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O SEGUNDO SEXO VOL 1 - SIMONE DE BEAUVOIR

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noite, o homem convida a mulher ao pecado, mas em pleno dia<br />

repudia o pecado e a pecadora. E as mulheres, elas próprias pecadoras<br />

no mistério do leito, com muito mais paixão ainda rendem<br />

culto público à virtude. Assim como, entre os primitivos, o<br />

sexo masculino é laico enquanto o da mulher se impregna de<br />

virtudes religiosas e mágicas, não passa, nas sociedades mais<br />

modernas, o erro do homem de um deslize sem gravidade; consideram-no<br />

amiúde com indulgência. Mesmo se desobedece às<br />

leis da comunidade, o homem continua a pertencer-lhe; não passa<br />

de um menino levado que não ameaça profundamente a ordem<br />

coletiva. Ao contrário, se a mulher se evade da sociedade, retorna<br />

à natureza e ao demônio, desencadeia no seio da coletividade<br />

forças incontroláveis e perniciosas. Ã censura que inspira uma<br />

conduta desavergonhada, mistura-se sempre o medo. Se o marido<br />

não consegue constranger a mulher à virtude, êle participa<br />

do erro; sua desgraça é uma desonra aos olhos da sociedade;<br />

há civilizações tão severas que lhe obrigam a matar a criminosa para<br />

se dessolidarizar do crime. Em outras, pune-se o esposo complacente<br />

passeando-o, nu, montado num asno. E a comunidade<br />

encarrega-se de castigar a culpada em seu lugar: pois não é apenas<br />

a êle que ela ofende e sim toda a coletividade. Esses costumes<br />

existiram com certo rigor na Espanha supersticiosa e mística,<br />

sensual e aterrorizada pela carne. Calderón, Lorca, Valle Inclan<br />

fizeram disso o tema de muitos dramas. Em Casa de Bernarda<br />

Alba, de Lorca, as comadres da aldeia querem punir a jovem<br />

seduzida queimando com brasas "o lugar do pecado". Nas Divinas<br />

Palavras de Valle Inclan, a mulher adúltera apresenta-se como<br />

feiticeira que dança com o demônio; descoberto o pecado, toda<br />

a aldeia se reúne para arrancar-lhe as roupas e afogá-la. Muitas<br />

tradições relatam que se desnudava a pecadora e a seguir a lapidavam<br />

como está dito no Evangelho, enterravam-na viva, afogavam-na,<br />

queimavam-na. O sentido de tais suplícios era devolvê-la<br />

à Natureza depois de tê-la despojado de sua dignidade social;<br />

com seu pecado ela desencadeara eflúvios naturais perniciosos<br />

e a expiação efetua-se numa espécie de orgia sagrada em que as<br />

mulheres, despindo, batendo, massacrando a culpada, desencadeavam<br />

por sua vez fluidos misteriosos mas propícios, porquanto<br />

agiam de acordo com a sociedade.<br />

Essa severidade selvagem perde-se à proporção que diminuem<br />

as superstições e que o medo se dissipa. Mas, nos campos, olham<br />

com desconfiança as ciganas sem Deus nem lar. A mulher que<br />

exerce livremente o comércio de seus encantos — aventureira,<br />

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