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entre o rastro da história e o limiar da memória

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Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura<br />

São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128<br />

1<br />

O CORDEL DE “OS DESVALIDOS”:<br />

ENTRE O RASTRO DA HISTÓRIA E O LIMIAR DA MEMÓRIA<br />

Maria Luzia Oliveira Andrade (UFS) 1<br />

Na leitura de Os desvalidos 2 , a segun<strong>da</strong> obra <strong>da</strong> autoria do sergipano Francisco<br />

José Costa Dantas, publica<strong>da</strong> em 1993 pela Editora Companhia <strong>da</strong>s Letras, percebese,<br />

de imediato, um universo configurado mediante a força de três materiais: <strong>história</strong>,<br />

<strong>memória</strong> e testemunho. Também o cordel surge na musicali<strong>da</strong>de que brota <strong>da</strong><br />

narrativa, funcionando como uma espécie de pano de fundo que envolve o leitor<br />

durante ao longo do desenrolar <strong>da</strong> trama.<br />

A obra é dividi<strong>da</strong> em três partes “O cordel de Coriolano”, “Jorna<strong>da</strong> dos pares<br />

do Aribé”, “Emblemário de parti<strong>da</strong> e de chega<strong>da</strong>”. A primeira é centra<strong>da</strong> nas<br />

<strong>memória</strong>s de Coriolano, a segun<strong>da</strong> nas <strong>memória</strong>s dos últimos dias de Lampião e nos<br />

pares Coriolano, Felipe e Zerramo; já a terceira é um epílogo, uma espécie de análise<br />

sobre o destino previamente reservado aos personagens. Tal divisão funciona tanto<br />

como as pistas iniciais para o leitor observar com quais elementos a narrativa sobre<br />

esses personagens desvalidos é teci<strong>da</strong>, quanto como indícios de que<br />

<strong>memória</strong>,<br />

<strong>história</strong> e testemunho se <strong>entre</strong>cruzam na trama.<br />

1 Mestre em Letras pelo NPGL/UFS e professora <strong>da</strong> rede estadual de ensino de Sergipe.<br />

2 A edição de Os desvalidos utiliza<strong>da</strong> neste trabalho é a segun<strong>da</strong> edição, de 1996; doravante será<br />

utiliza<strong>da</strong>, ao longo do trabalho, a abreviatura OD para a referi<strong>da</strong> obra.


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A <strong>história</strong> começa com a notícia <strong>da</strong> morte de Lampião e a consequente<br />

comemoração eufórica de Coriolano, celebrando o fim trágico do cangaceiro, num<br />

nítido desabafo: “Toma lá, satana dos infernos!” (OD , 1996, p.11). Conta a <strong>história</strong><br />

oficial que Virgulino Ferreira <strong>da</strong> Silva é o seu nome e Lampião é o seu pseudônimo.<br />

Dizem as <strong>memória</strong>s dos mais velhos que ele é mais conhecido por onde passou com a<br />

alcunha de “cão <strong>da</strong> peste, cão <strong>da</strong>nado, peste cego”, cujas façanhas por déca<strong>da</strong>s<br />

amedrontaram o agreste e o sertão do interior de Sergipe e do Nordeste, e sobre o<br />

qual ain<strong>da</strong> paira uma áurea de anti-herói.<br />

Com uma linguagem retira<strong>da</strong> do real, <strong>da</strong> fala pausa<strong>da</strong> e quase canta<strong>da</strong> dos<br />

sertanejos configurados nos personagens desta ficção, a obra tece uma ruptura <strong>da</strong>s<br />

barreiras <strong>entre</strong> o prosaico e o poético. Com isso, a narrativa é impregna<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

orali<strong>da</strong>de retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> linguagem <strong>da</strong> sofri<strong>da</strong>, mas forte gente nordestina que, segundo<br />

os repentistas, adota a desconfiança como uma <strong>da</strong>s normas de sobrevivência e<br />

manutenção de sua coragem e força.<br />

É como se o leitor real do interior sergipano reconhecesse e até ouvisse, via<br />

reconstrução <strong>da</strong>s <strong>memória</strong>s representa<strong>da</strong>s na obra, os próprios avós e bisavós<br />

relatarem as batalhas trava<strong>da</strong>s no passado pelas brenhas do agreste e do alto-sertão.<br />

Ou ain<strong>da</strong>, se o mesmo leitor rememorasse as proezas desse cangaceiro, canta<strong>da</strong>s<br />

pelos repentistas nas feiras livres do interior e <strong>da</strong> periferia <strong>da</strong> capital, reelabora<strong>da</strong>s<br />

por Dantas com os acordes <strong>da</strong> cultura popular. Não obstante a relação <strong>entre</strong> o factual<br />

e o ficcional, a representação do cangaço ain<strong>da</strong> ganha um ar de peculiari<strong>da</strong>de e de


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novi<strong>da</strong>de temática, quando o leitor leva em conta a forma como a narrativa é<br />

construí<strong>da</strong>, quer pela técnica narrativa, quer pela explosão de <strong>memória</strong>s individuais<br />

e sociais testemunhando a <strong>história</strong>.<br />

As vozes populares e, por conseguinte, os causos sobre a valentia e a destreza<br />

de Lampião ditam o ritmo <strong>da</strong>s <strong>história</strong>s conta<strong>da</strong>s nesta obra. Histórias essas<br />

recupera<strong>da</strong>s do velho hábito <strong>da</strong>s antigas gerações do interior de (re)contarem suas<br />

vicissitudes. Ou melhor, <strong>história</strong>s e <strong>memória</strong>s dos velhos, como diria Ecléa Bosi<br />

(2007). Hábito de rememorar numa tentativa de eternizar, mesmo que<br />

temporariamente, sua tragédia cotidiana. No caso nordestino, o maior dos dramas: os<br />

feitos de um cangaceiro que – ao desafiar o Governo com saques aos fazendeiros e<br />

embosca<strong>da</strong>s aos “oficiais”, ou melhor, aos sol<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> lei – aterrorizou o Nordeste<br />

brasileiro na primeira metade do século XX.<br />

É dentro desse contexto histórico-rememorativo que Dantas recorre à estrutura<br />

do cordel para contar os reveses dos sergipanos nos tempos do cangaço. Vicissitudes<br />

que ganham forma poética na própria estrutura do cordel, dissolvi<strong>da</strong> na<br />

materiali<strong>da</strong>de textual de Os desvalidos. No entanto, a constatação <strong>da</strong> presença <strong>da</strong><br />

cultura popular e do próprio cordel no referido texto literário não é nova. Por um<br />

lado, Alfredo Bosi (1997) foi quem afirmou que a trama de Os desvalidos é construí<strong>da</strong><br />

com os acordes <strong>da</strong> cultura popular. Por outro, Marta Morais <strong>da</strong> Costa (1994) foi quem<br />

primeiro percebeu a presença do cordel em Os desvalidos, num ensaio publicado um<br />

ano após o lançamento deste texto literário.


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Sobre esse aspecto, a produção do cordel divide-se em dois tipos: folheto e<br />

romance; o primeiro corresponde a textos curtos ou de poucas páginas, já o segundo<br />

a textos longos nos quais sobressai o sofrimento que narra as desgraças<br />

dos<br />

protagonistas (cf. MEYER, 1980 apud COSTA, 1994). Na opinião de Marta Morais <strong>da</strong><br />

Costa, o cordel se faz presente nas três divisões ou partes <strong>da</strong> narrativa de Os<br />

desvalidos: “O cordel de Coriolano”, “Jorna<strong>da</strong> dos pares do Aribé”, “Emblemário de<br />

parti<strong>da</strong> e de chega<strong>da</strong>”.<br />

Na primeira parte, “a pretensão de Coriolano ao narrar o acontecido e as<br />

desgraças decorrentes aponta para esse romance de sofrimento”. Na segun<strong>da</strong>, a obra<br />

também “mantém a ligação com a literatura de cordel ao estabelecer –<br />

via o<br />

vocábulo pares – o anúncio de feitos de bravura como os d' Os doze pares de França,<br />

um dos ‘livros do povo’’’. Na terceira assim “como nos folhetos e nos romances de<br />

cordel, o encaminhamento, do texto conduz, ao final, na exposição <strong>da</strong> morali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

<strong>história</strong> li<strong>da</strong>, para uma conclusão de ordem moralizadora” (COSTA, 1994, p. 31).<br />

É na evidência desse cordel presente na estrutura de Os desvalidos que os dois<br />

planos temáticos se <strong>entre</strong>cruzam: o de Coriolano e o de Lampião. No primeiro, estão<br />

configura<strong>da</strong>s a vi<strong>da</strong> de Coriolano e <strong>da</strong> sua família: tio Felipe, compadre Zerramo e Zé<br />

Queixa<strong>da</strong> (outrora Maria Melona). No segundo, está configura<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> de Lampião<br />

que – ao ver o próprio pai assassinado por um sol<strong>da</strong>do <strong>da</strong> lei – resolve roubar, matar<br />

e viver eternamente num projeto de vingança ao Governo e aos aliados deste,


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passando por cima de todos e vitimando a muitos para saciar a própria sede de<br />

vingança e, com isso, <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong>de à tradição do cangaço no sertão nordestino.<br />

No meio desse fogo cruzado se encontra o povo do interior sergipano,<br />

representado na obra como uma massa de pessoas desfavoreci<strong>da</strong>s ou desvali<strong>da</strong>s, mas<br />

contraditoriamente forte e sobrevivente do horror <strong>da</strong>s lutas trava<strong>da</strong>s Nordeste a fora.<br />

Essa gente não conta com a aju<strong>da</strong> do Governo nem com a proteção dos cangaceiros e,<br />

em decorrência disso, é a grande vítima do cenário <strong>da</strong> guerra trava<strong>da</strong> no cenário<br />

enfeitado pelos pés de jurema, palma e macambira.<br />

Neste cenário, são vítimas de varia<strong>da</strong>s torturas, pois, quando “o bando de<br />

Lampião e a volante do governo agora deram pra esta zona do Aribé. Enquanto se<br />

perseguem e se chama em porfia<strong>da</strong>s e sangrentas brigas” (OD, 1996, p. 125)<br />

absurdos acontecem, conforme são representa<strong>da</strong>s no folhetos e no romance. Os<br />

cangaceiros “vão também esfolando a região, a saque, morte e desonra, metendo o<br />

pau na pobreza desvali<strong>da</strong>. Furam olhos, arrancam unhas, decepam os quibas e a<br />

metade <strong>da</strong> língua” (OD, 1996, p. 125).<br />

Quer na forma, quer no conteúdo, a presença do cordel em Os desvalidos<br />

revigora os dois aspectos teóricos: o <strong>da</strong> <strong>história</strong> e o <strong>da</strong> <strong>memória</strong>, na medi<strong>da</strong> em que<br />

não se contrapõem ao cordel, mas se <strong>entre</strong>cruzam com ele num discurso construído<br />

por um narrador que tenta recuperar as vozes populares e, por conseguinte, a<br />

<strong>história</strong> oficial e a não oficial, os causos e as <strong>memória</strong>s sociais de uma gente<br />

testemunha ocular do ciclo do cangaço em Sergipe.


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A representação de <strong>história</strong>s vivi<strong>da</strong>s, em parte, numa releitura <strong>da</strong> <strong>história</strong><br />

oficial é de singular importância em Os desvalidos, uma vez que o narrador dessa obra<br />

tanto funciona como um intermediário de experiências quanto como um<br />

colecionador de vivências de um povo, à medi<strong>da</strong> que se movimenta, ou melhor,<br />

mu<strong>da</strong> de ótica, durante todo decurso narrativo, para oferecer ao leitor várias<br />

perspectivas pelas quais a <strong>história</strong> do cangaço está sendo conta<strong>da</strong>.<br />

Assim, o narrador-onisciente de Os desvalidos constantemente sede lugar a dois<br />

personagens-narradores, testemunhas personifica<strong>da</strong>s na figura de Coriolano (o povo)<br />

e de Lampião (o cangaço) . Coriolano e Lampião são, segundo Al<strong>da</strong>ir Smith de<br />

Menezes (2011), respectivamente, os narradores <strong>da</strong> primeira e <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong><br />

obra. Particularmente, este é um efeito obtido com o trabalho de Dantas com a<br />

<strong>memória</strong>: <strong>da</strong>r voz na ficção às testemunhas diretas e indiretas de sua <strong>história</strong>. Quer<br />

como personagem do povo, quer como chefe do cangaço, quer ain<strong>da</strong> como<br />

narradores de suas <strong>história</strong>s e <strong>memória</strong>s, o que é <strong>da</strong>do ao leitor são versões possíveis<br />

sobre o terror vivido pelos sergipanos no tempo do cangaço.<br />

O narrador de Os desvalidos é aquele que, inicialmente, dentro de uma proposta<br />

benjaminiana, parece procurar intercambiar experiências, porque as próprias<br />

experiências transmiti<strong>da</strong>s de boca em boca, retira<strong>da</strong>s <strong>da</strong> tradição oral de uma<br />

comuni<strong>da</strong>de são mais ricas do que as cataloga<strong>da</strong>s nos livros <strong>da</strong> <strong>história</strong> oficial, pois<br />

“a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que recorrem todos os<br />

narradores” (BENJAMIN, 1994, p. 128).<br />

Sabe-se que Francisco Dantas é filho de


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Riachão do Dantas, Sergipe, onde viveu a maior parte de sua vi<strong>da</strong>. Também se sabe<br />

que a principal marca de suas obras é esse interior sergipano (configurado em Rio<strong>da</strong>s-Pari<strong>da</strong>s)<br />

e o eixo Sergipe/Bahia/Alagoas.<br />

O narrador de Os desvalidos é aquele que funciona como a personificação de um<br />

sujeito-autor, antena do mundo, captando as experiências de uma comuni<strong>da</strong>de, a<br />

configuração do interior sergipano e dos estados circunvizinhos. Nesse caso, o texto<br />

literário parece funcionar como uma mediação com a socie<strong>da</strong>de representa<strong>da</strong>, à<br />

medi<strong>da</strong> que coloca em perspectiva a cultura de um povo, no sentido mais amplo de<br />

hábitos, costumes, valores, vivências e relatos de experiências (WILLIANS, 1979).<br />

Tudo, enfim, funcionando como uma autêntica representação do imaginário social de<br />

uma gente que se inscreve na <strong>história</strong> e nas produções culturais que reconstroem o<br />

mosaico de suas experiências.<br />

Dantas também dá voz ao algoz <strong>da</strong> trama que aparece para <strong>da</strong>r o testemunho<br />

direto de sua <strong>história</strong>: “E dizer que eu, Virgulino Lampião, o brabo! (OD, 1996, p.<br />

153) representado, ora na figura de um assassino frívolo, ora na forma humaniza<strong>da</strong>.<br />

O cangaceiro é um homici<strong>da</strong> impiedoso na execução de mais uma vingança, quer à<br />

volante, quer aos coronéis que apoiam o governo “paguei ao Petronilo o preção<br />

estipulado <strong>da</strong>quela cara fazen<strong>da</strong>, só pelo merecimento de meio de<strong>da</strong>lzinho de<br />

formici<strong>da</strong>-tatu no feijão envenenado! Coronel de cocô de galinha choca! [...] também<br />

<strong>da</strong>í a pouco tudo pega fogo. Toma satanás! (OD, 1996, p. 153) e Lampião , nesse<br />

episódio, mais uma vez, confirma a sua fama de “cão <strong>da</strong> peste”.


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Num contraponto à personificação do demônio, a imagem do cangaceiro<br />

humanizado também aparece, mediante a rememoração de quadros <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

conjugal, o amor devotado a sua mulher, ou ain<strong>da</strong>, realizando o parto de Maria<br />

Bonita e, uma semana depois, cui<strong>da</strong>ndo do umbigo <strong>da</strong> filha recém-nasci<strong>da</strong>. Essa<br />

humanização de Lampião está representa<strong>da</strong> num episódio marcado por um<br />

momento ímpar <strong>da</strong> trama, quando o cangaceiro “pôde enfim, com as próprias mãos,<br />

fazer o parto dela [...] Não demorou um tico de na<strong>da</strong>, e logo sai o chorinho <strong>da</strong> bitela<br />

de uma menina-mulher” (OD, 1996, p. 189).<br />

Quando observa<strong>da</strong> de perto, essa passagem é interessante, pois surge num<br />

episódio narrado, ora com a frieza do cangaceiro aconselhando Maria Bonita a não se<br />

apegar à filha porque criança não pode morar num cangaço e cangaceira não tem o<br />

direito de ser mãe, ora com o sofrimento de Lampião ao narrar a decisão para ele<br />

inevitável de <strong>entre</strong>gar a filha em adoção a um vaqueiro e esposa. Num raro<br />

momento, o cangaceiro desabafa: “Ai,meu povinho, dói na alma o sujeito não poder<br />

botar no próprio filho o nome de família, por medo de vingarem no inocente a má<br />

fama que pegou devido aos tiroteios do pai! Esta menina derradeira, dei ao vaqueiro<br />

Zé Sereno pra dona Aurora criar” (OD, 1996, p. 189-190).<br />

É dentro dessa perspectiva do humano e do inumano que o leitor pode inserir<br />

os personagens de Os desvalidos, pois a figura do assassino cruel construí<strong>da</strong> por<br />

Coriolano é apenas um lado <strong>da</strong> moe<strong>da</strong>; no outro está a imagem do pai e do homem<br />

apaixonado que emerge do testemunho do cangaceiro sobre si próprio.<br />

Ao ceder


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lugar aos testemunhos de outrem, o narrador construído por Dantas é aquele que se<br />

fragmenta e, com isso, assume outras formas, como a do algoz Lampião e a dos<br />

abandonados à própria sorte, conforme se observa nas reflexões de Coriolano, uma<br />

<strong>da</strong>s ópticas narrativas <strong>da</strong> trama: “De algum modo precisa apaziguar o pânico que<br />

começa a alastrar vadiando a cara de Coriolano [...) o homem tem poder de fogo, tem<br />

oração forte! Se manga a te do governo”(OD, 1996, p.173).<br />

O movimento <strong>da</strong> ótica narrativa e o relato dos personagens, por vezes,<br />

<strong>entre</strong>meados à rememoração de quem conta as <strong>memória</strong>s funciona como marcas <strong>da</strong><br />

existência tanto de <strong>memória</strong>s sociais quanto de <strong>memória</strong>s individuais no mesmo<br />

texto ficcional. Não que uma não esteja inseri<strong>da</strong> na outra, mas a narrativa simula a<br />

interface <strong>da</strong>s <strong>memória</strong>s e a apropriação <strong>da</strong>quela por esta <strong>memória</strong>. Isso ocorre no<br />

momento em que se resgatam experiências vivi<strong>da</strong>s, pois, nesse inatante, a <strong>memória</strong><br />

individual está atravessa<strong>da</strong> pela <strong>memória</strong> social <strong>da</strong> qual ela própria faz parte<br />

(HALBWACHS, 2006) e, com isso, a <strong>memória</strong> individual participa <strong>da</strong> <strong>memória</strong> social<br />

e com ela se confunde.<br />

Muitas <strong>da</strong>s lembranças individuais de alguém têm origem no contexto social e<br />

familiar nos quais se vive (BOSI, 2007). Sendo assim, a <strong>memória</strong> individual é um<br />

ponto de vista sobre a <strong>memória</strong> coletiva, porque por muito que se deva à <strong>memória</strong><br />

coletiva, é a <strong>memória</strong> individual que recorta (BOSI, 2007), seleciona e atribui uma<br />

subjetivi<strong>da</strong>de às vozes e aos causos que brotam <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e dos quais ca<strong>da</strong> pessoa<br />

conscientemente ou não é portadora. Noutras palavras, os relatos que se ouve <strong>da</strong>


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família, dos amigos e <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de em geral formam um arquivo e constituem<br />

uma <strong>memória</strong> que, sendo individual e intransferível, também é fruto <strong>da</strong>s<br />

experiências de outros e <strong>da</strong> vivência de muitos.<br />

Nesta narrativa de Dantas, o leitor também percebe a presença <strong>da</strong> <strong>memória</strong><br />

histórica, cuja característica básica é o seu caráter exterior, externo. Da mesma forma<br />

que a <strong>memória</strong> social absorve elementos <strong>da</strong> <strong>memória</strong> individual,<br />

a <strong>memória</strong><br />

histórica recebe aju<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>memória</strong> autobiográfica (interna, pessoal), ha ja vista a<br />

histórica ser muito mais abrangente e extensa que aubiográfica (HALBWACHS, 2006,<br />

p. 73), pois se serve de dos testemunhos dos outros para compor e recompor o<br />

quadro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cultural.<br />

No processo de composição do texto literário, Dantas se serviu <strong>da</strong> <strong>memória</strong><br />

autobiográfica enquanto espectador, provavelmente impressionado, dos causos<br />

contados no interior do estado sobre a saga de Lampião. Mas também se serviu <strong>da</strong><br />

<strong>memória</strong> histórica, dos registros, <strong>da</strong> narrativa documenta<strong>da</strong> nas páginas <strong>da</strong> <strong>história</strong><br />

oficial. De modo semelhante, o narrador de Os desvalidos caminha no <strong>rastro</strong> dessas<br />

duas rememorações, fazendo uso de testemunhos orais e escritos, bem como <strong>da</strong>s<br />

impressões que o cangaceiro deixou por onde passou. Sobre esse aspecto, a intenção<br />

inicial – mas não concretiza<strong>da</strong> por Coriolano de escrever sua versão sobre a <strong>história</strong><br />

do cangaço – representa uma tentativa de recolher testemunhos e de não deixar a<br />

<strong>memória</strong> se apagar.


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Daí o narrador construído por Dantas constantemente ceder lugar ao<br />

testemunho <strong>da</strong>queles que viveram e sofreram as próprias experiências, fazendo-os<br />

partícipes e narradores dessas <strong>memória</strong>s, tais como Coriolano e Lampião.<br />

Testemunhos recolhidos por Coriolano e vivenciados tanto por este como por tio<br />

Felipe, primeiro como comerciantes, depois como caixeiros-viajantes, o que os fazem<br />

conhecer as duas faces do recolhedor de causos do alto-sertão e coloca-os na<br />

condição de expectadores e atores <strong>da</strong>s próprias <strong>história</strong>s.<br />

Como expectadores são testemunhas do combate travado <strong>entre</strong> volante e<br />

cangaceiros; como atores de suas <strong>história</strong>s se veem na posição de coadjuvantes <strong>da</strong>s<br />

batalhas trava<strong>da</strong> no sertão sergipano e nordestino, o que se percebe no episódio em<br />

que “Coriolano apertou a mão de Zerramo, num trato de vago encontro futuro:<br />

ain<strong>da</strong> não era desta feita!” (OD, 1996, p. 92). Embora o personagem tenha pensado<br />

que o próprio fim não chegaria naquele momento, com uma ar de premunição, um<br />

medo visceral anunciava o que em segui<strong>da</strong> aconteceria quando “ Virou a rédea <strong>da</strong><br />

nova montaria para o norte, e se largou em busca de Propriá, vindo a topar no<br />

caminho uma tropa de cachimbos que ia socorrer uma volante encurrala<strong>da</strong> por gente<br />

de Lampião” (OD, 1996, p.92).<br />

No estado de pânico oriundo <strong>da</strong> experiência de uma situação limite,<br />

Coriolano, Felipe, Zerramo e Maria Melona testemunham o desenrolar <strong>da</strong> saga de<br />

Lampião, com o próprio testemunho e com o depoimento dos outros, pois to<strong>da</strong><br />

<strong>memória</strong> é fruto de testemunhos. Sobre esse aspecto, to<strong>da</strong> <strong>memória</strong> é testemunhal,


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pois “a testemunha não seria somente aquele que viu com os próprios olhos, a<br />

testemunha direta” (GAGNEBRIN, 2004, p. 93), mas seria também quem ouve a<br />

narração <strong>da</strong> experiência do outro (cf. GAGNEBRIN, 2004).<br />

Testemunho também prestado, quer por Lampião, como um contraponto, a<br />

outra versão dos fatos <strong>da</strong> narrativa, quer pelo frenesi <strong>da</strong>s outras <strong>memória</strong>s <strong>da</strong>s quais<br />

por vezes Coriolano é portador, fruto <strong>da</strong> notícia <strong>da</strong> morte de Lampião guar<strong>da</strong><strong>da</strong> na<br />

<strong>memória</strong> social. Contudo, com traços de impressões individuais sobre os fatos<br />

narrados, conforme o leitor observa no relato sobre a morte do próprio Lampião:<br />

“pouco a pouco o pessoal se ajunta mais animando num cardume de gente que<br />

desemboca de dentro <strong>da</strong>s esquinas e se encaminha para o coreto” (OD, p.12) . Isso<br />

com o intuito de testemunhar “o sangue dessa festiva degola, a vi<strong>da</strong> em Rio-<strong>da</strong>s-<br />

Pari<strong>da</strong>s agora ressuscitasse, voltando a seu normal, enfim desobriga<strong>da</strong> do zarollo rei<br />

enfuriado que cobrava suas justiças acima <strong>da</strong> lei dos homens, e também <strong>da</strong> lei de<br />

Deus (OD, 1996, p.12).<br />

A condição social <strong>da</strong> qual Lampião primeiro foi vítima, depois algoz e<br />

posteriormente mito, dentro e fora <strong>da</strong> ficção, não tiraram as impressões controversas<br />

que esse personagem do cangaço deixou na <strong>história</strong> e na <strong>memória</strong> do agreste e do<br />

sertão nordestino. Justiceiro, anti-heroi, bandido e len<strong>da</strong> são faces dos testemunhos e<br />

<strong>da</strong>s <strong>memória</strong>s dessa época do cangaço, que pouco antes <strong>da</strong> morte, em Os desvalidos, o<br />

cangaceiro desmitifica a própria figura, ao explicar uma de suas façanhas, quando<br />

fugiu de uma embosca<strong>da</strong> <strong>da</strong> volante e todos “ficaram de boca aberta , jurando a todo


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mundo que outra vez Lampião se fizera encantado. Por isso tinham visto um vultão<br />

batendo asa e avoando!” (OD, 1996,<br />

p.193). Admirado <strong>da</strong> própria imagem em<br />

construção na cultura, o cangaceiro complementa “Pois sim! Eu é quem sei a dureza<br />

que foi varar, depois de meia noite, a mataria e os espinhos sem deixar <strong>rastro</strong>s,<br />

descendo os mais afadigados pendurados no cipó” (OD, 1996, p.193).<br />

De modo que, segundo a História, a saga de Lampião chega ao fim, assassinado<br />

juntamente com o seu bando em Angico, sertão de Sergipe. Segundo as <strong>memória</strong>s<br />

presentes na ficção de Os desvalidos, a notícia de sua morte foi<br />

comemora<strong>da</strong> pelos<br />

moradores do sertão pelas <strong>memória</strong>s que aju<strong>da</strong>m a contar a <strong>história</strong> nesta obra<br />

compondo, na opinião de Regina Zilberman (2007), a rica verte nte memorialista <strong>da</strong><br />

qual Francisco Dantas faz parte.<br />

Referências Bibliográficas<br />

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