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noite, o homem convida a mulher ao pecado, mas em pleno dia<br />
repudia o pecado e a pecadora. E as mulheres, elas próprias pecadoras<br />
no mistério do leito, com muito mais paixão ainda rendem<br />
culto público à virtude. Assim como, entre os primitivos, o<br />
sexo masculino é laico enquanto o da mulher se impregna de<br />
virtudes religiosas e mágicas, não passa, nas sociedades mais<br />
modernas, o erro do homem de um deslize sem gravidade; consideram-no<br />
amiúde com indulgência. Mesmo se desobedece às<br />
leis da comunidade, o homem continua a pertencer-lhe; não passa<br />
de um menino levado que não ameaça profundamente a ordem<br />
coletiva. Ao contrário, se a mulher se evade da sociedade, retorna<br />
à natureza e ao demônio, desencadeia no seio da coletividade<br />
forças incontroláveis e perniciosas. Ã censura que inspira uma<br />
conduta desavergonhada, mistura-se sempre o medo. Se o marido<br />
não consegue constranger a mulher à virtude, êle participa<br />
do erro; sua desgraça é uma desonra aos olhos da sociedade;<br />
há civilizações tão severas que lhe obrigam a matar a criminosa para<br />
se dessolidarizar do crime. Em outras, pune-se o esposo complacente<br />
passeando-o, nu, montado num asno. E a comunidade<br />
encarrega-se de castigar a culpada em seu lugar: pois não é apenas<br />
a êle que ela ofende e sim toda a coletividade. Esses costumes<br />
existiram com certo rigor na Espanha supersticiosa e mística,<br />
sensual e aterrorizada pela carne. Calderón, Lorca, Valle Inclan<br />
fizeram disso o tema de muitos dramas. Em Casa de Bernarda<br />
Alba, de Lorca, as comadres da aldeia querem punir a jovem<br />
seduzida queimando com brasas "o lugar do pecado". Nas Divinas<br />
Palavras de Valle Inclan, a mulher adúltera apresenta-se como<br />
feiticeira que dança com o demônio; descoberto o pecado, toda<br />
a aldeia se reúne para arrancar-lhe as roupas e afogá-la. Muitas<br />
tradições relatam que se desnudava a pecadora e a seguir a lapidavam<br />
como está dito no Evangelho, enterravam-na viva, afogavam-na,<br />
queimavam-na. O sentido de tais suplícios era devolvê-la<br />
à Natureza depois de tê-la despojado de sua dignidade social;<br />
com seu pecado ela desencadeara eflúvios naturais perniciosos<br />
e a expiação efetua-se numa espécie de orgia sagrada em que as<br />
mulheres, despindo, batendo, massacrando a culpada, desencadeavam<br />
por sua vez fluidos misteriosos mas propícios, porquanto<br />
agiam de acordo com a sociedade.<br />
Essa severidade selvagem perde-se à proporção que diminuem<br />
as superstições e que o medo se dissipa. Mas, nos campos, olham<br />
com desconfiança as ciganas sem Deus nem lar. A mulher que<br />
exerce livremente o comércio de seus encantos — aventureira,<br />
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