor<br />
Tie2, dessensibiliza proteínas quinases<br />
- mitógeno ativadas, bloqueando as<br />
mitoses durante o processo de migração<br />
celular (Fig. 4.10). Para as células endoteliais,<br />
reproduzir-se e, concomitantemente,<br />
viajar parecem ser atividades<br />
incompatíveis (Jones e Dumont, 1999).<br />
Bloqueando a formação<br />
de vasos: Regulação de<br />
receptores por fosfatases<br />
As enzimas fosfatases anulam o trabalho<br />
de proteínas quinases e podem assim<br />
modular a atividade de receptores angiogênicos<br />
como VEGFR-2 e Tie2. Uma<br />
32 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
classe de receptores com atividade fosfatase<br />
específica de célula endotelial,<br />
denominada fosfatase de proteína tirosina<br />
vascular endotelial (VE-PTP) associase<br />
à Tie2, e exibe igual nível de afinidade<br />
por Ang1. Desse modo, angiopoietinas<br />
poderiam ligar-se simultaneamente<br />
à Tie2 e VE-PTP, promovendo a formação<br />
de heterodímeros - compostos pelos<br />
dois receptores atípicos - na superfície<br />
da célula endotelial. Conseqüentemente,<br />
VE-PTP bloquearia a formação<br />
dos dímeros de Tie2 e a sua subseqüente<br />
fosforilação, tornando-os funcionalmente<br />
inativos (Fachinger e col., 1999).<br />
O texto bíblico provê uma interessante<br />
metáfora sobre a realidade da<br />
regulação de receptores vasculares endoteliais.<br />
Dalila ao cortar os cabelos de<br />
Sansão, destituiu-o da fonte de sua força<br />
sobre-humana. Então, traído pela ação<br />
da amante, Sansão é subjugado e preso<br />
pelos inimigos. Tal como ocorreu com<br />
Sansão, o receptor Tie1 é proteoliticamente<br />
clivado, em resposta à “ação de<br />
Dalila” por parte do VEGF sobre o seu<br />
receptor. Os “longos cabelos” em questão<br />
- um domínio protéico extracelular<br />
Tie1 - são removidos e o fragmento<br />
Tie1 remanescente - composto dos<br />
domínios transmembranais e intracelulares<br />
- permanece assim por várias horas,<br />
sendo quimicamente seqüestrado<br />
na associação com outras proteínas, a<br />
exemplo de outra fosfatase denominada<br />
Shp2 (Marron e col., 2000).<br />
Fronteiras entre a formação e a<br />
regressão de vasos sanguíneos<br />
O fator de crescimento vascular endotelial<br />
estimula o crescimento de vasos<br />
sanguíneos em diversos tecidos e órgãos,<br />
como a retina, ovários, articulações<br />
e os neurônios motores na medula<br />
espinhal. Assim, a inibição terapêutica<br />
de VEGF poderia bloquear o crescimento<br />
de tumores no ovário, mas também<br />
elevaria o risco de doenças cardíacas e<br />
de degeneração de neurônios motores<br />
no sistema nervoso central. Por outro<br />
lado, a liberação de um fator angiogênico<br />
inespecífico quanto ao tecido, como<br />
o VEGF, com o objetivo de estimular a<br />
formação de novos vasos no coração<br />
isquêmico, incrementaria o risco de ocorrência<br />
de câncer e de cegueira (Carmeliet,<br />
2001).<br />
As células dependem basicamente<br />
de oxigênio e nutrientes, entretanto,<br />
existem outras necessidades, consideradas<br />
tecido-específicas. No sistema vascular,<br />
além dos sinais inespecíficos que<br />
modulam a formação de vasos nos<br />
tecidos de um modo geral, moléculas<br />
angiogênicas tecido-específicas começam<br />
a ser identificadas e isoladas, a<br />
exemplo do fator de crescimento vascular<br />
endotelial derivado de glândula<br />
endócrina (Endocrine gland-vascular<br />
endothelial growth factor - EG-VEGF).<br />
Enquanto nas glândulas endócrinas os<br />
vasos sanguíneos possuem paredes<br />
finas e poros - fenestrações - através<br />
das quais os hormônios produzidos<br />
podem entrar na corrente sanguínea,<br />
uma condição oposta tem lugar no<br />
cérebro, onde as células endoteliais<br />
diferem por não apresentarem fenestrações,<br />
sendo revestidas por uma camada<br />
espessa de células de suporte,<br />
que impede a entrada de moléculas<br />
potencialmente tóxicas no sistema<br />
nervoso central (LeCouter e col., 2001).<br />
Tal como o FGF e o VEGF, inúmeros<br />
fatores de crescimento podem regular<br />
fisiologicamente os processos de<br />
formação de vasos sanguíneos. Numerosas<br />
substâncias antiangiogênicas endógenas<br />
e exógenas têm sido reportadas<br />
na literatura, entre as quais, corticosteróides,<br />
fatores derivados de cartilagem,<br />
fator plaquetário 4 (PF- 4),<br />
angiostatina - um fragmento de plasminogênio,<br />
inibidores de metaloproteinases,<br />
talidomida - analgésico e inibidor<br />
de fator de necrose tumoral (TNFα)<br />
e antagonistas de hormônios estrogênios,<br />
tais como tamoxifeno, clomifeno<br />
e raloxifeno (Woltering e col., 1991;<br />
Gagliardi e col., 1996; Gagliardi e Collins,<br />
1993; Jordan, 1998).<br />
Produtos naturais vêm contribuindo<br />
sobremaneira para a descoberta de<br />
novas drogas de interesse para a saúde<br />
humana (Calixto e col., 1997). Paper e<br />
col. (1997) reportaram que um complexo<br />
de peptideoglicana-polissacarídeo<br />
sulfatado, extraído de bactérias do<br />
gênero Arthrobacter, denominado tecogalan-sódio,<br />
inibiu a angiogênese.<br />
Igual efeito foi obtido a partir de oligossacarídeos,<br />
polipeptídeos e peptideoglicanas<br />
extraídos de parede celular de<br />
vegetais, como o Rhodococus sp (Nocardiaceae),<br />
de derivados de fungos<br />
(fumagilinas), como o TNP-470, metabólitos<br />
secundários de plantas, como o<br />
diterpenóide taxol e de compostos<br />
presentes em vinhos tintos (Dordunoo<br />
e col., 1995; Nicolaou e col., 1996; Jang<br />
e col., 1997; Frémont, 2000; Qiu e col.,<br />
2000).<br />
Polissacarídeos obtidos de algas marinhas,<br />
como o gênero Sargassum (Duarte<br />
et col., 2001), estão sendo avaliados<br />
quanto à estrutura química e a ação<br />
biológica sobre o sistema vascular<br />
(Noda, 1989; De Vries e Beant, 1995;<br />
König e Wright, 1995; Maraschin e col.,<br />
2000; Dias e col., 2001). Resultados<br />
preliminares indicam que embriões de<br />
galinha expostos a polissacarídeos de<br />
alto peso molecular daquela espécie<br />
sofreram inibição nos processos de<br />
vasculogênese e angiogênese no período<br />
de 2 a 8 dias do desenvolvimento<br />
(Fig. 5).<br />
O entendimento dos processos de<br />
formação de vasos sanguíneos e o<br />
reconhecimento de particularidades de<br />
sua estrutura nos diversos sistemas do<br />
organismo conferem suporte à abordagem<br />
das patologias relacionadas com o<br />
bloqueio ou com o estímulo da formação<br />
de vasos. Os resultados sobre a<br />
ação moduladora da angiogênese, obtidos<br />
a partir de princípios naturais,<br />
ampliam os horizontes dos tratamentos<br />
e as perspectivas biotectnológicas<br />
sobre a atividade e a estrutura química<br />
de novos compostos.<br />
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UNISCIENSE<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 35
APOMIXIA<br />
Pesquisa<br />
Vera Tavares de Campos Carneiro<br />
Doutora em Biologia Celular e Molecular Vegetais – Universidade de Paris XI<br />
Pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e <strong>Biotecnologia</strong><br />
Bolsista de Produtividade em Pesquisa - CNPq<br />
vera@cenargen.embrapa.br<br />
Diva Maria de Alencar Dusi<br />
Doutora em Biologia Celular e Molecular Vegetais – Universidade de Wageningen<br />
Pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e <strong>Biotecnologia</strong><br />
diva@cenargen.embrapa.br<br />
Fotos cedidas pelas autoras<br />
Em busca de tecnologias de clonagem de plantas por sementes<br />
Figura 1. Ovários de flores de Brachiaria<br />
decumbens. A, parte interna do óvulo de planta<br />
sexual observada por microscopia de varredura.<br />
Nota-se que existe apenas uma cavidade que<br />
corresponde a um único saco embrionário meiótico.<br />
B, ovário clarificado por metil salicilato, mostrando<br />
um único saco embrionário meiótico. Note a<br />
presença de antípodas (an). C, microscopia de<br />
varredura da parte interna do óvulo de planta<br />
apomítica, mostrando 4 sacos embrionários (1-4).<br />
D, ovário clarificado por metil salicilato, mostrando<br />
4 sacos embrionários apospóricos (1-4). Barra = 100<br />
µm para todas as figuras<br />
célebre trabalho de pesquisa<br />
de Gregor Mendel<br />
(1822-1884) com plantas de<br />
Pisum é considerado o fundamento<br />
da Genética. Utilizando<br />
uma metodologia experimental<br />
rigorosa na realização de cruzamentos e<br />
observando as características das plantas<br />
na progênie como altura, cor e formato<br />
das sementes, cor das flores etc., ele<br />
enunciou os princípios da hereditariedade.<br />
Mendel concluiu que as características<br />
genéticas estão contidas em unidades<br />
que existem aos pares nos indivíduos;<br />
quando duas delas, responsáveis por<br />
uma única característica, estão presentes<br />
em um indivíduo, uma é dominante<br />
sobre a outra e, na formação dos gametas,<br />
as unidades pareadas<br />
se separam e se<br />
segregam individualmente<br />
de maneira aleatória,<br />
de modo que<br />
cada gameta recebe<br />
uma delas. Na busca<br />
de mais material para<br />
dar suporte às suas deduções,<br />
Mendel executou<br />
cruzamentos no<br />
gênero Hieracium. No<br />
entanto, encontrou<br />
muita dificuldade em<br />
repetir os resultados<br />
obtidos com Pisum. Na<br />
progênie dos cruzamentos,<br />
muitas plantas<br />
pareciam oriundas de<br />
auto-fecundação, sem<br />
haver transmissão das<br />
características paternas,<br />
fato esse intrigante, pois<br />
seus métodos criteriosos<br />
envolviam emasculações.<br />
Este trabalho<br />
fez com que ele mesmo<br />
duvidasse da validade<br />
de seus resultados<br />
com Pisum. Mendel<br />
não sabia que estava<br />
diante de plantas<br />
que se reproduzem por apomixia (Asker<br />
e Jerling, 1992; Nogler, 1994).<br />
Apomixia é o modo de reprodução<br />
assexual através de sementes, que<br />
ocorre em mais de 300 espécies de 35<br />
famílias de angiospermas (Hanna and<br />
Bashaw, 1987). É um processo que acontece<br />
apenas na parte feminina da flor, o<br />
ovário, mais especificamente no óvulo,<br />
e, portanto, tem uma forte conexão com<br />
a via de reprodução sexual. Na reprodução<br />
sexual, as divisões meióticas promovem<br />
uma redução no número de cromossomos<br />
para formar um gametófito<br />
reduzido. Os embriões são formados<br />
após a fertilização com a fusão dos<br />
gametas masculino e feminino e, portanto,<br />
carregam uma cópia do conjunto de<br />
cromossomos de cada progenitor. No<br />
desenvolvimento apomítico, a meiose,<br />
característica da reprodução sexual, não<br />
ocorre ou não é funcional. Desse modo,<br />
a oosfera contém o mesmo número de<br />
cromossomos somáticos maternos, não<br />
ocorre fusão de gametas durante a fertilização<br />
e o desenvolvimento do embrião<br />
é autônomo, gerando, portanto, uma<br />
planta idêntica à planta-mãe.<br />
Importância da apomixia<br />
na agricultura<br />
Embora, em geral, as plantas apomíticas<br />
não sejam cultivadas, algumas espécies<br />
têm alto valor econômico e agronômico<br />
como é o caso das gramíneas.<br />
Essas plantas só podem ser usadas na<br />
fecundação de plantas sexuais, ou seja,<br />
como doadoras de pólen. Além disso, a<br />
diferença de ploidia existente entre plantas<br />
sexuais e apomíticas impede os cru-<br />
36 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
Tabela1: Métodos utilizados para detecção de apomixia<br />
Indicadores de Apomixia<br />
Método de detecção<br />
Referências<br />
- Alto nível de polimorfismo<br />
morfológico em populações<br />
selvagens.<br />
-Progênie uniforme obtida de<br />
sementes de uma única planta.<br />
-Ausência de variabilidade genética<br />
em F1 e F2.<br />
-Alto grau de poliploidia.<br />
-Produção de múltiplos embriões.<br />
-Ausência em diplospóricos ou<br />
distúrbio em apospóricos na<br />
deposição de calose em paredes<br />
de células-mãe do megásporo,<br />
díades, tétrades.<br />
- Distúrbios na meiose<br />
- Grau variável de aborto e<br />
esterilidade do grão de pólen.<br />
-Ausência de antípodas e presença<br />
de múltiplos sacos embrionários<br />
apospóricos.<br />
- Observação em locais de ocorrência<br />
natural das espécies.<br />
- Teste de progênie com sementes de<br />
plantas de polinização aberta.<br />
- Cruzamentos entre plantas com<br />
características distintas.<br />
- Análise citogenética com contagem de<br />
cromossomos de ponta de raiz ou<br />
citometria de fluxo.<br />
- Observações citológicas com técnicas de<br />
clareamento ou secção de ovários.<br />
- Análises citológicas de ovários frescos ou<br />
fixados e corados com azul de anilina e<br />
observação com o uso de microscópio de<br />
fluorescência.<br />
-Análise citogenética da divisão meiótica.<br />
-Análise histoquímica e teste de<br />
germinação do grão de pólen.<br />
- Análises citológicas de pistilos e ovários<br />
por clareamento ou por secções<br />
histológicas.<br />
Berthaud, 2001.<br />
Miles e Valle, 1996.<br />
Miles e Valle, 1991.<br />
Carman, 1997; Penteado et al., 2000.<br />
Lakshmanan e Ambegaokar, 1984;<br />
Vielle et al,. 1995.<br />
Naumova et al., 1993; Naumova e<br />
Willemse, 1995; Peel et al. 1997; Dusi<br />
e Willemse 1999.<br />
Quarin, 1980; Valle, 1986.<br />
Asker e Jerling, 1992; Dusi e Willemse,<br />
1999.<br />
Young et al., 1979.<br />
zamentos. Apesar disso, sendo a apomixia<br />
uma característica controlada por um<br />
só fator genético (Savidan 2000), existe a<br />
possibilidade de ela ser manipulada tanto<br />
por técnicas convencionais de melhoramento<br />
quanto por técnicas de engenharia<br />
genética.<br />
Com o avanço da biotecnologia e a<br />
possibilidade de se transferirem genes<br />
entre plantas, independentemente da<br />
compatibilidade sexual, o interesse nesse<br />
modo de reprodução foi despertado.<br />
A combinação da apomixia com a reprodução<br />
sexual terá aplicação direta na<br />
produção de sementes.<br />
De fato, as vantagens do uso de<br />
sementes apomíticas em culturas onde a<br />
apomixia não ocorre são inúmeras e já<br />
foram discutidas por muitos autores (Hanna<br />
e Bashaw, 1987; Asker e Jerling, 1992).<br />
O uso controlado da apomixia na agricultura<br />
permitirá fixar genótipos de elite<br />
e híbridos de qualidade e propagá-los<br />
por sementes. Essa característica poderá<br />
trazer muitos benefícios como:<br />
- possibilidade de propagar e<br />
armazenar por sementes culturas<br />
que são propagadas por<br />
tubérculos, rizomas ou estacas.<br />
- produção de sementes por pequenos<br />
produtores por um<br />
número infinito de gerações;<br />
- simplificação da produção comercial<br />
de sementes híbridas<br />
com conseqüente queda no<br />
custo total de produção de<br />
sementes;<br />
- simplificação dos programas<br />
de melhoramento com conseqüente<br />
aumento no número<br />
de cultivares adaptados em<br />
cada local.<br />
A amplitude do potencial de aplicação<br />
da apomixia em qualquer tipo de<br />
cultura, desde herbáceas até lenhosas,<br />
de anuais a perenes, aumentou o interesse<br />
mundial em entender como ocorre<br />
esse processo. Análises celulares e<br />
moleculares da apomixia vêm sendo<br />
realizadas em diferentes espécies e com<br />
uso de diferentes técnicas, com vistas a<br />
conhecer seu mecanismo.<br />
A apomixia é resultado de um dos<br />
três mecanismos: embrionia adventícia,<br />
diplosporia ou aposporia.<br />
Na embrionia adventícia, células<br />
somáticas, portanto, não reduzidas, do<br />
nucelo ou do tegumento interno do<br />
óvulo originam um embrião diretamente<br />
(Nogler 1984). A formação do embrião<br />
adventício ocorre lado a lado<br />
com a formação do embrião pela via<br />
sexual. Esse processo é conhecido no<br />
gênero Citrus, porém pouco se conhece<br />
da sua genética que, parece, ser muito<br />
complexa.<br />
Os dois outros mecanismos de apomixia<br />
são: diplosporia e aposporia. Ambos<br />
envolvem a formação de uma estrutura<br />
de um gametófito ou saco embrionário<br />
e, portanto, são considerados como<br />
apomixia gametofítica. Essa é caracterizada<br />
pela apomeiose (Nogler, 1984), ou<br />
seja, pela formação de um saco embrionário<br />
sem completar a redução meiótica.<br />
Na diplosporia, a célula mãe do megásporo<br />
inicia, mas não completa, a meiose<br />
e entra na mitose, e os núcleos do saco<br />
embrionário não são reduzidos. Os sacos<br />
embrionários formados possuem 8<br />
núcleos e são morfologicamente semelhantes<br />
ao saco meiótico. Nesse caso, o<br />
processo sexual é completamente comprometido,<br />
e, num mesmo óvulo, apenas<br />
pode ocorrer um modo de reprodução.<br />
Na aposporia, células do nucelo,<br />
denominadas células iniciais apospóricas<br />
ou apósporos, entram em mitose<br />
diretamente e formam sacos embrionários<br />
não reduzidos. Estes possuem oito<br />
núcleos como em Hieracium ou 4 núcleos<br />
como em Panicum (Asker e Jerling,<br />
1992). Geralmente o processo sexual<br />
é interrompido, mas, nem sempre, o<br />
que possibilita a ocorrência de sexuali-<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 37
dade e apomixia em um mesmo óvulo.<br />
É comum também a ocorrência de vários<br />
sacos embrionários apospóricos em um<br />
só óvulo em decorrência do aparecimento<br />
de diversos apósporos (Fig. 1).<br />
O desenvolvimento do endosperma<br />
pode ser autônomo, sem a ocorrência de<br />
fertilização do núcleo polar pelo núcleo<br />
espermático, ou necessitar de fertilização<br />
do núcleo polar, caracterizando,<br />
então, a pseudogamia.<br />
Indicadores da apomixia<br />
Existem muitas características que<br />
podem ser observadas em plantas que<br />
indicam uma possível ocorrência de<br />
reprodução apomítica (Czapik, 1994).<br />
Entretanto, é sempre necessária a caracterização<br />
morfológica e citológica para<br />
confirmar a ocorrência da apomixia nas<br />
espécies. Os principais indicadores usados<br />
para identificação de apomixia em<br />
um determinado taxon e respectivos<br />
modos de detecção estão apresentados<br />
na tabela1. As referências indicam trabalhos<br />
onde se pode encontrar a descrição<br />
e o uso dos métodos ou de revisão.<br />
Marcadores moleculares ligados à<br />
apomixia vêm sendo procurados em<br />
diferentes espécies. Eles facilitarão a<br />
detecção precoce e em larga escala da<br />
apomixia em análises de híbridos. Alguns<br />
marcadores moleculares já foram<br />
identificados em populações de plantas<br />
de Pennisetum (Ozias-Akins et al., 1998)<br />
e Brachiaria (Pessino et al., 1999), porém<br />
ainda não foram encontrados marcadores<br />
universais para a apomixia.<br />
A possibilidade de se transferir a<br />
apomixia entre as plantas usando técnicas<br />
de Biologia Molecular requer, antes<br />
de tudo, conhecimento da natureza dos<br />
genes envolvidos. Diferentes linhas de<br />
pesquisa estão sendo desenvolvidas para<br />
o conhecimento básico da reprodução,<br />
principalmente dos eventos de desenvolvimento<br />
do gametófito feminino e da<br />
fecundação.<br />
Estratégias utilizadas para<br />
estudo da apomixia<br />
Embora a ocorrência natural da apomixia<br />
tenha sido descrita para muitas<br />
espécies, seu mecanismo ainda é pouco<br />
estudado. As abordagens utilizadas na<br />
identificação e na clonagem de genes<br />
vão desde a identificação de marcadores<br />
moleculares até a construção de bancos<br />
de cDNA e estratégias de mutagênese e<br />
técnicas de “differential display” (revisto<br />
em Pessino et al., 1999 e Savidan, 2000).<br />
Figura 2. A, Inflorescência de braquiária em antese. B, Detalhe do racemo<br />
durante a antese, mostrando as espiguetas em duas fileiras; C, Espigueta; D,<br />
Espigueta aberta, mostrando a flor hermafrodita (h) e a flor masculina (m); E, Flor<br />
hermafrodita dissecada, mostrando três anteras (an), o pistilo com o ovário (ov)<br />
e o estigma (es)<br />
Análises de populações segregantes<br />
em algumas culturas, derivadas de cruzamentos<br />
entre apomíticos e sexuais têm<br />
ajudado a desvendar a transmissão genética<br />
da apomixia e a produzir mapas<br />
do locus apomítico (Ozias-Akins et al.,<br />
1993,1998), baseado em marcadores<br />
moleculares. No entanto, a clonagem a<br />
partir desses mapeamentos ainda não foi<br />
obtida. A herança da apomixia foi estudada<br />
em poucas espécies devido às<br />
dificuldades desse tipo de estudo. Normalmente,<br />
as plantas apomíticas são<br />
poliplóides, a maioria é tetraplóide, enquanto<br />
as sexuais são diplóides (Carman,<br />
1997), o que inviabiliza os cruzamentos.<br />
Em Brachiaria por exemplo,<br />
alguns sexuais poliplóides foram obtidos<br />
artificialmente e vêm sendo usados<br />
em cruzamentos com apomíticos (Gobbe<br />
et al., 1981; Lutts et al., 1984; Pinheiro<br />
et al., 2000).<br />
Em Arabidopsis thaliana, uma planta<br />
modelo em biologia, na qual não ocorre<br />
apomixia, os genes responsáveis pelo<br />
desenvolvimento têm sido procurados<br />
através de mutações que alteram o desenvolvimento<br />
do gametófito feminino e<br />
da semente. Já foram isolados genes<br />
relacionados com a formação do embrião,<br />
incluindo aqueles capazes de produzir<br />
endosperma ou iniciar a formação<br />
do embrião, independentemente de haver<br />
fertilização. Os mutantes fis (fertilisation<br />
independent seeds) (Chaudhury et<br />
al., 1997), fie (fertilisation independent<br />
endosperm) (Ohad et al., 1996) e mea<br />
(medea) (Grossniklaus et al., 1998) apresentam<br />
diferentes estágios de desenvolvimento<br />
da semente sem fertilização.<br />
Porém, nenhuma dessas sementes<br />
mutantes maturam e desenvolvem<br />
plantas. Até hoje não existe ainda<br />
relato de mutantes que controlem todo<br />
o processo apomítico e produzam<br />
clones através de sementes.<br />
Resultados como esses revelam aspectos<br />
dos principais momentos de<br />
desenvolvimento de sementes e contribuem<br />
para o conhecimento da apomixia.<br />
Estudando-se a biologia de plantas<br />
naturalmente apomíticas, busca-se<br />
encontrar os genes responsáveis por<br />
esse modo de reprodução. Os apomíticos<br />
naturais são considerados difíceis<br />
experimentalmente, no entanto,<br />
suas características completas ainda<br />
não foram obtidas em mutantes. Em<br />
apomíticos, o gametófito feminino se<br />
desenvolve independentemente da<br />
meiose e o embrião se desenvolve sem<br />
ocorrer fecundação. As sementes resultantes<br />
do processo são viáveis.<br />
Utilização de plantas do gênero<br />
Brachiaria como sistema de<br />
estudo da apomixia<br />
O gênero Brachiaria (Trin.) Griseb.<br />
possui espécies que se reprodu-<br />
38 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
Figura 3. Esquema da reprodução sexual e apomítica (apospórica), que ocorre no gênero Brachiaria. Note que na<br />
reprodução apomítica, uma célula não reduzida do nucelo se desenvolve em um saco embrionário apospórico do tipo<br />
Panicum e que a formação do embrião ocorre sem a fertilização da oosfera. CMM, célula-mãe do megásporo, CMP, célulamãe<br />
do grão de pólen<br />
zem tanto por sexualidade quanto por<br />
apomixia, permitindo o estudo comparativo<br />
dos dois modos de reprodução. A<br />
inflorescência de braquiária é uma panícula<br />
com 2 ou até 5 racemos (Fig. 2A)<br />
que sustentam as espiguetas dispostas<br />
em duas fileiras (Fig. 2B). Cada espigueta<br />
(Fig. 2C) desenvolve duas flores, uma<br />
masculina e uma hermafrodita (Fig. 2D).<br />
A flor masculina tem 3 anteras e parece<br />
desenvolver grãos de pólen normais. A<br />
flor hermafrodita possui 3 anteras e um<br />
pistilo que contém um ovário e um só<br />
óvulo (Fig. 2E).<br />
O desenvolvimento do gametófito<br />
masculino e feminino e o do embrião de<br />
plantas apomíticas e sexuais de espécies<br />
de braquiária está esquematizado na<br />
figura 3. Na reprodução sexual, como<br />
acontece na maioria das angiospermas,<br />
uma célula do nucelo se diferencia da<br />
célula-mãe do megásporo (CMM) e passa<br />
por redução na meiose, formando 4<br />
megásporos reduzidos. Apenas um deles<br />
é funcional e se desenvolve após 3<br />
mitoses sucessivas no saco embrionário<br />
do tipo Polygonum, que contém 8 núcleos<br />
reduzidos, distribuídos em 7 células:<br />
2 sinérgides, uma oosfera, 3 antípodas e<br />
uma célula central, com 2 núcleos polares<br />
reduzidos. Próximo à antese, os 2<br />
núcleos polares se fundem para formar<br />
um núcleo diplóide. Após a antese,<br />
ocorre então a dupla fertilização, que<br />
consiste na fecundação da oosfera por<br />
uma das células espermáticas do grãode-pólen,<br />
formando o zigoto diplóide<br />
que se desenvolverá em embrião, e a<br />
fecundação do núcleo diplóide da célula<br />
central pela outra célula espermática,<br />
para formação do endosperma triplóide.<br />
As sementes formadas, por serem resultado<br />
de fertilização, darão origem a<br />
plantas genética e morfologicamente diferentes.<br />
A reprodução apomítica em braquiária<br />
segue o mecanismo de aposporia.<br />
Nos óvulos das plantas apomíticas, a<br />
CMM se diferencia e pode ou não completar<br />
a meiose, dependendo da espécie.<br />
Entretanto, durante a meiose ou ao final<br />
dela, a CMM ou os megásporos se degeneram.<br />
Nesse momento, células do nucelo<br />
(2n) se diferenciam e entram diretamente<br />
em 2 mitoses, formando sacos<br />
embrionários de 4 núcleos não-reduzidos<br />
do tipo Panicum. Esses sacos embrionários<br />
apresentam 2 sinérgides, uma<br />
oosfera e um núcleo polar. Podem ocorrer<br />
variações no número de núcleos,<br />
principalmente em óvulos que contenham<br />
muitos sacos embrionários. O desenvolvimento<br />
do embrião é autônomo<br />
e ocorre antes ou após a antese. Após a<br />
antese, apenas o núcleo da célula central<br />
é fertilizado para a formação do endosperma<br />
(3n). Eventualmente, e dependendo<br />
de cada espécie, a CMM completa<br />
a meiose, originando um saco embrionário<br />
meiótico, que pode ser visualizado<br />
sozinho ou acompanhado de sacos<br />
apospóricos, num mesmo óvulo (Valle,<br />
1990; Dusi e Willemse, 1999; Araújo et al.,<br />
2000).<br />
Na formação do gametófito masculi-<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 39
Figura 4. Esquema representativo da técnica de DDRT-PCR em duas amostras de RNA de ovários de plantas sexual e<br />
apomítica. A. cDNA é sintetizado das subpopulações de RNAs poly(A + ), com um dos diferentes primers de ancoragem<br />
T 11<br />
XY, no exemplo T 11<br />
GG. B. Amplificação dos cDNAs com T 11<br />
GG e um dos primers aleatórios, em presença de dATP<br />
marcado radioativamente. C. Separação dos fragmentos provenientes de ovários de plantas sexuais (S) e apomíticas<br />
(A) em gel de seqüenciamento e detecção por autoradiografia. As setas indicam os fragmentos diferenciais<br />
no, tanto na sexualidade quanto na<br />
apomixia, ocorre redução meiótica, com<br />
formação de micrósporos reduzidos que,<br />
por sua vez, se desenvolvem em grãosde-pólen<br />
que contém três células reduzidas,<br />
uma vegetativa e duas células<br />
espermáticas. Dependendo da espécie,<br />
plantas apomíticas podem apresentar<br />
níveis maiores de esterilidade do grãode-pólen<br />
quando comparadas com as<br />
plantas sexuais (Asker e Jerling, 1992).<br />
Para compreender o mecanismo da<br />
apomixia e poder levá-lo a outras espécies,<br />
utilizando ferramentas da biotecnologia,<br />
a Embrapa desenvolve estudos e<br />
trabalhos sobre a formação do embrião<br />
apomítico (Alves, 2001), sobre o desenvolvimento<br />
morfológico dos sacos embrionários<br />
das plantas apomíticas e sexuais<br />
de Brachiaria (Dusi, 1999, Araújo,<br />
2000), a identificação de marcadores<br />
moleculares e a duplicação de cromossomos<br />
de plantas sexuais por colchicina<br />
(Pinheiro, 2000) além da transformação<br />
direta de plantas através de<br />
biobalística (Lentini, 1999). Análises<br />
em progênie de cruzamentos interespecíficos<br />
sugerem que a herança da<br />
apomixia é dominante e ligada a um<br />
único locus genético (Valle et al., 1994),<br />
o que fundamenta a procura de genes<br />
envolvidos no processo (Rodrigues,<br />
2001).<br />
40 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
Utilização da técnica de<br />
Differential display reverse transcriptase<br />
PCR (DDRT-PCR)<br />
O método “differential display reverse<br />
transcriptase PCR” (DDRT-PCR),<br />
descrito por Liang e Pardee (1992), é<br />
uma técnica que vem sendo utilizada<br />
com sucesso na detecção do perfil de<br />
expressão gênica em tecidos ou células<br />
eucarióticas. Essa técnica está sendo<br />
empregada em análises do desenvolvimento<br />
vegetal, como o isolamento do<br />
gene NAP de A thaliana; genes expressos<br />
durante o ciclo celular, embriogênese,<br />
amadurecimento do fruto e desenvolvimento<br />
de sementes, entre outros<br />
(revisado por Kuhn, 2001). Também<br />
em apomíticos, algumas seqüências<br />
relacionadas com a reprodução sexual<br />
ou com a apomítica foram obtidas<br />
a partir de ovários maduros de Pennisetum<br />
ciliare (Vielle-Calzada et al., 1996).<br />
Estudo semelhante foi conduzido usando<br />
ovários maduros de híbridos interespecíficos<br />
de Brachiaria ruziziensis e B.<br />
brizantha (Leblanc et al. 1997). cDNA<br />
diferencialmente expresso foi isolado<br />
de flores de plantas apomíticas e sexuais<br />
de Paspalum notatum (Pessino et al.,<br />
2001). Em espécies apomítica e sexual<br />
de B. decumbens foram isoladas seqüências<br />
de dois estágios de desenvolvimento<br />
do óvulo com apenas quatro<br />
combinações de primers (Dusi 2001).<br />
Embora apresente limitações, como<br />
amplificação de regiões 3’ não-codantes<br />
e uma tendência de amplificar genes<br />
mais abundantes (McClelland et al. 1995),<br />
essa técnica tem sido bastante usada,<br />
pois é sensível o suficiente para identificar<br />
mudanças nos níveis de RNA (Wan<br />
et al., 1996) necessitando apenas de<br />
pequena quantidade para as análises,<br />
fator determinante em plantas cujos<br />
ovários são pequenos e de difícil acesso,<br />
como em Brachiaria (Fig. 2).<br />
DDRT-PCR baseia-se na produção<br />
de uma população de fragmentos de<br />
cDNAs de diferentes tamanhos pela<br />
amplificação de subpopulações específicas<br />
de mRNAs com a utilização de<br />
transcriptase reversa e PCR (Fig. 4). Em<br />
resumo, a partir de uma pequena quantidade<br />
de RNA total, é sintetizada a<br />
primeira fita de cDNA em uma reação<br />
de transcrição reversa da população<br />
total de mRNA em subgrupos com um<br />
dos 12 primers de ancoragem, T 11<br />
XY,<br />
que reconhecem diferentes frações da<br />
população de mRNA. O cDNA resultante<br />
é então amplificado por PCR, utilizando-se<br />
o mesmo primer de ancoragem<br />
T 11<br />
XY e um pequeno primer aleatório<br />
na presença de dATP marcado. Os<br />
produtos marcados são separados num<br />
gel desnaturante de seqüenciamento<br />
de DNA e visualizados por autoradiografia.<br />
O procedimento é igual e simultâneo<br />
para os RNAs das amostras que<br />
serão comparadas. Assim, num mesmo<br />
gel, é possível visualizar as bandas<br />
contendo fragmentos de cDNA presentes<br />
em uma amostra e ausentes na<br />
outra. Esses fragmentos podem ser isolados,<br />
reamplificados, clonados e caracterizados.<br />
Para identificar os genes envolvidos<br />
na reprodução apomítica de Brachiaria<br />
brizantha, a comparação do perfil<br />
de expressão gênica, utilizando-se a<br />
técnica de DDRT-PCR, de ovários de<br />
plantas apomíticas e sexuais em diferentes<br />
estágios de desenvolvimento do<br />
óvulo está sendo realizada.<br />
Considerações Finais<br />
O potencial da engenharia genética<br />
vegetal vai muito além da produção de<br />
plantas com tolerância a herbicidas ou<br />
com resistência a insetos, já existentes<br />
atualmente no mercado internacional.<br />
Novos genes estão sendo procurados<br />
para aumentar a qualidade de alimentos,<br />
reduzir custos e aumentar a produção<br />
agrícola. A apomixia vem ao encontro<br />
dessa perspectiva, contando com<br />
ferramentas resultantes da pesquisa em<br />
biologia molecular e celular.<br />
Os pesquisadores na área têm manifestado<br />
preocupação com as restrições<br />
ao acesso à biotecnologia para os<br />
agricultores, principalmente por questões<br />
econômicas. No caso da apomixia,<br />
os pequenos produtores serão diretamente<br />
beneficiados pela possibilidade<br />
de replantar as sementes produzidas de<br />
híbridos, ou de desenvolver variedades<br />
adaptadas a condições locais particulares<br />
e produzir sementes. Com essa<br />
preocupação, foi elaborado um documento<br />
de intenção, endossado por diversos<br />
pesquisadores em apomixia,<br />
(http:// billie. btny. purdue. edu /<br />
apomixis/) para que o acesso a ela seja<br />
amplo e igualitário. Investimento considerável<br />
vem sendo feito pelas empresas<br />
privadas, apoiando e desenvolvendo<br />
pesquisa de ponta em apomixia nos<br />
Estados Unidos e Europa. No Brasil, a<br />
Embrapa estuda apomixia em Brachiaria.<br />
Contamos com um programa de<br />
melhoramento, onde existe uma coleção<br />
de mais de 300 acessos já caracterizados,<br />
e desenvolvemos pesquisa relacionada<br />
com a sua biologia celular e<br />
molecular, enfocando aspectos da reprodução.<br />
Consideramos de crucial importância<br />
que as instituições públicas,<br />
principalmente de países em desenvolvimento<br />
como o nosso, assegurem o<br />
acesso a essa tecnologia, desenvolvendo<br />
novos enfoques de pesquisa para<br />
conhecimento dos mecanismos da apomixia.<br />
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42 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
FUNDAÇÃO GIACOMETTI<br />
(Repete fotolito que saiu na pág. 21 , edição 24)<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 43
Bases Fisiológicas e Genéticas da<br />
Pesquisa<br />
REGENERAÇÃO DE PLANTAS IN VITRO<br />
Fotos e ilustrações cedidas pelo autor<br />
Um conhecimento útil para o desenvolvimento de protocolos biotecnológicos<br />
Lázaro E. P. Peres<br />
Prof. Dr. – Fisiologia Vegetal – Esalq/USP<br />
Depto. de Ciencias Biológicas - LCB<br />
lazaropp@esalq.usp.br<br />
http://www.ciagri.usp.br/~lazaropp<br />
Introdução<br />
Apesar da extensa utilização da<br />
regeneração de plantas in vitro em<br />
Figura 1. Adaptação do modelo de Tran Thanh Van (1973) para o<br />
entendimento da determinação celular. Explantes retirados de regiões<br />
reprodutivas estão “induzidos” e “determinados” para originar botões<br />
florais, e explantes retirados de regiões vegetativas originam gemas<br />
caulinares quando cultivados in vitro<br />
processos biotecnológicos, pouco se<br />
conhece, até o momento, sobre os<br />
mecanismos envolvidos na aquisição<br />
de competência para regeneração.<br />
Pode-se dizer que, virtualmente, todos<br />
os processos tecnológicos são derivações<br />
de conhecimentos básicos adquiridos<br />
nos mais variados campos da<br />
ciência. A <strong>Biotecnologia</strong> Vegetal tem<br />
seu corpo de conhecimentos amplamente<br />
apoiado em estudos de Fisiologia<br />
e Genética Vegetal, e, mais especificamente,<br />
em uma de suas importantes<br />
subáreas – o Desenvolvimento.<br />
O termo desenvolvimento referese<br />
ao crescimento integrado das várias<br />
partes de um ser pluricelular envolvendo<br />
basicamente, os processos de<br />
divisão, expansão e diferenciação celular<br />
e a conseqüente formação de<br />
tecidos, órgãos e sistemas. Plantas e<br />
animais possuem notáveis diferenças<br />
quanto ao tipo de desenvolvimento.<br />
Enquanto praticamente todo o desenvolvimento<br />
dos animais se processa<br />
durante uma etapa denominada embriogênese,<br />
nas plantas essa etapa se<br />
limita à formação de um eixo contendo<br />
os meristemas caulinar e radicular em<br />
pólos opostos. Por meio das atividades<br />
desses meristemas, as plantas realizam<br />
um desenvolvimento pós-embrionário,<br />
ou seja, continuam formando órgãos<br />
(caules, raízes, folhas, flores e<br />
frutos) ao longo de todo o seu ciclo de<br />
vida. Esse tipo de desenvolvimento<br />
constitui uma estratégia para que os<br />
vegetais possam se adaptar às variações<br />
no ambiente, já que são organismos<br />
sésseis e, portanto, não podem<br />
utilizar a locomoção para buscar ambientes<br />
favoráveis. Assim, quando um<br />
vegetal encontra uma condição desfavorável<br />
(p. ex: falta de luz) ele pode<br />
lançar mão de seu desenvolvimento<br />
flexível para formar novos órgãos (p.<br />
ex: ramos e folhas) na direção em que<br />
sua sobrevivência e reprodução fiquem<br />
garantidas.<br />
Uma das principais características<br />
do desenvolvimento pós-embrionário<br />
dos vegetais é justamente a separação<br />
temporal entre os processos de embriogênese<br />
e organogênese. Como se<br />
44 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
Figura 2. Exemplo de mutação homeótica em vegetais. A rosa da direita é o<br />
resultado de uma mutação homeótica (transformação de um órgão em outro),<br />
onde os estames se converteram em pétalas. As diferenças na coloração<br />
representam mutações em genes relacionados com a síntese de pigmentos<br />
verá adiante, a separação temporal<br />
entre embriogênese e organogênese<br />
torna-se relevante quando se procura<br />
regenerar plantas in vitro, pois o que<br />
se faz nada mais é do que tentar<br />
reproduzir essas duas etapas em condições<br />
artificiais. Sendo assim, como o<br />
meristema caulinar pode dar origem a<br />
um novo ramo e, nesse, novas raízes<br />
podem ser induzidas, é relativamente<br />
fácil obter uma multiplicação clonal<br />
em plantas. Já nos animais, a propagação<br />
clonal é muito rara e em condições<br />
artificiais só é possível através de um<br />
controle estrito da embriogênese. Como<br />
conseqüência, enquanto as plantas são<br />
clonadas, desde tempos imemoriais,<br />
por processos muitos simples como a<br />
estaquia e a enxertia, a clonagem de<br />
animais é extremamente difícil e, no<br />
caso de mamíferos, só foi obtida recentemente<br />
por ocasião do nascimento da<br />
ovelha Dolly (Wilnut et al., 1997).<br />
O controle hormonal do<br />
desenvolvimento de<br />
caules e raízes<br />
Assim como nos animais, o desenvolvimento<br />
das plantas é fundamentalmente<br />
controlado por substâncias<br />
reguladoras de crescimento ou hormônios.<br />
Desse modo, apesar de as descobertas<br />
feitas até a década de 30, principalmente<br />
no campo da nutrição mineral,<br />
terem possibilitado o crescimento<br />
de órgãos isolados in vitro (White,<br />
1934), a indução deles em condições<br />
artificiais só foi possível a partir de um<br />
conhecimento mais aprofundado acerca<br />
da natureza dos hormônios vegetais.<br />
Durante a década de 50, a equipe<br />
do Dr. Folk Skoog fez descobertas que<br />
foram fundamentais para a indução e<br />
manutenção da organogênese in vitro.<br />
Naquela época já se conhecia o<br />
ácido indolil-3-acético (AIA), uma auxina<br />
isolada em 1934. O AIA era utilizado<br />
em meios nutritivos juntamente<br />
com constituintes complexos, como<br />
extrato de levedura e água de coco, os<br />
quais pareciam conter algo também<br />
essencial à organogênese. Essa substância<br />
essencial para a divisão celular<br />
foi finalmente isolada por Carlos Miller<br />
em 1955 e denominada citocinina. A<br />
chamada citocinina, assim denominada<br />
por promover, juntamente com a<br />
auxina, a citocinese, propiciou, finalmente,<br />
as bases da organogênese in<br />
vitro. Desse modo, em 1957, Carlos<br />
Miller e Skoog demonstraram que a<br />
formação de dois órgãos in vitro, caules<br />
e raízes, era controlada pelas concentrações<br />
relativas entre auxina e<br />
citocinina. Meios de cultura contendo<br />
um balanço auxina/ citocinina favorável<br />
à auxina promoveram a formação<br />
de raízes em calo (um aglomerado de<br />
células) de tabaco (Nicotiana tabacum).<br />
De modo inverso, balanços hormonais<br />
favoráveis à citocinina fizeram<br />
com que fossem formadas gemas caulinares.<br />
Finalmente, balanços hormonais<br />
intermediários não levaram a uma<br />
diferenciação das células e sim a uma<br />
maior multiplicação delas e conseqüente<br />
crescimento do calo (Skoog & Miller,<br />
1957). Apesar desses resultados terem<br />
sido obtidos ainda na década de 50,<br />
eles são plenamente corroborados em<br />
trabalhos mais recentes, onde se altera<br />
o conteúdo endógeno de auxina e<br />
citocininas em plantas transgênicas expressando<br />
genes bacterianos para produção<br />
desses hormônios. A exemplo<br />
disso, plantas de tabaco expressando o<br />
gene ipt de Agrobacterium tumefaciens<br />
possuem elevado nível endógeno<br />
de citocininas e a conseqüente intensa<br />
formação de gemas caulinares ex vitro<br />
e in vitro. De modo inverso, a expressão<br />
dos genes bacterianos iaaH e iaaM,<br />
envolvidos na biossíntese de auxina,<br />
provoca ampla formação de raízes em<br />
plantas transgênicas. Surpreendentemente,<br />
quando se cruzam os dois tipos<br />
de transgênicos, o híbrido F1 tende a<br />
apresentar fenótipo igual ao tipo não<br />
transgênico. Esses estudos confirmam<br />
os resultados de Skoog e Miller (1957),<br />
os quais postularam que as concentrações<br />
absolutas de auxina e citocininas<br />
são menos importantes que suas concentrações<br />
relativas na indução de organogênese.<br />
Diferenças entre organogênese<br />
e embriogênese in vitro e tipos<br />
de organogênese<br />
Como dito anteriormente, o desenvolvimento<br />
das plantas é dividido entre<br />
organogênese e embriogênese,<br />
sendo que essa característica se reflete<br />
no processo de regeneração in vitro.<br />
A princípio, a formação de embriões<br />
a partir de tecidos somáticos in<br />
vitro imita a embriogênese zigótica,<br />
que ocorre nos órgãos reprodutivos<br />
das plantas. Desse modo, tanto a embriogênese<br />
somática quanto a zigótica<br />
culminam na formação de uma planta<br />
inteira a partir de uma única célula.<br />
Contudo, em certos explantes, os<br />
embriões somáticos formam-se a partir<br />
da diferenciação conjunta de grupos<br />
de células embriogênicas (Williams &<br />
Maheswaran, 1986). Como a organogênese<br />
normalmente envolve a regeneração<br />
de gemas a partir de grupos<br />
de células meristemáticas, há casos em<br />
que é difícil determinar se o processo<br />
de regeneração envolve organogênese<br />
ou embriogênese. Alguns critérios<br />
para a determinação do tipo de regeneração<br />
são apresentados a seguir:<br />
I. os embriões somáticos possuem<br />
sistema vascular fechado<br />
sem conexão com o<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 45
sistema vascular do explante<br />
inicial, como ocorre na<br />
organogênese;<br />
II.a estrutura formada na embriogênese<br />
é bipolar (eixo<br />
com os meristemas caulinares<br />
e radiculares). Na organogênese<br />
são formadas gemas<br />
caulinares que, mais<br />
tarde, darão origem a raízes<br />
adventícias.<br />
Nos dois processos de regeneração,<br />
há necessidade do estabelecimento<br />
de células competentes no explante<br />
inicial. Tanto as células meristemáticas,<br />
que darão origem às gemas caulinares,<br />
quanto as células embriogênicas<br />
podem se formar posteriormente ou<br />
podem estar preexistentes no explante.<br />
No caso do explante já possuir<br />
células meristemáticas ou embriogênicas,<br />
ocorrerá organogênese direta e<br />
embriogênese direta, respectivamente.<br />
Quando há necessidade de desdiferenciação<br />
do explante, com a conseqüente<br />
formação de calo prévia ao<br />
estabelecimento das células competentes,<br />
ocorrerá organogênese ou embriogênese<br />
indireta. Por simplificação,<br />
a seguir iremos considerar somente o<br />
processo de organogênese in vitro<br />
(Consultar a Revista <strong>Biotecnologia</strong> Ed.<br />
7 para mais informações sobre embriogênese<br />
somática).<br />
O processo de indução e manutenção<br />
da organogênese in vitro<br />
A obtenção de organogênese in<br />
vitro é atualmente um processo empírico<br />
onde são testados para cada espécie,<br />
ou mesmo para cada variedade<br />
dentro de uma espécie, as seguintes<br />
condições: I) fonte de explante; II)<br />
composição mineral do meio de cultura<br />
(e também suas vitaminas e fontes<br />
de carbono); III) balanço hormonal e<br />
IV) condições ambientais.<br />
Embora seja um processo empírico,<br />
o desenvolvimento de um protocolo<br />
para organogênese in vitro será<br />
facilitado, e, inclusive, o número de<br />
variáveis a serem testadas diminuirá,<br />
se forem seguidos alguns princípios e<br />
conhecimentos fisiológicos. Desse<br />
modo, quanto à fonte de explante,<br />
Figura 3. Diferenças genéticas quanto à capacidade de regeneração em<br />
espécies de Lycopersicon. A – raiz gemífera de L. hirsutum. A capacidade de<br />
formar gemas caulinares em raízes ex vitro se reflete na competência para<br />
regeneração in vitro a partir desse tipo de explante (Peres et al., 2001). B –<br />
Elevada capacidade de regeneração de L. pimpinellifolium WV700 a partir<br />
de explantes caulinares, a qual é controlada por dois genes principais (Faria<br />
& Illg, 1996)<br />
normalmente haverá maior sucesso se<br />
forem utilizados tecidos jovens, os quais<br />
possuem maior competência organogenética.<br />
Explantes que contém tecidos<br />
meristemáticos são preferidos e<br />
eles são encontrados em gemas caulinares<br />
apicais e axilares. Uma ampla<br />
fonte de tecidos meristemáticos, normalmente<br />
negligenciada, são as raízes,<br />
as quais possuem tecidos meristemáticos<br />
nos ápices, além de o próprio<br />
periciclo ser um tecido meristemático.<br />
O fato de as raízes estarem em contato<br />
com o solo torna impraticável sua desinfestação,<br />
sendo elas utilizadas somente<br />
a partir de plantas preestabelecidas<br />
in vitro. Outro fator limitante é<br />
que algumas espécies parece ter raízes<br />
com extrema determinação para<br />
continuarem se desenvolvendo como<br />
raízes, sendo difícil nelas a formação de<br />
gemas caulinares.<br />
Diferenças significativas na capacidade<br />
organogenética in vitro são encontradas<br />
ao se variar a composição<br />
mineral, as vitaminas e as fontes de<br />
açúcares dos meios de cultura. Contudo,<br />
os componentes mais críticos adicionados<br />
ao meio de cultura são os<br />
hormônios vegetais. Como foi visto<br />
anteriormente, os principais hormônios<br />
utilizados na organogênese são as<br />
auxinas e as citocininas. Outras classes<br />
de hormônios vegetais, como as giberelinas,<br />
o etileno e o ácido abscísico ou<br />
mesmo substâncias que não sejam propriamente<br />
hormônios, como poliaminas,<br />
ácido salicílico e jasmonatos também<br />
são, muitas vezes, utilizados em<br />
processos de regeneração por organogênese.<br />
Existe considerável número<br />
de evidências de que o efeito dessas<br />
substâncias é indireto, através da alteração<br />
do balanço auxina/citocinina<br />
endógeno. O próprio efeito das auxinas<br />
e das citocininas aplicadas ao meio<br />
de cultura parece ser, na verdade, o<br />
reflexo dessas substâncias alterando os<br />
balanços endógenos de auxina/citocininas<br />
nas células vegetais (Peres et al.,<br />
1999). Esse efeito indireto é, inclusive,<br />
muito comum quando se utilizam auxinas<br />
sintéticas, como o 2,4 D (ácido 2,4<br />
diclorofenoxiacético), o ANA (ácido<br />
naftaleno acético), ou citocininas sintéticas<br />
como a benzilaminopurina (BAP),<br />
a cinetina e, sobretudo o thidiazuron.<br />
Essa última “citocinina” não possui a<br />
estrutura comum das citocininas, sendo<br />
um difeniluréia ao invés de possuir<br />
um anel purínico característico do BAP,<br />
da cinetina, da isopentenil adenina (iP)<br />
e da zeatina (Z). Trabalhos realizados<br />
por Van Staden e também por David<br />
Letham fornecem evidências de que o<br />
thidiazuron pode atuar inibindo a enzima<br />
citocinina oxidase, a principal enzima<br />
envolvida na degradação de citocininas<br />
endógenas como Z, iP e seus<br />
derivados.<br />
Finalmente, as condições ambientais<br />
influenciam notavelmente a organogênese<br />
in vitro. Normalmente as<br />
salas de cultivo são mantidas em temperatura<br />
ambiente (25° C), sendo a luz<br />
o fator ambiental que parece mais<br />
afetar a organogênese. Muitos protocolos<br />
de regeneração são conduzidos<br />
no escuro, sobretudo para evitar a<br />
oxidação do explante na fase de estabelecimento.<br />
Esse procedimento se<br />
baseia no fato de a enzima chave da<br />
46 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
produção de compostos fenólicos, a<br />
fenilalaninamonioliase, ser dependente<br />
da luz. A luz afeta a morfogênese de<br />
modo mediado por fotoreceptores<br />
como o fitocromo. Um experimento<br />
que evidencia a relevância da fotomorfogênese<br />
na organogênese in vitro é a<br />
constatação de que o mutante aurea<br />
de tomateiro, o qual é defectivo para o<br />
gene que codifica uma enzima na<br />
formação do cromóforo do fitocromo,<br />
praticamente não forma gemas in vitro<br />
(Lercari et al., 1999).<br />
Apesar de serem seguidos princípios<br />
básicos e de se testarem empiricamente<br />
diversos parâmetros, muitas vezes<br />
não se consegue a organogênese<br />
in vitro. Os fatores associados a esse<br />
insucesso serão discutidos a seguir.<br />
Fatores associados à falha na<br />
indução de organogênese<br />
in vitro<br />
Christianson & Warnick dividiram o<br />
processo de organogênese in vitro nas<br />
seguintes etapas: 1) desdiferenciação;<br />
2) aquisição de competência; 3) indução;<br />
4) determinação; 5) diferenciação<br />
e 6) formação do órgão (Christianson &<br />
Warnick, 1988). Essa divisão do processo<br />
em etapas permitiu a esses autores<br />
postularem que, quando um explante<br />
falha em desenvolver organogênese<br />
in vitro, essa falha se dá normalmente<br />
na etapa de aquisição de<br />
competência. Contudo, pouco se conhece,<br />
até o momento, sobre os mecanismos<br />
envolvidos na aquisição de<br />
competência para organogênese (Kerbauy,<br />
1999).<br />
A aquisição de competência para<br />
organogênese<br />
No processo de organogênese, a<br />
competência seria entendida como a<br />
capacidade de responder ao estímulo<br />
hormonal necessário à indução da formação<br />
do órgão. A falha de competência<br />
de um tecido poderia refletir, portanto,<br />
a falta de receptores para a<br />
classe hormonal que irá induzir o processo<br />
organogenético (Carry et al.,<br />
2001). Os recentes estudos relacionados<br />
com o isolamento de genes correspondentes<br />
a receptores, principalmente<br />
de citocininas (Inoue et al., 2000),<br />
certamente contribuirão para um melhor<br />
entendimento do processo de<br />
aquisição de competência organogenética.<br />
Um outro fator associado<br />
à falta de competência<br />
organogenética seria o próprio<br />
metabolismo hormonal<br />
do explante, pois é ele que<br />
determinará, em última análise,<br />
o balanço hormonal endógeno<br />
para indução da organogênese<br />
(Peres & Kerbauy,<br />
1999). Desse modo,<br />
explantes com alta atividade<br />
de citocinina oxidase,<br />
enzima que degrada citocininas,<br />
podem não chegar a<br />
um balanço auxina/citocinina<br />
endógeno indutor da formação<br />
de gemas, mesmo<br />
que sejam adicionadas elevadas<br />
concentrações de citocininas<br />
ao meio de cultura.<br />
De modo semelhante,<br />
explantes com elevada atividade<br />
de degradação oxidativa<br />
ou de inativação de<br />
auxina por conjugação com<br />
açúcares e aminoácidos podem<br />
falhar na indução de<br />
raízes adventícias. O efeito<br />
diferencial dos vários tipos<br />
de auxinas e citocininas<br />
quando aplicados ao meio<br />
de cultura pode ser também<br />
correlacionado com o fato<br />
de cada um deles interferir<br />
de modo particular no metabolismo<br />
hormonal endógeno.<br />
Finalmente, explantes<br />
comprometidos para vias<br />
particulares de desenvolvimento<br />
(elevada determinação<br />
para formar um órgão<br />
específico) podem falhar na alteração<br />
dessa via para assumir uma outra. Um<br />
estudo clássico sobre determinação<br />
celular foi apresentado por Mary Tran<br />
Thanh Van ao demonstrar que explantes<br />
epidérmicos de pedúnculo floral<br />
de tabaco tendem a formar novas flores<br />
in vitro (Tran Thanh Van, 1973;<br />
Fig. 1). De modo geral, pode-se dizer<br />
que, quanto maior for a determinação<br />
de um explante para uma via de desenvolvimento<br />
(por exemplo, a formação<br />
de raízes) menor será a competência<br />
para formar outro tipo de órgão<br />
(por exemplo, gemas caulinares). Um<br />
exemplo de tecido com baixa determinação<br />
e elevada competência tanto<br />
para formação de raízes quanto de<br />
Figura 4. Reinterpretação da hipótese<br />
proposta por Christianson & Warnick (1988)<br />
para o entendimento da competência<br />
organogenética. Os possíveis estágios onde<br />
atuariam diferentes genes que influenciam a<br />
regeneração são indicados em vermelho. Os<br />
“genes de sensibilidade” seriam aqueles<br />
envolvidos na percepção (codificação de<br />
receptores) e transdução do sinal para auxinas<br />
(AIA, 2,4D) e citocininas (Cks). Os genes de<br />
metabolismo hormonal (que codificam enzimas<br />
de biossíntese e/ou degradação de hormônios)<br />
são os responsáveis pelo estabelecimento de<br />
um balanço hormonal endógeno necessário<br />
para a regeneração. Genes homeóticos<br />
controlam a formação de órgãos e, portanto,<br />
podem estar associados à regeneração de<br />
novas gemas caulinares ou raízes. A expressão<br />
desfavorável de qualquer uma dessas classes<br />
de genes seria suficiente para impedir a<br />
regeneração de um determinado explante<br />
gemas caulinares é o calo. O calo é<br />
considerado um tecido indiferenciado,<br />
ou pouco diferenciado, podendo ser<br />
induzido, tornando-se determinado e,<br />
finalmente sofrer diferenciação para<br />
formar gemas caulinares ou raízes, conforme<br />
o balanço hormonal aplicado<br />
(Skoog & Miller, 1957). Tanto a aquisição<br />
de “competência” quanto a “determinação”<br />
são reflexos da expressão<br />
diferencial de genes envolvidos nos<br />
processos de desenvolvimento. Resta<br />
saber, portanto, que tipo de genes<br />
seriam esses.<br />
Genes envolvidos na capacidade<br />
de regeneração in vitro<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 47
Como visto acima, a regeneração<br />
de um explante depende tanto da<br />
sensibilidade quanto do metabolismo<br />
para uma determinada classe hormonal.<br />
Desse modo, genes associados à<br />
capacidade de regeneração poderiam<br />
ser os próprios genes que codificam<br />
componentes da via de transdução<br />
de sinal ou as enzimas do metabolismo<br />
hormonal. Além disso, para que<br />
um tecido se diferencie em um determinado<br />
órgão, faz-se necessário que<br />
ele possua a capacidade de expressão<br />
dos chamados “genes mestres”,<br />
que coordenam a expressão dos vários<br />
genes que serão requeridos durante<br />
a organogênese. Nesse sentido,<br />
explantes que falham em formar um<br />
determinado órgão in vitro, por estarem<br />
“determinados”, podem ter perdido<br />
a capacidade de expressão de<br />
“genes mestres” durante um processo<br />
intenso de diferenciação sofrido<br />
anteriormente. Um exemplo de gene<br />
mestre que pode estar relacionado<br />
com a capacidade de regeneração é<br />
KNOTTED1 (Smith et. al., 1995), o<br />
qual se expressa em caules, mas não<br />
em explantes radiculares. O gene<br />
KNOTTED1 é considerado um gene<br />
homeótico, uma classe de genes que,<br />
ao sofrerem mutação, podem provocar<br />
a formação de órgãos em locais<br />
não convencionais. O primeiro gene<br />
homeótico descoberto foi ANTENNA-<br />
PEDIA, um gene da mosca Drosophila,<br />
cuja mutação provoca formação de<br />
pernas na cabeça no lugar das antenas.<br />
Em plantas, uma mutação equivalente<br />
é a transformação de estames<br />
em pétalas, produzindo as conhecidas<br />
rosas dobradas (Fig 2).<br />
É interessante notar que em certas<br />
espécies existem diferenças na capacidade<br />
de regeneração in vitro que<br />
são controladas por poucos genes.<br />
Um modelo promissor é o tomateiro<br />
(Lycopersicon esculentum), cuja alta<br />
capacidade de regeneração de algumas<br />
espécies selvagens (Fig. 3) parece<br />
ser controlada por um ou dois<br />
genes dominantes (Koornnef et al.,<br />
1993; Faria & Ilgg, 1996; Peres et al.,<br />
2001). Infelizmente, ainda não temos<br />
informações acerca da função de tais<br />
genes. Contudo, diante do exposto<br />
acima, é razoável especular que esses<br />
“genes de regeneração” podem ser<br />
“genes mestres” ou mesmo estar relacionados<br />
com a presença de receptores<br />
para hormônios vegetais e/ou<br />
podem codificar alguma enzima chave<br />
no metabolismo hormonal. Os<br />
possíveis locais onde os genes relacionados<br />
com a regeneração in vitro<br />
poderiam atuar são apresentados na<br />
Figura 4, adaptando-se o esquema<br />
proposto originalmente por Christianson<br />
& Warnick (1988). No futuro, o<br />
conhecimento aprofundado sobre a<br />
sensibilidade, o metabolismo hormonal<br />
e seu efeito na indução e/ou<br />
repressão de genes mestres que controlam<br />
a formação de gemas caulinares<br />
e raízes facilitará o entendimento<br />
da organogênese in vitro e suas aplicações<br />
biotecnológicas.<br />
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in vitro. Symp. Soc. Exp. Biol.<br />
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SMITH, L. G.; JACKSON, D. & HAKE, S.<br />
Expression of knotted1 marks<br />
shoot meristem formation during<br />
maize embryogenesis. Developmental<br />
Genetics, 16: 344-348,<br />
1995.<br />
TRAN THANH VAN, M. Direct flower<br />
neoformation from superficial tissue<br />
of small explants of Nicotiana<br />
tabacum L. Planta, 115: 87-92,<br />
1973.<br />
WHITE, P. R. Potentially unlimited growth<br />
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a liquid medium. Plant Physiol.<br />
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WILLIAMS, E. G. & MAHESWARAN, G.<br />
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of cell as an embryogenic group.<br />
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fetal and adult mammalian cells.<br />
Nature, 385: 810- 813, 1997.<br />
48 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
Vitor<br />
A produção de animais transgênicos em série da Unifesp já começou. Além de Vitor, o<br />
primeiro camundongo transgênico brasileiro criado a partir da técnica de injeção pronuclear,<br />
quatro outros camundongos alterados geneticamente foram criados para atender pedidos<br />
de pesquisadores de outras instituições nacionais e até do exterior.<br />
Vitor é pai de sete filhotes, que nasceram no dia 27 de março. Os pequenos camundongos<br />
mantêm duplicado o gene receptor B2 da bradicinina, uma substância associada a processos<br />
inflamatórios e hipertensivos. “Todos os filhotes mantém as alterações genéticas”, afirma<br />
o diretor técnico do Laboratório de Animais Transgênicos do Centro de Desenvolvimento<br />
de Modelos Experimentais em Medicina e Biologia (Cedeme), João Bosco Pesquero.<br />
Outras duas camundongas, Helena e Satiko, nasceram no dia 25 e 27 de fevereiro com<br />
alterações genéticas diferentes das de Vitor, mas com o mesmo objetivo de servir a estudo<br />
sobre problemas cardíacos e hipertensão. “Elas têm duplicada a enzima tonina, reponsável A mãe e seus filhotes<br />
pela produção de substâncias que aumentam a pressão arterial”, explica Pesquero. A<br />
alteração foi feita a pedido de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais.<br />
Outro animal com alterações genéticas foi encomendado por pesquisadores da Instituto Max Delbruck, de Berlim, na<br />
Alemanha. Segundo Pesquero, estão adiantados os contatos para um trabalho em conjunto com a Embrapa para produzir<br />
novo animal trasngênicos. “Temos condição para atender novos pedidos e já estamos adiantados no contato com<br />
pesquisadores do Brasil e de outros países.”<br />
Na universidade, Pesquero e a pesquisadora Beatriz Castilho, do departamento de Microbiologia, têm colaborado para<br />
produzir novas cópias de material genético exógeno a ser acrescentando à cadeia do DNA de novos camundongos. “É<br />
fundamental conquistarmos a possibilidade de criar novas alterações que possam ajudar no estudo de doenças”, afirmou<br />
Beatriz.<br />
A técnica de microinjeção pronuclear empregada pelos pesquisadores do Cedeme foi adotada por ser a mais simples e<br />
com melhores resultados, afirma Pesquero.<br />
Com essa técnica, um fragmento de DNA inserido no genoma do animal que passa a apresentar, então, um ‘ganho de<br />
função’. Esse processo permite um controle mais apurado que o da técnica de agrupamento, além de permitir uma produção<br />
em série de animais transgênicos.<br />
A constatação de que os filhotes são ou não transgênicos é feita três semanas após o nascimento. Um pequeno pedaço<br />
de tecido do animal é submetido a uma análise genética para avaliar a presença dos genes modificados.<br />
O projeto Vitor, o camundongo transgênico, vai permitir uma economia de 90% na compra de novas cobaias, cotadas no<br />
mercado por até US$ 50 mil o casal. (JGN)<br />
José Gonçalves / Imprensa Unifesp<br />
Foto: Stella Murgel / Unifesp<br />
Agradecimentos à Jussara Mangine / Unifesp<br />
II Simpósio sobre Alimentos Transgênicos<br />
17 e 18 de Outubro de 2002 - Viçosa - MG<br />
Após o sucesso do I Simpósio Nacional sobre Alimentos Transgênicos realizado na UFV em 2000 e estimulados pelo<br />
público participante deste evento, a UFV sente-se honrada em sediar este II Simpósio, com a presença de renomados<br />
pesquisadores nacionais e internacionais.<br />
Segurança alimentar, nutracêuticos, vacinas comestíveis, rotulagem e outros assuntos atuais referentes a biotecnologia<br />
e especificamente aos alimentos transgênicos serão discutidos<br />
Informações:http://www.agro.agri.umn.edu/~luborem/II%20Simposio%20Al.%20Transgenicos/<br />
www.protocol-online.net Protocol Online disponibiliza protocolos de biologia molecular, biologia celular e imunologia,<br />
fórum e lista de e-mail para discussão de métodos.<br />
www.denniskunkel.com Na página do Dennis Kunkel Microscopy a galeria de imagens exibe centenas de micrografias<br />
eletrônicas de bactérias, algas, insetos, plantas e células eucarióticas.<br />
molbio.cbs.umn.edu/asirc Actinomycete-Streptomyces Internet Resource Center dispõe de informações de congressos,<br />
posições de trabalho, micrografias, métodos, estruturas químicas de metabólitos secundários e vias biossintéticas.<br />
Não se esqueça! O uso educacional de imagens e animações é permitido, mas não se esqueça dos direitos autorais e<br />
pedidos de permissão.<br />
BioDicas é uma colaboração de Marcio O. Lásaro marciolasaro@hotmail.com<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 49
Pesquisa<br />
Biorreatores de<br />
IMERSÃO PERMANENTE<br />
Fotos e ilustrações cedidas pelos autores<br />
Um outro enfoque na problemática da micropropagação de plantas<br />
Antecedentes históricos.<br />
Os biorreatores são sistemas usados para micropropagar plantas, visando a<br />
otimizar, bem como a reduzir os custos da operação.<br />
Historicamente, os biorreatores foram mais conhecidos por fermentadores e<br />
estavam direcionado para o cultivo de células ou microrganismos, com vistas a<br />
produzir metabólicos secundários, alcalóides, antibióticos, entre outros.<br />
O nome fermentador está relacionado etimologicamente com fermentação que,<br />
na sua raiz latina, deriva de fermentare, cujo significado é ferver, isto é, produzir<br />
bolhas de ar, numa alusão ao fato de os fermentadores serem destinados a<br />
processos fermentativos como, por exemplo, a produção de álcool, onde as<br />
leveduras regeneram NAD a partir de sua forma reduzida NADH, com produção<br />
de etanol e C0 2<br />
, na qual este último, pela aparição de bolhas, dá a idéia de fazer<br />
ferver o meio líquido nutritivo (Leveau & Bouix,1985).<br />
1. Esquema de um biorreator de<br />
imersão permanente BIPER, que<br />
apresenta o recipiente e o<br />
microcompressor, conformando<br />
um todo, como descrito no texto<br />
L. Pedro Barrueto Cid<br />
Biólogo (M.Sc. - Ph.D.)<br />
Pesquisador Embrapa Recursos Genéticos e<br />
<strong>Biotecnologia</strong>. Brasília - DF<br />
lpedro@cenargen.embrapa.br<br />
Andréa R. Ramos Cruz<br />
Eng. Agrônomo, bolsista, (M.Sc.)<br />
Embrapa Recursos Genéticos e <strong>Biotecnologia</strong>.<br />
Brasília - DF<br />
Jairo Moráis Teixeira<br />
Graduando - Biologia, bolsista, Embrapa<br />
Recursos Genéticos e <strong>Biotecnologia</strong> .<br />
Brasília - DF<br />
s biorreatores não apenas têm estado relacionados com processos<br />
anaeróbios, como também com os aeróbicos. Neste caso um elenco<br />
de outros microrganismos também têm sido utilizados, como, por<br />
exemplo: Bacillus thuringensis, Penicillium roquefortii, Pseudomonas<br />
syringae, Escherichia coli etc., objetivando sua exploração<br />
comercial e industrial (Primrose, 1987).<br />
Inicialmente, e pelo fato de serem destinados a usos industriais, esses<br />
fermentadores foram de grande capacidade: de 20 a 4.000 mil litros de meio<br />
líquido nutritivo. Em decorrência disso, esses fermentadores devem ter acurados<br />
sistemas de oxigenação, agitação mecânica do meio líquido, monitoramento do<br />
pH, da temperatura e da formação de espuma, tudo o que os converte em<br />
verdadeiras obras da engenharia e da automatização, que asseguram à parte<br />
biótica (microrganismos) sobreviverem nesse ambiente abiótico artificial, visando<br />
aumentar seus rendimentos( biomassa, metabólicos secundários, antibióticos,<br />
etc.), porém com altos custos de instalação.<br />
Paralelamente à biotecnologia da fermentação, a cultura de tecidos vegetais<br />
vinha desenvolvendo seu trabalho biotecnológico de manipulação de células,<br />
tecido e órgãos com vistas a propagar material clonal para uso comercial.<br />
Entretanto, muitas vezes, os custos de produção de mudas provenientes do<br />
cultivo in vitro, a partir de meios sólidos, não compensam sua produção, por<br />
causa do melhor preço obtido pelas mudas oriundas de sementes ou de partes<br />
vegetativas devido aos altos custos de mão-obra no laboratório que chegam a<br />
40%-60 % das despesas. Portanto, estratégias inovativas para reduzir custos de<br />
mão-de-obra na produção em grande escala, tem enxergado aos biorreatores<br />
como razoável aproximação (Preil & Beck, 1991; Ziv, 1992).<br />
A propagação de plantas por meio de fermentadores para trabalhos de<br />
microrganismos, com fins industriais, são impensáveis, devido ao seu alto custo<br />
50 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
Tabela 1. Resultados preliminares com BIPER visando a induzir multiplicação em diferentes culturas de interesse<br />
econômico (inóculo por biorreator)<br />
Espécie<br />
Mamão<br />
Café<br />
Abacaxi<br />
Morango<br />
Álamo<br />
Orquídea<br />
Quantidade de explante inicial:<br />
brotos* ou gr**<br />
7 *<br />
8*<br />
8 *<br />
10*<br />
10*<br />
4**<br />
Quantidade de brotos<br />
finais<br />
51<br />
65<br />
256<br />
45<br />
60<br />
43<br />
Período de cultivo (dias)<br />
30<br />
45<br />
45<br />
20<br />
30<br />
30<br />
Coeficiente de<br />
multiplicação<br />
7.0<br />
8.0<br />
32.0<br />
4.5<br />
6.0<br />
10.0<br />
*Com depósito de patente no INPI<br />
de modo que, foram feitas modificações<br />
para sua extrapolação em plantas.<br />
Os primeiros biorreatores adaptados<br />
para plantas datam de, aproximadamente,<br />
20 anos atrás (Levin et al.,<br />
1988) De lá para cá, muitos tipos têm<br />
sido propostos, isso porque um biorreator<br />
é concebido em função do tipo de<br />
processo que se deseja obter. Assim,<br />
para embriogênese somática, se requer<br />
um tipo de biorreator, mas, para<br />
micropropagar através de organogenêse,<br />
gemas, o desenho mais eficiente<br />
pode ser outro (Merchuk, 1990).<br />
Em geral, os biorreatores utilizados<br />
para a micropropagação de plantas são<br />
de pequena capacidade (1 a 5 litros),<br />
e, no caso de serem desenhados para<br />
multiplicação de células ou embriões<br />
somáticos, devem possuir um sistema<br />
de oxigenação, um outro de agitação<br />
mecânica, por meio de pás giratórias<br />
ou um sistema vibratório para produzir<br />
a turbulência necessária à homogenização<br />
e homeostase no interior do<br />
biorreator, e ainda, sensores de pH,<br />
temperatura, 0 2<br />
e espuma (Preil et al.<br />
1988; Takayama & Akita, 1994)<br />
No tocante à propagação de plantas<br />
através de gemas, existem os biorreatores<br />
de imersão temporária (Alvard<br />
et al.,1993) e os de borbulhamento<br />
contínuo ou imersão permanente<br />
(BIPER) tipo air-lift (George, 1993-<br />
96)<br />
Nos de imersão temporária, as gemas<br />
a serem multiplicadas ficam expostas<br />
a ciclos de imersão, evitando a<br />
presença de dispositivos de agitação e<br />
arejamento e, portanto, simplificando<br />
o desenho do biorreator.<br />
Nos BIPER, Fig.1., o desenho não<br />
requer um sistema específico de agitação<br />
e turbulência do meio, sendo que<br />
esta é realizada através do sistema de<br />
arejamento, que, dentro do biorreator,<br />
libera bolhas de ar, tudo que permite<br />
uma renovada e contínua interação<br />
entre os componentes bióticos e abióticos<br />
no interior do biorreator.<br />
No presente trabalho, será descrito<br />
apenas o BIPER e alguns resultados<br />
experimentais serão apresentados para<br />
demonstrar seu potencial no campo da<br />
micropropagação.<br />
Descrição do aparelho*<br />
O aparelho, Fig. 1, basicamente é<br />
um sistema de engenharia simples e<br />
barata. Consta de um recipiente de<br />
vidro com capacidade de 500 a 1000<br />
ml, cuja tampa apresenta dois furos,<br />
um para a entrada do ar (A) e outro<br />
para saída (B), sendo que, em ambos<br />
os casos, esses orifícios estão providos<br />
de dutos de aço inox com filtro Millipore<br />
(0,2 µm de poro) a fim de evitar a<br />
contaminação interna.<br />
O ar é provido através de um microcompressor<br />
(aproximadamente 3<br />
litros/ minuto), e conduzido ao fundo<br />
do recipiente através de uma mangueira<br />
de silicone, de onde sai, através<br />
de um tubo poroso, formando bolhas<br />
que agitarão o meio líquido. Com exceção<br />
da borracha que liga o filtro de<br />
entrada ao compressor, todos os componentes<br />
do sistema são autoclaváveis<br />
(120 °C e 20 minutos).<br />
Inoculação dos explantes<br />
Depois de passar pela autoclavagem,<br />
o BIPER, já contendo o meio<br />
2. Brotos de abacaxi, após 45 dias no BIPER em presença de MS + 5 µM de<br />
BAP. Em MS + 0 BAP a quantidade de brotos foi significativamente inferior<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 51
3. Broto de abacaxi isolado de uma<br />
touceira oriunda de BIPER após 45<br />
dias, pronto para ser transferido para<br />
vermiculita, em casa de vegetação<br />
nutritivo, é aberto na câmara de fluxo<br />
laminar para a inoculação de brotos,<br />
por exemplo, 10 a 20, ou, touceiras de<br />
5 a 10 por frasco, ou ainda, alguns<br />
poucos gramas de orquídeas. O meio<br />
líquido normalmente é constituído do<br />
meio SP (Barrueto Cid et al., 1999)<br />
complementado com diferentes concentrações<br />
de BAP (6-benzilamino<br />
purina) segundo se trate de orquídeas<br />
(Ionopsis ochlereuca), abacaxi (Ananas<br />
comosus L. cv. Perola) café (Coffea<br />
arabica cv Catuaí vermelho 81.),<br />
mamão (Carica papaya L. cv Tainug),<br />
álamo (Populus tremula x P. alba). As<br />
touceiras contendo um número variado<br />
de brotos são previamente obtidas<br />
em meio sólido e é uma precondição<br />
ter seu protocolo de multiplicação estabelecido,<br />
antes de iniciar os trabalhos<br />
com o biorreator.<br />
Como medida preventiva, os explantes<br />
ficaram em erlenmeyer, em<br />
presença de Benlate e Cefotaxima<br />
sódica 100 mg/l por 72 h, em agitador<br />
com 100 rpm, antes de ser inoculados.<br />
Uma vez inoculado o material, os biorreatores<br />
ficaram a uma temperatura de<br />
27 ± 2 °C e fotoperíodo de 16 h luz,<br />
sendo que, depois de 30 a 40 dias, o<br />
material é avaliado.<br />
Resultados<br />
4. Brotos de café Catuaí Vermelho 81, 45 dias em BIPER. À esquerda,<br />
BIPER com SP + 0 BAP. À direita, BIPER com 24 µM de BAP<br />
Os resultados referentes às diferentes<br />
espécies testadas demonstraram<br />
altos rendimentos em relação à quantidade<br />
de explantes originais, Tabela 1.<br />
Isso não deixa de animar ,considerando<br />
que o arejamento contínuo poderia<br />
afetar a produção de biomassa, já que<br />
acarretaria problemas de ordem fisiológica,<br />
como fotorespiração, produção<br />
de ácido glicólico, isto porque a 1-<br />
5 bifosfato carboxilase também é uma<br />
oxigenase, porém a baixa solubilidade<br />
do oxigênio na água a 25 °C e 760<br />
mm Hg ( aproximadamente, 7 mg 0 2<br />
/l ) e a resistência do tecido à difusão<br />
de um gás tornariam esse problema<br />
menos significativo (Desjardins,<br />
1995). Por outro lado, não foi necessário<br />
adicionar antiespumantes (Taticek,<br />
et al. 1991) porque a formação<br />
de espuma não constituiu um problema.<br />
Entretanto, houve em reiteradas<br />
ocasiões problemas de contaminação,<br />
mas essa, em geral, foi contornada<br />
com a utilização de um pré-tratamento<br />
com fungicida e antibiótico,<br />
como já mencionado .<br />
Conforme a Tabela 1, o abacaxi<br />
(cv. Pérola) teve a mais notória resposta<br />
com respeito ao número de<br />
brotos induzidos, na verdade foi tão<br />
exuberante a proliferação do material<br />
que o frasco ficou completamente<br />
cheio aos 45 dias, Fig. 2-3. O que<br />
demonstra que a espécie pode ser<br />
micropropagada não apenas pelo biorreator<br />
de imersão temporária como<br />
era já conhecido (Escalona et al., 1999),<br />
mas também pelo sistema de imersão<br />
permanente ou de borbulhamento,<br />
como no presente caso. No que se<br />
refere ao cafeeiro, os resultados obtidos<br />
foram bastante significativos (Fig.<br />
4). Foi observada uma alta taxa de<br />
multiplicação, a qual é um estimulante,<br />
porque esse tipo de resultado<br />
ainda não havia sido reportado na<br />
literatura, embora já sejam conhecidos<br />
protocolos a partir de embriogênese<br />
somática em biorreator, (Noriega<br />
& Söndahl, 1993). Entretanto, o<br />
risco de plantas anormais (Alemanno<br />
et al. 1997) ou a alta porcentagem de<br />
embriões que não atingem o nível de<br />
planta em casa de vegetação (Boxtel<br />
& Berthouly, 1996) torna válido explorar<br />
outras formas de micropropagação.<br />
Contudo, convém ressaltar que<br />
nem todos os genótipos de cafeeiro<br />
poderão reagir satisfatoriamente às<br />
condições do BIPER.<br />
Para as outras espécies, Fig.5, não<br />
dispomos de registros de micropropagação<br />
via biorreator; por isso, esse<br />
tipo de informação encoraja novos<br />
trabalhos nessa direção, especialmente,<br />
considerando que a vitrificação<br />
52 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
5. Plântula de Ionopsis ochlereuca no centro da placa, após ter passado<br />
30 dias em BIPER. Lateralmente, a mesma espécie com a mesma<br />
idade, porém, crescendo em meio sólido e apresentando touceira<br />
(glassy shoot) não foi um problema em<br />
nosso trabalho.<br />
Em geral, o material multiplicado<br />
proveniente do BIPER, era transferido<br />
para meio sólido SP, (Fig.6), com vistas<br />
ao seu enraizamento e crescimento,<br />
porém, no caso de abacaxizeiro , o<br />
6. Ionopsis ochlereuca após ter<br />
passado pelo biorreator e cultivada<br />
por 90 dias em meio sólido SP<br />
material foi transferido diretamente para<br />
a casa de vegetação , (Fig.2), colocado<br />
em vermiculita e irrigado periodicamente.<br />
Nesse caso particular, ao final<br />
de 30 dias de cultivo nesse tipo de<br />
substrato, foi verificada uma percentagem<br />
de sobrevivência próxima a 100<br />
%. Observou-se também, aos 60 dias,<br />
um percentual de 90 % de enraizamento.<br />
Agradecimentos<br />
Os autores agradecem o suporte<br />
financeiro ao Consórcio Brasileiro de<br />
Pesquisa e Desenvolvimento do Café.<br />
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<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 53
Pesquisa<br />
MICROPROPAGAÇÃO DE BABOSA<br />
(Aloe vera - Liliaceae)<br />
Fotos cedidas pelos autores<br />
<strong>Biotecnologia</strong> de plantas medicinais<br />
Patrícia Sibila Araújo<br />
M.Sc., Bióloga - Laboratório de Morfogênese e<br />
Bioquímica Vegetal - CCA/UFSC<br />
Josiane M.Oliveira Duarte da<br />
Silva<br />
Acadêmica do curso de Agronomia - Bolsista<br />
Pibic/CNPq<br />
Laboratório de Morfogênese e Bioquímica<br />
Vegetal - CCA/UFSC<br />
Cáter Alexandre Neckel<br />
Acadêmico do curso de Agronomia - Bolsista<br />
PRAExUFSC<br />
Laboratório de Morfogênese e Bioquímica<br />
Vegetal - CCA/UFSC<br />
Carla Ianssen<br />
Acadêmica do curso de Agronomia - Bolsista<br />
Pibic/CNPq<br />
Laboratório de Morfogênese e Bioquímica<br />
Vegetal - CCA/UFSC<br />
Ana Carla Oltramari<br />
M.Sc., Engenheira Agrônoma – Laboratório de<br />
Morfogênese e Bioquímica Vegetal – CCA/<br />
UFSC<br />
Renata dos Passos<br />
B.Sc., Farmacêutica - Mestranda em<br />
<strong>Biotecnologia</strong> - CCB/UFSC<br />
Laboratório de Morfogênese e Bioquímica<br />
Vegetal - CCA/UFSC<br />
Introdução<br />
Evidências históricas indicam a origem<br />
africana da babosa, uma espécie<br />
cultivada no Egito há milhares de anos,<br />
com registros de sua utilização pelo<br />
povos do Mediterrâneo que remontam<br />
ao ano de 400 a.C. Seu nome científico,<br />
Aloe vera, foi dado por Carl Von Linne,<br />
em 1720, sendo, posteriormente, também<br />
referida como Aloe barbadensis<br />
Miller. Ao longo dos séculos, centenas<br />
de artigos de cunho científico ou não<br />
têm sido publicados descrevendo essa<br />
espécie como fonte de compostos<br />
bioativos. Nesse contexto, o primeiro<br />
Erasmo Tiepo<br />
B.Sc., Engenheiro Agrônomo - Laboratório de<br />
Morfogênese e Bioquímica Vegetal - CCA/UFSC<br />
Dionísio Bernardino Bach<br />
B.Sc., Engenheiro Agrônomo - Naturama Sucos<br />
Integrais do Brasil Ltda<br />
Marcelo Maraschin<br />
Ph.D., Prof. Adjunto III - Laboratório de<br />
Morfogênese e Bioquímica Vegetal - CCA/UFSC<br />
m2@cca.ufsc.br<br />
Figura 1. (a) Planta matriz de Aloe vera oriunda do Paraguai<br />
apresentando brotações laterais (î) com, aproximadamente, 45 dias de<br />
idade. Os meristemas apicais dos brotos laterais contendo um primórdio<br />
foliar foram utilizados como explantes. (b) Microplântulas de babosa<br />
com 30 dias de cultivo em meio MSBA. (c) Aclimatização de plântulas,<br />
21 dias após a transferência para câmara de crescimento, em<br />
recipientes plásticos contendo uma mistura de substrato comercial e<br />
solo - 1:1<br />
54 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
egistro de utilização terapêutica de<br />
A. vera no continente americano<br />
data de 1697; todavia, sua inclusão<br />
na farmacopéia dos EUA (United<br />
States Pharmacopoeia-USP) ocorreu<br />
somente em 1820, como purgativo<br />
e cicatrizante (1).<br />
Embora existam mais de 250<br />
espécies do gênero Aloe, somente<br />
três ou quatro dessas apresentam<br />
propriedades medicinais, sendo a<br />
Aloe vera a de maior interesse, possuindo<br />
também valor nutricional. As<br />
folhas dessa espécie possuem uma<br />
aparência suculenta, sendo que o<br />
mesófilo foliar contém reservas de<br />
água que podem suprir a necessidade<br />
da planta durante longos períodos<br />
de seca, favorecendo sua sobrevivência<br />
em lugares de clima árido.<br />
Estudos fitoquímicos têm demonstrado<br />
a presença de uma série de<br />
compostos de interesse farmacológico<br />
oriundos dos metabolismos primário<br />
e secundário da A. vera, utilizados<br />
em formulações (géis e sucos,<br />
e.g.) preparadas a partir desta planta.<br />
Como exemplos de compostos<br />
mencionam-se: enzimas (lipases,<br />
bradiquinases e proteases), mono e<br />
polissacarídeos (glucomananas),<br />
aminoácidos, vitaminas (A, B 12<br />
, C e<br />
D), antraquinonas (aloína e emodina),<br />
saponinas, ácido salicílico, lignina<br />
e esteróides (lupeol e campesterol).<br />
A esses compostos têm sido<br />
atribuídas diversas atividades biológicas,<br />
tais como antisséptica [saponinas<br />
e antraquinonas], antitumoral [mucopolissacarídeos],<br />
antiinflamatória<br />
[esteróides e ácido salicílico], antioxidante<br />
[vitaminas], imuno-reguladora<br />
e detoxificante [glucomananas]<br />
- (2).<br />
Devido ao amplo espectro de<br />
aplicações na área de saúde humana,<br />
os produtos à base de babosa<br />
vêm apresentando forte expansão<br />
no mercado nacional e internacional.<br />
Esse fato determina uma maior<br />
demanda por matéria-prima de alta<br />
qualidade, sendo esse aspecto uma<br />
restrição à expansão dessa atividade,<br />
devido à pequena disponibilidade<br />
de biomassa de babosa no nosso<br />
mercado interno. O aumento da oferta<br />
de biomassa pressupõe a existência<br />
de incrementos de produtividade<br />
dos cultivos e/ou a expansão da área<br />
desses. Em último caso, a implantação<br />
de cultivos com altos rendimentos tem<br />
como premissa básica a utilização de<br />
material de plantio de alta qualidade<br />
genética e sanitária, além de coloca-lo<br />
disponível no comércio.<br />
A propagação de Aloe vera é realizada<br />
por meio da remoção de brotações<br />
laterais emitidas pela planta-mãe<br />
(Fig. 1a), principalmente ao longo da<br />
estação de crescimento. O número e a<br />
freqüência de brotos laterais emitidos<br />
é bastante variável, fato que dificulta o<br />
planejamento de um sistema produtivo<br />
de mudas no que concerne ao seu<br />
rendimento. Em geral, três ou quatro<br />
brotos laterais são emitidos/ano/planta-mãe.<br />
Esta condição gera um sistema<br />
de produção com baixo rendimento,<br />
sendo um processo moroso e caro,<br />
principalmente quando se considera o<br />
tempo necessário para a obtenção de<br />
um número de mudas que permita a<br />
implantação de 1 hectare, por exemplo,<br />
com valores de densidade de<br />
plantio de 12.000 a 16.000 plantas por<br />
hectare, como usualmente é observado<br />
em plantios comerciais dessa espécie.<br />
Adicionalmente, esse sistema clássico<br />
de produção de mudas apresenta<br />
como característica uma maior probabilidade<br />
de ocorrência de moléstias no<br />
material de plantio, em função das<br />
lesões que são feitas à planta-mãe e às<br />
mudas (brotos laterais), no momento<br />
de sua coleta.<br />
O quadro acima descrito tem gerado<br />
uma situação de limitação da disponibilidade<br />
de material de plantio com<br />
qualidade genética e sanitária superiores,<br />
dificultando a instalação de novas<br />
áreas de cultivo de babosa. Conseqüentemente,<br />
a disponibilidade de<br />
matéria-prima para a elaboração de<br />
produtos nas indústrias de cosméticos<br />
(estéticos e dermatológicos), de fitoterápicos<br />
(purgativos e cicatrizantes) e<br />
alimentícia (complementos nutricionais<br />
e energéticos) é reduzida, e caracteriza<br />
um ponto de estrangulamento<br />
no processo produtivo. Esse fato vem<br />
contribuindo significativamente para a<br />
elevação de preços do(s) produto(s)<br />
final(is) e dificultando a expansão da<br />
atividade, tanto no mercado interno<br />
quanto no externo.<br />
Como solução tecnológica viável<br />
para a resolução desse problema, a<br />
produção de mudas com qualidade<br />
superior e em larga escala pode ser<br />
feita através de técnicas biotecnológicas.<br />
Nesse caso, a cultura de células<br />
e tecidos vegetais vem, desde o início<br />
da década de 70, constituindo<br />
uma estratégia de interesse, em função<br />
de suas potencialidades e de<br />
resultados apresentados para um grande<br />
número de espécies vegetais. Tal<br />
abordagem tem permitido a clonagem<br />
e a multiplicação em larga escala<br />
de espécies vegetais e de germoplasmas<br />
selecionados, os quais, quando<br />
multiplicados por processos convencionais<br />
(estaquia, enxertia, sementes,<br />
alporquia, e.g.), apresentam baixos<br />
valores de rendimento. Nos últimos<br />
anos, a superação dessa dificuldade<br />
tem sido conseguida, em diversos<br />
casos, com a utilização de técnicas<br />
de produção de mudas in vitro (3).<br />
Essa abordagem biotecnológica foi<br />
utilizada pelo Laboratório de Morfogênese<br />
e Bioquímica Vegetal (LMBV),<br />
da Universidade Federal de Santa<br />
Catarina (UFSC) – Departamento de<br />
Fitotecnia-CCA, em parceria com a<br />
empresa Naturama Sucos Integrais<br />
do Brasil Ltda. e o SEBRAE/SC, com o<br />
intuito de desenvolver um protocolo<br />
para acelerar o processo de multiplicação<br />
dessa espécie, de modo que<br />
ele permita formar mudas em larga<br />
escala e em curto espaço de tempo.<br />
Metodologia<br />
O processo de multiplicação foi<br />
iniciado com plantas matrizes de A.<br />
vera de 16 genótipos de procedências<br />
distintas (Florianópolis/SC, Araquari/SC,<br />
Pato Branco/PR, Rolândia/PR,<br />
Colombo/PR e Paraguai - Fig. 1a).<br />
Meristemas apicais contendo um primórdio<br />
foliar (0,5 a 1,5 cm altura)<br />
foram utilizados como explantes para<br />
a micropropagação das plantas matrizes<br />
selecionadas. Os meristemas foram<br />
submetidos ao processo de assepsia<br />
em câmara de fluxo laminar<br />
por meio de imersão seqüencial em<br />
soluções de hipoclorito de sódio 40%<br />
(10 min), etanol 70% (2 min), hipo-<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 55
clorito de sódio 40%, (5 min), seguido<br />
de 3 lavagens com água destilada/deionizada/esterilizada.<br />
Os explantes<br />
foram inoculados em 30 mL<br />
de meio de cultura MS (4) suplementado<br />
com sacarose (3g%), ágar<br />
(0,7g%) e reguladores de crescimento:<br />
4,03 µM ácido naftaleno acético<br />
e 6,67 µM 6- benzilaminopurina<br />
(Meio MSBA). Os cultivos (Fig. 1b)<br />
foram mantidos em sala de crescimento<br />
a 24 ± 1°C, 85% U.R., 14 horas<br />
de fotoperíodo e 100 ± 5 µM (RFA),<br />
com um tempo de residência de 35<br />
dias. Ao longo dos experimentos,<br />
foram coletadas plântulas com altura<br />
de parte aérea superior a 3 cm,<br />
transferidas para bandejas alveoladas<br />
contendo substrato comercial<br />
Plantmax® e mantidas em ambiente<br />
de câmara de nebulização por 7 dias.<br />
Subseqüentemente, as plantas foram<br />
transferidas para embalagens<br />
plásticas contendo uma mistura de<br />
solo e substrato comercial Plantmax®<br />
(1:1 – Fig. 1c) e mantidas em<br />
estufa de crescimento, com controle<br />
de irrigação (3 dias) e adubação<br />
foliar (15 e 21 dias - verão e inverno,<br />
respectivamente).<br />
Resultados<br />
O processo de multiplicação massal<br />
de babosa em sistema de cultivo<br />
in vitro teve, inicialmente, necessidade<br />
de desenvolver um protocolo<br />
de isolamento e multiplicação. A<br />
consecução da etapa de isolamento<br />
mostrou-se possível em um período<br />
de 3 meses, sendo que, de forma<br />
preliminar, observou-se que alguns<br />
dos genótipos estudados apresentaram<br />
maiores taxas de sobrevivência<br />
e multiplicação in vitro, sugerindo a<br />
ocorrência de potenciais de propagação<br />
distintos.<br />
Os estudos de multiplicação demonstraram<br />
que as condições utilizadas<br />
induziram uma taxa de proliferação<br />
de gemas laterais na razão de<br />
1:2, em média. Essa taxa de multiplicação<br />
mostrou-se dependente do<br />
componente genotípico (planta<br />
matriz), uma vez que valores de 1:8<br />
foram também observados. De fato,<br />
esses resultados comprovaram os<br />
dados indicadores da existência de<br />
Figura 2. (a) Rizogênese in vitro de Aloe vera: (1) 20 dias de cultivo<br />
(ausência de primórdios radiculares), (2) 30-35 dias de cultivo - 1 raiz,<br />
(3) 45 dias de cultivo - 3 raízes e (4) 60 dias - 4 raízes. (b) Plântulas<br />
desprovidas de sistema radicular devido à sua degeneração em<br />
momentos iniciais (~ 20 dias) da fase de aclimatização. (c) Plântula de<br />
babosa com sistema radicular regenerado durante a fase de<br />
aclimatização (~ 60 dias após a transferência para câmara de<br />
crescimento). Nessa fase, foi observada a emissão de raízes<br />
secundárias. (d) Mudas com, aproximadamente, 180 dias de idade<br />
destinadas ao plantio no campo<br />
clones com expressão morfogenética<br />
in vitro distinta. De forma específica,<br />
os germoplasmas oriundos do Paraguai<br />
evidenciaram maiores taxas de multiplicação,<br />
com valores de 1:6 a 1:8.<br />
Índices de multiplicação in vitro semelhantes<br />
foram encontrados na literatura,<br />
onde a técnica de micropropagação<br />
tem propiciado sucessos como alternativa<br />
de produção de mudas em larga<br />
escala de diversas espécies medicinais<br />
exploradas comercialmente, tais como<br />
Coleus forskohlii, Camptotheca acuminata<br />
e Valeriana edulis sp. procera<br />
(5).<br />
O protocolo descrito viabilizou o<br />
início do processo de rizogênese in<br />
vitro (Fig. 2a), porém tal aspecto mostrou-se<br />
dependente do tempo de cultivo.<br />
Períodos superiores a 35 dias<br />
viabilizaram as maiores taxas de enraizamento<br />
e, em função disso, o tempo<br />
56 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
médio de residência dos cultivos foi<br />
alterado para 45 dias. Esses dados<br />
sugerem que a indução à rizogênese<br />
de babosa in vitro parece estar associada<br />
ao esgotamento gradativo dos<br />
nutrientes no meio de cultura. Essa<br />
metodologia tem permitido a obtenção<br />
de mudas com sistemas aéreo e<br />
radicular, sem necessidade de formulação<br />
de meio de cultura para enraizamento.<br />
Adicionalmente, foi observado<br />
que o enraizamento in vitro<br />
exerceu marcada influência sobre a<br />
sobrevivência das plântulas na fase<br />
de aclimatização. De fato, ao longo<br />
dessa fase, as plântulas enraizadas in<br />
vitro apresentaram valores elevados<br />
de taxas de sobrevivência, que se<br />
situaram entre 80% a 95%, enquanto<br />
taxas de sobrevivência inferiores a<br />
30% e crescimento lento foram observadas<br />
para as plântulas desprovidas<br />
de sistema radicular. De forma<br />
interessante, logo após o transplante,<br />
as plântulas enraizadas in vitro apresentam<br />
degeneração do sistema radicular<br />
(Fig. 2b), seguida da imediata<br />
emissão de novas raízes primárias e<br />
secundárias (Fig. 2c).<br />
A ocorrência de indivíduos que<br />
expressam variações fenotípicas in<br />
vitro ou ex vitro não foi detectada ao<br />
longo de um período de 16 meses,<br />
com exceção de duas plantas que<br />
evidenciaram a ocorrência de albinismo<br />
e variegação em tecido foliar. Tal<br />
fato provavelmente advém da ocorrência<br />
de variação somaclonal (6),<br />
um fenômeno comum e de ocorrência<br />
aleatória em culturas de tecidos e<br />
células vegetais, caracterizado pelo<br />
surgimento de variantes fenotípicos,<br />
cuja origem poderá ser de natureza<br />
genética e/ou epigenética (7, 8, 9,<br />
10). Como exemplos disso, somaclones<br />
de centeio regenerados a partir<br />
do cultivo de embriões imaturos apresentaram<br />
variações freqüentes no<br />
padrão de acúmulo e distribuição de<br />
clorofila em tecidos foliares (11). De<br />
forma semelhante, plantas jovens de<br />
Picea mariana e P. glauca, regeneradas<br />
por embriogênese somática,<br />
expressaram padrões variegados em<br />
tecido foliar com freqüências de 0,1%<br />
e 0,3%, respectivamente (12). O surgimento<br />
de variantes em processos<br />
de micropropagação tem sido observado<br />
em freqüências distintas, segundo<br />
a fonte de explante (planta matriz),<br />
tipo e idade do explante, via morfogenética<br />
de regeneração (organogênese<br />
ou embriogênese), condições e tempo<br />
de cultivo in vitro, podendo ser um<br />
fenômeno de interesse, quando se<br />
busca variabilidade em programas de<br />
melhoramento genético. No entanto,<br />
quando a uniformidade genética/fenotípica<br />
de indivíduos (true-to-type) na<br />
população micropropagada é a característica<br />
buscada, tal fenômeno é indesejável,<br />
devendo ser monitorado de<br />
forma constante (7, 10, 12). Os resultados<br />
observados nesse estudo indicam<br />
que o fenômeno de variação somaclonal<br />
não apresenta significância<br />
com a utilização do protocolo proposto<br />
(Fig. 2d).<br />
Conclusão<br />
Os resultados obtidos indicam que<br />
a metodologia descrita apresenta viabilidade<br />
do ponto de vista tecnológico,<br />
como sistema de multiplicação clonal<br />
de babosa em larga escala, gerando<br />
mudas de alto valor genético e sanitário.<br />
Ao longo de um período de 8<br />
meses, aproximadamente 2.000 mudas<br />
foram produzidas, a partir de 20<br />
explantes obtidos de germoplasmas<br />
de procedências diversas. O protocolo<br />
inicialmente utilizado é passível de<br />
otimização, porém, comparativamente<br />
ao processo usual de multiplicação<br />
de babosa, os resultados indicam que a<br />
micropropagação clonal de Aloe vera<br />
oferece vantagens significativas no que<br />
concerne à rapidez de obtenção de um<br />
grande número de mudas, cujo interesse<br />
econômico é crescente, em função<br />
de suas propriedades medicinais e<br />
nutricionais.<br />
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Plantas - Uma introdução à engenharia<br />
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<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 57
SUCAST<br />
Pesquisa<br />
Ilustrações cedidas pelas autoras<br />
Desvendando as vias de transdução de sinal da cana-de-açúcar<br />
Gláucia Mendes Souza<br />
Profª, Drª do Departamento de Bioquímica,<br />
Instituto de Química, USP.<br />
glmsouza@iq.usp.br<br />
Aline Maria da Silva<br />
Professora Associada do Departamento de<br />
Bioquímica, Instituto de Química, USP.<br />
almsilva@iq.usp.br<br />
A cana-de-açúcar na<br />
era da genômica<br />
esde os tempos do Brasil<br />
colônia até os dias de<br />
hoje, a cultura de canade-açúcar<br />
tem sido uma<br />
grande fonte de riquezas<br />
para a economia brasileira. O Brasil é o<br />
maior produtor de cana-de-açúcar do<br />
mundo, com uma safra de 338 milhões<br />
de toneladas em 2001, o que equivale<br />
a 27% da produção mundial 1 . Aproximadamente,<br />
60% da colheita destinase<br />
à produção de álcool e o restante<br />
à produção de açúcar, mas existe a<br />
perspectiva de utilizar-se a cana-deaçúcar<br />
como biorreator na geração de<br />
energia elétrica, na produção de plásticos<br />
biodegradáveis, açúcares não<br />
calóricos e compostos químicos de<br />
interesse farmacêutico. A cana-deaçúcar<br />
é cultivada em 5 milhões de<br />
hectares distribuídos por todos os<br />
Figura 1 – Classes de proteínas de transdução de sinal catalogadas pelo SUCAST<br />
58 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
Figura 2 - Síntese de hormônios em resposta a fatores ambientais<br />
estados brasileiros, mas é no estado<br />
de São Paulo que se concentra a<br />
maioria das lavouras, que representa<br />
metade da produção nacional. Alagoas,<br />
Pernambuco, Minas Gerais e Rio<br />
de Janeiro são também importantes<br />
produtores contribuindo juntos com<br />
quase 30% da safra brasileira.<br />
O sucesso do cultivo da cana-deaçúcar<br />
se deve à utilização de variedades<br />
obtidas através de melhoramento<br />
genético clássico desenvolvido<br />
pelos centros de pesquisa e estações<br />
experimentais como o Centro<br />
de Ciências Agrárias da UFSCar, em<br />
Araras, o Instituto Agronômico de<br />
Campinas e a Copersucar. A cana-deaçúcar<br />
atualmente cultivada é originária<br />
de um cruzamento entre Saccharum<br />
officinarum e Saccharum<br />
spontaneous, que aumentou a produtividade<br />
e a resistência a doenças<br />
dos clones cultivados. O mapeamento<br />
genético dos cultivares mais utilizados<br />
está sendo realizado (Grivet e<br />
Arruda, 2001) porém, a seleção de<br />
variedades mais produtivas, resistentes<br />
a pragas e doenças e adaptadas a<br />
ambientes diversos por intercruzamentos<br />
é um processo demorado, que leva<br />
de 12 a 15 anos. Como podemos<br />
encurtar esse prazo? A genômica aponta<br />
o caminho. O seqüenciamento do genoma<br />
de várias plantas tem facilitado e<br />
acelerado a identificação de genes responsáveis<br />
por qualidades desejáveis,<br />
possibilitando a manipulação subseqüente<br />
de genes de interesse através<br />
de técnicas de genética molecular. Na<br />
era da genômica as manipulações genéticas<br />
serão dirigidas, aumentando a<br />
eficiência de obtenção de variedades<br />
bem sucedidas. Essa nova revolução<br />
verde anuncia a obtenção de variedades<br />
resistentes a múltiplas doenças,<br />
mais adaptadas e produtivas o que<br />
deve diminuir dramaticamente as perdas<br />
na agricultura além de permitir o<br />
aproveitamento de solos até então não<br />
utilizáveis.<br />
Em um futuro não muito distante,<br />
as culturas de cana-de-açúcar também<br />
serão beneficiadas por essa revolução,<br />
pois a cana-de-açúcar acaba<br />
de entrar na era genômica com um<br />
grande trunfo, representado pelas<br />
250.000 ESTs geradas por 22 laboratórios<br />
que fazem parte do projeto<br />
SUCEST (http: // sucest. lad. ic. unicamp.<br />
br; Fioravanti, 2000). ESTs<br />
(Expressed Sequence Tags ou Etiquetas<br />
de Seqüências Expressas) são<br />
seqüências de DNA que representam<br />
trechos de mRNAs (RNAs mensageiros<br />
que serão traduzidos em<br />
proteínas), revelando quais são os<br />
genes expressos em um tecido ou<br />
órgão, em uma dada situação fisiológica<br />
ou patológica. As ESTs da canade-açúcar<br />
não deixam por menos e<br />
representam milhares de genes expressos<br />
em seus diferentes órgãos,<br />
como raiz, colmo, folhas, flores e<br />
sementes, obtidos em vários estágios<br />
de desenvolvimento e submetidos a<br />
variações ambientais diversas incluindo<br />
interações com bactérias (Vettore<br />
et al., 2001). Essa informação<br />
preciosa está sendo cuidadosamente<br />
examinada por 48 laboratórios que<br />
se dedicam à mineração ou prospecção<br />
de dados, o chamado data mining.<br />
É dessa forma que os genes<br />
expressos revelados pelo projeto SU-<br />
CEST estão sendo associados a uma<br />
função no crescimento, desenvolvimento,<br />
respostas a estresses e metabolismo<br />
da planta. A partir dessa<br />
análise, essas prováveis funções poderão<br />
ser associadas a características<br />
desejáveis na cana, que, eventualmente,<br />
possam ser manipuladas para<br />
a geração de novas variedades.<br />
Como é feito o data mining<br />
No data mining pesquisamos semelhanças<br />
entre genes da cana-deaçúcar<br />
e genes identificados em outras<br />
plantas ou em outros organismos,<br />
para designarmos uma provável<br />
função a esses genes, pois estima-se<br />
que 50% dos genes das plantas<br />
superiores tenham uma função<br />
semelhante à encontrada em outros<br />
organismos. A garimpagem é feita<br />
sobre as 250.000 ESTs da cana-de-<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 59
Figura 3 - Ativação da resposta de defesa através da cascata da MAP quinase (MAPK)<br />
açúcar que foram previamente separadas,<br />
por semelhança entre suas<br />
seqüências, em 43.000 grupos de<br />
transcritos ou clusters (Pimentel &<br />
da Silva, 2001). Durante a análise<br />
também observamos quantas ESTs<br />
compõem o cluster, pois, em geral,<br />
o número de ESTs de um certo<br />
cluster indica, com boa confiança, o<br />
quanto aquele gene é expresso. Além<br />
disso, se um dado cluster é composto<br />
por ESTs provenientes de um<br />
tecido ou orgão em particular, temos<br />
uma boa indicação da prevalência<br />
de um certo transcrito em um tecido<br />
ou em determinada situação fisiológica<br />
ou patológica.<br />
A tabela I relaciona as ferramentas<br />
de bioinformática utilizadas para<br />
inferência da função gênica a partir<br />
da análise de seqüências de genes e,<br />
naturalmente, das proteínas por eles<br />
codificadas. Invariavelmente, como<br />
primeiro passo, pesquisamos genes<br />
de outros organismos que sejam similares<br />
as ESTs que estamos analisando.<br />
Alta similaridade com um gene de<br />
função conhecida indica uma boa<br />
probabilidade da EST corresponder a<br />
um gene de mesma função na canade-açúcar.<br />
A busca é realizada em<br />
bancos de dados públicos, em geral,<br />
com a ferramenta conhecida como<br />
BLAST. Essa busca pode ser automatizada<br />
e com o resultado obtido é<br />
possível gerar um banco de dados<br />
onde cada EST passa a ter uma provável<br />
função associada. Na prática, no<br />
entanto, a associação de uma função<br />
a um gene ou EST não é um processo<br />
trivial. No caso de famílias gênicas<br />
com um grande número de membros<br />
(genes parálogos), pequenas diferenças<br />
na sequência das proteínas,<br />
que, codificadas por cada um dos<br />
parálogos, podem resultar em funções<br />
distintas e somente uma análise<br />
detalhada dessas seqüências consegue<br />
distinguir membros de subcategorias.<br />
Nesses casos, além dos dados<br />
gerados pelo BLAST, também é<br />
inspecionado o alinhamento da seqüência<br />
de todos os membros da<br />
família, o que possibilita a indexação<br />
das ESTs ou dos clusters de ESTs<br />
a subfamílias e categorias gênicas<br />
específicas. Uma das ferramentas<br />
de alinhamentos mais utilizadas é o<br />
CLUSTAL. É desejável que domínios<br />
protéicos conservados sejam também<br />
pesquisados na seqüência de<br />
aminoácidos deduzida a partir da<br />
seqüência de nucleotídeos de cada<br />
um dos clusters de ESTs analisados.<br />
Nesse caso, as buscas são feitas em<br />
bancos de dados de domínios de<br />
proteínas como Pfam, PROSITE ou<br />
InterPro. Os resultados obtidos pelo<br />
conjunto dessas análises embasam a<br />
atribuição de uma provável função<br />
atribuída a um gene a partir apenas<br />
de dados do seqüenciamento.<br />
60 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
Tabela I<br />
Ferramentas de data-mining<br />
Referência<br />
BLAST - algoritmo que pesquisa similaridade entre seqüências Altschul et al., 1997<br />
CLUSTAL - algoritmo de alinhamento de seqüências Jeanmougin et al., 1998<br />
PROSITE - banco de dados de famílias e domínios Hofmann et al., 1999<br />
Pfam - banco de dados de famílias e domínios Bateman et al., 1999<br />
INTERPRO - banco de dados de famílias e domínios Apweiler et al., 2001<br />
SUCAST: Minerando a Transdução<br />
de Sinal da Cana de Açúcar<br />
O projeto SUCAST (do inglês Sugar<br />
Cane Signal Transduction) tem<br />
como uma de suas propostas a identificação<br />
e catalogação de ESTs da<br />
cana-de-açúcar que estão envolvidos<br />
em vias de transdução de sinal. Durante<br />
o seu ciclo de vida, as plantas<br />
são constantemente bombardeadas<br />
por sinais ambientais e uma resposta<br />
adequada a cada um desses sinais é<br />
determinante para sua sobrevivência<br />
e para sua produtividade máxima. A<br />
compreensão das redes genéticas que<br />
orquestram tais respostas, que podem<br />
ser fisiológicas, bioquímicas, morfológicas<br />
ou de desenvolvimento é o<br />
foco de estudos recentes sobre transdução<br />
de sinal. Nesse contexto, a<br />
investigação dos mecanismos de integração<br />
de todos os sinais levou a<br />
identificação de vários hormônios que<br />
agem na planta de uma maneira<br />
tanto local quanto sistêmica, alterando<br />
o padrão de expressão de genes<br />
responsáveis por efetuar as mudanças<br />
necessárias em resposta aos sinais<br />
ambientais. Em muitos casos, o melhoramento<br />
genético de uma planta<br />
implica a manipulação de componentes<br />
que mediam a transdução de<br />
sinais, de modo que se explorem as<br />
redes de comunicação que detectam<br />
alterações do meio ambiente e que<br />
desencadeiam mudanças no padrão<br />
da expressão gênica.<br />
A partir da análise de genomas<br />
completos que foram recentemente<br />
seqüenciados como o da levedura<br />
Saccharomyces cerevisae, da mosca<br />
de fruta Drosophila melanogaster,<br />
do verme Caenorhabditis elegans e<br />
da planta Arabidopsis thaliana foi<br />
calculado que de 7% a 15% dos genes<br />
de um organismo codificam para proteínas<br />
envolvidas na transdução de<br />
sinal. Se assumirmos que os 43.000<br />
clusters ESTs da cana-de-açúcar representam,<br />
aproximadamente, o número<br />
de genes dessa planta, é razoável inferir<br />
que, pelo menos 4.000 de seus<br />
transcritos se encontrem na categoria<br />
de genes relacionados com a transdução<br />
de sinal (Souza et al., 2001). Utilizando-se<br />
as ferramentas delineadas na<br />
Tabela I, cerca de 900 clusters de ESTs<br />
já foram relacionados com diferentes<br />
vias de transdução de sinal da cana-deaçúcar<br />
e constam do catálogo do projeto<br />
SUCAST que está disponível no<br />
website http://sucest.lad.ic.unicamp.br/<br />
private/mining-reports/QG/QGmining.htm.<br />
A figura 1 ilustra as diferentes classes<br />
de proteínas relacionadas com a<br />
transdução de sinal da cana-de-açúcar<br />
codificadas pelos clusters de ESTs que<br />
foram analisados até o momento. Essas<br />
classes estão relacionadas com o complexo<br />
sistema de sinalização que as<br />
plantas desenvolveram ao longo da<br />
sua evolução e que permite a sua<br />
adaptação a uma vasta gama de condições<br />
ambientais através, principalmente,<br />
da sinalização hormonal (para uma<br />
revisão sobre vias de transdução de<br />
sinal em plantas, ver Trewavas, 2000).<br />
Sinais, receptores e mensageiros<br />
secundários da cana-de-açúcar<br />
A ferramenta mais poderosa para<br />
identificar o papel dos hormônios na<br />
transdução de sinais foi a identificação<br />
de mutantes em suas vias biossintéticas.<br />
Através da utilização de técnicas<br />
de genética molecular e complementação<br />
de mutantes, muitas das enzimas<br />
de síntese e degradação de hormônios<br />
foram associadas a processos de crescimento,<br />
envelhecimento, desenvolvimento,<br />
diferenciação, amadurecimento,<br />
dormência, resposta a ferimentos<br />
e defesa contra doenças. Entre<br />
os hormônios vegetais encontramos<br />
o gás etileno, as giberelinas, o<br />
ácido jasmônico, o ácido abscíssico e<br />
as auxinas. Como esperado, a maioria<br />
das enzimas que participa na biossíntese<br />
desses hormônios está representada<br />
no conjunto de ESTs da cana-deaçúcar.<br />
Acredita-se que a integração dos<br />
sinais ambientais durante as várias<br />
fases do ciclo de vida da planta se dê<br />
pela ação coordenada e simultânea<br />
de vários hormônios, uma vez que as<br />
mutações na via de síntese de um<br />
hormônio alteram, em muitos casos, a<br />
síntese de outro. A obtenção de plantas<br />
transgênicas alteradas nas vias de<br />
síntese de hormônios é de interesse<br />
econômico e tem sido alvo de intensa<br />
pesquisa. Como esquematizado na<br />
figura 2, os sinais ambientais podem<br />
ser ferimentos, peptídeos, produtos<br />
derivados de microorganismos e patógenos,<br />
além de outros agentes do<br />
meio ambiente como luz, gravidade,<br />
temperatura, vento, água, nutrientes<br />
e minerais do solo.<br />
A maioria da recepção de sinais<br />
ocorre na da membrana celular, mas<br />
existem alguns exemplos de receptores<br />
intracelulares como os fotoreceptores<br />
que regulam o ritmo circadiano.<br />
Os receptores comumente encontrados<br />
são receptores ligados a<br />
proteínas G, ligados a canais de íons e<br />
os que possuem atividade enzimática.<br />
Essa última categoria é a mais<br />
freqüente na cana-de-açúcar, sendo<br />
principalmente representada pelos<br />
receptores com atividade de proteína<br />
quinase (atividade enzimática responsável<br />
pela fosforilação de certos resí-<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 61
duos de aminoácidos em substratos<br />
protéicos). O catálogo SUCAST relaciona<br />
clusters de ESTs de, pelo<br />
menos, 200 receptores, sendo, aproximadamente,<br />
10% do tipo histidina<br />
quinase (fosforilam resíduos de histidina)<br />
e 50% do tipo serina/treonina<br />
quinase (fosforilam resíduos de serina<br />
ou treonina). Uma análise mais<br />
detalhada dos domínios das proteínas<br />
codificadas por essas ESTs revelou,<br />
nesse segundo grupo, uma subfamília<br />
numerosa que contem domínios<br />
ricos em leucina chamados LRR<br />
(do inglês, Leucine Rich Repeat).<br />
Essa classe de receptores constitui a<br />
base molecular do reconhecimento<br />
de patógenos pelos genes R de<br />
resistência a doenças onde o domínio<br />
LRR seria responsável pela mediação<br />
de interações entre proteínas.<br />
Domínios LRR também são encontrados<br />
em receptores do tipo<br />
CLAVATA1 e ERECTA, que regulam<br />
o crescimento do meristema.<br />
As informações recebidas pelos<br />
receptores extracelulares são transmitidas<br />
para alvos intracelulares através<br />
dos chamados mensageiros secundários,<br />
que, em geral, são moléculas<br />
difusíveis. Mensageiros secundários<br />
da família do fosfatidilinositol<br />
estão presentes na cana, uma vez<br />
que as ESTs que codificam as enzimas<br />
da via de síntese dessas moléculas<br />
foram detectadas. Também<br />
identificamos ESTs relacionadas com<br />
o metabolismo do íon cálcio, como<br />
canais de cálcio, calmodulina, calreticulina<br />
e calnexina, sugerindo que<br />
esse importante mensageiro secundário<br />
é ativo na transmissão de sinais<br />
na cana-de-açúcar. Nas plantas, o<br />
cálcio é um sinal proeminente e as<br />
interações intracelulares reguladas<br />
por esse cátion são bastante complexas.<br />
Mudanças nos níveis de cálcio<br />
mediadas por canais de cálcio<br />
estão associadas com o início de<br />
algumas respostas, como o fechamento<br />
de estômatos, re-orientação<br />
do crescimento do tubo do pólen e<br />
aumento da espessura da parede<br />
em resposta ao vento.<br />
Por outro lado, mensageiros secundários<br />
relevantes para outros organismos,<br />
como cAMP, cGMP e cA-<br />
DPr, parecem não estar presentes<br />
em plantas e tampouco na cana-deaçúcar,<br />
pois não verificamos a presença<br />
de ESTs que codificam proteínas<br />
relacionadas ao metabolismo destes<br />
nucleotídeos entre o conjunto de ESTs<br />
seqüenciados no projeto SUCEST.<br />
A síntese de mensageiros secundários<br />
após a ativação de certos tipos<br />
de receptores é mediada por um trio<br />
de subunidades protéicas (α, β e γ)<br />
conhecido como proteína G (porque<br />
se associa ao nucleotídeo GTP), e<br />
também por proteínas capazes de<br />
hidrolizar esse nucleotídeo, as chamadas<br />
GTPases pequenas. O processo de<br />
acoplamento e ativação dessas últimas<br />
é finamente regulado por proteínas<br />
acessórias, chamadas de GAPs, GEFs e<br />
GDIs, que funcionam como ativadores,<br />
dissociadores e inibidores da atividade<br />
GTPásica. Todos esses elementos<br />
estão codificados por ESTs da canade-açúcar<br />
e foram catalogados no projeto<br />
SUCAST, incluindo exemplos das<br />
três subunidades das proteínas G (α, β<br />
e γ) e todas as classes de uma enorme<br />
família de GTPases pequenas, além<br />
dos seus respectivos GAPs e GDIs<br />
Proteínas quinases, fosfatases<br />
e fatores de transcrição<br />
A grande maioria das vias de transdução<br />
de sinal engloba uma cascata de<br />
eventos de fosforilação e desfosforilação<br />
de proteínas catalisadas pelas proteínas<br />
quinases e proteínas fosfatases,<br />
respectivamente. A ativação dessas<br />
cascatas de fosforilação media respostas<br />
a estímulos distintos, como luz,<br />
agressão por patógenos, reguladores<br />
de crescimento, estresses variados e<br />
deprivação de nutrientes, que são percebidos<br />
por receptores, como descrito<br />
anteriormente. Centenas de proteínas<br />
quinases e dezenas de proteínas fosfatases<br />
distintas estão representadas entre<br />
os clusters de ESTs da cana-deaçúcar,<br />
demonstrando que a fosforilação<br />
reversível de proteínas é um mecanismo<br />
de regulação importante também<br />
nessa planta. Entre as cascatas de<br />
fosforilação que ocorrem na cana-deaçúcar,<br />
destacamos a via da MAP quinase,<br />
que é uma das mais conhecidas<br />
em plantas e representa um exemplo<br />
clássico de cascata de fosforilação. O<br />
módulo básico da cascata é constituído<br />
de três quinases chamadas MAPK,<br />
MAPKK (ou MEK) e MAPKKK (ou<br />
MEKK). Ao menos oito MAPKs foram<br />
identificadas entre os clusters de<br />
ESTs da cana-de-açúcar. Está postulado<br />
que sinais extracelulares, como<br />
os indicados na Figura 3, são captados<br />
por receptores, na sua maioria<br />
ainda desconhecidos, levando a ativação<br />
da MAPKKK, que, fosforila a<br />
MAPKK, que, por sua vez, fosforila a<br />
MAPK. Esta última proteína quinase<br />
provoca ativação da transcrição de<br />
genes de defesa e proteção a estresses,<br />
por exemplo. Além da ativação<br />
verificada diretamente sobre a atividade<br />
de proteína quinase dessas<br />
enzimas, foi verificado que os genes<br />
que as codificam tem a transcrição<br />
ativada em resposta a vários sinais e<br />
patógenos, conferindo resistência sistêmica<br />
a doenças.<br />
A transdução do sinal extracelular<br />
culmina com mudanças no padrão<br />
de expressão de genes que codificam<br />
proteínas executoras da ação<br />
final que, em última instância, são as<br />
responsáveis pelas mudanças fisiológicas<br />
necessárias para os processos<br />
de adaptação, defesa, crescimento<br />
ou desenvolvimento em resposta<br />
aos distintos estímulos. A transcrição<br />
gênica é regulada por fatores de<br />
transcrição divididos em famílias, de<br />
acordo com os domínios protéicos<br />
característicos. Os mais comuns são<br />
os fatores de transcrição do tipo<br />
hélice-volta-hélice, com zíperes básicos<br />
de leucina, com dedos de zinco<br />
e com motivos HMG (do inglês,<br />
high-mobility group). Duzentos e<br />
cinqüenta fatores de transcrição foram<br />
identificados até o momento<br />
entre os clusters de ESTs da cana-deaçúcar,<br />
incluindo um grande número<br />
de genes homeóticos que codificam<br />
fatores do tipo hélice-volta-hélice e<br />
atuam como mestres na regulação<br />
do desenvolvimento.<br />
Como a genômica pode<br />
contribuir para o melhoramento<br />
da cana-de-açúcar?<br />
A quantidade de informação gerada<br />
por um projeto da magnitude<br />
do SUCEST é imensa e projetos de<br />
prospecção de dados, como o SU-<br />
62 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
CAST, são essenciais para que as<br />
informações relevantes para a pesquisa<br />
básica e para o melhoramento<br />
da cana-de-açúcar possam ser extraídas.<br />
O SUCAST tem como uma<br />
de suas metas a organização de<br />
todas as informações da estrutura e<br />
da função de genes e proteínas que<br />
compõem e regulam as vias de<br />
transdução de sinal da cana-de-açúcar,<br />
em um banco de dados que<br />
facilite futuras análises funcionais.<br />
Para essas análises, o projeto pretende<br />
incluir dados sobre a expressão<br />
dessa categoria de genes e que<br />
serão obtidos através da tecnologia<br />
de microarrays de DNA em lâminas<br />
de vidro (chips de DNA). Utilizando<br />
essa tecnologia, será possível<br />
investigar o perfil da expressão<br />
dos genes relacionados com a transdução<br />
de sinal em resposta a sinais<br />
ambientais variados, tais como estresses<br />
bióticos ou abióticos, além<br />
da comparação da expressão desse<br />
conjunto de genes entre variedades<br />
de cana-açúcar de interesse<br />
agrícola.<br />
Além dos genes descritos neste<br />
artigo, outros projetos de data mining,<br />
que são parte do projeto<br />
SUCEST, já identificaram genes envolvidos<br />
na resistência a pragas,<br />
estresses diversos, metabolismo de<br />
açúcares, absorção de nutrientes,<br />
regulação do ciclo celular, assimilação<br />
de nitrogênio, tolerância ao alumínio<br />
e desenvolvimento da planta.<br />
A comparação do padrão de<br />
expressão desses genes com aqueles<br />
relacionados com a transdução<br />
de sinal, e que relatamos aqui, fornecerá<br />
pistas diretas sobre quais os<br />
módulos de sinalização é que regulam<br />
os processos fisiológicos e patológicos<br />
relevantes para a biologia<br />
da cana-de-açúcar. Ademais, aproximadamente,<br />
46% das ESTs da<br />
cana-de-açúcar geradas pelo SU-<br />
CEST não estão descritas em bases<br />
de dados públicas. Essas seqüências<br />
são inéditas e correspondem a genes<br />
ainda completamente desconhecidos!<br />
A engenharia genética da<br />
cana-de-açúcar e de outras gramíneas<br />
tem, portanto, um futuro garantido<br />
e promissor. As informações<br />
derivadas da análise das 250.000 ESTs<br />
da cana-de-açúcar somadas aos dados<br />
de seqüenciamento de ESTs e genoma<br />
do arroz e do milho, que estão<br />
sendo gradualmente disponibilizados,<br />
compõem uma base sólida para a<br />
elucidação dos mecanismos de defesa,<br />
de adaptação a solos e de crescimento<br />
dessas plantas em regiões de<br />
cultivo diferenciadas.<br />
Informações adicionais<br />
Detalhes sobre o trabalho de data<br />
mining do projeto SUCAST podem<br />
ser encontrados em Souza et al., 2001<br />
e nos seguintes endereços:<br />
SUCAST: http://sucest .lad.ic.<br />
unicamp.br / private/mining-reports/<br />
QG/QG-mining.htm<br />
SUCEST: http://sucest. lad. ic. unicamp.<br />
br<br />
Informações sobre as autoras<br />
Gláucia Mendes Souza é doutora<br />
em Bioquímica pela Universidade de<br />
São Paulo, fez pós-doutorado no La<br />
Jolla Cancer Research Foundation, em<br />
San Diego e no Baylor College of<br />
Medicine, em Houston, EUA. Atualmente<br />
é professora doutora no Departamento<br />
de Bioquímica do Instituto<br />
de Química da USP, São Paulo. E-<br />
mail: glmsouza@iq.usp.br<br />
Aline Maria da Silva é doutora em<br />
Bioquímica pela Universidade de São<br />
Paulo, fez pós-doutorado na Saint Louis<br />
University, em Saint Louis, EUA. É<br />
livre-docente em Bioquímica pela USP<br />
e professora associada no Departamento<br />
de Bioquímica do Instituto de<br />
Química da USP, São Paulo. E-mail:<br />
almsilva@iq.usp.br<br />
Referências<br />
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25: 3389–3402 .<br />
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domains and functional sites. Nucleic<br />
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Pimentel, G. & da Silva, F.R. (2001).<br />
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Souza, G. M., Simoes, A. C. Q., Oliveira,<br />
K. C., Garay, H. M., Fiorini, L.<br />
C., Gomes, F. S., Nishiyama-Junior,<br />
M. Y. & da Silva, A.M. (2001).<br />
SUCAST: prospecting signal transduction<br />
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Plants. Ed. Bob B. Buchanan, Wilhelm<br />
Gruissem e Russel L. Jones.<br />
American Society of Plant Physiologists.<br />
Vettore, A., Kemper, E., da Silva, F. &<br />
Arruda, P. (2001). The libraries<br />
that made SUCEST Genetics and<br />
Mol. Biol. no prelo.<br />
1<br />
(Ministério da Agricultura e Abastecimento<br />
e Food and Agriculture<br />
Organization for the United Nations)<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 63
Pesquisa<br />
Anotação Funcional<br />
Computacional de Proteínas<br />
Fotos e ilustrações cedidas pelos autores<br />
Novos métodos computacionais poderão preencher lacunas do sistema de anotação atual<br />
Daniel John Rigden<br />
Pesquisador na Área de Bioinformática<br />
Embrapa Recursos Genéticos e<br />
<strong>Biotecnologia</strong> – Cenargen/Embrapa<br />
Brasília, DF<br />
daniel@cenargen.embrapa.br<br />
Luciane Vieira de Mello<br />
Pesquisadora na Área de Bioinformática<br />
Embrapa Recursos Genéticos e<br />
<strong>Biotecnologia</strong> – Cenargen/Embrapa<br />
Brasília, DF<br />
mello@cenargen.embrapa.br<br />
Introdução<br />
característica mais importante de<br />
uma proteína é sua função. Pode<br />
até mesmo se dizer que a existência<br />
de uma proteína depende da<br />
sua função; enquanto que o DNA nãocodificante<br />
de um organismo pode incluir<br />
copias não-transcritas de genes. Sendo assim,<br />
o custo energético de sintetizar uma<br />
proteína assegura que somente proteínas<br />
com funções necessárias para um organismo<br />
sejam produzidas. A função de uma<br />
proteína pode ser descrita em vários níveis<br />
de detalhes, do fisiológico – proteína X está<br />
envolvida no processo de replicação de<br />
células –, até o químico –proteína X catalisa<br />
a hidrólise de um certo substrato. Para se<br />
determinar experimentalmente a função molecular<br />
de uma proteína, é necessário purificá-la<br />
(às vezes com a ajuda de técnicas<br />
modernas de biologia molecular), e, em<br />
seguida, testar sua atividade biológica. Os<br />
resultados podem ou não fornecer dados<br />
sobre as funções in vivo da proteína. Alternativamente,<br />
pode-se utilizar novas metodologias,<br />
como microarranjo (microarrays) ou<br />
análise proteômica, quando o objetivo é<br />
focalizar diretamente nos níveis de expressão<br />
de determinadas proteínas, ou na expressão<br />
dos genes que as codificam, sob<br />
diferentes condições ambientais, ou em diferentes<br />
etapas do desenvolvimento. Esses<br />
métodos fornecem indicações da função in<br />
vivo da proteína, mas, ao contrário dos<br />
ensaios, dizem pouco sobre a função em<br />
termos químicos e bioquímicos. Todas essas<br />
técnicas exigem um investimento significativo<br />
em equipamento e tempo, tanto que não<br />
podemos pensar em estudar diretamente<br />
mais do que uma minúscula fração de<br />
proteínas de interesse.<br />
Ao contrário, seqüências biológicas são<br />
atualmente obtidas a um custo relativamente<br />
baixo. Isso reflete no crescimento exponencial<br />
do tamanho dos bancos de dados de<br />
seqüências. Porém, essa vasta quantidade<br />
de dados é de pouco valor científico ou<br />
aplicado, sem a sua adequada anotação<br />
funcional. Como experimentos laboratoriais<br />
dificilmente vão ser capazes de tratar<br />
essa grande quantidade de dados, o caminho<br />
alternativo é através da análise computacional.<br />
Embora já existam sistemas<br />
computacionais capazes de anotar, até<br />
certo ponto, todas as novas seqüências<br />
que vêem sendo determinadas, estes ainda<br />
apresentam graves falhas. Além de<br />
produzir uma anotação significativamente<br />
incompleta, erros estão sendo introduzidos<br />
na anotação de algumas seqüências<br />
que, pela natureza do sistema, podem<br />
rapidamente ser propagados a outras seqüências<br />
a serem analisadas.<br />
Essa revisão é dividida em três partes.<br />
Na primeira, descreve-se brevemente o<br />
modo atual de anotação funcional computacional,<br />
destacando suas falhas. Na<br />
segunda parte, são discutidas as novas<br />
possibilidades para a anotação funcional<br />
computacional, cujo desenvolvimento foi<br />
estimulado pelos projetos genoma. E finalmente,<br />
as novas idéias que buscam<br />
informações sobre função através de análises<br />
de estruturas são avaliadas. Um resumo<br />
do fluxo de dados durante o processo<br />
de anotação funcional está ilustrado na<br />
Figura 1.<br />
O sistema atual de anotação<br />
funcional computacional<br />
Atualmente, novas seqüências biológicas<br />
são anotadas funcionalmente simplesmente<br />
através da comparação com<br />
seqüências existentes, que são armazenadas<br />
em bancos de dados como, por<br />
exemplo, o GenBank (http://www.ncbi.<br />
nlm. nih. gov/ entrez/query. fcgi?db =<br />
Protein). BLAST (Altschul et al, 1990) é o<br />
programa padrão para essa comparação,<br />
devido à sua extrema eficiência. Esse<br />
programa possibilita a comparação das<br />
milhares de novas seqüências geradas<br />
diariamente, com as depositadas em bancos<br />
de dados, que vêem crescendo expo-<br />
64 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
nencialmente. Assim, a nova<br />
seqüência é comparada com<br />
outra já existente e bem caracterizada,<br />
e que apresentou o<br />
maior grau de similaridade com<br />
a nova seqüência, sendo sua<br />
função transferida para esta.<br />
Dependendo do grau de similaridade,<br />
a anotação pode ser<br />
modificada de ´Proteína X´<br />
para ´Proteína X-provável´ ou<br />
´Semelhante à proteína X´, refletindo<br />
assim uma incerteza<br />
na transferência de função,<br />
em casos onde a similaridade<br />
entre as duas seqüências seja<br />
considerada baixa.<br />
A principal vantagem do<br />
sistema atual encontra-se na<br />
sua eficiência, que, mesmo<br />
em face da avalanche de seqüências<br />
novas, possibilita a<br />
anotação rápida de todas as<br />
novas seqüências. Porém, está<br />
ficando cada vez mais claro<br />
que o sistema atual tem sérias<br />
falhas. Uma falha não muito<br />
grave é a incapacidade do<br />
sistema em anotar novas seqüências<br />
que não apresentam<br />
similaridade significativa com<br />
seqüências existentes. Os resultados<br />
de projetos de genoma<br />
mostram que, em cerca de<br />
40% dos casos, uma seqüência<br />
não mostra similaridade<br />
significativa com uma proteína já caracterizada<br />
(Gerlt and Babbitt, 2000). Nesses<br />
casos, o sistema atual é incapaz de<br />
fornecer uma anotação útil.<br />
Uma falha mais grave, é uma série de<br />
problemas capazes de introduzir erros<br />
nas anotações funcionais dos bancos de<br />
dados. Uma vez que não existem dados<br />
experimentais sobre a grande maioria<br />
das proteínas, o sistema computacional<br />
transfere anotações de funções para<br />
novas seqüências com uma freqüência<br />
muito maior do que a transferência proveniente<br />
de dados laboratoriais. Assim,<br />
fica claro que qualquer erro que seja<br />
introduzido na anotação computacional,<br />
será rapidamente transmitido a múltiplas<br />
novas seqüências (Karp, 1998).<br />
Uma fonte rica de erros de interpretação<br />
de seqüências encontra-se na interpretação<br />
errônea, ou superinterpretação<br />
dos resultados do BLAST (Pertsemlidis<br />
e Fondon, 2001). O BLAST mede<br />
similaridade local de duas seqüências.<br />
Entre as propriedades não medidas pelo<br />
programa estão a similaridade global, a<br />
similaridade funcional, a similaridade<br />
Fig 1: Fluxo de dados durante o processo de<br />
anotação funcional. Linhas interrompidas indicam<br />
tradução (DNA → Proteína)<br />
estrutural e a homologia (ancestral em<br />
comum). O mau entendimento do algoritmo<br />
do programa e, portanto, das limitações<br />
associadas aos seus resultados,<br />
pode levar usuários leigos a conclusões<br />
erradas (Pertsemlidis e Fondon, 2001).<br />
Um artigo publicado na revista Nature<br />
(Ichikawa et al., 1997), e subseqüentemente<br />
retratado, é um exemplo importante<br />
(e famoso) de como erros de<br />
interpretação podem levar a conclusões<br />
errôneas do estudo. Problemas adicionais<br />
podem haver nos sistemas automatizados,<br />
nos quais a anotação é feita sem<br />
intervenção humana (Doerks et al., 1998).<br />
Por exemplo, a maior similaridade local<br />
entre uma nova seqüência e seqüências<br />
existentes pode ficar fora das regiões<br />
responsáveis pela atividade da proteína.<br />
Assim, a anotação da nova proteína<br />
ficará, pelo menos, incompleta e, algumas<br />
vezes, incorreta. Também são comuns<br />
os casos nos quais a seqüência<br />
mais parecida com a nova proteína não<br />
possui uma função anotada, ou é anotada<br />
com uma função secundária da proteína.<br />
Dessa forma, a anotação mais<br />
adequada é ignorada pelos sistemas<br />
automatizados, uma vez<br />
que o grau de similaridade da<br />
nova proteína é menor com<br />
tais proteínas. A comparação<br />
das anotações automatizadas<br />
realizadas por três diferentes<br />
grupos do genoma de Mycoplasma<br />
genitalium mostrou que<br />
as anotações possuíam, pelo<br />
menos, 8% de erro (Brenner,<br />
1999).<br />
Embora os erros de interpretação<br />
claramente contribuam<br />
para uma anotação errônea,<br />
um outro fator ainda mais<br />
problemático é a anotação por<br />
comparação, ou seja, a relação<br />
complicada entre o grau de<br />
similaridade existente entre<br />
duas seqüências, e a similaridade<br />
funcional entre elas. Resumindo,<br />
com alta identidade<br />
entre as seqüências (>80%),<br />
pode-se assumir que as suas<br />
funções sejam idênticas. Porém,<br />
na faixa de baixa identidade<br />
(
derações teriam pouca importância<br />
se, na maioria dos<br />
casos, houvesse um alto grau<br />
de identidade entre a nova<br />
proteína e a mais semelhante<br />
presente no banco de dados.<br />
Isso porque, dessa forma,<br />
poderíamos ter alta confiança<br />
na identidade de função<br />
entre as duas proteínas.<br />
No entanto, infelizmente,<br />
como mostra um estudo recente<br />
(Devos e Valencia,<br />
2001; Figura 2b) isso está<br />
longe de ser verdade. Analisando<br />
o grau de identidade<br />
entre proteínas anotadas para<br />
três genomas e as seqüências<br />
mais parecidas disponíveis,<br />
foi observado que, num<br />
caso típico (50% dos casos),<br />
somente 25%-35% de identidade<br />
de seqüência (Figura<br />
2b). Porém, como explicado<br />
acima, é justamente nessa<br />
faixas de identidade de seqüência<br />
que a relação entre<br />
identidade de seqüência e<br />
similaridade de função permitem<br />
a transferência confiável<br />
de função. Resumindo,<br />
na faixa de identidade de<br />
seqüência na qual uma anotação<br />
funcional é tipica, uma<br />
fração significativa das anotações<br />
vai ser provavelmente<br />
realizada erroneamente.<br />
Grandes erros, por exemplo<br />
no primeiro dígito do código<br />
EC, vão ser menos comuns<br />
do que erros considerados<br />
menores, ou seja, no último<br />
dígito do código, por exemplo.<br />
Nas anotações dos três<br />
genomas analisados, foi estimado<br />
que o primeiro dígito<br />
estava errado em 2% dos<br />
casos, enquanto que, para o último<br />
dígito, mais de 30% das anotações estavam<br />
incorretas.<br />
Assim, tendo-se conhecimento das<br />
limitações dos métodos de anotação<br />
atualmente disponíveis e utilizados, seja<br />
pela anotação equivocada, seja pela<br />
incapacidade de anotar cerca de 40%<br />
das proteínas, novos métodos computacionais<br />
para anotação funcional vêem<br />
sendo buscados. Hoje, após alguns anos<br />
de progresso notável, existem novas metodologias<br />
complementares ao sistema<br />
tradicional de comparação de seqüências.<br />
Na sua maioria, elas podem ser<br />
divididas em duas categorias. Primeiro,<br />
66 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002<br />
Fig 2: O problema fundamental da transferência de anotação<br />
funcional. a) Aos níveis mais baixos de identidade de seqüência,<br />
a porcentagem dos casos nos quais a função é<br />
idêntica (4 dígitos do código EC são iguais) é baixa (linhas<br />
continuas); e os pares com funções não-relacionadas (nenhum<br />
digito do código EC em comum) alta (linhas interrompidas).<br />
b) Tipicamente, durante o processo de anotação funcional<br />
computacional, a porcentagem de identidade entre a<br />
proteína a ser anotada e a seqüência encontrada no banco<br />
de dados é baixa - entre 20% e 40%. (Dados de Devos e Valencia,<br />
2001)<br />
as metodologias em decorrência dos<br />
projetos genoma (Marcotte, 2000). Isso<br />
porque esses projetos geraram informações,<br />
que são a base das novas técnicas,<br />
tais como a posição de determinados<br />
genes, ou, simplesmente, devido à grande<br />
quantidade de seqüências atualmente<br />
disponíveis. A segunda categoria contém<br />
metodologias que utilizam o aspecto<br />
estrutural (Thornton et al., 2000). Esses<br />
aspectos estruturais são provenientes,<br />
tanto de modelos protéicos, como de<br />
estruturas tridimensionais determinadas<br />
experimentalmente. Ao contrário da situação<br />
atual, na qual a maioria das estruturas<br />
determinadas experimentalmente<br />
são de proteínas de funções<br />
conhecidas, os projetos de<br />
genoma estrutural (Thornton,<br />
2001) vão ter como resultado<br />
muitas proteínas com estruturas<br />
determinadas, porém com<br />
funções desconhecidas.<br />
Genômica computacional<br />
Entre os cinco diferentes<br />
métodos que podem ser agrupados<br />
sob esse título, três são<br />
estreitamente dependentes das<br />
seqüências provenientes dos<br />
projetos de genomas completos<br />
1 , assim não se aplicando<br />
às seqüências derivadas de<br />
outras fontes, como genomas<br />
expressos (funcionais) e proteomas.<br />
Esses métodos são<br />
denominados perfis filogenéticos<br />
(filogenetic profile), contexto<br />
genômico (genome context)<br />
e genoma diferencial (subtraction<br />
of genome).<br />
O mais simples, porém o<br />
menos eficiente, desses métodos<br />
é o genoma diferencial<br />
(Huynen et al., 1997). Esse<br />
método procura localizar genes<br />
envolvidos em aspetos<br />
fisiológicos importantes de um<br />
organismo pela comparação<br />
do seu genoma com o de um<br />
organismo parecido, mas com<br />
características diferentes. Por<br />
exemplo, pode-se comparar<br />
os genomas de duas bactérias,<br />
filogeneticamente próximas,<br />
sendo que uma possui<br />
patogenicidade e a outra não.<br />
Assim, espera-se que os genes<br />
associados com a patogenicidade<br />
estejam presentes somente<br />
no genoma da bactéria<br />
patogênica. Embora resultados<br />
interessantes venham sendo obtidos,<br />
a desvantagem do método é que os<br />
genes associados com a propriedade de<br />
interesse sempre farão parte de uma<br />
grande lista de genes, incluindo muitos<br />
que estão presentes no organismo patogênico,<br />
mas que não estão associados<br />
com a doença.<br />
A técnica de perfil filogenético (Pelligrini<br />
et al., 1999) é baseada numa proposta<br />
muito simples - que componentes<br />
de complexos macromoleculares ou<br />
enzimas de uma certa via metabólica vão<br />
ser herdados concomitantemente. Assim,<br />
os componentes isolados dos complexos<br />
ou vias, que, quando presentes
isoladamente nas células, são incapazes<br />
de exercer suas funções, não são encontrados<br />
separadamente. Na primeira etapa,<br />
um perfil de uma proteína é construído,<br />
composto de dados de presença ou<br />
ausência da proteína em vários genomas.<br />
Depois, faz-se uma busca por outras<br />
proteínas com o mesmo perfil de<br />
presença ou ausência, ou um perfil<br />
pouco diferente. Essas são indicadas<br />
como proteínas possivelmente relacionadas<br />
funcionalmente com a proteína<br />
utilizada para a construção do perfil. No<br />
trabalho original, perfis construídos para<br />
proteínas do ribossomo, do flagelo (complexos<br />
macromoleculares) e da via biosintética<br />
de histidina (via metabólica)<br />
produziram resultados que estavam de<br />
acordo com os dados experimentais,<br />
demonstrando a validade desse método<br />
(Pelligrini et al., 1999). A dependência do<br />
método de perfis filogenéticos dos genomas<br />
completos é devida aos estudos de<br />
genes ou de proteínas expressas não<br />
fornecerem dados definitivos sobre a<br />
presença ou ausência de um particular<br />
gene no genoma relevante.<br />
Métodos de contexto genômico usam<br />
a existência de agrupamento (clusters) de<br />
genes nos genomas de procariotos (Overbeek<br />
et al., 1999a). Embora as razões e os<br />
mecanismos responsáveis pela manutenção<br />
desses agrupamentos sejam desconhecidos,<br />
sua característica mais marcante<br />
é a composição de genes funcionalmente<br />
relacionados. Assim, podemos<br />
inferir uma relação funcional entre os<br />
genes presentes em novos agrupamentos<br />
descobertos. Dois aspectos distintos,<br />
mas complementares, dos agrupamentos,<br />
têm poder para preverem a relação<br />
de função – a conservação de uma<br />
distância pequena entre um par de genes<br />
(Overbeek et al., 1999b) e a conservação<br />
da ordem dos genes no DNA (Overbeek<br />
et al., 1999a). Assim, podemos comparar<br />
genomas (e não seqüências individuais,<br />
como é tradicionalmente feito) buscando<br />
agrupamentos de genes em genomas<br />
filogeneticamente distantes, e inferir uma<br />
relação funcional entre os genes componentes.<br />
Observa-se que proteínas que se<br />
interagem fisicamente apresentam uma<br />
tendência particular de serem codificadas<br />
por genes de ordem conservada.<br />
Dessa forma, há uma dependência entre<br />
os métodos de contexto genômico pelas<br />
seqüências oriundas dos projetos de<br />
genoma completo. Isso ocorre, uma vez<br />
que projetos de genoma expresso e<br />
Fig 3: A grande cavidade entre os domínios 1 e 2 da estrutura experimental<br />
de uma proteína de proteção de plantas contém uma região com vários<br />
resíduos conservados (vermelho). Esse padrão está presente em toda a sua<br />
família protéica. Assim, é altamente indicada como um sítio de ligação<br />
proteoma não fornecem informações<br />
sobre posicionamento dos genes no<br />
DNA do organismo.<br />
Existem outros métodos, recentemente<br />
desenvolvidos, que podem ser aplicados<br />
a qualquer seqüência, independente<br />
da sua origem. Assim, são igualmente<br />
aplicáveis aos resultados de projetos de<br />
genoma completo, genoma expresso e<br />
proteoma, bem como às seqüências<br />
determinadas individualmente por experimentos<br />
tradicionais. Porém, vale notar<br />
que foi a quantidade de dados de seqüência<br />
provenientes, principalmente,<br />
dos projetos genoma que incentivaram o<br />
desenvolvimento dessas novas técnicas.<br />
A primeira dessas técnicas baseia-se nas<br />
conseqüências de eventos de fusão de<br />
genes (Marcotte et al., 1999). Foi observado<br />
que proteínas presentes separadamente<br />
num genoma estão, às vezes,<br />
presentes como uma única proteína, do<br />
tamanho igual à soma dos dois componentes,<br />
em outros genomas. Essa observação<br />
necessariamente implica uma relação<br />
funcional entre os dois componentes,<br />
pois seria uma desvantagem para<br />
o organismo a expressão de duas proteínas<br />
não relacionadas funcionalmente,<br />
em conjunção. A observação de um<br />
caso dessa natureza é uma forte indicação<br />
de que as proteínas, quando presentes<br />
individualmente num organismo,<br />
podem interagir. Faz-se essa inferência<br />
porque o motivo mais forte que levaria a<br />
fusão de duas proteínas seria a proximidade<br />
das duas numa via metabólica.<br />
Assim, depois da fusão, a transferência<br />
do substrato de um componente ao<br />
outro seria facilitada. Porém, a fusão<br />
pode também ser tolerada, ou até favorecida,<br />
em termos evolucionários, em<br />
caso de duas proteínas com funções<br />
relacionadas. Outras análises adicionais<br />
mostraram-se capazes de apontar casos<br />
de interação entre dois componentes<br />
protéicos, quando existentes separadamente<br />
em um determinado organismo<br />
(Marcotte et al., 1999).<br />
Enquanto as análises de contexto<br />
genômico e fusão de genes, principalmente<br />
orientadas para a identificação de<br />
1<br />
O termo genoma completo se refere-se aos projetos genoma que sequüenciam todo o conteúdo genético (DNA) de um<br />
organismo. O termo genoma estrutural foi utilizado como no Inglês, structural genome, que se refere à estrutura protéica.<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 67
Fig 4: Similaridade em características eletrostáticas é correlacionada com similaridade de função. a) diferenças em<br />
características eletrostáticas entre Phosphoglycerate mutase (esquerda) e YhfR (direita) indicam funções diferentes, mesmo<br />
que as duas proteínas exibam cerca de 30% de identidade de seqüência (Rigden et al., 2001). b) mesmo exibindo<br />
somente 16% de identidade de seqüência, similaridades eletrostáticas sugerem que as proteína rolA (direita) e papillomavirus<br />
(esquerda), são capazes de se ligarem ao DNA (Rigden e Carneiro, 1999)<br />
proteínas funcionalmente relacionadas<br />
podem indicar pares de proteínas que<br />
interagem entre si, o último novo método<br />
dessa categoria – similaridade de árvores<br />
filogenéticas (Pazos e Valencia, 2001) -<br />
funciona no sentido contrário. Ou seja,<br />
este busca por pares de proteínas que<br />
interagem e que, portanto, têm funções<br />
relacionadas. Esse método fundamentase<br />
na observação de que a evolução<br />
coordenada de proteínas que se interagem<br />
leva as suas árvores filogenéticas a<br />
serem mais parecidas do que seria esperado.<br />
Assim, analisando a correlação<br />
entre árvores construídas por duas proteínas<br />
(ou mais precisamente, a correlação<br />
entre suas distâncias evolucionárias),<br />
quando achamos uma correlação<br />
significativa, há indicação de interação<br />
entre as proteínas. Dados experimentais<br />
já comprovaram a lógica utilizada nesse<br />
método, onde interações de proteínas já<br />
conhecidas foram destacadas pelos altos<br />
coeficientes de correlação entre suas<br />
árvores.<br />
A questão que ainda existe é o quanto<br />
esse conjunto de novos métodos<br />
pode ajudar a preencher as lacunas no<br />
sistema atual de anotação funcional computacional.<br />
Uma resposta parcial encontra-se<br />
na avaliação quantitativa das técnicas<br />
descritas acima aplicadas ao genoma<br />
de Mycoplasma genitalium (Huynen et<br />
al., 2000). Observou-se que a conservação<br />
de ordem de genes é a mais poderosa<br />
técnica, uma vez que pôde ser<br />
aplicada a 37% dos genes, seguida pela<br />
análise de perfil filogenético (11% dos<br />
genes), aparência de genes em agrupamentos<br />
sem ordem conservada (8%),e,<br />
finalmente, pela técnica de fusão de<br />
genes (6%). No total, foram obtidas informações<br />
sobre 50% do complemento<br />
genético de M. genitalium através desses<br />
métodos. Essa figura é uma subestimativa<br />
da sua utilidade, uma vez que nem a<br />
técnica de genoma diferencial (não aplicável<br />
a somente um genoma), nem a de<br />
similaridade de árvores filogenéticas (recentemente<br />
publicada) foram aplicadas.<br />
Também é importante lembrar que o<br />
crescimento do uso dessas técnicas depende<br />
do crescimento dos bancos de<br />
dados de seqüências e, em particular, da<br />
disponibilidade de um número ainda<br />
maior de genomas completos. Em alguns<br />
casos, pode-se esperar que o poder<br />
da técnica cresça de acordo com o<br />
quadrado do número de genomas completos<br />
disponíveis. Para finalizar, é importante<br />
lembrar que essas técnicas, às<br />
vezes, podem produzir resultados vagos<br />
como, por exemplo, “proteínas A e B têm<br />
funções relacionadas”. No entanto, por<br />
apresentarem grande eficiência, está ficando<br />
claro que a combinação delas<br />
com os métodos tradicionais de buscas<br />
por homólogas nos bancos de dados<br />
levarão a um conhecimento bem mais<br />
profundo das novas seqüências.<br />
Bioinformática estrutural<br />
Embora métodos tradicionais de anotação<br />
funcional trabalhem somente com<br />
as seqüências protéicas, sabe-se que é a<br />
estrutura tridimensional de uma proteína,<br />
não simplesmente a sua seqüência,<br />
que determina a sua atividade. Quando<br />
a proteína se dobra, os resíduos importantes<br />
são orientados em suas corretas<br />
posições para a formação das regiões<br />
funcionais – proteínas desnaturadas, em<br />
geral, não exibem atividade. Essas regiões<br />
funcionais são, na sua maioria, interfaces<br />
para a ligação da proteína a outras<br />
moléculas. Os métodos tradicionais funcionam<br />
devido às bem conhecidas relações<br />
entre seqüência, estrutura e função<br />
de proteínas. Em geral, proteínas de uma<br />
mesma família, embora não apresentando<br />
grande similaridade de seqüência,<br />
conservam a mesma estrutura tridimensional;<br />
estrutura esta que é mais conservada<br />
do que seqüência. Sabe-se também<br />
que mais importante do que a porcentagem<br />
total de identidade entre duas<br />
seqüências,é a identidade de resíduos<br />
chaves, responsáveis pela sua função.<br />
Assim, asumindo que a estrutura conservou<br />
a orientação tri-dimensional relativa<br />
desses resíduos, as proteínas possuirão a<br />
mesma função. Com essas relações estabelecidas,<br />
justifica-se, até um certo ponto<br />
(veja acima), a suposição da conservação<br />
de função quando se observa<br />
conservação de seqüência.<br />
Mas o que acontece quando os resíduos<br />
importantes não são conservados,<br />
mesmo com grande conservação da<br />
seqüência em geral? Ou se outras mudanças<br />
na seqüência afetarem a região<br />
funcional, bloqueando o acesso ao sítio<br />
catalítico, por exemplo. Nesses casos, e<br />
em muitos outros (Gerlt e Babbitt, 2000),<br />
a análise pura de seqüência levará a<br />
conclusões erradas sobre a função, gerando<br />
os erros que, como vimos anteriormente,<br />
podem-se perpetuar rapidamente<br />
nos bancos de dados. Pode-se<br />
evitar alguns desses problemas através<br />
de uma extrapolação da seqüência em<br />
estrutura – a modelagem protéica. A<br />
grande conservação da estrutura tridimensional,<br />
mesmo após mutações em<br />
muitos resíduos, possibilita a construção<br />
de um modelo de uma proteína, em<br />
casos em que um molde adequado<br />
encontra-se disponível. Com o modelo<br />
68 <strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002
construído, fica disponível uma outra bateria<br />
de análises para determinar a probabilidade<br />
da conservação de função entre<br />
duas proteínas.<br />
A seguir, serão descritas técnicas que<br />
podem ser utilizadas na busca da determinação<br />
da função de proteínas de estrutura<br />
conhecida. Como mencionado anteriormente,<br />
essas serão principalmente geradas<br />
pelos projetos de genoma estrutural (Thornton,<br />
2001). Existem duas categorias de<br />
ferramentas de bioinformática estrutural<br />
disponíveis para a inferência de função a<br />
partir de estrutura protéica (um modelo ou<br />
uma estrutura experimental). A primeira<br />
busca por possíveis sítios de ligação (a<br />
presença dos quais pode-se esperar em<br />
quase todas as proteínas); e a segunda<br />
procura localizar possíveis sítios de catálise<br />
(só aplicáveis às enzimas).<br />
Uma vez que a ligação de uma determinada<br />
molécula a uma proteína acontece<br />
na sua superfície, é nessa região que a<br />
busca por possíveis sítios de ligação ocorre.<br />
Uma análise bastante simples, mas<br />
surpreendentemente eficiente, é a da geometria<br />
(Laskowski et al., 1996). A necessidade<br />
freqüente de uma proteína em se<br />
ligar com alta afinidade e alta especificidade,<br />
exige a formação de múltiplas interações<br />
entre a proteína e o ligante. Em<br />
particular, nos casos de ligantes pequenos,<br />
a alta afinidade e a especificidade são<br />
adquiridas pela acomodação do ligante<br />
numa região de depressão na superfície da<br />
estrutura protéica. Seguindo essa lógica,<br />
uma análise demonstrou que sítios de<br />
ligação são, muitas vezes, encontrados na<br />
maior depressão da superfície de uma<br />
proteína. Por exemplo, em casos de enzimas<br />
monoméricas, o sítio catalítico encontrou-se<br />
presente na maior depressão da<br />
superfície em 83% dos casos. Quando a<br />
maior depressão também contém uma alta<br />
concentração de resíduos conservados<br />
(ex. Figura 3), a probabilidade de o sítio de<br />
ligação encontrar-se nessa região aumenta<br />
ainda mais.<br />
Uma outra característica importante da<br />
superfície da proteína é o seu campo<br />
eletrostático. Algumas proteínas empregam<br />
interações eletrostáticas para atração<br />
do ligante (ex., proteínas de ligação ao<br />
DNA) ou para localização subcelular à<br />
membrana (ex., citocroma C). Essas proteínas<br />
exploram a carga inata do ligante ou<br />
da membrana e a força, a longa distância,<br />
das interações eletrostáticas. Diferenças<br />
em campo eletrostático podem ser indicativas<br />
de diferenças em função, como foi<br />
visto para a enzima phosphoglycerate mutase<br />
(fosfoglicerato) e uma proteína homóloga<br />
que exibe atividade catalítica muito<br />
diferente (Rigden et al., 2001; Figura 4a).<br />
Pela mesma lógica, similaridades em<br />
características eletrostáticas podem reforçar<br />
a noção de similaridade funcional<br />
entre duas proteínas. Um outro exemplo<br />
é o modelo construído da proteína rolA,<br />
a base de uma proteína que liga a DNA,<br />
mas que compartilha somente 16% de<br />
identidade de seqüência. Enquanto 16%<br />
de identidade de seqüência não assegura<br />
similaridade em função (Figura 2a), o<br />
modelo também exibe uma região altamente<br />
positiva (Figura 4b), em acordo<br />
com dados experimentais mostrando a<br />
ligação entre rolA e DNA.<br />
Recentemente, as propriedades eletrostáticas<br />
e hidrofóbicas de superfícies<br />
de proteínas foram sujeitas a um outro<br />
modo de análise – mapas de superfícies<br />
de proteínas (Pawlowski e Godzik, 2001).<br />
Aproximando as formas das proteínas<br />
como esferas, resíduos carregados e<br />
hidrofóbicos são marcados, construindo-se<br />
um mapa. Demonstrou-se que a<br />
similaridade dos mapas de proteínas<br />
possui maior relação com sua similaridade<br />
de função do que com a similaridade<br />
de seqüência. Dois outros métodos procuram<br />
possíveis sítios catalíticos e, portanto,<br />
só se aplicam às enzimas.<br />
Duas outras técnicas relacionadas<br />
buscam sítios de ligação. A primeira, que<br />
se aplica somente às interfaces proteínaproteína,<br />
utiliza redes neurais em conjunção<br />
com o conhecimento sobre os<br />
resíduos mais comumente encontrados<br />
em tais interfaces (Zhou e Shan, 2001).<br />
Cerca de 70% dos resíduos localizados<br />
nas interfaces analisadas foram identificados<br />
corretamente. A segunda técnica<br />
trabalha com informações de conservação<br />
de seqüência junto com uma estrutura<br />
protéica, buscando agrupamentos<br />
ao nível tri-dimensional de resíduos altamente<br />
conservados em um alinhamento<br />
múltiplo de seqüências homólogas (Aloy<br />
et al., 2001). Esses agrupamentos representam<br />
previsões de sítios de ligação ao<br />
substrato ou a outras proteínas. O papel<br />
fundamental de conservação de seqüência<br />
nesse método reflete-se na dependência<br />
do sucesso obtido da variação<br />
presente no alinhamento de seqüências;<br />
somente nos casos de alinhamentos<br />
contendo seqüências mais diversas foram<br />
obtidos bons resultados. Felizmente,<br />
com a alta e crescente produção de<br />
seqüências esta limitação vai pesar cada<br />
vez menos.<br />
Dois outros métodos procuram possíveis<br />
sítios catalíticos e, portanto, são<br />
aplicáveis somente às enzimas. O primeiro<br />
baseia-se na observação de evolução<br />
convergente. Com o número crescente<br />
de estruturas protéicas determinadas, ficou<br />
claro que várias classes de enzimas,<br />
mesmo não tendo uma relação evolucionária,<br />
usam conjuntos estruturalmente semelhantes<br />
de resíduos catalíticos para efetuar<br />
as suas reações químicas. O mais bem<br />
conhecido desses exemplos é a tríade<br />
catalítica Asp-His-Ser, visto pela primeira<br />
vez em serino proteases e, desde então, em<br />
várias outras classes de proteinases e lípases<br />
(Wallace et al., 1996). Através de uma<br />
análise das características geométricas dessas<br />
tríades de origens independentes, podese<br />
formular regras para a identificação de<br />
futuros novos casos de evolução convergente<br />
(ex. Aghajari et al., 1998; Hakansson<br />
et al., 2000). É claro que a obtenção do<br />
conhecimento do mecanismo químico de<br />
uma nova enzima, possivelmente obtido<br />
através desse método, representa um grande<br />
passo para o bom entendimento da sua<br />
função.<br />
Um método que identifica resíduos<br />
possivelmente catalíticos através do cálculo<br />
de curvas de titulação teórica foi recentemente<br />
publicado (Ondrechen et al., 2001).<br />
Esse método se fundamenta na observação<br />
de que resíduos catalíticos acídicos ou<br />
básicos estão freqüentemente situados em<br />
microambientes que perturbam os seus<br />
valores pK a<br />
. Essas mudanças otimizam as<br />
características do sítio catalítico para o<br />
químico ácido-base envolvido na catálise,<br />
melhorando assim a eficiência da enzima.<br />
Através de cálculos teóricos com várias<br />
estruturas de enzimas, observou-se que<br />
resíduos com curvas de titulação perturbadas<br />
estavam situados principalmente nos<br />
seus sítios catalíticos respectivos.<br />
A idéia de usar modelos derivados de<br />
seqüências a serem anotadas funcionalmente<br />
pressupõe que as estruturas resultantes<br />
são de qualidade adequada. Nesse<br />
aspecto, dois fatores positivos podem ser<br />
identificados. Primeiro, a modelagem em<br />
si é uma área muito ativa de pesquisa, na<br />
qual avanços significativos (fora do âmbito<br />
deste artigo) estão sendo realizados<br />
continuamente. Segundo, para vários desses<br />
métodos mencionados, já foi vista uma<br />
relativa insensibilidade a erros presente<br />
nas estruturas (Zhou e Shan, 2001; Pawlowski<br />
e Goszik, 2001; Aloy et al., 2001).<br />
Conclusão<br />
A determinação da função de um<br />
proteína é uma tarefa árdua, e deve ser<br />
realizada por especialistas. Como se mostrou<br />
ao longo deste artigo, a interpretação<br />
direta/simples de resultados, especialmente<br />
provenientes do BLAST (método mais<br />
<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento - nº 25- março/abril 2002 69
utilizado na anotação funcional de uma<br />
nova proteína), pode levar a resultados/<br />
conclusões errôneos. Para se afirmar com<br />
segurança a função de uma nova proteína,<br />
muitas vezes faz-se necessária a utilização<br />
de mais de uma das técnicas aqui<br />
descritas, visto que é a associação de<br />
vários resultados que indicará a função<br />
protéica tão procurada. A diminuição das<br />
falhas que levam a uma interpretação<br />
errada do genoma refletirá diretamente na<br />
diminuição da perda de todo um investimento<br />
nas primeiras etapas de um projeto<br />
genoma. Isso é, sabendo-se que a anotação<br />
é o processo de interpretação da<br />
seqüência crua, e que fornece informações<br />
biológicas, a melhoria das técnicas<br />
de anotação visa a um melhor aproveitamento<br />
prático/aplicado dos genomas que<br />
vêm sendo determinados em campos<br />
como a agricultura (ex: melhor entendimento<br />
de mecanismos de defesa das<br />
plantas), e na medicina (ex: produção de<br />
vacinas e desenvolvimento de novos fármacos).<br />
É verdade que não possuímos (ainda)<br />
muitos especialistas nessa área, que ainda<br />
se encontra em fase de crescimento, e,<br />
como dito anteriormente, mesmo sendo a<br />
anotação de genoma um foco de intensa<br />
pesquisa, os sistemas atuais estão longe de<br />
ser infalíveis. Porém, esforços vêem sendo<br />
realizados por diferentes Instituições de<br />
Pesquisas e Órgãos Financiadores, que<br />
visam à formação de novos pesquisadores,<br />
e vêm financiando projetos de pesquisa<br />
em bioinformática. Os projetos genoma<br />
vêm crescendo exponencialmente em todo<br />
o mundo, e a bioinformática é uma área<br />
que deverá crescer para que a demanda<br />
gerada por esses projetos possa ser atendida.<br />
No entando, cabe ressaltar que a<br />
anotação de genoma é simplesmente uma<br />
das diferentes frentes da bioinformática,<br />
que abrange aplicações de computação<br />
em biologia molecular, através de uma<br />
série de outras técnicas (Luscombe et al.,<br />
2001).<br />
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