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RTJ 199-2 (Fev-07)- Pré-textuais.pmd - STF

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Supremo Tribunal Federal<br />

Revista Trimestral de<br />

Jurisprudência<br />

Volume <strong>199</strong> – Número 2<br />

Janeiro / Março de 20<strong>07</strong><br />

Páginas 425 a 870


Diretoria-Geral<br />

Sérgio José Américo Pedreira<br />

Secretaria de Documentação<br />

Altair Maria Damiani Costa<br />

Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência<br />

Nayse Hillesheim<br />

Seção de Preparo de Publicações<br />

Leide Maria Soares Corrêa Cesar<br />

Seção de Padronização e Revisão<br />

Rochelle Quito<br />

Seção de Distribuição de Edições<br />

Margarida Caetano de Miranda<br />

Diagramação: Manoel Vieira Santana<br />

Capa: Patrícia Weiss Martins de Lima<br />

Edição: Supremo Tribunal Federal<br />

(Supremo Tribunal Federal — Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)<br />

Revista trimestral de jurisprudência / Supremo Tribunal Federal,<br />

Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência. – Ano 1,<br />

n. 1 (abr./jun. 1957) - . – Brasília: Imprensa Nacional, 1957-<br />

v. <strong>199</strong>-2; 22 cm.<br />

Três números a cada trimestre.<br />

Editores: Editora Brasília Jurídica, 2002-2006; Supremo<br />

Tribunal Federal 20<strong>07</strong>- .<br />

ISSN 0035-0540<br />

1. Direito - Jurisprudência - Brasil. I. Brasil. Supremo<br />

Tribunal Federal (<strong>STF</strong>).<br />

CDD-340.6<br />

Solicita-se permuta.<br />

Pídese canje.<br />

On demande l'échange.<br />

Si richiede lo scambio.<br />

We ask for exchange.<br />

Wir bitten um Austausch.<br />

<strong>STF</strong>/CDJU<br />

Anexo I, 2º andar<br />

Praça dos Três Poderes<br />

70175-900 – Brasília-DF<br />

rtj@stf.gov.br<br />

Fone: (0xx61) 3217-3573


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL<br />

Ministra ELLEN GRACIE Northfleet (14-12-2000), Presidente<br />

Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002), Vice-Presidente<br />

Ministro José Paulo SEPÚLVEDA PERTENCE (17-5-1989)<br />

Ministro José CELSO DE MELLO Filho (17-8-1989)<br />

Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13-6-<strong>199</strong>0)<br />

Ministro Antonio CEZAR PELUSO (25-6-2003)<br />

Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO (25-6-2003)<br />

Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003)<br />

Ministro EROS Roberto GRAU (30-6-2004)<br />

Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (16-3-2006)<br />

Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21-6-2006)<br />

COMISSÃO DE REGIMENTO<br />

Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE<br />

Ministro GILMAR MENDES<br />

Ministra CÁRMEN LÚCIA<br />

Ministro EROS GRAU – Suplente<br />

COMISSÃO DE JURISPRUDÊNCIA<br />

Ministro MARCO AURÉLIO<br />

Ministro CEZAR PELUSO<br />

Ministro JOAQUIM BARBOSA<br />

COMISSÃO DE DOCUMENTAÇÃO<br />

Ministro CELSO DE MELLO<br />

Ministro CARLOS BRITTO<br />

Ministro RICARDO LEWANDOWSKI<br />

COMISSÃO DE COORDENAÇÃO<br />

Ministro GILMAR MENDES<br />

Ministro CEZAR PELUSO<br />

Ministro EROS GRAU<br />

PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA<br />

Doutor ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA


COMPOSIÇÃO DAS TURMAS<br />

PRIMEIRA TURMA<br />

Ministro José Paulo SEPÚLVEDA PERTENCE, Presidente<br />

Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello<br />

Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO<br />

Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI<br />

Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha<br />

SEGUNDA TURMA<br />

Ministro José CELSO DE MELLO Filho, Presidente<br />

Ministro GILMAR Ferreira MENDES<br />

Ministro Antonio CEZAR PELUSO<br />

Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes<br />

Ministro EROS Roberto GRAU


SUMÁRIO<br />

Pág.<br />

ACÓRDÃOS ........................................................................................... 425<br />

ÍNDICE ALFABÉTICO .......................................................................... I<br />

ÍNDICE NUMÉRICO .............................................................................. XVII


ACÓRDÃOS


MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DECLARATÓRIA DE<br />

CONSTITUCIONALIDADE 12 — DF<br />

Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto<br />

Requerente: Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB — Requerido:<br />

Conselho Nacional de Justiça — Interessados: Sindicato dos Trabalhadores do Poder<br />

Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal – SINDJUS/DF, Tribunal<br />

de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do<br />

Brasil, Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA,<br />

Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário Federal e Ministério Público da<br />

União – FENAJUFE e Associação Nacional dos Magistrados Estaduais – ANAMAGES<br />

Ação declaratória de constitucionalidade, ajuizada em prol da Resolução<br />

n. 7, de 18-10-2005, do Conselho Nacional de Justiça. Medida<br />

cautelar.<br />

Patente a legitimidade da Associação dos Magistrados do Brasil –<br />

AMB para propor ação declaratória de constitucionalidade. Primeiro,<br />

por se tratar de entidade de classe de âmbito nacional. Segundo, porque<br />

evidenciado o estreito vínculo objetivo entre as finalidades institucionais<br />

da proponente e o conteúdo do ato normativo por ela defendido (inciso IX<br />

do art. 103 da CF, com redação dada pela EC 45/04).<br />

Ação declaratória que não merece conhecimento quanto ao art. 3º<br />

da Resolução, porquanto, em 6-12-05, o Conselho Nacional de Justiça<br />

editou a Resolução n. 9/05, alterando substancialmente a de n. 7/2005.<br />

A Resolução n. 7/05 do CNJ reveste-se dos atributos da generalidade<br />

(os dispositivos dela constantes veiculam normas proibitivas de ações<br />

administrativas de logo padronizadas), da impessoalidade (ausência<br />

de indicação nominal ou patronímica de quem quer que seja) e da<br />

abstratividade (trata-se de um modelo normativo com âmbito temporal de


428<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

vigência em aberto, pois claramente vocacionado para renovar de forma<br />

contínua o liame que prende suas hipóteses de incidência aos respectivos<br />

mandamentos).<br />

A Resolução n. 7/05 é dotada, ainda, de caráter normativo primário,<br />

dado que arranca diretamente do § 4º do art. 103-B da Carta-cidadã e tem<br />

como finalidade debulhar os próprios conteúdos lógicos dos princípios<br />

constitucionais de centrada regência de toda a atividade administrativa do<br />

Estado, especialmente o da impessoalidade, o da eficiência, o da igualdade<br />

e o da moralidade.<br />

O ato normativo que se faz de objeto desta ação declaratória<br />

densifica apropriadamente os quatro citados princípios do art. 37 da<br />

Constituição Federal, razão por que não há antinomia de conteúdos na<br />

comparação dos comandos que se veiculam pelos dois modelos<br />

normativos: o constitucional e o infraconstitucional. Logo, o Conselho<br />

Nacional de Justiça fez adequado uso da competência que lhe conferiu<br />

a Carta de Outubro, após a Emenda 45/04.<br />

Noutro giro, os condicionamentos impostos pela Resolução em foco<br />

não atentam contra a liberdade de nomeação e exoneração dos cargos em<br />

comissão e funções de confiança (incisos II e V do art. 37). Isto porque a<br />

interpretação dos mencionados incisos não se pode desapegar dos princípios<br />

que se veiculam pelo caput do mesmo art. 37. Donde o juízo de que as<br />

restrições constantes do ato normativo do CNJ são, no rigor dos termos,<br />

as mesmas restrições já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis<br />

dos republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade<br />

e da moralidade. É dizer: o que já era constitucionalmente proibido<br />

permanece com essa tipificação, porém, agora, mais expletivamente<br />

positivado. Não se trata, então, de discriminar o Poder Judiciário perante<br />

os outros dois Poderes Orgânicos do Estado, sob a equivocada proposição<br />

de que o Poder Executivo e o Poder Legislativo estariam inteiramente<br />

libertos de peias jurídicas para prover seus cargos em comissão e funções<br />

de confiança, naquelas situações em que os respectivos ocupantes não<br />

hajam ingressado na atividade estatal por meio de concurso público.<br />

O modelo normativo em exame não é suscetível de ofender a pureza<br />

do princípio da separação dos Poderes e até mesmo do princípio federativo.<br />

Primeiro, pela consideração de que o CNJ não é órgão estranho ao Poder<br />

Judiciário (art. 92 da CF) e não está a submeter esse Poder à autoridade de<br />

nenhum dos outros dois; segundo, porque ele, Poder Judiciário, tem uma<br />

singular compostura de âmbito nacional, perfeitamente compatibilizada<br />

com o caráter estadualizado de uma parte dele. Ademais, o art. 125 da Lei<br />

Magna defere aos Estados a competência de organizar a sua própria<br />

Justiça, mas não é menos certo que esse mesmo art. 125, caput, junge essa<br />

organização aos princípios “estabelecidos” por ela, Carta Maior, neles<br />

incluídos os constantes do art. 37, cabeça.


R.T.J. — <strong>199</strong> 429<br />

Medida liminar deferida para, com efeito vinculante: a) emprestar<br />

interpretação conforme para incluir o termo “chefia” nos inciso II, III, IV,<br />

V do artigo 2º do ato normativo em foco; b) suspender, até o exame de<br />

mérito desta ADC, o julgamento dos processos que tenham por objeto<br />

questionar a constitucionalidade da Resolução n. 7/2005 do Conselho<br />

Nacional de Justiça; c) obstar que juízes e Tribunais venham a proferir<br />

decisões que impeçam ou afastem a aplicabilidade da mesma Resolução<br />

n. 7/2005 do CNJ; e d) suspender, com eficácia ex tunc, os efeitos daquelas<br />

decisões que, já proferidas, determinaram o afastamento da sobredita<br />

aplicação.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal<br />

Federal, por seu Tribunal Pleno, sob a Presidência do Ministro Nelson Jobim, na<br />

conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, conceder<br />

a liminar, nos termos do voto do Relator, para, com efeito vinculante e erga omnes,<br />

suspender, até o exame de mérito desta ação, o julgamento dos processos que tenham por<br />

objeto questionar a constitucionalidade da Resolução n. 7, de 18 de outubro de 2005, do<br />

Conselho Nacional de Justiça; impedir que juízes e tribunais venham a proferir decisões que<br />

impeçam ou afastem a aplicabilidade da mesma resolução e suspender, com eficácia ex tunc,<br />

ou seja, desde a sua prolação, os efeitos das decisões já proferidas, no sentido de afastar ou<br />

impedir a sobredita aplicação. Esta decisão não se estende ao artigo 3º da Resolução n. 7/<br />

2005, tendo em vista a alteração de redação introduzida pela Resolução n. 9, de 6-12-2005.<br />

Vencido o Ministro Marco Aurélio, que indeferia a liminar, nos termos de seu voto. Votou o<br />

Presidente, Ministro Nelson Jobim.<br />

Brasília, 16 de fevereiro de 2006 — Carlos Ayres Britto, Relator.<br />

EXPLICAÇÃO<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Antes de passar a palavra ao Ministro<br />

Carlos Britto, suscito, desde logo, que esta medida cautelar tem como objeto a<br />

Resolução n. 7 do Conselho Nacional de Justiça. Todos sabem, evidentemente, que<br />

sou o Presidente do CNJ e, pelas normas regimentais do Conselho e pela regra<br />

constitucional, assino os seus atos e também participo dos debates, embora não tenha<br />

voto, apenas para desempate.<br />

Lembro que não ocorre, no caso em espécie, meu impedimento ou suspeição de<br />

participar do julgamento, na forma do que já decidimos em relação à resolução do<br />

Tribunal Superior Eleitoral, ADI n. 4, Relator Ministro Sydney Sanches; ADI n. 55,<br />

Relator Ministro Sydney Sanches; ADI n. 2.321, Relator Ministro Celso de Mello; ADI<br />

n. 2.626, Relatora para o acórdão Ministra Ellen Gracie — a questão da verticalização,<br />

sendo que naquela hipótese, à época, eu era Presidente do Tribunal Superior Eleitoral e<br />

participei do julgamento —; ADI n. 2.628 e, ainda, ADI n. 2.243, Relator Ministro<br />

Marco Aurélio.<br />

Declaro não estar impedido.


430<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Cuida-se de medida cautelar em ação declaratória<br />

de constitucionalidade, ação essa proposta pela Associação dos Magistrados do<br />

Brasil (AMB) e em prol da Resolução n. 7/2005 do Conselho Nacional de Justiça, que<br />

“disciplina o exercício de cargos, empregos e funções por parentes, cônjuges e companheiros<br />

de magistrados e de servidores investidos em cargos de direção e assessoramento,<br />

no âmbito dos órgãos do Poder Judiciário e dá outras providências”.<br />

2. São estes os fundamentos do pedido:<br />

I - o Conselho Nacional de Justiça – CNJ tem competência constitucional<br />

para zelar pela observância do art. 37 da Constituição e apreciar a validade dos<br />

atos administrativos praticados pelos órgãos do Poder Judiciário (inciso II do § 4º<br />

do art. 103-B da CF/88);<br />

II - a vedação ao “nepotismo” é regra constitucional que decorre do núcleo<br />

dos princípios da impessoalidade e da moralidade administrativas;<br />

III - além de estar subordinado à legalidade formal, o Poder Público está<br />

adstrito à juridicidade, conceito mais abrangente que inclui a própria Constituição;<br />

IV - a Resolução n. 7/2005 do CNJ nem prejudica o necessário equilíbrio<br />

entre os Poderes do Estado — por não subordinar nenhum deles a outro —, nem<br />

vulnera o princípio federativo, dado que também não estabelece vínculo de<br />

sujeição entre as pessoas estatais de base geográfica.<br />

3. Prossigo neste relatório para anotar que a postulante, após declinar os<br />

fundamentos jurídicos da sua pretensão de ver julgada procedente esta ADC, requer,<br />

liminarmente, a suspensão: a) do “julgamento dos processos que envolvam a aplicação<br />

da Resolução n. 7/05 do CNJ até o julgamento definitivo da presente ação, ficando<br />

impedidos de proferir qualquer nova decisão, a qualquer título, que impeça ou afaste<br />

a eficácia da Resolução em questão” e b) “com eficácia ex tunc, dos efeitos de<br />

quaisquer decisões, proferidas a qualquer título, que tenham afastado a aplicação da<br />

Resolução n. 7/05 do CNJ”. Já no tocante ao mérito, a acionante pugna pelo reconhecimento<br />

da constitucionalidade da resolução em causa.<br />

4. Há mais o que dizer, porque figuram na presente ação, na condição de amici<br />

curiae, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e as seguintes entidades: Sindicato dos<br />

Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal –<br />

SINDJUS/DF, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Associação<br />

Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA e Federação Nacional<br />

dos Trabalhadores do Judiciário Federal e Ministério Público da União – FENAJUFE.<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): De saída, não posso deixar de<br />

remarcar o entendimento pessoal que venho externando, por escrito e em conferências,<br />

a respeito, justamente, do instituto que atende pelo nome de “ação declaratória de


R.T.J. — <strong>199</strong> 431<br />

constitucionalidade”, instituto que, introduzido na Constituição de 1988 pela Emenda<br />

n. 3/93, suscitou em mim a séria desconfiança técnica de que estava ele a acarretar perda<br />

de substância dos princípios federativos e da separação dos Poderes, além do que me<br />

pareceu conspurcar o real sentido da competência que esta nossa Corte detém para<br />

guardar, “precipuamente”, a Magna Lei Federal (art. 102, cabeça).<br />

7. Nesse lanço, todavia, não me move o propósito de lançar todas as bases do meu<br />

pensar discordante da validade de tal instituto. Limito-me a comentar uma delas, tãosomente,<br />

por considerá-la a de mais desembaraçada percepção.<br />

8. Eis o que tenho explanado: ao possibilitar apenas à União o manejo da ação<br />

declaratória de constitucionalidade de suas leis e demais atos normativos, a Emenda n. 3<br />

privilegiou essa pessoa jurídica central da nossa Federação. Quero dizer: a Emenda<br />

Constitucional de n. 3 incidiu na vedação de quebrar o equilíbrio de forças entre a União<br />

e os Estados-Membros, em matéria de controle de constitucionalidade das respectivas<br />

leis e atos normativos em geral. Isso porque, antes dessa alteração formal da Magna<br />

Carta, os dois entes federativos se submetiam a um mesmo e paritário sistema<br />

jurisdicional de controle de validade perante a Constituição Federal. Controle consistente,<br />

por um lado, numa fiscalização do tipo concentrado — a cargo do Supremo<br />

Tribunal Federal —, a se dar pelo uso da ação direta de inconstitucionalidade; e, por<br />

outro, num controle do tipo difuso — a cargo de qualquer juiz singular ou colegiado<br />

tribunalício —, no curso de uma concreta relação processual litigiosa. Entretanto, com o<br />

advento da EC 3/93, somente a União foi contemplada com a possibilidade de obter do<br />

<strong>STF</strong> a confirmação de validade das suas leis e dos seus atos normativos, fora do caso<br />

concreto, de sorte a subtraí-los do controle jurisdicional difuso. Permanecendo os<br />

Estados-Membros, já agora sozinhos, privados dessa mesma chance de excluírem de<br />

apreciação judiciária a validade das suas manifestações de vontade legal e normativa em<br />

geral, seja em tese, seja em concreto. O que já significa dizer que eles, Estados, ficaram<br />

expostos a uma situação de maior vulnerabilidade perante os reclamos jurisdicionais de<br />

terceiros. É ainda falar: as duas pessoas federadas já não suportam de forma idêntica o<br />

acesso de pessoas outras ao Poder Judiciário para lhes questionar a validade dos atos e<br />

das leis editados após a data de 5 de outubro de 1988, o que implica reconhecer a<br />

perpetração de um tipo de desigualdade que tenho como ofensiva daquele ponto de<br />

equilíbrio que se põe como elemento conceitual do nosso modelo federativo.<br />

9. Não é como pensa este Supremo Tribunal Federal, porém. Seja pela questão<br />

sensível do princípio federativo, seja por qualquer outra alegação de ofensa à Magna<br />

Carta, o fato é que esta nossa Casa de Justiça não põe em dúvida a sanidade jurídica da<br />

ADC. O Tribunal é firme no seu entendimento pela validade do instituto em causa,<br />

conforme se extrai do julgamento da Questão de Ordem na ADC n. 01, razão por que,<br />

ressalvando a minha particularizada compreensão do tema, democraticamente acedo ao<br />

pensar majoritário da Corte e afasto, aqui, toda discussão em torno da constitucionalidade<br />

do veículo processual de que lançou mão a autora.<br />

10. Feita essa ressalva, reconheço a legitimidade ativa da Associação dos Magistrados<br />

do Brasil (AMB), o que faço com base no inciso IX do art. 103 da Constituição,<br />

como também entendo preenchido o requisito da pertinência temática, em face do<br />

estreito vínculo entre as finalidades institucionais da agremiação autora deste processo<br />

e o conteúdo do ato normativo por ela defendido.


432<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

11. Na mesma linha de apreciação, tenho por satisfeito o pressuposto de que trata<br />

o inciso III do artigo 14 da Lei n. 9.868/99, dado que a petição inicial me convence<br />

quanto à indicação, que faz, da “existência de controvérsia judicial relevante sobre a<br />

aplicação da disposição objeto da ação declaratória”.<br />

12. Pontuo, todavia, que a presente ação não merece conhecimento quanto ao<br />

artigo 3º da Resolução n. 7/05 do Conselho Nacional de Justiça. É que, em 6 de<br />

dezembro de 2005, esse órgão público editou a Resolução n. 9/05, de modo a alterar o<br />

artigo 3º da Resolução n. 7/05, dispositivo que passou a se revestir da seguinte estrutura<br />

de linguagem:<br />

“Art. 3º É vedada a manutenção, aditamento ou prorrogação de contrato de<br />

prestação de serviços com empresa que venha a contratar empregados que sejam<br />

cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade, até<br />

o terceiro grau, inclusive, de ocupantes de cargos de direção e de assessoramento,<br />

de membros ou juízes vinculados ao respectivo Tribunal contratante, devendo tal<br />

condição constar expressamente dos editais de licitação”.<br />

13. Esse o quadro, impõe-se-me reconhecer que o dispositivo originário restou abrogado<br />

(revogação por incompatibilidade) pelo art. 1º da novel Resolução n. 9/05.<br />

14. No tema, é pacífico o entendimento desta Excelsa Corte no sentido da insubsistência<br />

do interesse de agir, sempre que a norma inquinada de inconstitucionalidade<br />

deixa de integrar o Ordenamento Jurídico. Veja-se:<br />

“Ação direta de inconstitucionalidade. Pedido de liminar.<br />

— Já se firmou a jurisprudência desta Corte no sentido de que o interesse de<br />

agir, em ação direta de inconstitucionalidade, só existe enquanto estiver em vigor<br />

a norma jurídica impugnada, ficando, pois, a ação prejudicada na hipótese de<br />

perda de seu objeto por ter sido revogado essa norma.<br />

— No caso, com a alteração do artigo 56 do Decreto 38.048/91, em virtude da<br />

republicação deste depois de entrado em vigor, ocorreu a revogação desse dispositivo<br />

em sua redação original que foi atacada como inconstitucional pela presente<br />

ação, que, assim, ficou prejudicada.<br />

— Ação direta de inconstitucionalidade que se julga prejudicada, ficando<br />

em conseqüência, igualmente prejudicado o exame do pedido de liminar.”<br />

(ADI 2.001-3, Rel. Min. Moreira Alves.)<br />

15. Nesse contexto, convenço-me de que, no ponto, a presente ação declaratória<br />

não merece conhecimento.<br />

16. Noutro giro, tenho que a Resolução em foco intenta retirar diretamente da<br />

Constituição o seu fundamento de validade, arrogando-se, portanto, a força de diploma<br />

normativo primário. Questão que se confunde com o próprio mérito da causa e como tal<br />

é que paulatinamente me disponho a enfrentá-la. Seja como for, cuida-se de ato<br />

normativo que se reveste dos atributos da generalidade, da impessoalidade e da<br />

abstratividade, sujeitando-se, no ponto, ao controle objetivo de constitucionalidade.


R.T.J. — <strong>199</strong> 433<br />

17. Com efeito, o caráter genérico da Resolução 7/05 se patenteia nos dispositivos<br />

(dela constantes) que veiculam normas proibitivas de ações administrativas de logo<br />

padronizadas, como, verbi gratia, as que dispõem sobre: a) nomeação para “o exercício<br />

de cargo de provimento em comissão, ou de função gratificada” (incisos I, II e III do art.<br />

2º); b) “contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de<br />

excepcional interesse público” (inciso IV do mesmo art. 2º); c) “contratação, em casos<br />

excepcionais de dispensa ou inexigibilidade de licitação (...)” (inciso V do art. 2º, ainda<br />

uma vez).<br />

18. A impessoalidade, a seu turno, é predicado que se desata da ausência de<br />

indicação nominal ou patronímica de quem quer que seja; vale dizer, os tribunais,<br />

os juízos, os magistrados e os servidores que se integram na estrutura administrativa do<br />

Poder Judiciário não foram normativamente referidos pelos seus particularizados<br />

nomes, porém, isto sim, apenas em tese ou de forma teórica. Os tribunais e juízos, na sua<br />

condição jurídica de unidades divisíveis de competências estatais. Os juízes e<br />

servidores, na condição de titulares de cargos que Celso Antônio Bandeira de Mello<br />

designaria por “unidades indivisíveis de competências” igualmente estatais. Sendo que<br />

a mesma interpretação é de se dar aos textos normativos reportantes a eventuais<br />

cônjuges, companheiros e parentes de membros e servidores comuns do Judiciário, por<br />

se tratar de figuras igualmente referidas com inteira desconsideração dos respectivos<br />

nomes.<br />

19. Quanto ao requisito da abstratividade, fácil é perceber que a Resolução n. 7 do<br />

Conselho Nacional de Justiça veio ao mundo das positividades jurídicas para enlaçar de<br />

modo permanente o descritor e o prescritor dos seus dispositivos. É como dizer: cuida-se<br />

de modelo normativo com âmbito temporal de vigência em aberto, pois claramente<br />

vocacionado para renovar de forma contínua o liame que prende suas hipóteses de<br />

incidência aos respectivos mandamentos. Modelo de conteúdo renovadamente normativo,<br />

então, a desafiar o manejo de ações instauradoras de processo do tipo objetivo,<br />

como é o caso da ação declaratória de constitucionalidade.<br />

20. Já no plano da autoqualificação do ato do CNJ como entidade jurídica<br />

primária, permito-me apenas lembrar, ainda nesta passagem, que o Estado-legislador é<br />

detentor de duas caracterizadas vontades normativas: uma é primária, outra é derivada.<br />

A vontade primária é assim designada por se seguir imediatamente à vontade da própria<br />

Constituição, sem outra base de validade que não seja a Constituição mesma. Por isso<br />

que imediatamente inovadora do Ordenamento Jurídico, sabido que a Constituição não<br />

é diploma normativo destinado a tal inovação, mas à própria fundação desse<br />

Ordenamento. Já a segunda tipologia de vontade estatal-normativa, vontade tão-somente<br />

secundária, ela é assim chamada pelo fato de buscar o seu fundamento de validade em<br />

norma intercalar; ou seja, vontade que adota como esteio de validade um diploma<br />

jurídico já editado, este sim, com base na Constituição. Logo, vontade que não tem<br />

aquela força de inovar o Ordenamento com imediatidade 1 .<br />

1 Nunca é demais lembrar que a vontade de que promana a Constituição originária não é uma vontade<br />

nem primária nem derivada. É uma vontade virginalmente fundante ou inaugural do Ordenamento<br />

Jurídico de um povo soberano, situada, por isso mesmo, em plano cognoscitivo que já recai sobre o<br />

mundo do ser ou das ocorrências puramente fáticas.


434<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

21. Pois bem, é de elementar conhecimento que o Magno Texto de 1988 fez da lei<br />

a expressão emblemática do ato normativo primário. Lei em sentido formal, na acepção<br />

de que editada por órgão ou órgãos do Poder Legislativo, entendido este como a<br />

instância republicana que mais autenticamente encarna a representação popular e favorece<br />

a realização do Estado Democrático de Direito. Por conseguinte, lei ditada por uma<br />

lógica perpassante de todo o sistema de comandos de uma Constituição que faz do<br />

republicanismo a sua primeira referência à estruturação do Brasil como, justamente,<br />

um “Estado democrático de direito” (artigo 1º, cabeça). Ainda mais, lei como termo<br />

sinônimo de Direito-lei, a compreender, então, todos os atos que se integram no “processo<br />

legislativo” (art. 59, cabeça). Lei, enfim, como fonte primaz da imposição de deveres de<br />

conteúdo positivo e/ou de conteúdo negativo, segundo a garantia fundamental de que<br />

“senão em virtude” dela “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa<br />

(...)”. Garantia que está no inciso II do art. 5º da Constituição Federal, a se traduzir no<br />

curioso direito de não ter dever (permito-me trocadilhar) 2 .<br />

22. Acontece que as normas ditadas por essa lógica da mais abrangente irradiação<br />

sistêmica admitem contemporização. Comportam atenuação, exatamente para ceder<br />

espaço a valores e interesses outros que, embora de menor compleição material, são<br />

relevantes o bastante para merecer um tratamento heterodoxo. Um tratamento peculiar,<br />

despadronizado, por se traduzir numa nota de relativização àquela mais abrangente<br />

racionalidade sistêmica. Fenômeno em boa medida percebido pelo olho clínico de<br />

Carlos Maximiliano, conforme se vê da seguinte passagem do clássico “Hermenêutica e<br />

aplicação do Direito”, p. 227, Editora Forense, ano de <strong>199</strong>6:<br />

“As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações<br />

particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por<br />

isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente.”<br />

23. Essa a razão pela qual a nossa Constituição, depois de fazer da lei o protótipo<br />

do ato normativo primário, e do Congresso Nacional o inequívoco editor dos diplomas<br />

da espécie, habilitou, não obstante, o Senado Federal a produzir sozinho atos<br />

normativos de igual hierarquia impositiva. Excluindo do processo, no ponto, a própria<br />

Câmara dos Deputados Federais, mesmo sendo ela a casa legislativa que se compõe,<br />

textualmente, “de representantes do povo” (art. 45, cabeça). É a matéria que se contém<br />

nos incisos VII, VIII e IX do art. 52, mais a prefigurada nas alíneas a e b do inciso V do<br />

§ 2º do art. 155, litteris:<br />

“Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:<br />

(...)<br />

VII - dispor sobre limites globais e condições para as operações de crédito<br />

externo e interno da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de<br />

suas autarquias e demais entidades controladas pelo poder público federal;<br />

2 Há toda uma justificativa ético-política para esse prestígio constitucional do Poder Legislativo. É<br />

que ele é o único a ter os seus membros totalmente eleitos pelo voto popular. O Executivo, como se<br />

sabe, tem uma parte de si (a constituída pelos Ministros de Estado) que não passa pela pia batismal<br />

do voto. Além do mais, enquanto o Chefe do Poder Executivo encarna a ideologia apenas do partido


R.T.J. — <strong>199</strong> 435<br />

VIII - dispor sobre limites e condições para a concessão de garantia da União<br />

em operações de crédito externo e interno;<br />

IX - estabelecer limites globais e condições para o montante da dívida<br />

mobiliária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;<br />

(...)”<br />

“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos<br />

sobre:<br />

(...)<br />

§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:<br />

(...)<br />

V - é facultado ao Senado Federal:<br />

a) estabelecer alíquotas mínimas nas operações internas, mediante resolução<br />

de iniciativa de um terço e aprovada pela maioria absoluta de seus membros;<br />

b) fixar alíquotas máximas nas mesmas operações para resolver conflito<br />

específico que envolva interesse de Estados, mediante resolução de iniciativa da<br />

maioria absoluta e aprovada por dois terços de seus membros;<br />

(...)”<br />

24. Também “com força de lei” (embora lei não sendo) é que foram expressamente<br />

qualificadas as “medidas provisórias” (art. 62), a despeito de sua produção por autoridade<br />

inteiramente situada do lado de fora do Poder Legislativo. Atos especialmente destinados<br />

à produção de imediatos efeitos, como se sabe, embora passíveis de perda de eficácia<br />

“desde a edição” (“se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável,<br />

nos termos do § 7º, uma vez por igual período (...)”.<br />

25. Nessa mesma toada é de se explicar a competência privativa que a Magna<br />

Carta conferiu aos tribunais judiciários para “(...) elaborar seus regimentos internos, com<br />

observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo<br />

sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos”<br />

(alínea a do inciso I do art. 96). Fazendo de tais regimentos — é a minha leitura —<br />

um ato normativo ambivalentemente primário e secundário: primário, no que tange à<br />

competência e ao funcionamento dos órgãos jurisdicionais e administrativos de cada<br />

qual deles (tribunais); secundário, pertinentemente ao dever de “observância das normas<br />

de processo e das garantias processuais das partes” (cf. ADI 1.098/SP, Rel. Min.<br />

Marco Aurélio; ADI 1.985, Rel. Min. Eros Grau; ADI 2.763, Rel. Min. Gilmar Mendes;<br />

entre outros).<br />

ou da coligação partidária que o elegeu, o Parlamento consubstancia todas as ideologias possíveis.<br />

Ele é a mais completa expressão do pluralismo político, esse valor fundante da própria República<br />

Federativa do Brasil, tal como posto pelo inciso V do art. 1º da Constituição-cidadã (Ulisses<br />

Guimarães). Por último, é de se considerar que todo mundo já sabe onde, quando e como o Poder<br />

Legislativo decide. O que não acontece com as decisões do Poder Executivo (BRITTO, Carlos Ayres,<br />

in Perfil Constitucional da Licitação, ed. Zênite, p. 83).


436<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

26. Acresce que essa mesma competência para editar regimento interno foi<br />

estendida, “no que couber”, ao Tribunal de Contas da União e seus êmulos nas demais<br />

órbitas federativas, a teor das partes capitulares dos arts. 73 e 75 dela própria, Constituição<br />

Federal.<br />

27. Ainda na matéria, retorno ao âmbito do Poder Executivo da União para lembrar<br />

a regra que se extrai da alínea a do inciso VI do artigo constitucional de n. 84, traduzida,<br />

precisamente, na autorização para o Presidente da República “dispor, mediante decreto”,<br />

sobre “organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar<br />

aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos”. Norma que este <strong>STF</strong><br />

tem como constitutiva de regulamento autônomo (tirante as sobreditas vedações), e,<br />

assim, diploma francamente equiparável a ato normativo primário (cf. ADI 2.564, Rel.<br />

Min. Ellen Gracie, entre outros).<br />

28. Agora vem a pergunta que tenho como a de maior valia para o julgamento desta<br />

ADC: o Conselho Nacional de Justiça foi aquinhoado com essa modalidade primária de<br />

competência? Mais exatamente: foi o Conselho Nacional de Justiça contemplado com o<br />

poder de expedir normas primárias sobre as matérias que servem de recheio fático ao<br />

inciso II do § 4º do art. 103-B da Constituição?<br />

29. Bem, para responder a essa decisiva pergunta, começo por transcrever o<br />

mencionado inciso e mais o inteiro teor do parágrafo de que ele faz parte. Ei-los:<br />

“Art. 103-B (...)<br />

§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira<br />

do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendolhe,<br />

além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da<br />

Magistratura:<br />

I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto<br />

da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua<br />

competência, ou recomendar providências;<br />

II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante<br />

provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou<br />

órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para<br />

que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem<br />

prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;<br />

III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder<br />

Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores<br />

de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público<br />

ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos<br />

tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção,<br />

a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais<br />

ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla<br />

defesa;<br />

IV - representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração<br />

pública ou de abuso de autoridade;<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 437<br />

V - rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de<br />

juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano;<br />

VI - elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças<br />

prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário;<br />

VII - elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias,<br />

sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve<br />

integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao<br />

Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.<br />

(...)”<br />

30. Da leitura de ambos os textos, creio que o § 4º, em si mesmo considerado, deixa<br />

muito claro a extrema relevância do papel do CNJ como órgão central de controle da<br />

atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário. Daí por que a esse Conselho<br />

cabe aferir o cumprimento dos deveres dos juízes e ainda exercer, de parelha com os<br />

poderes que lhe forem conferidos pelo Estatuto da Magistratura, aqueles de pronto<br />

arrolados pelos incisos de I a VII desse mesmo § 4º.<br />

31. No âmbito dessas competências de logo avançadas pela Constituição é que se<br />

inscrevem, conforme visto, os poderes do inciso II, acima transcrito. Dispositivo que se<br />

compõe de mais de um núcleo normativo, quatro deles expressos e um implícito, que me<br />

parecem os seguintes:<br />

I - núcleos expressos: a) “zelar pela observância do art. 37” (comando, esse,<br />

que, ao contrário do que se lê no inciso de n. I, não se atrela ao segundo por nenhum<br />

gerúndio); b) “apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos<br />

administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário”; c)<br />

“podendo desconstituí-los” (agora, sim, existe um gerúndio), “revê-los ou fixar<br />

prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da<br />

lei”; d) “sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União” (isto<br />

quando se cuidar, naturalmente, da aplicação de lei em tema de fiscalização<br />

“contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial”, mais aquelas<br />

densificadoras dos princípios da “economicidade”, “eficácia e eficiência” das<br />

respectivas gestões, pelo fato de que nesses espaços jurídicos é que também se dá<br />

a atuação dos Tribunais de Contas, tudo conforme os arts. 70 e 74 da Constituição<br />

Federal);<br />

II - o núcleo inexpresso é a outorga de competência para o Conselho dispor,<br />

primariamente, sobre cada qual dos quatro núcleos expressos, na lógica pressuposição<br />

de que a competência para zelar pela observância do art. 37 da Constituição<br />

e ainda baixar os atos de sanação de condutas eventualmente contrárias à legalidade<br />

é poder que traz consigo a dimensão da normatividade em abstrato, que já é uma<br />

forma de prevenir a irrupção de conflitos. O poder de precaver-se ou acautelar-se<br />

para minimizar a possibilidade das transgressões em concreto.<br />

32. Dá-se que duas outras coordenadas interpretativas parecem reforçar esta<br />

compreensão das coisas. A primeira é esta: a Constituição, por efeito da Emenda 45/04,<br />

tratou de fixar o regime jurídico de três conselhos judiciários: a) o Conselho da Justiça<br />

Federal (inciso II do parágrafo único do art. 105); b) o Conselho Superior da Justiça do


438<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Trabalho (inciso II do § 2º do art. 111-A); e c) o Conselho Nacional de Justiça (art. 103-<br />

B). Ao cuidar dos dois primeiros Conselhos, ela, Constituição, falou expressamente que<br />

as respectivas competências — todas elas, enfatize-se — seriam exercidas “na forma da<br />

lei”. Esse inequívoco fraseado “na forma da lei” a anteceder, portanto, o rol das<br />

competências de cada qual das duas instâncias. Ora, assim não aconteceu com o<br />

tratamento normativo dispensado ao Conselho Nacional de Justiça. Aqui, a Magna Carta<br />

inventariou as competências que houve por bem deferir ao CNJ, quedando silente quanto<br />

a um tipo de atuação necessariamente precedida de lei.<br />

33. O segundo reforço argumentativo está na interpretação panorâmica ou sistemática<br />

ou imbricada que se possa fazer dos dispositivos que se integram na compostura<br />

vernacular de todo o art. 103-B da Constituição. É que tais dispositivos são tão<br />

ciosos da importância do CNJ em ambos os planos da composição e do funcionamento;<br />

tão logicamente concatenados para fazer do Conselho um órgão de planejamento<br />

estratégico do Poder Judiciário, assim no campo orçamentário como no da celeridade,<br />

transparência, segurança, democratização e aparelhamento tecnológico da função<br />

jurisdicional do Estado; tão explicitamente assumidos como estrutura normativa de<br />

contínua densificação dos estelares princípios do art. 37 da Lei Republicana; tão<br />

claramente regrados para tornar o CNJ uma genuína instância do Poder Judiciário, e<br />

não uma instituição estranha a esse Poder elementar do Estado, enfim, que negar a esse<br />

Conselho o poder de aplicar imediatamente a Constituição-cidadã, tanto em concreto<br />

como em abstrato, seria concluir que a Emenda 45 homiziou o novo órgão numa<br />

fortaleza de paredes intransponíveis, porém fechada, afinal, com a mais larga porta de<br />

papelão. Metáfora de que muito se valia o gênio ético-libertário de Geraldo Ataliba<br />

para ensinar como não se deve interpretar o Direito, notadamente o de estirpe constitucional.<br />

34. Assim é que se pode remeter os conteúdos da Resolução n. 7 para outros<br />

dispositivos constitucionais com eles rimados, como, por ilustração, o inciso de n. III do<br />

mesmo § 4º do artigo 103-B, assim legendado:<br />

“Art. 103-B, § 4º<br />

(...)<br />

III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder<br />

Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores<br />

de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou<br />

oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais,<br />

podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade<br />

ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de<br />

serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;<br />

(...)”<br />

35. O mesmo é de se dizer, acredito, quanto à sintonia de tais conteúdos com os<br />

princípios regentes de toda a atividade administrativa do Estado, de modo especial os<br />

princípios da impessoalidade, da eficiência e da igualdade (este, somente omitido pelo<br />

art. 37 da Constituição porque já proclamado na cabeça do art. 5º e no inciso III do art. 19<br />

da nossa Lei Fundamental).


R.T.J. — <strong>199</strong> 439<br />

36. Em palavras diferentes, é possível concluir que o spiritus rectus da Resolução<br />

do CNJ é debulhar os próprios conteúdos lógicos dos princípios constitucionais de<br />

centrada regência de toda a atividade administrativa do Estado. Princípios como:<br />

I - o da impessoalidade, consistente no descarte do personalismo. Na<br />

proibição do marketing pessoal ou da auto-promoção com os cargos, as funções, os<br />

empregos, os feitos, as obras, os serviços e campanhas de natureza pública. Na<br />

absoluta separação entre o público e o privado, ou entre a Administração e o<br />

administrador, segundo a republicana metáfora de que “não se pode fazer cortesia<br />

com o chapéu alheio”. Conceitos que se contrapõem à multissecular cultura do<br />

patrimonialismo e que se vulnerabilizam, não há negar, com a prática do chamado<br />

“nepotismo”. Traduzido este no mais renitente vezo da nomeação ou da<br />

designação de parentes não-concursados para trabalhar, comissionadamente ou<br />

em função de confiança, debaixo da aba familiar dos seus próprios nomeantes.<br />

Seja ostensivamente, seja pela fórmula enrustida do “cruzamento” (situação em<br />

que uma autoridade recruta o parente de um colega para ocupar cargo ou função de<br />

confiança, em troca do mesmo favor);<br />

II - o princípio da eficiência, a postular o recrutamento de mão-de-obra<br />

qualificada para as atividades públicas, sobretudo em termos de capacitação<br />

técnica, vocação para as atividades estatais, disposição para fazer do trabalho um<br />

fiel compromisso com a assiduidade e uma constante oportunidade de manifestação<br />

de espírito gregário, real compreensão de que servidor público é, em<br />

verdade, servidor do público. Também estes conceitos passam a experimentar<br />

bem mais difícil possibilidade de transporte para o mundo das realidades empíricas,<br />

se praticadas num ambiente de projeção do doméstico na intimidade das<br />

repartições estatais, a começar pela óbvia razão de que já não se tem a necessária<br />

isenção, em regra, quando se vai avaliar a capacitação profissional de um parente<br />

ou familiar. Quando se vai cobrar assiduidade e pontualidade no comparecimento<br />

ao trabalho. Mais ainda, quando se é preciso punir exemplarmente o servidor<br />

faltoso (como castigar na devida medida um pai, a própria mãe, um filho, um(a)<br />

esposo(a) ou companheiro(a), um(a) sobrinho(a), enfim, com quem eventualmente<br />

se trabalhe em posição hierárquica superior?). E como impedir que os<br />

colegas não-parentes ou não-familiares se sintam em posição de menos obsequioso<br />

tratamento funcional? Em suma, como desconhecer que a sobrevinda de uma<br />

enfermidade mais séria, um trauma psico-físico ou um transe existencial de<br />

membros de u´a mesma família tenda a repercutir negativamente na rotina de um<br />

trabalho que é comum a todos? O que já significa a paroquial fusão do ambiente<br />

caseiro com o espaço público. Pra não dizer a confusão mesma entre tomar posse<br />

nos cargos e tomar posse dos cargos, na contra-mão do insuperável conceito de<br />

que “administrar não é atividade de quem é senhor de coisa própria, mas gestor<br />

de coisa alheia” (Rui Cirne Lima);<br />

III - o princípio da igualdade, por último, pois o mais facilitado acesso de<br />

parentes e familiares aos cargos em comissão e funções de confiança traz consigo<br />

os exteriores sinais de uma prevalência do critério doméstico sobre os parâmetros<br />

da capacitação profissional (mesmo que não seja sempre assim). Isso sem


440<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

mencionar o fato de que essa cultura da prevalente arregimentação de mão-de-obra<br />

familiar ou parental costuma carrear para os núcleos domésticos assim favorecidos<br />

uma super-afetação de renda, poder político e prestígio social.<br />

37. É certo que todas essas práticas também podem resvalar, com maior facilidade,<br />

para a zona proibida da imoralidade administrativa (a moralidade administrativa, como<br />

se sabe, é outro dos explícitos princípios do art. 37 da CF). Mas entendo que esse<br />

descambar para o ilícito moral já é quase sempre uma conseqüência da deliberada<br />

inobservância dos três outros princípios citados. Por isso que deixo de atribuir a ele, em<br />

tema de nepotismo, a mesma importância que enxergo nos encarecidos princípios da<br />

impessoalidade, da eficiência e da igualdade.<br />

38. Em face dessas premissas constitucionais, cabe perguntar: a Resolução que se<br />

faz de objeto desta ADC densifica apropriadamente os quatro citados princípios do art.<br />

37 da Constituição? Respondo que sim. Ou, dizendo de modo inverso, não enxergo<br />

antinomia de conteúdos na comparação dos comandos que se veiculam pelos dois<br />

modelos normativos: o constitucional e o infraconstitucional. Logo, entendo que o CNJ<br />

fez adequado uso da competência que lhe outorgou a Constituição Federal, após a<br />

Emenda 45/04.<br />

39. Outra pergunta: os condicionamentos impostos pela Resolução em foco seriam<br />

atentatórios da liberdade de nomeação e exoneração dos cargos em comissão e funções<br />

de confiança (incisos II e V do art. 37)? A resposta agora é negativa, pela clara razão de<br />

que a interpretação dos mencionados incisos tem que ficar adstrita à exegese dos<br />

comandos que se lê no caput do mesmo art. 37. E já vimos que é nesse dispositivo<br />

capitular que figuram os princípios reitores de toda a Administração Pública, adequadamente<br />

pinçados e debulhados pelo ato normativo sub judice. Donde o juízo de que as<br />

restrições constantes do ato normativo do CNJ são, no rigor dos termos, as mesmas<br />

restrições já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos republicanos princípios<br />

da impessoalidade, da eficiência e da igualdade, sobretudo. Quero dizer: o que já<br />

era constitucionalmente proibido permanece com essa tipificação, porém, agora, mais<br />

expletivamente positivado. Não se tratando, então, de discriminar o Poder Judiciário<br />

perante os outros dois Poderes Orgânicos do Estado, sob a equivocada proposição de<br />

que o Poder Executivo e o Poder Legislativo estariam inteiramente libertos de peias<br />

jurídicas para prover seus cargos em comissão e funções de confiança, naquelas situações<br />

em que os respectivos ocupantes não hajam ingressado na atividade estatal por<br />

meio de concurso público.<br />

40. Um terceiro questionamento: o modelo normativo em exame é suscetível de<br />

ofender a pureza do princípio da separação dos Poderes e até mesmo do princípio<br />

federativo? Outra resposta negativa se me impõe, primeiro, pela consideração de que o<br />

CNJ não é órgão estranho ao Poder Judiciário (já foi dito) e não está a submeter esse<br />

Poder à autoridade dos dois outros; segundo, porque ele, Poder Judiciário, tem uma<br />

singular compostura de âmbito nacional, perfeitamente compatibilizada com o<br />

caráter estadualizado de uma parte dele.<br />

41. Explico. Ao dispor sobre o Poder Legislativo Federal, qual foi o discurso da<br />

Constituição? O de que esse Poder orgânico se compõe da Câmara dos Deputados e do<br />

Senado, que são órgãos exclusivamente da União. De nenhuma outra pessoa federada<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 441<br />

(art. 44). Diga-se o mesmo quanto à estrutura do Poder Executivo Federal (art. 76),<br />

englobante apenas do Presidente da República e dos Ministros de Estado. É dizer,<br />

englobante de órgãos ainda uma vez exclusivos da nossa pessoa federada central. Ora,<br />

não foi esse o tratamento dispensado ao Poder Judiciário. Aqui, a Lei Maior senta praça<br />

do seu propósito de incluir órgãos judiciários estaduais no todo judiciário do País, como<br />

se verifica dos seguintes dizeres:<br />

“Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário:<br />

I - o Supremo Tribunal Federal;<br />

I-A - o Conselho Nacional de Justiça;<br />

II - o Superior Tribunal de Justiça;<br />

III - os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais;<br />

IV - os Tribunais e Juízes do Trabalho;<br />

V - os Tribunais e Juízes Eleitorais;<br />

VI - os Tribunais e Juízes Militares;<br />

VII - os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.”<br />

(Original sem destaque.)<br />

42. É certo que o art. 125 da nossa Constituição defere aos Estados a competência<br />

de organizar a sua própria Justiça. Mas não é menos certo que o caput desse mesmo art.<br />

125 junge essa organização aos princípios “estabelecidos” por ela, Carta Maior da<br />

República Federativa do Brasil. E o fato é que entre esses princípios constitucionais<br />

figuram todos aqueles já exaustivamente citados nesta minha análise jurídica.<br />

43. Nesse rumo de idéias, ao fim e ao cabo (como diria o Ministro Nelson Jobim),<br />

não me parece que, ao editar a Resolução n. 7/2005, o Conselho Nacional de Justiça haja<br />

invadido seara reservada, com exclusividade, nem ao Poder Legislativo Federal nem ao<br />

Poder Legislativo dos Estados. Limitou-se a exercer, reitero, as competências que lhe<br />

foram constitucionalmente reservadas. Como bem anotou, aliás, o Ministro Cezar<br />

Peluso, no voto que proferiu na ADI 3.367/DF 3 :<br />

“(...)<br />

De modo que, sem profanar os limites constitucionais da independência do<br />

Judiciário, agiu dentro de sua competência reformadora o poder constituinte<br />

derivado, ao outorgar ao Conselho Nacional de Justiça o proeminente papel de<br />

fiscal das atividades administrativa e financeira daquele Poder. A bem da verdade,<br />

mais que encargo de controle, o Conselho recebeu aí uma alta função política ao<br />

aprimoramento do autogoverno do Judiciário, cujas estruturas burocráticas dispersas<br />

inviabilizam o esboço de uma estratégia político-institucional de âmbito<br />

nacional. São antigos os anseios da sociedade pela instituição de um órgão<br />

superior, capaz de formular diagnósticos, tecer críticas construtivas e elaborar<br />

programas que, nos limites de suas responsabilidades constitucionais, dêem res-<br />

3 Ação direta de inconstitucionalidade que põe em xeque a validade da Emenda Constitucional 45/<br />

2004 — Reforma do Poder Judiciário.


442<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

postas dinâmicas e eficazes aos múltiplos problemas comuns em que se desdobra a<br />

crise do Poder. Como bem acentuou José Eduardo Faria:<br />

‘(...) como o Judiciário tem diferentes braços especializados organizados<br />

em diferentes instâncias, é natural que cada um deles e cada uma delas<br />

sinta-se tentado a definir seu próprio programa de ação, o que, obviamente,<br />

torna de fundamental importância a criação de um órgão representativo de<br />

todos esses braços e instâncias capazes de atuar numa dimensão de políticadomínio,<br />

responsabilizando-se pela uniformização dos diferentes programas<br />

‘parcialmente contraditórios’ e parcialmente compatíveis’ sob a forma de<br />

uma estratégia global da instituição<br />

(...) A esse paradigma pode também reconduzir-se a instituição do<br />

Conselho, que, sob a rubrica das atribuições inerentes ao poder de controle<br />

da atuação administrativa e financeira do Judiciário (art. 103 – B, § 4º),<br />

assume o dever jurídico de diagnosticar problemas, planejar políticas e<br />

formular projetos, com vistas ao aprimoramento da organização judiciária e<br />

da prestação jurisdicional, em todos os níveis, como exigência da própria<br />

feição difusa da estrutura do Poder nas teias do pacto federativo. Como já<br />

acentuamos, somente um órgão de dimensão nacional e de competências<br />

centralizadas pode, sob tais aspectos, responder aos desafios da modernidade<br />

e às deficiências de visões e práticas fragmentárias na administração<br />

do Poder.'<br />

(...)”<br />

44. Uma explicação adicional, todavia, parece-me cabível e ela se traduz no<br />

seguinte: o que nos incumbe, nesta sede de controle abstrato de normas, é tão-somente<br />

aferir a constitucionalidade da Resolução n. 7/05. Não esmiuçar cada qual das suas<br />

teóricas possibilidades de incidência, menos ainda os particularizados efeitos de sua<br />

aplicação em concreto. Empreitada, essa, a cargo do próprio CNJ e, em derradeira<br />

análise, deste Pretório Excelso.<br />

45. Não é tudo, porque ainda nesse preliminar exame jurídico já se percebe a<br />

necessidade de realizar dois pontuais ajustes no ato normativo em causa:<br />

I - a Resolução n. 7/05, ato normativo que tenho como de natureza primária, podia<br />

mesmo fazer do terceiro grau de parentesco consangüíneo um critério de inibição ao<br />

“nepotismo”. Impedida estava, no entanto, de criar um novo grau do parentesco, por<br />

afinidade, devido a que essa matéria é de caráter civil, reservada pela Constituição à<br />

competência do Poder Legislativo Federal. E o fato é que ela (Resolução n. 7/05)<br />

distendeu as fronteiras do parentesco para incluir os “parentes de 3º grau” por afinidade,<br />

ultrapassando, assim, o instituto do cunhadio. Daí a necessidade de emprestar-se<br />

interpretação conforme aos incisos do art. 2º da Resolução n. 7 do CNJ, para restringir o<br />

parentesco por afinidade da linha colateral “aos irmãos do cônjuge ou companheiro”;<br />

II - A Constituição Federal vinculou os cargos em comissão e as funções de<br />

confiança às “atribuições de direção, chefia e assessoramento” (inciso V do artigo 37).<br />

Entretanto, provavelmente por erro material, a Resolução n. 7/05 deixou de mencionar<br />

o vocábulo “chefia”, do que decorre a necessidade de se emprestar à matéria<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 443<br />

“interpretação conforme” para incluir o termo “chefia” nos inciso II, III, IV, V do artigo<br />

2º do ato normativo em foco;<br />

46. Nessa ampla moldura, voto pela concessão da medida liminar para, com eficácia<br />

vinculante:<br />

a) determinar a suspensão, até o exame de mérito desta ADC, do julgamento dos<br />

processos que tenham por objeto questionar a constitucionalidade da Resolução n. 7/<br />

2005 do Conselho Nacional de Justiça;<br />

b) obstar que juízes e Tribunais venham a proferir decisões que impeçam ou<br />

afastem a aplicabilidade da mesma Resolução n. 7/2005 do CNJ; e<br />

c) suspender, com eficácia ex tunc, os efeitos daquelas decisões que, já proferidas,<br />

determinaram o afastamento da sobredita aplicação.<br />

47. É como voto.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Afirma-se a constitucionalidade da Resolução n. 7/2005<br />

do Conselho Nacional de Justiça, que coíbe o nepotismo.<br />

Essa constitucionalidade seria posta em dúvida a partir das seguintes assertivas: [i]<br />

apenas a lei em sentido formal poderia tratar da matéria (argumento da legalidade); [ii] a<br />

resolução afrontaria o princípio da “separação dos Poderes”, na medida em que<br />

subordinaria o Poder Judiciário a um outro poder, o CNJ, o que também expressaria<br />

violação da autonomia dos tribunais; [iii] a resolução violaria o princípio federativo,<br />

seja porque invadiria a competência dos Estados-Membros para dispor sobre a<br />

organização e estruturação da Administração Pública de cada um deles, seja porque<br />

subordinaria hierarquicamente os tribunais estaduais a um órgão não estadual, o CNJ;<br />

[iv] a resolução restringiria direitos de servidores públicos e de terceiros, relações<br />

contratuais, criando uma modalidade de rescisão contratual não contemplada nos<br />

contratos já celebrados com a Administração.<br />

2. Afasto prontamente os argumentos referidos à “separação dos Poderes” e ao<br />

princípio federativo, para tanto simplesmente me reportando às razões expostas no voto<br />

que proferi no julgamento da ADI n. 3.367. O Judiciário é Judiciário Nacional,<br />

excepcionando algumas exigências da Federação, como ressaltei nesse voto. De outra<br />

banda, o CNJ é um dos órgãos do Poder Judiciário, como tal definido pelo artigo 92 da<br />

Constituição, suas decisões estando sujeitas a controle pelo Supremo Tribunal Federal.<br />

3. A resolução também não restringe direitos de servidores públicos e de terceiros,<br />

relações contratuais, criando modalidade de rescisão contratual não contemplada nos<br />

contratos já celebrados com a Administração.<br />

A uma porque, como largamente afirmado por esta Corte, os servidores públicos<br />

não são titulares de direito adquirido a regime jurídico. A duas, quanto aos nomeados<br />

para o exercício de cargos em comissão e aos contratados por tempo determinado, em<br />

situações excepcionais, porque o rompimento da relação de trabalho atenderá, no caso,<br />

às imposições da moralidade e da impessoalidade. Imposições que abrangem todos os<br />

contratos celebrados com a Administração.<br />

4. Resta o argumento da legalidade.<br />

.


444<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Lembro, a respeito, que a Constituição do Brasil consagra a legalidade como reserva<br />

da lei e como reserva da norma 1 . Tome-se o enunciado do seu artigo 5º, II: ninguém será<br />

obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Ora, há visível<br />

distinção entre as seguintes situações: [i] vinculação às definições da lei; [ii] vinculação às<br />

definições decorrentes — isto é, fixadas em virtude dela — de lei. No primeiro caso<br />

estamos diante da reserva da lei; no segundo, em face da “reserva da norma” [norma que<br />

pode ser tanto legal quanto regulamentar; ou regimental]. Na segunda situação, ainda<br />

quando as definições em pauta se operem em atos normativos não da espécie legislativa —<br />

mas decorrentes de previsão implícita ou explícita em lei — o princípio estará sendo<br />

devidamente acatado. No caso, o princípio da legalidade expressa reserva da lei em termos<br />

relativos [= reserva da norma], razão pela qual não impede a atribuição, explícita ou<br />

implícita, ao Executivo e ao Judiciário, para, no exercício de função normativa, definir<br />

obrigação de fazer e não fazer que se imponha aos particulares — e os vincule. Voltando ao<br />

artigo 5º, II, do texto constitucional, verificamos que, nele, o princípio da legalidade é<br />

tomado em termos relativos, o que induz a conclusão de que o devido acatamento lhe<br />

estará sendo conferido quando — manifesta, explícita ou implicitamente, atribuição para<br />

tanto — ato normativo não legislativo, porém regulamentar ou regimental, definir<br />

obrigação de fazer ou não fazer alguma coisa imposta a seus destinatários. Tanto isso é<br />

verdadeiro — que o dispositivo constitucional em pauta consagra o princípio da<br />

legalidade em termos apenas relativos — que em pelo menos três oportunidades [isto é, no<br />

artigo 5º, XXXIX, no artigo 150, I, e no parágrafo único do artigo 170] a Constituição<br />

retoma o princípio, então o adotando, porém, em termos absolutos: não haverá crime ou<br />

pena, nem tributo, nem exigência de autorização de órgão público para o exercício de<br />

atividade econômica sem lei, aqui entendida como tipo específico de ato legislativo, que<br />

os estabeleça. Não tivesse o artigo 5º, II, consagrado o princípio da legalidade em termos<br />

somente relativos e razão não haveria a justificar a sua inserção no bojo da Constituição,<br />

em termos então absolutos, nas hipóteses referidas. Dizendo-o de outra forma: se há um<br />

princípio de reserva da lei — ou seja, se há matérias que só podem ser tratadas pela lei —<br />

evidente que as excluídas podem ser tratadas em regulamentos do Poder Executivo e<br />

regimentos do Judiciário; quanto à definição do que está incluído nas matérias de reserva<br />

de lei, há de ser colhida no texto constitucional; quanto a tais matérias, não cabem<br />

regulamentos e regimentos. Inconcebível a admissão de que o texto constitucional<br />

contivesse disposição despicienda — verba cum effectu sunt accipienda.<br />

Note-se bem, por outro lado, que não se opera, no caso, delegação de função<br />

legislativa ao CNJ. Permito-me simplesmente reportar-me, no que tange a este ponto, ao<br />

voto que proferi no HC 85.060, do qual sou Relator. Já é tempo de afastarmos as<br />

concepções que os liberais do século XIX nutriam a respeito dos regulamentos, das quais<br />

muitos dos nossos publicistas ainda hoje fazem praça. A classificação das funções<br />

estatais segundo um critério material — função normativa, função jurisdicional e<br />

função administrativa — ainda não chegou aos ouvidos dessa gente, o que faz crer que<br />

não há ninguém mais conservador do que um liberal (...)<br />

1 Vide meu O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. pp. 236 e ss.


R.T.J. — <strong>199</strong> 445<br />

5. De toda sorte, no caso, é a própria Constituição, no inciso I do § 4º do seu artigo<br />

103-B, que atribui ao Conselho Nacional de Justiça o exercício da função normativa<br />

regulamentar.<br />

Concedo a medida liminar.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente, entendo, em princípio, ser<br />

constitucional a Resolução 7/2005 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Apenas<br />

trago breves observações sobre o tema.<br />

A primeira vincula-se ao fato de o ato normativo objeto da presente ação ter sido<br />

expedido sem fundamento em lei, mas baseado diretamente na Constituição Republicana.<br />

Esse ponto tem sido repisado por aqueles que se opõem à validade da resolução,<br />

e isso em virtude de dois dogmas administrativo-constitucionais intrinsecamente<br />

ligados e de suma relevância: o da inexistência de regulamento autônomo no direito<br />

brasileiro e o de que é vedada qualquer inovação normativa pela via infralegal.<br />

Noutras palavras, somente a lei, como ato normativo primário, teria a primazia de criar<br />

direitos e obrigações.<br />

Contudo, esses dogmas já foram anteriormente excepcionados pela Emenda<br />

Constitucional 32/2001, que previu a possibilidade de extinção, mediante decreto, de<br />

funções e de cargos públicos — criados por lei — quando vagos (art. 84, VI, b, da<br />

Constituição Federal).<br />

Nova exceção foi criada pela Emenda Constitucional 45/2004, no art. 103-B, § 4º,<br />

II, da Lei Maior, que atribui ao Conselho Nacional de Justiça competência para “zelar<br />

pela observância do art. 37”. Como bem destacado na inicial, ao conferir tal atribuição<br />

ao CNJ, o constituinte derivado implicitamente outorgou os meios práticos de exercê-la,<br />

por meio de atos administrativos, dos quais a resolução é exemplo.<br />

Incide, aqui, sem sombra de dúvida, a teoria dos poderes implícitos concebida por<br />

Hamilton no fim do século XVIII e magistralmente concretizada por John Marshall em<br />

1819, no caso McCulloch versus Maryland.<br />

Assim, já que se incumbiu ao CNJ a função de assegurar a observância dos<br />

princípios constitucionais regentes da atuação administrativa do Poder Judiciário, é<br />

curial que se entenda lícita a possibilidade de imposição, pelo Conselho, mediante ato<br />

normativo próprio, de obrigações nesse específico sentido.<br />

Como se vê, os dois axiomas enunciados, que de resto nunca foram isentos de<br />

controvérsia, vieram a ser atenuados pelo constituinte derivado, em norma cuja<br />

constitucionalidade já foi confirmada pelo Tribunal.<br />

Inexiste, pois, vício formal que contamine a Resolução 7, de 18-10-2005.<br />

No mérito, a legitimidade do ato é inquestionável. Ao zelar pela observância ao<br />

art. 37 da Constituição, o CNJ proibiu “a prática de nepotismo no âmbito de todos os<br />

órgãos do Poder Judiciário”. Aliás — e porque esse ponto também tem sido alvo de<br />

rebeldia —, deve-se salientar que o Poder Judiciário é uno, de modo que a vinculação de<br />

todos os seus órgãos à norma em questão — na esfera estadual e na federal — não implica<br />

.


446<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

violação do sistema federativo, exatamente porque o CNJ não representa este ou aquele<br />

ente federativo, mas, sim, é órgão nacional, como, aliás, já ficou assentado por ocasião<br />

do julgamento da ADI 3.367 (Rel. Min. Cezar Peluso).<br />

Evidentemente, as regras estabelecidas pelo CNJ na Resolução 7/2005, no<br />

exercício do dever que lhe foi constitucionalmente imposto, buscam dar efetividade aos<br />

princípios da moralidade e da impessoalidade administrativa.<br />

Na lúcida lição do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da<br />

impessoalidade “não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia”, de que é<br />

aplicação concreta o ingresso em cargo, em função ou em emprego público mediante<br />

concurso público 1 . Não é legítimo, no caso, qualificar como persecutória a resolução,<br />

por discriminar parentes, já que o § 1º do art. 2º excepciona os ocupantes de cargo de<br />

provimento efetivo nas carreiras judiciárias, admitidos por concurso público. Plenamente<br />

obedecido, portanto, o princípio da igualdade.<br />

Por sua vez, talvez com mais ênfase ainda, impõe-se ao caso o princípio da moralidade,<br />

por aplicação direta da Constituição, sem necessidade de nenhuma intermediação<br />

legislativa, como sugerem os opositores da norma atacada. Com efeito, como bem discorre<br />

José dos Santos Carvalho Filho, o princípio da moralidade<br />

“impõe que o administrador público não dispense os preceitos éticos que<br />

devem estar presentes em sua conduta. Deve não só averiguar os critérios de<br />

conveniência, oportunidade e justiça em suas ações, mas também distinguir o que<br />

é honesto do que é desonesto. [...] Tal forma de conduta deve existir não somente<br />

nas relações entre a Administração e os administrados em geral, como também<br />

internamente, ou seja, na relação entre a Administração e os agentes públicos que<br />

a integram”.<br />

E prossegue:<br />

“Somente quando os administradores estiverem realmente imbuídos do<br />

espírito público é que o princípio será efetivamente observado.” 2<br />

Nota-se, portanto, que a Resolução 7/2005 observa duplamente o princípio da<br />

moralidade — é, em si, ato que prima pelos preceitos éticos e, a par disso, impõe sejam<br />

estes obedecidos.<br />

Por fim, Senhor Presidente, nesta ação declaratória, vejo claramente delinear-se<br />

uma das magnas funções de uma Corte Constitucional, qualificada por um grande jurista<br />

e magistrado israelense, Aaron Barak, como “brindging the gap between law and<br />

society”. Ou seja, à Corte Constitucional cabe o papel de estreitar, de eliminar o fosso<br />

que às vezes existe entre a sociedade e o microcosmo jurídico, o qual, como todos<br />

sabemos, às vezes forja as suas próprias realidades, fomenta as hipocrisias e — por que<br />

não dizê-lo? — uma certa moralidade manca, como cotidianamente temos oportunidade<br />

de verificar.<br />

1 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo:<br />

Malheiros, 2005. p. 104.<br />

2 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 8. ed. Rio de Janeiro:<br />

Lumen Juris, 2001. p. 14.


R.T.J. — <strong>199</strong> 447<br />

O Direito não pode dissociar-se da Moral, isto é, de uma moral coletiva, pois ele<br />

reflete um conjunto de crenças e valores profundamente arraigados, que emanam da<br />

autoridade soberana, ou seja, do povo. Quando, em determinada sociedade, há sinais<br />

de dissociação entre esses valores comunitários e certos padrões de conduta de alguns<br />

segmentos do aparelho estatal, tem-se grave sintoma de anomalia, a requerer a<br />

intervenção da justiça constitucional como força intermediadora e corretiva.<br />

Para além dos argumentos puramente jurídicos, inúmeros neste caso, é essa função<br />

corretiva e restauradora de uma moral coletiva que o <strong>STF</strong> expressará nesta jornada, caso<br />

venha a ser declarada a constitucionalidade da norma do CNJ.<br />

Feitas essas considerações, entendo necessária a concessão da cautelar pleiteada.<br />

É como voto.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhor Presidente, examino rapidamente algumas das<br />

preliminares, porque o eminente Ministro Relator e os demais ilustres colegas que me<br />

antecederam já o fizeram à exaustão, referindo-se, até, ao julgamento da ação direta de<br />

inconstitucionalidade da Emenda que criou o Conselho.<br />

Faço breve alusão à questão da competência, porque, se a Constituição da<br />

República atribuiu ao Conselho o dever de velar pela observância do art. 37 e de<br />

controlar a validez dos atos administrativos, lhe deu, implicitamente, parece-me óbvio,<br />

o poder de regulamentar a aplicação desses princípios, sobretudo o da impessoalidade.<br />

Essa matéria nem comporia a rigor uma questão preliminar, porque seu prius<br />

lógico está em responder ao núcleo da causa: saber se a prática de nepotismo ofende, ou<br />

não, entre outros, o princípio da impessoalidade. Se a resposta for positiva, a questão da<br />

competência estará pré-excluída ipso facto, porque, se ao Conselho cabe velar pela<br />

aplicação desse princípio, cabe-lhe, não há dúvida, coibir, ainda que de forma genérica,<br />

as práticas que o violem.<br />

O Conselho tem, assim, poder jurídico de explicitar o alcance do princípio na<br />

matéria, em especial com a idéia já ressaltada, também, pelo eminente Ministro Relator,<br />

de não apenas remediar os danos causados pela prática em si, mas de prevenir os riscos de<br />

que esse dano venha a atualizar-se, o que pode ser feito apenas mediante a edição de ato<br />

com caráter normativo e de sentido geral.<br />

Retiro ainda do artigo 103, b, § 4º, inc. I, o poder jurídico, agora explícito, do<br />

Conselho, de expedir atos regulamentares, que não me parecem restritos à hipótese<br />

inicial do inc. I. Esse poder de expedir atos regulamentares diz respeito a todas as<br />

atribuições outorgadas ao Conselho e que dependem, para sua execução efetiva, dessa<br />

regulamentação prevista no § 4º, inc. I.<br />

Ocorreu-me traçar, aqui, um paralelo com questão interessante que esta Corte teve<br />

oportunidade de resolver, em 1967, no MS n. 16.912, em que certa lei foi invalidada por<br />

vício alheio a inconstitucionalidade, sem invocação do princípio do processo legal<br />

substantivo, como hoje se invocaria, mas só por particularismo e favorecimento!<br />

Tratava-se de hipótese típica, e o Tribunal declarou a invalidez da lei por esse vício,<br />

diverso da inconstitucionalidade.<br />

.


448<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Agora, admitindo-se que a prática ofende o art. 37, essa norma seria inconstitucional;<br />

se houvesse lei que permitisse atos suscetíveis de serem qualificados como<br />

prática de nepotismo, seria inconstitucional, e os administradores estariam livres, se não<br />

obrigados a tanto, para não aplicá-la.<br />

De modo que não vejo por que o Conselho não poderia, sob o pressuposto de que<br />

tal prática ofende os princípios constitucionais, regulamentar a matéria, tipificando<br />

hipóteses.<br />

E também não vejo, na situação dos servidores, nenhuma ofensa a direito<br />

subjetivo. Conforme o eminente Ministro Relator já acentuou, é precária a situação<br />

desses nomeados, porque, respondendo à questão fundamental da causa — se se trata de<br />

prática ofensiva à Constituição —, daí não pode irradiar-se nenhum direito subjetivo, e,<br />

portanto, tampouco se pode pensar em termos de isonomia etc.<br />

O tema — e assim também o eminente Ministro Relator, com grande lucidez,<br />

ressaltou no seu belo voto, até chamando atenção para alguns aspectos que mostram os<br />

embaraços que o administrador público sofre na tutela do interesse público, quando tem<br />

sob sua autoridade parentes ou pessoas próximas ligadas por laços de consagüinidade<br />

ou de afetividade etc. — faz-nos pensar um pouco sobre a realidade subjacente a esta<br />

causa: historicamente todo mundo sabe que o nepotismo nasceu do hábito de alguns<br />

Papas que nomeavam os sobrinhos (e também outros parentes), coisa que nos veio como<br />

legado da época da colonização e contra a qual se rebelou já a Constituição de 1824, ao<br />

instituir a obrigatoriedade do concurso público para, no dizer dos autores e dos<br />

historiadores, responder ao “privilegiamento” escandaloso na nomeação de servidores<br />

públicos.<br />

Considerei muito significativo que lei de 10 de junho de 1828, no art. 38, com o<br />

idêntico propósito de coibir tal distorção administrativa, estatuía:<br />

“Art. 38. Nenhum Vereador poderá votar em negócio de seu particular interesse,<br />

nem dos seus ascendentes, ou descendentes, irmãos, ou cunhados, emquanto durar o<br />

cunhadio.” (sic)<br />

Ou seja, desde muito não há dúvida nenhuma de que se trata de prática perniciosa<br />

ao interesse público. Não encontrei, salvo em casos isolados de algumas pessoas,<br />

ninguém que sustente cuidar-se de orientação proveitosa ao interesse público. Quero<br />

admitir, para argumentar, que, na grande maioria dos casos, tais nomeações recaem sobre<br />

pessoas de reconhecida competência, mas há largas exceções, e estas bastariam como<br />

risco grave à administração pública.<br />

A regra parece ser de favorecer parentes para atender a interesse de cunho pessoal<br />

e, portanto, de caráter privado. Isso frustra a escolha dos mais competentes e, pois, o fim<br />

público da discricionariedade em prover cargos de confiança. E tem relação direta com<br />

a eficiência da administração pública. Há até quem, não negando a perniciosidade da<br />

prática, lança mão do argumento de que apenas se deveria exigir lei que a regulasse. Isto<br />

é, não chegam sequer a pressupor licitude da prática. Basta, no caso, portanto — ainda<br />

que, por suposição, todos os atuais nomeados fossem os mais competentes para<br />

exercício dos cargos —, o menor risco de, no futuro, abrir-se exceção a tal suposição,<br />

para que não fosse admitida.


R.T.J. — <strong>199</strong> 449<br />

A questão poderia ser discutida à luz de vários princípios constitucionais. Quero<br />

limitar-me a um deles, até para retirar certa passionalidade com que a matéria vem sendo<br />

tratada pela mídia e por pessoas diretamente interessadas nas conseqüências jurídicas da<br />

incidência da Resolução. Gostaria de versar a questão à luz de um só princípio<br />

explicitado pela vigente Constituição da República: o da impessoalidade.<br />

Registram-se dificuldades teóricas de conceituar e identificar esse princípio,<br />

sobretudo pelas vinculações estreitas e afinidades íntimas que mantém com outros<br />

princípios constitucionais — igualmente relevantes —, como o da legalidade, o da<br />

moralidade, o da igualdade, o da imparcialidade e, até, daquilo que a Constituição,<br />

depois da Emenda n. 19, chama de princípio da eficiência — que, a meu ver, não chega<br />

a ser sequer um princípio.<br />

Acredito ser possível isolar uma noção estreita do princípio da impessoalidade, até<br />

porque de outro modo ficaria sem sentido a referência constitucional aos demais, como<br />

se fosse mera remissão com pretensão de sinonímia. O princípio da impessoalidade tem<br />

perfil próprio já delineado, com muita clareza, em obra, que, segundo o prefácio de Caio<br />

Tácito, já nasceu como clássica, “O Princípio da Impessoalidade” (RJ-SP, Renovar,<br />

2001), da Profa. Lívia Maria Armentano Koenigstein Zago, e da qual constam as duas<br />

referências históricas a que já me referi e cujos conceitos sintetizo. Aí, como idéia<br />

fundamental, o princípio aparece diretamente relacionado com o controle jurídico do<br />

exercício do poder político, que, por definição, é mantido sempre por minorias. Esse<br />

dado em si justifica a frase lapidar do Prof. Fábio Comparato, em sua conhecida tese de<br />

Direito Comercial, mas perfeitamente aplicável ao caso, de que “mais importante do que<br />

a titularidade é o controle do exercício desse poder”.<br />

As necessidades da administração pública dependem daquilo que Weber denominava<br />

a “dominação burocrática de impessoalidade formalística”, cujo conteúdo<br />

relevava bem com a expressão latina sine ira et studio, ou seja, regida pelo dever<br />

jurídico estrito de não se deixar guiar, não se deixar conduzir, na tutela da coisa pública,<br />

nem por ódio, nem por amor. Nesse sentido, o princípio da impessoalidade está ligado à<br />

idéia de eficiência, porque constitui condição ou requisito indispensável da eficiência<br />

operacional da administração pública. Mas, a despeito disso, atua sobremodo como<br />

limitação ao exercício do poder discricionário de nomear funcionários em cargo de<br />

confiança.<br />

Todos sabemos — e não é caso de o relembrar — que o poder discricionário,<br />

embora descrito como poder jurídico, na verdade se reduz, em última análise, à categoria<br />

de dever jurídico, isto é, o administrador tem de escolher, em determinadas situações,<br />

certas condutas de acordo com os princípios do ordenamento jurídico que regula a<br />

administração à qual serve. Portanto, tem de assegurar a promoção da finalidade legal<br />

dos atos administrativos. O que limita esse poder, garantindo o alcance da satisfação das<br />

necessidades e dos interesses públicos, é o princípio da impessoalidade, o qual deve<br />

guiar o administrador na escolha dos quadros, não para servir ao que se crê dono do<br />

poder, isto é, o chefe, mas para acudir às necessidades da administração pública. Daí, a<br />

exigência constitucional, como regra, do concurso público.<br />

A impessoalidade apresenta duas dimensões em relação ao exercício desse poder:<br />

diz respeito à titularidade em si e ao exercício do poder discricionário, jungido ao


450<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

interesse público e ao bem comum. Seus traços substanciais estão exatamente nesses<br />

dois alcances: primeiro, coibir o exercício do poder voltado a favorecer ou a prejudicar<br />

pessoas, e, depois, impedir o personalismo no exercício desse poder mediante atos de<br />

promoção pessoal, que a mesma Constituição proíbe de maneira peremptória. Esse<br />

princípio, é bom repetir, no primeiro aspecto, sublinha o dever de preenchimento dos<br />

cargos públicos sine ira et studio, significando vedação de privilégios e, também, de<br />

perseguições pessoais. E, no segundo, a autopromoção.<br />

De modo que, Senhor Presidente, não vejo como negar à prática do nepotismo a<br />

pecha de ofensa ostensiva ao princípio da impessoalidade, que, como tal, é objeto<br />

próprio do exercício do poder regulamentar do Conselho Nacional de Justiça.<br />

Assim, acompanho o voto do eminente Relator, concedendo a liminar nos<br />

exatos termos em que foi pedida e suspendendo diretamente os atos, tal como foi<br />

requerido.<br />

É como voto.<br />

DEBATE<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Sustento, Ministro Cezar Peluso, que a<br />

questão do parentesco definida no Código Civil é para efeitos civis e, aqui, visa-se a<br />

vigência absoluta do princípio da impessoalidade. Não teremos a impessoalidade<br />

efetiva se deixarmos em aberto — como o Conselho fechou — a possibilidade da<br />

nomeação dos chamados parentescos por afinidade; porque a impessoalidade será<br />

rompida exatamente por esse caminho.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Entra na mesma ratio juris, ou seja, o problema não é<br />

de definir quais são os parentes para efeitos civis, mas definir quais aquelas pessoas que,<br />

sob a classe de parentela, tendem a ser escolhidas, não por interesse público, mas por<br />

interesse de caráter pessoal.<br />

Não faço nenhuma restrição, Senhor Presidente.<br />

VOTO (Aditamento)<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Senhor Presidente, também é justo. Se<br />

Vossas Excelências entendem que a resolução nada mais fez do que transformar o<br />

terceiro grau de parentesco num simples critério de inibição, eu concordo.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Há uma relação familiar, ainda que, para os<br />

efeitos do Código Civil, não seja chamada de parentesco.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: 1. Preliminares<br />

1.1. Ironia do destino: A AMB e a ADI n. 913 (contra a Emenda Constitucional<br />

n. 3 — que criou a ADC) e a ADI 3.367 (contra a Emenda Constitucional n. 45 — que<br />

criou o CNJ)


R.T.J. — <strong>199</strong> 451<br />

Quando instituída a ação declaratória de constitucionalidade, a Associação dos<br />

Magistrados Brasileiros – AMB ajuizou ação direta afirmando a inconstitucionalidade<br />

da Emenda Constitucional n. 3/93 (ADI n. 913, Rel. Min. Moreira Alves).<br />

As principais críticas feitas, à época, à ação declaratória de constitucionalidade,<br />

diziam respeito à impossibilidade de este novo instrumento processual compatibilizarse<br />

com o princípio do devido processo legal e seus corolários: ampla defesa e contraditório.<br />

Afirmava-se também que a referida ação acabaria por reconhecer à cúpula do Poder<br />

Judiciário o papel de legislador positivo, usurpando tal função do Poder Legislativo e,<br />

ferindo, desse modo, o princípio da separação dos Poderes.<br />

A ADI 913 não foi conhecida, pois o <strong>STF</strong> entendeu que a AMB não teria legitimidade<br />

ativa ad causam, por ausência do requisito da pertinência temática (julgamento em<br />

18-8-<strong>199</strong>3, DJ de 5-5-<strong>199</strong>5).<br />

Recentemente, a mesma AMB ajuizou a ADI n. 3.367 (Rel. Min. Cezar Peluso)<br />

contra a Emenda Constitucional n. 45/2004, que criou o Conselho Nacional de Justiça –<br />

CNJ, alegando a afronta ao princípio da separação de Poderes e ao princípio federativo.<br />

Neste assunto, a referida ação foi julgada improcedente (em 13-4-2005).<br />

Hoje, a mesma AMB se utiliza da ação declaratória de constitucionalidade, instituto<br />

que impugnou, para defender uma resolução do órgão também por ela tachado de<br />

inconstitucional. Ironia do destino!<br />

1.2. Existência de controvérsia constitucional relevante<br />

A controvérsia exigida para fins do art. 14, III, da Lei n. 9.868/99 está intimamente<br />

relacionada com a finalidade da ação declaratória de constitucionalidade no ordenamento<br />

jurídico constitucional brasileiro. Trata-se, na verdade, do requisito da legitimidade<br />

para agir em concreto.<br />

A finalidade da Ação Declaratória de Constitucionalidade é a preservação da<br />

ordem jurídica constitucional, com vistas a afastar a insegurança jurídica ou estado de<br />

incerteza sobre a validade de lei ou ato normativo federal.<br />

Buscando, no direito comparado alemão, instituto similar, venho defendendo<br />

doutrinariamente que:<br />

“Ao lado do direito de propositura, há de se cogitar aqui, também, de uma<br />

legitimação para agir in concreto, tal como consagrada no direito alemão, que<br />

se relaciona com a existência de um estado de incerteza, gerado por dúvidas<br />

ou controvérsias sobre a legitimidade da lei. Há de se configurar, portanto, situação<br />

hábil a afetar a presunção de constitucionalidade, que é apanágio da lei.”<br />

(MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado<br />

de constitucionalidade — comentários à Lei n. 9.868/99. São Paulo: Saraiva,<br />

2001, p. 265)<br />

A principal função da ação declaratória de constitucionalidade é transformar a<br />

presunção relativa de constitucionalidade (que milita a favor dos atos normativos) em<br />

presunção absoluta. Serve, portanto, para afastar o controle difuso e a controvérsia sobre<br />

a aplicação de determinada norma no âmbito do Executivo e do Judiciário.


452<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Assim sendo, é evidente que o manejo da referida ação somente se faz necessário<br />

quando houver controvérsia ou dúvidas relevantes sobre a constitucionalidade de um<br />

determinado preceito, pois de outra forma, não há razão para movimentar a jurisdição<br />

constitucional.<br />

A garantia processual oferecida pela ação declaratória de constitucionalidade atua<br />

contra a insegurança gerada por aplicações e interpretações contraditórias de um mesmo<br />

preceito normativo.<br />

No caso concreto, muito embora não estejam suficientemente registrados, na<br />

petição inicial, os dados relativos à repercussão prática do ato normativo em questão<br />

(havendo apenas uma notícia de que no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro esse<br />

número seria de aproximadamente 90 casos de nepotismo), há que se afirmar uma<br />

inequívoca controvérsia gerada pela aplicação da Resolução n. 7/2005 do CNJ no<br />

âmbito administrativo dos Tribunais.<br />

A recusa de aplicação da referida Resolução, sob o argumento de que seria<br />

necessário que tal questão viesse disciplinada em lei, bem como a generalização de<br />

medidas judiciais contra os atos que a fazem valer, poderia nulificar completamente a<br />

sua força normativa, colocando em xeque a presunção legalidade/constitucionalidade<br />

que milita a favor dos atos administrativos.<br />

Nesse particular, é preciso ressaltar que a ação declaratória revela-se como<br />

instrumento adequado para a solução desse impasse jurídico-político, permitindo que o<br />

Supremo Tribunal Federal possa manifestar-se sobre questão de relevante interesse<br />

nacional, como é o caso do nepotismo, preservando e potencializando princípios<br />

constitucionais como a segurança jurídica e a moralidade.<br />

1.3. Competência do Conselho Nacional de Justiça<br />

O Conselho Nacional de Justiça, criado pela Emenda Constitucional n. 45/04, tem<br />

sua competência disciplinada pela Constituição Federal, da seguinte forma, verbis:<br />

Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de quinze membros<br />

com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e seis anos de idade, com mandato<br />

de dois anos, admitida uma recondução, sendo:<br />

(...)<br />

§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira<br />

do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendolhe,<br />

além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da<br />

Magistratura:<br />

I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto<br />

da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua<br />

competência, ou recomendar providências;<br />

II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante<br />

provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou<br />

órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para<br />

que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem<br />

prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;


R.T.J. — <strong>199</strong> 453<br />

III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder<br />

Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores<br />

de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público<br />

ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos<br />

tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção,<br />

a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais<br />

ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla<br />

defesa;<br />

IV - representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração<br />

pública ou de abuso de autoridade;<br />

V - rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de<br />

juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano;<br />

VI - elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças<br />

prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário;<br />

VII - elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias,<br />

sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o<br />

qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser<br />

remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.”<br />

Os referidos dispositivos, conforme se vê, autorizam expressamente a expedição<br />

de atos regulamentares pelo CNJ, no âmbito de sua atuação, estando entre as suas<br />

atribuições o dever de observância aos princípios e às disposições contidas no art. 37 da<br />

Constituição Federal (art. 103-B, § 4º, II, da CF/88).<br />

Considerando que a Resolução n. 7/05 foi editada para “disciplinar o exercício de<br />

cargos, empregos e funções por parentes, cônjuges e companheiros de magistrados e de<br />

servidores investidos em cargos de direção e assessoramento, no âmbito dos órgãos do<br />

Poder Judiciário”, sendo dirigida a estes órgãos, não há que se falar em extrapolação,<br />

pelo CNJ, da competência que constitucionalmente lhe é deferida.<br />

O Conselho Nacional de Justiça disciplinou e regulamentou a prática administrativa<br />

de contratação de parentes (proibindo o nepotismo) para os órgãos sob sua “jurisdição<br />

administrativa”, utilizando-se de sua prerrogativa constitucional para tanto.<br />

2. Separação de Poderes e ato administrativo — Limites do ato administrativo<br />

que concretiza a Constituição<br />

No preâmbulo da Resolução n. 7, de 18 de outubro de 2005, do Conselho Nacional<br />

de Justiça, está expresso que, “nos termos do disposto no art. 103-B, § 4º, II, da<br />

Constituição federal, compete ao Conselho zelar pela observância do art. 37 e apreciar,<br />

de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por<br />

membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar<br />

prazo para que se adotem as providências ao exato cumprimento da lei”.<br />

O cerne da questão, a meu ver, encontra-se nessas considerações preliminares da<br />

Resolução, pois nelas está explícito que se trata de um ato administrativo, emanado de<br />

órgão constitucional competente, e que busca seu fundamento de validade diretamente<br />

na Constituição. Não há, portanto, qualquer ofensa ao princípio da legalidade.<br />

.


454<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

A idéia da submissão da Administração à lei é, hoje, quase óbvia. No entanto,<br />

como ensina García de Enterría 1 , é preciso ter cuidado para não entender como lei<br />

apenas a lei em sentido formal. O conceito de legalidade não faz referência a um tipo de<br />

norma específica, mas ao ordenamento jurídico como um todo, o que Hauriou chamava<br />

de “bloco de legalidade” 2 .<br />

Portanto, quando a Constituição, em seu art. 5º, II, prescreve que “ninguém será<br />

obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, por “lei”<br />

deve-se entender o conjunto do ordenamento jurídico, cujo fundamento de validade<br />

formal e material encontra-se precisamente na própria Constituição. Traduzindo em<br />

outros termos, a Constituição diz que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer<br />

alguma coisa que não esteja previamente estabelecido na própria Constituição e nas<br />

normas dela derivadas.<br />

Assim, é certo que não apenas a lei em sentido formal mas também a Constituição<br />

emitem comandos normativos direcionados à atividade administrativa. Esses comandos<br />

normativos podem possuir a estrutura de regras ou de princípios. No primeiro caso, a<br />

prescrição detalhada e fechada da conduta deontologicamente determinada estabelece<br />

uma estrita vinculação da Administração Pública. Por exemplo, a regra da anterioridade<br />

tributária descrita pelo enunciado normativo do art. 150, III, da Constituição. No caso<br />

dos princípios, a estrutura normativa aberta deixa certas margens de “livre apreciação”<br />

(freie Ermessen) ao Poder Administrativo. Assim ocorre quando a Constituição, em seu<br />

art. 37, determina a obediência, pela Administração Pública, à moralidade e à impessoalidade.<br />

A competência do Conselho Nacional de Justiça está delimitada constitucionalmente<br />

pelas regras descritas no art. 103-B e pelos princípios do art. 37 da Constituição.<br />

De acordo com o § 4º do art. 103-B, compete ao Conselho o controle da atuação<br />

administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais<br />

dos juízes, cabendo-lhe zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou<br />

mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou<br />

órgãos do Poder Judiciário.<br />

Como se vê, a Constituição concede ao CNJ poderes discricionários delimitados<br />

pelas regras de competência do art. 103-B e pelos princípios do art. 37. Desses poderes<br />

discricionários decorrem poderes administrativos “inerentes” ou “implícitos” (inherent<br />

powers, implied powers) 3 . Com efeito, quando a Constituição confere ao CNJ a competência<br />

de fiscalizar a atuação administrativa do Poder Judiciário e fazer cumprir o art. 37,<br />

1 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo.<br />

12. ed. Madrid: Civitas, 2004. pp. 441 e ss.<br />

2 Apud GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho<br />

Administrativo. 12. ed. Madrid: Civita, 2004, pp. 441 e ss. Seria possível falar em bloco de<br />

“juridicidade” para englobar tanto a lei como a Constituição. Porém, como explica García de Enterría,<br />

esse tipo de “complicação terminológica” torna-se desnecessária uma vez aclarado que o princípio da<br />

legalidade faz referência ao ordenamento jurídico como um todo, constituído por leis e princípios<br />

gerais da Constituição.<br />

3 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo.<br />

12. ed. Madrid: Civitas, 2004. p. 456.


R.T.J. — <strong>199</strong> 455<br />

implicitamente concede os poderes necessários para o exercício eficaz dessa competência.<br />

Como ensina García de Enterría, “todo poder é conferido pela lei como instrumento<br />

para a obtenção de uma finalidade específica (pública), que está normalmente implícita” 4 .<br />

A Constituição, ao atuar por meio de princípios, determina os fins sem indicar explicitamente<br />

os meios.<br />

Se cabe ao CNJ zelar pelo cumprimento dos princípios da moralidade e da<br />

impessoalidade, é da sua competência fiscalizar os atos administrativos do Poder Judiciário<br />

que violem tais princípios. E não há dúvida de que os atos que impliquem a prática<br />

do nepotismo ofendem diretamente os princípios da moralidade e da impessoalidade.<br />

Desde seu primeiro incurso na doutrina administrativista de Maurice Hauriou (Précis<br />

de Droit Administratif et de Droit Public. Paris: Sociétè Anonyme du Recueil Sirey;<br />

1927), o princípio da moralidade traduz a idéia de que sob o ato jurídico-administrativo<br />

deve existir um substrato moral, que se torna essência de sua legitimidade e, em certa<br />

medida, condição de sua validade. Essa moralidade não é elemento do ato administrativo,<br />

como ressalta Gordillo 5 , mas compõe-se dos valores éticos compartilhados culturalmente<br />

pela comunidade e que fazem parte, por isso, da ordem jurídica vigente.<br />

A indeterminação semântica dos princípios da moralidade e da impessoalidade<br />

não pode ser um obstáculo à determinação da regra da proibição do nepotismo. Como<br />

bem anota García de Enterría, na estrutura de todo conceito indeterminado é<br />

identificável um “núcleo fixo” (Begriffkern) ou “zona de certeza”, que é configurada<br />

por dados prévios e seguros, dos quais pode ser extraída uma regra aplicável ao caso 6 . A<br />

vedação do nepotismo é regra constitucional que está na zona de certeza dos princípios<br />

da moralidade e da impessoalidade.<br />

Não é de hoje que o nepotismo é uma prática condenada pela sociedade brasileira.<br />

A regra da vedação do nepotismo está no Regimento Interno desta Corte, precisamente<br />

no art. 357, assim como na Lei Federal n. 9.241/96 (art. 10), na Lei n. 8.112/90 (art. 117,<br />

VIII), e em várias unidades da federação já existem normas específicas de proibição das<br />

práticas de nepotismo.<br />

Dessa forma, o ato administrativo que implique nesse tipo de prática imoral é<br />

ilegítimo, não apenas por violação a uma determinada lei, mas por ofensa direta à<br />

moralidade que atua como substrato ético da ordem constitucional. Nesse sentido, é<br />

possível afirmar que não seria necessária uma lei em sentido formal para instituir a<br />

proibição do nepotismo, pois ela já decorre do conjunto de princípios constitucionais,<br />

dentre os quais têm relevo os princípios da moralidade e da impessoalidade. Cabe às<br />

autoridades administrativas e, nesse caso, ao CNJ, no cumprimento de seus deveres<br />

constitucionais, fazer cumprir os comandos normativos veiculados pelos princípios do<br />

art. 37.<br />

4 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo.<br />

12. ed. Madrid: Civitas, 2004. p. 462.<br />

5 GORDILLO, Augustín. Tratado de Derecho Adminsitrativo. Tomo 3. El Acto Administrativo. 6. ed. Belo<br />

Horizonte: Del Rey, 2003. II-27.<br />

6 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo.<br />

12. ed. Madrid: Civitas, 2004. p. 468.


456<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Portanto, tenho como acertado o argumento exposto na petição inicial segundo o<br />

qual “a Resolução limitou-se a explicitar, de modo declarativo, o que já resultava da<br />

normatividade da Constituição”. “A Resolução n. 7/05 do CNJ limitou-se a declarar uma<br />

obrigação que decorre diretamente do texto constitucional”. E, frise-se, o CNJ fê-lo em<br />

estrita observância com as decisões legislativas fundamentais já externadas pelo Poder<br />

Legislativo, federal ou estadual, no que diz tanto com o repúdio ao “nepotismo” quanto às<br />

situações que lhe caracterizam (ou possam caracterizar). Isto pode ser conferido, mesmo<br />

que apenas a título refererencial, nas Leis federais n. 9.241/96 (art. 10) e 8.112/90 (art. 117,<br />

VIII), já antes referidas. Portanto, no que diz com a essencialidade da tomada de posição<br />

normativa, inderrogável aos Órgãos Políticos constitucionais — mormente o Poder<br />

Legislativo — como elemento indissociável a qualquer legislação em um Estado Democrático<br />

de Direito, em nada inovou ou avançou o CNJ na Resolução n. 7/05. Não lhe<br />

coube, pois, decidir originariamente se naquelas situações, genericamente consideradas,<br />

havia ou não infração aos princípios da moralidade ou da impessoalidade, mas apenas, em<br />

face de uma definição pressuposta pelo Poder Legislativo, modulá-la às situações concretamente<br />

existentes e identificadas na prática do Poder Judiciário de todo o país.<br />

Dessa forma, é forçoso concluir que, estando a Administração Pública e, nesse<br />

caso, o CNJ, vinculado diretamente aos comandos constitucionais, e estando as normas<br />

respeitantes às questões fundamentais ou essenciais pré-definidas pelo legislador na<br />

matéria, não há violação ao princípio da legalidade.<br />

Ademais, a Resolução n. 7/05 veda a prática do nepotismo no âmbito do Poder<br />

Judiciário, ou seja, seus efeitos são limitados aos atos administrativos praticados por<br />

membros ou por órgãos do Poder Judiciário. Trata-se, segundo a doutrina administrativista,<br />

de um ato administrativo de efeitos “interorgânicos” ou “interadministrativos”<br />

(Marienhoff, Cassagne, Linares), que decorre da competência constitucionalmente<br />

conferida ao CNJ para fiscalizar a atividade administrativa dos órgãos do Poder Judiciário.<br />

Portanto, não cria obrigações para particulares e, nesse sentido, não está submetido<br />

à reserva de lei. Mais uma vez, não viola o art. 5º, inciso II, da Constituição.<br />

3. O nepotismo e o conceito de parentesco utilizado pela Resolução CNJ n. 7/05<br />

As impugnações judiciais contra a Resolução CNJ n. 7/05 baseiam-se nos seguintes<br />

fundamentos:<br />

a) a Resolução CNJ n. 7/05 adota conceito de “nepotismo” diverso daquele<br />

que haveria sido anteriormente adotado por leis federais e estaduais 7 . As diferenças<br />

fundamentais entre as leis e a resolução estariam nas inclusões, dentre as vedações,<br />

do parentesco “por afinidade” e do denominado “nepotismo cruzado”;<br />

7 Por exemplo, a Lei federal n. 9.421/96, que dispôs sobre a estrutura de cargos e remuneração do<br />

Poder Judiciário da União e do Distrito Federal e Territórios, que em seu art. 10 assim dispõe, verbis:<br />

“No âmbito da jurisdição de cada Tribunal ou Juízo é vedada a nomeação ou designação, para os<br />

Cargos em Comissão e para as Funções Comissionadas de que trata o art. 9º, de cônjuge,<br />

companheiro ou parente até o terceiro grau, inclusive, dos REspectivos membros ou juízes<br />

vinculados, salvo a de servidor ocupante de cargo de provimento efetivo das Carreiras Judiciárias,<br />

caso em que a vedação é restrita à nomeação ou designação para servir junto ao Magistrado<br />

determinante da incompatibilidade”.


R.T.J. — <strong>199</strong> 457<br />

b) adota conceito de “parentesco” (para tomá-lo como premissa de caracterização<br />

das situações de “nepotismo”) diverso daquele contemplado na legislação<br />

civil (Código Civil, Lei n. 10.406/02, especialmente os arts. 1.591 a 1.595. A<br />

diferença fundamental entre a resolução e a legislação civil estaria na consideração<br />

como “parentes” do parentesco por afinidade até o terceiro grau).<br />

Sobre estes argumentos, cabe observar:<br />

3.1. Em termos de considerações gerais<br />

Como já decidiu esta Corte na ADIn n. 3.367 (Rel. Min. Cezar Peluso), o Poder<br />

Judiciário tem caráter nacional e regime orgânico unitário, sendo esta precisamente a<br />

premissa maior pela qual não ofende a sua autonomia a instituição de um órgão próprio<br />

(interno) à sua estrutura e harmônico à sua composição para o controle administrativo,<br />

financeiro e disciplinar de sua atuação administrativa. Este órgão, de natureza igualmente<br />

administrativa, mas de status político-constitucional, é o Conselho Nacional de<br />

Justiça.<br />

Precisamente à vista destas características, pode-se afirmar, primeiro, que, no seu<br />

escopo constitucional de competências, a atuação do CNJ dar-se-á “sem prejuízo da<br />

competência disciplinar e correcional dos tribunais” (art. 103-B, § 4º, inciso III) — ou<br />

seja, não substitui, por eliminação, a competência própria às diversas Cortes de Justiça —,<br />

mas também sem que, em outro extremo, esteja ela limitada a alguma função recursal ou<br />

revisora desta atuação local: o CNJ, na matéria que lhe é própria, é funcionalmente<br />

primus inter pares, pois atua nacionalmente e em caráter vinculativo para os Tribunais<br />

do país, podendo (e devendo) estes atuar, no exercício daquela competência disciplinar<br />

e correcional, sempre que assim autorizado pelo CNJ ou que não seja incompatível com<br />

as suas normas, orientações, decisões e determinações.<br />

Ademais, também se pode afirmar, por aquelas mesmas premissas, e especialmente<br />

se adicionalmente considerarmos a ausência de competência legislativa geral, de sede<br />

constitucional, para a disciplina dos temas próprios ao funcionalismo público (é um dos<br />

exemplos clássicos, no nosso modelo, de competência legislativa comum), que a criação<br />

do CNJ pela EC n. 45 instituiu no sistema constitucional brasileiro autoridade administrativa<br />

— normativa e executória — cuja parametração, repita-se: exclusivamente na<br />

matéria que lhe é própria, é nacional e unitariamente impositiva às autoridades judiciárias<br />

(em caráter direto) e às demais autoridades do Estado brasileiro (em caráter indireto).<br />

Em outras palavras, no âmbito de sua competência o CNJ atua sobrepondo-se<br />

inclusive à legislação não-nacional (ou seja, federal — em sentido estrito —, estadual<br />

ou, se for o caso, municipal), e isto:<br />

(a) porque é inerente ao modelo federativo brasileiro que nos temas<br />

constitucionalmente reservados à atuação (exclusiva ou concorrente) em âmbito<br />

nacional uniforme as normas, orientações, decisões e determinações assim<br />

caracterizadas se sobreponham àquelas de âmbito meramente “local” (ou seja,<br />

reitere-se, federal — em sentido estrito —, estadual ou municipal), obviamente<br />

sem prejuízo que estas últimas validamente existam porém desde que assim o seja<br />

em compatibilidade com o parâmetro nacional (ou na sua inexistência, enquanto<br />

esta situação perdurar) e para atender a peculiaridades locais; e<br />

.


458<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

(b) porque a preservação do caráter nacional e do regime orgânico unitário<br />

do Poder Judiciário (retorno, aqui, aos conceitos já assentados na ADIn n. 3.367)<br />

não permite, ou não deve mais permitir, a existência de disparidades jurídicas<br />

locais ou regionais que não se possam justificar pela estrita necessidade de<br />

adaptação a peculiaridades locais legítimas e acordes com o interesse público.<br />

Contudo, é igualmente óbvio que o CNJ, na sua atuação, está vinculado, ademais<br />

das normas constitucionais e (procedimentalmente) às suas próprias regras de<br />

funcionamento, aos conceitos jurídicos previamente estabelecidos na legislação (em<br />

sentido formal e estrito) de âmbito nacional, como ocorre, primeiramente, com a Lei<br />

Orgânica da Magistratura (art. 93 da CF, ou até o seu advento a Lei Complementar n. 35),<br />

e ainda, exemplificativamente e tendo em vista a singularidade da controvérsia aqui<br />

analisada, com as regras do Código Civil (Lei n. 10.406/02) relativas à caracterização do<br />

parentesco (sangüíneo ou civil) — exemplos similares, no âmbito das competências<br />

constitucionais do CNJ, poderia ocorrer com a Lei de Licitações (Lei n. 8.666/93) ou<br />

com a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/2000).<br />

3.2. O conceito de parentesco na Resolução CNJ n. 7/05 frente ao Código Civil<br />

Como exposto acima, os atos do CNJ estão necessariamente vinculados, por<br />

hierarquia normativa dentro do plano das leis de âmbito nacional, dentre outras à Lei n.<br />

10.406/02, que institui o vigente Código Civil. Isto não significa dizer que esteja<br />

impedido, para determinadas finalidades específicas (por exemplo, em direito administrativo,<br />

ou em direito processual), de utilizar-se de conceito de relacionamento familiar<br />

ou civil distinto (por supressão ou ampliação) daquele do Código Civil, mas desde que<br />

esta reconceituação se faça — aqui sim, precisamente pela inovação que representa —<br />

por lei (em sentido formal e estrito).<br />

O Código Civil, especialmente em seus arts. 1.591 a 1.595, define os conceitos<br />

próprios à caracterização do parentesco, e não vislumbro aqui qualquer incompatibilidade<br />

destas normas com aquelas que compõem a Resolução CNJ n. 7/05. E mais,<br />

precisamente de acordo com as premissas antes referidas, as normas desta Resolução<br />

devem ser interpretadas à luz das regras do Código Civil.<br />

3.3. O conceito de “nepotismo” na Lei federal n. 9.421/96 e em leis estaduais<br />

similares<br />

As razões que apresentei no item 3.1 supra são suficientes para esclarecer a relação<br />

entre a Resolução do CNJ (de âmbito nacional, por previsão constitucional e natureza<br />

do caráter e do regime orgânico da administração do Poder Judiciário, especialmente<br />

após a Emenda Constitucional n. 45), de um lado, e a Lei Federal n. 9.421 e leis estaduais<br />

similares (em qualquer dos casos, normas não-nacionais), de outro.<br />

Ademais, especificamente no que diz com a Lei Federal n. 9.421/96, não<br />

vislumbro, a partir da adoção, como premissa de interpretação, da Resolução CNJ n. 7,<br />

dos conceitos de parentesco consagrados no Código Civil (vide item 3.2 supra), as<br />

eventualmente alegadas incompatibilidades:<br />

a) o “parentesco” referido naquela lei deve ser compreendido como também<br />

considerando aquele “por afinidade”; e


R.T.J. — <strong>199</strong> 459<br />

b) o “nepotismo cruzado”, a que se refere o inciso II do art. 2º da Resolução,<br />

é apenas a explicitação de uma situação de eventual burla às suas próprias regras,<br />

não configurando uma previsão autônoma; e<br />

4. Princípio federativo<br />

Igualmente não prospera o argumento de que a regulamentação afronta o princípio<br />

federativo. Essa discussão já foi encetada nesta Corte, por ocasião do julgamento da ADI<br />

n. 3.367, da Relatoria do Min. Cézar Peluso, no qual ficou consignado que o Conselho<br />

Nacional de Justiça “não anula o pacto federativo, mas o reafirma”. Colho trechos do<br />

voto do Min. Cézar Peluso, que são elucidativos, verbis:<br />

“Por outro lado, a competência do Conselho para expedir atos regulamentares<br />

destina-se, por definição mesma de regulamento heterônomo, a fixar diretrizes<br />

para execução dos seus próprios atos, praticados nos limites de seus poderes<br />

constitucionais, como consta, aliás, do art. 103-B, § 4º, I, onde se lê: “no âmbito de<br />

sua competência”. A mesma coisa é de dizer-se a respeito do poder de iniciativa de<br />

propostas ao Congresso Nacional (art. 103-B, § 4º, inc. VII).<br />

Como consectário do princípio da unidade do Judiciário como Poder nacional,<br />

o Conselho recebeu ainda competência de reexame dos atos administrativos dos<br />

órgão judiciais inferiores, ou seja, o poder de controle interno da constitucionalidade<br />

e legitimidade desses atos. Ora, tal competência em nada conflita com as<br />

competências de controle exterior e posterior, atribuídas ao Legislativo e aos<br />

tribunais de contas. E o argumento vale para todos os atos de autogoverno, cujo<br />

poder não é subtraído, mas cujo exercício é submetido a processo de aperfeiçoamento<br />

mediante revisão eventual de órgão superior.<br />

(...)<br />

A esse paradigma pode também reconduzir-se a instituição do Conselho,<br />

que, sob a rubrica das atribuições inerentes ao poder de controle da atuação<br />

administrativa e financeira do Judiciário (art. 103-B, § 4º), assume o dever jurídico<br />

de diagnosticar problemas, planejar políticas e formular projetos, com vistas ao<br />

aprimoramento da organização judiciária e da prestação jurisdicional, em todos os<br />

níveis, como exigência da própria feição difusa da estrutura do Poder nas teias do<br />

pacto federativo. Como já acentuamos, somente um órgão de dimensão nacional e<br />

de competências centralizadas pode, sob tais aspectos, responder aos desafios da<br />

modernidade e às deficiências oriundas de visões e práticas fragmentárias na<br />

administração do Poder.<br />

O Conselho não anula, antes reafirma o princípio federativo.” (Voto do Min.<br />

Peluso na ADI 3.367 — pendente de revisão.)<br />

5. Efeitos da decisão cautelar em ADC<br />

A medida cautelar em ação declaratória de constitucionalidade objetiva paralisar<br />

o julgamento, em instâncias inferiores, dos processos que envolvem a aplicação da lei<br />

ou do ato normativo objeto da ação, até o seu julgamento definitivo.<br />

Na presente ação declaratória de constitucionalidade o pedido foi formulado nos<br />

seguintes termos:


460<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

“Assim, por tais razões, e com fundamento no art. 21 da Lei n. 9.868/99, a<br />

requerente pede que essa Eg. Corte defira de imediato medida cautelar com<br />

eficácia erga omnes e efeitos vinculantes para o fim de:<br />

(i) determinar que os juízes e os Tribunais suspendam o julgamento dos<br />

processos que envolvam a aplicação da Resolução n. 7/05 do CNJ até o julgamento<br />

definitivo da presente ação, ficando impedidos de proferir qualquer nova<br />

decisão, a qualquer título, que impeça ou afaste a eficácia da Resolução em<br />

questão; e<br />

(ii) suspender, com eficácia ex tunc, os efeitos de quaisquer decisões, proferidas<br />

a qualquer título, que tenham afastado a aplicação da Resoluçao n. 7/05 do<br />

CNJ.”<br />

No caso dos autos, não basta a suspensão do julgamento dos processos que<br />

envolvam a aplicação da Resolução n. 7/05. Para que a presente cautelar alcance os<br />

efeitos necessários ao asseguramento de sua autoridade, torna-se imperioso suspender,<br />

com eficácia ex tunc, e com efeito vinculante, os efeitos de quaisquer decisões que<br />

tenham afastado ou deixado de cumprir a Resolução n. 7/05.<br />

O art. 11, § 1º, da Lei 9.868/99, cuja aplicação também pode se dar em ADC, tendo<br />

em vista constituírem ações de mesma natureza, apenas com o “sinal trocado” — como<br />

tenho defendido — permite a concessão da liminar com eficácia retroativa.<br />

Na ADC n. 9, nos termos em que assentada a decisão, seguindo o voto da Min.<br />

Ellen Gracie, como Relatora designada para o acórdão, a medida liminar foi concedida<br />

para “suspender, com eficácia ex tunc, e com efeito vinculante, até final julgamento da<br />

ação, a prolação de qualquer decisão que tenha por pressuposto a constitucionalidade<br />

ou inconstitucionalidade dos arts. 14 a 18 da MP 2152-2/2001”.<br />

Diante do exposto, voto pelo deferimento da medida cautelar, tal qual formulado<br />

no pedido inicial da ADC.<br />

VOTO<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: O art. 103-B, § 4º, da Constituição Federal, que foi<br />

introduzido pela EC 45/04, dispõe que compete ao Conselho Nacional de Justiça<br />

realizar o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do<br />

cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Conforme sustentei no voto que proferi<br />

no julgamento da ADI 3.367, de que foi Relator o eminente Ministro Cezar Peluso, o<br />

alcance desse termo “controle”, utilizado, pela Constituição, para definir a finalidade<br />

primária desse novo órgão do Poder Judiciário (CF, art. 92, I-A), não está adstrito ao<br />

sentido de fiscalização, monitoramento ou acompanhamento. Ele é bem mais amplo.<br />

A indiscutível força interventiva do Conselho Nacional de Justiça sobre a<br />

atividade administrativa exercida no âmbito do Poder Judiciário é confirmada, segundo<br />

me parece, pelo significativo rol de competências previstas nos sete incisos do referido<br />

§ 4º do art. 103-B, podendo o Conselho, entre outras ações, expedir atos regulamentares,<br />

apreciar e desconstituir atos administrativos, avocar processos disciplinares em curso,<br />

aplicar sanções administrativas e apresentar representações criminais perante o<br />

Ministério Público.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 461<br />

2. Nesta extensa gama de atribuições destaca-se, no que diz respeito ao deslinde do<br />

caso em análise, a expressa incumbência conferida ao Conselho de zelar pela<br />

observação do art. 37 da Constituição Federal (CF, art. 103-B, § 4º, II), dispositivo em<br />

que estão proclamados “os princípios constitucionais essenciais para a probidade e<br />

transparência na gestão da coisa pública”. 1 Foi portanto no estrito exercício dessa<br />

atividade de verificação ou guarda da própria constitucionalidade dos atos<br />

administrativos expedidos pelos tribunais que o Conselho Nacional de Justiça, ao<br />

considerar a nomeação de parentes por magistrados uma conduta atentatória ao<br />

princípio da moralidade (CF, art. 37, caput), resolveu editar a Resolução 7/2005, que<br />

examinamos.<br />

Nas discussões sobre a viabilidade dessa iniciativa, ocorridas no julgamento<br />

conjunto dos Procedimentos de Controle Administrativo 15 e 18/2005 do Conselho,<br />

prevaleceu entendimento que, ao meu ver, acertadamente, conferiu ao princípio da<br />

moralidade o mesmo patamar de dignidade constitucional e a mesma plena eficácia<br />

atribuída aos demais princípios insertos no caput do art. 37 da Constituição Federal,<br />

notadamente, ao princípio da legalidade.<br />

3. Além disso, a idéia de que a coibição da nomeação de parentes por magistrados<br />

deveria ser feita de maneira descentralizada, correspondente a cada uma das esferas<br />

do Poder, como reflete, por exemplo, a Lei 9.421, de 24-12-96, no âmbito federal 2 ,<br />

foi superada, assim entendo, pelo surgimento exatamente desse novo órgão de<br />

superposição, de âmbito nacional, e que é fruto da atividade do poder constituinte<br />

derivado. Ele fortaleceu, ainda mais, a noção já estampada na Constituição Federal<br />

de que a configuração básica do Judiciário brasileiro possui fortes contornos de<br />

unicidade, não representando, as Justiças estaduais, Poderes Judiciários estanques e<br />

paralelos, mas órgãos de um único Poder Judiciário, conforme disposto no art. 92 da<br />

Constituição Federal.<br />

4. No tocante à questão do nepotismo como uma das formas mais visíveis de ofensa ao<br />

princípio da moralidade administrativa, destaco, do substancioso julgamento cautelar da<br />

ADI 1.521, Rel. Min. Marco Aurélio, trecho do voto do eminente Ministro Celso de Mello,<br />

que asseverou, naquela ocasião, que “quem tem o poder e a força do Estado em suas mãos<br />

não tem o direito de exercer, em seu próprio benefício, a autoridade que lhe é conferida”.<br />

Prossegue S. Exa., afirmando que “o nepotismo, além de refletir um gesto ilegítimo de<br />

dominação patrimonial do Estado, desrespeita os postulados republicanos da igualdade,<br />

da impessoalidade e da moralidade administrativa”.<br />

Destaco, também, daquele julgamento, manifestação do eminente Ministro<br />

Maurício Corrêa, que celebrou o exemplar pioneirismo desta Corte, ao fazer incluir,<br />

no seu Regimento Interno, norma proibitória de nomeação de parentes para cargo em<br />

comissão ou para função gratificada em Secretaria ou Gabinete, de cônjuge ou parente, em<br />

linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, de qualquer um dos Ministros em<br />

1 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo. São Paulo: Atlas, 2002. fl. 98.<br />

2 Lei 9.421/96, “que cria as carreiras dos servidores do Poder Judiciário, fixa os valores de sua<br />

remuneração e dá outras providências”. Art. 10: “No âmbito da jurisdição de cada Tribunal ou Juízo<br />

é vedada a nomeação ou designação, para os Cargos em Comissão e para as Funções Comissionadas


462<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

atividade (arts. 355, § 7º e 357, parágrafo único, do RI<strong>STF</strong>). Eu acrescento, e com<br />

satisfação, que esse exemplo foi seguido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região,<br />

que tive a honra de integrar, que ao redigir o seu próprio Regimento Interno acrescentoulhe<br />

norma idêntica.<br />

5. São essas, Senhor Presidente, as breves considerações que acrescento aos bem<br />

lançados votos para, na linha do eminente Relator, deferir o pedido de medida cautelar.<br />

VOTO (Aditamento)<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Senhor Presidente, creio que hoje o Tribunal dá mais<br />

uma contribuição importante na direção da construção de um verdadeiro Estado<br />

Democrático de Direito ao afastar, como se encaminha a votação, uma prática de<br />

natureza aristocrática cujas origens podem ser encontradas nas nossas raízes coloniais. O<br />

Tribunal reafirma, portanto, o princípio da igualdade ao rejeitar que seja o berço, não o<br />

mérito pessoal, o fator determinante de acesso aos cargos públicos.<br />

Tomei algumas observações e vou pedir a juntada desse voto — pouco há a<br />

acrescentar aos brilhantes votos do eminente Relator e dos colegas que o acompanharam<br />

—, mas gostaria apenas de mencionar, e com satisfação, que a orientação agora<br />

adotada pelo CNJ e que, antes disso já era norma regimental deste Tribunal, foi o<br />

modelo seguido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que tive a honra de<br />

integrar. Aquela Corte, ao redigir o seu próprio Regimento Interno, reproduziu exatamente<br />

esta mesma norma.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Essa norma, inclusive, é anterior à<br />

Constituição de 88. É a Emenda Regimental n. 2, de 4 de dezembro de 1985, em que o<br />

Supremo Tribunal Federal vedou o nepotismo interno.<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Senhor Presidente, são essas as brevíssimas<br />

considerações que acrescento aos bem-lançados votos para, na linha do eminente<br />

Relator, deferir o pedido de medida cautelar.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, aos apressados, em termos de<br />

conclusão, recomendo a leitura do voto que proferi ao relatar a Ação Direta de<br />

Inconstitucionalidade n. 1.521-4/RS, atentando para o enquadramento que dei ao<br />

famigerado nepotismo ante o texto da Constituição Federal.<br />

Creio que os colegas que me antecederam estão e estiveram, nos votos prolatados,<br />

calcados na classificação do ato do Conselho Nacional de Justiça como normativo<br />

abstrato — pediria a confirmação, já que os colegas o acompanharam, do Ministro<br />

Carlos Ayres Britto.<br />

de que trata o art. 9º, de cônjuge, companheiro ou parente até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos<br />

membros ou juízes vinculados, salvo a de servidor ocupante de cargo de provimento efetivo das<br />

Carreiras Judiciárias, caso em que a vedação é restrita à nomeação ou designação para servir junto ao<br />

Magistrado determinante da incompatibilidade.”


R.T.J. — <strong>199</strong> 463<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Isso. Avancei os atributos da impessoalidade,<br />

da generalidade, da abstratividade e a força de esse ato inovar imediatamente a<br />

ordem jurídica.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Há coerência, Senhor Presidente, nos votos proferidos.<br />

Não me canso de proclamar que processo, quer tenha regência na Constituição<br />

Federal, quer na legislação comum, é, acima de tudo, liberdade a pressupor, para existir<br />

em seu sentido maior, a segurança jurídica antecedida pelo direito posto e, acima de<br />

tudo, pelo respeito ao direito posto, pouco importando o objetivo visado.<br />

Vivemos em um Estado Democrático de Direito, em que se paga um preço, para<br />

mim, módico: a observância irrestrita ao que compõe o ordenamento jurídico e,<br />

especialmente, o ordenamento jurídico retratado em nossa Lei Fundamental.<br />

A ação declaratória de constitucionalidade — tal como a irmã gêmea, a ação direta<br />

de inconstitucionalidade — pressupõe, conforme está na Carta da República, um ato<br />

normativo abstrato. Vale dizer, se o caso concreto não revela um ato normativo abstrato,<br />

não é dado, em se tratando de ação declaratória de constitucionalidade e de ação direta<br />

de inconstitucionalidade, admitir validamente a existência do processo objetivo.<br />

É pleiteada uma liminar, diria, de contornos maiores — e, assim, os que até aqui<br />

votaram a deferem —, em que simplesmente se afasta do cenário nacional a jurisdição.<br />

Mais do que isso: suspendem-se atos jurisdicionais já formalizados que, de início,<br />

considerado o sistema processual, são passíveis de impugnação mediante remédios<br />

próprios. Vai-se além para colocar em segundo plano uma garantia constitucional<br />

básica, a do livre acesso ao Poder Judiciário, a qual decorre do disposto no inciso XXXV<br />

do artigo 5º da Carta de 1988. Sim, equivale a afastar da apreciação do Poder Judiciário<br />

assentar, numa proclamação que já não será mais passível de revisão — porque<br />

formalizada na pirâmide do Poder Judiciário brasileiro e não existe órgão acima desta<br />

Corte —, que os magistrados devem decidir desta ou daquela forma, que os magistrados<br />

estão impossibilitados de, uma vez ajuizada a ação que se entenda cabível, pertinente,<br />

virem a acionar poder ínsito à jurisdição: o poder de cautela.<br />

Senhor Presidente, não vejo base na Lei Fundamental para chegar-se a tanto. Sem<br />

pretender discutir que, ao contrário do que ocorre com a ação direta de inconstitucionalidade,<br />

em que o legislador constituinte de 1988, para proteger a Carta da ofensa pela<br />

norma ordinária, previu a liminar, não há essa mesma disposição — e daí ter-se parâmetros,<br />

para mim, extravagantes quanto às liminares — relativamente à ação declaratória de<br />

constitucionalidade. Mesmo porque, observado o objeto desse processo, restaria concluir<br />

que a liminar seria o meio para lograr-se a concretude, a eficácia da norma no território<br />

nacional. E é evidente que a norma surte efeitos independentemente do pronunciamento<br />

no controle concentrado de constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal via a<br />

declaratória em exame.<br />

Assentado, como a maioria o faz, o caráter normativo abstrato da Resolução do<br />

Conselho Nacional de Justiça, cumpre, para chegar-se a uma liminar de extensão tão<br />

grande como a anunciada pelo Relator, perquirir-se, ante a Emenda Constitucional n.<br />

45/2004, se foi atribuída a esse Órgão — o qual apontei, na apreciação da Ação Direta de<br />

Inconstitucionalidade n. 3.367-1/DF, como um superórgão — a competência legiferante,


464<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

ou seja, se o Conselho Nacional de Justiça possui, ou não, poder normativo. Para mim,<br />

Presidente, em bom vernáculo, está revelado no § 4º do artigo 103-B da Constituição<br />

Federal que o Órgão não tem poder normativo.<br />

Dispõe o referido parágrafo:<br />

Art. 103-B (...)<br />

(...)<br />

“§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira<br />

do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendolhe,<br />

além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da<br />

Magistratura:” — aqui a norma cinge-se ao campo administrativo.<br />

“I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto<br />

da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua<br />

competência, ou recomendar providências;<br />

II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante<br />

provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou<br />

órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para<br />

que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem<br />

prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;” — isso em termos de<br />

controle;<br />

“III - receber e conhecer das reclamações (...)” — julgando-as.<br />

“IV - representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração<br />

pública ou de abuso de autoridade;” — ou do conhecimento de qualquer<br />

outro crime, segundo o Código de Processo Penal.<br />

“V - rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de<br />

juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano;<br />

VI - elaborar semestralmente relatório (...);<br />

VII - elaborar relatório anual, (...)”.<br />

Onde há base constitucional para o Conselho Nacional de Justiça normatizar de<br />

forma abstrata, substituindo-se ao Congresso? Não encontro, Senhor Presidente, por<br />

mais que queira ver a atuação profícua desse mesmo Conselho, base para afirmar que tem<br />

ele o poder, como disse, normativo.<br />

Se se entende o ato como simplesmente decorrente de uma interpretação da<br />

Constituição Federal, como está inclusive nas considerandas, chego à conclusão de que<br />

a situação concreta não desafia o controle concentrado de constitucionalidade. Se,<br />

simplesmente, regulamentou-se, sem inserir no cenário jurídico normatização nova — e<br />

o Supremo assentou que o denominado nepotismo não se coaduna com a Carta de 1988<br />

ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.521-4/RS —, sendo pacífica a<br />

jurisprudência do Tribunal, não cabe o controle concentrado de constitucionalidade.<br />

Como posso, então, no campo da criatividade, talvez ímpar, chegar à concessão,<br />

neste processo, de medida acauteladora para, simplesmente, consignar a harmonia do<br />

ato do Conselho com a Lei Fundamental? Medida acauteladora mais linear, mais


R.T.J. — <strong>199</strong> 465<br />

extensa, alcançando a interferência direta junto ao juiz natural de causas ajuizadas? É<br />

essa a dificuldade que surge; é esse o dilema que devo equacionar para pronunciar-me<br />

sem fechar a própria Constituição Federal e sem abandonar o convencimento que tenho<br />

sobre o alcance desse mesmo Diploma Maior.<br />

Se o Conselho Nacional de Justiça, como proclamado pelos integrantes da Corte<br />

que me antecederam, legislou — e a ação declaratória é uma ação de mão dupla, tanto é<br />

possível chegar-se à declaração de constitucionalidade como também à declaração de<br />

inconstitucionalidade —, ele o fez totalmente à margem das atribuições previstas, de<br />

forma exaustiva, na Constituição Federal. E não posso, estou impossibilitado de —<br />

muito embora o pronunciamento viesse a conferir envergadura maior à Resolução do<br />

Conselho Nacional de Justiça —, ante essa premissa, deferir uma liminar que acabe<br />

potencializando, a mais não poder, a Resolução do Conselho.<br />

Por isso, Presidente, reportando-me mais uma vez, até mesmo para afastar<br />

maledicências, ao voto cáustico, com tintas fortes, que proferi na Ação Direta de<br />

Inconstitucionalidade n. 1.521-4/RS — que, inclusive, rendeu-me inimizades —, peço<br />

vênia para, nesse primeiro passo — poderia até cogitar de uma liminar negativa, já que<br />

a ação é de mão dupla; poderia cogitar, até mesmo, de uma providência precária e<br />

efêmera, visando a suspender o ato do Conselho, mas não vou chegar a tanto —, ater-me<br />

ao pedido formulado e, no cotejo desse pedido, dos parâmetros da ação, com a<br />

Constituição Federal, concluir que o Conselho não tem poder normativo e indeferir a<br />

medida acauteladora.<br />

É como voto.<br />

VOTO (Explicação)<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, apenas para ressaltar mais uma<br />

vez que o meu voto se fez alicerçado na matéria instrumental, no que, de início, afasto a<br />

possibilidade de se cogitar da ação declaratória de constitucionalidade para impugnar<br />

um ato administrativo ou simplesmente regulamentar.<br />

Presente o que os colegas consignaram quanto ao caráter abstrato, normativo e<br />

autônomo do ato, deixei de deferir a liminar, porquanto tenho presente, em que pese à<br />

maioria formada, que a Constituição não deu ao Conselho Nacional de Justiça o poder<br />

normativo. Para evitar qualquer dúvida a respeito, farei transcrever, no voto, a primeira<br />

parte daquele que proferi na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade<br />

n. 1.521-4/RS:<br />

Tênues têm sido as iniciativas objetivando coibir abusos notados no preenchimento<br />

de cargos em comissão: por vezes, são parentes de autoridades do<br />

primeiro escalão que efetuam concurso público para ocupação de cargos de menor<br />

importância, inclusive os situados na base da pirâmide hierárquica, para, a seguir,<br />

à mercê de apadrinhamento revelador de nepotismo, chegarem a cargos de maior<br />

ascendência, quer sob o ângulo da atividade desenvolvida, quer considerada a<br />

remuneração; outras vezes, ocorre a nomeação direta para o cargo em comissão,<br />

surgindo, com isso, em detrimento do quadro funcional que prestou concurso,<br />

aqueles que se diferenciam, em dose elevada, pelo chamado “QI” (sigla irônica que


466<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

resume a expressão “quem indica”). A origem dessa situação é remota, com raízes<br />

fincadas no período da colonização. A par desse aspecto, tem-se ainda o desvirtuamento<br />

das próprias funções, de vez não raro dá-se a investidura para o exercício<br />

de funções que, na realidade, não se fazem compatíveis com a nomeação para<br />

cargos em comissão.<br />

A Carta de 1988 homenageia, com tintas fortes, o princípio isonômico.<br />

Além da regra geral do artigo 5º, tem-se ainda a específica, reveladora de que os<br />

cargos, os empregos e as funções públicas são acessíveis aos brasileiros que<br />

preencham os requisitos estabelecidos em lei, devendo a investidura, excetuada<br />

a hipótese de cargo em comissão assim declarado em lei, ser precedida do concurso<br />

público de provas e de provas e títulos. A cultura brasileira conduziu o Constituinte<br />

de 1988 a inserir, relativamente à administração pública direta, indireta<br />

ou fundacional de qualquer dos Poderes, na abertura do capítulo próprio (da<br />

Administração Pública), a obrigatória observância aos princípios da legalidade,<br />

da impessoalidade, da moralidade e da publicidade. Inegavelmente, o Constituinte<br />

voltou-se para o campo pedagógico, atento à realidade nacional, quantas e<br />

quantas vezes eivada de distorções.<br />

A apreciação da liminar buscada pela Procuradoria-Geral da República, no<br />

que se mostrou sensível ao inconformismo daqueles que representaram objetivando<br />

o ajuizamento desta ação direta de inconstitucionalidade, não pode resultar no<br />

deferimento com a extensão pleiteada, a menos que se olvide o grande sistema em<br />

que se consubstancia a Carta vigente, com o afastamento dos princípios explícitos<br />

e implícitos nela contidos, da extravagância notada no serviço público quando,<br />

até mesmo diante de vencimentos achatados, busca-se compensação via a chamada<br />

“renda familiar”.<br />

Senhor Presidente, embora sem querer enveredar os caminhos do moralismo<br />

barato, pondero ser necessária uma reflexão mais profunda sobre o sentido ético<br />

que lastreia normas deste quilate. As primeiras perguntas a serem feitas dizem com<br />

a razão de ser e o momento em que vêm à balha proposições normativas como a<br />

examinada. Pois bem, não há mesmo como olvidar as radicais transformações por<br />

que passa o Brasil. Colhemos os frutos benfazejos da democracia madura. E<br />

esperamos muito tempo por isso. O povo brasileiro já não tateia, mergulhado nas<br />

trevas da ignorância e conseqüente subserviência, em busca da mão ditadora e<br />

assistencialista. Procura, sim, firmeza na condução da nau, sem despotismo, porém.<br />

O brasileiro de hoje não mais implora pelo seus naturais direitos, exige-os.<br />

É esse o contexto no qual exsurgem as leis que, em última instância, indo ao<br />

encontro do anseio popular pela afirmação definitiva da moralidade como princípio<br />

norteador das instituições públicas, atuam como diques à contenção da ancestral<br />

ambição humana. A um só tempo, mediante normas desse feitio, presta-se<br />

homenagem à Justiça, na mais basilar acepção do termo, permitindo-se a quem de<br />

direito alcançar o patamar pelo qual pagou o preço do esforço, da dedicação e da<br />

competência. Por outro lado, usando da cartilha dos diletantes do Neoliberalismo,<br />

tão em voga nas altas esferas dirigentes do País, cabe lembrar que o mérito é a<br />

fórmula eficiente para chegar-se à qualidade total desejada aos serviços públicos,


R.T.J. — <strong>199</strong> 467<br />

ditos essenciais. Ora, como é possível compatibilizar tais assertivas com a possibilidade<br />

de nomeação de parentes próximos para ocupar importantes — e até estratégicos<br />

— cargos de direção nas repartições públicas comandadas pelo protetor?<br />

Ressalvo que de modo algum estou a menosprezar a capacidade desse ou<br />

daquele indicado. A ênfase é outra: cuida-se aqui de evitar facilidades óbvias, bem<br />

ao gosto das medidas profiláticas. Até porque quem merece não precisa de favores:<br />

quem faz por onde insiste, faz questão de demonstrar a que veio, num ritual típico<br />

da vaidade humana, buscando cargos elevados em entidades públicas onde parente<br />

próximo não possui influência maior.<br />

A partir dessas premissas, analiso as matérias evocadas pela ordem natural que<br />

ocupam no cenário jurídico. Principio, assim, pelo alegado vício de forma, lançando<br />

idéias que nortearão a abordagem relativa às diversas disposições atacadas.<br />

Ao primeiro exame, a norma insculpida no § 1º do artigo 61 da Carta Federal,<br />

mais precisamente na alínea a do inciso II, há que ter alcance perquirido sem apego<br />

exacerbado à literalidade. É certo que são da iniciativa privativa do Presidente da<br />

República as leis que disponham sobre criação de cargos, de funções ou de<br />

empregos públicos na administração direta e autárquica, ou aumento de sua<br />

remuneração, exsurgindo do artigo 96, inciso I, alínea b, regra semelhante abrangendo<br />

o Judiciário e, em relação ao Ministério Público, o disposto no § 2º do artigo<br />

127, também em idêntico sentido, ou seja, versando, de um modo geral, sobre a<br />

iniciativa própria para a criação de cargos e correlatas disciplinas. Evidentemente,<br />

está-se diante de preceitos jungidos à atividade normativa ordinária, não alcançando<br />

o campo constitucional, porquanto envolvidos aqui interesses do Estado de<br />

envergadura maior e, acima de tudo, da necessidade de se ter, no tocante a certas<br />

matérias, trato abrangente a alcançar, indistintamente, os três Poderes da República.<br />

Assim o é quanto ao tema em discussão. Com a Emenda Constitucional n. 12 à<br />

Carta do Rio Grande do Sul, rendeu-se homenagem aos princípios da legalidade,<br />

da impessoalidade, da moralidade, da isonomia e do concurso público obrigatório,<br />

em sua acepção maior. Enfim, atuou-se na preservação da própria res publica. A<br />

vedação de contratação de parentes para cargos comissionados — por sinal a<br />

abranger, na espécie, apenas os cônjuges, companheiros e parentes consangüíneos,<br />

afins ou por adoção até o segundo grau (pais, filhos e irmãos) — a fim de prestarem<br />

serviços justamente onde o integrante familiar despontou e assumiu cargo de<br />

grande prestígio, mostra-se como procedimento inibidor da prática de atos da<br />

maior repercussão. Cuida-se, portanto, de matéria que se revela merecedora de<br />

tratamento jurídico único — artigo 39 da Carta de 1988, a abranger os três Poderes,<br />

o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, deixando-se de ter a admissão de<br />

servidores públicos conforme a maior ou a menor fidelidade do Poder aos princípios<br />

básicos decorrentes da Constituição Federal. Digo mesmo que a iniciativa do<br />

Estado do Rio Grande do Sul salta aos olhos como reflexo, como sinal dos novos<br />

ares do atual momento brasileiro, angariando simpatia suficiente a que seja dada à<br />

questão tratamento linear, a abranger, no campo da proibição, atos que, em última<br />

análise, em visão desassombrada, decorram da atuação apaixonada, direta ou<br />

indireta, do Governador, do Vice-Governador, do Procurador-Geral do Estado, do


468<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Defensor Público Geral do Estado e dos Secretários de Estado, ou titulares de<br />

cargos que lhes sejam equiparados no âmbito da administração direta do Poder<br />

Executivo; dos Desembargadores e dos Juízes de segundo grau, no âmbito do<br />

Poder Judiciário; dos Deputados Estaduais, no âmbito da Assembléia Legislativa;<br />

dos Procuradores de Justiça, no âmbito da Procuradoria-Geral de Justiça; dos<br />

Conselheiros e dos Auditores Substitutos de Conselheiros, no âmbito do Tribunal<br />

de Contas do Estado; dos Presidentes, dos Diretores-Gerais, ou titulares de cargos<br />

equivalentes, e dos Vice-Presidentes ou equivalentes, no âmbito da respectiva<br />

autarquia, fundação instituída ou mantida pelo poder público, empresa pública ou<br />

sociedade de economia mista. Depreende-se do texto do artigo 1º, § 5º, da Emenda<br />

Constitucional n. 12, de 13 de dezembro de <strong>199</strong>5, que, na espécie, dispôs-se de<br />

forma setorizada, afastando-se apenas a nomeação dos citados parentes nas áreas<br />

de influência das autoridades mencionadas. Aliás, cabe aqui o registro de uma<br />

curiosidade. Ao que parece, tudo teve início com sugestão de emenda constitucional<br />

oriunda do próprio Judiciário do Rio Grande do Sul, que tenho como um dos<br />

melhores do País. De acordo com aquela proposta, chegar-se-ia a alcançar a<br />

vedação no tocante “não só o Poder, órgão ou serviço a que pertençam os titulares<br />

referidos, em atividade ou afastados há menos de cinco anos, mas todos os Poderes,<br />

órgãos ou serviços mencionados no artigo anterior”. Em síntese, consoante o<br />

embrião da Emenda, não se teria a possibilidade da chamada troca de nomeações<br />

entre dirigentes de órgãos, mera cortina visando a afastar a evidência da transgressão<br />

aos princípios isonômicos, da moralidade e da impessoalidade. Ademais, a<br />

proibição estendia-se até o terceiro grau. Todavia, cogitava-se somente da impossibilidade<br />

de nomeações, abrindo-se brecha assim à confortável interpretação de<br />

que a eficácia da norma seria para o futuro, não alcançando aqueles que já<br />

estivessem prestando serviços e, portanto, não abrangendo o próprio exercício. Por<br />

hora, no campo próprio reservado ao Supremo Tribunal Federal, ou seja, no<br />

julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade, quando se tem o aspecto<br />

político-constitucional como da maior relevância, é suficiente dizer-se que o tema<br />

tratado é merecedor da inserção na Lei Maior do Estado, porque implícitas as<br />

diretrizes básicas da Carta Federal. Se de um lado não consta desta preceito<br />

semelhante, de outro compõe um grande todo que, interpretado, é conducente a<br />

concluir-se, ao menos neste primeiro exame, pela ausência de incompatibilidade.<br />

Sob o prisma da forma, com algumas pinceladas quanto ao fundo, e ressaltando,<br />

mais uma vez, o passo que foi dado pelo Estado do Rio Grande do Sul a repercutir,<br />

quem sabe, além das respectivas fronteiras geográficas, tenho que não cabe deferir<br />

a liminar.<br />

É como voto na espécie dos autos, pedindo o destaque da votação em face da<br />

prejudicialidade da matéria no tocante ao que mais está articulado na inicial.<br />

Saliento que, sobre o tema, inexiste qualquer precedente específico da Corte. Os<br />

mencionados na inicial, da lavra do Ministro Ilmar Galvão, mostram-se, ao que<br />

tudo indica, ligados a peculiaridades da disciplina do serviço público que, por<br />

merecerem tal nomenclatura, devem ficar a cargo do legislador ordinário, a atuar<br />

em campo de flexibilidade maior, sempre atento aos interesses públicos, sem que<br />

colocada em risco a almejada unidade de tratamento.


R.T.J. — <strong>199</strong> 469<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello: Entendo que o Conselho Nacional de Justiça<br />

dispõe de competência constitucional para formular, de modo inteiramente legítimo,<br />

a resolução cuja constitucionalidade se busca confirmar nesta sede de controle<br />

normativo abstrato.<br />

Na realidade, a Resolução CNJ n. 7/2005 traduz emanação direta do que<br />

prescreve a própria Constituição da República, considerados, notadamente, para esse<br />

efeito, além da regra de competência fundada no artigo 103-B, § 4º, inciso II, do texto<br />

constitucional, os postulados da impessoalidade e da moralidade que representam<br />

valores essenciais na conformação das atividades do poder.<br />

Sabemos todos que a atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional<br />

de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros<br />

ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da<br />

moralidade administrativa, que se qualifica como valor constitucional impregnado de<br />

substrato ético e erigido à condição de vetor fundamental no processo de poder,<br />

condicionando, de modo estrito, o exercício, pelo Estado e por seus agentes, da<br />

autoridade que lhes foi outorgada pelo ordenamento normativo. Esse postulado, que<br />

rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de<br />

valores éticos, nos quais se funda a própria ordem positiva do Estado.<br />

É por essa razão que o princípio constitucional da moralidade administrativa, ao<br />

impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle de todos os atos do<br />

poder público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento<br />

dos órgãos e dos agentes governamentais, não importando em que instância de poder<br />

eles se situem.<br />

Na realidade — e especialmente a partir da Constituição republicana de 1988 —,<br />

a estrita observância do postulado da moralidade administrativa passou a qualificar-se<br />

como pressuposto de validade dos atos que, fundados ou não em competência<br />

discricionária, tenham emanado de autoridade ou órgãos do Poder Público, consoante<br />

proclama autorizado magistério doutrinário (Manoel de Oliveira Franco Sobrinho,<br />

“O Princípio Constitucional da Moralidade Administrativa”, 2ª ed., <strong>199</strong>3, Genesis;<br />

Alexandre de Moraes, “Direito Constitucional”, p. 284, item n. 2.3, 3ª ed., <strong>199</strong>8, Atlas;<br />

Lúcia Valle Figueiredo, “Curso de Direito Administrativo”, pp. 132/134, 2ª ed., <strong>199</strong>5,<br />

Malheiros; Celso Antônio Bandeira de Mello, “Curso de Direito Administrativo”, pp.<br />

412/414, itens n. 14/16, 4ª ed., <strong>199</strong>3, Malheiros; Hely Lopes Meirelles, “Direito<br />

Administrativo Brasileiro”, pp. 83/85, 17ª ed., <strong>199</strong>2, Malheiros; Maria Sylvia<br />

Zanella de Pietro, “Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988”, pp.<br />

116/118, item n. 2.5, <strong>199</strong>1, Atlas, v.g.).<br />

Cabe relembrar, neste ponto, Senhor Presidente, o alto significado que o<br />

princípio da moralidade assume, em nosso sistema constitucional, tal como esta<br />

Suprema Corte já teve o ensejo de enfatizar:<br />

“O princípio da moralidade administrativa — enquanto valor constitucional<br />

revestido de caráter ético-jurídico — Condiciona a legitimidade e a validade<br />

dos atos estatais.


470<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

— A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua<br />

incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos<br />

que se refletem na consagração constitucional do princípio da<br />

moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do<br />

Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos<br />

sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado.<br />

O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações<br />

ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os<br />

atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o<br />

comportamento dos agentes e órgãos governamentais. (...).”<br />

(<strong>RTJ</strong> 182/525-526, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno)<br />

A prática do nepotismo, tal como corretamente repelida pela Resolução CNJ n.<br />

7/2005, traduz a própria antítese da pauta de valores cujo substrato constitucional<br />

repousa no postulado da moralidade administrativa, que não tolera — porque<br />

incompatível com o espírito republicano e com a essência da ordem democrática — o<br />

exercício do poder pro domo sua.<br />

Também não vislumbro, de outro lado, Senhor Presidente, na linha do que<br />

acentuado pelo eminente Relator, a ocorrência de qualquer transgressão ao postulado<br />

da separação de Poderes e ao princípio federativo, tal como esta Corte já acentuara,<br />

quando do julgamento da ADI 3.367/DF, de que foi Relator o Ministro Cezar Peluso,<br />

em decisão que reconheceu — considerados os lineamentos constitucionais que definem<br />

a organização do Conselho Nacional de Justiça — tratar-se de órgão posicionado na<br />

própria estrutura institucional do Poder Judiciário, projetando-se, em conseqüência,<br />

como este, em uma dimensão de caráter nacional, achando-se investido, constitucionalmente,<br />

de atribuições que lhe conferem a prerrogativa de exercer, mediante deliberações<br />

tópicas, poderes normativos cuja gênese emana, diretamente, do próprio texto da<br />

Constituição, permitindo-lhe, desse modo, o controle legítimo da atividade administrativa<br />

e financeira do Poder Judiciário.<br />

Trata-se, pois, de atribuição cuja legitimidade jurídica traduz expressão que<br />

deriva, de modo direto, do próprio texto da Lei Fundamental e que encontra, na<br />

Constituição, o seu fundamento de validade e de eficácia.<br />

Esta Suprema Corte, Senhor Presidente, ao manter a Resolução CNJ n. 7/2005,<br />

confirmando-lhe a plena legitimidade e integral eficácia, nada mais estará fazendo<br />

senão preservar a força normativa da Constituição da República resultante da<br />

indiscutível supremacia, formal e material, de que se revestem as normas constitucionais,<br />

cuja integridade, eficácia e aplicabilidade, por isso mesmo, hão de ser valorizadas<br />

em face de sua precedência, de sua autoridade e de seu grau hierárquico.<br />

Vale referir, neste ponto, que a discussão das questões suscitadas nesta sede de<br />

fiscalização normativa abstrata permite, a esta Suprema Corte, elaborar — como é<br />

típico dos Tribunais Constitucionais — a construção de um significado mais amplo em<br />

torno do conceito de Constituição, considerando, para esse efeito, não apenas os<br />

preceitos de índole positiva, expressamente proclamados no documento formal que<br />

consubstancia o texto escrito da Carta Política, mas reconhecendo, por igualmente


R.T.J. — <strong>199</strong> 471<br />

relevantes, em face de sua transcendência mesma, os valores de caráter suprapositivo,<br />

os princípios éticos e o próprio espírito que informam e dão sentido e razão à Lei<br />

Fundamental do Estado.<br />

Não foi por outra razão que o Supremo Tribunal Federal, certa vez, e para além de<br />

uma perspectiva meramente reducionista, veio a proclamar, distanciando-se, então, das<br />

exigências inerentes ao positivismo jurídico, que a Constituição da República, muito<br />

mais do que o conjunto de normas e princípios nela formalmente positivados, há de ser<br />

também entendida em função do próprio espírito que a anima, afastando-se, desse modo,<br />

de uma concepção impregnada de evidente minimalismo conceitual (<strong>RTJ</strong> 71/289,<br />

292 — <strong>RTJ</strong> 77/657).<br />

Tratando-se de fiscalização normativa abstrata, a questão pertinente à noção<br />

conceitual de parametricidade — vale dizer, do atributo que permite outorgar, à<br />

cláusula constitucional, a qualidade de paradigma de controle — desempenha papel de<br />

fundamental importância na admissibilidade, ou não, da própria ação direta (ou da ação<br />

declaratória de constitucionalidade, como na espécie), consoante já enfatizado pelo<br />

Plenário do Supremo Tribunal Federal (<strong>RTJ</strong> 176/1019-1020, Rel. Min. Celso de Mello).<br />

Isso significa, portanto, que a idéia de inconstitucionalidade (ou de constitucionalidade),<br />

por encerrar um conceito de relação (Jorge Miranda, “Manual de Direito<br />

Constitucional”, tomo II, pp. 273/274, item n. 69, 2ª ed., Coimbra Editora Limitada) —<br />

que supõe, por isso mesmo, o exame da compatibilidade vertical de um ato, dotado de<br />

menor hierarquia, com aquele que se qualifica como fundamento de sua existência,<br />

validade e eficácia — torna essencial, para esse específico efeito, a identificação do<br />

parâmetro de confronto, que se destina a possibilitar a verificação, in abstracto, da<br />

legitimidade constitucional de certa regra de direito positivo, a ser necessariamente<br />

cotejada em face da cláusula invocada como referência paradigmática.<br />

A busca do paradigma de confronto, portanto, significa, em última análise, a<br />

procura de um padrão de cotejo, que, ainda em regime de vigência temporal, permita,<br />

ao intérprete, o exame da fidelidade hierárquico-normativa de determinado ato<br />

estatal contestado em face da Constituição.<br />

Põe-se em evidência, desse modo, o elemento conceitual, que consiste na<br />

determinação da própria idéia de Constituição e na definição das premissas jurídicas,<br />

políticas e ideológicas que lhe dão consistência.<br />

É por tal motivo que os tratadistas — consoante observa Jorge Xifra Heras<br />

(“Curso de Derecho Constitucional”, p. 43) —, em vez de formularem um conceito<br />

único de Constituição, costumam referir-se a uma pluralidade de acepções, dando<br />

ensejo à elaboração teórica do conceito de bloco de constitucionalidade (ou de parâmetro<br />

constitucional), cujo significado — revestido de maior ou de menor abrangência<br />

material — projeta-se, tal seja o sentido que se lhe dê, para além da totalidade das<br />

regras constitucionais meramente escritas e dos princípios contemplados, explicita ou<br />

implicitamente, no corpo normativo da própria Constituição formal, chegando, até<br />

mesmo, a compreender normas de caráter infraconstitucional, desde que vocacionadas<br />

a desenvolver, em toda a sua plenitude, a eficácia dos postulados e dos preceitos<br />

inscritos na Lei Fundamental, viabilizando, desse modo, e em função de perspectivas<br />

conceituais mais amplas, a concretização da idéia de ordem constitucional global.


472<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Sob tal perspectiva, que acolhe conceitos múltiplos de Constituição, pluralizase<br />

a noção mesma de constitucionalidade/inconstitucionalidade, em decorrência de<br />

formulações teóricas, matizadas por visões jurídicas e ideológicas distintas, que<br />

culminam por determinar — quer elastecendo-as, quer restringindo-as — as próprias<br />

referências paradigmáticas conformadoras do significado e do conteúdo material<br />

inerentes à Carta Política.<br />

Torna-se relevante destacar, neste ponto, por tal razão, o magistério de J. J. Gomes<br />

Canotilho (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, pp. 811/812, item n. 1,<br />

<strong>199</strong>8, Almedina), que bem expôs a necessidade de proceder-se à determinação do<br />

parâmetro de controle da constitucionalidade, consideradas as posições doutrinárias<br />

que se digladiam em torno do tema:<br />

“Todos os actos normativos devem estar em conformidade com a Constituição<br />

(art. 3º/3). Significa isto que os actos legislativos e restantes actos<br />

normativos devem estar subordinados, formal, procedimental e substancialmente,<br />

ao parâmetro constitucional. Mas qual é o estalão normativo de acordo com o<br />

qual se deve controlar a conformidade dos actos normativos? As respostas a este<br />

problema oscilam fundamentalmente entre duas posições: (1) o parâmetro<br />

constitucional equivale à constituição escrita ou leis com valor constitucional<br />

formal, e daí que a conformidade dos actos normativos só possa ser aferida, sob o<br />

ponto de vista da sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade, segundo as<br />

normas e princípios escritos da constituição (ou de outras leis formalmente<br />

constitucionais); (2) o parâmetro constitucional é a ordem constitucional<br />

global, e, por isso, o juízo de legitimidade constitucional dos actos normativos<br />

deve fazer-se não apenas segundo as normas e princípios escritos das leis<br />

constitucionais, mas também tendo em conta princípios não escritos integrantes<br />

da ordem constitucional global.<br />

Na perspectiva (1), o parâmetro da constitucionalidade (=normas de<br />

referência, bloco de constitucionalidade) reduz-se às normas e princípios da<br />

constituição e das leis com valor constitucional; para a posição (2), o parâmetro<br />

constitucional é mais vasto do que as normas e princípios constantes das leis<br />

constitucionais escritas, devendo alargar-se, pelo menos, aos princípios reclamados<br />

pelo ‘espírito’ ou pelos ‘valores’ que informam a ordem constitucional<br />

global.” (Grifei)<br />

Veja-se, pois, a importância de compreender-se, com exatidão, o significado que<br />

emerge da noção de bloco de constitucionalidade — tal como este é concebido pela<br />

teoria constitucional (Bernardo Leôncio Moura Coelho, “O Bloco de Constitucionalidade<br />

e a Proteção à Criança”, in Revista de Informação Legislativa n. 123/259-<br />

266, 263/264, <strong>199</strong>4, Senado Federal; Miguel Montoro Puerto, “Jurisdicción Constitucional<br />

y Procesos Constitucionales”, tomo I, pp. 193/195, <strong>199</strong>1, Colex; Francisco<br />

Caamaño Domínguez/Angel J. Gómez Montoro/Manuel Medina Guerrero/Juan<br />

Luis Requejo Pagés, “Jurisdicción y Procesos Constitucionales”, pp. 33/35, item C,<br />

<strong>199</strong>7, Berdejo; Ignacio de Otto, “Derecho Constitucional, Sistema de Fuentes”, pp.<br />

94/95, § 25, 2ª ed./2ª reimpressão, <strong>199</strong>1, Ariel; Louis Favoreu/Francisco Rubio Llorente,<br />

“El bloque de la constitucionalidad”, pp. 95/109, itens n. I e II, <strong>199</strong>1, Civitas;


R.T.J. — <strong>199</strong> 473<br />

José Alfredo de Oliveira Baracho, “O Princípio da Subsidiariedade: Conceito e<br />

Evolução”, pp. 77/81, 2000, Forense; Dominique Turpin, “Contentieux Constitutionnel”,<br />

pp. 55/56, item n. 43, 1986, Presses Universitaires de France, v.g.) —, pois,<br />

dessa percepção, resultará, em última análise, a determinação do que venha a ser o<br />

paradigma de confronto, cuja definição mostra-se essencial, em sede de controle de<br />

constitucionalidade, à própria tutela da ordem constitucional.<br />

E a razão de tal afirmação justifica-se por si mesma, eis que a delimitação<br />

conceitual do que representa o parâmetro de confronto é que determinará, em última<br />

análise, a própria noção do que é constitucional ou do que é inconstitucional,<br />

considerada a eficácia subordinante dos elementos referenciais que compõem o bloco<br />

de constitucionalidade, conforme tive o ensejo de assinalar em decisão proferida nesta<br />

Suprema Corte:<br />

“Ação direta de inconstitucionalidade. Instrumento de afirmação da supremacia<br />

da ordem constitucional. O papel do Supremo Tribunal Federal como<br />

legislador negativo. A noção de constitucionalidade/inconstitucionalidade<br />

como conceito de relação. A questão pertinente ao bloco de constitucionalidade.<br />

posições doutrinárias divergentes em torno do seu conteúdo. O significado do<br />

bloco de constitucionalidade como fator determinante do caráter constitucional,<br />

ou não, dos atos estatais. (...).<br />

- A definição do significado de bloco de constitucionalidade — independentemente<br />

da abrangência material que se lhe reconheça — reveste-se de fundamental<br />

importância no processo de fiscalização normativa abstrata, pois a exata<br />

qualificação conceitual dessa categoria jurídica projeta-se como fator determinante<br />

do caráter constitucional, ou não, dos atos estatais contestados em face da<br />

Carta Política. (...).”<br />

(ADI 595/ES, Rel. Min. Celso de Mello, in Informativo/<strong>STF</strong> n. 258, de<br />

2002)<br />

Tenho para mim, Senhor Presidente, consideradas as razões que venho de expor,<br />

que a Resolução CNJ n. 7, de 2005, prestou efetiva reverência ao texto da Constituição<br />

Federal, revelando-se fiel aos grandes princípios fundados na ética republicana e<br />

consagrados na Carta Política do Brasil.<br />

Não custa rememorar, neste ponto, tal como pude acentuar, em voto que<br />

proferi no julgamento da ADI 1.521/RS, Rel. Min. Marco Aurélio (<strong>RTJ</strong> 173/424,<br />

439), que a concepção republicana de poder mostra-se absolutamente incompatível<br />

com qualquer prática governamental tendente a restaurar a inaceitável teoria do<br />

Estado patrimonial.<br />

Sabemos que o Estado, no exercício das atividades que lhe são inerentes,<br />

inclusive na esfera institucional do Poder Judiciário, não pode ignorar os princípios<br />

essenciais, que, derivando da constelação axiológica que confere substrato ético às<br />

ações do Poder Público, proclamam que as funções governamentais, não importa se no<br />

âmbito do Poder Executivo, no âmbito do Poder Legislativo ou no domínio do Poder<br />

Judiciário, hão de ser exercidas com estrita observância dos postulados da igualdade,<br />

da impessoalidade e da moralidade administrativa.


474<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Esses princípios, erigidos à condição de valores fundamentais pela Carta Política —<br />

e aos quais o Conselho Nacional de Justiça se mostrou extremamente fiel na Resolução<br />

ora em exame —, representam pauta de observância necessária por parte dos órgãos<br />

estatais, especialmente por parte dos órgãos do Poder Judiciário. Mais do que isso,<br />

Senhor Presidente, tais postulados qualificam-se como diretrizes essenciais que dão<br />

substância e significado à repulsa que busca fazer prevalecer, no âmbito do aparelho<br />

de Estado, o sentido real da idéia republicana, que não tolera práticas e costumes<br />

administrativos tendentes a confundir o espaço público com a dimensão pessoal do<br />

governante, em claro desvio de caráter ético-jurídico.<br />

Com o objetivo de proteger valores fundamentais, Senhor Presidente, como se<br />

qualificam os postulados da transparência, da igualdade, da moralidade e da impessoalidade,<br />

o Conselho Nacional de Justiça, na Resolução n. 7/2005, definiu, a meu<br />

juízo, de modo compatível com o sistema constitucional, normas destinadas a obstar<br />

a formação de grupos familiares cuja atuação, facilitada pelas nomeações em comissão<br />

ou designações para funções de confiança, acaba, virtualmente, por patrimonializar<br />

o poder governamental, convertendo-o, em razão de uma inadmissível inversão dos<br />

postulados republicanos, em verdadeira res domestica, degradando-o, assim, à<br />

condição subalterna de instrumento de mera dominação do Estado, vocacionado,<br />

não a servir ao interesse público e ao bem comum, mas, antes, a atuar como incompreensível<br />

e inaceitável meio de satisfazer conveniências pessoais e de realizar aspirações<br />

particulares.<br />

A teleologia da Resolução CNJ n. 7/2005 deriva da necessidade mesma de<br />

construir-se a ordem democrática, justificando-se, por isso mesmo, em função de seus<br />

altos propósitos, cuja realização impõe que se faça essencial distinção entre o espaço<br />

público, de um lado, e o espaço privado, de outro, em ordem a obstar que os indivíduos,<br />

mediante ilegítima apropriação, culminem por incorporar, ao âmbito de seus interesses<br />

particulares, a esfera de domínio institucional do Estado, marginalizando, como<br />

conseqüência desse gesto de indevida patrimonialização, o concurso dos demais<br />

cidadãos na edificação da res publica.<br />

Daí a reflexão doutrinária, impregnada de acentuado componente filosófico,<br />

que examina o pensamento democrático à luz das grandes dicotomias, como, por<br />

exemplo, aquela pertinente à dualidade público/privado, subjacente à idéia mesma de<br />

que o respeito, pelos indivíduos, aos limites que definem o domínio público de atuação<br />

do Estado, separando-o, de modo nítido, do espaço meramente privado, qualifica-se<br />

como pressuposto necessário ao exercício da cidadania e do pluralismo político, que<br />

representam, enquanto categorias essenciais que são (pois dão ênfase à prática da<br />

igualdade, do diálogo, da tolerância e da liberdade), alguns dos fundamentos em que se<br />

estrutura, em nosso sistema institucional, o Estado republicano e democrático (CF, art.<br />

1º, incisos II e V).<br />

Cabe preservar, desse modo, as relações que os conceitos de espaço público e de<br />

espaço privado guardam entre si, para que tais noções não se deformem nem<br />

provoquem a subversão dos fins ético-jurídicos visados pelo legislador constituinte.<br />

A consagração do nepotismo na esfera institucional do poder político não pode<br />

ser tolerada, sob pena de o processo de governo — que há de ser impessoal, transparente


R.T.J. — <strong>199</strong> 475<br />

e fundado em bases éticas — ser conduzido a verdadeiro retrocesso histórico, o que<br />

constituirá, na perspectiva da atualização e modernização do aparelho de Estado,<br />

situação de todo inaceitável.<br />

O fato é um só, Senhor Presidente: quem tem o poder e a força do Estado, em suas<br />

mãos, não tem o direito de exercer, em seu próprio benefício, a autoridade que lhe é<br />

conferida pelas leis da República. O nepotismo, além de refletir um gesto ilegítimo de<br />

dominação patrimonial do Estado, desrespeita os postulados republicanos da<br />

igualdade, da impessoalidade e da moralidade administrativa. E esta Suprema Corte,<br />

Senhor Presidente, não pode permanecer indiferente a tão graves transgressões da<br />

ordem constitucional.<br />

Por isso mesmo, Senhor Presidente, e com estas considerações, peço vênia para<br />

acompanhar o doutíssimo voto proferido pelo eminente Ministro Carlos Britto, eis<br />

que considero plenamente legítima, sob uma perspectiva de índole estritamente<br />

constitucional, a Resolução n. 7/2005, que o Conselho Nacional de Justiça editou com<br />

o objetivo de banir, de nossos costumes administrativos, no âmbito do Poder<br />

Judiciário, a prática inaceitável do nepotismo.<br />

É o meu voto.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Senhor Presidente, a ordem da votação nesta<br />

Casa, inversa à da ordem de antigüidade, é claro, despe o decano, em causa tão<br />

exaustivamente discutida e instaurada mediante uma petição inicial, sem favor modelar,<br />

de qualquer pretensão de, a esta altura, trazer coisa nova à discussão.<br />

E impõe-lhe, quanto possível, por isso mesmo, tentar ser breve. Apenas respondo<br />

às questões postas, expondo brevemente os fundamentos da minha convicção. Digo<br />

logo que acompanho integralmente o voto magnífico do eminente Ministro Relator.<br />

Não tenho dúvidas quanto ao cabimento da ação declaratória de constitucionalidade.<br />

No caso, o caráter normativo do ato para o fim de submeter-se ao controle<br />

concentrado não depende da determinação ou determinabilidade do número dos seus<br />

destinatários — isso já tem sido longamente demonstrado neste Plenário.<br />

A existência da controvérsia, pressuposto do cabimento da ADC, é patente, pelo<br />

número de ações judiciais postas nos diversos Estados da Federação, muitas delas com<br />

provimento liminar impeditivo da eficácia da Resolução n. 7 do Conselho Nacional de<br />

Justiça, cuja validez se pretende ver declarada. Aliás, se houvesse dúvida a respeito,<br />

bastaria a circunstância significativa de se ter habilitado como amicus curiae para<br />

defender a inconstitucionalidade do ato, um dos mais egrégios Tribunais de Justiça do<br />

País, o do Estado do Rio de Janeiro.<br />

O cabimento da liminar é contestado pelo eminente Ministro Marco Aurélio, que<br />

persiste na linha da sua respeitável divergência, manifestada, inicialmente, na discussão<br />

da Medida Cautelar na ADC 4. Nela, fui o autor da proposição, afinal acolhida pela<br />

maioria, de suspensão dos processos em que estivesse em causa a constitucionalidade da<br />

lei, objeto daquela declaratória. E disso continuo convencido. Seria paradoxal que,


476<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

tendo como pressuposto a existência de controvérsia judicial, nas várias instâncias do<br />

país, a medida cautelar, na ADC, não pudesse obviar a continuidade e a multiplicação<br />

dessa mesma controvérsia.<br />

No mérito, Senhor Presidente, a questão mais grave, evidentemente, é a da<br />

existência ou não da competência normativa do Conselho Nacional de Justiça, a cuja<br />

negação acaba de emprestar a sua autoridade o eminente Ministro Marco Aurélio.<br />

Estou, no entanto, em que, da competência para rever a ação administrativa dos<br />

órgãos judiciários, a ele submetidos, decorre o poder de o Conselho regulamentar as<br />

soluções que dê às questões de legalidade que lhe sejam submetidas. É expressivo, aliás,<br />

que, no caso concreto, como se assinalado da tribuna pelo ilustre patrono da OAB e da<br />

Anamatra, a questão tenha surgido mediante uma representação da Anamatra contra<br />

determinada resolução do Tribunal Superior do Trabalho.<br />

Na discussão sobre a criação desse órgão central — que sempre preferi chamar de<br />

administração superior do Poder Judiciário —, um dos vetores foi sempre a afirmação da<br />

necessidade de uniformidade do Poder Judiciário — tão desconcentrado, tão descentralizado<br />

quanto a sua função precípua de prestar jurisdição — que não se poderia<br />

transformar num arquipélago de ilhas administrativas incomunicáveis, cada uma delas a<br />

interpretar a Constituição e as leis como melhor lhe parecesse.<br />

Ora, se é desse modo, assim como ocorre com a chefia centralizada do Poder<br />

Executivo, sempre entendi que pode, por exemplo, o Presidente da República valer-se<br />

da regulamentação para impor uniformidade na interpretação do ordenamento jurídico<br />

aos que estejam submetidos à sua autoridade administrativa.<br />

Por isso, não tenho dúvida em subscrever, no ponto, a demonstração feita na petição<br />

inicial — e hoje enriquecida a partir do voto do eminente Relator e dos que o seguiram —<br />

de que, cabendo-lhe zelar pela observância do art. 37 da Constituição, cabe ao CNJ<br />

concretizar os princípios fundamentais da Administração Pública ali enumerados, entre<br />

eles — fico neste —, o da impessoalidade.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Vossa Excelência me permite? Não é meu hábito<br />

apartear os seus votos, muito menos para apoiar — os fundamentos de Vossa Excelência<br />

não necessitam de achegas. Mas, como se trata de tema importantíssimo, que está sendo<br />

agitado pela primeira vez, não posso deixar de corroborar o ponto de vista de Vossa<br />

Excelência com argumento que me ocorreu: se, pelo § 4º, I, o Conselho tem poder<br />

regulamentar, quando se tratar de zelar pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura,<br />

a fortiori há de tê-lo, quando se cuide do cumprimento da Constituição. Não vejo, pois,<br />

como negar ao Conselho esse mesmo poder regulamentar, no caso.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Agradeço-lhe realmente. A achega é rica.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Na linha do voto da intervenção agora<br />

feita pelo Ministro Peluso, principalmente, disse ele, quando se trata de dar aplicabilidade<br />

à própria Constituição, não só à Lei Orgânica da Magistratura. Eu acrescentaria:<br />

dar concreção, dar densificação a princípios constitucionais que são onivalentes<br />

e auto-aplicáveis na lógica, a meu sentir, da Constituição, magnificamente axiológica,<br />

de 1988, bastando lembrar que só na cabeça do art. 37 há enumeração de cinco<br />

princípios.


R.T.J. — <strong>199</strong> 477<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: De resto, as objeções que ora se põem à<br />

Resolução do Conselho Nacional de Justiça poderiam aplicar-se, mutatis mutandis,<br />

quanto aos aspectos substanciais, quer a emenda regimental de 1985, do Regimento<br />

Interno deste Tribunal, quer a própria Lei 9.421, no que diz, com os aspectos<br />

substanciais da questão.<br />

Não tenho dúvida também em subscrever o que se disse, que não há direito<br />

fundamental em causa.<br />

A questão mais delicada é a dos provimentos anteriores à proibição. Nem aí há a<br />

admitir-se, sobretudo cuidando-se de cargos de investidura precária, a existência de<br />

direito adquirido à sua permanência. Ao contrário, em princípio, a vedação de nomeação<br />

de determinadas pessoas implica — em princípio, repito — a vedação de continuidade<br />

de ocupar o cargo respectivo.<br />

Por isso, sempre divergi, mas não se tinha na época o órgão de unidade central de<br />

administração do Judiciário para fazê-lo valer, de muitas orientações tomadas a<br />

propósito do cumprimento do art. 10 da Lei 9.241, que propus ao Congresso Nacional e<br />

que se entendeu, em diversos tribunais, que não atingiriam os provimentos já efetivados.<br />

Quanto às alegações de violência aos dogmas da separação dos Poderes e da<br />

Federação, creio desnecessário dizer mais do que aqui se disse quando na ADI 3.367,<br />

Relator o eminente Ministro Peluso.<br />

Quanto à separação dos Poderes, fui parcialmente vencido apenas no que toca à<br />

intromissão do Congresso Nacional na composição desse órgão do Poder Judiciário.<br />

No mais, é um órgão administrativo, embora do Poder Judiciário, e a Constituição<br />

o explicitou.<br />

Também não vejo ofensa alguma à isonomia, que sempre surge a propósito das<br />

normas antinepotismo, anteriormente promulgadas. Ao contrário, a impessoalidade em<br />

que entendo alicerçar-se, com solidez, a resolução questionada é, a meu ver, derivação<br />

não só da idéia de República como da idéia de igualdade, que é um dos valores<br />

fundamentais da própria República.<br />

Saúdo e alinho-me à evolução do eminente Relator no que toca à extensão ao<br />

terceiro grau de afinidade das proibições veiculadas na resolução.<br />

Não há conceito constitucional de parentesco ou da extensão do parentesco. Por<br />

isso, a uma norma infraconstitucional válida é dado atribuir, para determinados efeitos,<br />

conceitos diversos daquele insculpido no Código Civil (com as vênias do Ministro<br />

Moreira Alves).<br />

Acompanho o eminente Relator.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Cabe-me encerrar a votação e não há<br />

nada a acrescentar ao que foi referido pelos colegas, mas gostaria de fazer um registro<br />

curioso e sem nenhuma emoção, porque entendo que em questões públicas não há que se<br />

perquirir emoção. Daí por que explica o Ministro Sepúlveda Pertence o fato de eu não ter


478<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

abalos em relação a determinados tipos de achegas, que Vossa Excelência conhece, uma<br />

vez que em termos de ações públicas a emoção é vedada, como conduta e regra. Quando<br />

a emoção parece transparecer, fica inserta que ela ou é falsa ou é combinada.<br />

Em 1989, logo após a vigência da Constituição, o Tribunal Superior do Trabalho<br />

iniciou a remessa dos projetos de lei, para a criação dos Tribunais Regionais do Trabalho<br />

decorrentes da universalização que determinou a Constituição de 1988. Eu integrava a<br />

Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados e, em todos os projetos de criação dos<br />

tribunais, por obra nossa junto com o Deputado Miro Teixeira, fizemos incluir regras<br />

proibindo o nepotismo. Em todas as criações há regra especial, exatamente na linha que,<br />

depois, surgiu na Lei Pertence. E, depois, tentou-se fazer isso na Câmara dos Deputados<br />

e foi inviabilizado. Por curiosidade, também, a competência definida no § 4º da<br />

Constituição nada mais é da redação que demos à época no Parecer n. 28, a chamada<br />

“revisão constitucional de <strong>199</strong>3” e que publicamos em 16 de março de <strong>199</strong>4 exatamente<br />

com a redação ora constante da Constituição. Era uma anuência, à época, e o<br />

Subprocurador ou o Ministério Público Federal, o Doutor Gilmar Mendes, que auxiliava<br />

a Relatoria da revisão constitucional, na qual desenhamos a criação do Conselho<br />

Nacional de Justiça.<br />

Como os colegas perceberam em relação ao Ministro Gilmar Mendes, vejo com<br />

absoluta tranqüilidade e alegria a participação da Associação dos Magistrados Brasileiro<br />

(AMB) e trato, não com ironia, por ele referida, mas o saúdo exatamente por ter a grande<br />

colaboração que essa entidade está a prestar na implantação e vigência do Conselho. Mas<br />

o curioso de tudo isso é que trabalhamos na vedação do nepotismo nas décadas de 80 e 90,<br />

trabalhamos na criação do Conselho Nacional de Justiça, que havia sido derrotado na<br />

Assembléia Constituinte, e acabei sendo o primeiro Presidente do Conselho Nacional de<br />

Justiça, e retomamos a questão do nepotismo. Registro isso meramente como um fato<br />

histórico e, repito, sem nenhuma emoção — não se permite em ações públicas ter emoção.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Vossa Excelência não confunde emoção<br />

com sentimento; são coisas diferentes.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Também, sentimento não.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Interpretar é um sentir-pensar.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Ministro, só um parêntese, lembrando o<br />

Doutor Ulisses Guimarães: “Em política até a raiva é combinada”, e quem não tem isso<br />

não sabe fazê-la.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Pode ser em política.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Quero fazer um registro da conduta em<br />

relação a essa questão do nepotismo de alguns tribunais. Observem que coisa curiosa: o<br />

tribunal do Estado de Goiás obteve aprovação da Lei n. 13.145, que veda o nepotismo.<br />

No entanto, há um curioso parágrafo único no art. 1º desta Lei:<br />

“Art. 1º (...)<br />

Parágrafo único. Excluem-se da proibição a nomeação, admissão e/ou a<br />

permanência de até dois parentes das autoridades referidas no caput deste artigo,<br />

além do cônjuge do Chefe do Poder Executivo”.


R.T.J. — <strong>199</strong> 479<br />

Aqui, temos um exemplo de nepotismo autorizado por quotas. Percebeu,<br />

nitidamente, o Ministro Sepúlveda Pertence o acordo político que, aqui, decorre.<br />

Veja, Ministro Celso de Mello, quando o Conselho Nacional de Justiça discutia a<br />

votação dessa Resolução n. 7, datada de 18 de outubro de 2005, o Tribunal de Justiça do<br />

Rio Grande do Norte, numa pressa incrível, com a colaboração do Executivo e do<br />

Legislativo, obteve aprovação da Lei Complementar n. 305, de 11 de outubro de 2005,<br />

a qual dispõe:<br />

“Art. 2º (...)<br />

Art. 10-A. Fica estendida no âmbito da jurisdição do Tribunal ou Juízo a<br />

vedação prevista no art. 10 da Lei n. 9.421, de 24 de dezembro de <strong>199</strong>6, ressalvados<br />

os atuais ocupantes dos cargos constantes do art. 8º da lei complementar n. 242 (...)”.<br />

Então, eles internalizaram a Lei Pertence, tendo em vista esse artigo. Por lei que se<br />

aprovou dias antes da promulgação e publicação da resolução, providenciou, com<br />

rapidez incrível — isso foi uma semana —, o projeto e aprovação da lei e sua sanção;<br />

internalizaram, no território do Rio Grande do Norte, a Lei Pertence, mas dizia o<br />

seguinte: salvo os que já estão, e não saem. Estabeleceram, nitidamente, a vedação só a<br />

posteriori da Lei Pertence, ou seja, levou-se para o Rio Grande do Norte a Lei Pertence<br />

com a resolução que havia sido tomada pelo Tribunal Superior do Trabalho, dizendo<br />

que os antigos continuavam.<br />

O curioso de tudo é que se fala na reserva legal. O discurso que se fez e, que se faz,<br />

em relação ao problema do nepotismo, menciona-se a reserva legal, ouvi isso “n” vezes.<br />

Mas isso é um problema, Ministro Sepúlveda Pertence. A iniciativa das leis dessa<br />

natureza é do Tribunal de Justiça, e nenhum Tribunal de Justiça, salvo o do Rio Grande<br />

do Norte, providenciou a emissão da sua iniciativa.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não, Senhor Presidente, faço um registro histórico: no<br />

Estado de São Paulo, a lei existe há mais de quinze anos!<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): É verdade. Mas, nesse caso, estou me<br />

referindo aos que não têm a lei e são raríssimos, com exceção de São Paulo.<br />

Observem que esses reclamavam a necessidade de uma lei que era da sua iniciativa<br />

privativa e esta iniciativa nunca tomaram. Isso mostra as regras do jogo, aquilo que,<br />

enfaticamente, pôs o nosso Ministro Celso de Mello, quando se referiu ao patrimonialismo.<br />

Ministro Carlos Britto, a expressão que Vossa Excelência utilizou no voto, para<br />

não dizer a confusão mesma entre “tomar posse nos cargos e tomar posse dos cargos”, na<br />

contramão do inseparável conceito de que administrar não é atividade de quem é senhor<br />

de coisa própria, mas gestor de coisa alheia.<br />

Na verdade, o texto da Resolução n. 7/05 importou, pura e simplesmente, na<br />

declaração normativa do que está vedado na Constituição, daí por que aquilo que não se<br />

compatibilizar com a Resolução n. 7 está exatamente na contramão da Constituição,<br />

portanto, afastada a sua proteção e incidência — refiro-me, explicitamente, inclusive, a<br />

essa legislação estadual aí existente. O que mostra, nitidamente, que a criação do<br />

Conselho Nacional de Justiça importou aquilo que Pertence se referia há muito tempo, e


480<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

a linguagem é dele, dizendo que tínhamos um arquipélago de ilhas incomunicáveis ou<br />

sem intercomunicação, com grandes mares que impediam a circulação, todas elas<br />

repletas de piranhas de toda natureza.<br />

Sabemos perfeitamente que, na tradição do Tribunal, as concessões da liminar<br />

praticamente são as decisões finais, salvo alguns casos. Portanto, Senhores Ministros,<br />

acompanho o Senhor Relator na sua integridade.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

ADC 12-MC/DF — Relator: Ministro Carlos Britto. Requerentes: Associação dos<br />

Magistrados Brasileiros – AMB (Advogados: Luís Roberto Barroso e outro). Requerido:<br />

Conselho Nacional de Justiça. Interessados: Sindicato dos Trabalhadores do Poder<br />

Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal – SINDJUS/DF<br />

(Advogados: Rudi Meira Cassel e outro), Tribunal de Justiça do Estado do Rio de<br />

Janeiro (Advogados: Felippe Zeraik e outros), Conselho Federal da Ordem dos<br />

Advogados do Brasil (Advogado: Roberto Antonio Busato), Associação Nacional dos<br />

Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA (Advogados: Alberto Pavie Ribeiro<br />

e outros), Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário Federal e Ministério<br />

Público da União – FENAJUFE (Advogados: José Luis Wagner e outros) e Associação<br />

Nacional dos Magistrados Estaduais – ANAMAGES (Advogados: Gustavo Alexandre<br />

Magalhães e outro).<br />

Decisão: O Tribunal, por maioria, concedeu a liminar, nos termos do voto do<br />

Relator, para, com efeito vinculante e erga omnes, suspender, até exame de mérito desta<br />

ação, o julgamento dos processos que têm por objeto questionar a constitucionalidade<br />

da Resolução n. 7, de 18 de outubro de 2005, do Conselho Nacional de Justiça; impedir<br />

que juízes e tribunais venham a proferir decisões que impeçam ou afastem a<br />

aplicabilidade da mesma resolução e suspender, com eficácia ex tunc, ou seja, desde a<br />

sua prolação, os efeitos das decisões já proferidas, no sentido de afastar ou impedir a<br />

sobredita aplicação. Esta decisão não se estende ao artigo 3º da Resolução n. 7/2005,<br />

tendo em vista a alteração de redação introduzida pela Resolução n. 9, de 06-12-2005.<br />

Vencido o Ministro Marco Aurélio, que indeferia a liminar, nos termos de seu voto.<br />

Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim. Falaram, pela requerente, o Dr. Luís Roberto<br />

Barroso; pelos amici curiae Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e<br />

Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra, o Dr. Alberto<br />

Pavie Ribeiro e, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o Dr. Felippe<br />

Zeraik; pelo Ministério Público Federal, o Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, Vice-<br />

Procurador-Geral da República.<br />

Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,<br />

Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Vice-Procurador-Geral da República, Dr.<br />

Roberto Monteiro Gurgel Santos.<br />

Brasília, 16 de fevereiro de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário.


R.T.J. — <strong>199</strong> 481<br />

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.591 — DF<br />

Relator: O Sr. Ministro Carlos Velloso<br />

Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Eros Grau<br />

Requerente: Confederação Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF — Requeridos:<br />

Presidente da República e Congresso Nacional<br />

Código de Defesa do Consumidor. Art. 5º, XXXII, da CB/88. Art. 170,<br />

V, da CB/88. Instituições financeiras. Sujeição delas ao Código de Defesa<br />

do Consumidor, excluídas de sua abrangência a definição do custo das<br />

operações ativas e a remuneração das operações passivas praticadas na<br />

exploração da intermediação de dinheiro na economia [Art. 3º, § 2º, do<br />

CDC]. Moeda e taxa de juros. Dever-poder do Banco Central do Brasil.<br />

Sujeição ao Código Civil.<br />

1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela<br />

incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor.<br />

2. “Consumidor”, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor,<br />

é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final,<br />

atividade bancária, financeira e de crédito.<br />

3. O preceito veiculado pelo art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do<br />

Consumidor deve ser interpretado em coerência com a Constituição, o<br />

que importa em que o custo das operações ativas e a remuneração das<br />

operações passivas praticadas por instituições financeiras na exploração<br />

da intermediação de dinheiro na economia estejam excluídas da sua<br />

abrangência.<br />

4. Ao Conselho Monetário Nacional incumbe a fixação, desde a<br />

perspectiva macroeconômica, da taxa base de juros praticável no<br />

mercado financeiro.<br />

5. O Banco Central do Brasil está vinculado pelo dever-poder de<br />

fiscalizar as instituições financeiras, em especial na estipulação contratual<br />

das taxas de juros por elas praticadas no desempenho da intermediação de<br />

dinheiro na economia.<br />

6. Ação direta julgada improcedente, afastando-se a exegese que<br />

submete às normas do Código de Defesa do Consumidor [Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90]<br />

a definição do custo das operações ativas e da remuneração das operações<br />

passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho da intermediação<br />

de dinheiro na economia, sem prejuízo do controle pelo Banco<br />

Central do Brasil e do controle e da revisão pelo Poder Judiciário, nos<br />

termos do disposto no Código Civil, em cada caso, de eventual abusividade,<br />

onerosidade excessiva ou outras distorções na composição contratual<br />

da taxa de juros.<br />

Art. 192 da CB/88. Norma-objetivo. Exigência de lei complementar<br />

exclusivamente para a regulamentação do sistema financeiro.


482<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

7. O preceito veiculado pelo art. 192 da Constituição do Brasil<br />

consubstancia norma-objetivo que estabelece os fins a serem perseguidos<br />

pelo sistema financeiro nacional, a promoção do desenvolvimento equilibrado<br />

do País e a realização dos interesses da coletividade.<br />

8. A exigência de lei complementar veiculada pelo art. 192 da<br />

Constituição abrange exclusivamente a regulamentação da estrutura do<br />

sistema financeiro.<br />

Conselho Monetário Nacional. Art. 4º, VIII, da Lei n. 4.595/64.<br />

Capacidade normativa atinente à constituição, funcionamento e fiscalização<br />

das instituições financeiras. Ilegalidade de resoluções que excedem<br />

essa matéria.<br />

9. O Conselho Monetário Nacional é titular de capacidade normativa<br />

— a chamada capacidade normativa de conjuntura — no exercício<br />

da qual lhe incumbe regular, além da constituição e fiscalização, o funcionamento<br />

das instituições financeiras, isto é, o desempenho de suas atividades<br />

no plano do sistema financeiro.<br />

10. Tudo o quanto exceda esse desempenho não pode ser objeto de<br />

regulação por ato normativo produzido pelo Conselho Monetário Nacional.<br />

11. A produção de atos normativos pelo Conselho Monetário Nacional,<br />

quando não respeitem ao funcionamento das instituições financeiras, é<br />

abusiva, consubstanciando afronta à legalidade.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie, na<br />

conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos,<br />

julgar improcedente a ação direta.<br />

Brasília, 7 de junho de 2006 — Eros Grau, Relator para o acórdão.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: A Confederação Nacional do Sistema Financeiro –<br />

CONSIF, com fundamento nos arts. 103, IX, da Constituição Federal e 1º, 2º, IX, e<br />

seguintes da Lei 9.868/99, propõe ação direta de inconstitucionalidade, com pedido<br />

de suspensão cautelar, da expressão “inclusive as de natureza bancária, financeira, de<br />

crédito e securitária”, constante do art. 3º, § 2º, da Lei 8.<strong>07</strong>8, de 11-9-<strong>199</strong>0, que dispõe<br />

sobre a proteção do consumidor.<br />

A norma acoimada de inconstitucional tem o seguinte teor:<br />

“Art. 3º (omissis)<br />

(...)


R.T.J. — <strong>199</strong> 483<br />

§ 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo,<br />

mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito<br />

e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”<br />

Alega a autora que a norma impugnada ofende os artigos 5º, LIV; e 192, II e IV, da<br />

Constituição Federal; para tanto, sustenta, em síntese:<br />

a) legitimidade ativa da Consif, reconhecida na ADIn 2.394/MG, em face do art.<br />

103, IX, da Constituição Federal, mormente porque trata-se de confederação sindical,<br />

com registro no Ministério do Trabalho, congregando as Federações representativas das<br />

instituições financeiras, bancárias, de crédito e securitárias, certo que se encontra<br />

atendido também o vínculo de pertinência temática, representado pelo liame entre o<br />

objeto da ação e a atividade de representação exercida pela entidade requerente;<br />

b) necessidade de impugnar tão-somente a expressão ora atacada da Lei 8.<strong>07</strong>8/<br />

90, dado que, declarada inconstitucional, “fará com que nenhuma outra disposição<br />

constante desse diploma possa ser aplicada às atividades de natureza bancária,<br />

financeira, de crédito e securitária” (fl. 5), sem necessidade de impugnação específica<br />

de cada uma de suas disposições;<br />

c) violação ao art. 192, II e IV, da Constituição Federal, uma vez que somente lei<br />

complementar que regulará o Sistema Financeiro Nacional tem competência “para<br />

conformar tanto o perfil organizacional dos órgãos e entidade públicas e privadas<br />

integrantes do setor financeiro, como o complexo de normas disciplinadoras da<br />

própria atividade financeira, para conferir-lhe maior higidez” (fl. 8), conforme decidido<br />

no julgamento da ADIn 4/DF, em que teria ficado assentado que todas as matérias<br />

pertinentes ao Sistema Financeiro Nacional, contidas no art. 192, deveriam ser objeto de<br />

uma única lei complementar; ademais, tendo sido as normas pertinentes ao tema, como<br />

a Lei 4.595/64, recepcionadas como lei complementar, padece de inconstitucionalidade<br />

a norma impugnada, ao pretender equiparar todas as atividades de natureza bancária,<br />

financeira, de crédito e securitária a relações de consumo para o fim de regulá-las, sendo<br />

insusceptível de derrogar a lei recepcionada, que desfruta desse status;<br />

d) distinção implícita na Constituição Federal entre consumidor e cliente de<br />

instituição financeira, porquanto o art. 170, que consagra o princípio da defesa do<br />

consumidor, encontra-se em capítulo referente à “Ordem Econômica”, estando em outro<br />

capítulo a disciplina do Sistema Financeiro Nacional, de modo que o texto da lei<br />

complementar a ser elaborada de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do<br />

País e servir aos interesses da coletividade, necessariamente abrangerá a proteção do<br />

cliente de instituições financeiras, justificando-se a distinção entre as duas categorias de<br />

usuários de serviços em virtude de razões de ordem constitucional e pelas situações<br />

peculiares de ordem econômica existentes em cada caso;<br />

e) violação ao art. 5º, LIV, da Constituição Federal, visto que o legislador<br />

ordinário “onerou os integrantes do sistema financeiro com o conjunto de obrigações<br />

previstas na Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90, incompatíveis com as peculiaridades do setor financeiro”<br />

(fl. 17), e ampliou o rol de legitimados a questionar, em nome próprio ou alheio, a<br />

atuação das entidades integrantes do Sistema Financeiro Nacional, sendo certo que<br />

tratar a atividade bancária, financeira, de crédito e securitária da mesma maneira que as<br />

demais atividades econômicas, que não ostentam a mesma peculiaridade, “não se


484<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

mostra razoável, quer em face dessa sistemática constitucional, quer sob o aspecto<br />

material das operações celebradas no âmbito do sistema financeiro, violando o<br />

princípio do devido processo legal substantivo” (fls. 18/19), sob o aspecto da<br />

proporcionalidade;<br />

f) inadequação das disposições da Lei 8.<strong>07</strong>8/90 em face das atividades<br />

desenvolvidas no âmbito do sistema financeiro, especialmente aquelas referentes à<br />

defesa dos direitos dos usuários, tendo em vista que a segurança jurídica e o respeito aos<br />

contratos são condições de um sistema saudável, sendo certo que já existem resoluções<br />

do Conselho Monetário Nacional, respaldadas pela Lei 4.595/64, que “cuidam da<br />

defesa dos usuários de serviços de instituições financeiras de forma compatível com a<br />

materialidade desses serviços” (fl. 24); ademais, a jurisprudência do Supremo Tribunal<br />

Federal reconhece que as operações praticadas com instituições de crédito, públicas ou<br />

privadas, funcionam sob o estrito controle do Conselho Monetário Nacional, sob a<br />

fiscalização do Banco Central do Brasil (ADIn 1.312/DF, ADIn 449/DF, Conflito de<br />

Atribuições 35/RJ e RE 79.253/SP).<br />

Finalmente, sustentando a relevância e a urgência do provimento cautelar,<br />

consubstanciada na avalanche de decisões inconstitucionais fundadas no Código de<br />

Defesa do Consumidor, pede o autor “a suspensão cautelar ex nunc da eficácia da<br />

expressão ‘inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária’ do §<br />

2º do art. 3º da Lei n. 8.<strong>07</strong>8, de 11 de setembro de <strong>199</strong>0, até a decisão final desta ação”<br />

(fl. 39). Como pedido alternativo, no âmbito processual, requer a adoção do rito do art.<br />

12 da Lei 9.868/99.<br />

Em 26-12-2001, o eminente Ministro Marco Aurélio, Presidente do Supremo Tribunal<br />

Federal, determinou fossem solicitadas informações (fl. 717). O Exmo. Sr. 1º Vice-Presidente<br />

do Senado Federal, no exercício da Presidência do Congresso Nacional, às fls. 723/742,<br />

sustentou, em síntese, o seguinte:<br />

a) constitucionalidade do dispositivo impugnado, “porque não objetiva regular o<br />

sistema financeiro e nem substituir normas do Banco Central”, mas “tão somente<br />

proteger os direitos dos consumidores quando da prestação de serviços por instituições<br />

financeiras” (fl. 728), não se podendo falar na alegada derrogação da Lei 4.595/64, com<br />

a qual não conflita; ademais, o Sistema Financeiro, que na estrutura constitucional situase<br />

no título da Ordem Econômica e Financeira, precisa observar os princípios gerais da<br />

atividade econômica, entre os quais o da defesa do consumidor;<br />

b) ausência do fumus boni iuris e do periculum in mora, dado que não se<br />

demonstrou, de plano, a inconstitucionalidade do dispositivo impugnado, não sendo<br />

também razoável a suspensão liminar de uma norma vigente há 11 (onze) anos.<br />

Determinei, em 5-2-2002, que se oficiasse ao Exmo. Sr. Presidente da República<br />

para que prestasse, no prazo de 10 (dez) dias, informações, ex vi do art. 12 da Lei 9.868/<br />

99 (fl. 745).<br />

A União, às fls. 749/750, requereu a concessão de 30 (trinta) dias de prazo para<br />

manifestação definitiva do Presidente da República, a teor do art. 6º, parágrafo único, da<br />

Lei 9.868/99. Determinei, em 5-2-2002, que se observasse o disposto no art. 12 da Lei<br />

9.868/99 (fl. 749).


R.T.J. — <strong>199</strong> 485<br />

Admiti, nos termos do art. 7º, § 2º, da Lei 9.868/99 (amicus curiae), as seguintes<br />

entidades (fls. 755, 881, 886, 895, 1044 e 1093): Instituto Brasileiro de Política e Direito<br />

do Consumidor – Brasilcon, Procuradoria de Assistência Judiciária do Estado de São<br />

Paulo, Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor de São Paulo – Procon/SP, IDEC –<br />

Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor e Federação das Associações de<br />

Advogados do Estado de São Paulo e ASSICON – Associação de Informação e Defesa<br />

dos Direitos do Consumidor.<br />

O Exmo. Sr. Presidente da República, às fls. 1025/1040, reportando-se a<br />

pronunciamento dos Exmos. Srs. Ministro de Estado da Justiça e do Procurador-Geral do<br />

Banco Central do Brasil, prestou informações, sustentando, em síntese, o seguinte:<br />

a) constitucionalidade da lei impugnada, dado que a sua aplicação ao Sistema<br />

Financeiro Nacional “em nada conflita com a disciplina jurídico-consitucional<br />

inserida nos arts. 170, V, e 192, da Carta Magna, que devem ser interpretados de forma<br />

a harmonizar os seus preceitos, conferindo-se à expressão ‘inclusive as de natureza<br />

bancária, financeira, de crédito e securitária’, constante do mencionado dispositivo,<br />

uma interpretação conforme a Constituição” (fl. 1029);<br />

b) competência da lei complementar prevista no caput do art. 192 da CF/88<br />

apenas para regular as atividades típicas de instituições financeiras, em especial as<br />

operações ativas e passivas por elas praticadas no curso da intermediação de dinheiro<br />

(normas de organização), sendo todavia possível que lei ordinária discipline outros<br />

aspectos do relacionamento entre clientes e instituições, que não dizem respeito,<br />

estritamente, àquelas operações, como os que envolvem a disciplina jurídica de normas<br />

que coíbem abusos e fraudes contra o consumidor (normas de conduta);<br />

c) inexistência de distinção constitucional entre clientes bancários e consumidores,<br />

não merecendo acolhida a alegação de violação ao devido processo legal substantivo<br />

ao pretender-se tratar da regulação do Sistema Financeiro Nacional por meio de<br />

Lei ordinária, dado que, por determinação constitucional (art. 48 do ADCT), deve ser<br />

assim disciplinada a proteção ao consumidor;<br />

Ao final, o Exmo. Sr. Presidente da República pede que seja julgada improcedente<br />

a presente ação, “conferindo-se à expressão ‘inclusive as de natureza bancária,<br />

financeira, de crédito e securitária’, constante do art. 3º, § 2º, da Lei 8.<strong>07</strong>8, de <strong>199</strong>0,<br />

uma interpretação conforme a Constituição, com o emprego do instrumento previsto no<br />

parágrafo único do art. 28 da Lei n. 9.868, de 10 de novembro de <strong>199</strong>9, excluindo da<br />

aplicação do Código de Defesa do Consumidor o custo das operações ativas e a<br />

remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho<br />

da intermediação de dinheiro na economia, de modo a preservar a competência<br />

constitucional da lei complementar do Sistema Financeiro Nacional” (fls. 1039/1040).<br />

Já existente nos autos a manifestação do Dr. Advogado-Geral da União, os autos<br />

foram ao parecer do Ministério Público Federal.<br />

O Procurador-Geral da República, Prof. Geraldo Brindeiro, opinou “seja<br />

julgada procedente, em parte, a ação, para declarar a inconstitucionalidade parcial,<br />

sem redução de texto, da expressão ‘inclusive as de natureza bancária, financeira, de<br />

crédito e securitária’, inscrita no art. 3º, § 2º, da Lei n. 8.<strong>07</strong>8, de 11 de setembro de <strong>199</strong>0 —


486<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Código de Defesa do Consumidor —, para, mediante interpretação conforme a<br />

Constituição, tal como preconizado pelo Ministro de Estado da Justiça, Aloysio Nunes<br />

Ferreira, e pelo Procurador-Geral do Banco Central do Brasil, Carlos Eduardo da<br />

Silva Monteiro, afastar a exegese que inclua naquela norma do Código de Defesa do<br />

Consumidor ‘o custo das operações ativas e a remuneração das operações passivas<br />

praticadas por instituições financeiras no desempenho da intermediação de dinheiro<br />

na economia, de modo a preservar a competência constitucional da lei complementar<br />

do Sistema Financeiro Nacional’ (fls. 1039/1040), incumbência atribuída ao Conselho<br />

Monetário Nacional e ao Banco Central do Brasil, nos termos dos arts. 164, § 2º, e 192,<br />

da Constituição da República” (fl. 1061).<br />

Autos conclusos em 7-3-2002.<br />

É o relatório, do qual serão expedidas cópias para os Exmos. Srs. Ministros.<br />

VOTO<br />

Ementa: Constitucional. Código de Defesa do Consumidor: Lei 8.<strong>07</strong>8,<br />

de 11-9-90. Sistema Financeiro Nacional: CF, Art. 192. Banco. Atividades<br />

Bancárias: aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Juros reais de<br />

12% ao ano: CF, Art. 192, § 3º: não-auto-aplicabilidade do § 3º do art. 192 da CF,<br />

ADIn n. 4/DF.<br />

I - A defesa do consumidor, na linha da expansão do fenômeno mundial<br />

do “consumerismo”, ganhou, no Brasil, com a CF/88, status de princípio<br />

constitucional: CF, art. 170, V, que encontra embasamento em diversos preceitos<br />

da CF: art. 5º, XXXII; art. 24, VIII; art. 150, § 5º; art. 175, parágrafo único, II;<br />

ADCT, art. 48.<br />

II - O Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.<strong>07</strong>8, de <strong>199</strong>0, encontra<br />

fundamento na Constituição, regula ele um princípio constitucional — a defesa do<br />

consumidor — e foi editado por expressa determinação constitucional — ADCT,<br />

art. 48 — que fixou prazo ao legislador ordinário para a sua elaboração.<br />

III - Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às atividades de<br />

natureza bancária, financeira, de crédito e securitária: Código de Defesa do Consumidor,<br />

§ 2º do art. 3º.<br />

IV - A CF/88 recebeu a Lei 4.595, de 1964, como lei complementar, no que<br />

toca à organização, ao funcionamento e às atribuições do Banco Central e no que<br />

cuida ela do que está disposto no art. 192, incisos I a VIII e §§ do art. 192, CF,<br />

vale dizer, no que diz respeito ao Sistema Financeiro Nacional, em termos<br />

institucionais.<br />

V - Juros reais de 12% ao ano: CF, art. 192, § 3º: ADIn 4/DF: não autoaplicabilidade<br />

da disposição inscrita no § 3º do art. 192, CF. Questão que diz<br />

respeito ao Sistema Financeiro Nacional. Interpretação conforme à Constituição<br />

que se empresta à norma inscrita no § 2º do art. 3º da Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90 — “inclusive<br />

as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária” — para desta norma<br />

afastar a exegese que nela inclua a taxa dos juros das operações bancárias, ou sua<br />

fixação em 12% ao ano, dado que essa questão diz respeito ao Sistema Financeiro


R.T.J. — <strong>199</strong> 487<br />

Nacional — CF, art. 192, § 3º — tendo o Supremo Tribunal Federal, no julgamento<br />

da ADIn 4/DF, decidido que a norma do citado § 3º do art. 192 não é autoaplicável,<br />

devendo ser observada a legislação anterior à CF/88, até o advento da<br />

lei complementar referida no caput do mencionado art. 192, CF.<br />

VI - ADIn julgada procedente, em parte.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): A norma acoimada de inconstitucional<br />

está contida na expressão “inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e<br />

securitária” inscrita no § 2º do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8.<strong>07</strong>8,<br />

de 11-9-90.<br />

“Art. 3º (...)<br />

§ 1º (...)<br />

§ 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo,<br />

mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito<br />

e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”<br />

Sustenta-se que a citada norma, contida na expressão indicada, é ofensiva aos arts.<br />

5º, LIV, e 192, caput e incisos II e IV, da Constituição Federal.<br />

Examinemos a questão.<br />

II<br />

Primeiro que tudo, assente-se que a proteção do consumidor constitui tema que<br />

tem encontrado guarida na legislação dos países civilizados. “Não é difícil explicar tão<br />

grande dimensão para um fenômeno jurídico totalmente desconhecido no século<br />

passado e em boa parte”, asseveram Ada Pellegrini Grinover e Antônio Herman de<br />

Vasconcelos e Benjamin, dado que, “o homem do século XX vive em função de um<br />

modelo novo de associativismo: a sociedade de consumo (mass consumption society ou<br />

Konsumgesellschaft), caracterizada por um número crescente de produtos e serviços,<br />

pelo domínio do crédito e do marketing, assim como pelas dificuldades de acesso à<br />

justiça. São esses aspectos que marcaram o nascimento e desenvolvimento do direito do<br />

consumidor, como disciplina jurídica autônoma” (“Código Brasileiro de Defesa do<br />

Consumidor”, comentários dos autores do anteprojeto, Ada Pellegrini Grinover et alii,<br />

Forense Universitária, <strong>199</strong>1, p. 7).<br />

No Brasil, na linha da expansão do fenômeno mundial do “consumerismo” a<br />

defesa do consumidor ganhou status de princípio constitucional: art. 170, V: “A ordem<br />

econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por<br />

fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,<br />

observados os seguintes princípios: V - defesa do consumidor.”<br />

A defesa do consumidor, registram Arruda Alvim, Thereza Alvim, Eduardo Arruda<br />

Alvim e James Marins, “pode, então, ser considerada, como afirma Eros Roberto Grau,<br />

um ‘Princípio constitucional impositivo’ (Canotilho), a cumprir dupla função, como<br />

instrumento para realização do fim de assegurar a todos existência digna e objetivo<br />

particular a ser alcançado. No último sentido, assume a função de diretriz (Dworkin) —


488<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

norma objetivo — dotada de caráter constitucional conformador, justificando a<br />

reivindicação pela realização de políticas públicas.” (Arruda Alvim et alii, “Código do<br />

Consumidor Comentado”, RT, 2. ed., p. 13).<br />

Princípio constitucional, a defesa do consumidor (art. 170, V) encontra embasamento<br />

em diversos preceitos da Constituição: art. 5º, XXXII: “o Estado promoverá, na<br />

forma da lei, a defesa do consumidor”; art. 24, VIII: competência atribuída à União,<br />

aos Estados e ao Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre responsabilidade<br />

por dano ao consumidor; art. 150, § 5º: “a lei determinará medidas para que os<br />

consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias<br />

e serviços”; art. 48 do ADCT: “O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da<br />

promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”; art. 175,<br />

parágrafo único, II: a lei que regulará as concessões e permissões disporá sobre os<br />

direitos dos usuários. É dizer, a Constituição empresta ao princípio especial relevo.<br />

Daí o registro de Eros Roberto Grau: “A par de consubstanciar, a defesa do consumidor,<br />

um modismo modernizante do capitalismo — a ideologia do consumo contemporizada<br />

(a regra ‘acumulai, acumulai’ impõe o ditame ‘consumi, consumi’, agora<br />

porém sob proteção jurídica de quem consome) — afeta todo o exercício de atividade<br />

econômica, inclusive tomada a expressão em sentido amplo, como se apura da leitura<br />

do parágrafo único, II, do art. 175. O caráter constitucional conformador da ordem<br />

econômica, deste como dos demais princípios de que tenho cogitado, é inquestionável”<br />

(Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, Malheiros,<br />

6. ed., 2001, pp. 272/273).<br />

Destarte, presente a lição do Professor Luís Roberto Barroso, no sentido de que “os<br />

princípios constitucionais,... explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores<br />

abrigados no ordenamento jurídico”, dado que “espelham a ideologia da sociedade,<br />

seus postulados básicos, seus fins”, pelo que “dão unidade e harmonia ao sistema,<br />

integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas”, e porque os<br />

princípios, ademais, condensam valores, dão unidade ao sistema e condicionam a<br />

atividade do intérprete (Luís Roberto Barroso, “Fundamentos Teóricos e Filosóficos do<br />

Novo Direito Constitucional Brasileiro — pós-modernidade, teoria crítica e póspositivismo”,<br />

Revista Forense, 358/91), presente, repito, a lição do Professor Luís<br />

Roberto Barroso, é correta a posição adotada por Werson Rêgo e Oswaldo Rêgo, com<br />

apoio no magistério do professor e desembargador Sérgio Cavalieri Filho, “que concebe<br />

o Código de Proteção e Defesa do Consumidor como uma sobreestrutura jurídica<br />

multidisciplinar, aplicável em toda e qualquer área do direito onde ocorrer uma<br />

relação de consumo, justamente em razão da dimensão coletiva que assume, vez que<br />

composto por normas de ordem pública e de interesse social” (Werson Rêgo e Oswaldo<br />

Rêgo, “O Código de Defesa do Consumidor e o Direito Econômico”, inédito, os autores<br />

remeteram-me o artigo de doutrina; Sérgio Cavalieri Filho, “Programa de Responsabilidade<br />

Civil”, Malheiros, 3. ed., pp. 412 e ss.)<br />

O Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8.<strong>07</strong>8, de <strong>199</strong>0, encontra fundamento,<br />

portanto, na Constituição, regula ele um princípio constitucional — a defesa do<br />

consumidor — e foi editado por expressa determinação constitucional — ADCT, art. 48 —<br />

que fixou prazo ao legislador ordinário para a sua elaboração.


R.T.J. — <strong>199</strong> 489<br />

III<br />

Começa o Código por conceituar consumidor: “toda pessoa física ou jurídica que<br />

adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (art. 2º), equiparando-se a<br />

“consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo<br />

nas relações de consumo” (parágrafo único do art. 2º).<br />

O conceito de consumidor, está-se a ver, tem caráter econômico, “ou seja, levandose<br />

em consideração tão-somente o personagem que no mercado de consumo adquire<br />

bens ou então contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondose<br />

que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o<br />

desenvolvimento de uma outra atividade negocial.” (José Geraldo Brito Filomeno,<br />

Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, comentários dos autores do anteprojeto,<br />

Ada Pellegrini Grinover et alii, citado, p. 24).<br />

IV<br />

O conceito de fornecedor nos é dado pelo Código, art. 3º: “Fornecedor é toda pessoa<br />

física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes<br />

despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção,<br />

transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de<br />

produtos ou prestação de serviços”. É dizer, numa relação de consumo há dois personagens:<br />

o primeiro, é o consumidor; o outro, o fornecedor de produtos e serviços. O § 1º do<br />

art. 3º conceitua, a seu turno, produto, a dizer que “produto é qualquer bem, móvel ou<br />

imóvel, material ou imaterial”. O § 2º nos dá o conceito de serviço, estatuindo que<br />

“Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração,<br />

inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as<br />

decorrentes das relações de caráter trabalhista”. Toda atividade remunerada, portanto,<br />

“fornecida no mercado de consumo”, constitui serviço, pelo que está abrangida pelo<br />

Código (“Código do Consumidor Comentado”, Arruda Alvim et alii, citado, pp. 37/38). E<br />

o Código foi expresso — e aqui está a questão sob julgamento — incluindo no conceito de<br />

serviço as atividades “de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária”.<br />

V<br />

A questão a saber é se a inclusão mencionada afetou relações próprias do Sistema<br />

Financeiro Nacional, inscrito no art. 192 da Constituição, invadindo campo reservado à<br />

lei complementar, como sustenta a autora desta ação direta.<br />

Penso que não.<br />

Tal como entende o eminente Procurador-Geral da República, Prof. Geraldo<br />

Brindeiro, no parecer que ofereceu, “pela Lei n. 8.<strong>07</strong>8 não se criam atribuições peculiares<br />

ao mercado e às instituições financeiras; as normas ali insculpidas não dizem respeito,<br />

absolutamente, à regulação do Sistema Financeiro, mas à proteção e defesa do<br />

consumidor, pressuposto de observância obrigatória por todos os operadores do<br />

mercado de consumo — até mesmo pelas instituições financeiras”. Perfeito, parece-me, o<br />

entendimento do eminente chefe do Parquet quando acrescenta:


490<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

“(...)<br />

11. Não há, pois, invasão de competência alguma; mostra-se perfeitamente<br />

possível a coexistência entre a lei complementar reguladora do Sistema Financeiro<br />

Nacional e o Código a que devam sujeitar-se as instituições bancárias, financeiras,<br />

de crédito e de seguros, como todos os demais fornecedores, em suas relações com<br />

os consumidores.<br />

12. De mais a mais, inúmeros outros diplomas legais, de índole ordinária,<br />

acabam por criar, de alguma forma, ‘atribuições’ para as instituições financeiras: a<br />

legislação do imposto sobre a renda, a legislação previdenciária, a trabalhista, a<br />

societária. Logo, não seria sequer sensato que os integrantes do Sistema Financeiro<br />

Nacional, pelo só fato de terem sua atividade regulada por lei complementar e<br />

fiscalizada por um banco central, postulassem eximir-se do dever de obediência às<br />

demais leis do País.<br />

13. Essa polêmica não passou despercebida a Claúdia Lima Marques:<br />

‘Sobre a alegada colisão de leis complementares e lei ordinária, especificamente<br />

das Leis Complementares da Reforma Bancária e do Mercado de<br />

Capitais, que afastariam a aplicação do Código de Defesa do Consumidor,<br />

simples lei ordinária, Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90, conclui-se pela inexistência de colisão<br />

e exclusão formal entre leis complementares e leis ordinárias, uma vez que —<br />

no caso em exame — cada uma delas atua em campos jurídicos distintos, não<br />

existindo interpenetração de competências legislativas. Há diálogo e não há<br />

colisão, em decorrência da técnica constitucional brasileira de distribuição<br />

ratione materiae de competências legislativas (vide arts. 22, I e XIX, e 24,<br />

VIII, da C.F./88), seja para proteção do consumidor, como direito civil e<br />

mandamento da ordem econômica constitucional (arts. 5º, XXXII, 170 e 28<br />

do ADCT da C.F./88), seja para a iniciativa privada, como direito comercial<br />

e mandamento da ordem econômica constitucional (art. 170 da C.F.).<br />

À atividade bancária se aplicam outras leis ordinárias, como a Lei<br />

6.404/76 e a Lei 6.385, que ninguém discute serem aplicáveis aos bancos<br />

regulados em outros temas por leis complementares, quando usam a forma de<br />

sociedade por ações ou utilizam-se de valores mobiliários.’<br />

14. De outro lado, a existência de um código de defesa do consumidor, com<br />

incidência nas relações entre instituições financeiras e consumidores, não subtrai ao<br />

Banco Central o ônus de disciplinar a prestação de serviços bancários a clientes e ao<br />

público em geral, como previsto na legislação pertinente. A propósito, aquela<br />

autarquia tornou pública, em 26 de julho de 2001, a Resolução n. 2.878, do<br />

Conselho Monetário Nacional, que dispõe sobre procedimentos a serem observados<br />

pelas instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo<br />

Banco Central do Brasil na contratação de operações e na prestação de serviços aos<br />

clientes e ao público em geral.<br />

(...)”. (Fls. 1049/1050).<br />

É que o Código do Consumidor não interfere com a estrutura institucional do<br />

Sistema Financeiro Nacional. Esta, sim, será regulada por lei complementar — CF, art.


R.T.J. — <strong>199</strong> 491<br />

192 — que disporá, inclusive, sobre os temas inscritos nos incisos I a VIII do mesmo<br />

artigo 192, cuidando o § 1º deste da autorização a que se referem os incisos I e II; o § 2º<br />

disciplina os recursos financeiros relativos a programas e projetos de caráter regional, de<br />

responsabilidade da União, que serão depositados em suas instituições regionais de<br />

créditos e por elas aplicados; e o § 3º estabelece que “as taxas de juros reais, nelas<br />

incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente<br />

referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano;<br />

a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas<br />

as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”.<br />

Apenas no tocante ao § 3º do art. 192 é que não se pode dizer, de pronto, que a<br />

questão estaria resolvida. Mais a frente dela cuidaremos em pormenor.<br />

VI<br />

Quando do julgamento da ADIn 449/DF, de que fui Relator, sustentei que a<br />

Constituição recebeu a Lei n. 4.595, de 1964, como lei complementar, no que toca à<br />

organização, ao funcionamento e às atribuições do Banco Central. Todavia, no que diz<br />

respeito “ao pessoal do Banco Central, assim não ocorre, dado que essa matéria não se<br />

inclui naquelas postas, expressamente, no inciso IV do art. 192 da Constituição”.<br />

Da mesma forma que a legislação que diga respeito ao pessoal do Banco Central<br />

não pode ser considerada lei complementar, porque não diz respeito ao Sistema<br />

Financeiro Nacional e nem se inclui, expressamente, nos incisos I a VIII do art. 192,<br />

também não se pode afirmar que os direitos dos consumidores de produtos financeiros e<br />

serviços bancários estariam inscritos no citado art. 192 e incisos da Constituição<br />

Federal.<br />

VII<br />

Considerável parte da doutrina é no sentido da incidência do Código de Defesa do<br />

Consumidor nas atividades bancárias e financeiras. Assim, por exemplo, o magistério de<br />

Cláudia Lima Marques, “Sociedade de informação e serviços bancários: primeiras<br />

observações”, Revista de Direito do Consumidor, 39/49; “Relação de consumo entre os<br />

depositantes de cadernetas de poupança e os bancos e instituições que arrecadam a<br />

poupança popular”, Revista dos Tribunais, 760/108; “Contratos bancários em tempos<br />

pós-modernos — primeiras reflexões”, Revista de Direito do Consumidor, 25/19;<br />

Newton de Lucca, “Direito do Consumidor”, Edipro, 2. ed., 2000, pp. 112/128; “A<br />

aplicação do Código de Defesa do Consumidor à atividade bancária”, Revista do<br />

Instituto dos Advogados de São Paulo, 2/158; Antônio Carlos Efing, “Sistema<br />

Financeiro e o Código do Consumidor”, Revista de Direito do Consumidor, 17/65;<br />

“Responsabilidade civil do agente bancário e financeiro, segundo as normas do<br />

Código de Defesa do Consumidor”, Revista de Direito do Consumidor, 18/105; Nelson<br />

Néry Júnior, “Defesa do consumidor de crédito bancário em Juízo”, Revista de Direito<br />

Privado, 5/192; Fábio Zabot Holthausen, “Aplicação do Código de Defesa do<br />

Consumidor às operações bancárias”, Ajuris, março/98, vol. II/704; Ulisses César<br />

Martins de Souza, “O conceito de consumidor na Lei 8.<strong>07</strong>8/90 e sua aplicação aos


492<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

contratos bancários”, Revista Jurídica, 269/69; José Cretella Júnior, René Ariel Dotti et<br />

alii, “Comentários ao Código do Consumidor”, Forense, <strong>199</strong>2, p. 16; Renata Macheti<br />

Silveira, “As instituições financeiras e sua condição de fornecedoras de serviços sob a<br />

disciplina do Código de Defesa do Consumidor”, Revista Nacional de Direito e<br />

Jurisprudência, 8/14; Antônio Janyr Dall’Agnol Júnior, “Direito do Consumidor e<br />

Serviços Bancários e Financeiros — Aplicação do CDC nas Atividades Bancárias”,<br />

Revista de Direito do Consumidor, 27/7; Luiz Rodrigues Wambier, “Os contratos<br />

bancários e o Código de Defesa do Consumidor — uma nova abordagem”, Revista dos<br />

Tribunais, 742/57; Giácomo Rizzo e Henrique Afonso Pipolo, “Aspectos da sujeição<br />

das instituições financeiras ao CDC”, “Repertório IOB”, n. 3/17649; Márcio Mello<br />

Casado, “Proteção do Consumidor de Crédito Bancário e Financeiro”, RT, vol. 15/28;<br />

Élcio Trujillo, “A defesa do consumidor, a relação contratual bancária e o empresário<br />

financeiro”, Revista de Informação Legislativa, 132/143; Sérgio Cavalieri Filho,<br />

“Programa de Responsabilidade Civil”, Malheiros, 3. ed., pp. 343 e 408 e ss.; Arruda<br />

Alvim et alii, “Código do Consumidor Comentado”, RT, 2. ed., pp. 38/39; Jorge Alberto<br />

Quadros de Carvalho Silva, “Código de Defesa do Consumidor anotado”, Saraiva,<br />

2001, pp. 9/10; José Geraldo Brito Filomeno, “Código Brasileiro de Defesa do<br />

Consumidor”, comentários dos autores do anteprojeto, Ada Pellegrini Grinover et alii,<br />

cit., p. 34, Luiz Antônio Rizzato Nunes, “Comentários ao Código de Defesa do<br />

Consumidor”, Saraiva, 2000 (arts. 1º a 54), pp. 98/99.<br />

José Geraldo Brito Filomeno, retrocitado, exclui da relação de consumo os tributos<br />

“que se inserem no âmbito das relações de natureza tributária” (ob. cit., p. 34). Neste<br />

sentido, aliás, o decidido pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE<br />

195.056/PR, de que fui Relator. O acórdão ainda não foi publicado, porque há notas<br />

taquigráficas retidas em gabinete. Já elaborei, entretanto, a ementa para o acórdão, que<br />

tem o seguinte teor:<br />

“Ementa: Constitucional. Ação civil pública. Impostos: IPTU. Ministério<br />

Público: legitimidade. Lei n. 7.374, de 1985, art. 1º, II, e art. 21, com a redação<br />

do art. 117 da Lei n. 8.<strong>07</strong>8, de <strong>199</strong>0 (Código do Consumidor); Lei n. 8.625, de<br />

<strong>199</strong>3, art. 25. CF, artigos 127 e 129, III.<br />

I - A ação civil pública presta-se à defesa de direitos individuais homogêneos,<br />

legitimado o Ministério Público para aforá-la, quando os titulares daqueles<br />

interesses ou direitos estiverem na situação ou na condição de consumidores, ou<br />

quando houver uma relação de consumo. Lei n. 7.374/85, art. 1º, II, e art. 21, com a<br />

redação do art. 117 da Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90 (Código do Consumidor); Lei n. 8.625, de<br />

<strong>199</strong>3, art. 25.<br />

II - Certos direitos individuais homogêneos podem ser classificados como<br />

interesses ou direitos coletivos, ou identificar-se com interesses sociais e<br />

individuais indisponíveis. Nesses casos, a ação civil pública presta-se à defesa<br />

desses direitos, legitimado o Ministério Público para a causa. CF, art. 127, caput,<br />

e art. 129, III.<br />

III - O Ministério Público não tem legitimidade para aforar ação civil<br />

pública para o fim de impugnar a cobrança e pleitear a restituição de imposto —<br />

no caso o IPTU — pago indevidamente, nem essa ação seria cabível, dado que,


R.T.J. — <strong>199</strong> 493<br />

tratando-se de tributos, não há, entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito<br />

passivo (contribuinte) uma relação de consumo (Lei n. 7.374/85, art. 1º, II, art. 21,<br />

redação do art. 117 da Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90 (Código do Consumidor); Lei n. 8.625/93,<br />

art. 25, IV; CF, art. 129, III), nem seria possível identificar o direito do<br />

contribuinte com ‘interesses sociais e individuais indisponíveis.’ (CF, art. 127,<br />

caput).<br />

IV - RE não conhecido.”<br />

VIII<br />

Tenho como corretos e irrespondíveis os argumentos expendidos pelo eminente<br />

Procurador-Geral da República, Prof. Geraldo Brindeiro, no parecer que ofereceu. Vale,<br />

portanto, transcrevê-los:<br />

“(...)<br />

15. Em rigor, a requerente não explica, em nenhuma passagem da petição<br />

inicial, em que o Código de Defesa do Consumidor teria alterado dispositivos da<br />

Lei n. 4.595, de 1964. Diversamente, acentua que essa última lei, recepcionada<br />

pela Constituição de 1988, ‘não permite ações coletivas para reivindicar direitos<br />

individuais disponíveis’ (fls. 23), e que os ditames constitucionais do art. 192<br />

nela encontrariam disciplina.<br />

16. Esse é, exatamente, o ponto: os direitos dos consumidores de produtos<br />

financeiros e serviços bancários, bem como os meios para seu reconhecimento,<br />

não são disciplinados, nem o poderiam ser, na lei que hoje regula o Sistema<br />

Financeiro Nacional porque semelhante encargo compete, de modo inequívoco, ao<br />

código de defesa do consumidor previsto no art. 48, do Ato das Disposições<br />

Constitucionais Transitórias. Do art. 192 do Estatuto Fundamental não se ocupa,<br />

portanto, a Lei n. 8.<strong>07</strong>8, senão do art. 5º, inciso XXXII; e do art. 48, das Disposições<br />

Transitórias. Em resumo, a circunstância isolada de competir ao Banco Central<br />

controlar o Sistema Financeiro Nacional não pode servir de razão para restringir o<br />

direito de ação dos consumidores, a atuação do Ministério Público e de associações<br />

legalmente constituídas para defender interesses e direitos decorrentes das relações<br />

de consumo, para frustrar, enfim, o próprio princípio da proteção judiciária,<br />

garantia fundamental consagrada pela Constituição da República (art. 5º, inciso<br />

XXXV).<br />

17. Nem mesmo a decantada relação estreita das instituições financeiras<br />

com a política monetária adotada no País, vale salientar — idêntica, de resto, à<br />

vinculação experimentada por quem quer que explore atividade econômica —,<br />

constitui fundamento bastante para desobrigá-las da submissão às regras do<br />

mercado de consumo.<br />

18. Busca-se demonstrar, nestes autos, até com invocação do princípio da<br />

proporcionalidade, a inadequação do Código de Defesa do Consumidor para<br />

regular as operações efetuadas no mercado financeiro, cujos contratos possuiriam<br />

características em tudo distintas daquelas contempladas na lei. Mister se faz<br />

esclarecer, então, que a Lei n. 8.<strong>07</strong>8, de <strong>199</strong>0, não preconiza, não estimula, não


494<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

alimenta o descumprimento dos contratos — e as decisões judiciais aqui<br />

criticadas não apontam nessa direção —, porém que eles não contenham<br />

cláusulas abusivas, e que seja observada a fundamental proteção contratual do<br />

consumidor, parte vulnerável na relação de consumo. Se a questão é de atual<br />

inadequação, injustificável, doze anos após promulgada a lei, é o Sistema que se<br />

deve adequar ao Código de Defesa do Consumidor; não o Supremo Tribunal<br />

Federal afastar a aplicação do Código, tão-só porque desconcorde com os<br />

costumes do meio, porque estranho mesmo às outrora usuais práticas dos que<br />

lidam com a intermediação financeira.<br />

19. Decisões judiciais, sobretudo dimanadas do Superior Tribunal de Justiça,<br />

são usadas como argumento para pleitear a inconstitucionalidade do art. 3º, § 2º, do<br />

Código de Defesa do Consumidor. Note-se, todavia, ser a hipótese de interpretação<br />

da legislação federal aplicável, tema alheio à competência do Supremo Tribunal<br />

Federal, em sede de ação direta de inconstitucionalidade. E ainda que assim não<br />

fosse, ou seja, houvesse, nos arestos, insofismável repercussão constitucional,<br />

como episódica violação do princípio da razoabilidade, a fiscalização abstrata<br />

também não se revelaria oportuna. O mesmo se diga em relação a ações civis<br />

públicas voltadas contra o programa de privatização dos bancos estaduais, cujo<br />

anunciado escopo nada tem com as relações de consumo, mas com a defesa do<br />

patrimônio público (Lei n. 7.347, de 24.7.1985).<br />

20. Sobre a alegada contrariedade ao que ficou decidido pelo Excelso<br />

Pretório, por ocasião da ADIn n. 4 (Min. Sydney Sanches, DJ de 25.6.<strong>199</strong>3), afora<br />

implausíveis os motivos expendidos pela requerente, tal evento desafiaria, em<br />

tese, a formulação de reclamação ao Supremo Tribunal Federal, para assegurar a<br />

autoridade de uma sua decisão; não a propositura de nova ação direta, tendente à<br />

mera reafirmação do que antes assentado.<br />

21. Quanto à suposta distinção promovida no Título VII - Da Ordem<br />

Econômica e Financeira, parece óbvio que o legislador constituinte não<br />

pretendeu, como sugere a requerente, separar ordem econômica e ordem<br />

financeira. Tanto assim é que já no Capítulo I (Dos Princípios Gerais da Atividade<br />

Econômica) prevê punições por atos praticados contra a ordem econômica e<br />

financeira e contra a economia popular (art. 173, § 5º). Tanto não quis<br />

discriminar que os chamados bancos estatais, notórios agentes do Sistema<br />

Financeiro Nacional, quer constituídos sob a forma de empresa pública, quer<br />

como sociedades de economia mista, estão subordinados às prescrições do § 1º<br />

do mesmo artigo 173, da Constituição, o qual tem por objeto exclusivo empresas<br />

públicas e sociedades de economia mista ‘que explorem atividade econômica de<br />

produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços’ (sem<br />

destaques, no original).<br />

22. Especial relevo é dado pela Confederação requerente, também com o<br />

auxílio de normas infraconstitucionais, a noções correntes do que sejam relação de<br />

consumo, fornecedor, consumidor, produtos, serviços, tudo para desembaraçar<br />

as instituições do Sistema Financeiro do alcance do Código de Defesa do<br />

Consumidor. Sem embargo de seu caráter jurídico, porque conjunto de normas, a


R.T.J. — <strong>199</strong> 495<br />

Constituição ostenta preponderante conteúdo político e social, que não se pode<br />

ilidir unicamente para prestigiar imprecisas, difusas concepções técnicas. Cabe<br />

lembrar, neste momento, a advertência de Celso Ribeiro Bastos, para quem ‘não se<br />

pode dar conteúdo aos princípios constitucionais a partir da definição encontrada<br />

na legislação ordinária’. O mesmo abalizado autor chama a atenção para a<br />

importância, na atividade de interpretação normativa, para a realidade fática, bem<br />

assim para a vontade popular, ‘que anima a tarefa constituinte e reflete-se<br />

diretamente sobre o Texto Constitucional normatizado, constituindo uma fonte<br />

permanente e, dada sua natureza, dinâmica de compreensão constitucional’.<br />

23. Não há de prosperar, por conseguinte, só porque trabalhariam os bancos<br />

com recursos de terceiros, a assertiva segundo a qual ‘a proteção a alguns<br />

‘consumidores’ representaria, na verdade, violação ao direito de outros ‘consumidores’,<br />

ou seja, dos demais usuários da instituição, titulares dos recursos do<br />

sistema’. A verdade, inexorável, é que as instituições do Sistema Financeiro<br />

captam recursos no mercado, mediante remuneração ou não, e os repassam, na<br />

qualidade de fornecedores, aos consumidores de produtos financeiros e serviços<br />

bancários, auferindo, nessa condição, o lucro inerente à atividade econômica.<br />

24. Consulte-se, a respeito, o magistério de Márcio Mello Casado:<br />

‘Como é notório, os bancos são obrigatoriamente organizados sob a<br />

forma de sociedades anônimas, fato que lhes confere a inarredável condição<br />

de comerciantes.<br />

Dentre os produtos fornecidos pelos bancos, o mais nobre, e objeto<br />

deste estudo por tal motivo, é o crédito.<br />

Não se discutirão os serviços fornecidos pelos bancos, visto que esta<br />

matéria já se encontra pacificada no Superior Tribunal de Justiça que, por<br />

diversas ocasiões, já se manifestou sobre a incidência do CDC a estes tipos<br />

contratuais (guarda de valores, administração da conta corrente, fornecimento<br />

de extratos...).<br />

Com relação ao produto crédito é que a situação se complica na<br />

doutrina e na vida forense.<br />

Considera boa parte da doutrina que o crédito concedido pelos bancos<br />

não tem como destinatário final o mutuário. Assim, por força do que contém<br />

o art. 2º da Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90, não seria este mutuário um consumidor.<br />

Temos, para nós, que o crédito é um bem juridicamente consumível.<br />

Desta forma, a caracterização do banqueiro como fornecedor de produtos e<br />

dos mutuários como consumidores fica facilitada.<br />

A concessão de crédito, em geral, implica a colocação de dinheiro à<br />

disposição do creditado para sua restituição em determinado prazo, deste<br />

fato se depreendendo a existência de duas prestações recíprocas (entrega e<br />

restituição) e de duas prestações comutativas (o prazo e o juro), elementos<br />

que são comuns a uma diversidade de negócios jurídicos que podem ser<br />

definidos como contratos de crédito, quais sejam: o mútuo, a renda vitalícia,<br />

o depósito irregular, os contratos bancários de crédito atípicos e o desconto.


496<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Falar de consumidor de crédito pressupõe enquadrá-lo no sentido<br />

anteriormente apresentado de sujeito que obtém recursos em dinheiro para<br />

sua devolução ao término de um prazo. O crédito bancário pode ser<br />

concedido de diversas formas, nas quais sempre estarão presentes a<br />

contraprestação retributiva do juro em razão da profissionalidade do<br />

fornecimento do produto e do tempo que transcorrerá até a restituição da<br />

quantia.<br />

Nesta linha de pensamento, se o crédito servir para suprir uma utilidade<br />

pessoal do consumidor, como destinatário final (seja ele pessoa física ou<br />

jurídica), é evidente que há relação de consumo.<br />

(...)<br />

Logo, o banqueiro que concede crédito é fornecedor de um produto<br />

consumível (juridicamente, com certeza) pelo mutuário, na qualidade de<br />

destinatário final, visto que ele irá utilizá-lo para suprir-lhe alguma utilidade<br />

pessoal.<br />

Mas para a definitiva caracterização de relação de consumo é necessário<br />

que o mutuário do banco apresente também a característica da vulnerabilidade.<br />

Parece-nos que o verbo mais adequado para aferir-se a vulnerabilidade<br />

do consumidor é o estar e não o ser. A vulnerabilidade, vista assim, é uma<br />

condição que deve ser pesquisada em três principais momentos: a) antes da<br />

contratação; b) durante a contratação; c) após a contratação.<br />

O mutuário de instituição financeira pode não estar vulnerável antes da<br />

contratação; logo, as normas inseridas no CDC (sobre publicidade, por<br />

exemplo) que tutelam os consumidores neste momento não incidirão.<br />

Entretanto, durante a contratação, pode tornar-se vulnerável, notadamente<br />

quando se torna um cliente cativo, sujeitando-se a um sem-número de<br />

condições abusivas impostas pelo banco.<br />

E nada impede que após a contratação com um banco o cliente torne-se<br />

vulnerável. Tal se detecta com facilidade quando uma empresa, em caso de<br />

inadimplemento contratual, seja sujeita a meios de cobrança que infrinjam o<br />

art. 42 do CDC.<br />

Ou seja, esta pessoa, que não foi tutelada pelo CDC, nem antes e nem<br />

durante a contratação, pode estar vulnerável e ser considerada consumidora<br />

pela adição deste item ao contexto obrigacional.<br />

(...)<br />

Assim, a vulnerabilidade deve ser pesquisada em cada processo das<br />

obrigações e, dependendo de sua presença ou não, se aplicará o microssistema<br />

consumerista (desde que presentes os outros requisitos que a Lei<br />

8.<strong>07</strong>8/90 exige) ou as demais normas do macrossistema positivo nacional.’


R.T.J. — <strong>199</strong> 497<br />

25. Flávia Rosseti igualmente cuidou do assunto, ao estudar os contratos de<br />

leasing indexados ao dólar americano:<br />

‘Receoso de que as instituições bancárias fossem procurar escapar do<br />

âmbito de aplicação do Código de Defesa do Consumidor (como o fizeram),<br />

o legislador, não por acaso, fez menção expressa às atividades bancárias ao<br />

definir serviço (§ 2º, do art. 3º).<br />

Nesse mister, comenta o Prof. Rizzatto Nunes que ‘foi um reforço<br />

acautelatório do legislador, que, aliás, demonstrou-se depois, era mesmo<br />

necessário. Apesar da clareza do texto legal, que coloca, com todas as letras,<br />

que os bancos prestam serviços aos consumidores, houve tentativa judicial<br />

de obter declaração em sentido oposto. Chegou-se, então ao inusitado: o<br />

Poder Judiciário teve de declarar exatamente aquilo que a lei já dizia: que os<br />

bancos prestam serviços’.<br />

A negativa dos bancos baseava-se na distinção entre operações e<br />

serviços bancários, cujo elenco é trazido pelas normas do Manual de Normas<br />

e Instruções do Banco Central (MNI).<br />

Nesse sentido, como brilhantemente expôs Newton de Lucca, ‘a<br />

intenção do raciocínio é bem evidente: se há operações, de um lado, e se há<br />

serviços, de outro, e se o Código de Defesa do Consumidor, ao aludir à<br />

atividade bancária, fê-lo tão-somente em relação a serviços, o mesmo não<br />

teria aplicação aos bancos no que se refere às operações praticadas por estes’.<br />

Segundo a posição defendida pelas instituições bancárias, o dinheiro<br />

como produto oferecido pelos bancos, em suas inúmeras operações, não<br />

poderia ser objeto de consumo, já que aquele que toma um empréstimo não<br />

seria jamais destinatário final do bem (dinheiro), excluindo-se, pois, tal<br />

situação, do âmbito do Código de Defesa do Consumidor.<br />

Ainda recorrendo-se aos ensinamentos de Newton de Lucca, temos que<br />

o dinheiro é, por disposição legal (art. 51 do CC), um bem juridicamente<br />

consumível.<br />

Como se vê, mostram-se frágeis as tentativas das instituições bancárias<br />

em verem-se excluídas do âmbito de aplicabilidade do Código de Defesa do<br />

Consumidor.’<br />

26. Ainda sobre o tema, opina Cláudia Lima Marques:<br />

‘Certo é que a expressão ‘operações bancárias’ está consagrada na<br />

legislação brasileira, mas decisivo é o seu conteúdo e o fato de não ser<br />

espécie de um gênero maior, os serviços, segundo o Código de Defesa do<br />

Consumidor. Em outras palavras, distinguir entre gênero e espécie é positivo,<br />

mas não é excludente; ao contrário, leva à inclusão da espécie no campo<br />

de aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Basta verificar que<br />

‘operações bancárias’ são, ex vi lege pelo art. 119 do CCo, as ‘operações<br />

chamadas de Banco’. No direito comunitário europeu denominam-se ‘negócios<br />

de Bancos’ (bankgeschäfte) justamente as duas modalidades de depósitos<br />

que aqui nos interessam, os depósitos em conta corrente (Girokonto) e em


498<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

conta-poupança (Sparkonto). No Brasil, ensina Abrão que se trata de um<br />

fazer do gênero dos serviços comerciais e da espécie bancária em particular:<br />

‘Colimando a realização de seu objeto, os bancos desempenham em relação<br />

a seus clientes uma série de atividades negociais, que tomam o nome técnico<br />

de operações bancárias (...) atos de comércio por natureza. Inserem-se, pois,<br />

as operações bancárias na atividade empresária, como sendo aquela<br />

economicamente organizada para a prestação de serviços’ (grifo nosso)<br />

Não é de estranhar que todos os pareceres encomendados pela Febraban<br />

e bancos tentem utilizar-se desta nomenclatura própria bancária, em verdade<br />

espécie do gênero serviço — gênero este incluído totalmente no campo de<br />

aplicação do Código de Defesa do Consumidor, exclusos os serviços<br />

trabalhistas —, para daí retirar uma inexistente distinção jurídica. A referida<br />

distinção não tem efeitos excludentes seja na doutrina bancária, seja na<br />

doutrina consumerista, seja na Lei 8.<strong>07</strong>8/90, cujo espírito é ao contrário<br />

claramente de inclusão de todos os serviços, não importando a espécie, e de<br />

inclusão de todos os serviços bancários em abstrato, se frente a um consumidor<br />

(art. 3º, § 2º, do CDC). O argumento não resiste a um exame mais detalhado e<br />

sucumbe a seu próprio formalismo conceitual, pois quem diz mais, diz menos,<br />

e se o Código de Defesa do Consumidor inclui os ‘serviços’ bancários, inclui<br />

todas as atividades, fazeres e operações típicas e atípicas bancárias, em<br />

abstrato.<br />

(...)<br />

Do exame dos elementos e do fato jurídico bancário na relação de<br />

depósito, observa-se que há relação de consumo entre os depositantes de<br />

cadernetas de poupança e os bancos ou instituições que arrecadam a poupança<br />

popular. Tanto o contrato bancário de depósito em conta corrente como o<br />

contrato bancário de depósito em conta-poupança podem ser considerados<br />

relação de consumo stricto sensu, isto porque presentes a finalidade de<br />

consumo, a garantia relacional, os sujeitos fornecedor e consumidor destinatário<br />

final dos serviços típicos bancários (operações, crédito, intermediação,<br />

organização etc.) e de produtos (dinheiro, juros), assim como o objeto de<br />

consumo, produtos e serviços jurídica e economicamente relevantes, logo<br />

importantes e ofertados constantemente na sociedade atual de consumo (e<br />

também ofertados na sociedade de produção, para profissionais).<br />

No caso das cadernetas de poupança, que alguns visualizam também<br />

como contratos de aplicação e investimento, pelas características e natureza<br />

deste contrato de adesão presume-se a vulnerabilidade do cliente (art. 4º, I,<br />

do CDC) e a conseqüente exposição às práticas comerciais definidas como<br />

desequilibradoras da relação pelo Código de Defesa do Consumidor, de<br />

forma a submeter-se a relação abstratamente como interessante para o direito<br />

do consumidor concretamente, art. 29 do CDC, considerando-se o poupador<br />

pessoa física como consumidor equiparado, segundo o sistema do Código de<br />

Defesa do Consumidor e, portanto, merecedor da tutela especial deste<br />

sistema.’


R.T.J. — <strong>199</strong> 499<br />

27. Conceito similar oferece Antônio Carlos Efing:<br />

‘Quanto ao enquadramento na conceituação de consumidor prevista<br />

no CDC, das pessoas (jurídicas e físicas) que fazem uso dos serviços<br />

bancários, não poderá existir qualquer dúvida. Vale dizer, ocorrendo uma<br />

prestação de serviços bancários, onde figurem, de um lado, na qualidade de<br />

fornecedor, um determinado banco comercial e, de outro, na qualidade de<br />

consumidor, uma pessoa qualquer, que contrate, objetivando uma destinação<br />

final, parece-nos evidente que essa relação jurídica se caracterizará<br />

como relação de consumo.’<br />

28. E mais subsídios proporciona o pensar de Antonio Janyr Dall’Agnol<br />

Junior:<br />

‘Foram as instituições financeiras bancárias, sem dúvida, a partir da<br />

vigência da Lei n. 8.<strong>07</strong>8, de 11.9.90, as que maior resistência ofereceram à<br />

idéia de que se enquadravam na figura de fornecedor, não obstante a letra do<br />

art. 3º, § 2º.<br />

De imediato, exibiram pareceres de diferentes juristas, objetivando,<br />

nos processos, com recurso ao argumento de autoridade, ainda em voga,<br />

verem as relações de crédito em geral situadas para além do âmbito de<br />

incidência do CDC.<br />

O tema, de imediato, passou à preocupação dos juristas e interessados,<br />

conforme se observa — apenas recordados os primeiros trabalhos e a título<br />

exemplificativo — de relatório apresentado pelo Prof. Newton de Lucca, em<br />

reunião ordinária do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor,<br />

em sua sede, em São Paulo, no dia 09.10.91, ou do enfrentamento seguro do<br />

assunto pelos Profs. Nelson Nery Júnior e Cláudia Lima Marques, em sede<br />

doutrinária.<br />

A tese mais veiculada, em processos judiciais, é a que pretende,<br />

lembrada lição tradicional, a distinção entre operações e serviços bancários,<br />

para concluir que apenas os últimos estariam sob a égide do CDC.<br />

A resistência, no entanto, não tinha, e não tem razão de ser. Antes de<br />

mais, em face do disposto no art. 3º do Código, que não pode ser lido<br />

ignorando-se que é parte de conjunto normativo (e, obviamente, sua inserção<br />

no corpo de regras jurídicas que compõem o CDC).<br />

O que ocorre, não raro, é a desvinculada leitura do parágrafo segundo,<br />

como se de dispositivo isolado se cuidasse.<br />

Elementarmente, parágrafos estão inseridos no corpo da regra e se<br />

regem pelo caput.<br />

Desse modo, não há como fixar-se no vocábulo ‘serviço’, solitariamente,<br />

que se encontra no parágrafo segundo, esquecendo que o termo nuclear do<br />

caput é ‘atividades’.<br />

(...)


500<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O termo, como sabido, é amplo, dele se utilizando a doutrina, com<br />

freqüência, justamente para abranger as atividades principais dos bancos,<br />

justamente as operações bancárias, que se quer inatingíveis pelo CDC:<br />

‘D’une façon générale, les banques ont rôle d’intermédiaire dans le système<br />

de paiements. Leurs ‘principales activités’ portent sur l’acceptacions des<br />

dépôts du public et l’octroi de prêts.’ (sem realce no original) — ensina<br />

Nicole L’Heureux.<br />

Depois, não fora isso, inatacáveis as considerações desenvolvidas pela<br />

doutrina, parte dela já recordada, e que, por certo, têm merecido a atenção dos<br />

que, sem partidarismo, se interessam pelo assunto.<br />

(...)<br />

Por óbvio, às instituições financeiras, precipuamente as que habitualmente<br />

se relacionam com pessoas físicas e empresas de pequeno porte,<br />

incumbe atenção às regras do CDC — mas, a rigor, que mal há nisso?<br />

Sustentará alguém que tais regras jurídicas sejam, elas mesmas, abusivas?’<br />

29. E o já longo lapso decorrido bem está a evidenciar a viabilidade da<br />

convivência harmônica entre o mercado financeiro e o Código de Defesa do<br />

Consumidor. Verifique-se que mesmo quando enumera e veda práticas consideradas<br />

abusivas, a Lei n. 8.<strong>07</strong>8/<strong>199</strong>0 ressalva os usos e costumes, a justa causa, a legítima<br />

prática comercial, os casos regulados em leis especiais.<br />

(...)”. (Fls. 1051/1060)<br />

IX<br />

Em suma, a defesa do consumidor constitui princípio constitucional, que se realiza<br />

mediante a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, mandado elaborar pela<br />

Constituição, ADCT, art. 48. Esse diploma legal, o Código de Defesa do Consumidor,<br />

não interfere com o Sistema Financeiro Nacional, art. 192 da Constituição, em termos<br />

institucionais, já que o Código limita-se a proteger e defender o consumidor, o que não<br />

implica, repete-se, interferência no Sistema Financeiro Nacional. Protegendo e<br />

defendendo o consumidor, realiza o Código o princípio constitucional. Atualmente, o<br />

Sistema Financeiro Nacional é regulado pela Lei 4.595/64, recebida pela CF/88 como<br />

lei complementar naquilo em que ela regula e disciplina o Sistema, não existindo entre<br />

aquela lei e a Lei 8.<strong>07</strong>8, de <strong>199</strong>0 — Código de Defesa do Consumidor — antinomias. O<br />

Código de Defesa do Consumidor aplica-se às atividades bancárias da mesma forma que<br />

a essas atividades são aplicáveis, sempre que couber, o Código Civil, o Código<br />

Comercial, o Código Tributário Nacional, a Consolidação das Leis Trabalhistas e tantas<br />

outras leis.<br />

X<br />

A alegação no sentido de que a norma do § 2º do art. 3º da Lei 8.<strong>07</strong>8/90 —<br />

“inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária” — seria<br />

desarrazoada, ou ofensiva ao princípio da proporcionalidade, porque estaria tratando as


R.T.J. — <strong>199</strong> 501<br />

entidades bancárias da mesma forma como trata os demais fornecedores de produtos e<br />

serviços, assim violadora de devido processo legal em termos substantivos — CF, art. 5º,<br />

LIV — não tem procedência. Desarrazoado seria se o Código de Defesa do Consumidor<br />

discriminasse em favor das entidades bancárias. Aí, sim, porque inexistente fator<br />

justificador do discrímen, teríamos norma desarrazoada, ofensiva, por isso mesmo, ao<br />

substantive due process of law, que hoje integra o Direito Constitucional positivo<br />

brasileiro (CF, art. 5º, LIV).<br />

XI<br />

Ao cabo, merece reflexão maior a questão dos juros aplicáveis às operações<br />

relativas às atividades bancárias, tendo em vista o que está disposto no § 3º do art. 192<br />

da Constituição, a estabelecer que as “as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões<br />

e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de<br />

crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano” e que o Supremo Tribunal<br />

Federal, no julgamento da ADIn 4/DF, Relator o Ministro Sydney Sanches, decidiu não<br />

ser auto-aplicável, porque dependente da lei complementar referida no caput do art.<br />

192, pelo que declarou constitucionais o parecer da Consultoria-Geral da República,<br />

aprovado pela Presidência da República e circular do Banco Central, “o primeiro<br />

considerando não auto-aplicável a norma do § 3º sobre juros reais de 12% ao ano, e a<br />

segunda determinando a observância da legislação anterior à Constituição de 1988,<br />

até o advento da lei complementar reguladora do Sistema Financeiro Nacional” (DJ de<br />

25-6-93).<br />

Assim a ementa do acórdão da mencionada ADIn 4/DF, Relator o eminente<br />

Ministro Sydney Sanches:<br />

“Ementa: — Ação direta de inconstitucionalidade. Taxa de juros reais até<br />

doze por cento ao ano (parágrafo 3º do art. 192 da Constituição Federal).<br />

Questões preliminares sobre:<br />

1º — impedimento de Ministros;<br />

2º — ilegitimidade na representação do autor (Partido Político), no processo;<br />

3º — descabimento da ação por visar à interpretação de norma constitucional<br />

e não, propriamente, à declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato<br />

normativo;<br />

4º — impossibilidade jurídica do pedido, por impugnar ato não normativo<br />

(parecer SR n. 70, de 6-10-1988, da Consultoria-Geral da República, aprovado<br />

pelo Presidente da República).<br />

Mérito: eficácia imediata, ou não, da norma do parágrafo 3º do art. 192 da<br />

Constituição Federal, sobre a taxa de juros reais (12% ao ano).<br />

Impedimento de um dos Ministros. Não impedimento de outro.<br />

Demais preliminares rejeitadas, por unanimidade.<br />

Mérito: ação julgada improcedente, por maioria de votos (declarada a<br />

constitucionalidade do ato normativo impugnado).


502<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

1. Ministro que oficiou nos autos do processo da ADI, como Procurador-<br />

Geral da República, emitindo parecer sobre medida cautelar, está impedido de<br />

participar, como membro da Corte, do julgamento final da ação.<br />

2. Ministro que participou, como membro do Poder Executivo, da discussão<br />

de questões, que levaram à elaboração do ato impugnado na ADIn, não está, só por<br />

isso, impedido de participar do julgamento.<br />

3. Havendo sido a procuração outorgada ao advogado signatário da inicial,<br />

por Partido Político, com representação no Congresso Nacional (art. 103, inc. VIII,<br />

da CF), subscrita por seu Vice-Presidente, no exercício da Presidência, e, depois,<br />

ratificada pelo Presidente, é regular a representação processual do autor.<br />

4. Improcede a alegação preliminar, no sentido de que a ação, como proposta,<br />

visaria apenas à obtenção de uma interpretação do Tribunal, sobre certa norma<br />

constitucional, se, na verdade, o que se pleiteia, na inicial, é a declaração de<br />

inconstitucionalidade de certo parecer da Consultoria-Geral da República, aprovado<br />

pelo Presidente da República e seguido de circular do Banco Central.<br />

5. Como o parecer da Consultoria-Geral da República (SR. n. 70, de 6-10-1988,<br />

DO de 7-10-1988), aprovado pelo Presidente da República, assumiu caráter<br />

normativo, por força dos artigos 22, parágrafo 2º, e 23 do Decreto n. 92.889, de 7-7-<br />

1986, e, ademais, foi seguido de circular do Banco Central, para o cumprimento da<br />

legislação anterior à Constituição de 1988 (e não do parágrafo 3º do art. 192 desta<br />

última), pode ele (o parecer normativo) sofrer impugnação, mediante ação direta de<br />

inconstitucionalidade, por se tratar de ato normativo federal (art. 102, I, a, da CF).<br />

6. Tendo a Constituição Federal, no único artigo em que trata do Sistema<br />

Financeiro Nacional (art. 192), estabelecido que este será regulado por lei complementar,<br />

com observância do que determinou no caput, nos seus incisos e parágrafos,<br />

não é de se admitir a eficácia imediata e isolada do disposto em seu parágrafo<br />

3º, sobre taxa de juros reais (12% ao ano), até porque estes não foram conceituados.<br />

Só o tratamento global do Sistema Financeiro Nacional, na futura lei complementar,<br />

com a observância de todas as normas do caput, dos incisos e parágrafos do art.<br />

192, é que permitirá a incidência da referida norma sobre juros reais e desde que<br />

estes também sejam conceituados em tal diploma.<br />

7. Em conseqüência, não são inconstitucionais os atos normativos em questão<br />

(parecer da Consultoria-Geral da República, aprovado pela Presidência da<br />

República e circular do Banco Central), o primeiro considerando não auto-aplicável<br />

a norma do parágrafo 3º sobre juros reais de 12% ao ano, e a segunda determinando<br />

a observância da legislação anterior à Constituição de 1988, até o advento<br />

da lei complementar reguladora do Sistema Financeiro Nacional.<br />

8. Ação declaratória de inconstitucionalidade julgada improcedente, por<br />

maioria de votos.”<br />

Essa questão, a dos juros reais de 12% ao ano, porque expressamente referida no<br />

art. 192, § 3º, da Constituição, por isso mesmo integrante do Sistema Financeiro<br />

Nacional, e porque considerada não de eficácia plena, ou não auto-aplicável, pelo<br />

Supremo Tribunal, na citada ADIn 4/DF, põe-se fora do alcance do Código de Defesa do<br />

Consumidor.


R.T.J. — <strong>199</strong> 503<br />

Quando do julgamento da ADIn 4/DF, fui voto vencido na companhia dos<br />

Ministros Marco Aurélio, Paulo Brossard e Néri da Silveira. Assim o voto que proferi na<br />

ocasião do citado julgamento:<br />

“Sr. Presidente, os que sustentam que a norma do § 3º do art. 192 da<br />

Constituição é meramente programática, assim o fazem, ao que apreendi, sobre<br />

dois fundamentos: a) a eficácia do § 3º do art. 192 estaria condicionada à edição<br />

da Lei Complementar referida no caput do art. 192; enquanto essa lei não vier a<br />

lume, a norma do citado § 3º do art. 192 é de eficácia limitada, declaratória de<br />

princípios programáticos; b) a locução ‘taxa de juros reais’ não teria sido definida<br />

juridicamente, o que impediria a imediata aplicação da norma limitadora dos<br />

juros.<br />

Examinemos esses argumentos.<br />

Os estudiosos de hermenêutica constitucional ensinam que as normas constitucionais<br />

que contenham vedações, proibições ou que declarem direitos são, de<br />

regra, de eficácia plena. Assim, no Brasil, contemporaneamente, a lição de José<br />

Afonso da Silva (‘Aplicabilidade das Normas Constitucionais’, Editora Revista<br />

dos Tribunais, 2. ed., 1982, p. 89), na linha, aliás, da doutrina e da jurisprudência<br />

americanas, que Ruy Barbosa expôs, admiravelmente. Em voto que proferi neste<br />

Plenário, disse eu que a regra que vem do Direito americano é esta: as normas<br />

constitucionais que veiculam declarações de direito, imunidades e vedações são,<br />

de regra, auto-executáveis. Assim a lição de Ruy:<br />

‘As proibições constitucionais e as declarações de direitos articuladas<br />

nas Constituições adicionam os arestos americanos, como dotadas, igualmente,<br />

de vigor imediato e anterior a qualquer explanação legislativa, as<br />

isenções constitucionalmente decretadas. ‘Exemptions may be regarded as<br />

prohibitions’ (16 L.R.A., 284, not.).’ Ruy Barbosa, ‘Comentários à Const.<br />

Brasileira’, coligidos por Homero Pires, 1933, II/485.<br />

Thomas M. Cooley resume a jurisprudência americana a respeito do tema:<br />

‘Pode-se dizer que uma disposição constitucional é auto-executável<br />

(self-executing), quando nos fornece uma regra, mediante a qual se possa<br />

fruir e resguardar o direito outorgado, ou executar o dever imposto, e que não<br />

é auto-aplicável, quando meramente indica princípios, sem estabelecer<br />

normas, por cujo meio se logre dar a esses princípios vigor de lei.’ (T. Cooley,<br />

‘Treatise on the Constitucional Limitations’, ap. Ruy Barbosa, ob. e loc.<br />

cits., pág. 495).<br />

Celso Antônio Bandeira de Mello, escrevendo sobre a ‘Eficácia das Normas<br />

Constitucionais sobre Justiça Social’, registrou que o critério classificador da<br />

eficácia é a consistência e amplitude dos direitos imediatamente resultantes para<br />

os indivíduos. (Celso Antônio Bandeira de Mello, ‘Eficácia das Normas Constitucionais<br />

sobre Justiça Social’, RDP, 57-58/233).


504<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O § 3º do art. 192 da Constituição, Sr. Presidente, contém, sem dúvida, uma<br />

vedação. E contém, de outro lado, um direito, ou, noutras palavras, ele confere,<br />

também, um direto, um direito aos que operam no mercado financeiro. Em trabalho<br />

doutrinário que escreveu sobre a taxa de juros do § 3º do art. 192 da Constituição,<br />

lecionou o Desembargador Régis Fernandes de Oliveira:<br />

‘Percebe-se, claramente, que a norma constitucional gerou um direito<br />

exercitável no círculo do sistema financeiro, criador de uma limitação. Está<br />

ela plenamente delimitada no corpo da norma constitucional, independentemente<br />

de qualquer lei ou norma jurídica posterior. Bem se vê que ‘as taxas de<br />

juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta<br />

ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores<br />

a doze por cento ao ano...’ Segue a redação após o ponto e vírgula estabelecendo<br />

que o descumprimento do preceito será estabelecido em lei (ordinária,<br />

porque definidora de infração penal).<br />

O desfrute de tal limitação constitucional àqueles que lidam no<br />

mercado financeiro (qualquer do povo) é imediato. A limitação aos que<br />

operam no sistema, emprestando dinheiro é imediata. Do direito de um nasce<br />

a obrigação do outro. A relação jurídica intersubjetiva que se instaura gera a<br />

perspectiva do imediato desfrute da limitação imposta’. (Régis Fernandes de<br />

Oliveira. ‘Taxa de Juros’, inédito. O autor enviou-me cópia do trabalho).<br />

Contém, já falamos, o citado § 3º do art. 192 da Constituição uma vedação:<br />

‘as taxas de juros reais, nelas incluídas das comissões e quaisquer outras remunerações<br />

direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser<br />

superiores a doze por cento ao ano’. Porque ela é uma norma proibitória ou<br />

vedatória, ela é de eficácia plena e aplicabilidade imediata, ou é ela uma norma<br />

auto-aplicável. E porque confere ela, também, um direito aos que operam no<br />

mercado financeiro, também por isso a citada norma é de eficácia plena. Não me<br />

refiro, evidentemente, à segunda parte do § 3º do art. 192, que sujeita a cobrança<br />

acima do limite a sanções penais, porque esse dispositivo não precisa ser trazido ao<br />

debate.<br />

Mas não é só por isso, Sr. Presidente, que me convenci de que o citado<br />

dispositivo constitucional é auto-aplicável.<br />

Há mais.<br />

As normas constitucionais são, de regra, auto-aplicáveis, vale dizer, são de<br />

eficácia plena e aplicabilidade imediata. Já foi o tempo em que predominava a<br />

doutrina no sentido de que seriam excepcionais as normas constitucionais que<br />

seriam, por si mesmas, executórias. Leciona José Afonso da Silva que, ‘hoje,<br />

prevalece entendimento diverso. A orientação doutrinária moderna é no sentido<br />

de reconhecer eficácia plena e aplicabilidade imediata à maioria das normas<br />

constitucionais, mesmo a grande parte daquelas de caráter sócio-ideológicas, as<br />

quais até bem recentemente não passavam de princípios programáticos. Torna-se<br />

cada vez mais concreta a outorga dos diretos e garantias sociais das constituições’.<br />

(José Afonso da Silva, ob. cit., p. 76). Nem poderia ser de outra forma. É que o<br />

legislador constituinte não depende do legislador ordinário. Este é que depende


R.T.J. — <strong>199</strong> 505<br />

daquele. Então, o que deve o intérprete fazer, diante de um texto constitucional de<br />

duvidosa auto-aplicabilidade, é verificar se lhe é possível, mediante os processos<br />

de integração, integrar a norma à ordem jurídica. Esses métodos ou processos de<br />

integração são conhecidos: a analogia, que consiste na aplicação a um caso não<br />

previsto por norma jurídica uma norma prevista para hipótese distinta, porém<br />

semelhante à hipótese não contemplada; o costume; os princípios gerais de direito<br />

e o juízo de eqüidade, que se distingue da jurisdição de eqüidade. De outro lado,<br />

pode ocorrer que uma norma constitucional se refira a instituto de conceito<br />

jurídico indeterminado. Isto tornaria inaplicável a norma constitucional? Não. É<br />

que a norma dependeria, apenas, de ‘interpretação capaz de precisar e concretizar<br />

o sentido de conceitos jurídicos indeterminados’, interpretação que daria à norma<br />

‘sentido operante, atuante’, ensina o Professor e Desembargador José Carlos Barbosa<br />

Moreira, com a sua peculiar acuidade jurídica (José Carlos Barbosa Moreira,<br />

‘Mandado de Injunção’, in Estudos Jurídicos, Rio, <strong>199</strong>1, p. 41).<br />

É o caso da ‘taxa de juros reais’ inscrita no § 3º do art. 192 da Constituição, que<br />

tem conceito jurídico indeterminado, e que, por isso mesmo, deve o juiz concretizarlhe<br />

o conceito, que isto constitui característica da função jurisdicional. Busco,<br />

novamente, a lição de J. C. Barbosa Moreira a dizer que ’todo conceito jurídico<br />

indeterminado é suscetível de concretização pelo juiz, como é o conceito de boa-fé,<br />

como é o conceito de bons costumes, como é o conceito de ordem pública e tantos<br />

outros com os quais estamos habituados a lidar em nossa tarefa cotidiana.’ (J. C.<br />

Barbosa Moreira, ob. e loc. cits.).<br />

Não seria procedente, portanto, o segundo argumento dos que entendem que<br />

o § 3º do art. 192 não é auto-aplicável: a locução ‘taxa de juros reais’ não teria sido<br />

definida juridicamente, o que impediria a imediata aplicação da norma limitadora<br />

dos juros.<br />

Celso Antônio Bandeira de Mello, no trabalho já mencionado, registra que ‘a<br />

imprecisão ou fluidez das palavras constitucionais não lhes retira a imediata<br />

aplicabilidade dentro do campo induvidoso de sua significação. Supor a necessidade<br />

de lei para delimitar este campo, implicaria outorgar à lei mais força do que à<br />

Constituição, pois deixaria sem resposta a seguinte pergunta: de onde a lei sacou<br />

a base significativa para dispor do modo em que o fez, ao regular o alcance do<br />

preceito constitucional? É puramente ideológica — e não científica — a tese que<br />

faz depender de lei a fruição dos poderes ou direitos configurados em termos algo<br />

fluidos.’ Cita, a seguir, em abono da tese, lição de Garcia de Enterria (Curso de<br />

Derecho Administrativo, Civitas, Madri, 1974, vol. I, pp. 293-294): ‘La tecnica de<br />

los conceptos juridicos indeterminados (que, no obstante su nombre, um tanto<br />

general, son conceptos de valor ou de experiencia utilizados por las Leyes) es<br />

común a todas las esferas del Derecho. Así en el Derecho Civil (buena fé, diligencia<br />

del buen padre de familia, negligencia, etc.), o en el Penal (nocturnidad, alevosia,<br />

abusos deshonestos, etc.), o en el Procesal (dividir la continuencia de la causa,<br />

conexión directa, pertinencia de los interrogatorios, medidas adecuadas para<br />

promover la ejecución, perjuicio irreparable etc.) o en Mercantil (interés social,<br />

sobrescimento general en los pagos, etc.)’ e conclui Celso Antônio Bandeira de<br />

Mello:


506<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

‘Ora bem, se em todos os ramos do Direito as normas fazem uso deste<br />

tipo de conceitos, sem que jamais fosse negado caber aos juízes fixar seu<br />

alcance nos casos concretos — o que está a demonstrar a possibilidade de<br />

sacar deles uma certa significação — por que negar que possam fazê-lo<br />

quando se trata de extrair o cumprimento da vontade constitucional? Por que<br />

imaginar necessário que o Poder Legislativo disponha sobre a matéria para,<br />

só então, considerado Poder Executivo ou terceiro obrigado a respeitá-los<br />

em matéria de liberdades públicas ou de direitos sociais?’ (Celso Antônio<br />

Bandeira de Mello, ob. e loc. cits).<br />

O Professor Eros Roberto Grau cuidou, também, do tema e anotou que ‘a<br />

linguagem jurídica, toda ela, apresenta zonas de penumbra e é, atual ou potencialmente,<br />

vaga e imprecisa’, convindo acentuar, entretanto, ‘que não há conceitos<br />

indeterminados, mas sim conceitos cujos termos são indeterminados’ e que ‘ao<br />

Poder Judiciário, em última instância, compete operar a determinação desses<br />

conceitos.’ (Direito, Conceitos e Normas Jurídicas, pp. 184/186).<br />

No que toca ao conceito de juros reais, acrescenta Eros Grau, em trabalho<br />

específico sobre a questão dos juros reais, que ‘toda a gente sabe — não é preciso<br />

ser economista para tanto — que juros reais são as quantias que ultrapassam o<br />

volume de inflação no período de sua contagem, delas descontadas incidências<br />

tributárias, as tarefas admitidas pelo Banco Central e as parcelas atribuídas a juros<br />

de mora.’ (Eros Roberto Grau, ‘As Normas Constitucionais Programáticas’, em A<br />

Luta contra a Usura, Ed. Graal, pp. 37/49).<br />

E, no rumo do que linhas atrás ficou exposto, conclui que, ‘a dar-se crédito ao<br />

entendimento de que não tem aplicação o parágrafo 3º do art. 192 da Constituição,<br />

porque inexiste definição legal de juros reais’, por idêntico motivo não teriam<br />

aplicação outros preceitos constitucionais de conceitos também imprecisos, como<br />

‘tratamento desumano ou degradante’ (art. 5º, III), ‘iminente perigo público’ (art.<br />

5º, XXV), ‘consumidor’ (art. 5º, XXXII), ‘contraditório e ampla defesa’ (art. 5º, LV).<br />

(Eros Roberto Grau, ob. e loc. cits.).<br />

Essas considerações, Sr. Presidente, parecem-me acertadas. Na verdade, a<br />

imprecisão das palavras inscritas na Constituição não lhes retira a aplicabilidade,<br />

como bem anotou o Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello, no trabalho mencionado.<br />

É que a concretização desses conceitos cabe ao juiz, é uma tarefa nossa.<br />

A formulação do conceito de juros reais ou a concretização desse conceito não<br />

oferece, ao que penso, maiores dificuldades. Juros reais diferem de juros nominais.<br />

Os juros reais constituem efetiva ou real remuneração do capital. Assim, incidem eles<br />

sobre o capital corrigido monetariamente, por isso que a doutrina e a jurisprudência<br />

já estabeleceram que a correção monetária não constitui acréscimo, sendo mera<br />

atualização do capital. Em outras palavras, os juros reais são juros deflacionados, são<br />

os juros que se calculam desprezando-se a parcela referente à correção monetária.<br />

Li, com o cuidado que se requer, e tendo em vista a responsabilidade que<br />

temos, cada um de nós, como juiz da Corte Suprema, os inúmeros pareceres que nos<br />

foram oferecidos, estando quase todos eles publicados na RDP 88 e 89. Na RDP 88<br />

estão os pareceres de Hely Lopes Meirelles, Caio Tácito, José Frederico Marques,


R.T.J. — <strong>199</strong> 5<strong>07</strong><br />

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Celso Bastos e Ives Gandra da Silva Martins<br />

(RDP 88, pp. 147 e ss.) Na RDP 89, encontram-se os pareceres de Rosah<br />

Russomano (pp. 63 e ss.), José Alfredo de Oliveira Baracho (pp. 71 e ss.) e Cid<br />

Heráclito de Queiroz (pp. 246 e ss.). A RDP 91 voltou a publicar o parecer do Prof.<br />

Caio Tácito (pp. 236 e ss.). São trabalhos jurídicos, todos eles, do melhor nível e<br />

fazem justiça à fama de que gozam esses eminentes juristas. Detive-me, especialmente,<br />

sobre o parecer do Prof. Caio Tácito, no ponto em que o eminente<br />

publicista, examinando o conceito jurídico de juros reais e sustentando que esse<br />

conceito é de difícil formulação, invoca, em apoio de sua conclusão, a lição de<br />

Irving Fischer, economista que escreveu, em 1930, obra que é considerada clássica —<br />

A Teoria do Juro, e que foi traduzida no Brasil. Escreveu o Prof. Caio Tácito: ‘Em<br />

verdade, não há, em nosso Direito Positivo, um conceito de juros reais, que<br />

somente ingressa na terminologia legal com o advento do § 3º do art. 192 da nova<br />

Constituição. Irving Fischer, em obra clássica de 1930 (na qual desenvolveu a<br />

teoria do juro expressa no início do século), vulgarizou a distinção entre o juro<br />

monetário e o juro real: ‘Se o padrão monetário fosse sempre estável em relação aos<br />

bens, a taxa de juro, calculada em termos do dinheiro, seria a mesma como se<br />

calculada em termos de bens. Quando, porém, o dinheiro e os bens mudam em<br />

relação um ao outro — em outras palavras, quando o padrão monetário valoriza ou<br />

desvaloriza em termos de bens — os números que expressam as duas taxas de juro,<br />

uma calculada em termos de dinheiro e outra calculada em termos de bens, serão<br />

um tanto diferentes. Além do mais, a primeira, ou a taxa monetária, a única cotada<br />

no mercado, será influenciada pela valorização ou desvalorização.’ (Caio Tácito,<br />

parecer, ‘O Art. 192 da Constituição Federal e seu parágrafo 3º’, RDP 88/151).<br />

A complexidade do conceito dos juros reais estaria, está-se ver, na instabilidade<br />

do padrão monetário. O Prof. Caio Tácito, aliás, registra que a advertência de Fischer<br />

‘antecipa o reconhecimento da correção monetária como um processo de atualização<br />

do poder aquisitivo da moeda aviltada pelo efeito da inflação.’ (ob. e loc. cits.). Ora,<br />

certo é que, na quadra atual, temos o mecanismo da correção monetária, que atualiza<br />

a moeda, correção aceita tanto pelo Governo quanto pelos entes privados, comerciantes,<br />

empresários e por todos os que lidam no mercado financeiro. Sendo assim, e<br />

porque afirmamos que juro real é o juro nominal deflacionado, perderia sentido o<br />

fator que emprestaria complexidade à formulação do conceito de juro real.<br />

Em Ciência Econômica, registra o Juiz Sérgio Gischkow Pereira, forte em<br />

Antônio Carlos Marques de Matos (A Inflação Brasileira, Vozes, 1987, p. 74), ‘os<br />

vocábulos ‘valor nominal’ e ‘valor real’ são assim definidos: valor nominal é o valor<br />

tal e qual se apresenta; o valor real é o nominal deflacionado (se houver inflação), ou<br />

inflacionado (se houver deflação).’ E acrescenta o Juiz Ginschkow, alicerçado no<br />

magistério de Paul Singer (Curso de Introdução à Economia Política, Forense, 11.<br />

ed., 1987, pp. 105/1<strong>07</strong>): ‘Dentro desta visão, a taxa de juros reais não é apenas<br />

constituída pelo juro puro ou básico, compreendido como remuneração pela renúncia<br />

à liquidez, mas abrange o elemento de risco e os custos da transação ou remuneração<br />

do intermediário.’ (A Luta contra a Usura, citada, p. 64).<br />

Parece-me, Sr. Presidente, que somos fiéis à Constituição quando afirmamos<br />

que a taxa de juros reais, segundo está no § 3º do art. 192, é mesmo o juro nominal<br />

deflacionado; ou é o juro que se obtém a partir do capital corrigido monetariamente.


508<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Esse juro nominal deflacionado remunerará o capital e os custos permitidos,<br />

incluindo-se, evidentemente, os tributos que têm como contribuinte de direito o<br />

emprestador do dinheiro. Os tributos de que o tomador do empréstimo for o<br />

contribuinte de jure não estariam contidos no conceito de juros reais.<br />

Ontem, Sr. Presidente, no discurso que fiz, nesta Corte, em memória do<br />

Ministro Adalício Nogueira, ressaltei a importância do método sociológico ou do<br />

elemento político-social na interpretação, de que Holmes, Benjamin Cardozo e<br />

Roscoe Pound foram grandes expositores, os dois primeiros na Corte Suprema<br />

americana e o terceiro na doutrina, especialmente na Filosofia do Direito.<br />

Vale, Sr. Presidente, a invocação do elemento político-social na interpretação<br />

do § 3º do art. 192 da Constituição. O eminente advogado do autor da ação direta<br />

expôs da tribuna elementos políticos, sociológicos, que nós, juízes, sabemos que<br />

existem e que não podem ficar ao largo da questão quando o Supremo Tribunal,<br />

Corte Constitucional, profere um julgamento que tem muito de político, político,<br />

evidentemente, no exato sentido da palavra, no sentido grego do vocábulo.<br />

Nós sabemos, Sr. Presidente, que as taxas de juros que estão sendo praticadas,<br />

hoje, no Brasil, são taxas que nenhum empresário é capaz de suportar. Nós sabemos<br />

que o fenômeno que se denomina, pitorescamente, de ‘ciranda financeira’, é que é<br />

a tônica, hoje, do mercado financeiro, engordando os lucros dos que emprestam<br />

dinheiro e empobrecendo a força do trabalho e do capital produtivo.<br />

Tudo isso eu devo considerar e considero, Sr. Presidente, quando sou chamado,<br />

como juiz da Corte Constitucional, a dizer o que é a Constituição. Também esses<br />

elementos, Sr. Presidente, levam-me, interpretando o § 3º do art. 192 da Constituição<br />

de 1988, a emprestar-lhe aplicabilidade imediata, eficácia plena.<br />

Com essas considerações, peço vênia ao eminente Ministro Sydney Sanches,<br />

cujas opiniões temos o costume de respeitar, para divergir, aqui, de S. Exa. E,<br />

divergindo, declaro a inconstitucionalidade do ato normativo objeto da ação.<br />

Julgo, portanto, procedente a ação direta.”<br />

XII<br />

Fui voto vencido no citado julgamento. Não posso, entretanto, arrostar o decidido<br />

pela Corte Suprema. Por isso, ponho-me de acordo com o que propõe o Procurador-Geral<br />

da República:<br />

“(...)<br />

30. Entretanto, o pedido enunciado de fato permite, e a solução do problema<br />

demanda, uma interpretação conforme à Constituição da expressão impugnada<br />

do art. 3º, § 2º, da Lei n. 8.<strong>07</strong>8, de 11 de setembro de <strong>199</strong>0, de modo que reduza sua<br />

eficácia possível — consoante suscitado no parecer conjunto do Exmº Sr. Ministro<br />

da Justiça e do eminente Procurador-Geral do Banco Central. É que a preservação<br />

da integralidade da norma em debate não pode servir para, como se queixa a<br />

requerente, encorajar decisões judiciais que, a pretexto de aplicar os princípios<br />

norteadores do Código de Defesa do Consumidor, terminem por invadir a esfera de<br />

incidência da lei complementar destinada a regular o sistema financeiro nacional.


R.T.J. — <strong>199</strong> 509<br />

31. Isso ocorre quando, provocado a dirimir conflito de interesses originado de<br />

relação de consumo, o Poder Judiciário ultrapassa os estritos limites da proteção do<br />

consumidor, interferindo diretamente em instrumentos da política monetária<br />

nacional, como a oferta de crédito e a estipulação das taxas de juros — a cargo do<br />

Conselho Monetário Nacional e do Banco Central do Brasil, por força das<br />

disposições da Lei da Reforma Bancária, Lei n. 4.595, de 31 de dezembro de 1964,<br />

em pleno vigor, a teor da conclusão do julgamento da ADIn n. 4/DF (Min. Sydney<br />

Sanches, DJ de 25.6.<strong>199</strong>3) e do disposto, sucessivamente, nas Leis n. 7.770, de 31 de<br />

maio de 1989; n. 7.892, de 24 de novembro de 1989; n. 8.127, de 20 de dezembro de<br />

<strong>199</strong>0; n. 8.201, de 29 de junho de <strong>199</strong>1; e n. 8.392, de 30 de dezembro de <strong>199</strong>1.<br />

Convém assinalar, nesse contexto, que incumbe aos Bancos Centrais, ou órgãos<br />

equivalentes, em todo o mundo, exercer atribuições análogas às do Banco Central do<br />

Brasil, nesse campo, mesmo em países como os Estados Unidos da América, com<br />

longa tradição de defesa do consumidor, mediante ações de inúmeras organizações<br />

não governamentais perante a Justiça, cabendo, no caso, ao ‘Federal Reserve<br />

Board’ tal responsabilidade.<br />

Ante o exposto, opino seja julgada procedente, em parte, a ação, para<br />

declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução do texto, da expressão<br />

‘inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária’, inscrita no<br />

art. 3º, § 2º, da Lei n. 8.<strong>07</strong>8, de 11 de setembro de <strong>199</strong>0 — Código de Defesa do<br />

Consumidor —, para, mediante interpretação conforme à Constituição, tal como<br />

preconizado pelo Ministro de Estado da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, e pelo<br />

Procurador-Geral do Banco Central do Brasil, Carlos Eduardo da Silva<br />

Monteiro, afastar a exegese que inclua naquela norma do Código de Defesa do<br />

Consumidor ‘o custo das operações ativas e a remuneração das operações passivas<br />

praticadas por instituições financeiras no desempenho da intermediação de<br />

dinheiro na economia, de modo a preservar a competência constitucional da lei<br />

complementar do Sistema Financeiro Nacional’ (fls. 1039/1040), incumbência<br />

atribuída ao Conselho Monetário Nacional e ao Banco Central do Brasil, nos<br />

termos dos arts. 164, § 2º, e 192, da Constituição da República.’<br />

(...)”. (Fls. 1060/1061)<br />

Empresto, de conseguinte, à norma inscrita no § 2º do art. 3º da Lei 8.<strong>07</strong>8/90 —<br />

“inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária” — interpretação<br />

conforme à Constituição, para dela afastar a exegese que nela inclua a taxa dos<br />

juros das operações bancárias, ou sua fixação em 12% ao ano, dado que essa questão diz<br />

respeito ao Sistema Financeiro Nacional — CF, art. 192, § 3º — tendo o Supremo<br />

Tribunal Federal, no julgamento da ADIn 4/DF, decidido que o citado § 3º do art. 192 da<br />

Constituição Federal não é auto-aplicável, devendo ser observada a legislação anterior<br />

à CF/88, até o advento da lei complementar referida no caput do mencionado art. 192 da<br />

Constituição Federal.<br />

XIII<br />

Nesses termos, julgo procedente, em parte, a ação direta de inconstitucionalidade.


510<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

VOTO (Antecipação)<br />

O Sr. Ministro Néri da Silveira: Sr. Presidente. Meu voto acompanha integralmente<br />

a linha do voto do Sr. Ministro Relator.<br />

Entendo, entretanto, dispensável a interpretação conforme. Há dois planos<br />

distintos. É interditada a aplicação do Código do Consumidor em se tratando daquelas<br />

matérias concernentes ao art. 192 da Constituição, para as quais a Lei Maior previu a<br />

edição de lei complementar. São aquelas matérias que respeitam à estrutura do sistema<br />

financeiro e ao funcionamento das instituições financeiras. São normas que a própria<br />

Constituição estipula ficarem sujeitas à regulação de lei complementar.<br />

O Tribunal, por maioria — fui voto vencido —, decidiu que a regra do § 3º do art.<br />

192 da Constituição se compreende no Sistema Financeiro Nacional, tanto que só será<br />

aplicável após a edição de uma lei única — pela leitura do voto predominante. Data<br />

venia, não vejo, no particular, por que haja de ser uma lei complementar única para<br />

regular o sistema financeiro.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim: Sr. Ministro Néri da Silveira, V. Exa. referiu um<br />

assunto que tem sido reiterativo. Várias vezes tenho ouvido, inclusive está no relatório,<br />

que o Tribunal teria decidido que essa lei complementar do Sistema Financeiro teria de<br />

ser uma lei única.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: É uma passagem do voto do Ministro Sydney<br />

Sanches, que dá a entender isso.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim: Repete-se isso como se fosse algo assente.<br />

O Sr. Ministro Néri da Silveira: Estou apenas registrando que não vejo razão para<br />

destacar a questão dos juros, pois o Tribunal afirmou que, no ponto, depende de lei<br />

complementar. Se, portanto, o Tribunal, por maioria, decidiu que a matéria relativa a<br />

taxas de juros reais é atinente ao Sistema Financeiro e, pois, sujeita à edição de lei<br />

complementar, sem a qual não é invocável o § 3º do art. 192 da Lei Magna, já se<br />

compreenderia essa espécie no todo, na estrutura do voto do eminente Ministro Relator.<br />

S. Exa. concluiu que podem conviver os dois sistemas e estou de inteiro acordo com essa<br />

ilação.<br />

Se, simplesmente, o Tribunal vier a julgar improcedente a ação, nessa linha do<br />

voto do eminente Ministro Relator, estabelece-se precisamente a distinção. O Código<br />

do Consumidor só não pode disciplinar aquelas matérias que estão explicitamente<br />

definidas nos diferentes incisos do art. 192 e parágrafos da Constituição, eis que, à sua<br />

disciplina, cumpre editar lei complementar. Apenas essas questões não podem ser objeto<br />

de disciplina no Código de Defesa do Consumidor.<br />

O Sr. Ministro Moreira Alves: Vossa Excelência, Ministro, está na mesma linha<br />

que sustentava, ou seja, tudo aquilo que é disciplinável com base no art. 192 não pode<br />

ser objeto do Código do Consumidor, porque se exige lei complementar. Então, é<br />

melhor deixar assim do que se limitar à taxa de juros de doze por cento.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): O Código do Consumidor, ao contrário,<br />

é um instrumental para a observância da lei complementar.


R.T.J. — <strong>199</strong> 511<br />

O Sr. Ministro Moreira Alves: Daqui a pouco vão interpretar que alguns desses<br />

itens do art. 192 poderão dar margem...<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Mas o Código do Consumidor não cuida<br />

de nenhum desses recursos, ao contrário, porque se cuidasse...<br />

O Sr. Ministro Moreira Alves: O Código do Consumidor não cuida, porém diz: as<br />

atividades em geral. Está no art. 3.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Problema de fila, banheiro para<br />

consumidor, uma série de coisas que o consumidor deve exigir...<br />

O Sr. Ministro Moreira Alves: Não é possível o Banco Central exigir que os<br />

banheiros tenham...<br />

O Sr. Ministro Néri da Silveira: Se surgir um caso concreto, o Tribunal decidirá.<br />

O Sr. Ministro Moreira Alves: Há limite de doze por cento, também está errado.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Propaganda enganosa.<br />

O Sr. Ministro Moreira Alves: Parece-me que a única coisa em que eles não podem<br />

interferir é isso. Por essa razão estava sugerindo afastar tudo aquilo que fosse<br />

disciplinável pelo art. 192.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Ministro Carlos Velloso, não lhe parece<br />

que o Código do Consumidor é um instrumental para a eficácia dos diplomas de<br />

regência, quanto à relação com o consumidor? É simples instrumental.<br />

O Sr. Ministro Moreira Alves: Mas não é fundamental, por acaso?<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): O Código do Consumidor é observado<br />

a partir das leis de regência das matérias. Temos a lei complementar, no que dispuser até<br />

fora das balizas do artigo 192 da Carta, sobre algo que diga respeito à relação correntista/<br />

banco etc.<br />

O Sr. Ministro Moreira Alves: O que na realidade ocorre é que se estabeleceu de<br />

modo genérico que há atividades bancárias. É preciso restringir isso e dizer que não são<br />

todas.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): O Ministro Néri da Silveira vai concluir<br />

o voto.<br />

O Sr. Ministro Néri da Silveira: Meu voto, pura e simplesmente, julga improcedente<br />

a Ação Direta de Inconstitucionalidade, de tal maneira que o Código do Consumidor<br />

continuará a ser aplicado, assim como vem sucedendo. Se surgir qualquer questão que<br />

possa implicar conflito do Código do Consumidor, na sua aplicação, com o regime do<br />

Sistema Financeiro, com um dos pressupostos de sua estrutura e funcionamento do<br />

sistema, assim como previsto no art. 192 da Lei Maior, isso haverá de ser resolvido<br />

especificamente. Por exemplo, a questão afirmada pelo Ministro Moreira Alves, quanto ao<br />

horário, se isso seria uma matéria do Sistema Financeiro ou não; o Código do Consumidor<br />

não está regulando essa espécie. Então, evidentemente, se surgir controvérsia a esse<br />

respeito, o Tribunal dirá se ela concerne ou não ao plano em foco.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Para isso é preciso lei complementar?


512<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Presidente): Jornada de trabalho dos bancários...<br />

O Sr. Ministro Moreira Alves: Isso não é horário de trabalho, mas horário de<br />

abertura, e para consumidor, não é para trabalho.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Concebo que isso tem tanta influência na<br />

política monetária que continuaria decidindo, como é da nossa jurisprudência, por<br />

exemplo, no conflito, mesmo por delegação do Banco Central verso município, por<br />

causa das influências.<br />

O Sr. Ministro Moreira Alves: Ministro, veja V. Exa., por exemplo, que ninguém<br />

vem sustentar o problema de conflito entre Código Civil e Código do Consumidor. O<br />

problema é que aqui se fala genericamente em atividades bancárias e financeiras. Então,<br />

é preciso delimitar atividade bancária e finaceira com relação a consumidor, e o que não<br />

é. Alguém, por acaso, vai discutir, aqui, se o Código Civil e o Código do Consumidor<br />

não podem ter choque? Lei posterior revoga lei anterior, obviamente, até porque normas<br />

de defesa de consumidor não são apenas aquelas que se encontram no Código do<br />

Consumidor, senão nem lei extravagante poderia modificá-lo; viraria absoluta cláusula<br />

pétrea.<br />

O Sr. Ministro Néri da Silveira: Julgo improcedente a ação direta de inconstitucionalidade.<br />

Não dou interpretação conforme para julgá-la procedente em parte.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

ADI 2.591/DF — Relator: Ministro Carlos Velloso. Requerente: Confederação<br />

Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF (Advogados: Ives Gandra S. Martins e<br />

outros). Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional.<br />

Decisão: Após o voto do Ministro Carlos Velloso, Relator, emprestando ao § 2º do<br />

artigo 3º da Lei 8.<strong>07</strong>8, de 11 de setembro de <strong>199</strong>0, interpretação conforme a Carta da<br />

República, para excluir da incidência a taxa dos juros reais nas operações bancárias, ou<br />

a sua fixação em 12% (doze por cento) ao ano, e do voto do Ministro Néri da Silveira,<br />

julgando improcedente o pedido formulado na inicial, solicitou vista o Ministro Nelson<br />

Jobim. Falaram, pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF, o<br />

Professor Ives Gandra da Silva Martins e, pela Advocacia-Geral da União, o Dr. Walter<br />

do Carmo Barletta. Presidência do Ministro Marco Aurélio.<br />

Presidência do Ministro Marco Aurélio. Presentes à sessão os Ministros Moreira<br />

Alves, Néri da Silveira, Sydney Sanches, Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos<br />

Velloso, Ilmar Galvão, Maurício Corrêa, Nelson Jobim e Ellen Gracie. Procurador-Geral<br />

da República, Dr. Geraldo Brindeiro.<br />

Brasília, 17 de abril de 2002 — Luiz Tomimatsu, Coordenador.<br />

PROPOSTA<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Senhores Ministros, antes de proferir<br />

voto, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, admitido como amicus curiae<br />

pelo Ministro Carlos Velloso, ingressa com uma petição que diz, em linhas gerais:<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 513<br />

“(...)<br />

Considerando-se a superveniência da aposentadoria do eminente Ministro<br />

Relator Carlos Velloso, há que se reconhecer a impossibilidade de realização do<br />

julgamento da ADI em epígrafe até que novo Ministro seja investido no cargo.<br />

(...)”<br />

E aqui vem a fundamentação; basicamente, ele pretende a retirada da ação sob o<br />

comento da pauta de julgamento até que novo Ministro assuma as suas funções.<br />

Submeto ao Plenário o requerimento e, desde logo, pronuncio-me pelo seu indeferimento,<br />

uma vez que o Ministro Carlos Velloso esgotou seu voto. Portanto, não há<br />

necessidade de aguardar a designação do novo Ministro que o sucederá, pois este não<br />

poderá nem mesmo reconsiderar o voto do Ministro Relator.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim:<br />

I - Parte expositiva<br />

1. A ação direta<br />

A Confederação Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF pretende a declaração de<br />

inconstitucionalidade da expressão:<br />

“inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária” (art.<br />

3º, § 2º, da Lei 8.<strong>07</strong>8/90 1 ).<br />

Alega afronta:<br />

(a) ao art. 192, caput, II e IV, da CF, na redação original 2 ;<br />

1 Lei 8.<strong>07</strong>8, de 11 de setembro de <strong>199</strong>0:<br />

Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem<br />

como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação,<br />

construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou<br />

prestação de serviços.<br />

(...)<br />

§ 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração,<br />

inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações<br />

de caráter trabalhista.<br />

2 CF/88:<br />

Art. 192. O Sistema Financeiro Nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento<br />

equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que<br />

disporá, inclusive, sobre:<br />

(...)<br />

II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, resseguro, previdência e<br />

capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador. (Redação dada pela Emenda Constitucional n.<br />

13, de <strong>199</strong>6)<br />

(...)<br />

IV - a organização, o funcionamento e as atribuições do Banco Central e demais instituições<br />

financeiras públicas e privadas;


514<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

(b) ao princípio do devido processo legal em sentido substancial (CF, art. 5º,<br />

LIV 3 ).<br />

(Exigência de lei complementar)<br />

Alega, ainda, que a disciplina do Sistema Financeiro Nacional (SFN) somente<br />

pode ser objeto lei complementar (ADC 4, Sydney Sanches, DJ de 25-6-<strong>199</strong>3 4 ).<br />

(Distinção entre consumidor e cliente)<br />

Sustenta, mais, que a CF teria feito diferença entre consumidor e cliente de<br />

instituição financeira.<br />

A CF teria dado tratamento normativo diverso para as duas searas:<br />

(a) O Direito ao Consumidor, no Capítulo I do Título VII — art. 170, V.<br />

(b) O SFN, no Capítulo IV do mesmo Título — art. 192.<br />

Está na inicial:<br />

“(...)<br />

39. É de se ressaltar, por exemplo, que as instituições financeiras não<br />

trabalham com dinheiro próprio, mas de terceiros. A pretensão de aplicar-lhes<br />

regras de consumo — que não se amoldam às peculiaridades das operações<br />

bancárias — pode atingir, de rigor, os correntistas e aplicadores que ofertam<br />

recursos ao sistema para serem repassados, mediante guarda ou aplicação, em vez<br />

de mantê-los guardados em casa ou no cofre das empresas. (...) Por esta razão é que<br />

só o órgão encarregado de controlar o sistema financeiro, que é o Banco Central,<br />

pode cuidar da fiscalização nessa matéria, que está disciplinada no art. 192 da<br />

3 CF/88:<br />

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros<br />

e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança<br />

e à propriedade, nos termos seguintes:<br />

(...)<br />

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;<br />

4 Inicial, p. 12:<br />

“(...)<br />

31. Ora, se, conforme reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, as matérias<br />

pertinentes ao Sistema Financeiro Nacional, abrangente das atividades bancárias, financeiras, de<br />

crédito e de seguros, hão de ser disciplinadas por lei complementar a teor do art. 192 da Constituição<br />

da República, e se, de acordo com o entendimento do mesmo Tribunal, a Lei n. 4.595/64 foi<br />

recepcionada com esse status, - resta evidente que o § 2º do art. 3º da Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90, ao pretender<br />

equiparar todas as atividades de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária a relações de<br />

consumo para o fim de regulá-las, padece de inconstitucionalidade por invadir área reservada, à lei<br />

complementar, sendo insusceptível de derrogar a lei recepcionada, que desfruta desse status.<br />

(...)”


R.T.J. — <strong>199</strong> 515<br />

Constituição Federal, em consonância com o art. 164 da Constituição Federal, e,<br />

não, no art. 170 da Constituição Federal.<br />

(...)” (Inicial — pp. 9/10)<br />

(Princípio da proporcionalidade)<br />

Suscita, por fim, a lesão ao princípio da proporcionalidade (princípio do devido<br />

processo legal em sentido substancial).<br />

Argumenta que dois setores de natureza e atividades tão diferentes não poderiam<br />

estar vinculados às mesmas regras de funcionamento e ao mesmo regime jurídico.<br />

Soma-se a isso o fato de existir uma estrutura normativa e financeira própria para o<br />

setor bancário dos quais são exemplos o Banco Central (Bacen), o Conselho<br />

Monetário Nacional (CMN) e a Lei 4.595/64 5 ).<br />

2. O parecer da PGR<br />

A PGR pede a declaração parcial de inconstitucionalidade, sem redução de texto,<br />

para, mediante interpretação conforme:<br />

“(...)<br />

(...) afastar a exegese que inclua naquela norma do Código de Defesa do<br />

Consumidor ‘o custo das operações ativas e a remuneração das operações<br />

passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho de intermediação<br />

de dinheiro na economia, de modo a preservar a competência constitucional da lei<br />

complementar do Sistema Financeiro Nacional’ (...)<br />

(...)”<br />

3. O voto do Relator — Carlos Velloso<br />

Velloso, Relator, faz considerações acerca do princípio constitucional de defesa<br />

do consumidor.<br />

Para Velloso o conflito entre a lei complementar do SFN e o CDC é meramente<br />

aparente.<br />

5 Inicial, p. 13:<br />

“(...)<br />

48. Ora, a regulação pela Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90, conferindo o trato legal a tais atividades da mesma<br />

maneira que às demais atividades econômicas, que não ostentam as mesmas peculiaridades, não se<br />

mostra razoável, quer em face dessa sistemática constitucional, quer sob o aspecto material das<br />

operações celebradas no âmbito do sistema financeiro, violando o princípio do devido processo legal<br />

substantivo (art. 5º, LIV, da Constituição Federal).<br />

(...)<br />

50. No presente caso, para além de já existir regulamentação pertinente à defesa dos direitos dos<br />

usuários das instituições financeiras, expedida pelos órgãos de controle contemplados nos atos<br />

legislativos com eficácia de lei complementar, o que afasta o requisito da necessidade, a inadequação se<br />

revela quer por ser incabível procedê-la por meio da legislação ordinária, como é o caso da Lei n.<br />

8.<strong>07</strong>8/90, quer por haver referida lei submetido temas tão distintos a disciplina idêntica.<br />

(...)”


516<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O âmbito de aplicação do CDC é diverso e não interfere na estrutura institucional<br />

do SFN.<br />

Com isso, seria permitida coexistência entre a lei complementar reguladora do<br />

setor financeiro e o CDC a sujeitar instituições bancárias, de crédito e de seguros.<br />

Velloso conclui:<br />

“(...)<br />

IX - (...), o Código de Defesa do Consumidor não interfere com o Sistema<br />

Financeiro Nacional, (...), em termos institucionais, já que o Código limita-se a<br />

proteger e defender o consumidor, o que não implica, repete-se, interferência no<br />

Sistema Financeiro Nacional. Protegendo e defendendo o consumidor, realiza o<br />

Código o princípio constitucional. Atualmente, o Sistema Financeiro Nacional é<br />

regulado pela Lei 4.595/64, recebida pela CF/88 como lei complementar naquilo<br />

em que ela regula e disciplina o Sistema, não existindo entre aquela lei e a Lei<br />

8.<strong>07</strong>8, de <strong>199</strong>0 — Código de Defesa do Consumidor — antinomias. O Código de<br />

Defesa do Consumidor aplica-se às atividades bancárias da mesma forma que a<br />

essas atividades são aplicáveis, sempre que couber, o Código Civil, o Código<br />

Comercial, o Código Tributário Nacional, a Consolidação das Leis Trabalhistas e<br />

tantas outras leis.<br />

(...)” (Voto — p. 30)<br />

Para Velloso, entretanto, a questão referente aos juros aplicáveis às operações<br />

bancárias é matéria que se coloca fora do alcance do CDC.<br />

Acompanha, nesse ponto, a jurisprudência do <strong>STF</strong> (ADI 4, Sydney Sanches, DJ de<br />

25-6-<strong>199</strong>3).<br />

Adota o parecer da PGR:<br />

“(...)<br />

Empresto, de conseguinte, à norma inscrita no § 2º do art. 3º da Lei 8.<strong>07</strong>8/90 —<br />

‘inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária’ —<br />

interpretação conforme à Constituição, para dela afastar a exegese que nela<br />

inclua a taxa dos juros das operações bancárias, ou sua fixação em 12% ao ano,<br />

dado que essa questão diz respeito ao Sistema Financeiro Nacional — C.F. art.<br />

192, § 3º — tendo o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4-DF,<br />

decidido que o citado § 3º do art. 192, da Constituição Federal, não é autoaplicável,<br />

devendo ser observada a legislação anterior à C.F./88, até o advento da<br />

lei complementar referida no caput do mencionado art. 192, da Constituição<br />

Federal.<br />

(...)” (Voto — p. 47)<br />

Além de Velloso, votou Néri da Silveira.<br />

Este julga improcedente a ação.<br />

Néri considera que eventuais conflitos entre os dois regimes deverão ser<br />

resolvidos caso a caso.<br />

Ou seja, Néri não enfrentou o tema.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 517<br />

4. A posição do STJ e de outros tribunais<br />

Em 9-9-2004, o STJ editou a Súmula 297 com esta redação:<br />

“O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.”<br />

A Súmula é resultado do entendimento do STJ em cinco julgamentos, que<br />

reproduziu em outros 6 .<br />

O caso mais abrangente é o REsp 106.888 7 .<br />

A decisão final foi no sentido de reconhecer a relação de consumo em todas as<br />

atividades bancárias.<br />

Eis os argumentos:<br />

(a) os titulares de cadernetas de poupança, muito embora não paguem diretamente,<br />

remuneram indiretamente os bancos por meio do uso que estes fazem do<br />

dinheiro dos poupadores;<br />

(b) o § 2º do art. 3º do CDC expressamente prevê que são considerados<br />

serviços para os fins do Código os de natureza bancária, financeira e creditícia;<br />

(c) afastar a aplicação do CDC a esse tipo de relação significaria deixar<br />

desamparado, jurídico e judicialmente, todos os clientes e usuários bancários;<br />

(d) a aplicação do CDC às cadernetas de poupança significaria dotar do<br />

poupador de instrumentos de proteção de uma aplicação financeira de “cunho<br />

nitidamente social”;<br />

(e) a não aplicação do CDC às relações tipicamente bancárias poderia resultar<br />

na possibilidade de excessos e na fixação de cláusulas abusivas nos contratos<br />

de adesão elaborados pelos bancos;<br />

O STJ, portanto, concluiu no sentido de que têm natureza bancária todas as<br />

relações que envolvam a caderneta de poupança e as “tipicamente bancárias” como<br />

“(...)<br />

concessão de crédito, em suas diversas formas:<br />

mútuos em geral, financiamentos rural, comercial, industrial ou para<br />

exportação,<br />

contratos de câmbio,<br />

6 REsp 57.974, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 29-5-<strong>199</strong>5; REsp 106.888, Rel. Min. César<br />

Asfor Rocha, DJ de 5-8-2002; REsp 175.795, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ de 10-5-<strong>199</strong>9; REsp<br />

298.369, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 25-8-2003; e REsp 387.805, Rel. Min.<br />

Nancy Andrighi, DJ de 9-9-2002; REsp 160.861, Rel. Min. Costa Leite, DJ de 3-8-<strong>199</strong>8; REsp<br />

163.616, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 3-8-<strong>199</strong>8; REsp 47.146, Rel. Min. Ruy Rosado, DJ<br />

de 6-2-<strong>199</strong>5; etc.<br />

7 O Min. Cesar Asfor Rocha, Relator do REsp, bem expôs o objeto da questão decidida pela 2ª Seção:<br />

“Impende, contudo, estabelecer se o Código de Defesa do Consumidor incide sobre todas as<br />

relações e contratos pactuados entre as instituições financeiras e seus clientes, como os depósitos em<br />

caderneta de poupança, de que aqui se trata, ou se apenas na parte relativa à expedição de talonários,<br />

fornecimento de extratos, cobrança de contas, guarda de bens e outros serviços afins.” (p. 3 do voto)


518<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

empréstimos para capital de giro,<br />

abertura de crédito em conta corrente e<br />

abertura de crédito fixo, ou quaisquer outras modalidades do gênero.<br />

(...)”<br />

II - Voto<br />

1. Preliminar de prejudicialidade da ação direta<br />

Examino questão prejudicial.<br />

A inicial indica o art. 5º, LIV, e o art. 192, incisos II e IV.<br />

O art. 192 disciplinava amplamente o regime do SFN.<br />

Descia a minúcias.<br />

Indicava os temas a serem tratados por lei complementar e determinava a fixação<br />

do valor máximo de juros reais anuais (incisos e § 2º do art. 192).<br />

Quanto ao § 2º, o Supremo fixou que a norma constitucional não era autoaplicável<br />

e dependia de regulamentação (ADI 4).<br />

Em maio de 2003, a EC 40 alterou o art. 192.<br />

Reduziu-o para apenas um dispositivo:<br />

Art. 192. O Sistema Financeiro Nacional, estruturado de forma a promover o<br />

desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em<br />

todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será<br />

regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do<br />

capital estrangeiro nas instituições que o integram.<br />

A questão, portanto, é saber se a revogação dos incisos prejudica a ação.<br />

Analiso.<br />

Discutem-se os limites de aplicação do CDC e a existência, ou não, de fronteiras<br />

entre relação de consumo e SFN.<br />

De um lado, está o campo que a CF indicou como princípio a ser garantido pelo Estado:<br />

— a defesa do consumidor (art. 5º, inciso XXXII 8 ; e art. 170, V 9 ).<br />

8 CF/88:<br />

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos<br />

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à<br />

igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:<br />

(...)<br />

XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;<br />

9 CF/88:<br />

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem<br />

por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os<br />

seguintes princípios:<br />

(...)<br />

V - defesa do consumidor;


R.T.J. — <strong>199</strong> 519<br />

Do outro, o SFN tem destaque no texto da CF, além de ser setor fundamental para<br />

a estabilidade da moeda e fortalecimento da economia.<br />

O problema, portanto, não se limita às estritas fronteiras do texto constitucional.<br />

O regime jurídico aplicado aos bancos e ao SFN é tema demasiadamente sensível<br />

do ponto de vista econômico, político e social para ficar restrito a uma previsão<br />

constitucional de tom mais analítico.<br />

Está a tratar de um tema fundamental, do ponto de vista institucional.<br />

A revogação de grande parte do corpo do art. 192 demonstra que se trata de assunto<br />

de grande envergadura político-institucional.<br />

Dos rigores e imutabilidade das normas constitucionais poderiam vir a prejudicar<br />

a regulamentação de um setor que, por conceito, é dinâmico e em constante evolução.<br />

Em outras palavras, independente do enxugamento do art. 192, o problema dos<br />

limites de aplicação do CDC ao setor bancário se impõe.<br />

Tudo porque se está diante de dois valores constitucionais:<br />

— proteção do consumidor e<br />

— fortalecimento da economia, com desenvolvimento.<br />

A interconexão de ambos os campos precisa ser definida.<br />

Além disso, o art. 192, após a EC 40/2003, conservou a competência da lei<br />

complementar para regular o SFN.<br />

Isso quer dizer que, do ponto de vista do processo legislativo, remanesce a<br />

impugnação de que lei ordinária não poderia regular atividade dos bancos por se tratar<br />

de tema de competência da norma complementar.<br />

Além do mais, a ação direta detém “causa de pedir aberta”.<br />

Isso significa que, em regra, a impugnação de lei não se faz com base apenas no<br />

dispositivo constitucional apontado na inicial.<br />

Ao contrário, a declaração de constitucionalidade, decorrente da improcedência<br />

de uma ADI, assegura a constitucionalidade da lei.<br />

Esse é o entendimento do Supremo 10 .<br />

No caso, a constitucionalidade da aplicação do CDC ao setor bancário deverá ser<br />

analisada com base em toda a Constituição, independente da norma constitucional<br />

levantada como desobedecida.<br />

10 RE 357.576, Moreira Alves, DJ de 14-3-2003;<br />

ADI 1.749, Jobim, DJ de 15-4-2005;<br />

ADI 1.756, Moreira Alves, DJ de 6-1-<strong>199</strong>8;<br />

ADI 1.606-MC, Moreira Alves, DJ de 31-10-<strong>199</strong>7;<br />

ADI 2.009, Moreira Alves, DJ de 9-5-2003.


520<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Não se aplica ao caso a jurisprudência, também consolidada, pela qual a revogação<br />

ou a alteração substancial da norma constitucional prejudica a ação 11 .<br />

É que, nesses casos, o tema versado diz respeito única e exclusivamente a<br />

determinado trecho ou dispositivo constitucional (por exemplo, regime do servidor<br />

público).<br />

Essa relação unívoca inviabiliza a análise da ação direta em face de outras normas<br />

ou princípios constitucionais que, em relação ao ato questionado, seriam simplesmente<br />

impertinentes.<br />

Em suma, quanto a essa preliminar, entendo que a ação deve prosseguir e ser<br />

conhecida porque:<br />

(a) a nova versão do art. 192 ainda conservou a competência legislativa da lei<br />

complementar para tratar do SFN;<br />

(b) a ação direta tem “causa petendi” aberta e, assim, a análise de constitucionalidade<br />

se faz com base em todo o ordenamento constitucional.<br />

2. Mérito — Aspecto jurídico<br />

O problema da aplicação do CDC ao setor bancário permite abordagens sob<br />

diversas dimensões.<br />

Tratarei da questão a partir do enfoque jurídico e do enfoque econômico.<br />

2.1. O consumo e a poupança<br />

Ponto fundamental para a solução do problema da aplicação do CDC aos bancos é<br />

a conceituação de consumo e sua diferenciação do conceito de poupança.<br />

Tais idéias são comumente tratadas como equivalentes quando analisadas relações<br />

entre pessoas e bancos.<br />

No entanto, existem diferenças entre as duas que inviabiliza o tratamento sob o<br />

mesmo regime jurídico.<br />

Consumo aplica-se a aquisição ou utilização de coisas ou serviços para a satisfação<br />

de um interesse pessoal ou de uma necessidade.<br />

Subjacente à idéia de consumo está a noção de uso de coisa.<br />

Todo o consumo importa necessariamente em extinção, desaparecimento, deterioração,<br />

depreciação ou transformação de coisa ou serviço pelo seu simples uso, mediato<br />

ou imediato, de modo a atender a alguma necessidade.<br />

É o que acontece, em maior ou menor grau, com bens não-duráveis, como cigarro,<br />

comida, entretenimento, etc; ou duráveis, como vestuário e automóveis desde que<br />

sejam finais, acabados e adquiridos por consumo final.<br />

Já poupança nos remete a outra noção.<br />

Passa-se para a idéia de acumulação de capital, de excedente de recursos.<br />

11 Por exemplo: ADI 909, Jobim, DJ de 6-6-2003; ADI 1.674, Sydney Sanches, DJ de 6-6-2003.


R.T.J. — <strong>199</strong> 521<br />

Trata-se daquela sobra, financeiramente auferível, que remanesce após a satisfação,<br />

por meio do consumo, das necessidades.<br />

Nesse sentido, poupar e consumir são idéias de exclusão recíproca.<br />

Poupar significa, por isso, renúncia ao consumo presente, como forma de acumular<br />

recursos para um consumo futuro, certo ou incerto.<br />

2.2. Consumidor, poupador e mutuário<br />

Em decorrência, os conceitos de consumidor e de poupador são distintos.<br />

O conceito de consumidor está, é óbvio, associado à idéia de consumo.<br />

Por isso, quer significar aquele que adquire ou utiliza coisa, transformando-a ou<br />

destruindo-a, com o fim de atender interesse próprio.<br />

Por ser elemento essencial na configuração da relação de consumo — ao lado do<br />

conceito de fornecedor 12 —, o próprio Código conceitua consumidor (art. 2º).<br />

Caracteriza o consumidor como qualquer<br />

“pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário<br />

final” 13 .<br />

Logo, o consumidor é aquele que remunera o serviço ou compra o bem que será<br />

consumido, por isso destinatário final.<br />

Ampliando a dimensão de análise, o consumidor participa da economia por meio<br />

de atividade retributiva:<br />

— pagamento diretamente vinculado e proporcional ao serviço que a ele será<br />

prestado ou ao bem por ele adquirido, como destinatário final.<br />

O poupador é aquele que, por escolha pessoal, não consome, mas conserva<br />

recurso, aplicando ou entesourando.<br />

Na sociedade capitalista, a figura do poupador está intimamente ligada à figura do<br />

próprio banco.<br />

Isso porque o poupador conserva seu capital por meio de depósitos nos bancos.<br />

O dinheiro, entregue em depósito aos bancos, pelos poupadores, acaba por ser<br />

utilizado para outros fins, especialmente para o empréstimo.<br />

Dessa forma, o poupador, em realidade, empresta a moeda e por esse “produto”<br />

recebe uma remuneração da instituição financeira.<br />

12 Lei 8.<strong>07</strong>8/90 (CDC):<br />

Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem<br />

como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação,<br />

construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou<br />

prestação de serviços.<br />

13 Lei 8.<strong>07</strong>8/90 (CDC):<br />

Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como<br />

destinatário final.


522<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O empréstimo rende juros aos bancos.<br />

Parcela desses juros é utilizada para remunerar o poupador.<br />

O poupador não paga ou remunera um produto ou serviço, como o faz o consumidor.<br />

O poupador é remunerado por meio de juros pela moeda que entregou.<br />

O consumidor se desfaz de moeda para satisfação de interesse particular.<br />

Já o poupador recebe mais moeda pela entrega de capital — nada paga, não<br />

remunera.<br />

É remunerado.<br />

Leio na doutrina:<br />

“(...)<br />

(...) sustentar que existe relação de consumo na atividade de depósito de<br />

cadernetas de poupança parece fugir à lógica do razoável, à medida que não se<br />

poderia fugir da inelutável ilação de que estaria o banco recebendo duas<br />

remunerações, uma pela captação (...) e outra pelo repasse, quando, em verdade, a<br />

remuneração é única e decorre do pagamento dos juros e demais encargos do<br />

mútuo diretamente pelo tomador do empréstimo (o mutuário). O aplicador de<br />

poupança não paga nada ao banco, nem direta, nem indiretamente. Não cabe falar<br />

em remuneração indireta se não há o pagamento pela via indireta.<br />

(...)” 14<br />

Da mesma forma que o consumidor não se confunde com poupador, também não<br />

há identidade entre consumidor e mutuário.<br />

O mutuário é aquele que está do outro lado da intermediação financeira dos<br />

bancos.<br />

São eles que pagam os juros aos bancos, que, por sua vez, remunerará os poupadores.<br />

O mutuário não se confunde com consumidor porque não é destinatário final de<br />

um produto.<br />

O colecionador de moedas, por exemplo, não é um mutuário.<br />

Ele adquire a moeda como mercadoria e, por isso, como destinatário final.<br />

Os bancos concedem o crédito de forma a permitir que o mutuário possa estabelecer<br />

relações de consumo com terceiros (construtoras, incorporadoras, proprietários de imóveis,<br />

etc.).<br />

14 ZANELLATO, Marco Antonio. “Oposição entre poupança e consumo. Inaplicabilidade do Código<br />

de Defesa do Consumidor”. In: Revista de direito bancário e do mercado de capitais. Ano 2, n. 4. São<br />

Paulo: Revista dos Tribunais, jan./abr. de <strong>199</strong>9, p. 246.


R.T.J. — <strong>199</strong> 523<br />

Leio Galeno Lacerda:<br />

“(...)<br />

Se, no contrato de depósito bancário, o banco-depositário é devedor, e o<br />

cliente-depositante é credor, claro está que nele não se pode entrever uma relação de<br />

consumo, na qual, como é notório, o cliente-consumidor figura como devedor, e o<br />

fornecedor do bem de consumo, como credor. Aliás, aberraria do bom senso a<br />

solução oposta, já que consumo e depósito são, por definição, antônimos. Repelemse<br />

por natureza e essência. Consumir o depósito tipifica, até, crime de depositário<br />

infiel. E consumir ‘serviço’ de depósito violenta, sem dúvida, o senso comum.<br />

(...)” 15<br />

Na verdade, a relação que se estabelece entre poupador e banco e entre banco e<br />

mutuário perfaz algumas etapas do ciclo do dinheiro ou da moeda que cumpre sua<br />

função com a simples circulação.<br />

Não há ligação entre as operações bancárias e a idéia de consumo.<br />

Leio Paulo Brossard:<br />

“(...)<br />

(...) entre o consumidor assim definido por lei, e o cliente de um banco,<br />

enquanto tal, não há identidade, nem semelhança, da mesma forma que entre o<br />

consumo e o contrato bancário. Operações bancárias ou operações de crédito não<br />

dizem respeito ao consumo; ao contrário, envolvem aplicação de reservas<br />

poupadas, exatamente do que sobejou por não ter sido utilizado no consumo, ou<br />

seja, na satisfação de necessidades.<br />

(...)” 16<br />

O mutuário e poupador integram etapas do processo econômico.<br />

Variações de seus comportamentos — de procura de crédito ou de nível de<br />

recursos poupados — terão impacto imediato na circulação da moeda, na disponibilidade<br />

de recursos, na capacidade de investimento e, portanto, no próprio funcionamento da<br />

economia.<br />

Já a relação de consumo claramente diz respeito a uma posição subjetiva<br />

individual ou individualizável.<br />

Diz com uma relação que se exaure, em termos de proteção, à garantia do exercício<br />

da liberdade de escolha e da igualdade contratual.<br />

A diferença não é meramente terminológica.<br />

15 Ação civil pública e contrato de depósito em caderneta de poupança — impossibilidade do uso<br />

daquela via nessa matéria. O contrato de depósito é estranho às relações de consumo. Limites à<br />

legitimação do Ministério Público na ação civil pública. Os interesses difusos ou coletivos não<br />

abrangem os interesses ou direitos individuais homogêneos. In: Revista dos Tribunais. São Paulo:<br />

Revista dos Tribunais, ano 84, vol. 715, maio de <strong>199</strong>5, p. 109.<br />

16 Defesa do consumidor — atividade do Ministério Público — incursão em operações bancárias e<br />

quebra de sigilo — impossibilidade de interferência. In: Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos<br />

Tribunais, ano 84, vol. 718, agosto de <strong>199</strong>5, p. 90.


524<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

A relação de consumo se apresenta sob enfoque tipicamente subjetivo, de<br />

proteção do consumidor, uma vez que a sua situação subjetiva se repete inúmeras vezes.<br />

Sua proteção, segundo as bases do direito constitucional brasileiro, se faz em<br />

termos de direitos fundamentais.<br />

A relação que o consumidor estabelece com um agente econômico mais poderoso,<br />

em uma relação economicamente desigual, exige a maior proteção do Estado à parte<br />

hipossuficiente.<br />

Já as relações concernentes ao ciclo da moeda têm natureza objetiva.<br />

Dizem respeito, não só à relação do poupador ou do mutuário, tomados<br />

individualmente, mas aos reflexos dos comportamentos econômicos desses milhares de<br />

agentes na própria economia.<br />

O fundamento principal da regulamentação dessas relações é o próprio controle<br />

das bases da economia, assim como a fiscalização do nível de investimento realizado.<br />

Assim sendo, todos os cidadãos são invariavelmente envolvidos, porque são<br />

diretamente influenciados pela forma como se dará a regulação do setor financeiro.<br />

Por esse motivo, o regime jurídico de proteção do consumidor é diferente do<br />

regime do poupador e do mutuário.<br />

3. A proteção do consumidor e a proteção do poupador e do mutuário<br />

3.1. Diferenças dos regimes jurídicos<br />

A diferença na composição e no funcionamento do sistema de proteção do<br />

consumidor e de proteção do poupador e do mutuário não é meramente legal.<br />

Tal distinção não advém de uma escolha política realizada pelo legislador.<br />

Na verdade, a diferença de perspectiva segue uma lógica que vem das premissas de<br />

proteção de cada um dos sistemas.<br />

Como já mencionado, a proteção das relações de consumo advém de uma necessidade<br />

de garantia de um conjunto de direitos do indivíduo, historicamente conquistado.<br />

As relações de consumo, tal como as relações de trabalho, apresentam-se como<br />

relações juridicamente igualitárias, a respeitar o conceito da igualdade formal, típica do<br />

Estado Liberal.<br />

Entretanto, são claramente relações de desníveis econômicos, políticos e sociais.<br />

Tais desníveis produzem condições para que a parte mais poderosa da relação possa<br />

exercer, abusivamente ou em excessos, sua autonomia contratual, sua liberdade negocial.<br />

As relações de consumo exigem, portanto, atuação específica do Poder Público<br />

que passa, obrigatoriamente, por uma legislação protetiva.<br />

Essa perspectiva é evidente da leitura de alguns incisos do art. 4º do CDC, ao<br />

estabelecer a Política Nacional de Relações de Consumo 17 .<br />

.<br />

17 Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das<br />

necessidades dos consumidores, o REspeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus<br />

interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das<br />

relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:


R.T.J. — <strong>199</strong> 525<br />

Não é difícil perceber que o consumidor, por não ter o poder econômico do<br />

fornecedor ou do produtor, tem sua liberdade negocial diminuída.<br />

Na prática, é obrigado a se sujeitar às condições contratuais impostas pela parte<br />

mais forte.<br />

Muitas vezes, é levado a se submeter a constrangimentos e práticas abusivas por<br />

parte do estabelecimento comercial, não tendo condições de exigir, na relação individual,<br />

por exemplo:<br />

(a) alteração da embalagem do produto por falta de informações claras;<br />

(b) alteração de cláusula por se tratar de contrato-padrão;<br />

(c) instituição de departamento de atendimento ao consumidor na qual possa<br />

fazer reclamações e acompanhar as providências.<br />

O CDC arrola, nesse sentido, uma extensa listagem de práticas (art. 39 18 ) e de<br />

cláusulas contratuais abusivas (art. 51 19 ).<br />

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;<br />

(...)<br />

IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres,<br />

com vistas à melhoria do mercado de consumo;<br />

18 Lei 8.<strong>07</strong>8/90 (CDC):<br />

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:<br />

I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou<br />

serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;<br />

II - recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades<br />

de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes;<br />

III - enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer<br />

qualquer serviço;<br />

IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde,<br />

conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;<br />

V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;<br />

VI - executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do<br />

consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anteriores entre as partes;<br />

VII - repassar informação depreciativa, referente a ato praticado pelo consumidor no exercício de<br />

seus direitos;<br />

VIII - colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as<br />

normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela<br />

Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de<br />

Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro);<br />

IX - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquirilos<br />

mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais;<br />

X - elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços;<br />

XI - (Dispositivo incluído pela MPV n. 1.890-67, de 22-10-<strong>199</strong>9, transformado em inciso XIII,<br />

quando da converão na Lei n. 9.870, de 23-11-<strong>199</strong>9);<br />

XII - deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixar a fixação de seu<br />

termo inicial a seu exclusivo critério;<br />

XIII - aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratualmente estabelecido.<br />

19 Lei 8.<strong>07</strong>8/90 (CDC):<br />

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento<br />

de produtos e serviços que:


526<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O direito fundamental de proteção ao consumidor procura compensar essas desigualdades<br />

fáticas.<br />

Visa estabelecer maiores restrições a essa autonomia contratual do fornecedor ou<br />

do produtor, restrições essas que o consumidor não teria como fixá-las na relação<br />

concreta.<br />

O direito do consumidor tem origem histórico-filosófica, de proteção a direitos<br />

fundamentais com preocupação direta com a própria figura do consumidor.<br />

Já a proteção do poupador e do mutuário não toma por base a intenção de<br />

equiparar uma relação faticamente desigual.<br />

Na verdade, a perspectiva é outra já que as condições de funcionamento do SFN<br />

dependem de regulação do Poder Público.<br />

A preocupação é com toda a população.<br />

Busca-se a estabilidade econômica, a consolidação do sistema bancário, a redução<br />

do custo do dinheiro e a facilitação das condições de empréstimo e investimento, enfim,<br />

o desenvolvimento.<br />

I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a REsponsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer<br />

natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de<br />

consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em<br />

situações justificáveis;<br />

II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste<br />

código;<br />

III - transfiram REsponsabilidades a terceiros;<br />

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em<br />

desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;<br />

V - (Vetado);<br />

VI - estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;<br />

VII - determinem a utilização compulsória de arbitragem;<br />

VIII - imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor;<br />

IX - deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor;<br />

X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;<br />

XI - autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja<br />

conferido ao consumidor;<br />

XII - obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual<br />

direito lhe seja conferido contra o fornecedor;<br />

XIII - autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato,<br />

após sua celebração;<br />

XIV - infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais;<br />

XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;<br />

XVI - possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias.


R.T.J. — <strong>199</strong> 527<br />

As figuras do poupador e do mutuário não são protegidas enquanto indivíduos na<br />

perspectiva histórica, mas enquanto peças fundamentais para o funcionamento da<br />

economia.<br />

No consumo, a proteção do consumidor se encerra nele mesmo.<br />

No setor financeiro, a proteção do poupador e do mutuário integra a proteção da<br />

política econômica, que tem repercussões em toda a população.<br />

Assim, no direito do consumo, os órgãos de proteção atuam como procuradores<br />

e defensores do direito difuso, coletivo ou individual homogêneo de todos os consumidores.<br />

O CDC cria um sistema de proteção nesse sentido.<br />

Prevê a participação de diversos órgãos públicos e entidades privadas.<br />

Cria instrumentos políticos e jurídicos para a concretização de uma política do<br />

consumo 20 .<br />

O chamado Sistema Nacional de Defesa do Consumidor – SNDC é integrado pelo:<br />

1. Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor – DPDC, vinculado<br />

à Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, que é órgão de<br />

coordenação da política de consumo; e<br />

2. os Procons estaduais (em número de 27) e municipais, com competência<br />

para garantir os direitos dos consumidores por meio de providências, inclusive<br />

judiciais, para planejar, coordenar e executar a política de proteção local.<br />

Além desses órgãos previstos no CDC e no Decreto 2.181/97, é de se lembrar as<br />

Delegacias do Consumidor (Decons), a atuação do Ministério Público e a participação<br />

de várias ONGs 21 .<br />

A filosofia própria de fiscalização e proteção do SFN exigiu a montagem de uma<br />

estrutura completamente diversa e segue princípios diferentes de controle.<br />

Nessa seara, o objetivo é a proteção da população brasileira por meio de uma<br />

política de acompanhamento e controle da economia.<br />

20 Lei 8.<strong>07</strong>8/90 (CDC):<br />

Art. 105. Integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), os órgãos federais,<br />

estaduais, do Distrito Federal e municipais e as entidades privadas de defesa do consumidor.<br />

21 Lei 8.<strong>07</strong>8/90 (CDC):<br />

Art. 5º Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o poder público com<br />

os seguintes instrumentos, entre outros:<br />

I - manutenção de assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidor carente;<br />

II - instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do Ministério Público;


528<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O interesse pessoal do poupador e do mutuário se inclui nessa perspectiva, o que<br />

se percebe a partir da legislação protetiva do chamado “cliente bancário” (Resolução<br />

2.878, de 26-7-2001).<br />

Assim, a proteção do SFN, ou, em outras palavras, a proteção da economia e da<br />

própria política monetária, se faz por meio dos órgãos e entidades públicas criadas<br />

especificamente para o fim de regular a atividade financeira e estabelecer os fundamentos<br />

da própria economia:<br />

1. o Banco Central – Bacen e<br />

2. o Conselho Monetário Nacional – CMN.<br />

O CMN é o órgão deliberativo mais importante do SFN e sua competência está<br />

estabelecida em lei (Lei 4.595/64, art. 4º).<br />

Dentre outras:<br />

1. desenvolver a política regulatória com o fim de zelar pela liquidez e pela<br />

solvência das instituições financeiras;<br />

2. regular a constituição, funcionamento e fiscalização das entidades pertencentes<br />

ao Sistema; e<br />

3. orientar a aplicação de recursos das entidades financeiras para viabilizar<br />

desenvolvimento e crescimento da economia nacional 22 .<br />

Já o Bacen é o órgão executor da política monetária e da política de regulação do<br />

SFN (Lei 4.595/64, art. 10).<br />

Na lógica desse sistema, as decisões da CMN, bem como suas disposições<br />

normativas, são implementadas pelo Bacen.<br />

Este edita resoluções tendo por base<br />

1. o resguardo da solvência bancária;<br />

III - criação de delegacias de polícia especializadas no atendimento de consumidores vítimas de<br />

infrações penais de consumo;<br />

IV - criação de Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas Especializadas para a solução de<br />

litígios de consumo;<br />

V - concessão de estímulos à criação e desenvolvimento das Associações de Defesa do Consumidor.<br />

22 Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964:<br />

Art. 3º A política do Conselho Monetário Nacional objetivará:<br />

I - Adaptar o volume dos meios de pagamento às reais necessidades da economia nacional e seu<br />

processo de desenvolvimento;<br />

(...)<br />

IV - Orientar a aplicação dos recursos das instituições financeiras, quer públicas, quer privadas;<br />

tendo em vista propiciar, nas diferentes regiões do País, condições favoráveis ao desenvolvimento<br />

harmônico da economia nacional;<br />

V - Propiciar o aperfeiçoamento das instituições e dos instrumentos financeiros, com vistas à maior<br />

eficiência do sistema de pagamentos e de mobilização de recursos;


R.T.J. — <strong>199</strong> 529<br />

2. a proteção contra a vulnerabilidade, assegurando liquidez e impedindo<br />

“corridas bancária”;<br />

3. a redução das falhas informacionais e da própria instabilidade estrutural<br />

do setor.<br />

Está em Lopes e Rossetti:<br />

“(...)<br />

Em síntese, dado esse elenco de atribuições, o Bacen pode ser considerado<br />

como:<br />

Banco dos bancos, à medida que recebe, com exclusividade, os<br />

depósitos compulsórios dos bancos comerciais, fornece empréstimos de<br />

liquidez e redescontos para atender às necessidades imediatas das instituições<br />

financeiras e regulamenta o funcionamento dos serviços de compensação de<br />

cheque e outros papéis.<br />

Superintendente do sistema financeiro nacional, à medida que adapta<br />

seu desenvolvimento e os fundos e programas especiais por ele administrados<br />

às reais necessidades e transformações verificadas na economia do<br />

país, baixando normas, fiscalizando e controlando as atividades das instituições<br />

financeiras, concedendo autorização para seu funcionamento e decretando<br />

intervenções ou liquidação extrajudicial dessas instituições.<br />

Executor da política monetária, à medida que regula a expansão dos<br />

meios de pagamento, elaborando o orçamento monetário e utilizando os<br />

instrumentos de política monetária (administração das taxas dos recolhimentos<br />

compulsórios, dos redescontos de liquidez e das operações de compra<br />

e venda de títulos públicos no mercado aberto).<br />

Banco emissor, à medida que detém o monopólio de emissão do<br />

papel-moeda e da moeda metálica e executa os serviços de saneamento do<br />

meio circulante.<br />

Banqueiro do governo, à medida que financia o Tesouro Nacional,<br />

mediante a colocação de títulos públicos, administra a dívida pública interna<br />

e externa, é depositário e administrador das reservas internacionais do país e<br />

executa as operações ligadas a organismos financeiros internacionais.<br />

(...)” 23<br />

VI - Zelar pela liquidez e solvência das instituições financeiras;<br />

Art. 4º Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo Presidente da<br />

República:<br />

(...)<br />

VII - Coordenar a política de que trata o art. 3º desta Lei com a de investimentos do Governo Federal;<br />

VIII - Regular a constituição, funcionamento e fiscalização dos que exercerem atividades<br />

subordinadas a esta lei, bem como a aplicação das penalidades previstas;<br />

23 Economia monetária. 9. ed. São Paulo: Atlas, <strong>199</strong>9. p. 446.


530<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

De forma direta, tais questões relacionam-se com o nível de recursos poupados, o<br />

que representa a solvência e liquidez do sistema.<br />

Tem relação, também, com o nível de recursos tomados, o que representa o nível<br />

de investimentos a serem realizados, o custo do empréstimo e, portanto, o nível de<br />

crescimento da economia.<br />

É evidente que a relação do mutuário com o banco e do poupador com o banco,<br />

por serem indiretamente instrumentos de política monetária, não se resume aos<br />

interesses individuais envolvidos:<br />

— o interesse do mutuário em reduzir os juros que foram contratados e dos bancos<br />

em cobrar aqueles juros.<br />

3.2. A defesa do cliente bancário<br />

Os pressupostos de defesa do consumidor, de um lado, e do poupador e do<br />

mutuário, de outro, são tão diferentes nos regimes jurídicos a eles aplicados, que existe<br />

uma espécie de Código de Defesa do Cliente Bancário como forma de garantir os<br />

direitos desses indivíduos.<br />

Trata-se da Resolução Bacen n. 2.878, de 26-<strong>07</strong>-2001.<br />

Essa Resolução define deveres das instituições bancárias, tais como (art. 1º e<br />

incisos):<br />

1. transparências nas relações contratuais, garantindo prévio e integral conhecimento<br />

das cláusulas com destaque das que prevêem responsabilidade e<br />

penalidades;<br />

2. respostas tempestivas às consultas, reclamações e pedidos de informações<br />

dos clientes de maneira a sanar com brevidade e eficiência os problemas e as<br />

dúvidas informadas;<br />

3. clareza no formato dos contratos;<br />

4. entrega ao cliente de cópias dos documentos assinados, bem como de<br />

recibo de valores pagos;<br />

5. efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais causados aos<br />

seus clientes;<br />

6. obrigação das instituições de informar com clareza, por meio de afixação<br />

de avisos em suas dependências, as situações que poderão justificar recusas<br />

de cheques, boletos, fichas de compensação ou mesmo hipótese de não aceitação<br />

de pagamentos em geral (art. 2º), bem como número telefônico da Central de<br />

Atendimento ao Cliente do próprio banco e do número telefônico do Bacen para<br />

reclamações;<br />

7. obrigação das instituições de evidenciar aos clientes condições contratuais<br />

(responsabilidade na emissão de cheque, inscrição do Cadastro de Emitentes de<br />

cheques sem fundo; penalidades; tarifas; procedimento de encerramento de conta;<br />

multas, etc.) (art. 3º e incisos);<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 531<br />

8. vedação de publicidade enganosa ou abusiva (art. 5º);<br />

9. dever de assegurar ao cliente a possibilidade de liquidação antecipada<br />

de débitos, parcial ou integralmente, com redução proporcional dos juros<br />

(art. 7º);<br />

10. dever de utilizar, em contratos e em avisos, terminologia clara e de fácil<br />

entendimento (art. 8º);<br />

11. atendimento prioritário a idosos, gestantes, lactantes, portadores de<br />

deficiência, pessoas com mobilidade reduzida, bem como a garantia de fácil<br />

acesso às agências e circulação interna adequada a todos os clientes (art. 9º e<br />

incisos);<br />

12. proibição de estabelecer maiores exigências para idosos e portadores de<br />

deficiência física ou visual em virtude dessa condição do que as exigências<br />

fixadas para os demais clientes (arts. 11 e 12);<br />

13. proibição de medidas administrativas internas que possam significar<br />

restrições de acesso amplo às dependências públicas da instituição (art. 14);<br />

14. em saques de conta de depósito à vista do cliente, é proibido à instituição<br />

estabelecer prazo para postergar a conclusão da operação para o expediente<br />

seguinte (art. 16);<br />

15. proibição de venda casada (art. 17);<br />

16. proibição de:<br />

a) transferência de recursos de conta de depósito à vista ou conta de<br />

poupança para qualquer investimento, ou a realização de qualquer operação,<br />

sem a prévia anuência do cliente;<br />

b) prevalecer-se, em razão de idade, saúde, conhecimento, condição<br />

social ou econômica do cliente ou do usuário, para impor-lhe contrato,<br />

cláusula contratual, operação ou prestação de serviço;<br />

c) elevar, sem justa causa, valor de tarifas, taxas, comissões ou qualquer<br />

contra-prestação de serviços;<br />

d) aplicar fórmula ou índice de reajuste que não seja o previsto em<br />

lei;<br />

e) deixar de estipular prazo para o cumprimento de seu próprio dever<br />

ou deixar essa fixação a seu unilateral critério;<br />

f) rescindir, suspender ou cancelar contrato, operação ou serviço,<br />

ou executar garantia fora das hipóteses legais ou contratualmente<br />

previstas; e<br />

g) expor o cliente a constrangimento ou ameaça na cobrança de<br />

dívidas.<br />

Algumas dessas proteções dizem respeito ao funcionamento da instituição e da<br />

prestação de serviços ao usuário, aqui consumidor.<br />

.


532<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Outras, protegem diretamente o cliente (poupador ou mutuário) na relação<br />

subjetiva que estabelece com o banco.<br />

De qualquer forma, o cliente bancário está protegido por uma normatividade que<br />

regula diretamente a relação do cidadão com o banco, dentro do regime jurídico próprio<br />

e dos princípios que norteiam essa atividade.<br />

Não existe, sob esse aspecto, diferenças de amparo do Poder Público na proteção<br />

do consumidor e do poupador e do mutuário.<br />

São situações garantidas sob diversos pressupostos:<br />

1. o do consumo, sob o pressuposto da compensação de uma relação desigual;<br />

2. o dos recursos financeiros, sob o pressuposto da garantia da liquidez e<br />

solidez do sistema financeiro-monetário, a estabilidade monetária e o desenvolvimento<br />

do país.<br />

4. Relação entre poupador ou mutuário e política econômica<br />

4.1. Os bancos e sua função no SFN<br />

Os bancos estão ligados à superação do antigo estágio de escambo.<br />

Tal superação se dá por ser o banco um elo entre agentes econômicos deficitários 24<br />

e agentes econômicos superavitários 25 .<br />

Historicamente, portanto, os bancos nasceram de um processo lento de aproximação<br />

desses dois tipos de agentes.<br />

Permitiram que os recursos que sobrassem dos superavitários fossem utilizados<br />

pelos agentes deficitários.<br />

Essa é a intermediação financeira — atividade típica dos bancos.<br />

A sua importância é a circulação monetária.<br />

Ela possibilita que a poupança se transforme em investimento.<br />

Facilita a produção de bens e serviços por meio do abastecimento de recursos aos<br />

produtores e aos fabricantes.<br />

Com isso, tornam-se viáveis o crescimento e o desenvolvimento econômico.<br />

Leio Lopes e Rossetti:<br />

“(...)<br />

Na realidade, os intermediários financeiros só têm razão de ser quando se<br />

encontram agentes que desejam gastar mais do que seus rendimentos correntes,<br />

concomitantemente com outros que possuem rendimentos em excesso, relativa-<br />

24 Pessoas que precisam de investimentos ou recursos já que os que gastam são em maior valor do que<br />

a renda correntemente recebida.<br />

25 A soma das despesas e investimentos é menor do que a renda auferida.


R.T.J. — <strong>199</strong> 533<br />

mente às suas intenções de gasto, predispondo-se a trocar seus ativos monetários<br />

por ativos financeiros não monetários. Assim, os intermediários financeiros colocam-se<br />

entre os possíveis mutuários, que acusam déficits orçamentários, e os<br />

possíveis mutuantes, que acusam superávits, dispondo-se os primeiros a arcar com<br />

os custos financeiros de sua opção por um dispêndio superior a seus rendimentos<br />

correntes, e os segundos a assumir os riscos inerentes à transformação de seus<br />

ativos monetários, líquidos por excelência, em ativos financeiros menos líquidos,<br />

mas rentáveis em termos reais.<br />

(...)” 26<br />

Diversas são as vantagens dessa atividade de intermediação:<br />

1. Dispensa o contato direto entre agentes.<br />

É extremamente improvável, salvo em situações fáticas muito especiais, que<br />

os agentes deficitários aceitem tomar empréstimos nas mesmas condições que<br />

agentes superavitários se disponham a concedê-los.<br />

A intermediação financeira diminui incertezas, cria padrões de condutas nos<br />

empréstimos, desenvolve uma classe profissional que estabiliza essa atividade já<br />

que a desenvolve em escala, o que a permite criar condições de empréstimos muito<br />

mais viáveis e regras mais adequadas 27 .<br />

2. Minimiza os custos e os riscos no sistema socioeconômico.<br />

Uma operação financeira tem seu custo calculado não apenas com base nos<br />

elementos internos do contrato ou nos riscos da intenção ou situação do tomador.<br />

Esse cálculo também leva em conta contingências não dependentes dos<br />

agentes — desastres naturais, crise econômica geral, infortúnios, etc.<br />

A intermediação financeira reduz esses custos já que o aparecimento de uma<br />

classe profissional diversifica a atividade aumenta as regiões abrangidas, o que<br />

força a redução do custo relativo da operação.<br />

3. Facilita o encontro de capital disponível.<br />

Com a intermediação financeira, o agente deficitário tem condições mais<br />

adequadas de encontrar excedentes no momento de sua necessidade.<br />

4. Aumenta o acesso ao mercado financeiro.<br />

A intermediação possibilita, com mais facilidade e rapidez, que grandes<br />

montantes de excedentes monetários se transformem em ativos financeiros e<br />

permite que pequenas poupanças sejam utilizadas em investimentos.<br />

Do outro lado, a possibilidade de tomada de grandes empréstimos viabiliza<br />

investimentos e a possibilidade da tomada de empréstimos diminutos permite o<br />

aumento do consumo de bens, móveis e imóveis, e serviços.<br />

26 LOPES & ROSSETTI. Economia monetária. São Paulo: Atlas. p. 408.<br />

27 STANFORD, Jon. Papel dos intermediários financeiros. In: Moeda, bancos e atividades<br />

econômicas. São Paulo: Atlas. 1976. p. 55.


534<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

5. Flexibiliza os critérios de empréstimo.<br />

A diversificação da atividade de intermediação financeira possibilita um<br />

exame macro de critérios de rentabilidade e retorno que permite a flexibilização e<br />

a facilitação no oferecimento de recursos.<br />

4.2. Bancos e política monetária<br />

Diante dessas funções, fica fácil perceber a importância da atividade bancária para<br />

a política monetária e para a estabilidade da própria economia.<br />

A política monetária e a política fiscal formam a política econômica do país.<br />

É por meio da política monetária que as Autoridades Monetárias controlam a<br />

liquidez total do sistema econômico.<br />

Com uma política monetária restritiva, a quantidade de moeda no mercado é<br />

reduzida, visando desaquecer a economia, ceteris paribus, levando a redução dos<br />

preços.<br />

Utilizada dessa forma restritiva, a política monetária serve como instrumento de<br />

combate às pressões inflacionárias.<br />

Já uma política monetária expansionista aumenta a quantidade de moeda no<br />

mercado com o objetivo de incrementar a demanda e incentivar o crescimento<br />

econômico.<br />

A opção entre uma e outra dessas políticas é uma decisão de governo.<br />

Esse é o debate no Brasil de hoje.<br />

Uns sustentam a redução da taxa de juros para incrementar o desenvolvimento.<br />

Outros alertam para as pressões inflacionárias.<br />

A opção constitui-se em uma decisão de governo.<br />

Constitui-se na formulação, pelo Governo, da política monetária.<br />

Para a consecução dos objetivos macroeconômicos fixados pela política adotada,<br />

as Autoridades Monetárias e Financeiras detêm, basicamente, de sete instrumentos<br />

principais:<br />

1. incentivo ou restrição ao crédito;<br />

2. compra ou venda de títulos públicos;<br />

3. depósitos compulsórios;<br />

4. taxa de redesconto;<br />

5. taxa de juros;<br />

6. emissão de moeda; e<br />

7. administração das reservas cambiais.<br />

Dentre tais instrumentos, a taxa de juros tem se mostrado, historicamente, a mais<br />

eficaz e a mais utilizada no mundo.<br />

4.3. Taxa de juros como instrumento de política monetária<br />

A taxa de juros é uma ferramenta de alta eficácia no controle do nível de atividade.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 535<br />

A elevação taxa de juros acarreta uma redução da quantidade de moeda na<br />

economia (liquidez) e conseqüente retração do consumo e da própria inflação.<br />

Já a redução dos juros tende a estimular a atividade econômica, impulsionando o<br />

consumo e a produção.<br />

O Bacen, tendo a política monetária como mecanismo para administrar a liquidez<br />

da economia, se a inflação for a meta, irá fazer suas escolhas de modo a obter o melhor<br />

resultado possível.<br />

Quando a meta for a inflação, tem o Bacen duas opções de política de estabilidade:<br />

(1) o câmbio fixo; e<br />

(2) a própria taxa de juros.<br />

A taxa de juros acabou sendo a opção preferida como instrumento de controle da<br />

inflação, uma vez que a utilização da âncora cambial requer um elevado volume de<br />

reservas internacionais em moeda forte.<br />

O Comitê de Política Monetária – Copom foi instituído em 20-6-<strong>199</strong>6, com o<br />

objetivo de estabelecer as diretrizes da política monetária.<br />

Cabe ao Copom a definição da taxa de juros média dos financiamentos diários,<br />

com lastro em títulos federais, apurados no Sistema Especial de Liquidação e Custódia –<br />

SELIC.<br />

A criação do Copom buscou proporcionar maior transparência e um ritual<br />

adequado ao processo decisório da autoridade monetária.<br />

Seguiu-se o exemplo do que já era adotado pelo Federal Open Market Committee<br />

– FOMC, do Federal Reserve, nos Estados Unidos, e pelo Central Bank Council, do<br />

Bundesbank, na Alemanha.<br />

Tal procedimento também foi adotado, em 06/<strong>199</strong>8, pelo Bank of England, com a<br />

criação do seu Monetary Policy Committee – MPC, assim como pelo Banco Central<br />

Europeu desde a criação do euro, em 01/<strong>199</strong>9.<br />

O Banco Central dos Estados Unidos (FED), com a credibilidade adquirida sob o<br />

comando de Paul Volcker e Alan Greenspan, tem utilizado a taxa de juros como<br />

mecanismo atenuador do ciclo econômico, sem colocar em risco o controle inflacionário.<br />

Outros Bancos Centrais, como o Banco da Inglaterra, do Canadá, da Nova<br />

Zelândia, da Austrália, do México e do Chile, adotaram o regime de metas de inflação.<br />

A política monetária no Brasil, estabelecida a partir de <strong>199</strong>9, passou a seguir esse<br />

regime.<br />

Nele o Bacen deve utilizar a taxa de juros como instrumento básico para fazer com<br />

que a inflação, medida pelo IPCA (IBGE), fique dentro da meta estabelecida.<br />

Há uma meta central e um intervalo de variação em torno do qual a inflação pode<br />

se situar.<br />

Desde que o governo adotou o sistema de metas de inflação e o câmbio<br />

flutuante, a taxa de juros é o principal instrumento usado para conter a pressão sobre<br />

os preços.<br />

.


536<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Assim, o objetivo da política monetária atual é o controle da inflação através da<br />

variação da taxa de juros.<br />

Esta é a opção política do governo atual.<br />

Na teoria econômica há consenso de que existe uma correlação negativa entre taxa<br />

de juros e crescimento econômico.<br />

Uma elevação da taxa de juros determinará um menor crescimento da economia e<br />

vice-versa.<br />

Por outro lado, é também consenso que elevadas taxas de inflação geram perdas no<br />

nível de bem-estar da população, seja pelo aumento das desigualdades sociais, seja pela<br />

geração de incertezas quanto ao futuro.<br />

Portanto, é tarefa da autoridade monetária encontrar o ponto de equilíbrio<br />

entre um crescimento sustentado de longo prazo e taxas reduzidas de inflação.<br />

Para atingir esse objetivo o Bacen optou por ajustar a taxa de juros básica.<br />

O regime de metas de inflação funciona da seguinte forma:<br />

(1) explicitam-se as metas de inflação para os anos seguintes;<br />

(2) divulgam-se trimestralmente as projeções de inflação; e<br />

(3) detalham-se, nas atas das reuniões, as formas de reação do Bacen.<br />

O Copom atua a partir de uma avaliação da tendência futura da inflação.<br />

As projeções são obtidas utilizando-se as informações disponíveis, tanto quantitativas,<br />

processadas através de modelos estruturais, simulações e outras medidas estatísticas,<br />

como qualitativas.<br />

4.4. As taxas de juros no mercado brasileiro<br />

A taxa básica de juros, estabelecida pelo Bacen através do Copom, é o referencial<br />

da taxa de juros que o governo utiliza para se financiar, junto ao mercado, através da<br />

emissão de títulos públicos.<br />

Ela serve de base para outras taxas de juros praticadas no país.<br />

Marshall, citado por Keynes, enfatiza que:<br />

“(...)<br />

‘O juro, sendo o preço pago pelo uso do capital em qualquer mercado, tende<br />

a um nível de equilíbrio tal que a procura agregada de capital no dito mercado, a<br />

essa taxa de juros, seja igual ao estoque agregado que nele venha ocorrer à mesma<br />

taxa.<br />

(...)” 28<br />

Assim sendo, as taxas de juros de mercado são determinadas a partir da taxa<br />

básica de juros da economia, estabelecida pelo Copom, adicionada de um spread<br />

bancário.<br />

28 KEYNES, John Maynard. Teoria geral do emprego, dos juros e da moeda. Atlas, <strong>199</strong>2, p. 143.


R.T.J. — <strong>199</strong> 537<br />

Pergunta-se:<br />

Qual a ligação entre a taxa de juros básica e a taxa de juros de mercado (aquela<br />

cobrada pelos bancos)?<br />

Na verdade, a taxa de juros de mercado representa o custo de oportunidade 29 do<br />

banco, posto aqui pela taxa de juros básica, adicionada de custos operacionais, risco e<br />

lucro.<br />

A taxa de juros básica, ou seja, aquela que o Governo paga nos seus títulos,<br />

representa o preço do capital para o banco.<br />

Conforme tabela 1, anexa, tem-se que, em todos os países, as taxa de juros de<br />

crédito às empresas e às pessoas físicas são superiores à taxa básica.<br />

Isso demonstra que as demais taxas praticadas no mercado são uma derivação desta<br />

última.<br />

Por sua vez, o spread bancário reflete o custo operacional dos agentes financeiros,<br />

seu lucro e seu risco (taxa média de inadimplência).<br />

Ou seja, o spread bancário constitui-se na diferença entre as taxas de<br />

empréstimos praticadas pelos bancos ou agentes financeiros junto aos tomadores de<br />

crédito (mutuários, por exemplo) e a taxa de captação, que é a taxa à qual os bancos<br />

tomam recursos 30 .<br />

O spread bancário visa não só cobrir os custos das operações financeiras e,<br />

portanto, as despesas relativas à atividade de intermediação financeira, mas também<br />

proporcionar uma margem líquida para o intermediário financeiro.<br />

Vários fatores podem levar a um spread bancário elevado.<br />

Na taxa de juros cobrada o banco contabiliza:<br />

a) prestações atrasadas;<br />

b) inadimplência;<br />

c) risco de crédito em função do mercado e da conjuntura econômica;<br />

d) cunha fiscal; e<br />

e) a própria expectativa de inflação.<br />

29 O custo de oportunidade pode ser entendido como o custo alternativo de investir o capital em<br />

qualquer outro negócio. BURCH, E. EarL & NENBY, em seu livro, MiItf R. Oportunity and<br />

Incremental cost: attempt to define in systems terms: a commerry. The Accounting Review, 49(1): 118-<br />

123, January, 197k p. 119, custo de oportunidade pode ser definido como a renda líquida que pode ser<br />

auferida em determinado investimento a partir do seu melhor uso alternativo.<br />

30 Por simplificação adotou-se a hipótese de que os bancos tomam recursos à mesma taxa do governo<br />

(Selic). No entanto, embora estas taxas guardem uma alta correlação com a taxa Selic a captação dos<br />

bancos tende a apresentar uma taxa superior àquela praticada pelo governo federal. Na tabela II, do<br />

anexo I, observa-se que do total de operações de crédito no mercado o governo federal é o maior<br />

tomador com 67,25% do total.


538<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Em estudo de dezembro de 2005 31 sobre a composição do spread bancário no<br />

Brasil, a Fipecafi 32 mostrou a seguinte distribuição percentual:<br />

1 - Inadimplência - 13%<br />

2 - Despesas com pessoal - 10%<br />

3 - Despesas estruturais - 24%<br />

4 - Tributos - 8%<br />

5 - Custo de captação (juros aos aplicadores) - 36%<br />

6 - Lucro líquido - 9%<br />

Assumindo que a taxa de juros dos financiamentos é determinada pela Selic,<br />

adicionado um spread bancário, tem-se que:<br />

TJM = Selic + spread bancário<br />

Onde:<br />

TJM = Taxa de juros de financiamento ao mutuário<br />

Tem-se, assim, que parcela significativa dos juros é determinada através da taxa de<br />

juros básica, estabelecida pelo Copom.<br />

Por isso, os juros não podem ser fixados de forma independente à política<br />

monetária do País.<br />

Constata-se, assim, que a relação do banco com o poupador e o mutuário integra<br />

a política econômica, extravasando os limites da relação subjetiva.<br />

Na relação de consumo não há essa dimensão objetiva.<br />

Nesta — na relação de consumo — a proteção do consumidor é tomada<br />

individualmente.<br />

Relatório que analisa a política monetária do Brasil deixa claro que a taxa de<br />

juros é um instrumento tal política.<br />

Constata-se desse Relatório, que a taxa de juros depende de inúmeras variáveis e<br />

que não pode ter seus limites fixados de forma dissociada da política macroeconômica.<br />

Leio:<br />

“(...)<br />

No tocante ao cenário externo, a política monetária estará fortemente<br />

dependente da confirmação ou não da retomada do crescimento mundial no<br />

segundo semestre. Dado que as economias da União Européia continuam emitindo<br />

sinais de maior debilidade e a economia japonesa aprofunda cada vez mais sua<br />

recessão, o crescimento mundial será guiado pelo desempenho da economia norteamericana.<br />

Vale destacar, então, o crescimento de 0,2% do PIB dos EUA no quarto<br />

31 Dados publicados no jornal Valor Econômico, caderno Finanças, p. C1, de 13-12-2005.<br />

32 Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras.


R.T.J. — <strong>199</strong> 539<br />

trimestre de 2001 depois de queda de 1,3% no terceiro trimestre. Este crescimento<br />

foi sustentado essencialmente pelos gastos públicos, principalmente os gastos<br />

militares com a guerra no Afeganistão.<br />

(...)<br />

Como visto, o comportamento da taxa nominal de câmbio é que tem sido<br />

‘favorável’, relativamente aos cenários mais pessimistas, dando certa folga ao<br />

Banco Central. E este é o problema. A política monetária (se novos apertos de juros<br />

serão ou não necessários) está muito dependente do que vai acontecer com o<br />

câmbio no futuro. Este, por sua vez, depende não apenas do desempenho das<br />

exportações brasileiras, mas também do cenário externo (Argentina e EUA) e da<br />

liquidez mundial. Como as projeções do Banco Central, considerando-se juros<br />

constantes a 19% a.a., já apontam para uma inflação acima da meta central deste<br />

ano (que é de 3,5%), e as expectativas e mercado, que estão em 4,8%, aproximamse<br />

do limite superior da meta (5,5%), não parece haver muito espaço para a redução<br />

da taxa nominal de juros neste início do ano, como ficou claro com a decisão do<br />

Copom de janeiro de 2001 em mantê-la no patamar de 19% a.a.<br />

(...)” 33<br />

Observa-se que, muitas vezes, a política monetária está subordinada a condicionantes<br />

alheios à vontade das Autoridades Monetárias de seu próprio país, imagine<br />

então, no que concerne às regras estabelecidas no CDC.<br />

Um exemplo é o nível das taxas de juros praticadas em outros países.<br />

Se as taxas de outros países sobem, dado o mesmo nível de risco mundial, os títulos<br />

brasileiros tornam-se menos atraentes ao investidor.<br />

Em conseqüência, o Bacen deverá elevar os juros a patamares tais que evitem a<br />

fuga de capitais e a conseqüente desvalorização da moeda nacional.<br />

(Lembro que a Autoridade Monetária entende de não fixar regras de controle de<br />

capitais).<br />

Por conseguinte, uma desvalorização cambial poderia desencadear um processo<br />

inflacionário, uma vez que a desvalorização da moeda nacional faria com que os<br />

consumidores domésticos pagassem mais caro não apenas por produtos importados, mas<br />

também por aqueles que tivessem seus preços determinados no mercado internacional.<br />

Os fatores que permeiam a política macroeconômica de um país, entre eles a taxa<br />

de juros, são questões mutáveis no tempo.<br />

Como tal deve ter a flexibilidade adequada exigida pelas flutuações conjunturais<br />

e estar, portanto, subordinada ao órgão regulador e com competência institucional de<br />

implementar tal política.<br />

As instituições financeiras, especialmente os bancos e instituições de crédito,<br />

negociam basicamente com a moeda e crédito.<br />

33 O que esperar da política monetária brasileira em 2002? Pedro Garcia Duarte, revista Autor, Ano II,<br />

n. 8, fevereiro de 2002.


540<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Realizam uma atividade de repasse dos recursos nelas depositados e por elas<br />

captados.<br />

Tal mecanismo está estreitamente relacionado com a política monetária e não é<br />

factível estabelecer limites desalinhados desta, uma vez que a taxa de juros praticada<br />

pelo governo é o referencial básico dos bancos.<br />

4.5. Limites de taxa de juros ao consumidor em outros países 34<br />

Examino a situação em diferentes países quanto à imposição ou não de limites à<br />

taxa de juros.<br />

Nota-se que alguns países adotam limites.<br />

No entanto, tais limites têm como base exclusiva decisões do órgão executor da<br />

política monetária de acordo com as circunstâncias e conjunturas econômicas do<br />

momento.<br />

Não há pré-fixação ou petrificação de taxa de juros por meio de lei, uma vez que<br />

essa prática é incompatível com o dinamismo e a flutuação dessa área da economia.<br />

a) França<br />

Na França há controles.<br />

A taxa máxima é determinada pela Autoridade Monetária a cada quadrimestre,<br />

sendo ela de até 133,33% das taxas médias praticadas no mercado.<br />

Há três diferentes tetos.<br />

A taxa mais alta é a aplicada para os empréstimos de pequeno valor de até •1.524 —<br />

cerca de 20% no 1º quadrimestre de 2004.<br />

O Banque de France é o responsável tanto pelo levantamento das taxas médias<br />

praticadas no mercado quanto pela fiscalização no que diz respeito ao cumprimento dos<br />

tetos.<br />

A atual estrutura da taxa de usura está determinada em lei.<br />

b) Alemanha<br />

A Alemanha tem uma forte tradição de controle dos serviços financeiros.<br />

Na Alemanha também não há um teto único.<br />

Existem diferentes limites para cada tipo específico de taxa de juros.<br />

A Rule of Thumb proíbe a cobrança de taxas superiores ao dobro da taxa média<br />

praticada pelo mercado para aquele tipo de operação.<br />

O levantamento mensal das taxas médias praticadas é responsabilidade do<br />

Bundesbank.<br />

34 Os dados e informações constantes desse item foram extraídos do Relatório de Agosto de 2004 da<br />

DTI (Department of Trade and Industry), do governo inglês: “The effect of interest rate controls in<br />

other countries”. http://www.dti.gov.uk/ccp/topics1/consumer_finance.htm.


R.T.J. — <strong>199</strong> 541<br />

No caso das taxas aos mutuários domésticos, em 2003, as taxas variaram de 6,9%<br />

a.a. a 7,9% a.a. para os empréstimos e de 10,2% a.a. a 10,8% a.a. para limite de conta<br />

corrente.<br />

c) Reino Unido<br />

Em 1974, o Reino Unido removeu os controles sobre as taxa de juros.<br />

Atualmente, ainda, não há limite para as taxas de juros a serem cobradas, porém<br />

discute-se a possível implementação de uma “lei da usura”.<br />

d) Estados Unidos<br />

Não há mais uma legislação federal impondo restrições ou regulamentações às<br />

taxa de juros.<br />

Esse tema fica sob responsabilidade de cada Estado.<br />

Em vários estados, há um limite às taxa de juros.<br />

Essa regulação, na maioria das vezes, consta em leis estaduais.<br />

Há grandes diferenças quanto ao nível de regulação, variando desde estados muito<br />

reguladores até estados que não adotam tal política.<br />

Nos últimos 30 anos, gradualmente, alguns estados vêm removendo os controles<br />

sobre as taxa de juros.<br />

Por outro lado, nesse mesmo período, vem aumentando o número de estados que<br />

passaram a adotar tetos especiais para pequenos empréstimos (em geral até US$2.000).<br />

Atualmente a maioria dos estados possui um baixo grau de regulação (22 deles),<br />

mas os estados mais importantes como Califórnia, Texas e Nova Iorque ainda possuem<br />

um grau mediano de regulação.<br />

e) Chile<br />

O Chile também possui controle.<br />

A taxa de juros máxima convencional (TIMC) corresponde a 150% da média das<br />

taxas cobradas no mercado.<br />

No entanto, não há teto único.<br />

Existem 08 taxas que se diferenciam de acordo com as características da operação<br />

realizada (tipo de operação, valor e prazo).<br />

A TIMC, por exemplo, para operações não reajustáveis, em moeda nacional, com<br />

prazo superior a 90 dias e valores de no máximo 200 unidades de fomento (cerca de US$<br />

6.100,00) está em 42,12% a.a.<br />

A fixação da TIMC é realizada pela Superintendência de Bancos e Instituições<br />

Financeiras (SBIF), um órgão do governo chileno.<br />

f) Considerações finais<br />

Como se vê, existem limitadores das taxas de juros cobradas pelas instituições<br />

financeiras, especialmente nas linhas de créditos mais populares.<br />

Mesmo em países onde atualmente não ocorre esse tipo de controle já existe<br />

movimentação no sentido de criação desse mecanismo.<br />

.


542<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

É o caso do Reino Unido e dos Estados Unidos.<br />

Nos Estados Unidos, os estados estão anulando suas leis da usura, mas criando<br />

instrumentos que defendam os pequenos tomadores de empréstimos.<br />

Os instrumentos de controle são criados mais com o objetivo de inibir práticas<br />

abusivas individuais, do que definir uma taxa a ser praticada.<br />

Mesmo em países que adotam a política de controle das taxas de juros, o mercado<br />

continua sendo o responsável, em última instância, por sua determinação.<br />

É importante lembrar que os exemplos trazidos enfocam países desenvolvidos,<br />

com economia forte e, portanto, com baixo nível de dependência das flutuações econômicas<br />

internacionais.<br />

Fundamental destacar que o limite da taxa de juros ao mutuário, seja ele qual for,<br />

não pode ser fixado aleatoriamente.<br />

A sua fixação tem que ser vinculada a política monetária estabelecida pelo<br />

Governo e ter o seu acompanhamento e fiscalização pela Autoridade Monetária.<br />

4.6. Possíveis conseqüências da aplicação do CDC às operações típicas do SFN<br />

Antes de mais nada, sabe-se que os agentes econômicos atuam de forma a<br />

maximizar lucros e a reduzir prejuízos.<br />

Essa lógica se aplica ao mercado bancário.<br />

Como vimos, a taxa de juros cobrada pelo banco do mutuário e a paga pelo<br />

banco ao depositário são fixadas a partir de um conjunto de fatores tendo como<br />

elemento principal o valor da taxa básica de juros.<br />

Se o teto de cobrança dos juros não estivesse atrelado à política monetária do<br />

governo, existiria claramente um “descasamento” entre o que o banco tem a receber<br />

(ativo) e o que se obrigou a pagar (passivo).<br />

O dinheiro necessário a equilibrar essa equação viria de outras fontes, tais como<br />

tarifas bancárias, que teriam que ser majoradas, ou mesmo da necessidade de subsídio<br />

público para tal equilíbrio.<br />

Na hipótese, o ônus recairia sobre o usuário, o contribuinte ou ambos.<br />

Do contrário, a própria atividade bancária estaria inviabilizada.<br />

Pergunta-se:<br />

O que aconteceria se o CDC se aplicasse a essa espécie de operação?<br />

Em primeiro lugar, componentes importantes do processo econômico estariam a<br />

ser formulados por agentes sem competência para tal — Procons, etc.<br />

A política econômica, na vida democrática, é da competência das autoridades<br />

governamentais.<br />

É o Governo o responsável pela formulação dessa política.<br />

A legitimação para tal vem da vitória nas eleições.<br />

Entender-se de outra forma, é comprometer a atividade financeira no Brasil.


R.T.J. — <strong>199</strong> 543<br />

Mesmo que haja, durante curto período, estabilidade das regras econômicas, a<br />

fixação de teto por agentes não comprometidos com a política monetária causaria<br />

imediatamente a restrição abrupta ao crédito.<br />

O raciocínio é simples.<br />

O spread bancário expressa o nível de risco da operação.<br />

Se as regras forem instáveis e não conhecidas a priori, os bancos passarão a<br />

emprestar dinheiro somente a clientes que apresentem sinais óbvios de possibilidade de<br />

pagamento dos empréstimos.<br />

Em outras palavras, apenas terão condições de conseguir empréstimos bancários,<br />

para a realização de investimentos privados, aqueles que, de certo modo, não precisem<br />

de dinheiro.<br />

A grande maioria da população brasileira — aquela que realmente precisa de<br />

dinheiro emprestado — não vai alcançar os níveis de exigência para fazer jus ao<br />

empréstimo.<br />

Assim, a medida que viria para proteger a população mais necessitada estaria, na<br />

verdade, a prejudicá-la.<br />

Visto por outro ângulo, a limitação dos juros, desvinculada da política monetária,<br />

reduziria os níveis de investimentos de forma drástica.<br />

Isso desaqueceria a economia e limitaria possibilidade de crescimento econômico.<br />

Poderíamos chegar a patamar de recessão com o encolhimento do nível de<br />

atividade econômica.<br />

Outra forma dos bancos compensarem as perdas com a limitação da taxa de juros<br />

desvinculada da política monetária, seria por meio do aumento das tarifas bancárias.<br />

Outra vez se percebe que a medida seria extremamente danosa a quem mais precisa<br />

dos serviços bancários no seu dia-a-dia.<br />

Finalmente, a última possibilidade equivaleria a um retrocesso em matéria de<br />

administração do sistema financeiro.<br />

É que, diante dos prejuízos, os bancos somente conseguiriam se manter com a<br />

ajuda de recursos públicos.<br />

O subsídio público da atividade bancária praticamente retiraria a autonomia dos<br />

bancos e tornaria o próprio governo responsável direto por toda a movimentação<br />

financeira do país.<br />

Ao invés de regulador e fiscalizador da atividade financeira, o Estado passaria a ser<br />

o seu único participante.<br />

Diante das prováveis conseqüências, a aplicação do CDC aos bancos em<br />

operações bancárias — típicas do sistema financeiro — seria deletério também do<br />

ponto de vista econômico e social.<br />

4.7. Conclusão<br />

Fica claro que a taxa de juros é um instrumento de política monetária e como tal<br />

deve estar atrelada às políticas das Autoridades Monetárias.


544<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Em realidade, a regulação do mercado se justifica pela sua íntima relação com a<br />

política monetária e com a própria estabilidade e fortalecimento da moeda.<br />

Nesse sentido, no Brasil, com sua economia ainda em processo de amadurecimento<br />

e fortalecimento, é necessário que as Autoridades Monetárias e Financeiras estejam<br />

atentas às variações econômicas e às flutuações internacionais de forma a dar resposta<br />

operacional imediata para a conservação do nível de segurança da economia.<br />

Por isso, para esse tipo de operação financeira, o mercado é regulado por uma<br />

política dinâmica formulada pela Autoridade Monetária, com base na legislação do<br />

SFN.<br />

A atribuição de competência, no âmbito do SFN, a autoridades não monetárias,<br />

inclusive não estatais, conduziria a restrição abrupta do crédito.<br />

Por tudo isso o CDC não tem aplicação às operações bancárias típicas do SFN,<br />

especialmente quando envolvam fixação, limites e cobrança de juros.<br />

5. O CDC e os bancos<br />

A restrição da aplicação do CDC se limita às operações típicas do SFN.<br />

A par disso, pergunta-se:<br />

Existiriam outras operações realizadas pelos bancos que deveriam observar<br />

os princípios e os dispositivos do CDC?<br />

5.1. Operações bancárias e serviços bancários: distinções<br />

O problema diz respeito, diretamente, à interpretação do § 2º do art. 3º do CDC, ao<br />

dispor que serviço é:<br />

“(...) qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração,<br />

inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária,<br />

salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”<br />

Pergunto:<br />

É possível a identificação de atividades bancárias não típicas do sistema<br />

financeiro e, portanto, que equiparariam os bancos a prestadores de serviço?<br />

A resposta negativa a essa pergunta somente poderia gerar a declaração de<br />

inconstitucionalidade de parte desse dispositivo.<br />

Entretanto, uma gama de serviços prestados pelos bancos a cliente e usuário não<br />

se configura como relações financeiras relativas a investimentos e depósitos, que estão<br />

sob a guarda e o controle da Autoridade Monetária.<br />

Há casos em que o banco, de fato, presta um serviço autônomo tal como outro<br />

prestador qualquer e, por isso, recebe remuneração específica por esse serviço.<br />

Em outras palavras, há serviços que podem ser prestados independentemente da<br />

relação monetário-financeira do banco com o poupador ou mutuário — relações<br />

relativas à moeda e ao crédito.<br />

Em muitos casos, o banco presta serviços em concorrência com outras entidades<br />

que não tenham natureza financeira, como o serviço de pagamento ou recebimento de<br />

salário.


R.T.J. — <strong>199</strong> 545<br />

Está em Sergio Carlos Covello:<br />

“(...)<br />

A classificação tradicional e, ao mesmo tempo, mais acolhida na prática<br />

bancária é aquela que divide as operações de Banco, de conformidade com o<br />

crédito, em fundamentais e assessórias.<br />

As operações fundamentais, ou típicas, são as que implicam a intermediação<br />

do crédito, função precípua dos Bancos, que, como vimos, recolhem dinheiro de uns<br />

para concedê-lo a outros.<br />

Dividem-se em passivas (as que têm por objeto a procura e provisão de<br />

fundos, sendo assim denominadas por importarem em ônus e obrigações para o<br />

Banco, que, na relação jurídica, se torna devedor) e ativas (as que visam à<br />

colocação e ao emprego desses fundos; por meio dessas operações, o Banco se<br />

torna credor do cliente).<br />

Constituem operações passivas os depósitos, as contas correntes, os redescontos,<br />

enquanto as principais operações ativas são os empréstimos, os financiamentos,<br />

as aberturas de crédito, os descontos, os créditos documentários, as<br />

antecipações, etc.<br />

As operações acessórias ou neutras (assim chamadas por não implicarem<br />

nem a concessão nem o recebimento do crédito) possuem significação menor para<br />

os Bancos, que só as realizam com o fito de atrair clientela. Definem-se como<br />

verdadeiras prestações de serviço: custódia de valores, caixa de segurança,<br />

cobrança de títulos e outras.<br />

(...)” 35<br />

Trata-se da diferença entre operações bancárias e serviços bancários.<br />

As operações bancárias consistem em transferência de moeda (circulação<br />

monetária) ou de crédito, que se sustentam na confiança e na administração de riscos.<br />

As operações bancários, portanto, são as típicas do SFN e tem importante impacto<br />

na política monetária e econômica do país.<br />

São tais operações que garantem, em uma dimensão macro, a circulação monetária,<br />

a estabilidade do poder aquisitivo da moeda, o nível de investimentos e a própria<br />

estabilidade da economia.<br />

Já os serviços bancários dizem respeito a obrigações de fazer, que são executadas<br />

pelos bancos sem vinculação com a política monetária.<br />

Os serviços bancários se prestam a atender diversos interesses dos clientes.<br />

É com base nesses serviços que os bancos, geralmente, cobram tarifas já que a<br />

prestação não se confunde com o objeto de atividade própria da instituição.<br />

35 COVELLO, Sergio Carlos. Contratos bancários. 4. ed. São Paulo: Leud, 2001. p. 38.


546<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Leio Galeno Lacerda:<br />

“(...)<br />

(...) a atividade bancária se desdobra em duas categorias distintas: uma, a<br />

principal, consistente em operações, e outra, secundária, caracterizada pela<br />

prestação dos serviços. As operações têm por objeto o dinheiro, ou créditos que se<br />

traduzem em dinheiro; os serviços, ao contrário, atendem a interesses acessórios do<br />

cliente, como cofres de aluguel, cobrança de títulos etc.<br />

(...)<br />

6. Se o dinheiro não pode ser objeto de consumo porque não se ajusta ao<br />

conceito ‘destinatário final’ que caracteriza o consumidor (art. 2º do CDC), nem<br />

por isso certos ‘serviços’ que lidam com dinheiro deixam de integrar o mercado de<br />

consumo. Por isso, no art. 3º, § 2º, o CDC admite ensejem consumo serviços de<br />

natureza bancária, financeira e crédito e securitária. Quais serão essas atividades?<br />

Aquelas que não tenham o dinheiro como destinatário final, por exemplo, a<br />

custódia de valores, a emissão e compra e venda de títulos, os negócios de bolsa,<br />

as caixas de aluguel, as remessas financeiras, e tantos outros serviços pelos quais<br />

o fornecedor cobra do cliente uma taxa remuneratória.<br />

(...)” 36<br />

Diante da separação conceitual, é fácil perceber que as operações bancárias, por<br />

serem operações financeiras, estão submetidas ao controle do Bacen, e os clientes<br />

bancários, para essas operações, estão submetidos a sistema próprio de proteção.<br />

Entre as operações bancárias sob a fiscalização da Autoridade Monetária estão,<br />

por exemplo:<br />

a) depósito (dentre os quais a própria poupança, depósitos à vista, obrigatórios,<br />

a prazo — CDB/RDB, vinculados, e outros);<br />

b) empréstimo e financiamentos;<br />

c) abertura de crédito;<br />

d) descontos;<br />

e) cessão de créditos;<br />

f) operações de câmbio;<br />

g) crédito documentário, etc.<br />

Já os serviços bancários, por serem atividades desatreladas do sistema financeiro —<br />

não tendo por objeto dinheiro ou crédito — estão submetidos à incidência dos<br />

dispositivos do CDC e de outras normas pertinentes.<br />

Os clientes bancários dessas atividades são equiparados a consumidores e são<br />

protegidos também pelos órgãos oficiais de defesa do consumidor e pela atuação do<br />

Ministério Público.<br />

36 GALENO LACERDA. Direito Comercial, obrigações e contratos. Rio de Janeiro: Forense. Vol. III,<br />

p. 14.


R.T.J. — <strong>199</strong> 547<br />

Entre tais serviços bancários, alguns são compensados diretamente por meio da<br />

cobrança de tarifas, por exemplo:<br />

a) custódia de valores;<br />

b) caixa de aluguel;<br />

c) cobrança de títulos, etc.<br />

Outros não são diretamente compensados com tarifas.<br />

No entanto, incluem-se entre as atividades ou serviços corriqueiros dos estabelecimentos<br />

bancários, muito embora não envolvam sua atividade fim (operações com<br />

crédito e dinheiro).<br />

É o caso, por exemplo,<br />

a) da política de acesso dos usuários à agência bancária;<br />

b) da consulta em terminais;<br />

c) da obrigação dos bancos de apresentar informações claras e objetivas<br />

acerca de seus serviços, etc.<br />

Assim, verifica-se que a tarifa é importante critério identificador dos serviços<br />

bancários submetidos ao CDC.<br />

Entretanto, não é o único.<br />

Isso porque existem outras atividades dos bancos que não são compensadas<br />

diretamente pela tarifa, mas apenas de maneira indireta já que integram o cálculo geral<br />

de custos do banco.<br />

De qualquer forma, a remuneração pela tarifa constitui claramente compensação<br />

pela prestação de um serviço e caracteriza o cliente ou usuário como consumidor.<br />

5.2. Os serviços e as atividades bancárias<br />

Diante dessa separação, cabe identificar quais relações são típicos serviços<br />

bancários a caracterizar relação de consumo.<br />

Por definição, são todas as relações que não envolvam empréstimos e créditos.<br />

São os serviços em que se cobra tarifa, direta ou indiretamente.<br />

Em elenco não exaustivo, são serviços com cobrança direta de tarifa:<br />

a) sustação de cheques;<br />

b) aluguel de cofres para custódia de valores ou objetos confidenciais;<br />

c) venda e utilização do cartão magnético, bem como sua substituição nos<br />

casos de roubo ou perda;<br />

d) devolução do cheque por insuficiência de fundos;<br />

e) inclusão ou exclusão de nome no SPC ou CCF;<br />

f) fornecimento de talonário de cheque e o valor cobrado por folha por mês;<br />

g) fornecimento de cópia do extrato bancário;<br />

h) cobrança de títulos de terceiros, por conta do cliente, quando inexiste<br />

garantia;<br />

.


548<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

i) venda de seguro;<br />

j) remessa de dinheiro ao exterior;<br />

k) administração de fundos ou de patrimônio;<br />

l) negócios em bolsa.<br />

São exemplos de serviços ou atividades dos bancos pelos quais não se cobra<br />

tarifa, mas que estão submetidas ao CDC:<br />

a) atendimento ao cliente e ao usuário por telefone, via internet ou o autoatendimento;<br />

b) organização do atendimento pelos caixas na agência (tempo de espera na<br />

fila, números de funcionários para esse atendimento, etc);<br />

c) fornecimento de informações acerca da conta corrente e de eventuais<br />

investimentos;<br />

d) acesso e restrição de acesso às agências bancárias, bem como o respeito a<br />

atendimento prioritário a certas situações;<br />

e) cumprimento das propagandas anunciadas;<br />

f) consulta em terminais.<br />

Essas atividades são de natureza não-financeira.<br />

Nelas o banco é meramente um prestador de serviço.<br />

Enquadra-se na previsão do art. 2º do CDC.<br />

Por isso, os usuários ou clientes envolvidos nesse tipo de serviço bancário estão<br />

protegidos pelas garantias do CDC.<br />

6. Conclusão<br />

Caminho para conclusão.<br />

Certas atividades desenvolvidas pelos bancos — operações bancárias — não<br />

estão adstritas ao CDC.<br />

São operações que se enquadram dentro do SFN e que são importantes componentes<br />

dos rumos da política econômica, de competência da Autoridade Monetária.<br />

São operações reguladas pelas Autoridades Monetárias — CMN e Bacen.<br />

Nem por isso, entretanto, são relações desprovidas de proteção.<br />

Os mutuários e poupadores estão protegidos por um sistema próprio.<br />

Muito embora seja uma proteção que tenha como norte a própria estabilidade da<br />

moeda e a política de crescimento econômico, o aspecto subjetivo e individual também<br />

é resguardado.<br />

Exemplo claro dessa proteção própria, exercida pelo Bacen, é a Resolução n.<br />

2.878, de 26 de julho de 2001 (o chamado Código de Defesa do Cliente Bancário).<br />

O CDC é uma legislação moderna e sua promulgação representou importante<br />

evolução no tratamento das relações de consumo no Brasil.<br />

Entretanto, o CDC tem objeto e sujeitos especiais que balizam sua aplicação.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 549<br />

É um erro o entendimento de que o CDC tem uma aplicação universal, como se<br />

todas as relações jurídicas estabelecidas tivessem a natureza de relações de consumo.<br />

Lembro que o Supremo já reconheceu o exagero e a inconstitucionalidade de se<br />

ampliar, de forma desproporcional, a incidência do CDC ou a tratá-lo com dimensão de<br />

importância equiparável à própria Constituição.<br />

O Supremo fez isso, por exemplo, quando fixou que as relações entre Poder<br />

Público e contribuinte tinham natureza tributária e não de consumo 37 .<br />

Insisto que o CDC é legislação que visa a compensar desigualdades materiais<br />

fáticas de maneira a equilibrar, social e economicamente, as partes envolvidas em uma<br />

relação de consumo.<br />

Sua aplicação universal poderia, ao contrário, construir desigualdades inaceitáveis<br />

ou estabelecer nichos de privilégios em determinados setores econômicos.<br />

Leio Paulo Brossard:<br />

“(...)<br />

A lei de defesa do consumidor, como seu nome está a dizer, objetiva a proteção<br />

da pessoa que busca a satisfação direta das suas necessidades, no que diz respeito à<br />

alimentação, vestuário, habitação, transporte, luz, água, telefone, diversão, lazer ...<br />

mas não tem aplicação a todos os possíveis conflitos do convívio humano, nem<br />

autoriza uma operação global sobre todas as atividades sociais, como não transforma<br />

o Ministério Público numa espécie de visitador geral do santo ofício.<br />

(...)” 38<br />

Assim sendo, no campo do setor bancário, financeiro e securitário, o CDC tem<br />

também sua aplicação em serviços de natureza não-financeira que exemplificativamente<br />

foram listados neste voto.<br />

Acompanho Velloso, com referência final mais ampla.<br />

No entanto, creio que tal referência está contida no extraordinário voto de Velloso,<br />

posto que foi pronunciado ainda na vigência da redação original do art. 192, em especial<br />

seu então § 3º.<br />

Julgo procedente, em parte, a ação.<br />

Concluo com a linguagem de Velloso.<br />

“Empresto (...) à norma inscrita no § 2º do art. 3º da Lei 8.<strong>07</strong>8/90 —<br />

‘inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária’ —<br />

interpretação conforme à Constituição, para dela afastar a exegese que nela<br />

inclua” as operações bancárias.<br />

37 RE 195.056, Carlos Velloso, DJ de 30-5-2003;<br />

RE 206.781, Marco Aurélio, DJ de 29-6-2001;<br />

RE 248.191, Carlos Velloso, DJ de 25-10-2002;<br />

AI 382.298-AgR, Gilmar Mendes, DJ de 28-5-2004.<br />

38 BROSSARD, Paulo. Defesa do consumidor — atividade do Ministério Público — Incursão em<br />

operações bancárias e quebra de sigilo — Impossibilidade de interferência. In: Revista dos Tribunais,<br />

ano 84, agosto de <strong>199</strong>5, vol. 718, p. 89.


550<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

7. Anexo<br />

Tabela 1. Taxas de juros e de inflação internacionais<br />

Taxa básica de Taxa de juros ao IPC - 2004<br />

juros (% a.a.)¹ consumidor (% a.a.) (% a.a)<br />

EUA 3,50 5,6² 2,68<br />

Japão 0,02 1,49² - 0,01<br />

Área do Euro 2,00 3,9² 1,67<br />

Reino Unido 4,50 5,23² 2,96<br />

Canadá 2,50 5,7² 1,83<br />

Chile 3,75 5,24 1,05<br />

Brasil 19,75 56,85 6,27<br />

¹ Dados referentes ao dia 15-8-2005.<br />

² Taxas referentes aos corporade bonds em 22-3-2005.<br />

Fonte: Ipea; The Economist, fevereiro de 2005; Valor Econômico, 16 de agosto de 2005.<br />

Tabela 2. Sistema de crédito brasileiro¹<br />

Discriminação Valor (em R$ bilhões) % do Total<br />

Volume de títulos<br />

públicos transacionados 1.064,5 67,25%<br />

Volume de crédito 518,3 32,75%<br />

Setor Privado 432,4 27,32%<br />

Pessoas jurídicas 280,2 17,70%<br />

Pessoas físicas 152,2 9,62%<br />

Setor Público 19,5 1,23%<br />

Outros 66,4 4,20%<br />

Total do crédito 1.582,8 100,00%<br />

Taxa média de juros<br />

Pessoas jurídicas 42,0 -<br />

Pessoas físicas 64,7 -<br />

¹ Dados referentes ao mês de maio/2005.<br />

Fonte: Bacen e Tesouro Nacional.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 551<br />

VOTO (Vista)<br />

Incidências<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente):<br />

I - Faço um breve relatório<br />

1. Alegações da requerente<br />

A Confederação Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF pretende a<br />

declaração de inconstitucionalidade da expressão:<br />

“inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária” (art.<br />

3º, § 2º, da Lei 8.<strong>07</strong>8/90 1<br />

Alega afronta:<br />

(a) ao art. 192, caput, II e IV, da CF, na redação original 2 ;<br />

(b) ao princípio do devido processo legal em sentido substancial (CF, art. 5º,<br />

LIV 3 ).<br />

Exigência de lei complementar<br />

Alega, ainda, que a disciplina do Sistema Financeiro Nacional – SFN somente<br />

pode ser objeto de lei complementar (ADI 4, Sydney Sanches, DJ de 25-6-<strong>199</strong>3 4 ).<br />

1 Lei 8.<strong>07</strong>8, de 11 de setembro de <strong>199</strong>0:<br />

Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem<br />

como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação,<br />

construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou<br />

prestação de serviços.<br />

(...)<br />

§ 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração,<br />

inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações<br />

de caráter trabalhista.<br />

2 CF/88:<br />

Art. 192. O Sistema Financeiro Nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento<br />

equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que<br />

disporá, inclusive, sobre:<br />

(...)<br />

II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, resseguro, previdência e<br />

capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.<br />

13, de <strong>199</strong>6);<br />

(...)<br />

IV - a organização, o funcionamento e as atribuições do Banco Central e demais instituições<br />

financeiras públicas e privadas;<br />

3 CF/88:<br />

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos<br />

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à<br />

igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:<br />

(...)<br />

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;<br />

4 Inicial, p. 12:<br />

“(...)<br />

31. Ora, se, conforme reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, as matérias<br />

pertinentes ao Sistema Financeiro Nacional, abrangente das atividades bancárias, financeiras, de


552<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Distinção entre consumidor e cliente<br />

Sustenta, mais, que a CF teria feito diferença entre consumidor e cliente de<br />

Instituição Financeira.<br />

A CF teria dado tratamento normativo diverso para as duas searas:<br />

(a) O Direito ao Consumidor, no Capítulo I do Título VII — art. 170, V.<br />

(b) O SFN, no Capítulo IV do mesmo Título — art. 192.<br />

Está na inicial:<br />

“(...)<br />

39. É de se ressaltar, por exemplo, que as instituições financeiras não<br />

trabalham com dinheiro próprio, mas de terceiros. A pretensão de aplicar-lhes<br />

regras de consumo — que não se amoldam às peculiaridades das operações<br />

bancárias — pode atingir, de rigor, os correntistas e aplicadores que ofertam<br />

recursos ao sistema para serem repassados, mediante guarda ou aplicação, em vez<br />

de mantê-los guardados em casa ou no cofre das empresas. ... Por esta razão é que só<br />

o órgão encarregado de controlar o sistema financeiro, que é o Banco Central, pode<br />

cuidar da fiscalização nessa matéria, que está disciplinada no art. 192 da<br />

Constituição Federal, em consonância com o art. 164 da Constituição Federal, e,<br />

não, no art. 170 da Constituição Federal.<br />

(...)” (Inicial — pp. 14/15.)<br />

Princípio da proporcionalidade<br />

Suscita, por fim, a lesão ao princípio da proporcionalidade (princípio do devido<br />

processo legal em sentido substancial).<br />

Argumenta que os dois setores de natureza e atividades tão diferentes não poderiam<br />

estar vinculados às mesmas regras de funcionamento e ao mesmo regime<br />

jurídico.<br />

Soma-se a isso o fato de existir uma estrutura normativa e financeira própria para o<br />

setor bancário dos quais são exemplos o Banco Central – BACEN, o Conselho Monetário<br />

Nacional – CMN e a Lei 4.595/64 5 .<br />

crédito e de seguros, hão de ser disciplinadas por lei complementar a teor do art. 192 da Constituição<br />

da República, e se, de acordo com o entendimento do mesmo Tribunal, a Lei n. 4.595/64 foi<br />

recepcionada com esse status, resta evidente que o § 2º do art. 3º da Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90, ao pretender<br />

equiparar todas as atividades de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária a relações de<br />

consumo para o fim de regulá-las, padece de inconstitucionalidade por invadir área reservada à lei<br />

complementar, sendo insusceptível de derrogar a lei recepcionada, que desfruta desse status.<br />

(...)”<br />

5 Inicial, p. 17:<br />

“(...)<br />

48. Ora, a regulação pela Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90, conferindo o trato legal a tais atividades da mesma maneira que<br />

às demais atividades econômicas, que não ostentam as mesmas peculiaridades, não se mostra razoável,<br />

quer em face dessa sistemática constitucional, quer sob o aspecto material das operações celebradas no


R.T.J. — <strong>199</strong> 553<br />

2. O parecer da PGR<br />

A PGR pede a declaração parcial de inconstitucionalidade, sem redução de texto,<br />

para, mediante interpretação conforme:<br />

“(...)<br />

(...) afastar a exegese que inclua naquela norma do Código de Defesa do<br />

Consumidor ‘o custo das operações ativas e a remuneração das operações<br />

passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho de intermediação<br />

de dinheiro na economia, de modo a preservar a competência constitucional da lei<br />

complementar do Sistema Financeiro Nacional’ (...)<br />

(...)”<br />

3. O voto do Relator — Carlos Velloso<br />

Velloso, Relator, faz considerações acerca do princípio constitucional de defesa<br />

do consumidor.<br />

Para Velloso, o conflito entre a lei complementar do SFN e o CDC é meramente<br />

aparente.<br />

O âmbito de aplicação do CDC é diverso e não interfere na estrutura institucional<br />

do SFN.<br />

Com isso, seria permitida coexistência entre a lei complementar reguladora do<br />

setor financeiro e o CDC a sujeitar instituições bancárias, de crédito e de seguros.<br />

Velloso conclui:<br />

“(...)<br />

IX. (...), o Código de Defesa do Consumidor, não interfere com o Sistema<br />

Financeiro Nacional, (...), em termos institucionais, já que o Código limita-se a<br />

proteger e defender o consumidor, o que não implica, repete-se, interferência no<br />

Sistema Financeiro Nacional. Protegendo e defendendo o consumidor, realiza o<br />

Código o princípio constitucional. Atualmente, o Sistema Financeiro Nacional é<br />

regulado pela Lei 4.595/64, recebida pela CF/88 como lei complementar naquilo<br />

em que ela regula e disciplina o Sistema, não existindo entre aquela lei e a Lei<br />

8.<strong>07</strong>8, de <strong>199</strong>0 — Código de Defesa do Consumidor — antinomias. O Código de<br />

âmbito do sistema financeiro, violando o princípio do devido processo legal substantivo (art. 5º, LIV, da<br />

Constituição Federal).<br />

(...)<br />

50. No presente caso, para além de já existir regulamentação pertinente à defesa dos direitos dos<br />

usuários das instituições financeiras, expedida pelos órgãos de controle contemplados nos atos<br />

legislativos com eficácia de lei complementar, o que afasta o requisito da necessidade, a inadequação<br />

se revela quer por ser incabível procedê-la por meio da legislação ordinária, como é o caso da Lei n.<br />

8.<strong>07</strong>8/90, quer por haver referida lei submetido temas tão distintos a disciplina idêntica.<br />

(...)”


554<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Defesa do Consumidor aplica-se às atividades bancárias da mesma forma que a<br />

essas atividades são aplicáveis, sempre que couber, o Código Civil, o Código<br />

Comercial, o Código Tributário Nacional, a Consolidação das Leis Trabalhistas e<br />

tantas outras leis.<br />

(...)” (Voto — p. 30)<br />

Para Velloso, entretanto, a questão referente aos juros aplicáveis às operações<br />

bancárias é matéria que se coloca fora do alcance do CDC.<br />

Acompanha, nesse ponto, a jurisprudência do <strong>STF</strong> (ADI 4, Sydney Sanches, DJ de<br />

25-6-<strong>199</strong>3).<br />

Adota o parecer da PGR:<br />

“(...)<br />

Empresto, de conseguinte, à norma inscrita no § 2º do art. 3º da Lei 8.<strong>07</strong>8/90 —<br />

‘inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária’ —<br />

interpretação conforme à Constituição, para dela afastar a exegese que nela<br />

inclua a taxa dos juros das operações bancárias, ou sua fixação em 12% ao ano,<br />

dado que essa questão diz respeito ao Sistema Financeiro Nacional — C.F. art.<br />

192, § 3º — tendo o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4-DF,<br />

decidido que o citado § 3º do art. 192, da Constituição Federal, não é autoaplicável,<br />

devendo ser observada a legislação anterior à C.F./88, até o advento da<br />

lei complementar referida no caput do mencionado art. 192, da Constituição<br />

Federal.<br />

(...)” (Voto — p. 47)<br />

Além de Velloso, votou Néri da Silveira.<br />

Este julga improcedente a ação.<br />

Néri considera que eventuais conflitos entre os dois regimes deverão ser resolvidos<br />

caso a caso.<br />

Ou seja, Néri não enfrentou o tema.<br />

4. A posição do STJ e de outros tribunais<br />

Em 9-9-2004, o STJ editou a Súmula 297 com esta redação:<br />

“O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.”<br />

A Súmula é resultado do entendimento do STJ em cinco julgamentos, que<br />

reproduziu em outros 6 .<br />

6 REsp 57.974, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 29-5-<strong>199</strong>5; REsp 106.888, Rel. Min. César<br />

Asfor Rocha, DJ de 5-8-2002; REsp 175.795, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ de 10-5-<strong>199</strong>9; REsp<br />

298.369, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 25-8-2003; e REsp 387.805, Rel. Min.<br />

Nancy Andrighi, DJ de 9-9-2002; REsp 160.861, Rel. Min. Costa Leite, DJ de 3-8-<strong>199</strong>8; REsp<br />

163.616, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 3-8-<strong>199</strong>8; REsp 47.146, Rel. Min. Ruy Rosado de<br />

Aguiar, DJ de 6-2-<strong>199</strong>5; etc.


R.T.J. — <strong>199</strong> 555<br />

O caso mais abrangente é o REsp 106.888 7 .<br />

A decisão final foi no sentido de reconhecer a relação de consumo em todas as<br />

atividades bancárias.<br />

Eis os argumentos:<br />

a) os titulares de cadernetas de poupança, muito embora não paguem diretamente,<br />

remuneram indiretamente os bancos por meio do uso que estes fazem do dinheiro dos<br />

poupadores;<br />

b) o § 2º do art. 3º do CDC expressamente prevê que são considerados serviços para<br />

os fins do Código os de natureza bancária, financeira e creditícia;<br />

c) afastar a aplicação do CDC a esse tipo de relação significaria deixar desamparado,<br />

jurídico e judicialmente, todos os clientes e usuários bancários;<br />

d) a aplicação do CDC às cadernetas de poupança significaria dotar o poupador de<br />

instrumentos de proteção de uma aplicação financeira de “cunho nitidamente social”;<br />

e) a não aplicação do CDC às relações tipicamente bancárias poderia resultar na<br />

possibilidade de excessos e na fixação de cláusulas abusivas nos contratos de adesão<br />

elaborados pelos bancos;<br />

O STJ, portanto, concluiu no sentido de que têm natureza bancária todas as<br />

relações que envolvam a caderneta de poupança e as “tipicamente bancárias” como:<br />

“(...)<br />

concessão de crédito, em suas diversas formas: mútuos em geral, financiamentos<br />

rural, comercial, industrial ou para exportação, contratos de câmbio,<br />

empréstimos para capital de giro, abertura de crédito em conta corrente e abertura<br />

de crédito fixo, ou quaisquer outras modalidades do gênero.<br />

(...)”<br />

Examino, em primeiro lugar, depois de feita essa exposição inicial, a questão<br />

prejudicial.<br />

II - Voto<br />

1. Preliminar de prejudicialidade da ação direta.<br />

Examino a questão prejudicial.<br />

A inicial indica os arts. 5º, LIV, e 192, incisos II e IV.<br />

O art. 192 disciplinava amplamente o regime do SFN.<br />

Descia às minúcias.<br />

7 O Min. Cesar Asfor Rocha, Relator do REsp, bem expôs o objeto da questão decidida pela 2ª Seção:<br />

“Impende, contudo, estabelecer se o Código de Defesa do Consumidor incide sobre todas as<br />

relações e contratos pactuados entre as instituições financeiras e seus clientes, como os depósitos em<br />

caderneta de poupança, de que aqui se trata, ou se apenas na parte relativa à expedição de talonários,<br />

fornecimento de extratos, cobrança de contas, guarda de bens e outros serviços afins.” (p. 3 do voto).


556<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Indicava os temas a serem tratados por lei complementar e determinava a fixação<br />

do valor máximo de juros reais anuais (incisos e § 3º do art. 192).<br />

Quanto ao § 3º, o Supremo fixou que a norma constitucional não era autoaplicável<br />

e dependia de regulamentação (ADI 4).<br />

Em maio de 2003, a EC 40 alterou o art. 192.<br />

Reduziu-o para apenas um dispositivo:<br />

“Art. 192. O Sistema Financeiro Nacional, estruturado de forma a promover o<br />

desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em<br />

todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será<br />

regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do<br />

capital estrangeiro nas instituições que o integram.”<br />

Abro um parêntese para dizer aos Ministros que esse artigo decorreu de uma versão<br />

da imprensa, ADI n. 4, em que decidimos que teria de ser uma lei complementar para<br />

regular tudo. E disso, acabaram mencionando leis complementares, o que não era<br />

verdade, mas ficou — digamos — rendido, como se fosse a posição do Tribunal.<br />

“A questão, portanto, é saber se a revogação dos incisos — e parágrafos —<br />

prejudica a ação.<br />

Analiso.<br />

Discutem-se os limites de aplicação do CDC e a existência, ou não, de fronteiras<br />

entre relação de consumo e SFN.<br />

De um lado, está o campo que a CF indicou como princípio a ser garantido pelo<br />

Estado:<br />

— a defesa do consumidor (art. 5º, inciso XXXII 8 ; e art. 170, V 9 ).<br />

Do outro, o SFN tem destaque no texto da CF, além de ser setor fundamental para<br />

a estabilidade da moeda e fortalecimento da economia.<br />

O problema, portanto, não se limita às estritas fronteiras do texto constitucional.<br />

O regime jurídico aplicado aos bancos e ao SFN é tema demasiadamente sensível<br />

do ponto de vista econômico, político e social, para ficar restrito a uma previsão<br />

constitucional de tom mais analítico.<br />

8 CF/88:<br />

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos<br />

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à<br />

igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:<br />

(...)<br />

XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;<br />

9 CF/88:<br />

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,<br />

tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os<br />

seguintes princípios:<br />

(...)<br />

V - defesa do consumidor;


R.T.J. — <strong>199</strong> 557<br />

Está a tratar de um tema fundamental, do ponto de vista institucional.<br />

A revogação de grande parte do corpo do art. 192 demonstra que se trata de assunto<br />

de grande envergadura político-institucional.<br />

Os rigores e a imutabilidade das normas constitucionais poderiam vir a prejudicar<br />

a regulamentação de um setor que, por conceito, é dinâmico e em constante evolução.<br />

Em outras palavras, independente do enxugamento do art. 192, o problema dos<br />

limites de aplicação do CDC ao setor bancário se impõe.<br />

Tudo porque se está diante de dois valores constitucionais:<br />

— proteção do consumidor; e<br />

— fortalecimento da economia, com desenvolvimento.<br />

A interconexão de ambos os campos precisa ser definida.<br />

Além disso, o art. 192, após a EC 40/2003, conservou a competência da lei<br />

complementar para regular o SFN.<br />

Isso quer dizer que, do ponto de vista do processo legislativo, remanesce a<br />

impugnação de que lei ordinária não poderia regular a atividade dos bancos, por se tratar<br />

de tema de competência da norma complementar.<br />

Além do mais, a ação direta detém “causa de pedir aberta”.<br />

Isso significa que, em regra, a impugnação de lei não se faz com base apenas no<br />

dispositivo constitucional apontado na inicial.<br />

Ao contrário, a declaração de constitucionalidade, decorrente da improcedência<br />

de uma ADI, assegura a constitucionalidade da lei.<br />

Esse é o entendimento do Supremo 10 .<br />

No caso, a constitucionalidade da aplicação do CDC ao setor bancário deverá ser<br />

analisada com base em toda a Constituição, independente da norma constitucional<br />

levantada como desobedecida.<br />

Não se aplica ao caso, a jurisprudência, também consolidada, pela qual a revogação<br />

ou a alteração substancial da norma constitucional prejudica a ação 11 .<br />

É que, nesses casos, o tema versado diz respeito única e exclusivamente a determinado<br />

trecho ou dispositivo constitucional (por exemplo, regime do servidor público)<br />

Essa relação unívoca inviabiliza a análise da ação direta em face de outras normas<br />

ou princípios constitucionais que, em relação ao ato questionado, seriam simplesmente<br />

impertinentes.<br />

10 RE 357.576, Moreira Alves, DJ de 14-3-2003;<br />

ADI 1.749, Jobim, DJ de 15-4-2005;<br />

ADI 1.756, Moreira Alves, DJ de 6-11-<strong>199</strong>8;<br />

ADIMC 1.606, Moreira Alves, DJ de 31-10-<strong>199</strong>7;<br />

ADI 2.009, Moreira Alves, DJ de 9-5-2003.<br />

11 Por exemplo: ADI 909, Jobim, DJ de 6-6-2003;<br />

ADI 1.674, Sydney Sanches, DJ de 28-5-99.


558<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Em suma, quanto a essa preliminar, entendo que a ação deve prosseguir e ser<br />

conhecida porque:<br />

(a) a nova versão do art. 192 ainda conservou a competência legislativa da lei<br />

complementar para tratar do SFN;<br />

(b) a ação direta tem causa petendi aberta e, assim, a análise de constitucionalidade<br />

se faz com base em todo o ordenamento constitucional.<br />

Destaco a matéria e ouço os Colegas. Há alguma objeção?<br />

2. Mérito — aspecto jurídico<br />

O problema da aplicação do CDC ao setor bancário permite abordagens sob<br />

diversas dimensões.<br />

Tratarei da questão a partir do enfoque jurídico e do enfoque econômico.<br />

2.1. O consumo e a poupança<br />

Ponto fundamental para a solução do problema da aplicação do CDC aos bancos é<br />

a conceituação de consumo e sua diferenciação do conceito de poupança.<br />

Tais idéias são comumente tratadas como equivalentes quando analisadas relações<br />

entre pessoas e bancos.<br />

No entanto, existem diferenças entre as duas que inviabiliza o tratamento sob o<br />

mesmo regime jurídico.<br />

Consumo aplica-se a aquisição ou utilização de coisas ou serviços para a satisfação<br />

de um interesse pessoal ou de uma necessidade.<br />

Subjacente à idéia de consumo está a noção de uso de coisa.<br />

Todo o consumo importa necessariamente em extinção, desaparecimento, deterioração,<br />

depreciação ou transformação de coisa ou serviço pelo seu simples uso, mediato<br />

ou imediato, de modo a atender a alguma necessidade.<br />

É o que acontece, em maior ou menor grau, com bens não-duráveis, como cigarro,<br />

comida, entretenimento, etc; ou duráveis, como vestuário e automóveis desde que sejam<br />

finais, acabados e adquiridos por consumidor final.<br />

Já poupança nos remete a outra noção.<br />

Passa-se para a idéia de acumulação de capital, de excedente de recursos.<br />

Trata-se daquela sobra, financeiramente auferível, que remanesce após a satisfação,<br />

por meio do consumo, das necessidades.<br />

Nesse sentido, poupar e consumir são idéias de exclusão recíproca.<br />

Poupar significa, por isso, renúncia ao consumo presente, como forma de acumular<br />

recursos para um consumo futuro, certo ou incerto.<br />

2.2. Consumidor, poupador e mutuário<br />

Em decorrência, os conceitos de consumidor e de poupador são distintos.<br />

O conceito de consumidor está, é óbvio, associado à idéia de consumo.<br />

Por isso, quer significar aquele que adquire ou utiliza coisa, transformando-a ou<br />

destruindo-a, com o fim de atender interesse próprio.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 559<br />

Por ser elemento essencial na configuração da relação de consumo — ao lado do<br />

conceito de fornecedor 12 —, o próprio Código conceitua consumidor (art. 2º).<br />

Caracteriza o consumidor como qualquer<br />

“pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário<br />

final” 13 .<br />

Logo, o consumidor é aquele que remunera o serviço ou compra o bem que será<br />

consumido, por isso destinatário final.<br />

Ampliando a dimensão de análise, o consumidor participa da economia por meio<br />

de atividade retributiva:<br />

— pagamento diretamente vinculado e proporcional ao serviço que a ele será<br />

prestado ou ao bem por ele adquirido, como destinatário final.<br />

O poupador é aquele que, por escolha pessoal, não consome, mas conserva recurso,<br />

aplicando ou entesourando.<br />

Na sociedade capitalista, a figura do poupador está intimamente ligada à figura do<br />

próprio banco.<br />

Isso porque o poupador conserva seu capital por meio de depósitos nos bancos.<br />

O dinheiro, entregue em depósito aos bancos, pelos poupadores, acaba por ser<br />

utilizado para outros fins, especialmente para o empréstimo.<br />

Dessa forma, o poupador, em realidade, empresta a moeda e por esse “produto”<br />

recebe uma remuneração da instituição financeira.<br />

O empréstimo rende juros aos bancos.<br />

Parcela desses juros é utilizada para remunerar o poupador.<br />

O poupador não paga ou remunera um produto ou serviço, como o faz o consumidor.<br />

O poupador é remunerado por meio de juros pela moeda que entregou.<br />

O consumidor se desfaz de moeda para satisfação de interesse particular.<br />

Já o poupador recebe mais moeda pela entrega de capital — nada paga, não<br />

remunera.<br />

É remunerado.<br />

12 Lei 8.<strong>07</strong>8/90 (CDC):<br />

Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem<br />

como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação,<br />

construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou<br />

prestação de serviços.<br />

13 Lei 8.<strong>07</strong>8/90 (CDC):<br />

Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como<br />

destinatário final.


560<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Leio na doutrina:<br />

“(...)<br />

(…) sustentar que existe relação de consumo na atividade de depósito de<br />

cadernetas de poupança parece fugir à lógica do razoável, à medida que não se<br />

poderia fugir da inelutável ilação de que estaria o banco recebendo duas<br />

remunerações, uma pela captação (...) e outra pelo repasse, quando, em verdade, a<br />

remuneração é única e decorre do pagamento dos juros e demais encargos do<br />

mútuo diretamente pelo tomador do empréstimo (o mutuário). O aplicador de<br />

poupança não paga nada ao banco, nem direta, nem indiretamente. Não cabe falar<br />

em remuneração indireta se não há o pagamento pela via indireta.<br />

(...)” 14 .<br />

Da mesma forma que o consumidor não se confunde com poupador, também não<br />

há identidade entre consumidor e mutuário.<br />

O mutuário é aquele que está do outro lado da intermediação financeira dos bancos.<br />

São eles que pagam os juros aos bancos, que, por sua vez, remunerará os poupadores.<br />

O mutuário não se confunde com consumidor porque não é destinatário final de<br />

um produto.<br />

O colecionador de moedas, por exemplo, não é um mutuário.<br />

Ele adquire a moeda como mercadoria e, por isso, como destinatário final.<br />

Os bancos concedem o crédito de forma a permitir que o mutuário possa estabelecer<br />

relações de consumo com terceiros (construtoras, incorporadoras, proprietários de<br />

imóveis, etc.).<br />

Leio Galeno Lacerda:<br />

“(...)<br />

Se, no contrato de depósito bancário, o banco-depositário é devedor, e o<br />

cliente-depositante é credor, claro está que nele não se pode entrever uma relação<br />

de consumo, na qual, como é notório, o cliente-consumidor figura como devedor,<br />

e o fornecedor do bem de consumo, como credor. Aliás, aberraria do bom senso a<br />

solução oposta, já que consumo e depósito são, por definição, antônimos.<br />

Repelem-se por natureza e essência. Consumir o depósito tipifica, até, crime de<br />

depositário infiel. E consumir ‘serviço’ de depósito violenta, sem dúvida, o senso<br />

comum.<br />

(...)”15<br />

14 ZANELLATO, Marco Antonio. Oposição entre poupança e consumo. Inaplicabilidade do Código<br />

de Defesa do Consumidor. In: Revista de direito bancário e do mercado de capitais. Ano 2, n. 4. São<br />

Paulo: Revista dos Tribunais, jan./abr. de <strong>199</strong>9, p. 246.<br />

15 LACERDA, Galeno. Ação civil pública e contrato de depósito em caderneta de poupança —<br />

impossibilidade do uso daquela via nessa matéria. O contrato de depósito é estranho às relações de<br />

consumo. Limites à legitimação do Ministério Público na ação civil pública. Os interesses difusos ou<br />

coletivos não abrangem os interesses ou direitos individuais homogêneos. In: Revista dos Tribunais.<br />

Ano 84, vol. 715, maio de <strong>199</strong>5. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 109.


R.T.J. — <strong>199</strong> 561<br />

Não há que se pensar em consumo de serviço de depósito.<br />

“Na verdade, a relação que se estabelece entre poupador e banco e entre banco e<br />

mutuário perfaz algumas etapas do ciclo do dinheiro ou da moeda que cumpre sua<br />

função com a simples circulação.<br />

Não há ligação entre as operações bancárias e a idéia de consumo.<br />

Leio Paulo Brossard:<br />

“(...)<br />

(...) entre o consumidor, assim definido por lei, e o cliente de um banco,<br />

enquanto tal, não há identidade, nem semelhança, da mesma forma que entre o<br />

consumo e o contrato bancário. Operações bancárias ou operações de crédito não<br />

dizem respeito ao consumo; ao contrário, envolvem aplicação de reservas<br />

poupadas, exatamente do que sobejou por não ter sido utilizado no consumo, ou<br />

seja, na satisfação de necessidades.<br />

(...)” 16<br />

O mutuário e poupador integram etapas do processo econômico.<br />

Variações de seus comportamentos — de procura de crédito ou de nível de recursos<br />

poupados — terão impacto imediato na circulação da moeda, na disponibilidade de<br />

recursos, na capacidade de investimento e, portanto, no próprio funcionamento da<br />

economia.<br />

Já a relação de consumo claramente diz respeito a uma posição subjetiva<br />

individual ou individualizável.<br />

Diz com uma relação que se exaure, em termos de proteção, à garantia do exercício<br />

da liberdade de escolha e da igualdade contratual.<br />

A diferença não é meramente terminológica.<br />

A relação de consumo se apresenta sob enfoque tipicamente subjetivo, de<br />

proteção do consumidor, uma vez que a sua situação subjetiva se repete inúmeras vezes.<br />

Sua proteção, segundo as bases do direito constitucional brasileiro, se faz em<br />

termos de direitos fundamentais.<br />

A relação que o consumidor estabelece com um agente econômico mais poderoso,<br />

em uma relação economicamente desigual, exige a maior proteção do Estado à parte<br />

hipossuficiente.<br />

Já as relações concernentes ao ciclo da moeda têm natureza objetiva.<br />

Dizem respeito não só à relação do poupador ou do mutuário, tomados individualmente,<br />

mas aos reflexos dos comportamentos econômicos desses milhares de agentes na<br />

própria economia.<br />

O fundamento principal da regulamentação dessas relações é o próprio controle<br />

das bases da economia, assim como a fiscalização do nível de investimento realizado.<br />

16 BROSSARD, Paulo. Defesa do consumidor — atividade do Ministério Público — incursão em<br />

operações bancárias e quebra de sigilo — impossibilidade de interferência. In: Revista dos Tribunais.<br />

Ano 84, vol. 718, agosto de <strong>199</strong>5. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 90.


562<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Assim sendo, todos os cidadãos são invariavelmente envolvidos, porque são<br />

diretamente influenciados pela forma como se dará a regulação do setor financeiro.<br />

Por esse motivo o regime jurídico de proteção do consumidor é diferente do<br />

regime do poupador e do mutuário.<br />

3. A proteção do consumidor e a proteção do poupador e do mutuário<br />

3.1. Diferenças dos regimes jurídicos<br />

A diferença na composição e no funcionamento do sistema de proteção do<br />

consumidor e de proteção do poupador e do mutuário não é meramente legal.<br />

Tal distinção não advém de uma escolha política realizada pelo legislador.<br />

Na verdade, a diferença de perspectiva segue uma lógica que vem das premissas de<br />

proteção de cada um dos sistemas.<br />

Como já mencionado, a proteção das relações de consumo advém de uma<br />

necessidade de garantia de um conjunto de direitos do indivíduo, historicamente<br />

conquistado.<br />

As relações de consumo, tal como as relações de trabalho, apresentam-se como<br />

relações juridicamente igualitárias, a respeitar o conceito da igualdade formal, típica do<br />

Estado Liberal.<br />

Entretanto, são claramente relações de desníveis econômicos, políticos e sociais.<br />

Tais desníveis produzem condições para que a parte mais poderosa da relação possa<br />

exercer, abusivamente ou em excesso, sua autonomia contratual, sua liberdade negocial.<br />

As relações de consumo exigem, portanto, atuação específica do Poder Público,<br />

que passa, obrigatoriamente, por uma legislação protetiva.<br />

Essa perspectiva é evidente da leitura de alguns incisos do art. 4º do CDC, ao<br />

estabelecer a Política Nacional de Relações de Consumo 17 .<br />

Não é difícil perceber que o consumidor, por não ter o poder econômico do<br />

fornecedor ou do produtor, tem sua liberdade negocial diminuída.<br />

Na prática, é obrigado a se sujeitar às condições contratuais impostas pela parte<br />

mais forte.<br />

Muitas vezes, é levado a se submeter a constrangimentos e práticas abusivas por<br />

parte do estabelecimento comercial, não tendo condições de exigir, na relação individual,<br />

por exemplo:<br />

17 Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das<br />

necessidades dos consumidores, o REspeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus<br />

interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das<br />

relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:<br />

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;<br />

(...)<br />

IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres,<br />

com vistas à melhoria do mercado de consumo;


R.T.J. — <strong>199</strong> 563<br />

(a) alteração da embalagem do produto por falta de informações claras;<br />

(b) alteração de cláusula por se tratar de contrato-padrão;<br />

(c) instituição de departamento de atendimento ao consumidor na qual possa fazer<br />

reclamações e acompanhar as providências.<br />

Abro um parêntese para lembrar que essa relação consumidor/fornecedor, ou mesmo<br />

distribuidor, se agravou muito fortemente com as cadeias de grandes lojas. Antigamente,<br />

em cada cidade, o proprietário da loja estava lá e resolvia o problema da reclamação do<br />

consumidor. Hoje, você trata com gerentes que não têm nenhuma possibilidade. Daí por<br />

que a relevância do Código de Defesa e dos organismos de defesa para a proteção,<br />

principalmente nesse sistema, de maximização das operações de venda, sobretudo de<br />

consumo direto à população, em especial a linha branca de eletrodomésticos.<br />

O CDC arrola, nesse sentido, uma extensa listagem de práticas (art. 39 18 ) e de<br />

cláusulas contratuais abusivas (art. 51 19 ).<br />

18 Lei 8.<strong>07</strong>8/90 (CDC):<br />

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:<br />

I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou<br />

serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;<br />

II - recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades<br />

de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes;<br />

III - enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer<br />

qualquer serviço;<br />

IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde,<br />

conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;<br />

V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;<br />

VI - executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do<br />

consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anteriores entre as partes;<br />

VII - repassar informação depreciativa, referente a ato praticado pelo consumidor no exercício de<br />

seus direitos;<br />

VIII - colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as<br />

normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela<br />

Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de<br />

Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro);<br />

IX - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquirilos<br />

mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais;<br />

X - elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços;<br />

XI - (Dispositivo incluído pela MPV n. 1.890-67, de 22-10-<strong>199</strong>9, transformado em inciso XIII,<br />

quando da converão na Lei n. 9.870, de 23-11-<strong>199</strong>9);<br />

XII - deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixar a fixação de seu<br />

termo inicial a seu exclusivo critério;<br />

XIII - aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratualmente estabelecido.<br />

19 Lei 8.<strong>07</strong>8/90 (CDC):<br />

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento<br />

de produtos e serviços que:


564<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O art. 39, I, da Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90 tratava de venda casada, que era muito comum.<br />

Quando tínhamos os mecanismos de congelamento e de aumento de preço, vendia-se<br />

um guaraná junto com qualquer outra coisa; ou, nos próprios Bancos, quando, ao vender<br />

serviços, o gerente exigia também a compra de um seguro, porque ele tinha uma<br />

participação, o que era muito comum. Você fazia um financiamento e, ao mesmo tempo,<br />

tinha de fazer um seguro. Como fazia o mutualismo privado que fornecia o seguro e ao<br />

mesmo tempo exigia o pagamento de um financiamento, etc. Havia vários modelos.<br />

II - recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas<br />

disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes;<br />

III - enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto,<br />

ou fornecer qualquer serviço;<br />

O direito fundamental de proteção ao consumidor procura compensar essas desigualdades<br />

fáticas.<br />

Visa a estabelecer (fornecer) maiores restrições a essa autonomia contratual do<br />

fornecedor ou do produtor, restrições estas que o consumidor não teria como fixar na<br />

relação concreta.<br />

O direito do consumidor tem origem histórico-filosófica, de proteção a direitos<br />

fundamentais com preocupação direta com a própria figura do consumidor.<br />

I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a REsponsabilidade do fornecedor por vícios de<br />

qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas<br />

relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser<br />

limitada, em situações justificáveis;<br />

II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste<br />

código;<br />

III - transfiram responsabilidades a terceiros;<br />

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em<br />

desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;<br />

V - (Vetado);<br />

VI - estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;<br />

VII - determinem a utilização compulsória de arbitragem;<br />

VIII - imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor;<br />

IX - deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor;<br />

X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;<br />

XI - autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja<br />

conferido ao consumidor;<br />

XII - obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual<br />

direito lhe seja conferido contra o fornecedor;<br />

XIII - autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato,<br />

após sua celebração;<br />

XIV - infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais;<br />

XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;<br />

XVI - possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias.


R.T.J. — <strong>199</strong> 565<br />

Já a proteção do poupador e do mutuário não toma por base a intenção de<br />

equiparar uma relação faticamente desigual.<br />

Na verdade, a perspectiva é outra, já que as condições de funcionamento do SFN<br />

dependem de regulação do Poder Público.<br />

A preocupação é com toda a população.<br />

Busca-se a estabilidade econômica, a consolidação do sistema bancário, a redução<br />

do custo do dinheiro e a facilitação das condições de empréstimo e investimento, em<br />

fim, o desenvolvimento.<br />

As figuras do poupador e do mutuário não são protegidas enquanto indivíduos na<br />

perspectiva histórica, mas enquanto peças fundamentais para o funcionamento da<br />

economia.<br />

No consumo, a proteção do consumidor se encerra nele mesmo.<br />

No setor financeiro, a proteção do poupador e do mutuário integra a proteção da<br />

política econômica, que tem repercussões em toda a população.<br />

Assim, no direito do consumo, os órgãos de proteção atuam como procuradores e<br />

defensores do direito difuso, coletivo ou individual homogêneo de todos os consumidores.<br />

O CDC cria um sistema de proteção nesse sentido.<br />

Prevê a participação de diversos órgãos públicos e entidades privadas.<br />

Cria instrumentos políticos e jurídicos para a concretização de uma política do<br />

consumo. 20<br />

O chamado Sistema Nacional de Defesa do Consumidor – SNDC é integrado<br />

pelo:<br />

1. Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor – DPDC, vinculado à<br />

Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, que é órgão de coordenação<br />

da política de consumo; e<br />

2. os Procons estaduais (em número de 27) e municipais, com competência para<br />

garantir os direitos dos consumidores por meio de providências, inclusive judiciais,<br />

para planejar, para coordenar e para executar a política de proteção local.<br />

Além desses órgãos previstos no CDC e no Decreto 2.181/97, é de se lembrar as<br />

Delegacias do Consumidor – Decons, a atuação do Ministério Público e a participação<br />

de várias ONGs. 21<br />

20 Lei 8.<strong>07</strong>8/90 (CDC):<br />

Art. 105. Integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor – SNDC, os órgãos federais,<br />

estaduais, do Distrito Federal e municipais e as entidades privadas de defesa do consumidor.<br />

21 Lei 8.<strong>07</strong>8/90 (CDC):<br />

Art. 5º Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o poder público com<br />

os seguintes instrumentos, entre outros:


566<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

A filosofia própria de fiscalização e proteção do SFN exigiu a montagem de uma<br />

estrutura completamente diversa, e segue princípios diferentes de controle.<br />

Nessa seara, o objetivo é a proteção da população brasileira por meio de uma<br />

política de acompanhamento e controle da economia.<br />

O interesse pessoal do poupador e do mutuário se inclui nessa perspectiva, o que<br />

se percebe a partir da legislação protetiva do chamado “cliente bancário” (Resolução<br />

2.878, de 26-7-2001).<br />

Assim, a proteção do SFN, ou, em outras palavras, a proteção da economia e da<br />

própria política monetária, se faz por meio dos órgãos e entidades públicas criadas<br />

especificamente para o fim de regular a atividade financeira e de estabelecer os fundamentos<br />

da própria economia:<br />

1. o Banco Central – Bacen e<br />

2. o Conselho Monetário Nacional – CMN.<br />

O CMN é o órgão deliberativo mais importante do SFN e sua competência está<br />

estabelecida em lei (Lei 4.595/64, art. 4º).<br />

Dentre outras:<br />

1. desenvolver a política regulatória com o fim de zelar pela liquidez e pela<br />

solvência das instituições financeiras;<br />

2. regular a constituição, funcionamento e fiscalização das entidades pertencentes<br />

ao Sistema; e<br />

3. orientar a aplicação de recursos das entidades financeiras para viabilizar desenvolvimento<br />

e crescimento da economia nacional 22 .<br />

I - manutenção de assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidor carente;<br />

II - instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do Ministério<br />

Público;<br />

III - criação de delegacias de polícia especializadas no atendimento de consumidores vítimas de<br />

infrações penais de consumo;<br />

IV - criação de Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas Especializadas para a solução de<br />

litígios de consumo;<br />

V - concessão de estímulos à criação e desenvolvimento das Associações de Defesa do Consumidor.<br />

22 Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964:<br />

Art. 3º A política do Conselho Monetário Nacional objetivará:<br />

I - adaptar o volume dos meios de pagamento às reais necessidades da economia nacional e seu<br />

processo de desenvolvimento;<br />

(...)<br />

IV - orientar a aplicação dos recursos das instituições financeiras, quer públicas, quer privadas;<br />

tendo em vista propiciar, nas diferentes regiões do País, condições favoráveis ao desenvolvimento<br />

harmônico da economia nacional;<br />

V - propiciar o aperfeiçoamento das instituições e dos instrumentos financeiros, com vistas à<br />

maior eficiência do sistema de pagamentos e de mobilização de recursos;<br />

VI - zelar pela liquidez e solvência das instituições financeiras;


R.T.J. — <strong>199</strong> 567<br />

Onde o Conselho Monetário, então, fixa formas diretivas e indutoras da economia,<br />

no que diz respeito à aplicação dos recursos dos poupadores que depositaram nos<br />

bancos.<br />

Já o Bacen é o órgão executor da política monetária e da política de regulação do<br />

SFN (Lei 4.595/64, art. 10).<br />

Na lógica desse sistema, as decisões da CMN bem como suas disposições<br />

normativas são implementadas pelo Bacen.<br />

Este edita resoluções tendo por base:<br />

(1) o resguardo da solvência bancária;<br />

(2) a proteção contra a vulnerabilidade, assegurando liquidez e impedindo “corridas<br />

bancária”;<br />

(3) a redução das falhas informacionais e da própria instabilidade estrutural do<br />

setor.<br />

Está em Lopes e Rossetti:<br />

“(...)<br />

Em síntese, dado esse elenco de atribuições, o Bacen pode ser considerado<br />

como:<br />

Banco dos bancos, à medida que recebe, com exclusividade, os depósitos<br />

compulsórios dos bancos comerciais, fornece empréstimos de liquidez e redescontos<br />

para atender às necessidades imediatas das instituições financeiras e regulamenta o<br />

funcionamento dos serviços de compensação de cheque e outros papéis.<br />

Superintendente do sistema financeiro nacional, à medida que adapta seu<br />

desenvolvimento e os fundos e programas especiais por ele administrados às reais<br />

necessidades e transformações verificadas na economia do país, baixando normas,<br />

fiscalizando e controlando as atividades das instituições financeiras, concedendo<br />

autorização para seu funcionamento e decretando intervenções ou liquidação<br />

extrajudicial dessas instituições.<br />

Executor da política monetária, à medida que regula a expansão dos meios<br />

de pagamento, elaborando o orçamento monetário e utilizando os instrumentos de<br />

política monetária (administração das taxas dos recolhimentos compulsórios, dos<br />

redescontos de liquidez e das operações de compra e venda de títulos públicos no<br />

mercado aberto).<br />

Art. 4º Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo<br />

Presidente da República:<br />

(...)<br />

VII - coordenar a política de que trata o art. 3º desta Lei com a de investimentos do Governo<br />

Federal;<br />

VIII - regular a constituição, funcionamento e fiscalização dos que exercerem atividades<br />

subordinadas a esta lei, bem como a aplicação das penalidades previstas;


568<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Banco emissor, à medida que detém o monopólio de emissão do papelmoeda<br />

e da moeda metálica e executa os serviços de saneamento do meio<br />

circulante.<br />

Banqueiro do governo, à medida que financia o Tesouro Nacional,<br />

mediante a colocação de títulos públicos, administra a dívida pública interna e<br />

externa, é depositário e administrador das reservas internacionais do país e executa<br />

as operações ligadas a organismos financeiros internacionais.<br />

(...)” 23 .<br />

De forma direta, tais questões relacionam-se com o nível de recursos poupados, o<br />

que representa a solvência e liquidez do sistema.<br />

Tem relação, também, com o nível de recursos tomados, o que representa o nível<br />

de investimentos a serem realizados, o custo do empréstimo e, portanto, o nível de<br />

crescimento da economia.<br />

É evidente que as relações do mutuário e do poupador com o banco, por serem<br />

indiretamente instrumentos de política monetária, não se resumem aos interesses<br />

individuais envolvidos — o interesse do mutuário em reduzir os juros que foram<br />

contratados e dos bancos em cobrar aqueles juros.<br />

3.2. A defesa do cliente bancário<br />

Os pressupostos de defesa do consumidor, de um lado, e do poupador e do<br />

mutuário, de outro, são tão diferentes nos regimes jurídicos a eles aplicados, que existe<br />

uma espécie de Código de Defesa do Cliente Bancário como forma de garantir os<br />

direitos desses indivíduos.<br />

Trata-se da Resolução Bacen (a que já me referi) n. 2.878, de 26-7-2001.<br />

Essa Resolução define deveres das instituições bancárias, tais como (art. 1º e<br />

incisos):<br />

1. transparências nas relações contratuais, garantindo prévio e integral conhecimento<br />

das cláusulas com destaque das que prevêem responsabilidade e penalidades;<br />

2. respostas tempestivas às consultas, reclamações e pedidos de informações dos<br />

clientes de maneira a sanar com brevidade e eficiência os problemas e as dúvidas<br />

informadas;<br />

3. clareza no formato dos contratos;<br />

4. entrega ao cliente de cópias dos documentos assinados, bem como de recibo de<br />

valores pagos;<br />

5. efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais causados aos seus<br />

clientes;<br />

6. obrigação das instituições de informar com clareza, por meio de afixação de<br />

avisos em suas dependências, as situações que poderão justificar recusas de cheques,<br />

23 LOPES, João do Carmo; ROSSETTI, José Paschoal. Economia monetária. 9. ed. São Paulo: Atlas,<br />

<strong>199</strong>9. p. 446.


R.T.J. — <strong>199</strong> 569<br />

boletos, fichas de compensação ou mesmo hipótese de não aceitação de pagamentos em<br />

geral (art. 2º), bem como número telefônico da Central de Atendimento ao Cliente do<br />

próprio banco e do número telefônico do Bacen para reclamações;<br />

7. obrigação das instituições de evidenciar aos clientes condições contratuais<br />

(responsabilidade na emissão de cheque, inscrição do Cadastro de Emitentes de cheques<br />

sem fundo; penalidades; tarifas; procedimento de encerramento de conta; multas, etc)<br />

(art. 3º e incisos);<br />

8. vedação de publicidade enganosa ou abusiva (art. 5º);<br />

9. dever de assegurar ao cliente a possibilidade de liquidação antecipada de<br />

débitos, parcial ou integralmente, com redução proporcional dos juros (art. 7º);<br />

10. dever de utilizar, em contratos e em avisos, terminologia clara e de fácil<br />

entendimento (art. 8º);<br />

11. atendimento prioritário a idosos, a gestantes, a lactantes, a portadores de deficiência,<br />

a pessoas com mobilidade reduzida, bem como a garantia de fácil acesso às<br />

agências e circulação interna adequada a todos os clientes (art. 9º e incisos);<br />

12. proibição de estabelecer maiores exigências para idosos e portadores de<br />

deficiência física ou visual em virtude dessa condição do que as exigências fixadas para<br />

os demais clientes (arts. 11 e 12);<br />

13. proibição de medidas administrativas internas que possam significar restrições<br />

de acesso amplo às dependências públicas da instituição (art. 14);<br />

14. em saques de conta de depósito à vista do cliente, é proibido à instituição<br />

estabelecer prazo para postergar a conclusão da operação para o expediente seguinte<br />

(art. 16);<br />

15. proibição de venda casada (art. 17);<br />

16. proibição de:<br />

a) transferência de recursos de conta de depósito à vista ou conta de poupança<br />

para qualquer investimento, ou a realização de qualquer operação, sem a prévia<br />

anuência do cliente;<br />

b) prevalecer-se, em razão de idade, de saúde, de conhecimento, de condição<br />

social ou econômica do cliente ou do usuário, para impor-lhe contrato, cláusula<br />

contratual, operação ou prestação de serviço;<br />

c) elevar, sem justa causa, valor de tarifas, taxas, comissões ou qualquer<br />

contra-prestação de serviços;<br />

d) aplicar fórmula ou índice de reajuste que não seja o previsto em lei;<br />

e) deixar de estipular prazo para o cumprimento de seu próprio dever ou<br />

deixar essa fixação a seu unilateral critério;<br />

f) rescindir, suspender ou cancelar contrato, operação ou serviço, ou executar<br />

garantia fora das hipóteses legais ou contratualmente previstas; e<br />

g) expor o cliente a constrangimento ou ameaça na cobrança de dívidas.<br />

.


570<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Fiz uma relação daquilo que está no chamado Código de Defesa do Cliente Bancário.<br />

Algumas dessas proteções dizem respeito ao funcionamento da instituição e da<br />

prestação de serviços ao usuário, aqui consumidor.<br />

Ou seja, temos, neste elenco, uma série de previsões que dizem respeito ao usuário<br />

do banco que, aqui, é tratado seguramente como consumidor.<br />

Outras dessas disposições protegem diretamente o cliente (poupador ou mutuário)<br />

na relação subjetiva que estabelece com o banco.<br />

Então, temos duas situações distintas: a do poupador e do mutuário cliente, que<br />

estaria sujeito às normas do sistema, e aqueles usuários de bancos, considerados clientes,<br />

mas que têm uma relação de consumo.<br />

De qualquer forma, o cliente bancário está protegido por uma normatividade que<br />

regula diretamente a relação do cidadão com o banco, dentro do regime jurídico próprio<br />

e dos princípios que norteiam essa atividade.<br />

Não existe, sob esse aspecto, diferenças de amparo do Poder Público na proteção<br />

do consumidor, do poupador e do mutuário.<br />

São situações garantidas sob diversos pressupostos:<br />

1. o do consumo, sob o pressuposto da compensação de uma relação desigual;<br />

Vemos relação de consumo nos serviços bancários.<br />

2. o dos recursos financeiros, sob o pressuposto da garantia da liquidez e solidez do<br />

sistema financeiro-monetário, a estabilidade monetária e o desenvolvimento do país.<br />

Significam, aqui, as operações bancárias.<br />

4. Relação entre poupador ou mutuário e política econômica<br />

4.1. Os bancos e sua função no SFN<br />

Os bancos estão ligados à superação do antigo estágio de escambo.<br />

Tal superação se dá por ser o banco um elo entre agentes econômicos deficitários 24<br />

e agentes econômicos superavitários 25 .<br />

Historicamente, portanto, os bancos nasceram de um processo lento de aproximação<br />

desses dois tipos de agentes.<br />

Permitiram que os recursos que sobrassem dos superavitários fossem utilizados<br />

pelos agentes deficitários.<br />

Essa é a intermediação financeira — atividade típica dos bancos.<br />

A sua importância é a circulação monetária.<br />

Ela possibilita que a poupança se transforme em investimento.<br />

24 Pessoas que precisam de investimentos ou recursos, já que gastam em maior valor do que a renda<br />

correntemente recebida.<br />

25 A soma das despesas e investimentos é menor do que a renda auferida.


R.T.J. — <strong>199</strong> 571<br />

Facilita a produção de bens e serviços por meio do abastecimento de recursos aos<br />

produtores e fabricantes.<br />

Com isso, tornam-se viáveis o crescimento e o desenvolvimento econômico.<br />

Leio Lopes e Rossetti:<br />

“(...)<br />

Na realidade, os intermediários financeiros só têm razão de ser quando se<br />

encontram agentes que desejam gastar mais do que seus rendimentos correntes,<br />

concomitantemente com outros que possuem rendimentos em excesso, relativamente<br />

às suas intenções de gasto, predispondo-se a trocar seus ativos monetários<br />

por ativos financeiros não monetários. Assim, os intermediários financeiros colocam-se<br />

entre os possíveis mutuários, que acusam déficits orçamentários, e os<br />

possíveis mutuantes, que acusam superávits, dispondo-se os primeiros a arcar com<br />

os custos financeiros de sua opção por um dispêndio superior a seus rendimentos<br />

correntes, e os segundos a assumir os riscos inerentes à transformação de seus<br />

ativos monetários, líquidos por excelência, em ativos financeiros menos líquidos,<br />

mas rentáveis em termos reais.<br />

(...)” 26<br />

Diversas são as vantagens dessa atividade de intermediação:<br />

1. Dispensa o contato direto entre agentes.<br />

É extremamente improvável, salvo em situações fáticas muito especiais, que os<br />

agentes deficitários aceitem tomar empréstimos nas mesmas condições que agentes<br />

superavitários se disponham a concedê-los.<br />

A intermediação financeira diminui incertezas, cria padrões de condutas nos<br />

empréstimos, desenvolve uma classe profissional que estabiliza essa atividade, já que a<br />

desenvolve em escala, o que a permite criar condições de empréstimos muito mais<br />

viáveis e regras mais adequadas 27 .<br />

2. Minimiza os custos e os riscos no sistema socioeconômico.<br />

Uma operação financeira tem seu custo calculado não apenas com base nos<br />

elementos internos do contrato ou nos riscos da intenção ou situação do tomador.<br />

Esse cálculo também leva em conta contingências não dependentes dos agentes<br />

desastres naturais, crise econômica geral, infortúnios, etc.<br />

A intermediação financeira reduz esses custos, já que o aparecimento de uma<br />

classe profissional diversifica a atividade e aumenta as regiões abrangidas, o que força a<br />

redução do custo relativo da operação.<br />

26 LOPES, João do Carmo; ROSSETTI, José Paschoal. Economia monetária. 9. ed. São Paulo: Atlas,<br />

<strong>199</strong>9. p. 408.<br />

27 STANFORD, Jon. Papel dos intermediários financeiros. In: Moeda, bancos e atividades<br />

econômicas. São Paulo: Atlas, 1976. p. 55.


572<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

3. Facilita o encontro de capital disponível.<br />

Com a intermediação financeira, o agente deficitário tem condições mais adequadas<br />

de encontrar excedentes no momento de sua necessidade.<br />

4. Aumenta o acesso ao mercado financeiro.<br />

A intermediação possibilita, com mais facilidade e rapidez, que grandes montantes<br />

de excedentes monetários se transformem em ativos financeiros e permite que pequenas<br />

poupanças sejam utilizadas em investimentos.<br />

Do outro lado, a possibilidade de tomada de grandes empréstimos viabiliza investimentos<br />

e a possibilidade da tomada de empréstimos diminutos permite o aumento do<br />

consumo de bens, móveis e imóveis, e de serviços.<br />

5. Flexibiliza os critérios de empréstimo.<br />

A diversificação da atividade de intermediação financeira possibilita um exame<br />

macro de critérios de rentabilidade e retorno, que permite a flexibilização e a facilitação<br />

no oferecimento de recursos.<br />

4.2. Bancos e política monetária<br />

Diante dessas funções, fica fácil perceber a importância da atividade bancária para<br />

a política monetária e para a estabilidade da própria economia.<br />

A política monetária e a política fiscal formam a política econômica do país.<br />

É por meio da política monetária que as Autoridades Monetárias controlam a<br />

liquidez total do sistema econômico.<br />

Com uma política monetária restritiva, a quantidade de moeda no mercado é<br />

reduzida, visando a desaquecer a economia, ceteris paribus, levando a redução dos<br />

preços.<br />

Ou seja, a oferta de moeda reduz; segura-se, portanto, eventual aumento de preços.<br />

Utilizada dessa forma restritiva, a política monetária serve como instrumento de<br />

combate às pressões inflacionárias.<br />

Já uma política monetária expansionista aumenta a quantidade de moeda no<br />

mercado com o objetivo de incrementar a demanda e incentivar o crescimento econômico.<br />

É importante ter presente a opção.<br />

A opção entre uma política monetária restritiva e uma política monetária<br />

expansionista é uma decisão de Governo.<br />

Esse é o debate no Brasil de hoje.<br />

Uns sustentam a redução da taxa de juros para incrementar o desenvolvimento.<br />

Outros alertam para as pressões inflacionárias.<br />

A opção constitui-se em uma decisão de Governo.<br />

Criticável ou não, mas é uma decisão de governo.<br />

Constitui-se na formulação, pelo Governo, da política monetária.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 573<br />

Para a consecução dos objetivos macroeconômicos fixados pela política adotada,<br />

as Autoridades Monetárias e Financeiras detêm, basicamente, sete instrumentos<br />

principais:<br />

(1) incentivo ou restrição ao crédito;<br />

(2) compra ou venda de títulos públicos;<br />

(3) depósitos compulsórios;<br />

(4) taxa de redesconto;<br />

(5) taxa de juros;<br />

(6) emissão de moeda; e<br />

(7) administração das reservas cambiais.<br />

São exatamente esses os sete instrumentos principais de manejo na política monetária.<br />

Dentre tais instrumentos, a taxa de juros tem se mostrado, historicamente, a mais<br />

eficaz e a mais utilizada no mundo.<br />

4.3. Taxa de juros como instrumento de política monetária<br />

A taxa de juros é uma ferramenta de alta eficácia no controle do nível de atividade.<br />

A elevação taxa de juros acarreta uma redução da quantidade de moeda na<br />

economia (liquidez) e conseqüente retração do consumo e da própria inflação.<br />

Já a redução dos juros tende a estimular a atividade econômica, impulsionando o<br />

consumo e a produção.<br />

E, aqui, vem o ponto político sério de que duas metas de política econômica são<br />

possíveis: ou a meta é a inflação, ou a meta possa ser o desenvolvimento.<br />

O Bacen, tendo a política monetária como mecanismo para administrar a liquidez<br />

da economia, se a inflação for a meta, irá fazer suas escolhas de modo a obter o melhor<br />

resultado possível.<br />

No sentido da graduação da taxa de juros para reduzir o aquecimento da economia.<br />

Quando a meta for a inflação, tem o Bacen duas opções de política de estabilidade:<br />

(1) o câmbio fixo; e<br />

(2) a própria taxa de juros.<br />

A taxa de juros acabou sendo a opção preferida como instrumento de controle da<br />

inflação, uma vez que a utilização da âncora cambial requer um elevado volume de<br />

reservas internacionais em moeda forte.<br />

Ou seja, mexer, estabelecer uma banda cambial e controlar a inflação pela via da<br />

taxa de câmbio importa em grandes aportes de moeda estrangeira forte à disposição.<br />

Então, a opção internacional tem de ser dado; e aqui, no Brasil, principalmente, tem se<br />

dada pelo manejo da taxa de juros.<br />

O Comitê de Política Monetária – COPOM foi instituído em 20-6-<strong>199</strong>6, com o<br />

objetivo de estabelecer as diretrizes da política monetária.<br />

.


574<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Cabe ao Copom a definição da taxa de juros média dos financiamentos diários, com<br />

lastro em títulos federais, apurados no Sistema Especial de Liquidação e Custódia –<br />

SELIC.<br />

Esta é a função básica do Copom: administrar a definição da taxa de juros<br />

médios para efeito de fixar os lastros dos títulos federais base da Selic. Alguns repetem<br />

muito a Selic, mas nem todos sabem que significa o Sistema Especial de Liquidação e<br />

Custódia<br />

A criação do Copom buscou proporcionar maior transparência e um ritual adequado<br />

ao processo decisório da autoridade monetária.<br />

Seguiu-se o exemplo do que já era adotado pelo Federal Open Market Committee –<br />

FOMC, do Federal Reserve, nos Estados Unidos, e pelo Central Bank Council, do<br />

Bundesbank, na Alemanha.<br />

Tal procedimento também foi adotado, em 06/<strong>199</strong>8, pelo Bank of England, com a<br />

criação do seu Monetary Policy Committee – MPC, assim como pelo Banco Central<br />

Europeu desde a criação do euro, em 01/<strong>199</strong>9.<br />

O Banco Central dos Estados Unidos (FED), com a credibilidade adquirida sob<br />

o comando de Paul Volcker e Alan Greenspan, tem utilizado a taxa de juros como<br />

mecanismo atenuador do ciclo econômico, sem colocar em risco o controle inflacionário.<br />

Observem bem que a posição do FED é, exatamente, o controle do ciclo econômico.<br />

Tem como perspectiva o desenvolvimento, mas como um risco — digamos —,<br />

como um casamento para o controle inflacionário.<br />

Outros bancos centrais, como o Banco da Inglaterra, do Canadá, da Nova<br />

Zelândia, da Austrália, do México e do Chile, adotaram o regime de metas de inflação.<br />

Ou seja, operaram numa outra solução.<br />

A política monetária no Brasil, estabelecida a partir de <strong>199</strong>9, passou a seguir esse<br />

regime.<br />

Nele o Bacen deve utilizar a taxa de juros como instrumento básico para fazer com<br />

que a inflação, medida pelo IPCA (IBGE), fique dentro da meta estabelecida.<br />

Há uma meta central e um intervalo de variação em torno do qual a inflação pode<br />

se situar.<br />

Desde que o governo adotou o sistema de metas de inflação e o câmbio flutuante,<br />

a taxa de juros é o principal instrumento usado para conter a pressão sobre os preços.<br />

Assim, o objetivo da política monetária atual é o controle da inflação através da<br />

variação da taxa de juros.<br />

Esta é a opção política do governo atual.<br />

Na teoria econômica, há consenso de que existe uma correlação negativa entre<br />

taxa de juros e crescimento econômico.<br />

Uma elevação da taxa de juros determinará um menor crescimento da economia e<br />

vice-versa.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 575<br />

Por outro lado, é também consenso que elevadas taxas de inflação geram perdas no<br />

nível de bem-estar da população, seja pelo aumento das desigualdades sociais, seja pela<br />

geração de incertezas quanto ao futuro.<br />

Portanto, é tarefa da autoridade monetária encontrar o ponto de equilíbrio<br />

entre um crescimento sustentado de longo prazo e taxas reduzidas de inflação.<br />

Para atingir esse objetivo, o Bacen optou por ajustar a taxa de juros básica.<br />

O regime de metas de inflação funciona da seguinte forma:<br />

(1) explicitam-se as metas de inflação para os anos seguintes;<br />

(2) divulgam-se trimestralmente as projeções de inflação; e<br />

(3) detalham-se, nas atas das reuniões, as formas de reação do Bacen.<br />

O Copom atua a partir de uma avaliação da tendência futura da inflação.<br />

As projeções são obtidas utilizando-se as informações disponíveis, tanto quantitativas,<br />

processadas através de modelos estruturais, simulações e outras medidas estatísticas,<br />

como qualitativas.<br />

4.4. As taxas de juros no mercado brasileiro<br />

A taxa básica de juros, estabelecida pelo Bacen através do Copom, é o referencial<br />

da taxa de juros que o governo utiliza para se financiar, junto ao mercado, através da<br />

emissão de títulos públicos.<br />

Ela serve de base para outras taxas de juros praticadas no país.<br />

Fiz essa digressão, exatamente, sobre a formulação da taxa de juros e a opção do<br />

Brasil de hoje em relação ao combate à inflação, para mostrar que a taxa básica de juros,<br />

fixada pelo Copom, repercute na taxa de juros praticada pelo país, porque a taxa básica<br />

de juros define o preço dos valores dos títulos públicos lançados no mercado.<br />

Marshall, citado por Keynes, enfatiza que:<br />

“(...)<br />

‘O juro, sendo o preço pago pelo uso do capital em qualquer mercado, tende<br />

a um nível de equilíbrio tal que a procura agregada de capital no dito mercado, a<br />

essa taxa de juros, seja igual ao estoque agregado que nele venha ocorrer à mesma<br />

taxa.<br />

(...)” 28<br />

Assim sendo, as taxas de juros de mercado são determinadas a partir da taxa<br />

básica de juros da economia, estabelecida pelo Copom, adicionada de um spread<br />

bancário.<br />

Aqui está a base. A taxa de juros de mercado depende da taxa de juros básica da<br />

economia mais um spread.<br />

28 KEYNES, John Maynard. Teoria geral do emprego, dos juros e da moeda. Atlas, <strong>199</strong>2. p. 143.


576<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Pergunta-se:<br />

Qual a ligação entre a taxa de juros básica e a taxa de juros de mercado (aquela<br />

cobrada pelos bancos)?<br />

Na verdade, a taxa de juros de mercado representa o custo de oportunidade 29 do<br />

banco, posto aqui pela taxa de juros básica, adicionada de custos operacionais, de risco<br />

e de lucro.<br />

Ou invisto em compra de papéis de títulos públicos, ou empresto ao setor privado,<br />

e o custo de oportunidade está exatamente no diferencial de cada um.<br />

A taxa de juros básica, ou seja, aquela que o Governo paga nos seus títulos,<br />

representa o preço do capital para o banco.<br />

Conforme tabela 1, anexa, tem-se que, em todos os países, as taxa de juros de<br />

crédito às empresas e às pessoas físicas são superiores à taxa básica.<br />

Isso demonstra que as demais taxas praticadas no mercado são uma derivação desta<br />

última.<br />

Por sua vez, o spread bancário reflete o custo operacional dos agentes financeiros,<br />

seu lucro e seu risco (taxa média de inadimplência).<br />

Ou seja, o spread bancário constitui-se na diferença entre as taxas de empréstimos<br />

praticadas pelos bancos ou agentes financeiros junto aos tomadores de crédito<br />

(mutuários, por exemplo) e a taxa de captação, que é a taxa à qual os bancos tomam<br />

recursos 30 .<br />

O spread bancário visa não só cobrir os custos das operações financeiras e,<br />

portanto, as despesas relativas à atividade de intermediação financeira, mas também<br />

proporcionar uma margem líquida para o intermediário financeiro.<br />

Vários fatores podem levar a um spread bancário elevado.<br />

Na taxa de juros cobrada, o banco contabiliza:<br />

(a) prestações atrasadas;<br />

(b) inadimplência;<br />

(c) risco de crédito em função do mercado e da conjuntura econômica;<br />

(d) cunha fiscal; e<br />

(e) a própria expectativa de inflação.<br />

29 O custo de oportunidade pode ser entendido como o custo alternativo de investir o capital em<br />

qualquer outro negócio. BURCH, E. EarL & NENBY, em seu livro, MiItf R. Oportunity and<br />

Incremental cost: attempt to define in systems terms: a commerry. The Accounting Review, 49(1): 118-<br />

123, January, 197k p. 119, custo de oportunidade pode ser definido como a renda líquida que pode ser<br />

auferida em determinado investimento a partir do seu melhor uso alternativo.<br />

30 Por simplificação adotou-se a hipótese de que os bancos tomam recursos à mesma taxa do governo<br />

(Selic). No entanto, embora estas taxas guardem uma alta correlação com a taxa Selic a captação dos<br />

bancos tende a apresentar uma taxa superior àquela praticada pelo governo federal. Na tabela II, do<br />

anexo I, observa-se que do total de operações de crédito no mercado o governo federal é o maior<br />

tomador com 67,25% do total.


R.T.J. — <strong>199</strong> 577<br />

Em estudo de dezembro de 2005 31 sobre a composição do spread bancário no<br />

Brasil, a Fipecafi 32 mostrou a seguinte distribuição percentual:<br />

1 - Inadimplência - 13%<br />

2 - Despesas com pessoal - 10%<br />

3 - Despesas estruturais - 24%<br />

4 - Tributos - 8%<br />

5 - Custo de captação (juros aos aplicadores) - 36%<br />

6 - Lucro líquido - 9%<br />

Assumindo que a taxa de juros dos financiamentos é determinada pela Selic,<br />

adicionado um spread bancário, tem-se que:<br />

TJM = Selic + spread bancário<br />

Onde:<br />

TJM = taxa de juros de financiamento ao mutuário<br />

Tem-se, assim, que parcela significativa dos juros é determinada através da taxa de<br />

juros básica, estabelecida pelo Copom.<br />

Por isso, os juros não podem ser fixados de forma independente da política<br />

monetária do País.<br />

Ele é a base de toda a matemática de cálculo.<br />

Constata-se, assim, que a relação do banco com o poupador e o mutuário integra<br />

a política econômica, extravasando os limites da relação subjetiva.<br />

Na relação de consumo não há essa dimensão objetiva.<br />

Nesta — na relação de consumo — a proteção do consumidor é tomada individualmente.<br />

Relatório que analisa a política monetária do Brasil deixa claro que a taxa de<br />

juros é um instrumento de tal política.<br />

Constata-se desse Relatório, que a taxa de juros depende de inúmeras variáveis e<br />

que não pode ter seus limites fixados de forma dissociada da política macroeconômica.<br />

E aqui está, Ministro Pertence, a grande diferença: a de que, aqui, a regra constitucional<br />

fixava uma taxa de juros dissociada da política econômica, daí por que, durante<br />

todo o tempo, inclusive aquele no qual eu estive na Câmara dos Deputados, foi inviável<br />

produzir-se a lei complementar relativa ao Sistema Financeiro, porque não havia como<br />

casar essa situação.<br />

Lerei o Relatório de 2002, que mostra, numa leitura em 2006, que temos a visão<br />

das coisas.<br />

31 Dados publicados no jornal Valor Econômico, caderno Finanças, p. C1, de 13-12-2005.<br />

32 Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras.


578<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Leio:<br />

“(...)<br />

No tocante ao cenário externo, a política monetária estará fortemente<br />

dependente da confirmação ou não da retomada do crescimento mundial no<br />

segundo semestre.”<br />

Foi o que aconteceu: houve uma retomada do crescimento, e nós tivemos uma<br />

retomada das vendas externas do País, mesmo com a âncora cambial baixando. A taxa de<br />

câmbio baixou, mas não influenciou a inflação, porque os preços internacionais<br />

aumentaram.<br />

“Dado que as economias da União Européia continuam emitindo sinais de<br />

maior debilidade e a economia japonesa aprofunda cada vez mais sua recessão, o<br />

crescimento mundial será guiado pelo desempenho da economia norte-americana.<br />

Vale destacar, então, o crescimento de 0,2% do PIB dos EUA no quarto trimestre de<br />

2001 depois de queda de 1,3% no terceiro trimestre. Este crescimento foi<br />

sustentado essencialmente pelos gastos públicos, principalmente os gastos<br />

militares com a guerra no Afeganistão<br />

(...)”<br />

Com a guerra no Afeganistão, à época; depois, com a guerra do Golfo; e,<br />

posteriormente, com a guerra do Iraque.<br />

“Como visto, o comportamento da taxa nominal de câmbio é que tem sido<br />

‘favorável’, relativamente aos cenários mais pessimistas, dando certa folga ao<br />

Banco Central. E este é o problema. A política monetária (se novos apertos de juros<br />

serão ou não necessários) está muito dependente do que vai acontecer com o<br />

câmbio no futuro. Este, por sua vez, depende não apenas do desempenho das<br />

exportações brasileiras, mas também do cenário externo (Argentina e EUA) e da<br />

liquidez mundial. Como as projeções do Banco Central, considerando-se juros<br />

constantes a 19% a.a., já apontam para uma inflação acima da meta central deste<br />

ano (que é de 3,5%), e as expectativas e mercado, que estão em 4,8%, aproximamse<br />

do limite superior da meta (5,5%), não parece haver muito espaço para a redução<br />

da taxa nominal de juros neste início do ano, como ficou claro com a decisão do<br />

Copom de janeiro de 2001 em mantê-la no patamar de 19% a.a.<br />

(...)” 33<br />

E, aí, nos tivemos a evolução a chegar na taxa de juros de hoje.<br />

Observa-se que, muitas vezes, a política monetária está subordinada a condicionantes<br />

alheios à vontade das Autoridades Monetárias de seu próprio país; imagine-se,<br />

então, no que concerne às regras estabelecidas no CDC.<br />

33 DUARTE, Pedro Garcia. O que esperar da política monetária brasileira em 2002? Revista Autor,<br />

Ano II, n. 8, fevereiro de 2002.


R.T.J. — <strong>199</strong> 579<br />

O que deixa claro que aquele voluntarismo que muitas vezes assistimos em relação<br />

ao tratamento das questões econômicas, como se bastasse um mero decreto de alguém<br />

reduzindo taxa de juros, isso é possível, considerando as circunstâncias do desconhecimento<br />

dessas situações econômicas.<br />

Um exemplo é o nível das taxas de juros praticadas em outros países.<br />

Se as taxas de outros países sobem, dado o mesmo nível de risco mundial, os títulos<br />

brasileiros tornam-se menos atraentes ao investidor.<br />

Em conseqüência, o Bacen deverá elevar os juros a patamares tais que evitem a<br />

fuga de capitais e a conseqüente desvalorização da moeda nacional.<br />

E, aqui, vem um problema, também, de natureza de política econômica e de<br />

decisão de Governo.<br />

Lembro que as Autoridades Monetárias entendem de não fixar regras de controle<br />

de capitais.<br />

Isso é um grande debate entre os economistas de hoje, se há ou não necessidade de<br />

regras de controle de capitais.<br />

Recordo que o extraordinário economista Luiz Gonzaga Belluzzo sustenta a<br />

necessidade de regras de controle de capitais; já outros economistas sustentam o contrário.<br />

E a opção de Governo foi exatamente a de não estabelecer regras de controle cambiais.<br />

Por conseguinte, uma desvalorização cambial poderia desencadear um processo<br />

inflacionário, uma vez que a desvalorização da moeda nacional faria com que os<br />

consumidores domésticos pagassem mais caro não apenas por produtos importados mas<br />

também por aqueles que tivessem seus preços determinados no mercado internacional.<br />

Os fatores que permeiam a política macroeconômica de um país, entre eles a taxa<br />

de juros, são questões mutáveis no tempo. Tal política deve ter a flexibilidade<br />

adequada, exigida pelas flutuações conjunturais, e estar, portanto, subordinada ao órgão<br />

regulador e com competência institucional de implementá-la.<br />

As instituições financeiras, especialmente os bancos e instituições de crédito,<br />

negociam basicamente com a moeda e crédito.<br />

Realizam uma atividade de repasse dos recursos nelas depositados e por elas<br />

captados.<br />

Tal mecanismo está estreitamente relacionado com a política monetária e não é<br />

factível estabelecer limites desalinhados desta, uma vez que a taxa de juros praticada<br />

pelo governo é o referencial básico dos bancos.<br />

4.5. Limites de taxa de juros ao consumidor em outros países 34<br />

Resolvi fazer um levantamento, exatamente, pela discussão que, no Brasil, se trava<br />

sobre essa questão da taxa de juros, em brecar, inclusive, nessa demanda.<br />

34 Os dados e informações constantes desse item foram extraídos do Relatório, de Agosto de 2004, da<br />

DTI (Department of Trade and Industry), do governo inglês: “The effect of interest rate controls in<br />

other countries” — http://www.dti.gov.uk/ccp/topics1/consumer_finance.htm.


580<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Examino a situação em diferentes países quanto à imposição ou não de limites à<br />

taxa de juros, matéria que discutimos muito aqui no Brasil.<br />

Nota-se que alguns países adotam limites.<br />

E, aqui, é a observação fundamental da pesquisa que fiz.<br />

No entanto, tais limites têm como base exclusiva decisões do órgão executor da<br />

política monetária de acordo com as circunstâncias e as conjunturas econômicas do<br />

momento.<br />

Não há pré-fixação ou petrificação de taxa de juros por meio de lei, que é a<br />

pretensão que tínhamos na Constituição, de 1988, uma vez que essa prática é incompatível<br />

com o dinamismo e a flutuação dessa área da economia.<br />

(a) França<br />

Na França há controles.<br />

A taxa máxima é determinada pela Autoridade Monetária a cada quadrimestre,<br />

sendo ela de até 133,33% das taxas médias praticadas no mercado.<br />

Há três diferentes tetos.<br />

A taxa mais alta é a aplicada para os empréstimos de pequeno valor de até 1.524 —<br />

cerca de 20% no 1º quadrimestre de 2004.<br />

O Banque de France é o responsável tanto pelo levantamento das taxas médias<br />

praticadas no mercado quanto pela fiscalização no que diz respeito ao cumprimento dos<br />

tetos.<br />

A atual estrutura da taxa de usura está determinada em lei.<br />

(b) Alemanha<br />

A Alemanha tem uma forte tradição de controle dos serviços financeiros.<br />

Na Alemanha também não há um teto único.<br />

Existem diferentes limites para cada tipo específico de taxa de juros.<br />

A Rule of Thumb proíbe a cobrança de taxas superiores ao dobro da taxa média<br />

praticada pelo mercado para aquele tipo de operação.<br />

O levantamento mensal das taxas médias praticadas é responsabilidade do<br />

Bundesbank.<br />

No caso das taxas aos mutuários domésticos, em 2003, as taxas variaram de 6,9% a.a.<br />

a 7,9% a.a. para os empréstimos e de 10,2% a.a. a 10,8% a.a. para limite de conta corrente.<br />

(c) Reino Unido<br />

Na Inglaterra, em 1974, caíram as limitações de taxas de juros.<br />

Atualmente, ainda, não há limite para as taxas de juros a serem cobradas, porém<br />

discute-se a possível implementação de uma “lei da usura”.<br />

(d) Estados Unidos<br />

Não há mais uma legislação federal impondo restrições ou regulamentações às<br />

taxas de juros.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 581<br />

Esse tema fica sob responsabilidade de cada Estado.<br />

Em vários estados, há um limite às taxas de juros.<br />

Essa regulação, na maioria das vezes, consta em leis estaduais.<br />

Há grandes diferenças quanto ao nível de regulação, variando desde estados muito<br />

reguladores até estados que não adotam tal política.<br />

Aqui surge a distinção entre estados do norte e os do sul dos Estados Unidos em<br />

relação ao tratamento político do sistema.<br />

Nos últimos 30 anos, gradualmente, alguns estados vêm removendo os controles<br />

sobre as taxas de juros.<br />

Por outro lado, nesse mesmo período, vem aumentando o número de estados que<br />

passaram a adotar tetos especiais para pequenos empréstimos (em geral até US$2.000).<br />

Ou seja, até dois mil dólares, alguns estados estão estabelecendo teto, mas sempre<br />

baseados na decisão da autoridade monetária.<br />

Atualmente a maioria dos estados possui um baixo grau de regulação (22 deles),<br />

mas os estados mais importantes como Califórnia, Texas e Nova Iorque ainda possuem<br />

um grau mediano de regulação.<br />

(e) Chile<br />

O Chile também possui controle.<br />

A Taxa de Juros Máxima Convencional – TIMC corresponde a 150% da média<br />

das taxas cobradas no mercado.<br />

No entanto, não há teto único.<br />

Existem 08 taxas que se diferenciam de acordo com as características da operação<br />

realizada (tipo de operação, valor e prazo).<br />

A TIMC, por exemplo, para operações não reajustáveis, em moeda nacional, com<br />

prazo superior a 90 dias e valores de no máximo 200 unidades de fomento (cerca de US$<br />

6.100,00) está em 42,12% a.a.<br />

A fixação da TIMC é realizada pela Superintendência de Bancos e Instituições<br />

Financeiras – SBIF, um órgão do governo chileno.<br />

Isso mostra, ou retira de discussão, com exemplos internacionais, que é possível<br />

haver taxas diferenciadas de juros fixadas. O fundamental é que a limitação dessas taxas<br />

tem sempre uma variável básica — debaixo do cálculo inicial: a taxa básica da economia,<br />

fixada pela autoridade monetária. Logo, se essa fixação houvesse, ela teria de ser<br />

sempre ligada à autoridade monetária.<br />

(f) Considerações finais<br />

Como se vê, existem limitadores das taxas de juros cobradas pelas instituições<br />

financeiras, especialmente nas linhas de créditos mais populares.<br />

Mesmo em países onde atualmente não ocorre esse tipo de controle, já existe<br />

movimentação no sentido de criação desse mecanismo.<br />

É o caso do Reino Unido e dos Estados Unidos.


582<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Nos Estados Unidos, os estados estão anulando suas leis da usura, mas criando<br />

instrumentos que defendam os pequenos tomadores de empréstimos.<br />

Os instrumentos de controle são criados mais com o objetivo de inibir práticas<br />

abusivas individuais, do que definir uma taxa a ser praticada.<br />

Mesmo em países que adotam a política de controle das taxas de juros, o mercado<br />

continua sendo o responsável, em última instância, por sua determinação.<br />

É importante lembrar que os exemplos trazidos enfocam países desenvolvidos,<br />

com economia forte e, portanto, com baixo nível de dependência das flutuações econômicas<br />

internacionais.<br />

Fundamental destacar que o limite da taxa de juros ao mutuário, seja ele qual for,<br />

não pode ser fixado aleatoriamente.<br />

A sua fixação tem que ser vinculada a política monetária estabelecida pelo<br />

Governo e ter o seu acompanhamento e fiscalização pela Autoridade Monetária.<br />

4.6. Possíveis conseqüências da aplicação do CDC às operações típicas do SFN<br />

Antes de mais nada, sabe-se que os agentes econômicos atuam de forma a<br />

maximizar lucros e a reduzir prejuízos.<br />

Essa lógica se aplica ao mercado bancário.<br />

Como vimos, a taxa de juros cobrada pelo banco do mutuário e a paga pelo<br />

banco ao depositário são fixadas a partir de um conjunto de fatores tendo como<br />

elemento principal o valor da taxa básica de juros.<br />

Se o teto de cobrança dos juros não estiver atrelado à política monetária do<br />

governo, existiria claramente um “descasamento” entre o que o banco tem a receber<br />

(ativo) e o que se obrigou a pagar (passivo).<br />

Se o descasamento ocorrer por critérios que não sejam a política monetária, o<br />

dinheiro necessário a equilibrar essa equação viria de outras fontes, tais como tarifas<br />

bancárias, que teriam que ser majoradas, ou mesmo da necessidade de subsídio público<br />

para tal equilíbrio.<br />

Lembro aos Colegas o que ocorreu com o famoso Banco Nacional de Habitação,<br />

no qual se manteve o pagamento do Fundo de Garantia de Serviço com uma taxa de juros<br />

determinada e, depois, os mutuários começaram a dizer que só poderiam pagar os seus<br />

empréstimos em relação à variação salarial.<br />

Aí houve um descasamento brutal, e sabemos, hoje, do enorme rombo que representa<br />

o chamado “Fundo de Variações e de Compensações Salariais” do Banco Central.<br />

Lembro que diversos personagens brasileiros se utilizaram disso. Eu próprio, Ministro<br />

Pertence, tive um grande negócio porque fiz um financiamento para construção de uma<br />

casa própria em Santa Maria — não poderia ser Sabará, evidentemente — pelo Banco<br />

Nacional de Habitação, que, na época, representava 50% do valor. Quando comecei a<br />

pagar, era relativo a nove salários mínimos o meu pagamento mensal; quando terminei o<br />

pagamento, já na condição de deputado, pagava 30% do salário mínimo vigente à época.<br />

No final, houve um saldo do meu débito, lançado sobre o Fundo, de R$130 mil, à época.


R.T.J. — <strong>199</strong> 583<br />

Eu tive uma vantagem em moeda forte: ganhei em cima do dinheiro do trabalhador —<br />

vejam bem, não contribui para o Fundo de Garantia, pois advogado não contribuía para<br />

Fundo —, beneficiando-me com 230 mil dólares em relação ao descasamento entre a<br />

política de pagamento e a política de remuneração do investimento.<br />

O que aconteceu aqui? Acabou tudo isso caindo na mão do contribuinte. Provavelmente<br />

alguns Colegas também passaram por essa experiência.<br />

Como acabei de relatar a minha experiência pessoal, na hipótese, o ônus recairia<br />

sobre o usuário, o contribuinte ou ambos. Do contrário, a própria atividade bancária<br />

estaria inviabilizada.<br />

Pergunta-se:<br />

O que aconteceria se o CDC se aplicasse a essa espécie de operação?<br />

Operação típica da atividade bancária: empréstimo de dinheiro.<br />

Em primeiro lugar, componentes importantes do processo econômico estariam a<br />

ser formulados por agentes sem competência para tal — Procons, etc.<br />

Estaríamos atribuindo aos Procons essa possibilidade de entrar nas taxas de juros<br />

e nos negócios bancários específicos.<br />

A política econômica, na vida democrática, é da competência das autoridades<br />

governamentais.<br />

É o Governo o responsável pela formulação dessa política.<br />

A legitimação para tal vem da vitória nas eleições.<br />

Ou seja, a legitimação decorre disso: subiu ao governo, decida; e ele tem legitimidade<br />

pelo período de quatro anos na formulação.<br />

Entender-se de outra forma, é comprometer a atividade financeira no Brasil.<br />

Mesmo que haja, durante curto período, estabilidade das regras econômicas, a<br />

fixação de teto por agentes não comprometidos com a política monetária causaria<br />

imediatamente a restrição abrupta ao crédito.<br />

O raciocínio é simples.<br />

O spread bancário expressa o nível de risco da operação.<br />

Se as regras forem instáveis e não conhecidas a priori, os bancos passarão a<br />

emprestar dinheiro somente a clientes que apresentem sinais óbvios de possibilidade de<br />

pagamento dos empréstimos.<br />

Em outras palavras, apenas terão condições de conseguir empréstimos bancários,<br />

para a realização de investimentos privados, aqueles que, de certo modo, não precisem<br />

de dinheiro.<br />

E aí jogariam, pelas operações de investimentos internacionais, com obtenção de<br />

dinheiro local por meio do diferencial da taxa de câmbio.<br />

A grande maioria da população brasileira — aquela que realmente precisa de<br />

dinheiro emprestado — não vai alcançar os níveis de exigência para fazer jus ao<br />

empréstimo.


584<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Assim, à medida que viria para proteger a população mais necessitada estaria, na<br />

verdade, a prejudicá-la.<br />

É o que ocorre quando se tenta reduzir a liquidez ou a solvência de um sistema<br />

estabelecido com determinadas proteções aos devedores; isso determina claramente o<br />

aumento. Por quê? Porque os adimplentes acabam pagando as diferenças.<br />

Lembre-se daquele caso recente sobre locações, em que decidimos claramente que<br />

o locador acaba tendo de pagar. O Tribunal reconheceu a legitimidade da execução da<br />

fiança sobre bens do fiador. Foi muito claro o Tribunal no sentido de que, qualquer<br />

tentativa de esvaziamento das garantias importaria em taxas maiores, até com a cobrança<br />

de seguros bancários, ou fianças bancárias.<br />

Visto por outro ângulo, a limitação dos juros, desvinculada da política monetária,<br />

reduziria os níveis de investimentos de forma drástica.<br />

Isso desaqueceria a economia e limitaria possibilidade de crescimento econômico.<br />

Poderíamos chegar ao patamar de recessão com o encolhimento do nível de<br />

atividade econômica.<br />

Outra forma dos bancos compensarem as perdas com a limitação da taxa de juros<br />

desvinculada da política monetária, seria por meio do aumento das tarifas bancárias.<br />

Outra vez se percebe que a medida seria extremamente danosa a quem mais precisa<br />

dos serviços bancários no seu dia-a-dia.<br />

Finalmente, a última possibilidade equivaleria a um retrocesso em matéria de<br />

administração do sistema financeiro.<br />

É que, diante dos prejuízos, os bancos somente conseguiriam se manter com a<br />

ajuda de recursos públicos.<br />

O subsídio público da atividade bancária praticamente retiraria a autonomia dos<br />

bancos e tornaria o próprio governo responsável direto por toda a movimentação<br />

financeira do país.<br />

Ao invés de regulador e fiscalizador da atividade financeira, o Estado passaria a ser<br />

o seu único participante.<br />

Diante das prováveis conseqüências, a aplicação do CDC aos bancos em operações<br />

bancárias — típicas do sistema financeiro — seria deletério também do ponto de<br />

vista econômico e social.<br />

Lembro aos Colegas que — creio que na metade do governo Sarney, Ministro da<br />

Economia, Sr. Mailson da Nóbrega — foi extinta a chamada conta-movimento do Banco<br />

do Brasil, que financiava a agricultura. Era uma festa a tal conta movimento. Lembro-me<br />

— como advogado de Santa Maria — e percebi muito disso, que o Banco do Brasil sacava,<br />

no Tesouro Nacional, os empréstimos da agricultura, a taxa de juros reduzidíssima de<br />

estímulo. E, aí, acabou não se tendo mais nenhum controle nessa conta-movimento porque<br />

o Banco do Brasil acabava lançando também os custos dos empregados e das agências<br />

destinadas ao fomento da agricultura. Acabava o contribuinte pagando todo esse diferencial.<br />

E tudo era pago com o diferencial de quê? Com o diferencial de juros que vinham, a<br />

conta-movimento extinguiu-se exatamente no governo Sarney para estabilização do<br />

Banco do Brasil.


R.T.J. — <strong>199</strong> 585<br />

4.7. Conclusão<br />

Fica claro que a taxa de juros é um instrumento de política monetária e como tal<br />

deve estar atrelada às políticas das Autoridades Monetárias.<br />

Em realidade, a regulação do mercado se justifica pela sua íntima relação com a<br />

política monetária e com a própria estabilidade e fortalecimento da moeda.<br />

Nesse sentido, no Brasil, com sua economia ainda em processo de amadurecimento<br />

e fortalecimento, é necessário que as Autoridades Monetárias e Financeiras estejam<br />

atentas às variações econômicas e às flutuações internacionais, de forma a dar resposta<br />

operacional imediata para a conservação do nível de segurança da economia.<br />

É o que está acontecendo recentemente com a redução, inclusive, do risco país,<br />

considerando o aumento da capacidade de pagamento do Brasil através de políticas<br />

restritivas que estão sendo feitas pelo governo. Podem ser criticadas, mas essa é uma<br />

decisão de governo, ele é legítimo para tomar decisão.<br />

Por isso, para esse tipo de operação financeira, o mercado é regulado por uma<br />

política dinâmica formulada pela Autoridade Monetária, com base na legislação do<br />

SFN.<br />

A atribuição de competência, no âmbito do SFN, a autoridades não monetárias,<br />

inclusive não estatais, conduziria a restrição abrupta do crédito.<br />

Por tudo isso o CDC não tem aplicação às operações bancárias típicas do SFN,<br />

especialmente quando envolvam fixação, limites e cobrança de juros.<br />

5. O CDC e os bancos<br />

A restrição da aplicação do CDC se limita às operações típicas do SFN.<br />

A par disso, pergunta-se:<br />

Existiriam outras operações realizadas pelos bancos que deveriam observar os<br />

princípios e os dispositivos do CDC?<br />

5.1. Operações bancárias e serviços bancários. Distinções<br />

O problema diz respeito, diretamente, à interpretação do § 2º do art. 3º do CDC, ao<br />

dispor que serviço é:<br />

“(...) qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração,<br />

inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária,<br />

salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”<br />

Pergunto:<br />

É possível a identificação de atividades bancárias não típicas do sistema<br />

financeiro e, portanto, que equiparariam os bancos a prestadores de serviço?<br />

A resposta negativa a essa pergunta somente poderia gerar a declaração de<br />

inconstitucionalidade de parte desse dispositivo.<br />

Entretanto, uma gama de serviços prestados pelos bancos a clientes e a usuário<br />

não se configura como relações financeiras relativas a investimentos e depósitos, que<br />

estão sob a guarda e o controle da Autoridade Monetária.


586<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Lembrem-se de que me referi como clientes aos tomadores e aos prestadores, e<br />

usuários são aqueles que não são nem uma coisa nem outra, mas se servem do banco para<br />

as atividades. Hoje, inclusive, o Brasil, em termos de informatização, é o sistema<br />

bancário mais bem informatizado do mundo. E, hoje, o uso da moeda-papel reduziu-se<br />

imensamente, utilizando-se, basicamente, dos serviços de informatização de bancos,<br />

que são serviços.<br />

Há casos em que o banco, de fato, presta um serviço autônomo tal como outro<br />

prestador qualquer e, por isso, recebe remuneração específica por esse serviço.<br />

Em outras palavras, há serviços que podem ser prestados independentemente da<br />

relação monetário-financeira do banco com o poupador ou mutuário — relações<br />

relativas à moeda e ao crédito.<br />

Em muitos casos, o banco presta serviços em concorrência com outras entidades que<br />

não tem natureza financeira, como o serviço de pagamento ou recebimento de salário.<br />

Lembro aos Senhores a decisão recente do Tribunal — vencido o Ministro Marco<br />

Aurélio, se não me engano —, na questão do Banco do Ceará, em que há nitidamente a<br />

contratação, por parte do governo do Ceará, da prestação de serviço de um banco, que é<br />

remunerada, em relação ao pagamento dos seus funcionários, que não tem nada a ver<br />

com a relação moeda e crédito, mas com a prestação de serviço de pagamento de salários,<br />

pagamento de fornecedores, etc.<br />

Está em Sergio Carlos Covello:<br />

“(...)<br />

A classificação tradicional e, ao mesmo tempo, mais acolhida na prática<br />

bancária é aquela que divide as operações de Banco, de conformidade com o<br />

crédito, em fundamentais e assessórias.<br />

As operações fundamentais, ou típicas, são as que implicam a intermediação<br />

do crédito, função precípua dos Bancos, que, como vimos, recolhem dinheiro de uns<br />

para concedê-lo a outros.<br />

Dividem-se em passivas (as que têm por objeto a procura e provisão de<br />

fundos, sendo assim denominadas por importarem em ônus e obrigações para o<br />

Banco, que, na relação jurídica, se torna devedor) e ativas (as que visam à<br />

colocação e ao emprego desses fundos; por meio dessas operações, o Banco se<br />

torna credor do cliente).<br />

Constituem operações passivas os depósitos, as contas correntes, os redescontos,<br />

enquanto as principais operações ativas são os empréstimos, os financiamentos,<br />

as aberturas de crédito, os descontos, os créditos documentários, as<br />

antecipações, etc.<br />

As operações acessórias ou neutras (assim chamadas por não implicarem<br />

nem a concessão nem o recebimento do crédito) possuem significação menor para<br />

os Bancos, que só as realizam com o fito de atrair clientela.”<br />

Ou seja, essa disputa que há sobre os depósitos a serem feitos no pagamento dos<br />

salários via bancos é exatamente uma disputa para aumentar o portfolio dos bancos em<br />

relação ao número de contas correntes, porque a tendência é o empregado-funcionário<br />

manter, naquele banco, a conta-corrente para evitar o transporte bancário.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 587<br />

“Definem-se como verdadeiras prestações de serviço: custódia de valores,<br />

caixa de segurança, cobrança de títulos e outras.<br />

(...)” 35<br />

Trata-se da diferença entre operações bancárias e serviços bancários.<br />

As operações bancárias consistem em transferência de moeda (circulação<br />

monetária) ou de crédito, que se sustentam na confiança e na administração de riscos.<br />

As operações bancárias, portanto, são as típicas do SFN e tem importante impacto<br />

na política monetária e econômica do país.<br />

São tais operações que garantem, em uma dimensão macro, a circulação monetária,<br />

a estabilidade do poder aquisitivo da moeda, o nível de investimentos e a própria<br />

estabilidade da economia.<br />

É exatamente neste ponto que age o Banco Central para reduzir ou aumentar a<br />

circulação de moedas, influenciando e decidindo sobre este tipo de operações.<br />

Já os serviços bancários dizem respeito a obrigações de fazer, que são executadas<br />

pelos bancos sem vinculação com a política monetária.<br />

Os serviços bancários se prestam a atender diversos interesses dos clientes.<br />

É com base nesses serviços que os bancos, geralmente, cobram tarifas, já que a<br />

prestação não se confunde com o objeto de atividade própria da instituição.<br />

Leio Galeno Lacerda:<br />

“(...)<br />

(...) a atividade bancária se desdobra em duas categorias distintas: uma, a<br />

principal, consistente em operações, e outra, secundária, caracterizada pela<br />

prestação dos serviços. As operações têm por objeto o dinheiro, ou créditos que se<br />

traduzem em dinheiro; os serviços, ao contrário, atendem a interesses acessórios<br />

do cliente, como cofres de aluguel, cobrança de títulos etc.<br />

(...)<br />

6. Se o dinheiro não pode ser objeto de consumo porque não se ajusta ao<br />

conceito ‘destinatário final’ que caracteriza o consumidor (art. 2º do CDC), nem<br />

por isso certos ‘serviços’ que lidam com dinheiro deixam de integrar o mercado de<br />

consumo. Por isso, no art. 3º, § 2º, o CDC admite ensejem consumo serviços de<br />

natureza bancária, financeira e crédito e securitária. Quais serão essas atividades?<br />

Aquelas que não tenham o dinheiro como destinatário final, por exemplo, a<br />

custódia de valores, a emissão e compra e venda de títulos, os negócios de bolsa,<br />

as caixas de aluguel, as remessas financeiras, e tantos outros serviços pelos quais<br />

o fornecedor cobra do cliente uma taxa remuneratória.<br />

(...)” 36<br />

35 COVELLO, Sergio Carlos. Contratos bancários. 4. ed. São Paulo: Leud, 2001. p. 38.<br />

36 LACERDA, Galeno. Direito Comercial, obrigações e contratos. Rio de Janeiro: Forense. Vol. III,<br />

p. 14.


588<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Diante da separação conceitual, é fácil perceber que as operações bancárias, por<br />

serem operações financeiras, estão submetidas ao controle do Bacen, e os clientes<br />

bancários, para essas operações, estão submetidos a sistema próprio de proteção.<br />

Dentre as operações bancárias sob a fiscalização da Autoridade Monetária estão,<br />

por exemplo:<br />

(a) depósito (dentre os quais a própria poupança, depósitos à vista, obrigatórios, a<br />

prazo — CDB/RDB, vinculados, e outros);<br />

(b) empréstimo e financiamentos;<br />

(c) abertura de crédito;<br />

(d) descontos;<br />

(e) cessão de créditos;<br />

(f) operações de câmbio;<br />

(g) crédito documentário, etc.<br />

Já os serviços bancários, por serem atividades desatreladas do sistema financeiro —<br />

não tendo por objeto dinheiro ou crédito —, estão submetidos à incidência dos<br />

dispositivos do CDC e de outras normas pertinentes.<br />

Os clientes bancários dessas atividades são equiparados a consumidores e são<br />

protegidos também pelos órgãos oficiais de defesa do consumidor e pela atuação do<br />

Ministério Público.<br />

Dentre tais serviços bancários, alguns são compensados diretamente por meio da<br />

cobrança de tais tarifas, por exemplo:<br />

Vejam bem: não há que se levar em conta que só será serviço bancário quando for<br />

remunerado por tarifa, porque há determinados serviços bancários em que não há<br />

pagamento de tarifa, porque atendem outros interesses do banco.<br />

(a) custódia de valores;<br />

(b) caixa de aluguel;<br />

(c) cobrança de títulos, etc.<br />

Outros não são diretamente compensados com tarifas.<br />

No entanto, incluem-se entre as atividades ou serviços corriqueiros dos estabelecimentos<br />

bancários, muito embora não envolvam sua atividade fim (operações com<br />

crédito e dinheiro).<br />

É o caso, por exemplo:<br />

(a) da política de acesso dos usuários à agência bancária;<br />

(b) da consulta em terminais;<br />

(c) da obrigação dos bancos de apresentar informações claras e objetivas acerca de<br />

seus serviços, etc.<br />

Não há aqui nenhuma tarifa cobrada do banco para o cumprimento dessa<br />

obrigação, mas é um serviço bancário, claramente.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 589<br />

Assim, verifica-se que a tarifa é importante critério identificador dos serviços<br />

bancários submetidos ao CDC. Entretanto, não é o único.<br />

Não é o único, porque vai depender de situações concretas.<br />

Isso porque existem outras atividades dos bancos que não são compensadas<br />

diretamente pela tarifa, mas apenas de maneira indireta já que integram o cálculo geral<br />

de custos do banco.<br />

De qualquer forma, a remuneração pela tarifa constitui claramente compensação<br />

pela prestação de um serviço e caracteriza o cliente ou usuário como consumidor.<br />

Leio em Athos Gusmão Carneiro:<br />

“(...)<br />

18. Quando a ‘prestação de serviços’ é realizada a título não oneroso, a<br />

relação não será uma relação de consumo, mas sim uma relação de direito civil ou<br />

comercial, não abrindo azo à incidência das normas do Código de Defesa do<br />

Consumidor, as quais foram elaboradas com o propósito precípuo de proteger o<br />

consumidor, normalmente hipossuficiente.<br />

(...)” 37<br />

Citação que não concordo, porque temos hipóteses em que haja prestação de<br />

serviço sujeito ao Código de Defesa, mas que não se pagam tarifas. A tarifa é o elemento<br />

definidor a priori, mas não necessariamente.<br />

Ele dizia o contrário, as prestações de serviços realizadas a título não oneroso, sem<br />

pagamento de tarifa, seriam tratadas pelo direito comum, e não pelo Código de Defesa.<br />

Eu não posso aceitar essa hipótese, porque entendo que a tarifa define, mas não é o<br />

objeto; é um elemento suficiente para definir a relação de consumo, a relação de<br />

prestação de serviço, mas não é o elemento necessário.<br />

Há situações de prestações — inclusive na concorrência bancária, se estabelece a<br />

necessidade de vir o cliente depositar — estabelecendo políticas de prestação de<br />

serviços não tarifados, exatamente, por isso.<br />

5.2. Os serviços e atividades bancárias<br />

Diante dessa separação, cabe identificar quais relações são típicos serviços<br />

bancários a caracterizar relação de consumo.<br />

Por definição, são todas as relações que não envolvam empréstimos e créditos.<br />

São os serviços em que se cobra tarifa, direta ou indiretamente.<br />

Ou indiretamente no sentido de estar incluído em tudo.<br />

Em elenco não exaustivo, são serviços com cobrança direta de tarifa:<br />

37 CARNEIRO, Athos Gusmão. Depósito bancário em caderneta de poupança. Não-incidência do<br />

Código de Defesa do Consumidor. Questão da legitimidade para a propositura de ação coletiva. In:<br />

Revista de direito bancário, do mercado de capitais e da arbitragem. Ano 3, jan./mar. de 2000. São<br />

Paulo: Revista dos Tribunais, p. 200.


590<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

(a) sustação de cheques;<br />

(b) aluguel de cofres para custódia de valores ou objetos confidenciais;<br />

(c) venda e utilização do cartão magnético, bem como sua substituição nos casos<br />

de roubo ou de perda;<br />

(d) devolução do cheque por insuficiência de fundos;<br />

(e) inclusão ou exclusão de nome no SPC ou CCF;<br />

(f) fornecimento de talonário de cheque e o valor cobrado por folha por mês;<br />

(g) fornecimento de cópia do extrato bancário;<br />

(h) cobrança de títulos de terceiros, por conta do cliente, quando inexiste garantia;<br />

(i) venda de seguro;<br />

(j) remessa de dinheiro ao exterior;<br />

(k) administração de fundos ou de patrimônio;<br />

(l) negócios em bolsa;<br />

São exemplos de serviços ou atividades dos bancos pelos quais não se cobra<br />

tarifa, mas que estão submetidas ao CDC:<br />

(a) atendimento ao cliente e ao usuário por telefone, via internet ou o autoatendimento;<br />

(b) organização do atendimento pelos caixas na agência (tempo de espera na fila,<br />

números de funcionários para esse atendimento, etc);<br />

Ou seja, a possibilidade de haver intervenção pelos órgãos de defesa do consumidor,<br />

em relação ao número de funcionários que se destinam ao atendimento aos clientes.<br />

Acaba o banco destinando, para uma movimentação “x”, um funcionário que é<br />

absolutamente inviável. Isso está sujeito à intervenção do sistema.<br />

(c) fornecimento de informações acerca da conta corrente e de eventuais investimentos;<br />

(d) acesso e restrição de acesso às agências bancárias, bem como o respeito ao<br />

atendimento prioritário em certas situações;<br />

(e) cumprimento das propagandas anunciadas;<br />

Ou seja, na hipótese de anunciar determinado tipo de serviço, o cumprimento desta<br />

nas obrigações, quando da prestação de serviço da propaganda, algo destinado porque é<br />

serviço.<br />

(f) consulta em terminais;<br />

Essas atividades são de natureza não-financeira.<br />

Nelas o banco é meramente um prestador de serviço.<br />

Enquadra-se na previsão do art. 3º do CDC.<br />

Por isso, os usuários ou clientes envolvidos nesse tipo de serviço bancário estão<br />

protegidos pelas garantias do CDC.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 591<br />

6. Conclusão<br />

Caminho para conclusão.<br />

Certas atividades desenvolvidas pelos bancos — operações bancárias — não<br />

estão adstritas ao CDC.<br />

São operações que se enquadram dentro do SFN e que são importantes componentes<br />

dos rumos da política econômica, de competência da Autoridade Monetária.<br />

São operações reguladas pelas Autoridades Monetárias – CMN e o Bacen.<br />

Nem por isso, entretanto, são relações desprovidas de proteção.<br />

Os mutuários e poupadores estão protegidos por um sistema próprio.<br />

Muito embora seja uma proteção que tenha como norte a própria estabilidade da<br />

moeda e a política de crescimento econômico, o aspecto subjetivo e individual também<br />

é resguardado.<br />

Exemplo claro dessa proteção própria, exercida pelo Bacen, é a Resolução n.<br />

2.878, de 26 de julho de 2001 (o chamado Código de Defesa do Cliente Bancário).<br />

O CDC é uma legislação moderna e sua promulgação representou importante<br />

evolução no tratamento das relações de consumo no Brasil. Entretanto, o CDC tem<br />

objeto e sujeitos especiais que balizam sua aplicação.<br />

É um erro o entendimento de que o CDC tem uma aplicação universal, como se<br />

todas as relações jurídicas estabelecidas tivessem a natureza de relações de consumo.<br />

No início, quando, no Congresso Nacional, votávamos e discutíamos a elaboração<br />

do Código de Defesa do Consumidor, lembro-me, claramente, que havia uma<br />

corrente que queria uma espécie de formalização e entendia que era uma norma meta<br />

ordinária, ela estaria colocada em torno da lei complementar e permearia todas as<br />

atividades.<br />

Lembro que o Supremo já reconheceu o exagero e a inconstitucionalidade de se<br />

ampliar, de forma desproporcional, a incidência do CDC ou a tratá-lo com dimensão de<br />

importância equiparável à própria Constituição.<br />

O Supremo fez isso, por exemplo, quando fixou que as relações entre Poder<br />

Público e contribuinte tinham natureza tributária e não de consumo 38 .<br />

Insisto que o CDC é legislação que visa a compensar desigualdades materiais<br />

fáticas, de maneira a equilibrar, social e economicamente, as partes envolvidas em uma<br />

relação de consumo.<br />

Sua aplicação universal poderia, ao contrário, construir desigualdades inaceitáveis<br />

ou estabelecer nichos de privilégios em determinados setores econômicos.<br />

38 RE 195.056, Carlos Velloso, DJ de 30-5-2003;<br />

RE 206.781, Marco Aurélio, DJ de 29-6-2001;<br />

RE 248.191, Carlos Velloso, DJ de 25-10-2002;<br />

AI 382.298-AgR, Gilmar Mendes, DJ de 28-5-2004.


592<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Leio Paulo Brossard:<br />

“(...)<br />

A lei de defesa do consumidor, como seu nome está a dizer, objetiva a<br />

proteção da pessoa que busca a satisfação direta das suas necessidades, no que diz<br />

respeito à alimentação, vestuário, habitação, transporte, luz, água, telefone,<br />

diversão, lazer (...) mas não tem aplicação a todos os possíveis conflitos do<br />

convívio humano, nem autoriza uma operação global sobre todas as atividades<br />

sociais, como não transforma o Ministério Público numa espécie de visitadorgeral<br />

do Santo Ofício.<br />

(...)” 39<br />

Assim sendo, lembro-me que houve um caso, aqui, no Plenário, os Colegas estão<br />

lembrados da fixação de uma contribuição social para efeito de pavimentação de um<br />

determinado Município, em que os membros da comunidade ajustaram com a prefeitura<br />

o pagamento dessa contribuição social, para efeito de viabilizar a pavimentação e<br />

urbanização da rua.<br />

O Ministério Público do Paraná — se não me engano — fez sustentação oral<br />

dizendo da inconstitucionalidade daquela lei, da instituição daquela contribuição,<br />

mesmo contra o interesse dos próprios beneficiados. Aquele membro do Ministério<br />

Público estava, exatamente, assumindo essa postura, apenada por Brossard, de uma<br />

“espécie de visitador-geral do Santo Ofício”.<br />

Assim sendo, no campo do setor bancário, financeiro e securitário, o CDC tem<br />

também sua aplicação em serviços de natureza não-financeira que exemplificativamente<br />

foram listados neste voto.<br />

Acompanho Velloso, com referência final mais ampla. No entanto, creio que tal<br />

referência está contida no extraordinário voto de Velloso, posto que foi pronunciado<br />

ainda na vigência da redação original do art. 192, em especial seu então § 3º.<br />

Daí, por que a posição assumida por Pertence, quando vencido na preliminar.<br />

Julgo procedente, em parte, a ação.<br />

Concluo com a linguagem de Velloso.<br />

“Empresto (...) à norma inscrita no § 2º do art. 3º da Lei 8.<strong>07</strong>8/90 — ‘inclusive<br />

as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária’ — interpretação<br />

conforme à Constituição, para dela afastar a exegese que nela inclua” as operações<br />

bancárias.”<br />

É importante que o Tribunal tenha uma clara definição disso, por uma razão<br />

simples: a lei complementar, a alteração constitucional — e aqui o Ministro Marco<br />

Aurélio, digamos, en passant do tema —, lembrem-se que o art. 192 atribuía regular “em<br />

lei complementar, que disporá, inclusive, sobre”; e, aí, havia, na redação original, uma<br />

39 BROSSARD, Paulo. Defesa do consumidor — atividade do Ministério Público — Incursão em<br />

operações bancárias e quebra de sigilo — Impossibilidade de interferência. In: Revista dos Tribunais,<br />

ano 84, agosto de <strong>199</strong>5, vol. 718, p. 89.


R.T.J. — <strong>199</strong> 593<br />

série de incisos que davam o norte do conteúdo da Lei do Sistema Financeiro Nacional.<br />

Este norte desapareceu, e ficou uma linguagem aberta, porque, de uns tempos para cá,<br />

legislamos através de linguagens retóricas, inclusive.<br />

Diz na redação final:<br />

“Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o<br />

desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade,” —<br />

normalmente isso poderia estar numa exposição de motivos, era o lugar próprio —<br />

“em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será<br />

regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do<br />

capital estrangeiro nas instituições que o integram.”<br />

Essa regra tem um perigo muito grave, porque se está atribuindo à lei complementar<br />

legislar sobre sistema financeiro, o que significaria, em tese, e em princípio poderia<br />

significar, e que nós não poderemos aceitar que o legislador complementar possa dispor<br />

sobre o universo, um código de operações que pudesse absorver, inclusive, os serviços<br />

bancários.<br />

Então, com isso concluo.<br />

VOTO (Preliminar)<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, apenas para refletir em voz alta.<br />

Antes do ajuizamento da ação, o artigo 192 da Constituição Federal era composto<br />

pela cabeça do próprio artigo e incisos. Agora, subsiste somente a cabeça, a revelar que:<br />

Art. 192. O Sistema Financeiro Nacional, estruturado de forma a promover o<br />

desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em<br />

todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será<br />

regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do<br />

capital estrangeiro nas instituições que o integram.<br />

Ora, prevalece algum conteúdo quanto à ação ajuizada? Tenho sustentado que,<br />

tanto quanto possível, o Supremo deve homenagear o macroprocesso, o processo<br />

mediante o qual se afastam do cenário jurídico incertezas, dúvidas, e evita-se, com o<br />

pronunciamento a tempo do Supremo, o surgimento de ações, de conflitos de interesses<br />

que abalam — e a jurisdição objetiva justamente restabelecer esse valor maior — a paz<br />

social.<br />

A meu ver, tal como lançado por Vossa Excelência, subsiste matéria a ser<br />

apreciada, no âmbito do processo objetivo, presente o controle concentrado de<br />

constitucionalidade.<br />

Há, de um lado, a óptica segundo a qual apenas a lei complementar mencionada no<br />

artigo 192 em questão deve disciplinar tudo que diga respeito ao Sistema Financeiro<br />

Nacional, os diversos desmembramentos decorrentes dele próprio; e, de outro, a visão<br />

contida em reiterados pronunciamentos do Judiciário sobre a adequação à espécie,<br />

considerados os serviços prestados, do Código do Consumidor.<br />

Diante do quadro, concluo que não está prejudicada a ação direta de inconstitucionalidade.<br />

.


594<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

VOTO<br />

(Sobre preliminar de prejudicialidade)<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente, a caracterização das operações<br />

financeiras também como operações de fornecimento e consumo tinha por fundamento<br />

principal os arts. 170 e 192 da Constituição, que demarcavam a matéria relativa à ordem<br />

econômica e à ordem financeira.<br />

Na antiga redação, o art. 192 trazia alguns elementos que permitiam reduzir a<br />

vagueza do campo de competência para estruturação do sistema financeiro nacional. Por<br />

exemplo, a disciplina do sistema financeiro nacional incluía a “autorização para o<br />

funcionamento das instituições financeiras, assegurado às instituições bancárias<br />

oficiais e privadas acesso a todos os instrumentos do mercado financeiro bancário,<br />

sendo vedada a essas instituições a participação em atividades não previstas na<br />

autorização de que trata este inciso” (art. 192, I).<br />

A modificação do art. 192 promovida pela Emenda Constitucional 40/2003<br />

resultou na remoção de elementos que permitiam caracterizar o âmbito das normas do<br />

sistema financeiro nacional, limitando-se à definição da lei complementar como<br />

instrumento para dispor sobre o assunto, “de forma a promover o desenvolvimento<br />

equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o<br />

compõem”.<br />

A alteração constitucional aumentou, portanto, o grau de vagueza do campo de<br />

competência relativo ao sistema financeiro nacional.<br />

A EC 40/2003, contudo, não aglutinou a competência para instituição de regras de<br />

controle e monitoramento das operações financeiras à competência para dispor sobre o<br />

próprio sistema financeiro nacional. As operações financeiras continuam a representar<br />

operações em que há fornecimento oneroso, com intuito lucrativo, de uma prestação.<br />

Como operação econômica, a operação financeira também se submete aos mecanismos<br />

de defesa do consumidor, sem prejuízo da aplicação de normas específicas relativas ao<br />

aspecto financeiro da operação.<br />

Mantida a distinção, não excludente, entre a matéria constitucional própria das<br />

relações de consumo e a matéria relativa ao sistema financeiro nacional, dado que uma<br />

mesma operação pode ostentar ambas as características, permanece o parâmetro<br />

constitucional de julgamento, que se resume à inclusão ou não da proteção da relação de<br />

consumo em operações financeiras no campo do sistema financeiro nacional.<br />

Não há, portanto, perda do interesse processual ou do objeto da presente ação<br />

direta de inconstitucionalidade em razão da superveniência da EC 40/2003.<br />

VOTO<br />

(Sobre preliminar de prejudicialidade)<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Senhor Presidente, a mim, ao contrário, o que<br />

Vossa Excelência chama de enxugamento do artigo 192 da Constituição, parece-me que<br />

a EC 40 alterou substantivamente o parâmetro constitucional desta ação direta.


R.T.J. — <strong>199</strong> 595<br />

Basta considerar aqui o voto anterior do eminente Relator, o Ministro Carlos<br />

Velloso, quando exclui não, as operações bancárias, em geral, âmbito de proteção do<br />

Código do Consumidor: dela só exclui a fixação de juros, com base na previsão<br />

constitucional então vigente do limite de 12% para os juros reais que, na ADI n. 4, se<br />

considerou norma de eficácia limitada, a depender de complementação por lei<br />

complementar.<br />

Creio que a subtração desta malsinada previsão constitucional de juros altera<br />

substancialmente o parâmetro e não permite a continuidade do julgamento.<br />

Por isso, com as vênias dos eminentes Colegas, dou por prejudicada a ação direta<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ministro Pertence, a questão dos juros não seria um<br />

aspecto envolvido na espécie — e não haveria, na verdade, o confronto, considerada a<br />

regência do grande todo, o Sistema Financeiro Nacional, pela lei complementar — ou<br />

parte da própria atividade desenvolvida?<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Creio que não. Parto, mesmo, das acerbas<br />

críticas que se dirigiram a este § 3º no sentido de que era uma insanidade prever-se, na<br />

estrutura global do Sistema Financeiro, um limite à fixação de juros.<br />

Não era necessariamente, para a maior parte dos comentadores, não deveria ser<br />

componente desta regulação geral do Sistema Financeiro Nacional.<br />

VOTO (Confirmação)<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, tenderia a acompanhar a<br />

divergência, caso realmente houvesse vinculação maior à causa de pedir. Mesmo assim,<br />

constato que a inicial apresentada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro<br />

versa também sobre o que seria o conflito do Código do Consumidor com a própria<br />

cabeça do artigo 192 da Constituição Federal. Continuo convencido de que a<br />

problemática dos juros era um dos aspectos — podemos dizer assim — envolvidos na<br />

espécie.<br />

Por isso, mantenho o voto, admitindo o macroprocesso.<br />

DEBATE<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: O Ministro Sepúlveda Pertence lembrava, numa das<br />

primeiras discussões sobre o tema, que isso seria — numa linguagem bem simples —<br />

propaganda enganosa.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Ou tentativa.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Ou pelo menos tentativa, que não poderia ficar à margem<br />

da proteção do Código.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): É lógico, está dentro do critério de<br />

proteção.<br />

Isso está fora da atividade do Banco Central, agora, não a exclui. Não quer dizer<br />

que o Banco Central não possa concorrentemente, também, operar nessa área. Mas o fato


596<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

é que não pode a atividade do Banco Central eventualmente existente nesse setor,<br />

através de suas resoluções, de ordens de serviço, etc., excluir a intervenção dos órgãos de<br />

proteção do consumidor, a atividade seria concorrente, mas não excludente.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Tive ciência da intervenção do Ministro Sepúlveda<br />

Pertence, não estava de corpo presente, aqui, não era Ministro da Casa, por intermédio<br />

das notas taquigráficas.<br />

DEBATE<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Vamos admitir que, dentro desse<br />

conflito existente, o legislador fixe na lei complementar do sistema financeiro e atribua<br />

ao Banco Central as funções de proteção ao consumidor nos serviços bancários.<br />

Perguntaria: isso é da competência do sistema financeiro?<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Já se sustentou a sério, neste Tribunal, que<br />

exigência de sanitário em agência bancária é “sistema financeiro”.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): É lógico. Ou fazer aquele nosso exemplo<br />

clássico não de banco, mas que era extraordinário do Gallotti, quando dizia que as<br />

regras de progressão ou de avanço de progressão funcional poderiam levar, aqui, o<br />

barbeiro do necrotério a se transformar em médico legista.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

ADI 2.591/DF — Relator: Ministro Carlos Velloso. Requerente: Confederação<br />

Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF (Advogados: Ives Gandra S. Martins e<br />

outros). Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional.<br />

Decisão: Renovado o pedido de vista do Ministro Nelson Jobim, justificadamente,<br />

nos termos do § 1º do artigo 1º da Resolução n. 278, de 15 de dezembro de 2003.<br />

Presidência do Ministro Maurício Corrêa. Plenário, 28-4-2004.<br />

Decisão: Preliminarmente, o Tribunal, por unanimidade, indeferiu o requerimento<br />

do IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Ausente, justificadamente, nesta<br />

preliminar, o Ministro Celso de Mello. O Tribunal, por maioria, entendeu não estar<br />

prejudicada a ação, vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, Eros Grau e Carlos Britto.<br />

Após o voto do Ministro Nelson Jobim (Presidente), que acompanhava o voto do Relator<br />

pela procedência parcial da ação, para dar interpretação conforme a Constituição, e do<br />

voto do Ministro Néri da Silveira, que a julgava improcedente, pediu vista dos autos o<br />

Ministro Eros Grau. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Ministro Gilmar<br />

Mendes.<br />

Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,<br />

Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr.<br />

Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.<br />

Brasília, 22 de fevereiro de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 597<br />

VOTO (Vista)<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Tentarei ser objetivo. Quanto à ofensa — na expressão<br />

“inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária”, do § 2º do art. 3º<br />

do CDC — ao “princípio da razoabilidade”, anoto desde logo que ela, tal qual a<br />

proporcionalidade, não constitui um princípio. Como observei em outra oportunidade 1 ,<br />

uma e outra, razoabilidade e proporcionalidade, são postulados normativos da interpretação/aplicação<br />

do direito — um novo nome dado aos velhos cânones da interpretação,<br />

que a nova hermenêutica despreza — e não princípios.<br />

E assim é ainda que a nossa doutrina e certa jurisprudência pretendam aplicá-los,<br />

como se princípios fossem, a casos concretos, de modo a atribuir ao Poder Judiciário<br />

capacidade de “corrigir” o legislador. Isso me parece inteiramente equivocado, mesmo<br />

porque importa desataviada afronta ao princípio — este sim, princípio — da harmonia e<br />

equilíbrio entre os Poderes. De modo que não se sustenta a tentativa, da requerente da<br />

ADI, de inovar texto normativo [o Código de Defesa do Consumidor] no âmbito do<br />

Judiciário, pretendendo que este atue usurpando competência legislativa. O que se<br />

admite, unicamente, é a aplicação, pelo Judiciário, da razoabilidade como instrumento<br />

de eqüidade. Mas isso não no momento da produção da norma jurídica, porém no<br />

instante da norma de decisão 2 .<br />

2. Não há dúvida, de outra parte, quanto à circunstância de a exigência de lei<br />

complementar veiculada pelo artigo 192 da Constituição abranger apenas o quanto<br />

respeite à regulamentação — permito-me exorcizar o vocábulo “regulação”, em razão<br />

do tanto de ambigüidade que enseja — regulamentação, dizia, da estrutura do sistema. O<br />

sistema haveria de estar a serviço da promoção do desenvolvimento equilibrado do País<br />

e dos interesses da coletividade — diz o preceito — e, para tanto, a Constituição impõe<br />

sua regulamentação por lei complementar. Mas apenas isso. Os encargos e obrigações<br />

impostos pelo Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras, atinentes à<br />

prestação de seus serviços a clientes — isto é, atinentes à exploração das atividades dos<br />

agentes econômicos que a integram, todas elas, operações bancárias e serviços bancários,<br />

na dicção do Ministro Nelson Jobim — esses encargos e obrigações poderiam perfeitamente,<br />

como o foram, ser definidos por lei ordinária.<br />

Nesse ponto permito-me ainda discordar do que se afirmou anteriormente, na<br />

observação de que o texto do artigo 192 incorpora expressão que deveria constar da<br />

exposição de motivos da lei. A mim parece incompreensível possa alguém negar força<br />

normativa a esta autêntica norma-objetivo 3 consagrada no texto constitucional, que<br />

estabelece os fins a serem perseguidos pelo sistema financeiro nacional, a promoção do<br />

desenvolvimento equilibrado do País e a realização dos interesses da coletividade.<br />

1 Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. pp.<br />

183 e ss.<br />

2 Vide meu O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed. São Paulo: Malheiros, pp. 280 e ss.<br />

3 Vide meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. cit., pp. 128 e ss.


598<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

3. Parece-me oportuno, de outra banda, considerarmos argumento desenvolvido<br />

em memorial, segundo o qual a lei especial, como tal entendida, no caso, uma resolução<br />

do Conselho Monetário Nacional, afastaria a aplicação da lei geral, vale dizer, do<br />

Código de Defesa do Consumidor.<br />

O artigo 4º, inciso VIII, da Lei n. 4.595/64 estabelece que compete ao Conselho<br />

Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo Presidente da República<br />

(redação da Lei n. 6.045/74), “regular a constituição, funcionamento e fiscalização dos<br />

que exercerem atividades subordinadas a esta lei, bem como a aplicação das penalidades<br />

previstas”.<br />

O vulgo, quem não é versado nos meandros do direito, supõe, equivocadamente,<br />

que é o Banco Central quem dispõe sobre esta matéria. Não é assim, contudo. O titular do<br />

exercício da chamada capacidade normativa de conjuntura 4 é o Conselho Monetário<br />

Nacional. O Banco Central limita-se a dar publicidade às deliberações do colegiado.<br />

A questão a considerar respeita à determinação do significado, no contexto do<br />

preceito — isto é, no mencionado artigo 4º, inciso VIII —, do vocábulo funcionamento.<br />

É unicamente sobre esta matéria que o Conselho Monetário Nacional está autorizado a<br />

dispor texto normativo.<br />

Os que exercem atividades subordinadas à Lei n. 4.595/64 são as instituições<br />

financeiras. Logo, é do funcionamento das instituições financeiras que se trata. Podemos,<br />

portanto, dizer: desempenho de suas atividades pelas instituições financeiras. O<br />

Conselho Monetário Nacional regula o desempenho de suas atividades pelas instituições<br />

financeiras. O vocábulo funcionamento é, porém, mais forte, na medida em que<br />

expressivo da circunstância de as instituições cumprirem uma função no quadro do<br />

sistema financeiro nacional.<br />

O vocábulo tem a virtude de tornar bem explícito o fato de a lei ter estabelecido que<br />

para funcionar, para desempenhar a atividade de intermediação financeira, a empresa<br />

deverá cumprir o que determina o Conselho Monetário Nacional no que concerne a sua<br />

adequação a esse desempenho. Vale dizer, quanto ao nível de capitalização, à solidez<br />

patrimonial, aos negócios que poderá realizar [por exemplo, câmbio, captação de depósitos<br />

à vista, etc.], à sua constituição de conformidade com as regras legais [lei das<br />

sociedades anônimas, com todas as suas implicações]. Entrando em funcionamento, a<br />

instituição financeira, mercê da autorização que para tanto recebeu, pode exercer determinadas<br />

atividades, v.g., captar depósitos à vista, pagar benefícios previdenciários, captar<br />

poupança, receber tributos. Essas atividades deverão ser, no entanto, desempenhadas no<br />

quadro das determinações dispostas pelo órgão normativo [v.g., tipos de operações permitidas<br />

ou vedadas; volumes a serem aplicados nessa ou naquela modalidade de crédito;<br />

posições cambiais (níveis) a serem cumpridas e negócios dessa natureza que podem ou não<br />

ser contratados]. Digo mais: esse exercício há de ser empreendido de modo que a empresa —<br />

isto é, a instituição financeira — funcione em coerência com certas diretrizes de políticas<br />

públicas, suas prerrogativas sendo exercidas conforme definições, estruturais e conjunturais,<br />

que as delimitam [v.g., recolhimentos compulsórios, encaixe obrigatório].<br />

4 Vide meu O direito posto e o direito pressuposto. cit., pp. 231-233.


R.T.J. — <strong>199</strong> 599<br />

Vê-se bem, destarte, que a função das instituições financeiras é sistêmica, vale<br />

dizer, respeita ao seu desempenho no plano do sistema financeiro. Ainda em outros<br />

termos, essa função somente pode ser cumprida no plano do sistema financeiro.<br />

Ora, o Conselho Monetário Nacional é competente apenas para regular — além da<br />

sua constituição e da sua fiscalização — o funcionamento das instituições financeiras,<br />

isto é, o desempenho de suas atividades no plano do sistema financeiro. Tudo quanto<br />

exceda esse desempenho não pode ser objeto de regulação por ato normativo produzido<br />

pelo Conselho Monetário Nacional.<br />

Por isso as resoluções que dispõem sobre a proteção do consumidor dos serviços<br />

prestados pelas instituições financeiras — Resolução n. 2.878, de 26 de julho, alterada<br />

pela de n. 2.892, de 27 de setembro, ambas de 2001 — são francamente ilegais. Como essa<br />

é matéria que excede o funcionamento das instituições financeiras, é inadmissível afirmar-se<br />

que suas disposições obrigam em virtude de lei 5 , eis que o artigo 4º, inciso VIII, da Lei<br />

n. 4.595/64 não autoriza ao Conselho Monetário Nacional o exercício de capacidade<br />

normativa de conjuntura em relação a ela. Permitam-me insistir neste ponto: a expedição<br />

de atos normativos pelo Banco Central, quando não respeitem ao funcionamento das<br />

instituições financeiras, é abusiva, consubstancia afronta desmedida à legalidade.<br />

Francamente ilegais as resoluções, o argumento segundo o qual a Resolução n.<br />

2.878 excluiria a aplicação do Código de Proteção do Consumidor porque a lei especial<br />

afasta a geral — argumento de que se lança mão em memorial, com expressa alusão a um<br />

voto meu nos autos do RE n. 351.750 — francamente ilegais as resoluções, dizia, o<br />

argumento perece.<br />

4. Também não resta dúvida no que tange à caracterização do cliente de instituição<br />

financeira como consumidor, para os fins do artigo 170 da Constituição do Brasil. A<br />

relação entre banco e cliente é, nitidamente, uma relação de consumo, protegida constitucionalmente<br />

[arts. 3º, XXXII, e 170, V, da CB/88].<br />

Como observei também em outra oportunidade 6 , o Código define “consumidor”,<br />

“fornecedor”, “produto” e “serviço”. Entende-se como “consumidor”, como “fornecedor”,<br />

como “produto” e como “serviço”, para os efeitos do Código de Defesa do<br />

Consumidor, o que descrito está nos seus arts. 2º e 3º e §§ 1º e 2º.<br />

Inútil, diante disso, qualquer esforço retórico desenvolvido com base no senso<br />

comum ou em disciplinas científicas para negar os enunciados desses preceitos<br />

normativos. Não importa seja possível comprovar, por a + b, que tal ente ou entidade não<br />

pode ser entendido, economicamente, como consumidor ou fornecedor. O jurista, o<br />

profissional do direito não perde tempo em cogitações como tais. Diante da definição<br />

legal, força é acatá-la. Cuide apenas de pesquisar os significados dos vocábulos e<br />

expressões que compõem a definição e de apurar da sua coerência com o ordenamento<br />

constitucional.<br />

5 Vide meus votos nas ADIs 3.090 e 3.100 e meu O direito posto e o direito pressuposto. cit., pp. 244<br />

e ss.<br />

6 Definição legal de consumidor, in Repertório IOB de jurisprudência, 2ª quinzena de janeiro de <strong>199</strong>1,<br />

n. 2/91, p. 42.


600<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O art. 2º do Código diz que “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que<br />

adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. E o § 2º do art. 3º define<br />

como serviço “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração,<br />

inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as<br />

decorrentes das relações de caráter trabalhista”. Assim temos que, para os efeitos do<br />

Código do Consumidor, é “consumidor”, inquestionavelmente, toda pessoa física ou<br />

jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito.<br />

Isso não apenas me parece, como efetivamente é, inquestionável. Por certo que as<br />

instituições financeiras estão, todas elas, sujeitas ao cumprimento das normas estatuídas<br />

pelo Código de Defesa do Consumidor.<br />

5. É certo, no entanto, que o § 2º do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor há<br />

de ser interpretado em coerência com a Constituição. Para tanto se impõe sejam excluídas<br />

da abrangência por seus efeitos determinação do custo das operações ativas e da<br />

remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras na exploração<br />

da intermediação de dinheiro na economia. A respeito dessa matéria deve dispor o<br />

Poder Executivo, a quem incumbe fiscalizar as operações de natureza financeira, o que<br />

envolve a fixação da taxa base de juros praticável no mercado financeiro.<br />

A fixação dessa taxa não pode ser operada senão desde a perspectiva macroeconômica.<br />

Basta a menção, por exemplo, ao poder de multiplicação de moeda circulante<br />

em moeda escritural, que os bancos exercem de modo a receber a título de juros, pelo<br />

mesmo dinheiro materialmente considerado, em certos casos mais de três vezes o valor<br />

da taxa praticada. O volume de moeda adicional “criado” pelo banco corresponde a<br />

moeda escritural, isto é, a moeda bancária — moeda que, na dicção de Eugênio<br />

Gudin 7 , “só se concretiza nos livros dos bancos, através de algarismos que passam de<br />

um a outro livro ou de uma a outra coluna. Esses algarismos são animados pela<br />

vontade das partes mas não saem dos estabelecimentos de crédito, onde nascem,<br />

circulam e desaparecem”.<br />

6. Vou me deter um instante nesse ponto, procurando desvendar essa poderosa<br />

capacidade de criação de riqueza abstrata de que os bancos desfrutam.<br />

Quando um banco concede empréstimo a alguém, utiliza-se, para tanto, de moeda<br />

que recebeu de seus depositantes. Assim, admitindo-se que o banco A tivesse recebido<br />

um volume total de depósitos igual a 100, alguém poderia supor que esse banco [o<br />

banco A] estivesse capacitado a contratar empréstimos, com B, C e D, no valor total de<br />

100.<br />

Essa suposição é, todavia, equivocada. E isso porque, a qualquer momento, um ou<br />

mais titulares de depósitos à vista no banco A poderão emitir cheques contra o banco<br />

depositário. Logo, é evidente que, se não o valor 100, ao menos uma parcela desse valor<br />

haverá de ser mantida em poder do banco A, a fim de que possa ele, tão logo sacados<br />

esses cheques, pagá-los. Essa parcela do valor 100, mantida em caixa pelo banco A, é<br />

chamada de encaixe (encaixe bancário).<br />

7 Princípios de economia monetária. 7. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1970. vol. 1, p. 51.


R.T.J. — <strong>199</strong> 601<br />

Evidente que, se supusermos que aqueles depositantes que sacam valores de seus<br />

próprios depósitos o fazem para manter consigo os valores sacados, a parcela de encaixe<br />

do banco A será extremamente elevada, em termos percentuais. O quanto restaria para ser<br />

emprestado a B, a C e a D seria praticamente irrelevante.<br />

7. Sucede, contudo, em primeiro lugar, que os depositantes no banco A, quando<br />

sacam cheques contra o banco depositário, fazem-no, na maioria das vezes, para liquidar<br />

obrigações perante terceiros. E esses terceiros, naturalmente, depositam os cheques que<br />

receberam em um banco. Suponha-se somente existisse em determinada localidade o<br />

banco A: os credores que receberam cheques sacados contra o banco A irão depositá-los<br />

no banco A.<br />

Em segundo lugar, ocorre que B, C e D — tomadores de crédito junto ao banco A —<br />

lançam mão desse crédito para efetuar pagamentos a terceiros, que, por sua vez, depositam<br />

os valores recebidos de B, C e D nesse mesmo banco A.<br />

Assim, é evidente que, ao contrário do que anteriormente se supôs, a parcela de<br />

encaixe do banco A, aplicada sobre o volume nominal dos depósitos, não será necessariamente<br />

elevada, em termos percentuais.<br />

Resumindo: encaixe bancário é a parcela de moeda que o banco A mantém em seu<br />

poder para atender a eventuais quedas no volume total dos seus depósitos à vista.<br />

8. Isso posto, teremos que, nas circunstâncias acima consideradas, o encaixe do<br />

banco A poderá ser igual, exemplificativamente, a 20% do volume total dos depósitos à<br />

vista que tiver recebido.<br />

Naquelas circunstâncias — supondo-se existisse somente o banco A em determinada<br />

localidade e que nenhum dos titulares de depósito à vista nele tivesse sacado<br />

valores, contra esses depósitos, para mantê-los entesourados consigo, debaixo do colchão<br />

—, teremos que:<br />

[i] - originariamente foram depositados 100 no banco A;<br />

[ii] - o banco A emprestou 80 a B, a C e a D;<br />

[iii] - os terceiros, que receberam pagamentos de B, de C e de D, depositaram esses<br />

80 no banco A;<br />

[iv] - o banco A conservou 20% [= encaixe] desses 80, emprestando 64 a E, F e G;<br />

[v] - os terceiros, que receberam pagamentos de E, de F e de G, depositaram esses 64<br />

no banco A;<br />

[vi] - o banco A conservou 20% [= encaixe] desses 64, emprestando, em números<br />

redondos, 51 a H, a I e a J;<br />

[vii] - os terceiros, que receberam pagamentos de H, de I e de J, depositaram esses<br />

51 no banco A;<br />

[viii] - o banco A conservou 20% [= encaixe] desses 51, emprestando, em números<br />

redondos, 40 a K, a L e a M;<br />

[ix] - os terceiros, que receberam pagamentos de K, de L e de M, depositaram esses<br />

40 no banco A.<br />

.


602<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O banco A, assim, a partir dos 100 recebidos em moeda circulante de seus originários<br />

depositantes, terá emprestado 235, multiplicando por mais do que dois aquela quantidade<br />

de moeda circulante; terá 335 em depósito, recebidos de seus originários depositantes e<br />

dos terceiros que receberam pagamentos de B, de C, de D, de E, de F, de G, de H, de I, de J,<br />

de K, de L e de M.<br />

Eis como o banco A, a partir dos 100 que recebeu de seus originários depositantes<br />

em moeda circulante, pode “criar” um volume de moeda adicional no valor de 235.<br />

9. O fato de, em verdade, não ser o banco A o único existente, ainda que em uma<br />

determinada localidade ideal, em nada altera a exposição até esse ponto produzida.<br />

E assim é porque, ainda que alguns dos terceiros que receberam pagamentos de B a<br />

M e dos originários titulares de depósitos à vista no banco A não sejam clientes do banco<br />

A — mas sim do banco X e do banco Y —, B e todos os demais, até M, e aqueles originários<br />

titulares de depósitos à vista no banco A em determinado momento receberão pagamentos<br />

em cheques sacados contra os bancos X e Y e os depositarão no banco A. A compensação<br />

entre créditos e débitos recíprocos é então feita nas chamadas câmaras de compensação.<br />

10. Essa monumental multiplicação de moeda produzida pelos bancos sempre<br />

gera efeitos sensíveis, mas extremamente exacerbados, extremamente exacerbados<br />

quando a taxa de juros é elevada, como ocorre entre nós. Altas taxas de juros incidindo<br />

sobre uma base de depósitos inúmeras vezes multiplicada — para ficar somente no tema<br />

dos juros, sem avançar para o das tarifas — vale dizer, multiplicação de moeda a taxas<br />

elevadíssimas, isso é que explica o mais do que monumental lucro dos bancos, cujos<br />

montantes, por uma notável coincidência, foram divulgados pela imprensa no dia<br />

seguinte à Sessão Plenária, desta Corte, na qual votou o Ministro Nelson Jobim, 22 de<br />

fevereiro passado. Um deles lucrou cinco bilhões e meio em 2005.<br />

A circunstância de a taxa de juros ao consumidor ser muito elevada entre nós<br />

explica apenas parcialmente esse lucro que causa espanto. No anexo ao voto do Ministro<br />

Nelson Jobim, lê-se que essa taxa — “taxa de juros ao consumidor” [repito: “ao<br />

consumidor”!] — em 2005 era de 56,85% ao ano.<br />

Na verdade, porém, o sistema bancário, no seu conjunto, recebe muito mais do que<br />

esses 56,85% ao ano pelo crédito que concede, visto que, mercê do expediente da<br />

criação de moeda escritural, empresta mais de uma vez o mesmo dinheiro que recebeu de<br />

seus depositantes. No exemplo de que há pouco me vali, 100 recebidos em depósito a<br />

vista são transformados em 235, o que elevaria os juros percebidos pelo banco A de<br />

56,85% a 133,59% ao ano. E, notem bem, meu exemplo é discreto, eis que em certos<br />

casos a quantidade de depósitos chega a ser multiplicada por três, o que elevaria a taxa<br />

de juros ao consumidor a mais de 170% ao ano.<br />

11. Ora, essa poderosa capacidade de criação de riqueza abstrata não pode ficar<br />

sujeita a administração desde a perspectiva das relações microeconômicas, sob pena de<br />

comprometimento dos objetivos que o artigo 192 da Constituição visa a realizar, o<br />

desenvolvimento equilibrado do País e a satisfação do interesse da coletividade.<br />

Importa, no entanto, também considerarmos o descompasso existente entre a taxa<br />

de juros Selic e as taxas efetivamente impostas pelos bancos a seus clientes. Taxa de<br />

juros Selic é a “taxa média ajustada dos financiamentos diários apurados no Sistema<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 603<br />

Especial de Liquidação e Custódia (Selic), para títulos federais” 8 . É denominada básica<br />

para o mercado 9 por ser aquela que o Estado, devedor peculiar, paga por seu<br />

endividamento e ao mesmo tempo sinaliza a política monetária implementada pelo<br />

Banco Central. Pois bem, a taxa de juros Selic resulta amplamente ultrapassada nas<br />

contratações de créditos concedidos pelos bancos a todos os seus clientes, consumidores<br />

ou empresas, pessoas físicas ou jurídicas, precisamente aquelas contratações que<br />

operam a multiplicação de moeda e sua transformação em moeda escritural.<br />

Deveras, a mera e simples comparação entre o montante da chamada taxa Selic —<br />

que, sem nenhuma dúvida, é bastante elevada, se a considerarmos em relação à praticada<br />

em outros países — e a soma da efetivamente cobrada no plano de cada negócio<br />

individualmente considerado celebrado com os tomadores de crédito evidencia ser<br />

indispensável o efetivo controle da composição dessa soma. E não apenas nas hipóteses<br />

de relação entre banco, fornecedor de crédito, e cliente, pessoa física, senão também<br />

quando se trate de pequena ou média empresa. Pois aqui se instala — e de modo<br />

pronunciado — uma relação de dominação, em cujo pólo ativo comparecem os bancos,<br />

no pólo passivo, suportando-a, o devedor. Em certos casos, autênticas situações de<br />

dependência econômica.<br />

O cliente do banco coloca-se sob os efeitos de uma relação de dominação, inclusive<br />

a que o abarca quando compelido a depositar em uma instituição financeira suas<br />

poupanças. Desejo dizer, com isso, que o Banco Central está vinculado pelo deverpoder<br />

de controlar vigorosamente a definição contratual do custo das operações ativas e<br />

da remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho<br />

da intermediação de dinheiro na economia.<br />

Daí por que tenho como indispensável a coibição de abusos praticados quando<br />

instituições financeiras acrescentam à taxa base de juros, a chamada taxa Selic, taxas<br />

adicionais de serviços e outros que tais. Vale dizer: tudo quanto exceda a taxa base de<br />

juros, os percentuais que a ela são adicionados e findam por compor o spread bancário,<br />

tudo isso pode e deve ser controlado pelo Banco Central e, se o caso, pelo Poder<br />

Judiciário. Não incide, contudo, sobre esta matéria — repito: definição do custo das<br />

operações ativas e da remuneração das operações passivas praticadas por instituições<br />

financeiras no desempenho da intermediação de dinheiro na economia — não incide,<br />

dizia eu, o micro sistema do Código de Defesa do Consumidor, mas sim o Código Civil.<br />

O fato é que tudo quanto exceda o patamar da taxa Selic é pura relação contratual. Por<br />

óbvio, a abusividade e a onerosidade excessiva na composição contratual dessa taxa,<br />

além de outras distorções, são passíveis de revisão nos termos dos preceitos aplicáveis<br />

do Código Civil — e, repito ainda, não somente em benefício do cliente pessoa física,<br />

8 Cf. a Circular 2.900/99 do Banco Central.<br />

9 Diz o artigo 13 da Lei n. 9.065/95: “A partir de 1º de abril de <strong>199</strong>5, os juros de que tratam a alínea<br />

c do parágrafo único do art. 14 da Lei n. 8.847, de 28 de janeiro de <strong>199</strong>4, com a redação dada pelo art.<br />

6º da Lei n. 8.850, de 28 de janeiro de <strong>199</strong>4, e pelo art. 90 da Lei n. 8.981, de <strong>199</strong>5, o art. 84, inciso<br />

I, e o art. 91, parágrafo único, alínea a.2, da Lei n. 8.981, de <strong>199</strong>5, serão equivalentes à taxa referencial<br />

do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC para títulos federais, acumulada<br />

mensalmente”.


604<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

mas também em especial das pequenas empresas, em relação às quais a dependência<br />

econômica pode estar francamente caracterizada. É necessário não perdermos de vista o<br />

poder do oligopólio constituído pelas instituições financeiras, capazes de, na multiplicação<br />

de moeda circulante em moeda escritural, produzir bem público. O que acima<br />

demonstrei, explicando os mecanismos de criação de moeda escritural e como estão<br />

constituídos os lucros das instituições financeiras, é impressionante.<br />

12. Não acompanho o voto do eminente Ministro Nelson Jobim, que faz distinção<br />

entre “operações bancárias” e “serviços bancários”, para excluir plenamente da incidência<br />

da norma veiculada pelo § 2º do artigo 3º da Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90 as primeiras, o que, em<br />

rigor, equivale a dar-se procedência à ação direta. Com efeito, afastadas as “operações<br />

bancárias”, o Código de Defesa do Consumidor incidiria unicamente, na dicção do<br />

Ministro Nelson Jobim, sobre serviços autônomos prestados pelo banco, tal como outro<br />

prestador qualquer, recebendo remuneração específica por esse serviço [custódia de<br />

valores, caixa de segurança, cobrança de títulos, remessas financeiras, compra e venda<br />

de títulos e outras desse estilo]. Por outro lado, afirmar que os clientes bancários das<br />

operações bancárias estariam submetidos a sistema próprio de proteção é dizer que não<br />

estão protegidos, visto que as Resoluções n. 2.878 e n. 2.892/2001 afrontam escancaradamente<br />

o princípio da legalidade. A proteção dos clientes bancários nas operações<br />

bancárias não é matéria atinente ao funcionamento das instituições financeiras. Essas<br />

resoluções são despidas de significação normativa, são — para lembrar Fernando Pessoa —<br />

são papel escrito com tinta, onde está indistinta a diferença entre nada e coisa nenhuma.<br />

Sendo assim, julgo parcialmente procedente a ADI, de modo porém diverso do que<br />

o fez o Ministro Carlos Velloso, para o fim exclusivo de afastar a exegese que submeta às<br />

normas da Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90 — Código de Defesa do Consumidor — a definição do custo<br />

das operações ativas e a remuneração das operações passivas praticadas por instituições<br />

financeiras no desempenho da intermediação de dinheiro na economia. Isso sem prejuízo<br />

do controle pelo Banco Central, e do controle e revisão pelo Poder Judiciário, nos<br />

termos do disposto no Código Civil, de eventual abusividade, onerosidade excessiva ou<br />

outras distorções na composição contratual da taxa de juros, no que tange ao quanto<br />

exceda a taxa base.<br />

EXPLICAÇÃO<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Ministro Eros Grau, gostaria que Vossa<br />

Excelência explicasse, com a clareza didática de que hoje está possuído, a exata<br />

diferença entre o seu voto e a do Ministro Carlos Velloso, para que nós, leigos, possamos<br />

acompanhar.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Eu iria fazer essa pergunta, exatamente.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: No voto do Ministro Carlos Velloso, há uma diferença de<br />

nuance apenas. No sentido prático, vai dar o mesmo resultado.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Porque ele limitava o problema à taxa de juros.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Deixava do lado de fora do Código de Defesa do<br />

Consumidor a taxa de juros.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 605<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Estou fazendo a mesma coisa.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Àquela época era expresso que isso era matéria<br />

reservada à lei complementar.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: A situação era diferente na época, porque não tinha<br />

havido emenda e tudo o mais.<br />

Há duas coisas que pretendi precisar aqui: estou afastando qualquer exegese que<br />

submeta ao Código do Consumidor; e referindo-me à definição do custo das operações<br />

ativas e da remuneração das operações passivas. Esse ponto não ficou claro.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Vossa Excelência me permite. O Código, em si, não<br />

disciplina a definição dos custos e da remuneração.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: É verdade. Por isso estou afastando a exegese. É essa a<br />

nuance.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello: Não pareceria que o Ministro Eros Grau estaria, no<br />

fundo, julgando improcedente a ação direta?<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: No sentido do voto do Ministro Néri da Silveira.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello: No sentido do voto do Ministro Néri da Silveira,<br />

que a julgou improcedente. O Ministro Carlos Velloso, por sua vez, julgou-a<br />

parcialmente procedente, para, sem redução de texto, excluir, do âmbito de incidência<br />

normativa do Código de Defesa do Consumidor, apenas a questão pertinente aos<br />

juros.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Porque a Constituição remetia a lei complementar.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Porque, naquela época, isso era matéria de<br />

reserva explícita à lei complementar; mas o parâmetro mudou. Tudo se resume, hoje, ao<br />

que Vossa Excelência, Ministro Eros Grau, chamou de norma-objetivo, do atual artigo<br />

192.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Exatamente, é só a norma-objetivo.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello: Por isso, tenho a impressão de que os fundamentos<br />

do voto do Ministro Eros Grau só podem conduzir, quanto à parte dispositiva, à<br />

improcedência integral da ação.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: A fundamentação deixaria claro, e não se<br />

poderia acrescer à legislação ordinária do consumidor o problema de fixação dos custos<br />

das operações bancárias. Mas, hoje, não existe essa fixação no CDC.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Sem nenhuma interpretação conforme.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: É verdade.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: O efeito prático é exatamente esse.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Porque temos hoje um dado positivo: é o<br />

Código de Defesa do Consumidor em vigor; e são aquelas normas positivas postas que<br />

constituem o objeto normativo do dispositivo impugnado.<br />

Agora, é claro que a fundamentação do seu voto deixa magnificamente claro que<br />

não se pode aditar ao Código de Defesa do Consumidor uma lei de taxas de juros ou de


606<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

custos de operações bancárias, porque isso é necessariamente envolvido na política<br />

macroeconômica.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Então, esperemos que o legislador venha a atuar em<br />

tal sentido, para exercermos a glosa. Por enquanto não se tem, no Código do<br />

Consumidor, qualquer disciplina.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Quando o artigo diz que inclui o serviço<br />

bancário, é para os efeitos das normas existentes no próprio Código.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Estamos deixando bem claro que essa matéria que lá não<br />

está, efetivamente lá não deveria estar.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Lá não deveria estar, mas isso está na fundamentação.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: É que, passados quinze anos da vigência do Código,<br />

qualquer coisa que se proclame, mitigando esse mesmo Código, somente gerará, a esta<br />

altura, dúvidas, principalmente no campo da remuneração, dos empréstimos e dos<br />

serviços.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Essa é uma matéria — continuo a insistir — que quem<br />

deve cuidar dela é o Banco Central.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Sim, Ministro. Então, está pronta, no seu voto,<br />

a procedência de uma ação direta, que se viesse a propor contra uma lei ordinária que se<br />

intrometesse na fixação dos custos das operações ativas e passivas das instituições<br />

financeiras.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Se a Corte toda me acompanha.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: De qualquer forma, o Congresso deve agradecer a<br />

assessoria.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Eu estava, desde o início, pronto a acompanhar<br />

o Ministro Carlos Velloso, mas, ali, tinha-se uma base normativa específica. O § 3º do<br />

artigo 192 da Constituição incluía o problema dos juros reais como matéria de reserva à<br />

lei complementar. Isso desapareceu, porém.<br />

Hoje, nem o Código de Defesa do Consumidor nem qualquer outra lei ordinária<br />

cuidam da fixação dos custos a que Vossa Excelência se refere. Daí, a observação do<br />

Ministro Celso de Mello; nós não estamos avalizando nenhuma lei futura.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Como disse o Ministro Celso de Mello, exatamente,<br />

é de que o voto do Ministro Eros Grau vai da linha do voto do Ministro Néri da Silveira<br />

que é pela improcedência total da ADI, sem nenhuma interpretação conforme.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Evoluo no sentido de acolher, porque chegamos ao<br />

mesmo resultado, mas, talvez, de modo mais efetivo.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello: Vossa Excelência, portanto, julga improcedente a<br />

presente ação direta...<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Julgo improcedente. Chegamos com isso a um consenso;<br />

mais uma vez o Colegiado manifesta a sua sabedoria e prudência.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 6<strong>07</strong><br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente, entendo que o regramento do<br />

sistema financeiro e a disciplina do consumo e da defesa do consumidor podem perfeitamente<br />

conviver.<br />

Em muitos casos, o operador do direito irá deparar-se com fatos que conclamam a<br />

aplicação de normas tanto de uma como de outra área do conhecimento jurídico. Assim<br />

ocorre em razão dos diferentes aspectos que uma mesma realidade apresenta, fazendo<br />

com que ela possa amoldar-se aos âmbitos normativos de diferentes leis. Um exemplo<br />

corriqueiro disso é a aplicabilidade tanto de normas do Código Civil como do Código<br />

Penal a um mesmo fato, sem que se possa falar em antinomias ou colisões.<br />

A Emenda Constitucional 40, na medida em que conferiu maior vagueza à<br />

disciplina constitucional do sistema financeiro (dando nova redação ao art. 192), tornou<br />

ainda maior esse campo que a professora Cláudia Lima Marques denominou “diálogos<br />

entre fontes” — no caso, entre a lei ordinária (que disciplina as relações consumeristas)<br />

e as leis complementares (que disciplinam o sistema financeiro nacional). Não há, a<br />

priori, por que falar em exclusão formal entre essas espécies normativas, mas, sim, em<br />

“influências recíprocas”, em “aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e<br />

ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a<br />

opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente” 1 .<br />

Por essas razões, meu voto é no mesmo sentido do proferido pelo Ministro Néri da<br />

Silveira. É dizer, a técnica da interpretação conforme não me parece aplicável ao caso em<br />

exame, pois, numa análise em abstrato, inexiste inconstitucionalidade a ser pronunciada<br />

no art. 3º, § 2º, do CDC. A Lei 8.<strong>07</strong>8/<strong>199</strong>0 será sempre aplicável às relações de consumo,<br />

como exatamente diz o texto legal:<br />

“Art. 3º<br />

(...)<br />

§ 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo,<br />

mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e<br />

securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhistas.”<br />

O direito dos consumidores de produtos financeiros e serviços bancários não<br />

encontra disciplina na lei que regula o Sistema Financeiro Nacional, porque outro é o<br />

objetivo desta. O locus adequado a tal disciplina é o CDC, previsto no art. 48 do ADCT,<br />

com apoio no art. 5º, XXXII, da Constituição.<br />

Como bem sustentado pelo então Procurador-Geral da República, Dr. Geraldo<br />

Brindeiro, “a circunstância isolada de competir ao Banco Central controlar o sistema<br />

1 MARQUES, Claudia Lima. Três tipos de diálogos entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código<br />

Civil de 2002: Superação das antinomias pelo “diálogo das fontes”. In: PFEIFFER, Roberto Augusto<br />

Castellanos; PASQUALOTTO, Adalberto [et al.] (Coord.). Código de Defesa do Consumidor e o<br />

Código Civil de 2002: Convergências e assimetrias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.


608<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

financeiro nacional não pode servir de razão para restringir o direito de ação dos<br />

consumidores, a atuação do Ministério Público e de associações legalmente<br />

constituídas para defender interesses e direitos decorrentes das relações de consumo,<br />

para frustrar, enfim, o próprio princípio da proteção judiciária, garantia fundamental<br />

consagrada pela Constituição da República”.<br />

É claro que, numa situação concreta, caso se pretenda aplicar as normas do CDC no<br />

sentido de reger o sistema financeiro, tal equívoco deve ser combatido pelos instrumentos<br />

adequados, como ressaltou o Ministro Néri da Silveira. Isso não significa que o § 2º do art.<br />

3º deva ser submetido a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto,<br />

porque, em verdade, o âmbito normativo do dispositivo atacado está perfeitamente<br />

delimitado, não havendo, em princípio, invasão do âmbito reservado à lei complementar.<br />

Essa análise, aliás, tornou-se ainda mais casuística após a promulgação da EC 40/2003,<br />

que retirou do art. 192 da Lei Maior o parâmetro indicativo da matéria a ser regida por lei<br />

complementar.<br />

De todo modo, como bem salientado no parecer do eminente Procurador-Geral da<br />

República (fl. 1052), a Lei 8.<strong>07</strong>8/<strong>199</strong>0 preconiza apenas que os contratos não<br />

contenham cláusulas abusivas, isto é, que seja observada a fundamental proteção<br />

contratual do consumidor, conferida pelo diploma legal em questão. As normas ali<br />

contidas são, portanto, plenamente aplicáveis a todas as relações de consumo, inclusive<br />

aos serviços (conceito definido no art. 3º, § 2º, CDC) prestados pelas entidades do<br />

Sistema Financeiro Nacional.<br />

Do exposto, julgo improcedente a ação direta.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhora Presidente, acompanhei os debates, depois<br />

que cheguei aqui, e fiz o retrospecto dos debates anteriores, quando as duas correntes de<br />

opinião, na Casa, se formaram em torno dos votos dos Ministros Néri da Silveira e Carlos<br />

Velloso, Relator.<br />

Penso que o Ministro Néri foi, no particular, mais feliz quando interpretou o<br />

artigo 192 de uma perspectiva dicotômica ou dúplice. Ali, há, explicitamente, uma<br />

preocupação da Constituição em estruturar o Sistema Financeiro e dispor sobre a<br />

edição de uma lei complementar que viesse não só estruturar, como funcionalizar esse<br />

Sistema, atuando no campo regulamentar. O que saísse dessa estruturalidade cairia no<br />

campo da trivialidade, ou seja, o campo das relações entre os bancos e seus clientes.<br />

Tudo que não se comportasse nesse campo da estruturalidade constitucional remanesceria<br />

para o campo da trivialidade — chamemos assim para simplificar as coisas.<br />

Creio que o Ministro Néri da Silveira foi muito feliz na interpretação do artigo 192<br />

da Constituição e a conclusão de seu voto pela improcedência da ADI, sem nenhuma<br />

possibilidade de interpretação conforme, pareceu-me convincente.<br />

Aqui, nesta assentada, tivemos esses dois magníficos votos dos Ministros Eros<br />

Grau e Joaquim Barbosa.<br />

De sorte que fico ainda mais pacificado para cravar o meu voto no sentido da<br />

improcedência total da ADI.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 609<br />

VOTO (Antecipação)<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Senhora Presidente, independente da atenção<br />

com que ouvirei, daqui ou fora daqui, o voto do eminente Ministro Cezar Peluso, adianto<br />

o meu voto, que é pela improcedência da ação: considero que a norma impugnada, ao<br />

caracterizar como relação de consumo aquela entre as instituições financeiras e seus<br />

clientes, obviamente está remetendo àquela disciplina positiva contida no Código de<br />

Defesa do Consumidor ou na legislação ordinária que, a respeito, esteja em vigor.<br />

A minha única preocupação — por isso a tendência inicial de acompanhar o voto<br />

do Ministro Carlos Velloso — era, efetivamente, não afetar o campo normativo do artigo<br />

192, que, à época do início do julgamento, efetivamente, excluía a taxa de juros reais do<br />

âmbito da lei ordinária.<br />

Mas os votos aqui proferidos hoje — a excelente demonstração contida no voto do<br />

Ministro Eros Grau e, depois, a ênfase posta pelo Ministro Joaquim Barbosa na absoluta<br />

inexistência de conflito positivo entre os dois sistemas — levam-me a evoluir e julgar<br />

improcedente a ação, até porque o voto do Ministro Carlos Velloso perdeu a sua base<br />

positiva, que era o § 3º do artigo 192, na versão originária, anterior à EC 40, que<br />

suprimiu todos os parágrafos do dispositivo.<br />

Por isso, deixo antecipado o meu voto nesse sentido.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

ADI 2.591/DF — Relator: Ministro Carlos Velloso. Requerente: Confederação<br />

Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF (Advogados: Ives Gandra S. Martins e<br />

outros). Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional.<br />

Decisão: Após o voto vista do Ministro Eros Grau, que julgava improcedente a<br />

ação, no que foi acompanhado pelos Ministros Joaquim Barbosa, Carlos Britto e<br />

Sepúlveda Pertence, este último em antecipação, pediu vista dos autos o Ministro Cezar<br />

Peluso. Não participa do julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski por suceder ao<br />

Ministro Carlos Velloso, que já proferiu voto. Ausente, justificadamente, neste<br />

julgamento, o Ministro Gilmar Mendes.<br />

Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto,<br />

Joaquim Barbosa, Eros Grau e Ricardo Lewandowski. Vice-Procurador-Geral da<br />

República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos.<br />

Brasília, 4 de maio de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

VOTO (Vista)<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: 1. Serei breve, porque as questões centrais do caso já<br />

foram objeto de meticulosas discussões que antecederam este voto vista.<br />

Pretende a autora ver declarada a inconstitucionalidade da expressão “inclusive<br />

as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária”, constante do art. 3º, § 2º,<br />

do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.<strong>07</strong>8, de 11-09-<strong>199</strong>0), que teria incluído<br />

.


610<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

tais atividades no conceito de serviço, submetendo-as, por conseguinte, à incidência das<br />

normas tuitivas do consumidor. Argúi, em síntese, a existência de vício formal, radicado<br />

na imposição de maiores encargos, obrigações e responsabilidades às instituições do<br />

sistema financeiro por meio de lei ordinária, e de vício material, decorrente de ofensa aos<br />

princípios do devido processo legal substantivo e da razoabilidade, por inobservância<br />

das peculiaridades das atividades financeiras, cujas relações não seriam equiparáveis às<br />

de consumo.<br />

2. Estou em que não colhe a afirmação da autora, segundo a qual “a lei ordinária<br />

pretendeu alcançar relações próprias do Sistema Financeiro Nacional, invadindo<br />

campo reservado à lei complementar, além de violar o art. 5º, LIV, da Constituição<br />

Federal, lesionando o princípio do devido processo legal” (§ 14 da inicial).<br />

É que as normas em contraste aparente, que são o CDC e a lei organizadora do<br />

sistema financeiro (Lei n. 4.595/64) têm âmbitos distintos de aplicação, enquanto se<br />

definem estes pelo conjunto dos fatos que correspondem às hipóteses legais (fattispecie<br />

abstratas) das normas de dado sistema designadas como aplicáveis, na expressão<br />

de Baptista Machado 1 . Trata-se, por assim dizer, de dimensões normativas<br />

irredutíveis.<br />

Recordo, a respeito, a velha, mas clara, lição de Norberto Bobbio2:<br />

“Para que possa ocorrer antinomia, são necessárias duas condições, que,<br />

embora óbvias, devem ser explicitadas:<br />

1) As duas normas devem pertencer ao mesmo ordenamento. (...)<br />

2) As duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade. Distinguem-se<br />

quatro âmbitos de validade de uma norma: temporal, espacial, pessoal e<br />

material.”<br />

Ora, as normas de proteção ao consumidor incidem sobre os aspectos factuais da<br />

relação entre instituição do sistema financeiro e cliente, encarada apenas do ponto de<br />

vista do consumo. Não invadem, portanto, nenhuma competência que se possa<br />

qualificar reservada a normas regulamentares do sistema financeiro nacional, cujo<br />

âmbito de aplicação, ou de validade material, é outro.<br />

As relações intersubjetivas, é evidente, enquanto fatos suscetíveis de qualificação<br />

normativa, são dotadas de múltiplos aspectos, que podem guardar relevo simultâneo para<br />

mais de um sistema ou domínio normativo. De modo que não surpreende que diferentes<br />

dimensões de uma mesma classe de fatos de natureza bancária, financeira, de crédito e<br />

securitária caiam sob a regulamentação simultânea de sistemas diversos. Nesse sentido, a<br />

regulamentação dos serviços daquela classe de fatos, objeto do CDC, limita-se aos<br />

aspectos próprios da relação de consumo. Ou, noutras palavras, o CDC não tende a<br />

1 Âmbito de eficácia e âmbito de competência das leis. Coimbra: Almedina, 1970. p. 252.<br />

2 Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília. p. 87. Eis a definição de<br />

antinomia adotada pelo autor: “situação na qual são colocadas em existência duas normas, das quais<br />

uma obriga e a outra proíbe, ou uma obriga e a outra permite, ou uma proíbe e a outra permite o<br />

mesmo comportamento”, p. 86.


R.T.J. — <strong>199</strong> 611<br />

disciplinar as relações entre as instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional e<br />

os clientes, sob o prisma estritamente financeiro ou político-monetário, nem estabelecer<br />

normas sobre o funcionamento institucional. Restringindo-se ao âmbito da competência<br />

conferida pelos arts. 5º, XXXII; 24, VIII; e 170, V, da Constituição da República,<br />

predispõe-se a governar tais relações unicamente do ponto de vista do consumo.<br />

Esta a distinção que a autora dá por pressuposta, mas para tirar-lhe conseqüência<br />

insustentável, ao deduzir na inicial:<br />

“Ora, se, conforme reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal<br />

Federal, as matérias pertinentes ao Sistema Financeiro Nacional, abrangente<br />

das atividades bancárias, financeiras, de crédito e de seguros, hão de ser disciplinadas<br />

por lei complementar a teor do art. 192 da Constituição da República, e se,<br />

de acordo com o entendimento do mesmo Tribunal, a Lei n. 4.595/64 foi recepcionada<br />

com esse status, — resta evidente que o § 2º do art. 3º da Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90,<br />

ao pretender equiparar todas as atividades de natureza bancária, financeira, de<br />

crédito e securitária a relações de consumo para o fim de regulá-las, padece de<br />

inconstitucionalidade por invadir área reservada à lei complementar, sendo<br />

insusceptível de derrogar a lei recepcionada, que desfruta desse status.” (§ 31 da<br />

inicial)<br />

O fator decisivo para a solução da causa está no juízo óbvio de que defesa do<br />

consumidor não é, de maneira alguma, “matéria pertinente ao Sistema Financeiro<br />

Nacional”, e, pois, de que tampouco se preordena a norma impugnada a “equiparar<br />

todas as atividades de natureza bancária (...) a relações de consumo para o fim de<br />

regulá-las”, sob aquele ponto de vista. Não percebê-lo valeria o mesmo que argüir de<br />

inválida a lei que dispusesse a incidência de tributo, como o ITBI, por exemplo, sobre<br />

relação de compra e venda imobiliária, sob pretexto de que estaria a reger de matéria de<br />

direito civil, de competência exclusiva da União (art. 22, I, da CF).<br />

Daí, não se entrever, no caso, derrogação, que, lembra Tércio Sampaio Ferraz<br />

Jr. 3 , é modalidade revocatória cujo alcance está em “retirar a validade por meio de<br />

outra norma”. Ora, não a há, aqui, expressa, nem tácita, até porque esta exigiria<br />

“incompatibilidade entre a matéria revogada e as disposições antes vigentes”. Seguese,<br />

pois, que não há como nem por onde sustentar, convincentemente, que o CDC teria<br />

derrogado, de forma inconstitucional (por invasão de competência reservada à lei<br />

complementar), a Lei n. 4.595/64. E é o que, aliás, não deixou de ver a doutrina<br />

especializada 4 : “(...) continuam com plena eficácia as normas previstas na legislação<br />

anterior que não colidam com o regime do Código, que revoga, pois, somente as regras<br />

incompatíveis, dentro da técnica tradicional (art. 119)”.<br />

3 Introdução ao estudo do Direito: Técnica, decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, <strong>199</strong>6. p. 203.<br />

4 BITTAR, Carlos Alberto. Direitos do consumidor: Código de Defesa do Consumidor. 6. ed.,<br />

atualização de Eduardo C. B. Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 24.


612<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Observada a distinção fundamental entre os âmbitos de aplicação dos sistemas<br />

normativos de que se cuida, não se encontra inconstitucionalidade alguma, assim do<br />

ângulo material, como do formal, à medida que a norma questionada foi introduzida no<br />

ordenamento por veículo legislativo adequado ao assunto que versou.<br />

4. Do exposto, acompanhando, com a devida vênia, os Ministros Néri da Silveira,<br />

Eros Grau, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Sepúlveda Pertence, julgo improcedente<br />

a ação.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhora Presidente, temos, na Constituição Federal,<br />

inúmeros dispositivos que versam sobre a proteção ao consumidor e notamos que a<br />

Carta de 1988 deu — e o fez de forma, a meu ver, no campo didático — uma ênfase maior<br />

à dignidade da pessoa humana. O que se articula nesta ação? O conflito do Código do<br />

Consumidor, vigente desde <strong>199</strong>0, passados os cento e oitenta dias da vacatio legis, com<br />

a própria Lei Fundamental. O código é explícito ao revelar que se tem como alcançados<br />

serviços em qualquer atividade, no mercado de consumo, mediante remuneração,<br />

inclusive aqueles serviços de natureza bancária, financeira, de crédito e, também, os<br />

decorrentes da atuação securitária, salvo o que disser respeito às relações trabalhistas.<br />

O Código do Consumidor, a meu ver, tal como o Código Nacional de Trânsito,<br />

implicou avanço no campo social e não cabe empolgar o artigo 192 da Constituição<br />

Federal, no que preceitua:<br />

Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o<br />

desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em<br />

todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será<br />

regulado por leis complementares (...)<br />

Para afirmar que teria havido invasão, sob o ângulo formal, à reserva, à lei<br />

complementar, da matéria prevista nesse artigo 192.<br />

Vale ressaltar, além desses aspectos, que o código está em vigor há tanto tempo e<br />

jamais se cogitou de as normas de proteção ao consumidor colocarem em risco o sistema<br />

financeiro. Não se tem, nesse diploma, a criação de encargos e obrigações. Existe, sim,<br />

sistema que obstaculiza posições que acabem por alcançar, como disse no início do voto,<br />

a própria dignidade do homem. Não acredito que, com a edição da lei complementar<br />

prevista no artigo 192, venha a ser consagrado — e as instituições financeiras não precisam<br />

disso — o código de proteção às instituições financeiras, considerada a agressividade do<br />

consumidor — algo inexistente. Conforme contido no artigo 192, a lei complementar<br />

disporá sobre a estrutura do sistema financeiro, sem chegar a representar o que apontei,<br />

porque desnecessário mesmo, a proteção, frente ao consumidor, do próprio sistema<br />

financeiro. Não creio que se possa vislumbrar risco quanto ao sistema ou cogitar de<br />

aplicação, nesse longo período em que esteve em vigor o Código do Consumidor, de<br />

forma contrária ao fim visado pelo citado artigo. Basta que consideremos a crescente,<br />

sempre crescente, lucratividade dos estabelecimentos bancários para assentar, de início,<br />

que o código não repercutiu, de forma danosa, na atividade desenvolvida. Não há nele,<br />

repito, qualquer preceito que verse especificamente, em termos de fixação, sobre taxas e<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 613<br />

sobre juros devidos, tendo em conta o capital. Estamos a nos pronunciar em processo<br />

objetivo, no qual não cabe extravasar o que necessário à definição da harmonia, ou não, da<br />

lei atacada, do ato normativo abstrato impugnado, com a Constituição Federal.<br />

Não se pode transformar o Supremo em órgão consultivo, ainda que para prevenir<br />

dúvidas a serem suscitadas mediante o processo próprio, o subjetivo.<br />

Por isso, acompanho o Ministro Néri da Silveira, no que prolatou o primeiro voto no<br />

sentido da improcedência do pedido formulado. O Relator votou pela procedência parcial.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello: A proteção ao consumidor e a defesa da integridade<br />

de seus direitos representam compromissos inderrogáveis que o Estado brasileiro<br />

conscientemente assumiu no plano de nosso ordenamento constitucional.<br />

O relevo indiscutível desse compromisso estatal — considerada a irrecusável<br />

importância jurídica, econômica, política e social de que se revestem os direitos do<br />

consumidor — tanto mais se acentua, quando se tem presente que a Assembléia<br />

Nacional Constituinte, em caráter absolutamente inovador, elevou a defesa do<br />

consumidor à posição eminente de direito fundamental (CF, art. 5º, XXXII),<br />

atribuindo-lhe, ainda, a condição de princípio estruturador e conformador da própria<br />

ordem econômica (CF, art. 170, V).<br />

É por essa razão que o eminente Professor José Afonso da Silva (“Curso de<br />

Direito Constitucional Positivo”, pp. 261/262, item n. 27, 20. ed., 2002, Malheiros), ao<br />

analisar a obrigação, constitucionalmente imposta ao Estado, de prover, na forma da<br />

lei, a proteção do consumidor, põe em destaque a inserção dessa cláusula de tutela<br />

“entre os direitos fundamentais, com o que se erigem os consumidores à categoria de<br />

titulares de direitos constitucionais fundamentais”, conjugando-se, a isso, a previsão<br />

constante “do art. 170, V, que eleva a defesa do consumidor à condição de princípio da<br />

ordem econômica”, com o relevante propósito “de legitimar todas as medidas de<br />

intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista”.<br />

Na realidade, a proteção estatal ao consumidor — quer seja esta qualificada<br />

como um direito fundamental positivado no próprio texto da Constituição da<br />

República, quer seja compreendida como diretriz conformadora da formulação e<br />

execução de políticas públicas, bem assim do exercício das atividades econômicas em<br />

geral — assume, em última análise, na perspectiva do sistema jurídico consagrado em<br />

nossa Carta Política, a condição de meio instrumental destinado, enquanto expressão<br />

de um “princípio constitucional impositivo” (Eros Roberto Grau, “A Ordem<br />

Econômica na Constituição de 1988”, p. 272, item n. 115, 6. ed., 2001, Malheiros), a<br />

neutralizar o abuso do poder econômico praticado em detrimento das pessoas e de seu<br />

direito ao desenvolvimento e a uma existência digna e justa.<br />

Com o claro objetivo de dar concreção e significado a tais proclamações<br />

constitucionais, a Carta Política fez instaurar um estado de comunhão solidária entre as<br />

diversas esferas políticas que compõem a estrutura institucional da Federação brasileira,<br />

congregando-as em torno de finalidade comum, impregnada do mais elevado sentido<br />

social.


614<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Vale referir, bem por isso, a primazia que a Carta Política conferiu tanto à defesa<br />

do consumidor quanto à preservação da integridade das prerrogativas jurídicas, que, em<br />

seu favor, foram reconhecidas pelo ordenamento positivo, podendo-se afirmar, a<br />

partir de tal asserção, que os direitos do consumidor, embora desvestidos de caráter<br />

absoluto, qualificam-se, no entanto, como valores essenciais e condicionantes de<br />

qualquer processo decisório que vise a compor situações de antagonismo resultantes das<br />

relações de consumo que se processam, no âmbito da vida social, de modo tão<br />

estruturalmente desigual, marcadas, muitas vezes, pela nota de indisfarçável<br />

conflituosidade, a opor fornecedores e produtores, de um lado, a consumidores, de<br />

outro.<br />

Com esse propósito, Senhora Presidente, e para não degradar o compromisso de<br />

defesa do consumidor à condição inaceitável de uma promessa irresponsavelmente vã,<br />

ou de uma proclamação constitucional meramente retórica, ou, ainda, de um discurso<br />

politicamente inconseqüente, a Lei Fundamental, visando a promover o bem de todos,<br />

veio a instituir verdadeiro condomínio legislativo, partilhando, entre a União, os<br />

Estados-Membros e o Distrito Federal (CF, art. 24, VIII), sem falar nos Municípios, a<br />

competência para legislar, em caráter concorrente, sobre medidas e políticas públicas<br />

destinadas a viabilizar a proteção — que se quer efetiva, plena e real —, a ser conferida<br />

ao consumidor.<br />

Daí justificar-se, plenamente, o reconhecimento de que a proteção ao consumidor<br />

— que traduz prerrogativa fundamental do cidadão — qualifica-se como valor<br />

constitucional inerente à própria conceptualização do Estado Democrático e Social de<br />

Direito, razão pela qual incumbe, a toda a coletividade — e ao Poder Judiciário, em<br />

particular — extrair, dos direitos assegurados ao consumidor, a sua máxima eficácia.<br />

Cumpre reiterar, bem por isso, a afirmação de que a função tutelar resultante da<br />

cláusula constitucional de proteção aos direitos do consumidor projeta-se, também, na<br />

esfera relativa à ordem econômica e financeira, na medida em que essa diretriz básica<br />

apresenta-se como um insuprimível princípio conformador da atividade econômica<br />

(CF, art. 170, V).<br />

Impende destacar, por oportuno, que todas as atividades econômicas estão<br />

sujeitas à ação fiscalizadora do Poder Público. O ordenamento constitucional<br />

outorgou, ao Estado, o poder de intervir no domínio econômico, assistindo-lhe, nesse<br />

especial contexto das funções estatais, competência para proceder como agente<br />

normativo e regulador da atividade negocial (art. 174).<br />

A liberdade de atuação e de prática negocial, contudo, não se reveste de caráter<br />

absoluto, pois o seu exercício sofre, necessariamente, os condicionamentos normativos<br />

impostos pela Lei Fundamental da República.<br />

Desse modo, cabe enfatizar que a esfera de proteção constitucionalmente<br />

garantida aos direitos do consumidor desempenha clara função inibitória, apta a<br />

desqualificar o exercício eventualmente abusivo, prejudicial e nocivo decorrente de<br />

práticas negociais ilícitas ou irregulares.<br />

Dentro dessa perspectiva, a edição do Código de Defesa do Consumidor (Lei n.<br />

8.<strong>07</strong>8/90) — considerados os valores básicos concernentes à proteção da vida, da


R.T.J. — <strong>199</strong> 615<br />

saúde e da segurança, e relativos à liberdade de escolha, à igualdade nas contratações,<br />

ao direito à informação e à proteção contra publicidade enganosa, dentre outros —<br />

representou a materialização e a efetivação dos compromissos assumidos, em tema de<br />

relações de consumo, pelo Estado brasileiro.<br />

É por tal razão que Antônio Carlos Efing (“Contratos e Procedimentos<br />

Bancários à Luz do Código de Defesa do Consumidor”, pp. 23/25, item n. 1.1 e 1.3,<br />

<strong>199</strong>9, RT), ao ressaltar a importância do advento da Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90, por tudo o que<br />

significou na concretização do compromisso constitucional de proteção aos direitos do<br />

consumidor, registrou as sensíveis transformações por que passou, em nosso sistema<br />

jurídico, o tratamento normativo dispensado às relações de consumo:<br />

“Todavia, não resta dúvida que a proteção do consumidor somente<br />

adquiriu aspecto relevante com a promulgação da Carta Magna de 1988,<br />

assumindo, neste momento, estado de garantia constitucional e princípio<br />

norteador da atividade econômica.<br />

Com a edição do CDC e a entrada em vigor de suas normas, restaram<br />

esclarecidos e consolidados os direitos dos consumidores, através da criação do<br />

microssistema das relações de consumo, com a inserção de novas normas e<br />

princípios jurídicos para a tutela dos consumidores.<br />

Assim, conclui-se que, com o passar do tempo, as relações de consumo<br />

foram sofrendo tratamento inovador e protetivo da parte mais frágil na relação,<br />

qual seja o consumidor, restando, as relações de consumo, agora, amplamente<br />

tuteladas pelo CDC.<br />

Não só a legislação brasileira, mas também a doutrina internacional, estão<br />

voltadas para a regulamentação das relações de consumo, especialmente no que<br />

diz respeito ao crédito do consumidor.<br />

Conforme se verá mais adiante, seja quanto à proteção contratual, seja<br />

quanto ao acesso do consumidor à tutela jurisdicional, o CDC representa o maior<br />

avanço da disciplina das relações de consumo.<br />

(...)<br />

Atribuir plena eficácia às normas contidas no CDC significa conferir ao<br />

Código a sua total aplicação, representa possibilitar ao consumidor a garantia<br />

da sua proteção e defesa, bem como estabelecer ao fornecedor parâmetros para<br />

sua conduta dentro deste regulamento, visando, assim, ao equilíbrio nas relações<br />

de consumo.” (Grifei)<br />

Impende indagar, desse modo, em que medida a norma inscrita no art. 192 da<br />

Carta Política — que estabelece reserva constitucional de lei complementar em tema de<br />

estruturação e funcionamento do sistema financeiro nacional — revela-se apta a<br />

obstar a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, impedindo-o de incidir<br />

nas relações de consumo que se estabelecem entre as instituições financeiras, de um<br />

lado, e os cidadãos em geral, de outro.<br />

Na realidade, Senhora Presidente, e considerado o âmbito de abrangência<br />

material inscrito no art. 192 da Constituição Federal, entendo que temas concernentes,


616<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

por exemplo, ao dever de restituição em dobro, em caso de cobrança indevida (CDC, art.<br />

42), ou à responsabilidade civil sem culpa, por danos causados ao cliente (CDC, art.<br />

14), ou à nulidade de cláusulas contratuais abusivas (CDC, art. 51), ou à inversão, em<br />

favor do consumidor, do ônus da prova (CDC, art. 6º, VIII), ou à imposição de multa de<br />

mora, em valor superior a 2% do quantum da prestação, quando decorrente do<br />

inadimplemento de obrigações no seu termo (CDC, art. 52, § 1º), ou à possibilidade de<br />

o Ministério Público promover ação civil pública que tenha por objeto a declaração de<br />

nulidade de cláusula contratual que ofenda o Código de Defesa do Consumidor ou que<br />

não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes (CDC, art. 51, § 4º),<br />

ou, ainda, à impossibilidade de manutenção, em cadastro, por período superior a 5<br />

(cinco) anos, de informações negativas referentes a clientes inadimplentes (CDC, art.<br />

43, § 1º — Súmula 323/STJ), constituem matérias, que, por sua essência mesma, não se<br />

identificam com a organização e a estruturação do sistema financeiro nacional,<br />

podendo, em conseqüência, ser disciplinadas mediante lei ordinária, como o Código<br />

de Defesa do Consumidor, mesmo que versem relacionamentos jurídicos entre<br />

instituições financeiras e os usuários de seus serviços.<br />

É que — insista-se — o sistema financeiro nacional sujeita-se, tanto quanto os<br />

agentes econômicos em geral, à necessária observância do postulado da defesa do<br />

consumidor, como direta conseqüência de expressa determinação emanada da própria<br />

Constituição da República, cujo art. 170, inciso V, proclama que a ordem econômica e<br />

financeira rege-se, obrigatoriamente, dentre outros elementos condicionantes, por esse<br />

importante vetor axiológico a que todos devem submeter-se, mesmo que se cuide de<br />

instituições que exerçam atividades de natureza bancária, financeira, securitária e de<br />

crédito.<br />

Reconheço, por isso mesmo, que o sistema financeiro nacional sujeita-se ao<br />

princípio constitucional da defesa do consumidor. Concordo, ainda, Senhora<br />

Presidente, com a observação do eminente Relator, no ponto em que acentua que “o<br />

Código de Defesa do Consumidor não interfere com o Sistema Financeiro Nacional,<br />

art. 192 da Constituição, em termos institucionais, já que o Código limita-se a<br />

proteger e defender o consumidor, o que não implica (...) interferência no Sistema<br />

Financeiro Nacional. Protegendo e defendendo o consumidor, realiza o Código o<br />

princípio constitucional (...)”.<br />

Revela-se inquestionável, de outro lado, a asserção — também constante do voto<br />

proferido pelo eminente Ministro Carlos Velloso — de que “O Código de Defesa do<br />

Consumidor aplica-se às atividades bancárias, da mesma forma que a essas atividades<br />

são aplicáveis, sempre que couber, o Código Civil, o Código Comercial, o Código<br />

Tributário Nacional, a Consolidação das Leis Trabalhistas e tantas outras leis” (grifei).<br />

Daí a correta observação do eminente Ministro Eros Grau, em artigo publicado<br />

em janeiro de <strong>199</strong>1, no qual versou a questão ora em exame, expendendo importantes<br />

considerações que vale reproduzir:<br />

“Gazeta Mercantil do dia 13 de dezembro transcreve opinião do coordenador<br />

das Promotorias de Justiça de Proteção ao Consumidor do Estado de São Paulo, no<br />

sentido de que o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.087/90) ‘irá atingir<br />

também os contratos de empréstimo bancário’. Isso é inteiramente correto.


R.T.J. — <strong>199</strong> 617<br />

O Código do Consumidor, como afirma o art. 1º da Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90,<br />

estabelece normas de proteção e defesa do consumidor. Daí por que se impõe a<br />

conceituação de ‘consumidor’. Sem que ‘consumidor’ seja conceituado não se<br />

tornará possível a sua aplicação.<br />

(...)<br />

Nosso esforço no sentido de conceituar ‘consumidor’, corresponderia à<br />

busca da determinação de uma suma de idéias — conceito — no que lograríamos<br />

superar a ambigüidade e imprecisão do termo que a expressa, justamente o<br />

vocábulo ‘consumidor’.<br />

Essa superação, contudo, jamais se opera de modo integral, de sorte que<br />

sempre restam sombras e múltiplos sentidos informando (desinformando) o<br />

intérprete e o aplicador do texto normativo no bojo do qual o vocábulo ou a<br />

expressão que é termo de um certo conceito comparece.<br />

(...) Daí por que averbei, em outra oportunidade: inúmeras vezes a norma<br />

jurídica opera a enunciação estipulativa do conceito, ou seja, define o termo do<br />

conceito. O que se tem referido por ‘conceito estipulativo’ corresponde em regra<br />

a uma definição, que a norma jurídica contempla visando superar a ambigüidade<br />

ou imprecisão do termo do conceito.<br />

Assim procede o Código do Consumidor, definindo ‘consumidor’, ‘fornecedor’,<br />

‘produto’ e ‘serviço’. Entende-se como ‘consumidor’, como ‘fornecedor’,<br />

como ‘produto’ e como ‘serviço’, para os efeitos do Código do Consumidor, o que<br />

descrito está no seu art. 2º e no seu art. 3º e parágrafos 1º e 2º.<br />

(...)<br />

Diz o seu art. 2º que ‘consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire<br />

ou utiliza produto ou serviço como destinatário final’. E o parágrafo 2º do art. 3º<br />

define serviço: ‘qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante<br />

remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e<br />

securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista’.<br />

Assim, na leitura conjunta dos preceitos transcritos, a evidência de que,<br />

para os efeitos do Código do Consumidor, é ‘consumidor’, inquestionavelmente,<br />

toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade<br />

bancária, financeira e de crédito.<br />

(...)<br />

Por certo que as instituições financeiras estão, todas elas, sujeitas ao<br />

cumprimento das normas estatuídas pelo Código do Consumidor. Parece-me<br />

incompreensível que algumas delas isso não percebam, não cuidando, seriamente,<br />

de desde logo se adaptarem àquelas normas (...).” (Grifei)<br />

Entendo, por isso mesmo, Senhora Presidente, que não há razão para excluir, do<br />

âmbito de incidência do Código de Defesa do Consumidor, dentre outros temas, a<br />

questão dos juros, seja em face do que enuncia a Súmula 648/<strong>STF</strong> (“A norma do § 3º do<br />

art. 192 da Constituição, revogada pela Emenda Constitucional 40/2003, que limitava<br />

a taxa de juros reais a 12% ao ano, tinha sua aplicabilidade condicionada à edição de


618<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

lei complementar” — grifei), seja, ainda, em decorrência do ulterior advento da EC n.<br />

40/2003, que derrogou todos os incisos e parágrafos que compunham a estrutura<br />

normativa do art. 192 da Constituição.<br />

Isso significa, portanto, que o Código de Defesa do Consumidor, porque lei<br />

ordinária, não pode dispor, unicamente, considerada a reserva constitucional de lei<br />

complementar, sobre o núcleo temático previsto no art. 192 da Constituição<br />

(estruturação e funcionamento do sistema financeiro nacional), hoje substancialmente<br />

reduzido em sua abrangência normativa, por efeito da superveniente promulgação da<br />

EC n. 40/2003.<br />

Como precedentemente referido, cumpre enfatizar que o Código de Defesa do<br />

Consumidor não incidiu sobre matéria que o art. 192 da Carta Política submeteu ao<br />

domínio normativo da lei complementar.<br />

Em conseqüência, não se pode imputar, ao Código de Defesa do Consumidor,<br />

qualquer transgressão à cláusula de reserva constitucional de lei complementar<br />

instituída pelo mencionado art. 192 da Lei Fundamental, eis que — insista-se — o<br />

Código de Defesa do Consumidor não veicula qualquer regramento pertinente à<br />

estrutura e ao funcionamento das instituições financeiras.<br />

Daí a corretíssima observação constante do douto voto proferido, na presente<br />

causa, pelo eminente Ministro Eros Grau:<br />

“Os que exercem atividades subordinadas à Lei n. 4.595/64 são as instituições<br />

financeiras. Logo, é do ‘funcionamento’ das instituições financeiras de que se<br />

trata. Podemos, portanto, dizer: desempenho de suas atividades pelas instituições<br />

financeiras. O Conselho Monetário Nacional regula o desempenho de suas<br />

atividades pelas instituições financeiras. O vocábulo ‘funcionamento’ é, porém,<br />

mais forte, na medida em que expressivo da circunstância de as instituições<br />

cumprirem uma ‘função’ no quadro do sistema financeiro nacional.<br />

O vocábulo tem a virtude de tornar bem explícito o fato de a lei ter estabelecido<br />

que para funcionar, para desempenhar a atividade de intermediação financeira,<br />

a empresa deverá cumprir o que determina o Conselho Monetário Nacional<br />

no que concerne a sua adequação a esse desempenho. Vale dizer, quanto ao nível<br />

de capitalização, à solidez patrimonial, aos negócios que poderá realizar [por<br />

exemplo, câmbio, captação de depósitos à vista, etc.], à sua constituição de<br />

conformidade com as regras legais [lei das sociedades anônimas, com todas as suas<br />

implicações]. Entrando em funcionamento, a instituição financeira, mercê da<br />

autorização que para tanto recebeu, pode exercer determinadas atividades, v.g.,<br />

captar depósitos à vista, pagar benefícios previdenciários, captar poupança, receber<br />

tributos. Essas atividades deverão ser, no entanto, desempenhadas no quadro<br />

das determinações dispostas pelo órgão normativo [v.g., tipos de operações permitidas<br />

ou vedadas; volumes a serem aplicados nessa ou naquela modalidade de<br />

crédito; posições cambiais (níveis) a serem cumpridas e negócios dessa natureza<br />

que podem ou não ser contratados]. Digo mais: esse exercício há de ser empreendido<br />

de modo que a empresa — isto é, a instituição financeira — funcione em<br />

coerência com certas diretrizes de políticas públicas, suas prerrogativas sendo<br />

exercidas conforme definições, estruturais e conjunturais, que as delimitam [v.g.,


R.T.J. — <strong>199</strong> 619<br />

recolhimentos compulsórios, encaixe obrigatório]. Vê-se bem, destarte, que a<br />

função das instituições financeiras é sistêmica, vale dizer, respeita ao seu desempenho<br />

no plano do sistema financeiro. Ainda em outros termos, essa função<br />

somente pode ser cumprida no plano do sistema financeiro.<br />

Ora, o Conselho Monetário Nacional é competente apenas para regular —<br />

além da sua constituição e da sua fiscalização — o ‘funcionamento’ das instituições<br />

financeiras, isto é, o desempenho de suas atividades no plano do sistema financeiro.<br />

Tudo quanto exceda esse desempenho não pode ser objeto de regulação por ato<br />

normativo produzido pelo Conselho Monetário Nacional.” (Grifei)<br />

Não custa relembrar, neste ponto, a propósito de temas estranhos à estruturação<br />

do sistema financeiro nacional (reguláveis, portanto, por simples lei ordinária), que o<br />

Supremo Tribunal Federal, em sucessivas decisões — monocráticas e colegiadas (<strong>RTJ</strong><br />

189/1150, Rel. Min. Carlos Velloso — AI 347.717-AgR/RS, Rel. Min. Celso de Mello —<br />

AI 347.739/SP, Rel. Min. Nelson Jobim — AI 506.487-AgR/PR, Rel. Min. Carlos<br />

Velloso — RE 208.383/SP, Rel. Min. Néri da Silveira — RE 246.319/RS, Rel. Min.<br />

Eros Grau — RE 312.050-AgR/MS, Rel. Min. Celso de Mello — RE 385.398-AgR/<br />

MG, Rel. Min. Celso de Mello — RE 432.789/SC, Rel. Min. Eros Grau, v.g.) —, vem<br />

reconhecendo a plena validade constitucional de leis municipais, que, fundadas no art.<br />

30, I, da Constituição, dispõem sobre a obrigatoriedade de as instituições financeiras<br />

instalarem, em suas agências, equipamentos destinados a proporcionar segurança e<br />

conforto aos usuários dos serviços bancários:<br />

“Estabelecimentos bancários. Competência do município para, mediante<br />

lei, obrigar as instituições financeiras a instalar, em suas agências, bebedouros<br />

e sanitários destinados aos usuários dos serviços bancários (clientes ou não).<br />

Matéria de interesse tipicamente local (CF, art. 30, I). Conseqüente inocorrência<br />

de usurpação da competência legislativa federal. Recurso extraordinário<br />

conhecido e provido.<br />

— O Município pode editar legislação própria, com fundamento na autonomia<br />

constitucional que lhe é inerente (CF, art. 30, I), com objetivo de determinar,<br />

às instituições financeiras, que instalem, em suas agências, em favor dos usuários<br />

dos serviços bancários (clientes ou não), equipamentos destinados a proporcionar-lhes<br />

segurança (tais como portas eletrônicas e câmaras filmadoras) ou a<br />

propiciar-lhes conforto, mediante oferecimento de instalações sanitárias, ou<br />

fornecimento de cadeiras de espera, ou colocação de bebedouros, ou, ainda,<br />

prestação de atendimento em prazo razoável, com a fixação de tempo máximo de<br />

permanência dos usuários em fila de espera. Precedentes.”<br />

(RE 251.542/SP, Rel. Min. Celso de Mello)<br />

Assinale-se, portanto, que o Código de Defesa do Consumidor apenas não pode<br />

dispor, nem incidir, sobre matérias concernentes à estruturação e ao funcionamento do<br />

sistema financeiro nacional (temas que não são regulados por referido diploma<br />

legislativo), eis que tais matérias — considerado o que agora dispõe o art. 192 da<br />

Constituição, na redação dada pela EC n. 40/2003 — são próprias de disciplinação<br />

mediante lei complementar.


620<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Entendo, por isso mesmo, que o Código de Defesa do Consumidor não revela nem<br />

padece da eiva de inconstitucionalidade sustentada pela Consif, autora da presente<br />

ação direta.<br />

Ao contrário, e sob tal aspecto, o Código de Defesa do Consumidor reveste-se de<br />

plena validade constitucional, especialmente se se considerarem os princípios que<br />

regem, condicionam e informam a própria formulação e execução da política nacional<br />

das relações de consumo, cujo precípuo objetivo — reconhecida a situação de<br />

vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo — consiste em viabilizar o<br />

atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e<br />

segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de<br />

vida, bem assim a transparência e harmonia das relações de consumo.<br />

Nesse contexto, a atuação normativa do Poder Público, como aquela consubstanciada<br />

na legislação de defesa do consumidor, vocacionada a coibir, com fundamento<br />

na prevalência do interesse social, situações e práticas abusivas que possam comprometer<br />

a eficácia do postulado constitucional de proteção e amparo ao consumidor (que<br />

representa importante vetor interpretativo na ponderação e superação das relações de<br />

antagonismo que se registram no mercado de consumo), justifica-se ante a necessidade —<br />

que se impõe ao Estado — de impedir que as empresas e os agentes econômicos em<br />

geral, qualquer que seja o domínio em que exerçam as suas atividades, afetem e<br />

agravem a situação de vulnerabilidade a que se acham expostos os consumidores.<br />

Os agentes econômicos não têm, nos princípios da liberdade de iniciativa e da livre<br />

concorrência, instrumentos de proteção incondicional. Esses postulados constitucionais —<br />

que não ostentam valor absoluto — não criam, em torno dos organismos empresariais,<br />

inclusive das instituições financeiras, qualquer círculo de imunidade que os exonere dos<br />

gravíssimos encargos cuja imposição, fundada na supremacia do bem comum e do<br />

interesse social, deriva do texto da própria Carta da República.<br />

Concluo o meu voto, Senhora Presidente. E, ao fazê-lo, apóio as minhas<br />

conclusões em dois pontos que me parecem essenciais à resolução do presente litígio<br />

constitucional: (a) as relações que se estabelecem entre instituições financeiras, de um<br />

lado, e os seus clientes, de outro, qualificam-se como típicas relações de consumo; e (b)<br />

os juízes e Tribunais, em tema de relações de consumo, hão de resolver os litígios com<br />

apoio em uma dimensão valorativa cujo elemento essencial repousa no necessário<br />

respeito à proteção dos consumidores, que titularizam direito fundamental a eles<br />

reconhecido pela própria Constituição da República (CF, art. 5º, XXXII; art. 150, § 5º;<br />

art. 170, V; art. 37, § 3º; art. 175, parágrafo único, II).<br />

Sendo assim, Senhora Presidente, considerados os fundamentos que venho de<br />

expor, e acolhendo, ainda, as razões constantes dos doutos votos proferidos pelos<br />

eminentes Ministros Néri da Silveira, Joaquim Barbosa e Eros Grau, peço vênia<br />

para declarar inteiramente improcedente a ação direta ora em julgamento, precisamente<br />

por não vislumbrar qualquer eiva de inconstitucionalidade nas expressões, ora<br />

impugnadas, constantes do § 2º do art. 3º da Lei n. 8.<strong>07</strong>8/90 (Código de Defesa do<br />

Consumidor).<br />

É o meu voto.


R.T.J. — <strong>199</strong> 621<br />

VOTO (Confirmação)<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Senhora Presidente, os votos hoje proferidos<br />

confortam a convicção que expressei, rebus sic stantibus, na última assentada.<br />

Recebi dos ilustres advogados da requerente memorial complementar, no qual<br />

postulavam uma explicitação, verdadeira interpretação conforme a Constituição, do<br />

dispositivo questionado. A interpretação conforme tem por pressuposto que a norma<br />

questionada seja equívoca.<br />

Não creio necessário explicitar que, ao dizer o § 2º do art. 3º do Código de Defesa<br />

do Consumidor, se incluem entre os serviços de que cuida os de natureza bancária,<br />

financeira, de crédito e securitária, assim os compreendeu para a regulação que no<br />

Código se encontra.<br />

E, como já haviam demonstrado votos anteriores, a partir dos Ministros Néri da<br />

Silveira e Eros Grau, nada há no Código de Defesa do Consumidor que estivesse<br />

compreendido na disciplina reservada à lei complementar pelo art. 192 da Constituição.<br />

Reafirmo o meu voto e julgo improcedente a ação.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

ADI 2.591/DF — Relator: Ministro Carlos Velloso. Relator para o acórdão: Ministro<br />

Eros Grau. Requerente: Confederação Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF<br />

(Advogados: Ives Gandra S. Martins e outros). Requeridos: Presidente da República e<br />

Congresso Nacional.<br />

Decisão: Após o voto vista do Ministro Eros Grau, que julgava improcedente a<br />

ação, no que foi acompanhado pelos Ministros Joaquim Barbosa, Carlos Britto e<br />

Sepúlveda Pertence, este último em antecipação, pediu vista dos autos o Ministro Cezar<br />

Peluso. Não participa do julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski, por suceder ao<br />

Ministro Carlos Velloso, que já proferiu voto. Ausente, justificadamente, neste<br />

julgamento, o Ministro Gilmar Mendes. Presidência da Ministra Ellen Gracie. Plenário,<br />

4-5-2006.<br />

Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, julgou improcedente<br />

a ação direta, vencido parcialmente o Ministro Carlos Velloso (Relator), no que<br />

foi acompanhado pelo Ministro Nelson Jobim. Votou a Presidente, Ministra Ellen<br />

Gracie. Redigirá o acórdão o Ministro Eros Grau. Ausente, justificadamente, neste<br />

julgamento, o Ministro Gilmar Mendes. Não participou da votação o Ministro Ricardo<br />

Lewandowski, por suceder ao Ministro Carlos Velloso, Relator do presente feito.<br />

Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto,<br />

Joaquim Barbosa, Eros Grau e Ricardo Lewandowski. Procurador-Geral da República,<br />

Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.<br />

Brasília, 7 de junho de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário.


622<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.061 — AP<br />

Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto<br />

Requerente: Procurador-Geral da República — Requerida: Assembléia Legislativa<br />

do Estado do Amapá<br />

Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Impugnação<br />

dirigida contra a Lei n. 538, de 23 de maio de 2000, do Estado do<br />

Amapá.<br />

— O § 1º do art. 61 da Lei Republicana confere ao Chefe do Poder<br />

Executivo a privativa competência para iniciar os processos de<br />

elaboração de diplomas legislativos que disponham sobre a criação de<br />

cargos, funções ou empregos públicos na Administração Direta e<br />

Autárquica, o aumento da respectiva remuneração, bem como os<br />

referentes a servidores públicos da União e dos Territórios, seu regime<br />

jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (alíneas a<br />

e c do inciso II do art. 61).<br />

— Insistindo nessa linha de opção política, a mesma Lei Maior de<br />

1988 habilitou os presidentes do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais<br />

Superiores e dos Tribunais de Justiça a propor ao Poder Legislativo a<br />

criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares<br />

e dos juízes que lhes forem vinculados, tudo nos termos da alínea b do inciso<br />

II do artigo 96.<br />

— A jurisprudência desta Casa de Justiça sedimentou o entendimento<br />

de ser a cláusula da reserva de iniciativa, inserta no § 1º do artigo 61 da<br />

Constituição Federal de 1988, corolário do princípio da separação dos<br />

Poderes. Por isso mesmo, de compulsória observância pelos Estados,<br />

inclusive no exercício do poder reformador que lhes assiste (Cf. ADI 250,<br />

Rel. Min. Ilmar Galvão; ADI 843, Rel. Min. Ilmar Galvão; ADI 227, Rel.<br />

Min. Maurício Correa; ADI 774, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; e ADI 665,<br />

Rel. Sydney Sanches, entre outras).<br />

— O diploma legislativo em foco é formalmente inconstitucional,<br />

dado que o Projeto de Lei n. 102/99, que deu origem à norma impugnada,<br />

foi de iniciativa parlamentar.<br />

— De outra parte, a Lei amapaense n. 538/02 é materialmente<br />

inconstitucional, porquanto criou um diferenciado quadro de pessoal na<br />

estrutura dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para aproveitar<br />

servidores de outras unidades da Federação, oriundos de qualquer dos três<br />

Poderes. Possibilitou, então, movimentação no espaço funcional em ordem<br />

a positivar um provimento derivado de cargos públicos. Mas tudo isso fora<br />

de qualquer mobilidade no interior de uma mesma carreira. E sem exigir,<br />

além do mais, rigorosa compatibilidade entre as novas funções e os padrões<br />

remuneratórios de origem. Violação, no particular, à regra constitucional<br />

da indispensabilidade do concurso público de provas, ou de provas e títulos


R.T.J. — <strong>199</strong> 623<br />

para cada qual dos cargos ou empregos a prover na estrutura de pessoal<br />

dos Poderes Públicos (Súmula 685 do <strong>STF</strong>).<br />

— Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade<br />

do instrumento normativo impugnado.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, por seu Tribunal Pleno, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie, na<br />

conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos,<br />

julgar procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 538, de 23 de<br />

maio de 2000, do Estado do Amapá, nos termos do voto do Relator. Votou a Presidente,<br />

Ministra Ellen Gracie (Vice-Presidente no exercício da Presidência).<br />

Brasília, 5 de abril de 2006 — Carlos Ayres Britto, Relator.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: De ação direta de inconstitucionalidade é que<br />

se cuida. Ação, essa, que tem por objeto a Lei n. 538/2000 do Estado do Amapá. Lei que<br />

“dispõe sobre os servidores públicos que estão à disposição dos Poderes Estaduais” e<br />

tem a seguinte legenda:<br />

“Art. 1º Fica criado na estrutura dos Poderes Executivo, Legislativo e<br />

Judiciário, Quadro de Pessoal Especial, cujas vagas poderão ser preenchidas por<br />

servidor público federal, estadual ou municipal, que tenha sido admitido em cargo<br />

de provimento efetivo, nos termos do artigo 37, II, da Constituição Federal e, nesta<br />

data, estiver regularmente à disposição de órgão público estadual, exercendo<br />

cargo comissionado, respeitadas a conveniência administrativa e disponibilidade<br />

do órgão de origem.<br />

§ 1º O direito de opção de que trata o presente artigo, esgotar-se-á em 180<br />

(cento e oitenta) dias.<br />

§ 2º No ato da opção, o servidor deverá apresentar a documentação<br />

pertinente à admissão por concurso público e o termo de posse em seu órgão de<br />

origem, o ato que o colocou à disposição, bem como o comprovante do exercício<br />

do cargo comissionado.<br />

§ 3º O Quadro a que se refere o caput deste artigo será extinto à proporção que<br />

forem vagos os cargos.<br />

Art. 2º Os servidores recepcionados serão incluídos nas classes de cargos ou<br />

categorias cujas atribuições sejam correlatas com as dos ocupados no órgão de<br />

origem.<br />

Art. 3º Os órgãos públicos que já tenham criado quadro funcional dessa<br />

natureza, poderão estender a opção aos servidores de outros órgãos que estejam<br />

regularmente à disposição nesta data, obedecidos rigorosamente aos critérios<br />

estabelecidos nesta Lei.


624<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Art. 4º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.<br />

Art. 5º Revogam-se as disposições em contrário.”<br />

2. Pois bem, sustenta o requerente que o diploma normativo sob suspeita entra em<br />

rota de colisão com a obrigatoriedade de concurso público para o preenchimento de<br />

cargos igualmente públicos (CF, art. 37, inciso II).<br />

3. A seu turno, o presentante da Assembléia Legislativa amapaense defende a<br />

validade constitucional do texto normativo.<br />

4. Prosseguindo na tarefa de demarcar a quaestio juris embutida na presente ação,<br />

averbo que, às fls. 39/48, o nobre Advogado-Geral da União, Dr. Álvaro Augusto Ribeiro<br />

Costa, opina pela procedência do pedido. Para tanto, sustenta que o texto normativo em<br />

estudo padece de vício de iniciativa, por cuidar de matéria de competência privativa dos<br />

Chefes dos Poderes Executivo e Judiciário.<br />

5. Também pelo integral acatamento da pretensão do requerente é a manifestação<br />

do órgão ministerial público (fls. 50/53).<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): 7. Como de generalizado saber, o § 1º<br />

do art. 61 da Lei Republicana conferiu ao Chefe do Poder Executivo a privativa<br />

competência para iniciar os processos de elaboração de diplomas legislativos que<br />

disponham sobre a criação de cargos, funções ou empregos públicos na Administração<br />

Direta e Autárquica, o aumento da respectiva remuneração, bem como os referentes a<br />

servidores públicos da União e dos Territórios, seu regime jurídico, provimento de<br />

cargos, estabilidade e aposentadoria (alíneas a e c do inciso II do art. 61).<br />

8. Insistindo nessa linha de opção política, a mesma Lei Maior de 1988 habilitou<br />

os presidentes do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores e dos Tribunais<br />

de Justiça a propor ao Poder Legislativo a criação e a extinção de cargos e a remuneração<br />

dos seus serviços auxiliares e dos juízes que lhes forem vinculados, tudo nos termos da<br />

alínea b do inciso II do artigo 96.<br />

9. Como não podia deixar de ser, esta Casa de Justiça sedimentou o entendimento<br />

de ser a cláusula da reserva de iniciativa, inserta no § 1º do artigo 61 da Constituição<br />

Federal de 1988, corolário do princípio da separação dos Poderes. Por isso mesmo, de<br />

compulsória observância pelos Estados, inclusive no exercício do poder reformador que<br />

lhes assiste (Cf. ADI 250, Rel. Min. Ilmar Galvão; ADI 843, Rel. Min. Ilmar Galvão; ADI<br />

227, Rel. Min. Maurício Correa; ADI 774, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; e ADI 665, Rel.<br />

Sydney Sanches, entre outras).<br />

10. Pois bem, com os olhos postos na presente questão de Direito, serenamente<br />

concluo que é manifesta a inconstitucionalidade formal do diploma legislativo em causa,<br />

dado que, segundo noticiou o próprio requerido, o Projeto de Lei n. 102/99, que deu<br />

origem à norma impugnada, foi de iniciativa parlamentar. De iniciativa exclusivamente<br />

parlamentar, frise-se, para cuidar de matéria imbricada com os quadros de pessoal de todos<br />

os Poderes do Estado.


R.T.J. — <strong>199</strong> 625<br />

11. Não é tudo, pois ainda cabe anotar que o diploma legislativo sob censura<br />

padece do vício insanável de inconstitucionalidade material. É que, da leitura dos<br />

dispositivos da Lei estadual n. 538/2000, infere-se que ela criou um diferenciado<br />

quadro de pessoal na estrutura dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, “cujas<br />

vagas poderão ser preenchidas por servidor público federal, estadual e municipal,<br />

que tenha sido admitido em cargo efetivo, nos termos do art. 37, II, da Constituição<br />

Federal e, nesta data estiver regularmente á disposição de órgão público estadual,<br />

exercendo cargo comissionado (...)” (artigo 1º). É dizer, o texto normativo em xeque<br />

instituiu um quadro especial para aproveitar servidores de outras unidades da Federação,<br />

oriundos de qualquer dos três Poderes. Possibilitou, então, movimentação no<br />

espaço funcional em ordem a positivar um provimento derivado de cargos públicos.<br />

Mas tudo isso fora de qualquer mobilidade no interior de uma mesma carreira. E sem<br />

exigir rigorosa compatibilidade entre as novas funções e os padrões remuneratórios de<br />

origem e de destino.<br />

12. Ora bem, esse tipo de proceder esbarra na regra constitucional da indispensabilidade<br />

do concurso público de provas, ou de provas e títulos para cada qual dos cargos<br />

ou empregos a prover na estrutura de pessoal dos Poderes Públicos.<br />

13. A tal respeito, a firme jurisprudência desta nossa Corte não abre ensejo a<br />

tergiversações. Confira-se:<br />

“Concurso público (CF, art. 37, II): violação de sua exigência — que já não<br />

mais se limita à primeira investidura em cargos público — por norma de constituição<br />

estadual que admite a transferência de servidor de um para outro dos poderes<br />

do Estado.”<br />

(ADI 1.329, Rel. Min. Sepúlveda Pertence)<br />

“(...)<br />

Conforme sedimentada jurisprudência deste Supremo Tribunal, a vigente<br />

ordem constitucional não mais tolera a transferência ou o aproveitamento como<br />

formas de investidura que importem no ingresso de cargo ou emprego público sem<br />

a devida realização de concurso público de provas ou de provas e títulos<br />

(...)”.<br />

(ADI 2.689, Rel. Min. Ellen Gracie)<br />

“(...)<br />

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não tem transigido com a<br />

necessidade de observância, pelo Poder Público, do postulado constitucional do<br />

concurso público, eis que a investidura em cargos ou em emprego público —<br />

ressalvadas as nomeações para cargos em comissão — não prescinde da prévia<br />

aprovação do candidato naquele certame. Precedentes.<br />

(...)”<br />

(ADI 1.254 MC, Rel. Min. Celso de Mello)<br />

14. Acresce que, de tão pacífico esse entendimento colegiado, veio ele a se<br />

cristalizar em verbete sumular, assim escrito (Súmula 685):


626<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

“É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao<br />

servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu<br />

provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido.”<br />

15. Com estes fundamentos, voto pela declaração de inconstitucionalidade da Lei<br />

n. 538, de 23 de maio de 2000, do Estado do Amapá.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhora Presidente, não posso deixar de estranhar o<br />

fato de a Advocacia-Geral da União haver atuado neste processo não como curadora da<br />

lei, como previsto na Carta da República, mas como fiscal da lei, substituindo o<br />

Ministério Público.<br />

Não há campo para o Advogado-Geral da União vir a sustentar, na ação direta de<br />

inconstitucionalidade, no processo objetivo, não a constitucionalidade, a higidez do<br />

ato normativo atacado, porém o conflito desse ato com a própria Constituição.<br />

Feita essa observação, acompanho o Relator, julgando, ante o vício formal,<br />

procedente o pedido formulado.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

ADI 3.061/AP — Relator: Ministro Carlos Britto. Requerente: Procurador-Geral<br />

da República. Requerida: Assembléia Legislativa do Estado do Amapá.<br />

Decisão: O Tribunal, à unanimidade, julgou procedente a ação para declarar a<br />

inconstitucionalidade da Lei n. 538, de 23 de maio de 2000, do Estado do Amapá, nos<br />

termos do voto do Relator. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie (Vice-Presidente<br />

no exercício da Presidência). Ausentes, justificadamente, os Ministros Gilmar Mendes e<br />

Eros Grau.<br />

Presidência da Ministra Ellen Gracie, Vice-Presidente no exercício da Presidência.<br />

Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio,<br />

Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski. Procurador-<br />

Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.<br />

Brasília, 5 de abril de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.186 — DF<br />

Relator: O Sr. Ministro Gilmar Mendes<br />

Requerente: Procurador-Geral da República — Requeridos: Governador do<br />

Distrito Federal e Câmara Legislativa do Distrito Federal<br />

Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei Distrital n. 2.929/02,<br />

que dispõe sobre o prazo para vigência da aplicação de multas a veículos


R.T.J. — <strong>199</strong> 627<br />

no Distrito Federal em virtude da reclassificação de vias. 3. Usurpação de<br />

competência legislativa privativa da União. Precedentes. 4. Procedência<br />

da ação.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a presidência do Ministro Nelson Jobim, na<br />

conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos,<br />

julgar procedente a ação, nos termos do voto do Relator.<br />

Brasília, 16 de novembro de 2005 — Gilmar Mendes, Relator.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade,<br />

com pedido de medida liminar ajuizada pelo Procurador-Geral da República, em face da<br />

Lei n. 2.929, de 16 de março de 2002, do Distrito Federal, que dispõe sobre o prazo para<br />

vigência da aplicação de multas a veículos no Distrito Federal em virtude da<br />

reclassificação de vias.<br />

Alega-se violação ao art. 22, XI, da Constituição, que confere à União competência<br />

privativa para dispor sobre trânsito.<br />

Eis o teor do ato normativo impugnado:<br />

“Lei n. 2.929, de 16 de março de 2002<br />

Dispõe sobre o prazo para vigência da aplicação de multas a veículos no<br />

Distrito Federal em virtude da reclassificação de vias.<br />

O Governador do Distrito Federal, faço saber que a Câmara Legislativa do<br />

Distrito Federal decreta e eu sanciono a seguinte lei:<br />

Art. 1º O Departamento de Trânsito do Distrito Federal – DETRAN-DF,<br />

somente poderá aplicar aos condutores ou proprietários de veículos, multas por<br />

excesso de velocidade, em vias do sistema viário urbano do Distrito Federal que<br />

tiverem sofrido reclassificação, após decorridos 180 (cento e oitenta) dias da sua<br />

nova classificação.<br />

Parágrafo único. O disposto no caput se estende às vias urbanas do Distrito<br />

Federal que foram classificadas como arteriais, por meio da Instrução de Serviço n.<br />

311, do Detran-DF, publicada no DODF n. 106, de 01 de junho de 2001.<br />

Art. 2º Ficam canceladas as multas por excesso de velocidade emitidas pelo<br />

Detran-DF, por meio da utilização de barreiras eletrônicas — BET dos tipos I e II,<br />

nas vias cuja velocidade máxima tenha sido alterada, a partir da vigência da nova<br />

classificação.<br />

§ 1º O cancelamento de que trata este artigo somente será efetivado se o<br />

veículo não tiver ultrapassado a margem de tolerância de 20% (vinte por cento) do<br />

limite permitida anteriormente para a via.


628<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

§ 2º O cancelamento das multas deverá ser requerido pelo interessado junto<br />

ao Detran-DF.<br />

Art. 3º Fica proibida a aplicação de multas por meio de radares eletrônicos<br />

móveis não operados por agente de fiscalização específico, agentes do Detran-DF<br />

ou Policiais Militares, de acordo com o Art. 2º, parágrafo único, da Resolução n.<br />

08, de 23 de janeiro de <strong>199</strong>8, do Contran.<br />

Art. 4º Ficam canceladas as multas por excesso de velocidade aplicadas por<br />

meio de radares eletrônicos móveis, não operados pelos agentes especificados no art.<br />

3º, desta Lei, por contrariarem o art. 280, o § 4º, do Código de Trânsito Brasileiro.<br />

Art. 5º O Detran-DF fica obrigado a instalar sinalização vertical que indique<br />

a existência de equipamento de fiscalização de trânsito, podendo ser do tipo<br />

removível quando se tratar de radar eletrônico portátil.<br />

Art. 6º Os valores pagos por multas emitidas conforme o artigo anterior serão<br />

ressarcidos pelo Detran-DF, em forma de compensação por outros débitos do<br />

veículo junto à Autarquia, mediante requerimento do interessado.<br />

Art. 7º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.<br />

Art. 8º Revogam-se as disposições em contrário.”<br />

Não houve pedido de liminar.<br />

Prestadas as informações (fls. 76/90 e 92/94), manifestaram-se, sucessivamente, a<br />

Advocacia-Geral da União (fls. 96-102) e a Procuradoria-Geral da República (fls. 104/<br />

106).<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Relator): A propósito, anota a Procuradoria-Geral<br />

da República:<br />

“Cumpre consignar que a jurisprudência dessa Corte é assente no sentido de<br />

que invade a competência privativa da União a lei estadual que trata de matéria<br />

concernente a trânsito ou a multa decorrente de infração de trânsito (ADI 2101 —<br />

Min. Maurício Corrêa; ADI 2137 — Min. Sepúlveda Pertence; ADI 1704, ADI<br />

2814 — Min. Carlos Velloso; ADI 2644 — Min. Ellen Gracie).<br />

Na hipótese dos autos, vê-se que, de fato, o legislador distrital invadiu o<br />

âmbito da competência privativa da União para legislar sobre trânsito, uma vez<br />

que dispõe acerca de prazo para aplicação de multas por excesso de velocidade —<br />

determinando, até mesmo, o cancelamento daquelas emitidas fora do período<br />

fixado —, em flagrante afronta à norma inscrita no artigo 22, XI da Constituição<br />

Federal.” (Fl. 106)<br />

Na espécie, não parece haver dúvida de que se cuida de matéria relativa a trânsito,<br />

cuja iniciativa legislativa é privativa da União. Com efeito, a norma impugnada: a)<br />

estabelece prazo para aplicação de multas por excesso de velocidade em vias que


R.T.J. — <strong>199</strong> 629<br />

sofreram reclassificação; b) proíbe a aplicação de multas que não atendam à Resolução<br />

do Contran; c) cancela multas aplicadas por meio de radares eletrônicos móveis; d)<br />

obriga ao Detran/DF instalar sinalização vertical para indicar a existência de<br />

equipamento de fiscalização de trânsito.<br />

Flagrante, pois, a contrariedade ao disposto no art. 22, XI, da Carta Magna.<br />

São expressivos os precedentes desta Corte no sentido de inconstitucionalidade<br />

de leis como a ora em análise:<br />

“Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei do Estado de Santa<br />

Catarina. Licenciamento de motocicletas destinadas ao transporte remunerado<br />

de passageiros. Competência da União. Inconstitucionalidade formal.<br />

1. É da competência exclusiva da União legislar sobre trânsito e transporte,<br />

sendo necessária expressa autorização em lei complementar para que a unidade<br />

federada possa exercer tal atribuição (CF, artigo 22, inciso XI, e parágrafo<br />

único).<br />

2. Inconstitucional a norma ordinária estadual que autoriza a exploração de<br />

serviços de transporte remunerado de passageiros realizado por motocicletas,<br />

espécie de veículo de aluguel que não se acha contemplado no Código Nacional<br />

de Trânsito.<br />

3. Matéria originária e de interesse nacional que deve ser regulada pela União<br />

após estudos relacionados com os requisitos de segurança, higiene, conforto e<br />

preservação da saúde pública.<br />

Ação direta de inconstitucionalidade procedente.”<br />

(ADI 2.606, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 7-2-03)<br />

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 11.604, de 23-4-2001, do<br />

Estado do Rio Grande do Sul. Trânsito. Invasão da competência legislativa da<br />

União prevista no art. 22, XI, da Constituição Federal.<br />

Já é pacífico neste Supremo Tribunal o entendimento de que o trânsito é<br />

matéria cuja competência legislativa é atribuída, privativamente, à União, conforme<br />

reza o art. 22, XI, da Constituição Federal. ADI n. 2.064, Maurício Corrêa, e ADI n.<br />

2.137-MC, Sepúlveda Pertence.<br />

Em casos análogos ao presente, esta Corte declarou a inconstitucionalidade<br />

formal de normas estaduais que exigiam a sinalização da presença de equipamentos<br />

de fiscalização eletrônica, fixavam limites de velocidade nas rodovias do<br />

Estado-Membro e instituíam condições de validade das notificações de multa de<br />

trânsito. Precedentes: ADI 1.592, Moreira Alves, ADI 2.582, Sepúlveda Pertence, e<br />

ADI 2.328-MC, Maurício Corrêa.<br />

Ação direta cujo pedido se julga procedente.”<br />

(ADI 2.802, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 31-10-03)<br />

Vale destacar que o Informativo <strong>STF</strong> n. 379, de 7 a 11 de março próximo passado,<br />

noticia recentes julgamentos corroborando os precedentes acima, dentre os quais<br />

destaco, verbis:


630<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

“Por ofensa ao art. 22, XI, da CF, que atribui à União a competência privativa<br />

para legislar sobre trânsito e transporte, o Tribunal, por maioria, julgou procedente<br />

pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Governador<br />

do Estado do Rio Grande do Norte contra a Lei 7.723/99, do mesmo Estado,<br />

que autoriza o parcelamento do pagamento de multas decorrentes de infrações de<br />

trânsito, sem nenhum acréscimo. Vencido o Min. Marco Aurélio que julgava<br />

improcedente o pedido.<br />

ADI 2.432/RN, Rel. Min. Eros Grau, 9-3-2005. (ADI 2.432)”<br />

“O Tribunal julgou procedente, em parte, pedido formulado em ação direta<br />

de inconstitucionalidade ajuizada pelo Governador do Estado de Santa Catarina<br />

contra a Lei 11.373/2000, do mesmo Estado, que determina que o Detran/SC e o<br />

DER/SC enviem simultaneamente ao infrator o valor da multa e a foto do momento<br />

da infração captada por foto-sensor. Por entender que a obrigação de instalar o<br />

referido equipamento eletrônico em todo o Estado ofende a competência privativa<br />

da União para legislar sobre trânsito e transporte (CF, art. 22, XI), deu-se interpretação<br />

conforme ao dispositivo impugnado de modo a reduzir o seu alcance às<br />

hipóteses em que houver, no local, sistema de foto-sensor.<br />

ADI 2.816/SC, Rel. Min. Eros Grau, 9-3-2005. (ADI 2.816)”<br />

“Por ofensa ao art. 22, XI, da CF, que atribui à União a competência<br />

privativa para legislar sobre trânsito e transporte, o Tribunal, por maioria, julgou<br />

procedente pedido formulado em ação direta proposta pelo Procurador-Geral da<br />

República contra a Lei 10.331/99 do Estado de São Paulo, que dispõe sobre o<br />

estacionamento de veículos em frente a farmácias. Vencido o Min. Marco Aurélio,<br />

que julgava improcedente o pedido.<br />

ADI 2.928/SP, Rel. Min. Eros Grau, 9-3-2005.”<br />

Nesses termos, na linha dos precedentes da Corte, o meu voto é pela procedência<br />

da ação direta de inconstitucionalidade.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, a Lei, a meu ver, apresenta<br />

peculiaridades que direcionam a atividade de fiscalização do próprio Distrito Federal.<br />

Não há uma disciplina, em si, quanto ao trânsito. Para assim concluir, basta considerar<br />

que o limite de velocidade nas vias públicas é estabelecido não pela União, não<br />

mediante uma lei linear de aplicação em todo o território nacional, mas por cada qual das<br />

unidades da Federação.<br />

De que trata o artigo 1º da Lei n. 2.929, de 16 de março de 2002? Da regência<br />

da necessidade de evitar surpresa para os condutores dos veículos. Preceitua esse<br />

artigo:<br />

“Art. 1º O Departamento de Trânsito do Distrito Federal – DETRAN-DF<br />

somente poderá aplicar aos condutores ou proprietários de veículos, multas por<br />

excesso de velocidade, em vias do sistema viário urbano do Distrito Federal que<br />

tiverem sofrido reclassificação,” — quanto à velocidade; poder do próprio Distrito


R.T.J. — <strong>199</strong> 631<br />

Federal de mudar a velocidade do local — “após decorridos 180 (cento e oitenta)<br />

dias da sua nova classificação”.<br />

Indago: não atuou o Distrito Federal no campo da competência que lhe é reservada<br />

pela Constituição, dispondo sobre a forma de fiscalizar a velocidade dos veículos<br />

nas vias públicas? A resposta, para mim, é positiva. Não adentro área reservada à<br />

normatização pelo Congresso Nacional. O mesmo enfoque merecem os preceitos seguintes,<br />

os quais versam sobre o poder de polícia, que não pode ser delegado, devendo<br />

ser exercido, como está previsto, de forma simplesmente pedagógica, por agentes do<br />

Estado, por agentes do Detran do Distrito Federal ou policiais militares, que contam com<br />

os chamados radares eletrônicos móveis.<br />

Creio que a lei tem particularidades que a fazem distanciada dos precedentes da<br />

Corte. Entendo, no caso concreto, não haver ocorrido disciplina, em si, sobre o trânsito.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Não é norma de trânsito.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Sim, é norma direcionada apenas à fiscalização a ser<br />

implementada.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: É ilícito de trânsito; pena por ilícito de trânsito.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Relator): Ainda definem os vinte por cento de<br />

tolerância.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Não, vinte por cento de tolerância, quer<br />

dizer, não é sessenta, é sessenta mais vinte por cento: setenta e dois.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: A anterioridade para a infração de trânsito é<br />

maior do que a anterioridade da lei penal.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Obrigação de avisar a hora. Aqui é<br />

sessenta, o resto não precisa.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Relator): O artigo 3º também.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não, Presidente. Vamos ler e perceber a lei no<br />

conjunto.<br />

Quanto à percentagem, há uma estipulação para afastar a insubsistência da multa<br />

aplicada, considerada a nova velocidade resultante de alteração da primitiva. Dessa<br />

forma, se o veículo foi surpreendido com velocidade vinte por cento acima da<br />

velocidade primitiva, não cabe o cancelamento da multa. É alguma coisa comedida,<br />

aceitável. No entanto, não vejo, nessa lei, algo que diga respeito ao trânsito. Vislumbro,<br />

repito, a disciplina da fiscalização, da apenação, da aplicação de multa, e considero a lei<br />

razoável, principalmente quanto aos limites de velocidade, que são, aqui no Distrito<br />

Federal, se os cotejarmos com aqueles fixados nas vias dos demais Estados, muito aquém<br />

da realidade; há apenas o afastamento da glosa.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Ministro Marco Aurélio, lembre-se<br />

Vossa Excelência de que a situação de respeito ao Distrito Federal na velocidade,<br />

inclusive na questão das passagens de pedestres, decorreu exatamente do sistema legal<br />

posto há uns dez anos no Distrito Federal. A situação, hoje, no Distrito Federal, de ter


632<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

baixas velocidades, o respeito às faixas dos pedestres, decorreu exatamente das legislações<br />

que estão sendo atingidas aqui.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não afirmo o contrário. Estou dizendo que, por<br />

exemplo, numa pista como a do Eixo Monumental — vou falar em português claro —,<br />

constituída de seis faixas de rolamento, a velocidade fixada de sessenta quilômetros<br />

distancia-se da razoabilidade; sessenta quilômetros em um local onde não há travessia<br />

de pessoas encerra, em última análise, feitura de caixa, em se tratando de imposição de<br />

multas, mas esse é um argumento metajurídico e não jurídico. O argumento jurídico, a<br />

base de meu voto, é que o Distrito Federal, ao aprovar a Lei n. 2.929/02, atuou num<br />

campo a ele reservado: da disciplina da fiscalização, não adentrando, portanto, a área<br />

reservada à competência da União.<br />

Por isso, peço vênia ao Relator para julgar improcedente o pedido formulado.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente, acompanho o Ministro Marco<br />

Aurélio em relação ao art. 1º. Entendo que a norma se refere a poder de polícia. Na<br />

verdade, está-se a dizer que, alterados os padrões pelo Distrito Federal, a velocidade de<br />

determinada via...<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): O sujeito fica sendo informado durante<br />

seis meses.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes (Relator): Como se alguém pegasse um mapa ou um<br />

informativo para saber quais são as pistas e suas velocidades.<br />

Isso o Ministro Sepúlveda Pertence já observou, nem em Direito Penal existe isso,<br />

quanto mais em outro direito.<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Se não existe em Direito Penal, em Direito<br />

Administrativo não pode existir.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Seis meses de impunidade no trânsito.<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Não é de impunidade; é para que o cidadão não<br />

seja punido de surpresa.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: O brasileiro, em geral, não está acostumado com a<br />

segurança jurídica.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

ADI 3.186/DF — Relator: Ministro Gilmar Mendes. Requerente: Procurador-Geral<br />

da República. Requeridos: Governador do Distrito Federal e Câmara Legislativa do<br />

Distrito Federal.<br />

Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou procedente a ação, nos termos do voto do<br />

Relator, vencidos os Ministros Marco Aurélio, que a julgava integralmente improcedente,<br />

e, em parte, o Ministro Joaquim Barbosa. Votou o Presidente, Ministro Nelson<br />

Jobim. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello.


R.T.J. — <strong>199</strong> 633<br />

Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,<br />

Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr.<br />

Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.<br />

Brasília, 16 de novembro de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.645 — PR<br />

Relatora: A Sra. Ministra Ellen Gracie<br />

Requerente: Partido da Frente Liberal – PFL — Requeridos: Governador do<br />

Estado do Paraná e Assembléia Legislativa do Estado do Paraná<br />

Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 14.861/05, do Estado do<br />

Paraná. Informação quanto à presença de organismos geneticamente<br />

modificados em alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo<br />

humano e animal. Lei Federal 11.105/05 e Decretos 4.680/03 e 5.591/05.<br />

Competência legislativa concorrente para dispor sobre produção, consumo<br />

e proteção e defesa da saúde. Art. 24, V e XII, da Constituição Federal.<br />

Estabelecimento de normas gerais pela União e competência suplementar<br />

dos Estados.<br />

1. Preliminar de ofensa reflexa afastada, uma vez que, a despeito da<br />

constatação, pelo Tribunal, da existência de normas federais tratando da<br />

mesma temática, está o exame na ação adstrito à eventual e direta ofensa,<br />

pela lei atacada, das regras constitucionais de repartição da competência<br />

legislativa. Precedente: ADI 2.535-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ<br />

de 21-11-2003.<br />

2. Seja dispondo sobre consumo (CF, art. 24, V), seja sobre proteção<br />

e defesa da saúde (CF, art. 24, XII), busca o Diploma estadual impugnado<br />

inaugurar regulamentação paralela e explicitamente contraposta à legislação<br />

federal vigente.<br />

3. Ocorrência de substituição — e não suplementação — das regras<br />

que cuidam das exigências, procedimentos e penalidades relativos à<br />

rotulagem informativa de produtos transgênicos por norma estadual que<br />

dispôs sobre o tema de maneira igualmente abrangente. Extrapolação,<br />

pelo legislador estadual, da autorização constitucional voltada para o<br />

preenchimento de lacunas acaso verificadas na legislação federal. Precedente:<br />

ADI 3.035, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 14-10-2005.<br />

4. Declaração de inconstitucionalidade conseqüencial ou por arrastamento<br />

de decreto regulamentar superveniente em razão da relação de<br />

dependência entre sua validade e a legitimidade constitucional da lei objeto


634<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

da ação. Precedentes: ADI 437-QO, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 19-2-<br />

<strong>199</strong>3, e ADI 173-MC, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 27-4-<strong>199</strong>0.<br />

5. Ação direta cujo pedido formulado se julga procedente.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas<br />

taquigráficas, por unanimidade de votos, julgar procedente a ação direta para declarar a<br />

inconstitucionalidade da Lei n. 14.861, de 26 de outubro de 2005, e do Decreto n. 6.253,<br />

de 22 de março de 2006, ambos do Estado do Paraná, nos termos do voto da Relatora.<br />

Brasília, 31 de maio de 2006 — Ellen Gracie, Presidente e Relatora (RI<strong>STF</strong>, art.<br />

146, V).<br />

RELATÓRIO<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: O Partido da Frente Liberal propôs ação direta de<br />

inconstitucionalidade em face da Lei 14.861, de 26-10-5, do Estado do Paraná, que<br />

“regulamenta direito à informação quanto aos alimentos e ingredientes alimentares que<br />

contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados,<br />

conforme especifica e adota outras providências”. Este é o teor do Diploma impugnado<br />

(fls. 15/17):<br />

“Art. 1º Esta Lei regulamenta direito à informação, assegurado pela Lei n.<br />

8.<strong>07</strong>8, de 11 de setembro de <strong>199</strong>0, quanto aos alimentos e ingredientes alimentares<br />

destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a<br />

partir de organismos geneticamente modificados, sem prejuízo do cumprimento<br />

das demais normas aplicáveis.<br />

Art. 2º Na comercialização de alimentos e ingredientes alimentares destinados<br />

ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de<br />

organismos geneticamente modificados, o consumidor deverá ser informado da natureza<br />

transgênica desse produto.<br />

§ 1º Tanto nos produtos embalados como nos vendidos a granel ou in natura,<br />

o rótulo da embalagem ou do recipiente em que estão contidos deverá constar, em<br />

destaque, no painel principal e em conjunto com o símbolo definido mediante a<br />

Portaria n. 2.658, de 22 de dezembro de 2003, do Ministério de Estado da Justiça (T),<br />

uma das seguintes expressões, dependendo do caso: ‘(nome do produto) transgênico’,<br />

‘contém (nome do ingrediente ou ingredientes) transgênico(s)’ ou ‘produto<br />

produzido a partir de (nome do produto) transgênico’.<br />

§ 2º O consumidor deverá ser informado sobre a espécie doadora do gene no<br />

local reservado para a identificação dos ingredientes.<br />

§ 3º A informação determinada no § 1º deste artigo também deverá constar do<br />

documento fiscal, de modo que essa informação acompanhe o produto ou ingrediente<br />

em todas as etapas da cadeia produtiva.


R.T.J. — <strong>199</strong> 635<br />

Art. 3º Os alimentos e ingredientes produzidos a partir de animais alimentados<br />

com ração contendo ingredientes transgênicos deverão trazer no painel<br />

principal, em tamanho e destaque previstos no art. 2º, a seguinte expressão: ‘(nome<br />

do animal) alimentado com ração contendo ingrediente transgênico’ ou ‘(nome do<br />

ingrediente) produzido a partir de animal alimentado com ração contendo ingrediente<br />

transgênico’.<br />

Art. 4º Aos alimentos e ingredientes alimentares que comprovadamente<br />

não contenham nem sejam produzidos a partir de organismos geneticamente<br />

modificados será facultada a rotulagem ‘(nome do produto ou ingrediente)<br />

livre de transgênicos’, desde que tenham similares transgênicos no mercado<br />

brasileiro.<br />

Art. 5º A comprovação documental da presença ou ausência de OGM,<br />

mediante documentos fiscais que acompanham o alimento ou ingrediente<br />

alimentar em todas as etapas da cadeia produtiva, deverá atender a requisitos e<br />

procedimentos estabelecidos pela Secretaria de Estado da Agricultura e Abastecimento.<br />

Parágrafo único. Para fins de fiscalização, a empresa produtora de alimentos<br />

ou ingredientes elaborados a partir de animais alimentados com ração contendo<br />

alimentos ou ingredientes transgênicos deverá manter as notas fiscais referentes à<br />

ração dos animais em seu poder.<br />

Art. 6º Fica proibida a venda de produtos sobre o qual recaia denúncia<br />

fundamentada de que contém OGM e que não contenham no rótulo a devida<br />

designação.<br />

§ 1º Nesse caso, além da aplicação das penalidades previstas nesta lei, os<br />

produtos serão recolhidos, podendo ser disponibilizados novamente para comércio<br />

caso análise idônea demonstre que o produto não contém OGM.<br />

§ 2º Se a referida análise comprovar a presença de OGM, os produtos deverão<br />

ser destruídos.<br />

Art. 7º Em todas as disposições desta lei, inclusive na do artigo anterior, o<br />

ônus da prova recai sobre o fornecedor.<br />

Art. 8º À infração ao disposto nesta lei aplicam-se as seguintes penalidades,<br />

sem prejuízo das penalidades previstas no Código de Defesa do Consumidor e<br />

demais normas aplicáveis.<br />

Art. 9º Ante a caracterização de fraude, irregularidade ou qualquer outra<br />

infração a esta lei, caberá aos órgãos fiscalizadores estaduais conforme a gravidade<br />

da infração, adotar as seguintes medidas:<br />

I - advertência;<br />

II - multas diárias que variam de 100 — cem — a 2.000 — duas mil — UFIRs;<br />

III - apreensão do produto;<br />

IV - suspensão da atividade;<br />

V - cancelamento da autorização para funcionamento em âmbito estadual.


636<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Art. 10. Esta lei deverá ser regulamentada por Decreto do Governador do<br />

Estado, até 90 dias após sua publicação.<br />

Art. 11. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.”<br />

Alega o requerente, em suma, que o ato normativo censurado, ao exigir que o<br />

consumidor seja informado da presença, em qualquer porcentagem, de ingredientes<br />

geneticamente modificados no produto a ser adquirido, extrapolou os limites da competência<br />

suplementar do Estado para legislar em matéria de produção, consumo e proteção<br />

e defesa da saúde (CF, art. 24, V e XII), pois, em vez de adaptar a legislação federal<br />

existente sobre o tema às peculiaridades locais, nos termos do art. 24, §§ 1º e 2º, da Carta<br />

Magna, criou norma geral confrontante com o art. 2º do Decreto Federal 4.680/03, que<br />

estabelece a necessidade de informação da natureza transgênica do produto apenas na<br />

comercialização de alimentos e ingredientes alimentares cuja presença de organismos<br />

geneticamente modificados esteja acima de um por cento.<br />

Assevera que, além de retirar a eficácia do referido Decreto Federal, que busca<br />

evitar “regulamentações diferenciadas em cada Estado da Federação”, atinge o ato<br />

normativo contestado a indústria e o consumo interestadual, criando, ainda, desigual<br />

tratamento para as empresas que fabricam ou comercializam no território do Estado do<br />

Paraná.<br />

Argumenta, outrossim, que os demais preceitos da Lei paranaense, relativos à<br />

fiscalização, à proibição de venda de produtos e à aplicação de penalidades, “estão em<br />

total desacordo com a nova Lei de Biossegurança e Biotecnologia (Lei n. 11.105/05) e<br />

seu Decreto Regulamentador (Decreto Federal n. 5.591/05), (...) que, atualmente,<br />

disciplinam de forma genérica a produção e comercialização de OGMs” (fl. 10). Sustenta<br />

que, num eventual descumprimento da obrigação de informar e de rotular produtos que<br />

contenham organismos geneticamente modificados, somente serão aplicáveis as<br />

penalidades indicadas no referido conjunto normativo federal, tendo a Lei contestada,<br />

portanto, investido de maneira indevida e “muito além do que as normas federais impõem”<br />

(fl. 11). Requer, liminarmente, a suspensão da eficácia do diploma impugnado e, no mérito,<br />

a declaração de sua inconstitucionalidade.<br />

Aplicado o procedimento previsto no art. 12 da Lei 9.868/99 (fls. 57/58), o<br />

Governador do Estado do Paraná prestou informações (fls. 64/78), nas quais alega,<br />

preliminarmente, que o exame de violação ao texto constitucional exigiria o prévio<br />

confronto do Diploma estadual contestado com norma infraconstitucional fruto da<br />

atividade regulamentar (Decreto 4.680/03, de 24-4-2003), o que seria vedado em sede de<br />

controle abstrato de constitucionalidade segundo a jurisprudência desta Corte.<br />

No mérito, assevera que a discussão ora travada não diz respeito ao tema das<br />

normas de segurança — inclusive alimentar — e dos mecanismos de fiscalização das<br />

atividades que envolvam organismos geneticamente modificados, disposto nos incisos<br />

II, IV e V do § 1º do art. 125 da Constituição Federal e regulamentado pela Lei 11.105/05.<br />

Afirma que a questão está circunscrita à seara da proteção ao consumidor (direito à<br />

informação) prevista nos arts. 5º, XXXII, e 170, V, da Carta Magna e no art. 48 do ADCT.<br />

Conclui, assim, que, nos termos do inciso V e do § 1º do art. 24 da Constituição, a norma<br />

geral em matéria de proteção ao consumidor é o Código de Defesa do Consumidor, que<br />

“alcança qualquer produto, seja ele transgênico ou não”, e cuja regulamentação é<br />

pretendida pela Lei estadual atacada.


R.T.J. — <strong>199</strong> 637<br />

Após apontar precedentes desta Corte (ADI 1.980 e ADI 2.180) nos quais teria sido<br />

discutida a possibilidade de os Estados regulamentarem, nos limites da competência<br />

concorrente e suplementar prevista no art. 24 da Constituição, o comando que assegura ao<br />

consumidor o direito à precisa informação, argumenta o Governador do Estado do Paraná<br />

que o Decreto Federal 4.680/03 afastou-se dessa norma geral, espraiada em dispositivos do<br />

Código de Defesa do Consumidor, da Lei de Biossegurança e do Decreto 5.591/05. Isso<br />

por acreditar que a fixação da obrigatoriedade de informação somente a partir do<br />

percentual mínimo de um por cento de transgenia não atende às exigências do Código do<br />

Consumidor, que estabelece, como publicidade enganosa por omissão, a ausência de<br />

informação de dado essencial do produto, como o é a sua composição transgênica.<br />

Ressalta que a Lei impugnada, ao concretizar o direito fundamental à informação<br />

como proteção e defesa do consumidor, também é inspirada no princípio da dignidade<br />

humana (CF, art. 1º, III), por ter o consumidor “o direito fundamental de decidir o que<br />

consome e, para isso, precisa ser esclarecido sobre as especificações corretas e precisas<br />

de quantidade, características, composição, origem e riscos”. Alega que, por isso, o<br />

menor percentual de transgenia deve ser informado, até porque a rotulagem regular<br />

permitiria a pronta identificação do fornecedor, possibilitando a responsabilização por<br />

dano eventualmente causado ao consumidor. Ainda nesse mesmo tópico, assevera que,<br />

a se falar de um aparente conflito entre o Decreto Federal 4.680/03 e a Lei estadual<br />

contestada, “a norma mais restritiva deve ser aplicada, pois oferece maior proteção ao<br />

consumidor”.<br />

Finalmente, no tocante à alegação de que a norma impugnada causaria uma nociva<br />

interferência no comércio interestadual, sustenta o Chefe do Executivo paranaense que a<br />

legislação federal relativa a agrotóxicos, por exemplo, prevê a possibilidade de os Estados-<br />

Membros imporem, no âmbito de seus territórios, restrições e exigências específicas aos<br />

fabricantes, “e nem por isso tal legislação é acoimada de inconstitucional”. Requer, dessa<br />

forma, a improcedência do pedido formulado.<br />

A Assembléia Legislativa do Estado do Paraná também apresentou suas informações<br />

(fls. 80/85), nas quais alegou a ausência dos requisitos necessários à concessão de medida<br />

cautelar e o respeito, na gênese do Diploma em exame, de todas as formalidades exigidas<br />

pelo processo legislativo até a sua promulgação pelo Governador do Estado.<br />

O Advogado-Geral da União, em sua manifestação (fls. 87/103), refutou a preliminar<br />

suscitada nas informações prestadas pelo Governador requerido. Salientou que a hipótese<br />

é de direta violação ao art. 24, V e XII, § 1º, da Constituição, por representar a norma<br />

hostilizada comando geral sobre produção, consumo e proteção e defesa da saúde.<br />

Salienta que a mera detecção, por esta Corte, da efetiva existência de legislação federal de<br />

cunho geral não impede o conhecimento da ação direta, uma vez que tal procedimento<br />

apenas busca atestar se a legislação local, cuidando de normas gerais, afrontou as regras<br />

constitucionais de repartição da competência legislativa.<br />

No mérito, assevera existir legislação federal que, de forma geral, trata sobre a<br />

rotulagem de alimentos que contenham organismos geneticamente modificados (Decreto<br />

4.680/03) e que, por isso, não poderia o Estado do Paraná dispor sobre esse assunto sem<br />

invadir a competência da União para legislar sobre produção, consumo e proteção e


638<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

defesa da saúde. Afasta a possibilidade de a regulamentação estadual em análise possuir<br />

natureza suplementar, “pois a rotulagem de alimentos que contenham organismos<br />

geneticamente modificados é de interesse nacional, e por isso deve ser padronizada”.<br />

Também afirma que a diversificação das regras sobre rotulagem afeta diretamente<br />

o comércio interestadual, assunto cuja competência é privativa da União (CF, art. 22,<br />

VII).<br />

Informa, ainda, o Advogado-Geral que a obrigatoriedade da rotulagem para produtos<br />

que apresentem teor de transgenia superior a um por cento, prevista no mencionado<br />

Decreto 4.680/03, “está considerando a margem de erro ocasionada por vestígios<br />

acidentais ou tecnicamente inevitáveis”. Argumenta que essa margem de tolerância é<br />

adotada em vários países e que a centralização dos parâmetros de rotulagem em matéria<br />

de OGM é uma tendência mundial, conforme demonstra o Regulamento (CE) n. 1.830/<br />

2003, do Parlamento Europeu e do Conselho da União Européia (fl. 100).<br />

Ressalta, entretanto, que essa discussão sobre percentual mínimo de OGM e<br />

rotulagem não é objeto da presente ação direta de inconstitucionalidade e que a<br />

complexidade e a polêmica do assunto, até mesmo por sua repercussão internacional,<br />

reforçam a necessidade de uma regulamentação unificada no âmbito da União. Aponta,<br />

por fim, que, na ADI 3.035, Rel. Min. Gilmar Mendes, este Supremo Tribunal reconheceu<br />

a invasão da competência legislativa concorrente da União na edição de lei<br />

estadual que vedava o cultivo, a industrialização e a comercialização de OGM no território<br />

do Paraná, tendo em vista a existência de norma federal geral sobre o tema. Conclui, dessa<br />

forma, o Advogado-Geral da União pela inconstitucionalidade da Lei estadual ora em<br />

análise.<br />

O Procurador-Geral da República apresentou parecer (fls. 109/112) em que constata,<br />

inicialmente, que “a legislação federal dispôs de modo abrangente sobre a comercialização,<br />

a produção e o direito à informação referente aos alimentos e ingredientes<br />

alimentares que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente<br />

modificados”, referindo-se às Leis 11.105/05 e 8.<strong>07</strong>8/90 e aos respectivos Decretos<br />

regulamentares 5.591/05 e 4.680/03. Assevera que, diante de tal circunstância, apenas<br />

cabia ao Estado agir supletivamente em face de eventuais lacunas. Sustenta que, não<br />

obstante tal conclusão, fixou o Diploma impugnado norma geral concorrente, padecendo,<br />

portanto, “de inconstitucionalidade formal, por usurpação de competência prevista no<br />

art. 24, incisos V e XII, da Lei Maior”.<br />

Por fim, adverte o Chefe do Ministério Público Federal que o parecer citado nas<br />

informações prestadas pelo Governador do Estado do Paraná, relativo à ADI 2.180,<br />

“data de fevereiro de 2001, sendo, portanto, anterior à edição das normas federais<br />

pertinentes aos chamados organismos geneticamente modificados”, não se verificando<br />

mais, assim, a existência de lacuna no ordenamento jurídico sobre o tema. Propugna,<br />

dessa forma, pela procedência do pedido formulado.<br />

Por meio da Petição de n. 46.286/2006, o requerente trouxe aos autos a informação<br />

de que o Governador do Estado do Paraná, no propósito de regulamentar a Lei estadual<br />

ora em análise, editou o Decreto 6.253, de 22-3-2006, já vigente desde 22-5-2006.<br />

É o relatório. Distribuam-se cópias aos Senhores Ministros.


R.T.J. — <strong>199</strong> 639<br />

VOTO<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. Analiso, inicialmente, a preliminar<br />

suscitada pelo Governador do Estado do Paraná, no sentido de que o exame de constitucionalidade<br />

da Lei estadual 14.861/05 passaria, necessariamente, pelo cotejo desse<br />

Diploma com regra infraconstitucional consubstanciada no Decreto Federal 4.680/03.<br />

Tratando-se de ação direta fundamentada na eventual ocorrência de invasão da competência<br />

da União para legislar de forma geral sobre determinada matéria, é necessário que<br />

o Tribunal verifique a existência no ordenamento jurídico de atos normativos que<br />

tratem do assunto em questão, para depois concluir ou (1) pela inconstitucional superposição<br />

legiferante ou (2) pela ocorrência, no âmbito federal, de situação de vacuum<br />

legis autorizadora, nos termos do art. 24, § 3º, da Constituição Federal, da atividade<br />

legislativa plena do Estado-Membro enquanto perdurar tal circunstância.<br />

Veja-se, por exemplo, que, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2.396, de<br />

minha Relatoria, e 2.656, Rel. Min. Maurício Corrêa, que tinham como objeto leis<br />

estaduais que proibiam o transporte, a fabricação e a comercialização de produtos<br />

contendo amianto crisotila, verificou este Tribunal a existência de norma federal (Lei<br />

9.055/95) que disciplinava amplamente as atividades envolvendo aquela substância.<br />

Esta Corte, nos precedentes citados, nem por isso cogitou a necessidade de prévio<br />

exame da validade dos atos impugnados em face da legislação apontada, já que o foco<br />

da análise sempre esteve adstrito à eventual e direta ofensa, pela norma atacada, das<br />

regras constitucionais de repartição da competência legislativa. Este Plenário enfrentou,<br />

recentemente, a mesma situação no julgamento da ADI 3.098, Rel. Min. Carlos<br />

Velloso, DJ de 10-3-2006, na qual se constatou tentativa local, porém superposta, de<br />

regulamentação do que já previsto na Lei Federal de diretrizes e bases da educação.<br />

Por fim, nesse tema, cabe destacar precisa manifestação do eminente Ministro<br />

Sepúlveda Pertence na ADI 2.535-MC, em tudo aplicável ao caso ora em exame, no<br />

sentido de que “tem-se inconstitucionalidade reflexa — a cuja verificação não se presta<br />

a ação direta — quando o vício de ilegitimidade irrogado a um ato normativo é o<br />

desrespeito à Lei Fundamental por haver violado norma infraconstitucional interposta,<br />

a cuja observância estaria vinculado pela Constituição: não é o caso presente, onde a<br />

ilegitimidade da lei estadual não se pretende extrair de sua conformidade com a lei<br />

federal (...), mas, sim, diretamente, com as normas constitucionais que o preordenam,<br />

afora outros princípios e garantias do texto fundamental.”<br />

Rejeito, portanto, a preliminar levantada.<br />

2. A lei estadual objeto da presente ação direta de inconstitucionalidade trata de<br />

assunto que está, inegavelmente, disciplinado em âmbito federal. Tal circunstância,<br />

como visto, não passou despercebida nem mesmo na peça de defesa do ato impugnado,<br />

apresentada pelo Chefe do Executivo paranaense. Impõe-se, dessa forma, uma análise<br />

mais detida do conteúdo desses comandos normativos vigentes em todo o território<br />

nacional:<br />

a) Lei 11.105/05 (Lei de Biossegurança);<br />

Art. 40. “Os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo<br />

humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM ou<br />

.


640<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme<br />

regulamento.”<br />

b) Decreto 5.591/05, que regulamenta dispositivos da Lei 11.105/05;<br />

Art. 91. “Os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo<br />

humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM e seus<br />

derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, na forma de<br />

decreto específico.”<br />

c) Decreto 4.680/03, que regulamenta o direito à informação, assegurado pela Lei<br />

n. 8.<strong>07</strong>8, de 11 de setembro de <strong>199</strong>0, quanto aos alimentos e ingredientes alimentares<br />

destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir<br />

de organismos geneticamente modificados.<br />

Art. 2º caput: “Na comercialização de alimentos e ingredientes alimentares<br />

destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a<br />

partir de organismos geneticamente modificados, com presença acima do limite<br />

de um por cento do produto, o consumidor deverá ser informado da natureza<br />

transgênica desse produto.”<br />

3. Não resta dúvida de que, seja tratando sobre consumo (CF, art. 24, V), seja sobre<br />

proteção e defesa da saúde (CF, art. 24, XII), busca o Diploma estadual impugnado<br />

inaugurar uma regulamentação paralela e explicitamente contraposta à legislação federal<br />

vigente, suprimindo, no âmbito do indispensável dever de informação ao consumidor, a<br />

tolerância de até um por cento de transgenia acaso existente no produto ofertado. Esta<br />

oposição ao modelo federal foi abertamente declarada nas informações prestadas pelo<br />

Governador do Estado do Paraná. Apesar de politicamente legítima tal oposição, não<br />

poderia ela se converter em atividade legislativa praticada muito além dos limites<br />

impostos pela regra constitucional de competência concorrente suplementar de que<br />

dispõem os Estados.<br />

4. Ressalte-se, ademais, que o referido conjunto normativo federal não é objeto da<br />

presente ação direta, nem é esta sede processual o foro adequado para debates técnicocientíficos<br />

a respeito da porcentagem mínima de organismos geneticamente modificados<br />

admissível ou recomendável nos alimentos e nos ingredientes alimentares para<br />

consumo humano ou animal. Além disso, noto que o próprio Decreto Federal 4.680/03,<br />

em seu art. 2º, § 4º 1 , estabelece que o percentual em questão poderá ser reduzido por<br />

decisão da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, órgão colegiado<br />

multidisciplinar responsável, segundo a Lei 11.105/05, pelo estabelecimento de normas<br />

de segurança e pela autorização para a prática de atividades que envolvam pesquisa e<br />

uso comercial de OGM e seus derivados.<br />

5. No julgamento da ADI 3.035, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 14-10-2005, este<br />

Supremo Tribunal Federal reconheceu que a Lei 14.162/03, também do Estado do Paraná,<br />

havia usurpado a competência da União para legislar, por meio de normas gerais, sobre<br />

1 Decreto 4.680/03, art. 2º, § 4º: “O percentual referido no caput poderá ser reduzido por decisão da<br />

Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio.”


R.T.J. — <strong>199</strong> 641<br />

produção, consumo e proteção à saúde e ao meio ambiente ao vedar, no território<br />

daquela unidade federada, o cultivo, a manipulação, a importação, a industrialização e<br />

a comercialização de organismos geneticamente modificados destinados à produção<br />

agrícola e à alimentação humana e animal. Naquela assentada, asseverou o eminente<br />

Relator, Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, que “não se afigura admissível que no<br />

uso da competência residual o Estado do Paraná formule uma disciplina que acaba<br />

por afastar a aplicação das normas federais de caráter geral”. Concluiu, ainda, S. Exa.<br />

que “aplicada a Lei estadual, restará obviamente prejudicada a eficácia do ato federal,<br />

que foi editado para a solução de um problema que transcende a esfera de Estados<br />

singulares”.<br />

No presente caso, da mesma forma, pretende-se a substituição — e não a suplementação<br />

— das regras federais que cuidam das exigências, procedimentos e penalidades<br />

relativos à rotulagem informativa de produtos transgênicos por norma estadual que<br />

dispõe sobre o tema de maneira igualmente abrangente. O legislador local extrapolou a<br />

autorização constitucional que, na sistemática da competência concorrente, objetiva o<br />

preenchimento de lacunas acaso verificadas na legislação federal.<br />

6. Constatada a ocorrência de vício formal suficiente a fulminar a Lei estadual ora<br />

contestada, reconheço a necessidade da declaração de inconstitucionalidade conseqüencial<br />

ou por arrastamento de sua respectiva regulamentação, materializada no Decreto<br />

6.253, de 22-3-2006. Esta decorrência, citada por Canotilho 2 e minudenciada pelo<br />

eminente Ministro Celso de Mello no julgamento da ADI 437-QO, DJ de 19-2-<strong>199</strong>3,<br />

ocorre quando há uma relação de dependência de certos preceitos com os que foram<br />

especificamente impugnados, de maneira que as normas declaradas inconstitucionais<br />

sirvam de fundamento de validade para aquelas que não pertenciam ao objeto da ação.<br />

Trata-se exatamente do caso em discussão, no qual “a eventual declaração de inconstitucionalidade<br />

da lei a que refere o decreto executivo (...) implicará o reconhecimento,<br />

por derivação necessária e causal, de sua ilegitimidade constitucional” (voto do Min.<br />

Celso de Mello na referida ADI 437-QO). No mesmo sentido, quanto à suspensão cautelar<br />

da eficácia do ato regulamentador, a ADI 173-MC, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 27-4-<br />

<strong>199</strong>0.<br />

7. Ante todo o exposto, julgo procedente o pedido formulado para declarar a<br />

inconstitucionalidade da Lei 14.861, de 26-10-2005, do Estado do Paraná, bem como<br />

do Decreto 6.253, de 22-3-2006, daquela mesma unidade da Federação.<br />

É como voto.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhora Presidente, meu primeiro impulso<br />

foi no sentido de julgar improcedente esta ação, porque entendo que o artigo 1º da<br />

Constituição afirma, como postulado basilar, não só o princípio federativo, mas o<br />

democrático e o republicano. Dentro desse movimento pendular que caracteriza o<br />

federalismo brasileiro, com momentos de grande concentração de poder ao nível da<br />

2 Direito Constitucional. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1987. p. 788.


642<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

União, e outros, de grande desconcentração em favor dos demais entes federativos,<br />

verifica-se que, paulatinamente, estamos caminhando, na verdade, para um Estado<br />

unitário descentralizado, haja vista as recentes reformas administrativa, previdenciária,<br />

judiciária, tributária. Observa-se também que, no âmbito da competência concorrente<br />

prevista no artigo 24 da Carta Magna, cada vez mais vemos esvaziada a competência dos<br />

Estados de legislar supletivamente, porque a União, quando legisla, esgota o assunto,<br />

não se limita a editar apenas normas gerais.<br />

Eu, até, tinha estudado o precedente representado pela ADI n. 1.980/PR, Relator<br />

Ministro Sydney Sanches, que guarda certa semelhança com o caso presente, por ser uma<br />

lei do Paraná que assegurava ao consumidor o direito de obter informações sobre a<br />

natureza, a procedência e a qualidade de combustíveis comercializados nos postos<br />

vendedores situados no Estado do Paraná; porém, Senhora Presidente, dada a relevância<br />

da matéria, e tendo em vista que esta questão dos organismos geneticamente modificados<br />

transcende o âmbito meramente local, ou seja, tem âmbito nacional e, quiçá, até<br />

internacional, porque pode afetar o comércio interestadual e o exterior, acompanho o<br />

voto de Vossa Excelência no sentido de julgar procedente a ação.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhora Presidente, de saída, que bom o voto de Vossa<br />

Excelência, como bem redigido e bem atualizado neste tema de Engenharia Genética, que<br />

é um desafio para a nossa reflexão a todo instante.<br />

Tendo a acompanhar Vossa Excelência porque percebo que a legislação federal não<br />

dispõe sobre a matéria. O ponto é este: há uma concomitância de produção legislativa<br />

sobre um único tema, sobre esse tema há a legislação federal, mais antiga, e a legislação<br />

estadual, mais recente. Não se trata, portanto, de omissão, de inércia do legislador<br />

federal.<br />

A Constituição diz que, nesta matéria de proteção da saúde, de direito à informação, de<br />

defesa do consumidor, a União se limitará a produzir normas gerais. Resta saber se a União se<br />

comportou no limite da sua legítima normatividade de caráter geral. Parece que sim, porque<br />

norma geral, a princípio, é aquela que emite um comando passível de uma aplicabilidade<br />

federativamente uniforme. Penso que a União se situou neste contexto ao cuidar desta<br />

matéria de composição, como Vossa Excelência bem disse: composição transgênica dos<br />

produtos enquanto dado essencial dos produtos mesmos.<br />

Até agora estou raciocinando conforme Vossa Excelência, porém percebo talvez<br />

uma sutileza que demande de nossa parte uma discussão mais aprofundada. A Lei federal<br />

não fala de percentual mínimo para exigir, então, o rótulo.<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie (Presidente e Relatora): Sim, um por cento.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Não. Transferiu a matéria para o decreto federal. Foi<br />

ele que trouxe esse percentual, levando-nos a uma conclusão de que a oposição legislativa<br />

está entre a lei estadual e o decreto federal, porque tanto um quanto outro silenciaram<br />

em termos de percentual. A lei federal transferiu para regulamento essa incumbência<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 643<br />

de fixar o percentual mínimo. Esse percentual, Vossa Excelência já deixou claro, situa-se<br />

nos moldes dos padrões internacionais.<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie (Presidente e Relatora): Internacionalmente aceito.<br />

Ministro, fiz questão de inserir no voto o fato de que, como isso é algo que depende dos<br />

avanços da tecnologia, dos avanços que se verifiquem nesse setor, há uma previsão<br />

expressa de redução mediante estudos da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança –<br />

CTNBio, órgão federal especialmente dedicado ao exame dessa matéria.<br />

Por isso, a inclusão em decreto.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Talvez, por isso, exatamente, que essa matéria do<br />

percentual foi adjudicada ao decreto, pela lei.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Trata-se evidentemente de uma norma geral.<br />

Não há como estabelecer peculiaridade do consumidor paranaense para que a<br />

rotulagem no Paraná seja mais rígida do que aquela que o legislador federal, embora<br />

não disciplinando, dada a complexidade técnica da matéria diretamente, optou<br />

por que se fosse feito por regulamento com a participação, óbvia, dos organismos<br />

técnicos.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: É onde quero chegar. Embora a contradição se dê não<br />

entre a lei estadual e a lei federal, mas entre a lei estadual e um decreto federal, é<br />

perfeitamente compreensível que o decreto federal, em matérias tão especiosas, sutis<br />

quanto essas...<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Sim, porque foi o que o Tribunal, mutatis<br />

mutandis, entendeu a propósito do cálculo dos índices de produtividade para efeito de<br />

reforma agrária.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Perfeito. Então, em verdade, o decreto veicula um<br />

comando geral federativamente uniforme que não poderia ficar mesmo a cargo da lei.<br />

Daí a Ministra Ellen Gracie averbar que esse percentual, na própria lei federal, está<br />

previsto como passível de redução.<br />

Então, também acedo à lógica do voto de Vossa Excelência para considerar a ação<br />

procedente.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhora Presidente, também acompanho Vossa<br />

Excelência no voto proferido.<br />

A matéria é de competência da União. Não posso deixar de apontar, mais uma vez, a<br />

atividade desenvolvida pelo advogado da União, à margem do que previsto na Carta<br />

Federal, considerada a incumbência de atuar como o curador, o defensor da lei atacada, como<br />

dispõe o texto constitucional. Surge extravagante a postura contrária, com o pronunciamento<br />

no sentido da inconstitucionalidade.<br />

Faço essa observação até mesmo para que o silêncio não implique a concordância<br />

com a atitude assumida.


644<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

EXTRATO DA ATA<br />

ADI 3.645/PR — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Requerente: Partido da Frente<br />

Liberal – PFL (Advogado: Admar Gonzaga). Requeridos: Governador do Estado do<br />

Paraná e Assembléia Legislativa do Estado do Paraná.<br />

Decisão: O Tribunal, à unanimidade, julgou procedente a ação direta para declarar<br />

a inconstitucionalidade da Lei n. 14.861, de 26 de outubro de 2005, e do Decreto n.<br />

6.253, de 22 de março de 2006, ambos do Estado do Paraná, nos termos do voto da<br />

Relatora, Ministra Ellen Gracie, Presidente. Ausentes, justificadamente, os Ministros<br />

Celso de Mello e Eros Grau.<br />

Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa<br />

e Ricardo Lewandowski. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e<br />

Silva de Souza.<br />

Brasília, 31 de maio de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

MANDADO DE SEGURANÇA 22.373 — DF<br />

Relatora: A Sra. Ministra Ellen Gracie<br />

Impetrante: Jair Santos Neves — Impetrado: Presidente da República<br />

Direito administrativo. Servidor. Instâncias penal e administrativa.<br />

Demissão. Flagrante preparado.<br />

1. O Plenário desta Corte, quando do julgamento do MS 23.442, Rel.<br />

Min. Carlos Velloso, DJ de 17-2-2002, entendeu que a alegação de<br />

flagrante preparado é própria de ação penal e que não tem pertinência na<br />

instância administrativa.<br />

2. Também pelo seu Plenário, quando dos julgamentos dos MS<br />

22.888, DJ de 20-2-2004, Rel. Min. Nelson Jobim, e MS 22.055 e MS<br />

23.242, DJ de 18-10-<strong>199</strong>6 e DJ de 17-5-2002, Rel. Min. Carlos Velloso,<br />

esta Corte decidiu que, na forma do art. 169, § 1º, da Lei 8.112/90, a<br />

emissão do decreto de demissão, fora do prazo legal, não implica nulidade<br />

do processo administrativo que objetiva a exclusão do funcionário<br />

faltoso do serviço público.<br />

3. Portaria de instauração do inquérito administrativo que atende ao<br />

que dispõem os arts. 143, 148 e 149 da Lei 8.112/90, porquanto complementada<br />

por ofício a que expressamente se refere e no qual estão explicitadas<br />

as razões determinantes da investigação e o objeto da apuração.<br />

4. Direito à ampla defesa na fase de inquérito administrativo,<br />

amplamente exercitado, na forma dos arts. 153, 155 e seguintes da Lei<br />

8.112, de 11 de dezembro de <strong>199</strong>0.


R.T.J. — <strong>199</strong> 645<br />

5. Inviabilidade do exame em mandado de segurança das alegações<br />

relativas à disparidade de assinaturas do Presidente da República e à<br />

avaliação psicológica do impetrante. O rito não se presta à dilação<br />

probatória, mas exige que o direito alegado seja demonstrável de plano.<br />

6. Segurança indeferida.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas<br />

taquigráficas, por unanimidade de votos, indeferir a segurança, nos termos do voto da<br />

Relatora.<br />

Brasília, 14 de junho de 2006 — Ellen Gracie, Presidente e Relatora (RI<strong>STF</strong>, art.<br />

146, V).<br />

RELATÓRIO<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Trata-se de mandado de segurança impetrado por<br />

Jair Santos Neves contra ato do Presidente da República consubstanciado no Decreto<br />

de 5 de junho de <strong>199</strong>5 (DJ de 6-6-<strong>199</strong>5), que, com base nos artigos 141, I, 132, XIII,<br />

117, IX, e 137 da Lei 8.112, de 11 de dezembro de <strong>199</strong>0, demitiu o impetrante do cargo<br />

de auditor fiscal do Tesouro Nacional, por ter ele se valido do cargo para lograr<br />

proveito pessoal, em detrimento da dignidade da função pública, conforme processo<br />

administrativo que apurou prática de corrupção, consistente no recebimento de Cr$<br />

100.000,00, em troca da promessa de não-lançamento de multa referente a imposto<br />

sobre produtos industrializados.<br />

O impetrante sustenta, em longa petição inicial, que o inquérito administrativo<br />

disciplinar que antecedeu sua demissão é absolutamente nulo. Diz que a portaria<br />

instauradora do inquérito não diz respeito ao impetrante, não descreve o fato ilícito<br />

que lhe foi imputado, além de sua notificação ter sido irregular. Acrescenta que o ato<br />

de demissão é ineficaz porque ocorreu depois de três anos do prazo legal e que o<br />

direito ao contraditório e à ampla defesa não foram assegurados. Alega que não foram<br />

considerados o laudo médico psiquiátrico apresentado pela defesa, a existência de<br />

diferenças entre assinaturas do Presidente da República e documentos juntados aos<br />

autos às fls. 428, 420 e 460 e, ao final, que as provas tiveram como base flagrante<br />

preparado, o que não é admitido pela Súmula 145 do <strong>STF</strong>. Requer a anulação do<br />

processo administrativo e do ato presidencial que o demitiu e a concessão de medida<br />

cautelar para reintegrá-lo ao cargo.<br />

2. Pelo despacho de fl. 60, o eminente Ministro Octavio Gallotti indeferiu a<br />

medida liminar ao entendimento de que os pressupostos para sua concessão não se<br />

encontravam preenchidos.<br />

3. A autoridade impetrada, em suas informações (fls. 65/336), defende a legalidade<br />

do ato impugnado. Diz que:


646<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

a) é inadequada a via escolhida para invalidação de processo administrativo<br />

disciplinar, com intensa prova fática produzida, comprobatória do ato de corrupção;<br />

b) as Portarias 209 e 217/91 não contêm os vícios apontados pelo impetrante;<br />

c) procedeu-se à instrução com a comunicação ao impetrante dos fatos a ele<br />

atribuídos, ocasião em que lhe foi proporcionada vista dos autos;<br />

d) o advogado do impetrante atuou com toda liberdade e plenitude, o que veio<br />

a suprir suposta irregularidade relativa à entrega da citação à companheira do<br />

acusado;<br />

e) a alegação de cerceamento de defesa é insustentável, porque o art. 151 da Lei<br />

8.112/90 em nenhum momento determina que a portaria que constitui a comissão de<br />

inquérito deva descrever os fatos e fazer o resumo deles;<br />

f) a portaria fez referência aos fatos imputados ao servidor quando se reporta ao<br />

Ofício 01/161 e, sem sombra de dúvida, se refere à comunicação feita pelo Delegado da<br />

Receita Federal de Pelotas ao Superintendente Regional da Receita Federal, e a<br />

publicação do decreto de demissão fora do prazo legal não o invalida nos termos do art.<br />

169 da Lei 8.112/90;<br />

g) quanto à Súmula <strong>STF</strong> n. 145, o flagrante sofrido pelo impetrante demonstrou de<br />

maneira inequívoca a consumação do delito e em hipótese alguma poderá ser alegada a<br />

sua condição de vítima.<br />

4. A Procuradoria-Geral da República (fls. 345-348) manifestou-se pela denegação<br />

da ordem, forte em que as irregularidades não ensejariam a nulidade de todo o<br />

procedimento e que o mandamus não é o meio processual hábil para tutelar o pleito do<br />

impetrante sem aferição de fatos e provas.<br />

É o relatório.<br />

EXPLICAÇÃO<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): Senhor Presidente, antes de proferir o voto,<br />

as minhas saudações ao eminente Advogado com o comentário de que, se é esta a sua<br />

primeira participação perante esta Suprema Corte, não nos dá essa impressão, tão grande<br />

a sua desenvoltura na tribuna.<br />

Ainda antes de passar ao voto, faço um esclarecimento ao Tribunal, observando<br />

que, conforme acórdão existente no site do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,<br />

AC n. 2001.04.01.002731-0, na correlata ação penal, o impetrante foi condenado,<br />

em 11 de dezembro de <strong>199</strong>6, como incurso nas sanções do artigo 317, § 1º, do<br />

Código Penal. E o foi a uma pena de um ano e oito meses de reclusão e ao pagamento<br />

de vinte dias-multa. Isso diz respeito aos fatos e à sua apreciação perante o juízo<br />

penal.<br />

Condenado o impetrante a essa pena, a punibilidade foi julgada extinta nos termos<br />

do artigo 1<strong>07</strong>, IV, combinado com o artigo 109, V, e artigo 110 do Código Penal, em face<br />

da prescrição punitiva da pena em concreto aplicada.<br />

Esse é o esclarecimento prévio.


R.T.J. — <strong>199</strong> 647<br />

VOTO<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): O Plenário desta Corte, quando do<br />

julgamento do MS 23.442, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 17-2-2002, entendeu que a<br />

alegação de flagrante preparado é própria de ação penal e que não tem pertinência na<br />

instância administrativa. Ademais, verifico que a hipótese dos autos foi de flagrante<br />

esperado e não preparado. Os fatos são os seguintes: a Polícia Federal teve notícia de que<br />

o impetrante tinha exigido dinheiro para deixar de autuar numa empresa de ótica por<br />

descumprimento de obrigação tributária relacionada com o IPI. No dia marcado para a<br />

“visita” do fiscal, e, logo após a entrega da propina, a Polícia Federal procedeu à prisão<br />

em flagrante.<br />

2. Essa Corte, pelo seu Plenário, quando dos julgamentos dos MS 22.888, DJ<br />

de 20-2-2004, Rel. Min. Nelson Jobim, e MS 22.055 e MS 23.242, DJ de 18-10-<strong>199</strong>6<br />

e DJ de 17-5-2002, Rel. Min. Carlos Velloso, decidiu que, na forma do art. 169, § 1º, da<br />

Lei 8.112/90, o decreto de demissão, fora do prazo legal, não implica nulidade do<br />

processo.<br />

Afasto, portanto, esses argumentos como causa de nulidade do ato impugnado.<br />

3. Quanto aos alegados vícios do procedimento administrativo, examino primeiro<br />

o que diz respeito às Portarias de nomeação da Comissão de Inquérito 209, de 9 de<br />

setembro de <strong>199</strong>1, e 217, de 23 de setembro de <strong>199</strong>1 (fls. 38-39 e 90 e 92).<br />

A autoridade que teve ciência da irregularidade baixou duas portarias, nos termos<br />

do disposto no art. 143 da Lei 8.112, de 11 de dezembro de <strong>199</strong>0. A segunda portaria<br />

tornou sem efeito a primeira, com o propósito de substituir um dos membros da<br />

Comissão de Inquérito.<br />

Tem o seguinte teor a Portaria 217, de 23 de setembro de <strong>199</strong>1:<br />

“Tornar sem efeito a Portaria n. 209, de 09.09.91, para designar, pela<br />

presente, nos termos dos artigos 148 e 149, da mesma Lei, os Auditores Fiscais do<br />

Tesouro Nacional, Zuza Gomes Barbosa, matrícula n. 2.418.003-3 e Luiz Gonzaga<br />

de Castro, matrícula n. 2.305.518-9 e a Datilógrafa Valéria Espinha de Lemos,<br />

matrícula n. 2.012.051-4, para sob a presidência do primeiro comporem a<br />

Comissão de Inquérito Administrativo que deverá apurar as irregularidades<br />

apontadas no Ofício n. 01/061/91, do Delegado da Receita Federal de Pelotas/RS<br />

e que deu origem ao Processo n. 11040.000875/91-62.” (Fl. 92)<br />

Verifico que o Ofício 01-061/91, a que se refere a portaria, na verdade, é o de<br />

número 01/161/91. Houve, portanto, erro de datilografia com relação ao número do<br />

ofício, aliás, corrigido a caneta na primeira portaria. Tal erro datilográfico, a meu ver,<br />

não tem o condão de anular todo o processo, até porque, pelo seu teor, o referido<br />

documento é perfeitamente compreensível quanto a seu exato conteúdo. O fato de a<br />

portaria não conter o nome do impetrante ou não descrever o fato delituoso não a<br />

invalida, já que esse não é requisito previsto na Lei 8.112/90 para portaria de simples<br />

abertura de sindicância. Não é o caso de aplicação das mesmas formalidades previstas<br />

na legislação processual penal relativa à denúncia. Ademais, o nome do impetrante e


648<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

a descrição sucinta dos fatos constam do ofício ao qual se referiu a portaria, o que é<br />

suficiente para identificar as razões de sua instauração e o objeto da apuração.<br />

Esse o teor, no que interessa, do Ofício 01/161/91, do Delegado da Receita Federal<br />

em Pelotas ao Superintendente Regional da Receita na 10ª Região Fiscal:<br />

“Comunico a V.Sa. que por volta das 17:30 horas, sob a acusação de<br />

corrupção, foi preso em flagrante o AFTN Jair Santos Neves depois de ter recebido<br />

do proprietário de uma ótica local a quantia de Cr$ 100.000,00 em troca da<br />

promessa de não lançamento de multa do IPI.” (Fl. 89)<br />

Não considero, portanto, inválida a portaria, eis que o seu teor atendeu o que<br />

dispõem os arts. 143, 148 e 149 da Lei 8.112/90.<br />

4. No que diz respeito à alegação de irregularidade da notificação entregue à<br />

companheira do impetrante, e não a ele pessoalmente, assim como de violação ao<br />

direito à ampla defesa, também não vejo motivo para nulidade do processo<br />

administrativo. A não-entrega pessoal da notificação decorreu da ausência do<br />

impetrante, alegadamente em viagem, conforme documento juntado aos autos, à fl.<br />

94. Por outro lado, e mais importante, verifico que o impetrante exerceu atuação<br />

efetiva na fase de inquérito administrativo, como dispõem os arts. 153, 155 e seguintes<br />

da Lei 8.112, de 11 de dezembro de <strong>199</strong>0. Por intermédio de seu advogado pediu e<br />

obteve vista dos autos (fls. 173 e 226), formulou quesitos (fl. 196), indicou<br />

testemunhas (fls. 175 e 208), requereu prorrogação de prazo e apresentou defesa (fls.<br />

228 e 241). O depoimento pessoal (fls. 205/206) foi prestado na presença de<br />

advogado. Enfim, o princípio da ampla defesa foi exercitado, superada qualquer falha<br />

em sua intimação pessoal.<br />

5. Já as questões relacionadas à não-valoração do laudo médico psiquiátrico e às<br />

diferenças de assinaturas do Sr. Presidente da República não são passíveis de serem<br />

apreciadas em mandado de segurança, pois, por sua natureza, exigem comprovação<br />

extensa, o que não tem cabida no rito adotado.<br />

Indefiro a segurança.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

MS 22.373/DF — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Impetrante: Jair Santos Neves<br />

(Advogados: Plinio de Oliveira Correa e Paulo Brossard de Souza Pinto). Impetrado:<br />

Presidente da República.<br />

Decisão: Após o voto da Ministra Ellen Gracie (Relatora), indeferindo a segurança,<br />

pediu vista dos autos o Ministro Eros Grau. Ausente, justificadamente, o Ministro Carlos<br />

Velloso. Falou pelo impetrante o Dr. Antônio Ernani Pinto da Silva Filho. Presidência<br />

do Ministro Nelson Jobim.<br />

Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,<br />

Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr. Haroldo<br />

Ferraz da Nóbrega.<br />

Brasília, 30 de junho de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 649<br />

VOTO (Vista)<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Trata-se de mandado de segurança impetrado por Jair<br />

Santos Neves contra ato do Presidente da República. O impetrante foi demitido do cargo<br />

de Auditor Fiscal do Tesouro Nacional – AFTN, por dele se valer para lograr proveito<br />

pessoal, em detrimento da dignidade da função pública [art. 117, IX, c/c o art. 132, XIII,<br />

da Lei n. 8.112/90].<br />

2. Alega a existência de uma série de irregularidades no processo administrativo<br />

disciplinar, como a inépcia da notificação inicial, deficiência na descrição dos fatos<br />

ilícitos na portaria instauradora, intempestividade do julgamento e a existência de<br />

prova ilícita consubstanciada em flagrante preparado.<br />

3. Na sessão de 30-6-2005, a eminente Relatora, Ministra Ellen Gracie, denegou a<br />

segurança, afastando os supostos vícios na condução do processo administrativo.<br />

Considerou ter inexistido flagrante preparado.<br />

4. O impetrante sustenta a nulidade ab initio do processo administrativo disciplinar<br />

que levou à sua demissão. Afirma que a Portaria n. 217/91, que substituiu a Portaria n.<br />

209/91, designando nova comissão de inquérito, não aponta a prática de qualquer<br />

infração administrativa disciplinar ou ilícito penal, limitando-se a determinar a apuração<br />

de irregularidades apontadas em ofício encaminhado pelo Delegado da Receita Federal de<br />

Pelotas/RS ao Superintendente da Receita Federal na 10ª Região Fiscal. Assevera, no<br />

entanto, que o ofício mencionado diz respeito a situação em relação à qual o impetrante<br />

é inteiramente estranho.<br />

5. O ato que deu início ao procedimento administrativo, embora não tenha descrito<br />

os fatos a serem apurados, reporta documento que elucida o teor da acusação. Trata-se de<br />

uma solicitação do Delegado da Receita Federal, no sentido de que fosse constituída<br />

comissão de inquérito a fim de apurar a circunstância de o impetrante ter recebido “a<br />

quantia de Cr$ 100.000,00 em troca da promessa de não lançamento de multa do IPI” [fl.<br />

89]. As alegações do impetrante, nesse ponto, são absolutamente improcedentes. A<br />

acusação foi suficientemente descrita, não havendo qualquer ofensa ao art. 144 da Lei n.<br />

8.112/90.<br />

6. A indicação equivocada da numeração do ofício citado na portaria que deu<br />

início ao processo administrativo constitui mero erro de datilografia, conforme destacou<br />

a Ministra Ellen Gracie. A correção a caneta do equívoco é perfeitamente válida, uma<br />

vez que permitiu a exata compreensão do ato.<br />

7. O impetrante alega também que não foi devidamente informado da instauração<br />

do processo administrativo, uma vez que a notificação foi entregue a sua companheira.<br />

Eventual vício, no entanto, restou convalidado com o comparecimento espontâneo do<br />

impetrante [art. 26, § 5º, da Lei n. 9.784/99 1 ].<br />

8. Conforme destacou o Ministra Ellen Gracie, o impetrante constituiu advogado<br />

e, por meio deste, “pediu e obteve vista dos autos [fls. 173 e 226], formulou quesitos [fl.<br />

1 § 5º As intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais, mas o<br />

comparecimento do administrado supre sua falta ou irregularidade.


650<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

196], indicou testemunhas [fls. 175 e 208], requereu prorrogação de prazo e apresentou<br />

defesa [fls. 228 e 241]”, além de prestar depoimento pessoal [fls. 205/206].<br />

9. O impetrante afirma, ainda, que embora a comissão de inquérito tenha concluído<br />

seus trabalhos em 2-12-<strong>199</strong>1, o processo somente foi julgado em 5-6-<strong>199</strong>5, extrapolando<br />

o prazo de vinte dias previsto no art. 167 da Lei n. 8.112/90, o que tornaria o ato decisório<br />

ineficaz. Essa alegação igualmente não tem fundamento. O prazo referido é impróprio,<br />

assim como os prazos fixados no Código de Processo Civil para o magistrado praticar atos<br />

de sua competência, a exemplo do art. 189. Sua inobservância não vicia o ato, desde que<br />

observados os prazos prescricionais.<br />

10. É insubsistente a alegação de que os trabalhos investigatórios seguiram à<br />

revelia do impetrante após o relatório da comissão, uma vez que inexistem nos autos<br />

documentos que comprovem essas afirmações.<br />

11. Igualmente insubsistente é a alegação de que foi desconsiderado pela<br />

comissão laudo psiquiátrico apresentado pelo próprio impetrante, recomendando-lhe<br />

tratamento psicanalítico. A comissão, após a apresentação desse laudo, encaminhou o<br />

impetrante a perícia médica. O exame foi realizado por uma junta composta de três<br />

médicos [fls. 279/281], o que desmente a afirmação de que o impetrante teria sido<br />

examinado por uma única profissional.<br />

12. Por fim, o impetrante sustenta que a sua demissão tem como base prova ilícita,<br />

consusbtanciada em flagrante preparado envolvendo o Delegado da Receita Federal, o<br />

Delegado da Polícia Federal, dois agentes policiais federais e o empresário a quem o<br />

impetrante teria supostamente solicitado vantagem indevida.<br />

13. O impetrante, entretanto, não apresenta, na inicial, um único argumento que<br />

corrobore suas alegações, limitando-se a citar uma série de excertos doutrinários e<br />

jurisprudenciais sobre provas ilícitas.<br />

14. Em novas alegações, insiste em atribuir a um comerciante — testemunha do<br />

processo administrativo disciplinar — a prática de ilícitos penais e tributários.<br />

15. Sustenta, sem apresentar qualquer prova, a existência de uma trama entre<br />

auditores fiscais, um Delegado da Receita Federal, policiais federais e comerciantes para<br />

incriminá-lo. Por outro lado, pouco acrescenta no sentido de ilidir a acusação de que<br />

teria recebido dinheiro em troca da promessa de não proceder à autuação fiscal — fato<br />

que levou a sua demissão.<br />

16. A comprovação dessas alegações, no entanto, demandaria dilação probatória,<br />

incompatível com o rito mandamental, conforme jurisprudência desta Corte [AgR-MS<br />

n. 23.219, por mim relatado, DJ de 19-8-2005].<br />

Acompanho integralmente o voto proferido pela Relatora, Ministra Ellen Gracie,<br />

para denegar a segurança.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhora Presidente, no caso, a citação, a ciência do<br />

processo administrativo se realizou na pessoa da Senhora Maria do Carmo. Agora,<br />

segundo o voto proferido pelo Ministro Eros Grau, houve o comparecimento do<br />

impetrante que, inclusive, credenciou advogado.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 651<br />

Segue que há uma articulação de nulidade na comunicação dos atos da Comissão.<br />

E, aí, anotei, quando do início do julgamento, o que creio sustentado da tribuna ou,<br />

então, contido no memorial, a respeito de audição de testemunha sem a ciência do<br />

impetrante e, também, do respectivo advogado. Esse dado, para mim, surge com<br />

importância maior, porquanto, a rigor, deveria haver a intimação.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Realmente não apurei isso. Fiz uma análise detida<br />

porque havia uma série de argumentos. Todos me pareceram — inclusive esse —<br />

injustificados, sem fundamento.<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie (Presidente e Relatora): Ministro Marco Aurélio,<br />

na assentada anterior, em que o feito veio a julgamento, prestei ao Plenário um<br />

esclarecimento, que agora renovo. É o fato de o mesmo impetrante ter sido submetido<br />

à ação penal e condenado pelos mesmos fatos.<br />

A pena foi julgada extinta, nos termos do artigo 1<strong>07</strong>, inciso IV, combinado com os<br />

artigos 109, V, e 110 do Código Penal, em face de ter-se verificado a prescrição da pena<br />

aplicada, ou seja, quanto aos fatos propriamente, eles foram também apurados na esfera<br />

criminal e com resultado negativo ao impetrante.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: No caso, a pena de demissão decorreu do processo e<br />

nele foi formalizada. E o que se articula é o vício, nesse mesmo processo, no que ouvidas<br />

testemunhas sem a intimação do impetrante, do defensor; sem a intimação do defensor<br />

constituído.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Vossa Excelência me permite? Consultei uma anotação<br />

e verifiquei que esse argumento não consta da inicial. Foi mencionado na tribuna,<br />

conforme Vossa Excelência lembrou, mas não está na inicial.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não se apontou na inicial como causa de pedir do<br />

deferimento da segurança?<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Não está indicado como causa de pedir na inicial.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Se realmente houvesse articulação nesse sentido,<br />

debruçar-me-ia sobre a matéria visando a elucidá-la e a chegar a uma conclusão a<br />

respeito. Mas não houve, não se indicou como causa de pedir, repito, da impetração a<br />

nulidade do processo em decorrência da audição de testemunha sem a intimação do<br />

profissional da advocacia constituído.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Não constou da inicial. Acabo de confirmar isso agora.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Acompanho a Relatora, indeferindo a segurança.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Senhora Presidente, também acompanho o voto<br />

de Vossa Excelência, subscrevendo as observações contidas no voto do Ministro Marco<br />

Aurélio, dado que o fundamento que me impressionara, articulado no memorial — a falta<br />

de intimação da defesa para as audiências de instrução do processo administrativo —, não<br />

constitui causa de pedir.


652<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

EXTRATO DA ATA<br />

MS 22.373/DF — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Impetrante: Jair Santos Neves<br />

(Advogados: Plinio de Oliveira Correa e Paulo Brossard de Souza Pinto). Impetrado:<br />

Presidente da República.<br />

Decisão: Renovado o pedido de vista do Ministro Eros Grau, justificadamente, nos<br />

termos do § 1º do artigo 1º da Resolução n. 278, de 15 de dezembro de 2003. Presidência<br />

do Ministro Nelson Jobim. Plenário, 24-8-2005.<br />

Decisão: O Tribunal, à unanimidade, indeferiu a segurança, nos termos do voto da<br />

Relatora, Ministra Ellen Gracie, Presidente. Ausentes, justificadamente, o Ministro<br />

Celso de Mello e, neste julgamento, o Ministro Carlos Britto.<br />

Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa,<br />

Eros Grau e Ricardo Lewandowski. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio<br />

Fernando Barros e Silva de Souza.<br />

Brasília, 14 de junho de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

MANDADO DE SEGURANÇA 24.665 — DF<br />

Relator: O Sr. Ministro Marco Aurélio<br />

Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Cezar Peluso<br />

Impetrantes: SELVA – Serviços Rurais Ltda. e outros — Impetrado: Presidente da<br />

República — Litisconsortes passivos: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos<br />

Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e União<br />

Meio ambiente. Unidade de conservação. Estação ecológica. Ampliação<br />

dos limites originais na medida do acréscimo, mediante decreto do<br />

Presidente da República. Inadmissibilidade. Falta de estudos técnicos e<br />

de consulta pública. Requisitos prévios não satisfeitos. Nulidade do ato<br />

pronunciada. Ofensa a direito líquido e certo. Concessão do mandado de<br />

segurança. Inteligência do art. 66, §§ 2º e 6º, da Lei n. 9.985/2000. Votos<br />

vencidos. A ampliação dos limites de estação ecológica, sem alteração<br />

dos limites originais, exceto pelo acréscimo proposto, não pode ser feita<br />

sem observância dos requisitos prévios de estudos técnicos e consulta<br />

pública.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Nelson Jobim, na<br />

conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos,


R.T.J. — <strong>199</strong> 653<br />

conceder a segurança, vencidos os Ministros Marco Aurélio (Relator), Eros Grau,<br />

Joaquim Barbosa e Ellen Gracie. Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim.<br />

Reformulou o voto anteriormente proferido o Ministro Carlos Britto. Redigirá o<br />

acórdão o Ministro Cezar Peluso.<br />

Brasília, 1º de dezembro de 2004 — Cezar Peluso, Relator para acórdão.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ao proceder ao exame do pedido de concessão de<br />

medida acauteladora, assim resumi o caso:<br />

Este mandado de segurança é dirigido contra decreto de Sua Excelência o<br />

Senhor Presidente da República, de 5 de junho de 2003, publicado no Diário<br />

Oficial de 6 de junho de 2003, e que ampliou a Estação Ecológica do Taim no Rio<br />

Grande do Sul. A longa inicial de folhas 2 a 25 contém o histórico da espécie. Em<br />

21 de julho de 1986, editou-se o Decreto n. 92.963, por meio do qual foi criada a<br />

Estação Ecológica do Taim no Estado do Rio Grande do Sul, observada área<br />

declarada de utilidade pública mediante o Decreto n. 81.603, de 26 de abril de<br />

1978. Passados dezessete anos, veio à balha o decreto de que trata a espécie, a<br />

ampliar os limites da Estação. Antecedeu a esse decreto a EM n. 067/MMA/2003,<br />

de 27 de maio de 2003, a revelar que a ampliação da Estação foi em cerca de 77.540<br />

hectares. Na citada EM, houve “a previsão de que os custos referentes à implantação<br />

e regularização fundiária do projeto (...) seriam arcados pelo Ibama com<br />

recursos oriundos do empreendimento referente à futura Usina Hidrelétrica – UHE<br />

Foz do Chapecó, a título de compensação ambiental”. Parte da área ampliada “ou<br />

é de propriedade ou é arrendada pelos Impetrantes Selva, Flopal e Ourives Florestal”.<br />

Ter-se-ia o envolvimento no caso de contratos gerenciados pelo Banco do<br />

Brasil S.A., sendo que os projetos sob a administração da Flopal e Selva contam<br />

com a participação de outras empresas que aderiram aos empreendimentos, que se<br />

encontram implantados e aptos a iniciarem a fase produtiva, havendo recursos<br />

provenientes do Fiset com aprovação do Ibama. A participação dos sindicatos<br />

como impetrantes decorreria da defesa dos interesses dos associados, tendo em<br />

conta que “a permanência do decreto impugnado implicará (...) a paralisação de<br />

todos empreendimentos econômicos existentes na região”.<br />

Discorre-se ainda na inicial sobre o alcance da Lei n. 9.985/00, em regulamentação<br />

ao disposto no artigo 225, § 1º, incisos I, II, III e VII, da Constituição<br />

Federal, buscando-se comprovar a exigência de efetiva participação popular e de<br />

estudos quanto à necessidade de manter-se preservada a área. Conforme as razões<br />

expendidas, os estudos técnicos preliminares mostram-se precários, não havendo<br />

demonstrado base para a edição do decreto. Transcreve-se trecho do voto do<br />

Deputado Fernando Gabeira, Relator do projeto de lei que antecedeu a Lei n.<br />

9.985/00, bem como lição de Maurício Mercadante, veiculada na Revista de<br />

Direitos Difusos, volume 5, folha 570, fevereiro de 2001. Afirma-se a ocorrência de<br />

várias manifestações contrárias à Estação Ecológica do Taim, notada a relevância<br />

do documento elaborado pela Fiergs/Ciergs. Salienta-se que a ampliação resultara


654<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

de estudo realizado por um único biólogo, que se limitou a examinar as questões<br />

ambientais, sendo desprezados os aspectos socioeconômicos. Assevera-se a ausência<br />

de alusão às populações locais e aos efeitos que a medida ocasionará para a<br />

economia. Aponta-se que os estudos ficaram restritos, quase que de maneira total,<br />

à fauna existente. Ressalta-se que não há recursos para a efetivação da Estação<br />

Ecológica na extensão prevista. São tecidas considerações sobre as balizas do<br />

processo administrativo, sustentando-se, a seguir, o risco de manter-se com plena<br />

eficácia o quadro. Destaca-se que “a estação ecológica é um tipo de unidade de<br />

conservação de proteção integral”, a impedir “qualquer tipo de atividade humana<br />

no local, salvo autorização expressa no caso de pesquisa científica”. Consoante o<br />

alegado, os projetos de reflorestamento serão interrompidos com prejuízos para os<br />

recursos públicos advindos do Fiset — Banco do Brasil. Mencionam-se cifras,<br />

aludindo-se a R$ 215.000.000,00 envolvidos nos projetos, isso considerado o<br />

faturamento bruto. Aduz-se que a interrupção dos projetos acarretará a diminuição<br />

de aproximadamente 11.000 empregos, diretos, indiretos e a serem criados. Defende-se<br />

que, a prevalecer o decreto, há de se assegurar a indenização aos impetrantes,<br />

citando-se precedentes. Eis os pedidos formulados:<br />

a) a concessão de liminar que resulte na sustação dos efeitos do decreto de<br />

ampliação;<br />

b) a comunicação imediata da liminar à autoridade coatora, bem como ao<br />

Ibama, devendo este integrar a lide na condição de litisconsorte passivo necessário,<br />

intimando-se o autor do decreto para prestar informações;<br />

c) a prorrogação, ante a iminente consumação do prazo decadencial, da<br />

dilação que vise ao conhecimento deste mandado de segurança;<br />

d) a intimação do Ibama a apresentar, no prazo de dez dias, os seguintes<br />

documentos:<br />

I - cópia do Processo n. 02001.002644/98-16, referente aos estudos ambientais<br />

para a implantação da Usina Hidrelétrica de Foz do Chapecó;<br />

II - cópia do processo instaurado após expediente do Governador do Estado<br />

do Rio Grande do Sul, no qual encaminhado abaixo-assinado de cerca de 6.000<br />

pessoas contra a ampliação em debate;<br />

e) o deferimento da segurança, declarando-se alfim ilegal e nulo o decreto<br />

impugnado;<br />

f) sucessivamente — e não de forma alternada como consignado, pois não se<br />

trata de escolha pelos acionados, mas diz respeito à hipótese de não ser atendido o<br />

pedido anterior —, a sustação dos efeitos do decreto impugnado enquanto em<br />

andamento os projetos existentes em curso, determinando-se ao Ibama “que não<br />

crie, aos impetrantes, quanto aos empreendimentos econômicos já existentes,<br />

dificuldades, ou lhes façam exigências, ou lhes impeçam, ação, que não possam ser<br />

criadas, impostas ou recusadas como se as suas áreas rurais não tivessem sido<br />

alcançadas pelos novos limites da Estação Ecológica do Taim”;<br />

g) o reconhecimento, no caso de se entender legal o decreto, do “direito dos<br />

Impetrantes à indenização imediata referente ao desapossamento de suas proprie-


R.T.J. — <strong>199</strong> 655<br />

dades, indenização esta que deverá não só considerar o valor do imóvel,<br />

benfeitorias, florestas e lavouras, como também aquilo que os mesmos deixaram de<br />

ganhar (lucros cessantes) tendo em vista os projetos de reflorestamento e lavouras<br />

lá instalados e iniciados (RE 134.297-8), indenização esta que deve preceder à<br />

regulamentação fundiária, sendo, portanto, justa e prévia”.<br />

Com a inicial, vieram os documentos de folhas 26 a 579, estando à folha 580<br />

a guia comprobatória do recolhimento das custas. À folha 581 juntou-se documento<br />

do Sistema de Informações Banco do Brasil a revelar o recolhimento da importância<br />

de R$ 1,57 à conta única do Tesouro Nacional. A etiqueta do protocolo<br />

lançada à folha 2 demonstra haver ocorrido a impetração em 2 de outubro de<br />

2003, sendo este processo remetido a minha residência pelo Gabinete no dia<br />

subseqüente.<br />

Indeferida a liminar, vieram aos autos, em anexo à mensagem de folha 597 do<br />

Excelentíssimo Senhor Presidente da República, informações. Em síntese, aponta-se a<br />

irregularidade de representação processual quanto à Associação dos Arrozeiros de<br />

Santa Vitória do Palmar e a falta de interesse de agir dos sindicatos, ressaltando-se que,<br />

no instrumento de mandato, fez-se consignar que não se responsabilizariam por<br />

custas, honorários advocatícios e outras parcelas decorrentes da sucumbência. Nesse<br />

item, conclui-se que as empresas-impetrantes não precisam da adesão das demais<br />

impetrantes para o exercício da pretensão. Em passo seguinte, afirma-se ser dispensável<br />

a consulta prévia, de acordo com o § 4º do artigo 22 da Lei n. 9.985/2000, e<br />

salienta-se que os levantamentos efetuados na área revelaram a plantação de pinus<br />

como causadora de danos à estação ecológica. Os estudos prévios estariam a contrariar<br />

os interesses das impetrantes. Sob o ângulo do pedido sucessivo de indenização,<br />

argúi-se a incompatibilidade com aquele inicialmente formalizado. Na peça, remetese<br />

ao trabalho desenvolvido pelo Ministério do Meio Ambiente, subscrevendo-o. O<br />

pleito de reconsideração do ato mediante o qual foi indeferida a liminar não prosperou<br />

(folhas 645 e 679).<br />

A União trouxe aos autos a contestação de folhas 692 a 712, que pode ser assim<br />

sintetizada:<br />

a) o pedido é inadequado, ante a necessidade de contar-se com dilação probatória<br />

para o respectivo julgamento, sendo que as alegações da inicial não estão comprovadas,<br />

isso com relação à insuficiência dos estudos técnicos preliminares;<br />

b) os fatos articulados pelos impetrantes carecem de prova pré-constituída,<br />

especialmente no tocante à localização das áreas de que se dizem proprietários;<br />

c) o decreto impugnado guarda sintonia com o disposto no artigo 225, § 1º, incisos<br />

I, II, III e VII, da Constituição Federal, regulamentado pela Lei n. 9.985/2000;<br />

d) consoante preceitua o § 4º do artigo 22 da Lei n. 9.985/2000, dispensável é a<br />

consulta à população;<br />

e) o que decidido no Mandado de Segurança n. 24.184-5 não guarda sintonia com<br />

o caso dos autos, porquanto concernente à Chapada dos Veadeiros, unidade de<br />

conservação classificada como parque nacional;


656<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

f) os estudos preliminares feitos por técnicos do Ibama, via Diretoria de<br />

Ecossistemas e Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente, surgem suficientes,<br />

bastando a leitura da exposição de motivos e do teor respectivo.<br />

g) a partir do decreto, o poder público tem cinco anos, sob pena de decadência,<br />

para levantamento de verbas a serem utilizadas no pagamento das indenizações,<br />

podendo, inclusive, valer-se de fontes diversas do orçamento, conforme dispõe o artigo<br />

34 da Lei n. 9.985/2000;<br />

h) o pedido sucessivo de exploração da área contraria o próprio objetivo do<br />

decreto, no que voltado à preservação da estação ecológica;<br />

i) a aprovação, pelo Ibama, da atividade econômica fez-se em data anterior ao<br />

decreto, não se sobrepondo aos estudos que desaguaram no aumento da área;<br />

j) descabe, no bojo do mandado de segurança, definir o direito e a extensão de<br />

indenização, devendo os impetrantes valerem-se da via ordinária.<br />

A Procuradoria-Geral da República emitiu o parecer de folhas 747 a 750 pelo<br />

indeferimento da ordem, assim resumido:<br />

Mandado de segurança. Decreto presidencial que ampliou os limites da<br />

Estação Ecológica do Taim. Alegação de nulidade. Inexistência de consulta<br />

pública permitida pela Lei n. 9.985/00. Estudos técnicos cuja propriedade não se<br />

pode aferir em sede de mandado de segurança. Eventual direito à indenização que<br />

deve ser buscado em via própria. Parecer pelo indeferimento do pedido.<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator):<br />

Da Ilegitimidade Ativa<br />

Procede o que articulado pela União. O Sindicato Rural do Rio Grande, o Sindicato<br />

dos Trabalhadores das Indústrias da Construção e do Mobiliário do Rio Grande, o<br />

Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Rio Grande, a Associação dos Arrozeiros de<br />

Santa Vitória do Palmar — que sequer tem instrumento de mandato a credenciar os<br />

subscritores da inicial —, o Sindicato Rural de Santa Vitória do Palmar e a Associação<br />

Comercial e Industrial de Santa Vitória do Palmar não têm interesse jurídico no desfecho<br />

deste mandado de segurança. O interesse é indireto, levando em conta a exploração do<br />

imóvel pelas empresas que se dizem proprietárias/arrendatárias do imóvel, ou seja, por<br />

Selva Serviços Rurais Ltda. e Flopal – Florestadora Palmares Ltda. e Ourives Florestal<br />

Ltda. Aliás, bem apanhou a defesa a ressalva, pelos terceiros, constante dos instrumentos<br />

de mandatos. As procurações contêm cláusula excludente da responsabilidade por<br />

custas, honorários advocatícios e demais despesas decorrentes da sucumbência (folhas<br />

46, 70 e 91). Concluo pela ilegitimidade ativa dos nominados, declarando-os carecedores<br />

da ação proposta.


R.T.J. — <strong>199</strong> 657<br />

Mérito<br />

Nota-se, na Constituição Federal, preocupação maior com o que Leonardo Boff,<br />

em síntese perfeita, denomina de Mãe-Terra. O artigo 225 encerra o direito dos cidadãos<br />

ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, revelando-o de uso comum do povo e<br />

imprescindível à qualidade de vida. Mais do que isso, impõe ao poder público e à<br />

coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Daí<br />

os incisos que se seguem, voltados à atuação do poder público com o objetivo de<br />

preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais, promovendo o manejo das<br />

espécies e ecossistemas. O inciso III preceitua que, nas unidades da Federação, compete<br />

ao poder público definir espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente<br />

protegidos. Ante a previsão constitucional e as balizas da Lei n. 9.985/2000, mais<br />

precisamente da norma inserta no artigo 9º, vieram a ser ampliados, mediante decreto, os<br />

limites da Estação Ecológica do Taim nos Municípios do Rio Grande e Santa Vitória do<br />

Palmar, no Estado do Rio Grande do Sul. Conforme ressaltado nas informações e<br />

também na contestação da União, tudo foi precedido de levantamentos técnicos<br />

efetuados pelo Ibama. Como consignado no pronunciamento decorrente do pleito de<br />

concessão de liminar, cumpre observar os valores em jogo. De um lado, tem-se o<br />

individual, das empresas que atuam no campo econômico, em que o homem, no afã da<br />

busca do lucro, acaba prejudicando o grande todo e, portanto, acarretando a deterioração<br />

do meio ambiente, com prejuízos de áreas que somente são recuperáveis com a passagem<br />

de muitos anos; de outro, o da coletividade e, diria mesmo, das atuais e futuras gerações.<br />

Não bastasse a presunção de legitimidade dos atos administrativos e, portanto, do<br />

decreto expedido a partir de laudos técnicos, afigura-se impróprio discutir, no âmbito de<br />

mandado de segurança — a exigir sempre a prova pré-constituída —, a valia do que<br />

levantado pelos órgãos técnicos.<br />

Há de se ter presente que definir a abrangência do decreto, considerada quer a<br />

propriedade das impetrantes, quer áreas por elas arrendadas, pressupõe base probatória e<br />

levantamento geográfico, inviável na via do mandado de segurança.<br />

Quanto à consulta à população, atente-se para os parâmetros legais e, portanto, a<br />

dispensa, à luz da regra ínsita no § 4º do artigo 22 da Lei n. 9.985/2000:<br />

Art. 22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público.<br />

(...)<br />

§ 4º Na criação de Estação Ecológica ou Reserva biológica não é obrigatória<br />

a consulta de que trata o § 2º deste artigo.<br />

O parágrafo referido dispõe sobre a criação de unidade de conservação e aí, dada a<br />

distinção entre estação ecológica e reserva biológica, impõe-se a consulta pública.<br />

Não cabe a glosa do decreto em face de possível ausência de recursos para a<br />

instalação/ampliação da Estação Ecológica do Taim. Em princípio, o ato de preservar,<br />

proibindo-se a exploração econômica da área, não depende de gastos a serem incluídos<br />

no orçamento. Ademais, o poder público, quanto a medidas necessárias e que demandam<br />

despesas suplementares, conta com as fontes de recurso próprias e suplementares, não<br />

havendo preceito de lei que condicione a valia do ato de preservação da área a


658<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

existência prévia de previsão de recursos. Também não se mostra pertinente, na espécie,<br />

o argumento sobre a continuidade da exploração procedida pelas impetrantes. A<br />

alegação contraria o princípio lógico do terceiro excluído. Surge incompatível com o<br />

objetivo do decreto, isto é, a incolumidade do espaço destinado à estação ecológica.<br />

Inexiste, sob esse prisma, direito subjetivo a ser protegido. Por último, no tocante à<br />

problemática que motivou o pedido sucessivo de indenização, os danos sofridos pelas<br />

impetrantes em razão do ato do poder público hão de consubstanciar objeto de ação<br />

própria, não cabendo admiti-los e definir os respectivos parâmetros neste mandado de<br />

segurança.<br />

Ante o quadro, salientando, mais uma vez, os limites do mandado de segurança e<br />

os valores em jogo, indefiro a ordem.<br />

PEDIDO DE ESCLARECIMENTO<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Ministro Marco Aurélio, para explicitar —<br />

estou lendo a lei —, aqui, no caso, é uma ampliação. O artigo 22 da Lei n. 9.985/00 diz:<br />

“Art. 22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público.<br />

§ 1º (Vetado)<br />

§ 2º A criação de uma unidade de conservação deve ser precedida de estudos<br />

técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão<br />

e os limites mais adequados para a unidade, conforme se dispuser em regulamento.<br />

§ 3º No processo de consulta de que trata o § 2º, o Poder Público é obrigado<br />

a fornecer informações adequadas e inteligíveis à população local e a outras partes<br />

interessadas.<br />

§ 4º Na criação de Estação Ecológica ou Reserva Biológica não é obrigatória<br />

a consulta de que trata o § 2º deste artigo.”<br />

Ainda, no § 6º do mesmo artigo 22:<br />

“§ 6º A ampliação dos limites de uma unidade de conservação, sem<br />

modificação dos seus limites originais, exceto pelo acréscimo proposto” —<br />

teríamos uma expansão sem mexer nos limites originais, ou seja, uma mera<br />

ampliação, não um novo redesenho global — “pode ser feita por instrumento<br />

normativo do mesmo nível hierárquico do que criou a unidade, desde que<br />

obedecidos os procedimentos de consulta estabelecidos no § 2º deste artigo.”<br />

A pergunta é a seguinte: o § 4º do artigo 22 se aplica também no caso de ampliação<br />

de Estação Ecológica ou, neste caso, se exigem as cautelas?<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): No meu voto, parti para uma interpretação<br />

sistemática dos diversos dispositivos e assentei que, em se tratando de estação<br />

ecológica, quer no tocante à criação originária, quer relativamente ao aumento, não há<br />

obrigatoriedade da consulta prévia. Eu veria, até mesmo, certa incongruência em se<br />

dispensar essa consulta na criação da estação ecológica e, posteriormente, exigir-se a<br />

consulta na ampliação de limite. Distingui entre unidade de conservação stricto sensu,<br />

não lato sensu, e estação ecológica. Por isso não acionei o § 6º do artigo 22.


R.T.J. — <strong>199</strong> 659<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): A minha dificuldade é que a cautela na<br />

ampliação é maior do que na criação, inclusive nas terras indígenas via-se muito isto:<br />

cria-se a terra indígena para depois começar um processo de tentativa de ampliação<br />

sucessiva nas áreas indígenas. Então, sempre se teve na questão da ampliação uma maior<br />

cautela do que na criação, porque, depois de criado, tem-se áreas limítrofes à reserva que<br />

continuam em situação preservada no que diz respeito a sua exploração, não sujeitas à<br />

legislação específica. Depois, vem um problema de ampliação, daí porque tenderia a<br />

examinar o § 6º com mais atenção para dizer que:<br />

“§ 6º A ampliação dos limites de uma unidade de conservação” — aqui não<br />

se faz exceção — “sem modificação dos seus limites originais,” — corresponde a<br />

uma agregação de uma área sobre um limite original primitivo — “exceto pelo<br />

acréscimo proposto, pode ser feita por instrumento normativo do mesmo nível<br />

hierárquico — decreto — “do que criou a unidade, desde que obedecidos os<br />

procedimentos de consulta estabelecidos no § 2º deste artigo.”<br />

Aqui é explícito: desde que obedecidos os procedimentos de consulta. Quais são<br />

eles? Estão no § 2º: estudos técnicos e consulta pública. Estou com dificuldade.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Vamos admitir uma insuficiência na visão<br />

primeira quanto à área necessária à preservação e a posterior conclusão de que a área<br />

deve ser maior do que aquela imaginada antes. Aí, partir-se-ia para a submissão, até<br />

mesmo, dessa extensão à vontade das populações existentes no local?<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): A consulta pública não é condicionante,<br />

lembre-se daquele caso de consulta que tivemos aqui que não ficou claro que não é<br />

condicionante, é um instrumento para evitar exatamente o abuso no que diz respeito às<br />

ampliações.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Para aqueles que entendem que, na<br />

criação, é dispensável, mas que não o é na extensão, o caso sugere, realmente, a<br />

concessão da ordem, porque não houve a consulta, mas percebo a matéria de forma<br />

diversa.<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: V. Exa. me permite, Ministro Marco Aurélio? O<br />

precedente mencionado, que é da minha lavra, o Mandado de Segurança n. 24.184, dizia<br />

respeito não à Estação Ecológica, mas a Parque Nacional, que é uma categoria diversa<br />

para qual se exige, efetivamente, consulta para criação.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): A meu ver, a estação ecológica, pela<br />

própria natureza, prescinde, quanto à criação, quanto à extensão, quanto ao alcance, da<br />

manifestação popular.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Ministro Marco Aurélio, vamos ver a<br />

definição legal com relação à Estação Ecológica no artigo 9º:<br />

“Art. 9º A Estação Ecológica tem como objetivo a preservação da natureza e<br />

a realização de pesquisas científicas.”<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Pois é. Aquela consulta do § 2º é específica<br />

para a reserva. Não terá o legislador dado uma envergadura maior, dispensando,<br />

portanto, a consulta, quer na criação, quer na extensão à estação?


660<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Minha dificuldade é que há dispositivo<br />

expresso. Veja, está dividido em cinco categorias: Estação Ecológica, Reserva Biológica,<br />

Parque Nacional, Monumento Natural e Refúgio de Vida Silvestre.<br />

O artigo 9º define os objetivos da Estação Ecológica: a preservação da natureza e<br />

a realização de pesquisas científicas. O artigo 10 define a Reserva Biológica, que são as<br />

duas excluídas na criação da consulta.<br />

“Art. 10. A Reserva Biológica tem como objetivo a preservação integral da<br />

biota e demais atributos naturais existentes em seus limites, sem interferência<br />

humana direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas de<br />

recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para<br />

recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos<br />

ecológicos naturais.”<br />

Então, aqui tem um objetivo similar à da Estação Ecológica, uma vez que a<br />

primeira é para preservação do ambiente e a segunda para preservação de um ambiente<br />

específico, o que eles chamam de biota.<br />

“Art. 11. O Parque Nacional tem como objetivo básico a preservação de<br />

ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando<br />

a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação<br />

e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo<br />

ecológico.<br />

Art. 12. O Monumento Natural tem como objetivo básico preservar sítios<br />

naturais raros, singulares ou de grande beleza cênica.<br />

Art. 13. O Refúgio de Vida Silvestre tem como objetivo proteger ambientes<br />

naturais onde se asseguram condições para a existência ou reprodução de espécies<br />

ou comunidades da flora local e da fauna residente ou migratória.”<br />

Vejam que essas cinco categorias se aproximam, uma absorve a outra amplamente.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: É que as áreas particulares na área da Estação<br />

Ecológica, ao contrário das outras, são indenizáveis.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): São indenizáveis. As outras não, mas<br />

parece que são, Ministro.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: São desapropriáveis.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Na área indígena, não é indenizável.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: A área indígena não é.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Elas são desapropriáveis também.<br />

Confesso que estou em dúvida sobre a dispensabilidade ou não, tendo em vista o<br />

artigo 22, § 6º.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Sr. Presidente, não tenho dúvida. A interpretação, aí, tem<br />

que ser dada de modo a entender-se — até pelo princípio do paralelismo das formas — que<br />

ele é dispensado da consulta pública.<br />

Acompanho, integralmente, o Ministro Relator.


R.T.J. — <strong>199</strong> 661<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Sr. Presidente, como se trata, inequivocamente, de<br />

estação ecológica, o dispositivo é claríssimo e dispensa a consulta pública.<br />

Acompanho o Relator.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Sr. Presidente, entendo que, espaço, estação<br />

ecológica, tanto quanto o parque ecológico, tudo para a Constituição é locus territorial<br />

a ser especialmente protegido, como condição de efetividade ao direito ao meio<br />

ambiente ecologicamente equilibrado. Então, não me preocupo com a ampliação do<br />

parque ecológico, mas com a restrição do parque ecológico.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): V. Exa. dispensaria a consulta em<br />

qualquer hipótese?<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Não. Se fosse para restringir, eu me preocuparia. O<br />

caso é de ampliação, ou seja, de proteção ao direito que todos têm ao meio ambiente<br />

ecologicamente equilibrado.<br />

Isso me deixa tranqüilo para acompanhar o voto do eminente Relator.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sr. Presidente, peço vênia para conceder a ordem,<br />

a menos que lhe demos outra interpretação, ou declaremos inconstitucional o<br />

disposto no § 6º do art. 22, porque essa norma exige, expressamente, obediência aos<br />

procedimentos e condições estabelecidos no § 2º. Não vejo, pelo menos em<br />

princípio, nenhuma inconstitucionalidade, e é texto cuja clareza dispensaria outras<br />

indagações.<br />

Por que o legislador se preocupou em exigir, para efeito de ampliação, o que não<br />

exigiu para efeito de criação? Essa é uma pergunta que cabe em termos pré-jurídicos.<br />

Perante a norma, como opção político-legislativa, não vejo como não exigir o<br />

cumprimento desse requisito legal.<br />

Concedo a ordem.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sr. Presidente, aqui, não se trata apenas da<br />

valorização do bem “meio ambiente”, mas há regras de organização e procedimento que<br />

precisam ser observadas. Parece patente que, neste caso, não há a observância dessa regra<br />

que tem, com certeza, implicações várias no que diz respeito, por exemplo, ao próprio<br />

direito de propriedade.<br />

Conhecemos as questões da perspectiva da ampliação das chamadas “reservas<br />

indígenas” e, ali, de quando em vez, há impulsos outros que não são aqueles, necessariamente,<br />

de proteção à comunidade indígena. Típicos casos de desvio e, por isso, é preciso


662<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

ter cuidado. Acredito que um procedimento administrativo adequado certamente há de<br />

contribuir para os devidos esclarecimentos, para a devida iluminação nesses casos.<br />

Insisto na importância de enfatizar a idéia de um direito à organização e ao<br />

procedimento em matérias que roçam ou que afetam direitos individuais.<br />

Portanto, sem menoscabo, sem menosprezo à importância do que o meio ambiente<br />

assume nas nossas sociedades — o professor e mestre Canotilho, hoje, já fala em um<br />

estado de direito ecologicamente equilibrado, ou coisa do tipo, como característica do<br />

estado de direito —, é preciso que os valores dos direitos individuais sejam devidamente<br />

contemplados.<br />

Por isso, acompanho o eminente Ministro Cezar Peluso.<br />

VOTO<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Sr. Presidente, com a devida vênia, faço leitura do § 6º<br />

do art. 22 da Lei n. 9.985/2000 como o dispositivo genérico que serve para todas as<br />

unidades de conservação.<br />

Dispositivo específico, lex specialis, temos no § 4º, que excepciona, expressamente,<br />

a criação de estação ecológica ou de reserva biológica da obrigatoriedade dessa consulta<br />

prévia.<br />

Para reforço dessa minha argumentação, vejo como absolutamente lógico que não<br />

se pudesse ampliar uma reserva ecológica ou uma estação biológica sem consulta e se<br />

pudesse criar outra, imediatamente contígua, sem essa consulta.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Mas aí estaríamos diante, exatamente, do caso de<br />

desvio administrativo flagrante e, para isso, temos remédio, desde o velho Seabra Fagundes.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Agora, qual seria o objetivo dessa consulta<br />

se, na criação, não se exige a mesma consulta? Seria apenas para atender a um aspecto<br />

formal?<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Por isso, entendo como norma especial essa do § 4º,<br />

e não a genérica do § 6º. O § 6º aplica-se a todas as outras unidades de conservação.<br />

V. Exa. se encarregou de relacioná-las todas.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): O § 4º diz respeito à criação de Estação<br />

Ecológica ou Reserva Biológica e o § 6º diz respeito à ampliação dos limites de uma<br />

unidade de conservação, com agregação.<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Mas ampliação, sem agregação, até tenho dificuldade<br />

de ler esse dispositivo.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Só altera a primeira, porque, aí, é diminuição,<br />

logo, sujeita à lei.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): São duas hipóteses distintas.<br />

Ministra Ellen Gracie, eu teria uma ampliação, agregando uma área externa aos<br />

limites já existentes. Aí é por decreto. Agora, pode ocorrer que eu faça uma agregação e,<br />

ao mesmo tempo, mude os limites, sem reduzir a área, mas estou alterando os limites. É<br />

preciso de lei.


R.T.J. — <strong>199</strong> 663<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Só seria possível com lei.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Somente.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Sempre se exigiu lei em qualquer hipótese,<br />

uma vez instituída a estação, para a redução daquela área, com modificação de<br />

limites.<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Mas, aqui, não estamos cuidando de redução;<br />

estamos cuidando de ampliação, mantidos todos os limites originais, salvo aqueles nos<br />

quais haverá a ampliação.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): A questão é saber: a ampliação<br />

prescinde de consulta pública? É essa a pergunta.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Senhor Presidente, há um outro detalhe,<br />

apenas para ressaltar: conta-se com duas expressões no § 6º em questão, que se refere à<br />

ampliação dos limites de uma unidade de conservação, e tem a cláusula de que venha<br />

ocorrer sem modificação de seus limites originais.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Aí, é possível por decreto. Se fizer<br />

modificação dos limites originais, tem que ser por lei.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Eu sei. Quer me parecer que essa primeira<br />

cláusula versa, em si — e se teria a consulta quanto à unidade de conservação —, o<br />

conteúdo da própria unidade, porque, relativamente aos limites, tem-se a exclusão.<br />

Como o § 3º refere-se apenas à unidade de conservação — vejo algo mais restrito, de um<br />

significado menor do que estação ecológica — e o § 4º, excludente da consulta, alude à<br />

estação ecológica, tendo, na interpretação que se diz sistemática e teleológica, a assentar<br />

que o § 6º só diz respeito às unidades de conservação, senão estaríamos diante — como<br />

ressaltado pelo Ministro Cezar Peluso, creio que precisamos levar em conta, sem assumir<br />

a posição de legisladores, esse conflito — de uma incongruência.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Não diria incongruência porque o<br />

problema da ampliação é mais grave que o da criação. É mais agudo esse problema da<br />

criação porque, criada que seja uma reserva ecológica, inclusive isso se aplica ao<br />

indígena, a tendência dos setores que defendem aquilo é sempre de ampliação. Então,<br />

por haver uma situação de preservação, o conflito se agrega muito mais.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Exatamente, que não se avance nessas áreas sem<br />

prévia consulta.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Mas o conflito está justamente aí, porque,<br />

na criação originária, pode ocorrer extravasamento, até a configuração de um abuso. Por<br />

que apenas se colou como condição — tenho que dar uma concretude a essa consulta —<br />

nas ampliações? Geralmente, quando já criada a estação e se parte para a extensão,<br />

presume-se, considerada a ordem natural das coisas, a necessidade.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: O grande problema jurídico não é ampliar, mas<br />

restringir. Porque ampliar reforça o direito subjetivo ao meio ambiente ecologicamente<br />

equilibrado; restringir é o contrário.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: O grande problema jurídico é interpretar o § 6º, não é<br />

perquirir todas razões pelas quais o legislador o editou.


664<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Mas só interpretamos sabendo a finalidade.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sim, mas apenas tentando encontrar a explicação<br />

racional da norma.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: A finalidade da Constituição é robustecer os direitos<br />

ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Essa que é a finalidade. Quando falamos<br />

de parques e estações ecológicas, estamos tratando de espaços territoriais.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): A tensão dos problemas dos parques é<br />

um juízo de valor que se conflita com determinados tipos de valores em termos do que<br />

significa — digamos — o limite de extensão. Lembro-me que, nos casos, por exemplo,<br />

de demarcação de terras indígenas — hipótese curiosa —, os trabalhos chamados<br />

laudos antropológicos eram, ao fim e ao cabo, uma espécie de tese de mestrado<br />

descritiva da história daquela tribo indígena, sem nada a ver com o problema da<br />

extensão. Chegava-se a um ponto em que se estabelecia que a extensão era “x”. Foi o<br />

que deu origem, inclusive, à necessidade de um contraditório complicado, que<br />

ocorreu em <strong>199</strong>6.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): O preceito gera perplexidades, porque<br />

cogita de uma consulta, mas impede, relativamente ao alvo dessa consulta, a<br />

modificação de limites. Aqui o que se tem é a modificação de limites geográficos.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Não, aqui o texto não é assim.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: A norma estabelece uma cautela mínima para o caso<br />

em que a ampliação pode ser autorizada por decreto, porque, nos outros casos, exige lei.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Não há o trato, não há especificidade<br />

quanto ao instrumental. Quero dizer que o § 6º talvez esteja mal redigido, não sei, mas<br />

ele é incongruente e por quê? Porque se tem nele o seguinte:<br />

“Art. 22. (...)<br />

§ 6º A ampliação dos limites” — cogita-se da ampliação — “de uma unidade<br />

de conservação,” — aí vem a vírgula e a ressalva — “sem modificação dos seus<br />

limites originais, exceto pelo acréscimo proposto,” — aqui tem a ressalva — “pode<br />

ser feita por instrumento normativo do mesmo nível hierárquico do que criou a<br />

unidade, desde que obedecidos os procedimentos de consulta estabelecidos no §<br />

2º deste artigo.”<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Nos limites, porque, senão, haveria um<br />

jogo. Você exclui um pedaço e inclui o outro. Aqui, inclusive, os limites somente podem<br />

ser alterados por lei.<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Sr. Presidente, com essas razões que expus,<br />

acompanho, integralmente, o voto do Ministro Relator.<br />

PEDIDO DE VISTA<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Sr. Presidente, perguntaria ao eminente Ministro<br />

Relator se houve acréscimo.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Houve, territorial.


R.T.J. — <strong>199</strong> 665<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: E como decidiríamos: exceto pelo acréscimo<br />

proposto?<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Aí visa a legitimar o instrumento.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): São duas coisas distintas, Ministro.<br />

Temos os limites da área no início: ao norte tem uma confrontação xy. Então, veja bem:<br />

se o acréscimo, a ampliação, não altera os limites anteriores, pode ser feito por decreto.<br />

Não altera no sentido dos limites que vai pelo rio tal, marco tal, etc. Este basta porque é<br />

um mero acréscimo ao estado anterior, a um bloco anterior, claro que, teoricamente, em<br />

princípio, vai alterar os limites onde foi acrescido, no sentido de que irá incluir, nos<br />

limites anteriores, uma amplidão maior. Agora, se este acréscimo importar numa<br />

alteração dos limites anteriores, imagine a seguinte hipótese: a área tem dez mil hectares,<br />

foram acrescentados mais cinco mil hectares, passou para quinze mil, ao acrescentar<br />

resolve mudar na parte sul do limite anterior onde não foi objeto de acréscimo, aí tem<br />

que ser por lei, logo diminui o primitivo limite.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Logo, diminuiu.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Não, Ministro. Não necessariamente<br />

diminuiu, pode-se meramente mexer.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: A primeira é uma criação ad corpus e não ad<br />

mensuram a voltarmos ao nosso curso de Direito.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Aí é que surge o problema. O acréscimo<br />

deve ser só por lei.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Aquela área identificada, infungível, torna-se<br />

irredutível, salvo por lei. Daí por que se permite, por decreto, ampliação que seja apenas<br />

uma agregação de uma área nova àquela mesma.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Amplia o corpus primitivo, mas não<br />

altera o corpus primitivo.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Eu disse que, salvo nessa hipótese, é possível, por isso<br />

é que se exige decreto apenas nesse caso. Na outra, não, porque é mais grave e precisa de<br />

lei.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Sr. Presidente, tenho dificuldade em interpretar o § 6º<br />

do art. 22, de maneira que vou pedir vista dos autos.<br />

ESCLARECIMENTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Senhor Presidente, há um detalhe ligado<br />

às causas de pedir do próprio mandado de segurança — a Procuradoria o ressalta no<br />

parecer —, que talvez devêssemos levar em conta. Ele está consignado à folha 7 dos<br />

autos:<br />

Também a Lei 9.985/00 condiciona a criação de uma unidade de conservação,<br />

gênero do qual a estação ecológica é uma espécie, à realização de estudos técnicos e<br />

de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os limites<br />

mais adequados para a unidade (art. 22, § 2º). Tal exigência se aplica não só à criação


666<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

da unidade de conservação, mas, também, à ampliação dos limites daquela já<br />

existente (art. 22, § 6º). E a exigência do art. 22, § 2º, quanto à consulta pública, não<br />

é obrigatória nos casos das estações ecológicas (art. 22, § 4º).<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Mas a discussão refere-se ao § 4º do art. 22:<br />

“§ 4º Na criação de Estação Ecológica ou Reserva biológica não é<br />

obrigatória a consulta de que trata o § 2º deste artigo.”<br />

Não é obrigatória, mas facultada.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Estou referindo-me ao enfoque da<br />

Procuradoria-Geral da República de que não haveria causa de pedir ligada à falta de<br />

consulta. Não sei se a peça é tão expressa, o trecho está truncado.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

MS 24.665/DF — Relator: Ministro Marco Aurélio. Impetrantes: SELVA – Serviços<br />

Rurais Ltda. e outro (Advogados: Anna Maria da Trindade dos Reis e outro). Impetrado:<br />

Presidente da República (Advogado: Advogado-Geral da União). Litisconsortes passivos:<br />

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e<br />

União (Advogado: Advogado-Geral da União).<br />

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, decidiu pela falta de legitimação para a<br />

causa do Sindicato Rural do Rio Grande, do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias<br />

da Construção e do Mobiliário do Rio Grande, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais<br />

de Rio Grande, da Associação dos Arrozeiros de Santa Vitória do Palmar, do Sindicato<br />

Rural de Santa Vitória do Palmar e da Associação Comercial e Industrial de Santa Vitória<br />

do Palmar. Prosseguindo no julgamento, após o voto do Ministro Marco Aurélio,<br />

Relator, que negava a segurança, no que foi acompanhado pelos Ministros Eros Grau,<br />

Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Ellen Gracie, e dos votos dos Ministros Cezar Peluso e<br />

Gilmar Mendes, que concediam a segurança, pediu vista dos autos o Ministro Carlos<br />

Velloso. Falaram, pelos impetrantes, a Dra. Anna Maria da Trindade dos Reis; pela<br />

Advocacia-Geral da União, o Dr. Álvaro Augusto Ribeiro Costa, Advogado-Geral da<br />

União; e, pelo Ministério Público Federal, o Dr. Cláudio Lemos Fonteles, Procurador-<br />

Geral da República. Presidência do Ministro Nelson Jobim.<br />

Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes,<br />

Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da<br />

República, Dr. Cláudio Lemos Fonteles.<br />

Brasília, 8 de setembro de 2004 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

VOTO (Vista)<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Trata-se de mandado de segurança, com pedido de<br />

liminar, fundado nos arts. 5º, XXV, e 8º, III, da Constituição Federal e na Lei 1.533/51,<br />

impetrado por SELVA – Serviços Rurais Ltda. e outros contra ato do Presidente da<br />

República, consubstanciado na edição do Decreto s/n, de 5 de junho de 2003, que


R.T.J. — <strong>199</strong> 667<br />

ampliou os limites da Estação Ecológica do Taim, nos Municípios de Rio Grande e<br />

Santa Vitória do Palmar, no Estado do Rio Grande do Sul (fls. 169-170), estação<br />

ecológica essa criada pelo Decreto 92.963, de 21 de julho de 1986 (fls. 166-168).<br />

Sustentam os impetrantes, em síntese, o seguinte:<br />

a) existência de empreendimentos totalmente implantados e aptos a iniciarem a<br />

fase produtiva em parte da área em questão, que receberam recursos do Fundo de<br />

Investimentos Setoriais – FISET, gerenciado pelo Banco do Brasil S.A., com aprovação<br />

expressa do Ibama;<br />

b) ilegalidade do Decreto s/n, de 5 de junho de 2003, ante a necessidade de<br />

participação popular, nos termos do art. 5º, II, III, IV, VIII, IX e X, da Lei 9.985/2000,<br />

que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, bem<br />

como de realização de estudos técnicos e de consulta pública que permitam<br />

identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a ampliação<br />

dos limites da unidade de conservação, nos termos do art. 22, § 2º e § 6º, da Lei 9.985/<br />

2000, o que não teria ocorrido, sendo os estudos técnicos preliminares realizados<br />

precários e limitados aos aspectos ambientais, certo que “se a consulta pública não é<br />

exigida, ela também não é proibida. E mais que não proibida, ela é recomendada pela<br />

legislação em vigor” (fl. 13);<br />

c) as restrições ao uso decorrentes da ampliação da área em questão levarão à<br />

falência as principais atividades econômicas e de desenvolvimento social sustentável<br />

dos municípios atingidos e dos municípios vizinhos;<br />

d) inexistência de recursos necessários à efetivação da referida ampliação,<br />

dado que a Usina Hidrelétrica de Foz do Chapecó se encontra em fase inicial;<br />

e) existência de precedente do Supremo Tribunal Federal, no sentido da<br />

ilegalidade do decreto que ampliou o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, tendo<br />

em vista a ausência de consulta pública (MS 24.184/DF, Plenário, Ministra Ellen<br />

Gracie, DJ de 27-2-2004);<br />

f) necessidade de justa e prévia indenização das propriedades, caso seja<br />

considerado legal o Decreto s/n, de 5 de junho de 2003.<br />

Requisitadas informações (fl. 595), o Presidente da República as prestou (fls.<br />

597-603), reportando-se àquelas prestadas pela Consultoria Jurídica do Ministério do<br />

Meio Ambiente, em que se alega, em síntese, o seguinte:<br />

a) ser dispensável a consulta pública ora reclamada, ante o que dispõe o art. 22,<br />

§ 4º, da Lei 9.985/2000;<br />

b) a ampliação da Estação Ecológica do Taim não causa danos à economia da<br />

região, mas sim às plantações de pinus, espécie vegetal utilizada pelas três primeiras<br />

impetrantes para o reflorestamento da região, certo que as plantações dessa espécie<br />

vegetal são altamente prejudiciais à própria estação ecológica;<br />

c) inexistência de direito à indenização requerida.<br />

A Procuradoria-Geral da República, em parecer lavrado pelo ilustre Procurador-<br />

Geral da República em exercício, Dr. Antônio Fernando Barros e Silva de Souza,<br />

opinou pelo indeferimento do writ (fls. 747-750).


668<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Na Sessão de 8-9-2004, o Tribunal, por unanimidade, decidiu, preliminarmente,<br />

pela falta de legitimidade para a causa do Sindicato Rural do Rio Grande, do<br />

Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias da Construção e do Mobiliário do Rio<br />

Grande, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Grande, da Associação dos<br />

Arrozeiros de Santa Vitória do Palmar, do Sindicato Rural de Santa Vitória do<br />

Palmar e da Associação Comercial e Industrial de Santa Vitória do Palmar. Quanto<br />

ao mérito, o eminente Relator, Ministro Marco Aurélio, indeferiu a segurança, no<br />

que foi acompanhado pelos eminentes Ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa,<br />

Carlos Britto e Ellen Gracie, tendo os eminentes Ministros Cezar Peluso e Gilmar<br />

Mendes votado no sentido da concessão da segurança (certidão de fl. 761).<br />

Pedi vista dos autos, que me foram encaminhados em 16-11-2004. Em 23 do<br />

mesmo mês, mandei-os à Mesa, a fim de retomarmos o julgamento do writ.<br />

Passo a votar.<br />

O eminente Relator, no que toca à consulta à população, entendeu ser essa<br />

dispensada, tendo em vista o disposto no art. 22, § 4º, da Lei 9.985, de 2000:<br />

“Art. 22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público:<br />

(...)<br />

§ 4º. Na criação de Estação Ecológica ou Reserva Biológica não é<br />

obrigatória a consulta de que trata o § 2º deste artigo.”<br />

Os Ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Ellen Gracie acompanharam<br />

o entendimento do Relator.<br />

Já os Ministros Cezar Peluso e Gilmar Mendes divergiram. O Ministro Cezar<br />

Peluso deixou expresso que o § 6º do art. 22 exige obediência aos procedimentos e<br />

condições estabelecidos no § 2º. Concedeu, em conseqüência, a ordem.<br />

O Ministro Gilmar Mendes, conforme foi dito, acompanhou o voto do Ministro<br />

Peluso.<br />

A questão a saber, portanto, é se o decreto de 5-6-2003, que aplicou os limites da<br />

Estação Ecológica do Taim, nos Municípios de Rio Grande e Santa Vitória do Palmar,<br />

no Rio Grande do Sul, demandaria consulta prévia à população.<br />

A Lei 9.985, de 18-7-2000, regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII, da<br />

Constituição Federal e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.<br />

O art. 2º, I, conceitua “unidade de conservação: espaço territorial e seus recursos<br />

ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes,<br />

legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites<br />

definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias<br />

adequadas de proteção”.<br />

O decreto do Presidente da República ampliou a Estação Ecológica do Taim. A<br />

Estação Ecológica tem como objetivo a preservação da natureza e a realização de<br />

pesquisas científicas (Lei 9.985/2000, art. 9º), sendo a Estação Ecológica de posse e<br />

domínio públicos. As áreas particulares incluídas em seus limites serão desapropriadas<br />

(§ 1º do art. 9º da Lei 9.985/2000).


R.T.J. — <strong>199</strong> 669<br />

A Estação Ecológica compõe o grupo das Unidades de Proteção Integral. A<br />

Estação Ecológica constitui-se em unidade de conservação. É o que dispõe o art. 8º:<br />

“Art. 8º O grupo das Unidades de Proteção Integral é composto pelas<br />

seguintes categorias de unidade de conservação:<br />

I - Estação Ecológica;<br />

II - Reserva Biológica;<br />

III - Parque Natural;<br />

IV - Refúgio de Vida Silvestre.”<br />

O art. 22 da Lei 9.985/2000 estabelece:<br />

“Art. 22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público.<br />

§ 1º (vetado)<br />

§ 2º A criação de uma unidade de conservação deve ser precedida de<br />

estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a<br />

dimensão e os limites mais adequados para a unidade, conforme se dispuser em<br />

regulamento.<br />

§ 3º No processo de consulta de que trata o § 2º, o Poder Público é obrigado<br />

a fornecer informações adequadas e inteligíveis à população local e a outras partes<br />

interessadas.<br />

§ 4º Na criação de Estação Ecológica ou Reserva Biológica não é obrigatória<br />

a consulta de que trata o § 2º deste artigo.<br />

§ 5º As unidades de conservação do grupo de Uso Sustentável podem ser<br />

transformadas total ou parcialmente em unidades do grupo de Proteção Integral,<br />

por instrumento normativo do mesmo nível hierárquico do que criou a unidade,<br />

desde que obedecidos os procedimentos de consulta estabelecidos no § 2º deste<br />

artigo.<br />

§ 6º A ampliação dos limites de uma unidade de conservação, sem<br />

modificação dos seus limites originais, exceto pelo acréscimo proposto, pode ser<br />

feita por instrumento normativo do mesmo nível hierárquico do que criou a<br />

unidade, desde que obedecidos os procedimentos de consulta estabelecidos no §<br />

2º deste artigo.”<br />

Conforme vimos, “o grupo das Unidades de Proteção Integral é completo pelas<br />

seguintes categorias de unidade de conservação: I - Estação Ecológica; II - Reserva<br />

Biológica; III - Parque Nacional; IV - Monumento Natural; V - Refúgio de Vida<br />

Silvestre.” É dizer, a Reserva Ecológica é uma unidade de conservação (Lei 9.985/2000,<br />

art. 8º).<br />

Fica estabelecida, então, a primeira premissa: a Estação Ecológica é uma unidade<br />

de conservação.<br />

O art. 22 da Lei 9.985/2000 dispõe a respeito da criação de unidades de<br />

conservação. Dispõe, em conseqüência, sobre a criação, dentre outras unidades de<br />

conservação, da Estação Ecológica.


670<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

A sua criação, segundo o § 2º do art. 22, deve ser precedida de consulta pública.<br />

Todavia, em aparente contradição, o § 4º do mesmo artigo dispõe que “na criação de<br />

Estação Ecológica ou Reserva Biológica não é obrigatória a consulta de que trata o<br />

§ 2º deste artigo.” Aparente contradição, sim, porque o que fez § 4º do art. 22 foi<br />

excepcionar o disposto no § 2º, excluindo do processo de consulta a criação da unidade<br />

de conservação denominada Estação Ecológica. É dizer, as demais unidades de<br />

conservação — Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural e Refúgio de<br />

Vida Silvestre (art. 8º, II, III, IV e V) — exigem, para a sua criação, consulta pública, a<br />

Estação Ecológica não (art. 8º, I, art. 22, § 2º e § 4º).<br />

E, no que toca à ampliação dos limites das unidades de conservação, seria exigida<br />

a consulta pública?<br />

Responde-nos o § 6º do art. 22 da Lei 9.985/2000 que sim. E, no ponto, não há<br />

dispensa tal como ocorreu com a criação, dispensa expressa, inscrita no § 4º do art. 22,<br />

que excepcionou o § 2º do mesmo artigo.<br />

Todavia, no que toca à ampliação, caiu-se na regra geral das demais unidades de<br />

conservação (art. 22, § 2º), ou seja, a exigência, na criação da unidade de conservação, da<br />

consulta pública (art. 22, § 2º).<br />

Em suma, a criação de uma unidade de conservação (art. 8º, I, II, III, IV e V) exige<br />

consulta pública (art. 22, § 2º). Todavia, no que toca à unidade de conservação<br />

denominada Estação Ecológica (art. 8º, I), dispensou-se a consulta pública na sua<br />

criação (art. 22, § 4º), dispensa, entretanto, que não ocorreu no caso de tratar-se da<br />

ampliação dos seus limites (art. 22, § 6º).<br />

Nessa linha de raciocínio, o decidido pelo Supremo Tribunal Federal, no MS<br />

24.184/DF, Relatora a Ministra Gracie, que cuidou da ampliação do Parque Nacional da<br />

Chapada dos Veadeiros, assim ementado o acórdão:<br />

“(...)<br />

O processo de criação e ampliação das unidades de conservação deve ser<br />

precedido da regulamentação da lei, de estudos técnicos e de consulta pública. O<br />

parecer emitido pelo Conselho Consultivo do Parque não pode substituir a consulta<br />

exigida na lei. O Conselho não tem poderes para representar a população local.<br />

Concedida a segurança, ressalvada a possibilidade da edição de novo decreto.<br />

(...).” (DJ de 27-2-2004)<br />

Do exposto, com a vênia devida ao eminente Ministro Relator e aos que o<br />

acompanharam, acompanho os votos dos Ministros Cezar Peluso e Gilmar Mendes.<br />

Defiro, em conseqüência, o writ.<br />

EXPLICAÇÃO<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: A Chapada dos Veadeiros é um parque nacional.<br />

Estamos, aqui, diante de uma reserva ecológica. A normação é diversa.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Ministra Ellen Gracie, é diversa na criação, mas não<br />

na ampliação.


R.T.J. — <strong>199</strong> 671<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: A que tratou de ampliação, Vossa Excelência<br />

mandou fazer, então, a consulta, conforme exigido na lei; estamos cuidando aqui de<br />

ampliação, também, para a qual não houve a ressalva.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Senhor Presidente, creio que, por essa ou<br />

aquela razão, exige-se para a ampliação da estação ecológica já criada, o que não se<br />

exige para a sua criação; mas a letra da lei é de uma clareza absoluta.<br />

Por isso, peço vênia ao eminente Relator e acompanho o voto do Ministro Cezar<br />

Peluso e o dos que o seguiram.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Eu também já havia manifestado, no<br />

debate da sessão anterior, a minha posição no sentido de acompanhar a divergência.<br />

VOTO (Retificação)<br />

O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Senhor Presidente, também vou reconsiderar,<br />

com o meu pedido de vênia para o eminente Relator.<br />

Acompanho a dissidência.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

MS 24.665/DF — Relator: Ministro Marco Aurélio. Relator para o acórdão:<br />

Ministro Cezar Peluso. Impetrantes: SELVA – Serviços Rurais Ltda. e outro (Advogados:<br />

Anna Maria da Trindade dos Reis e outro). Impetrado: Presidente da República<br />

(Advogado: Advogado-Geral da União). Litisconsortes passivos: Instituto Brasileiro do<br />

Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e União (Advogado:<br />

Advogado-Geral da União).<br />

Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, concedeu a segurança,<br />

vencidos os Ministros Marco Aurélio (Relator), Eros Grau, Joaquim Barbosa e Ellen Gracie.<br />

Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim. Reformulou o voto anteriormente proferido o<br />

Ministro Carlos Britto. Redigirá o acórdão o Ministro Cezar Peluso.<br />

Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes,<br />

Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República,<br />

Dr. Cláudio Lemos Fonteles.<br />

Brasília, 1º de dezembro de 2004 — Luiz Tomimatsu, Secretário.


672<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

MANDADO DE SEGURANÇA 25.064 — DF<br />

Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto<br />

Impetrante: Wilson Resende ou Wilsom Resende — Impetrado: Relator do Pedido<br />

de Reexame no Processo n. 7.042/2001-0 do Tribunal de Contas da União<br />

Mandado de segurança. Aposentadoria. Juiz classista. Contagem de<br />

tempo ficto quanto a período trabalhado em atividade insalubre. Lei n.<br />

6.903/81. Inadmissibilidade.<br />

A aposentadoria de juiz classista em <strong>199</strong>5 rege-se pela Lei n. 6.903/81,<br />

que não admite a contagem de serviço em dobro ou em outras condições<br />

especiais.<br />

Excluído o período de tempo acrescido de modo ficto, o impetrante<br />

não completaria os necessários trinta anos de serviço para aposentar-se<br />

voluntariamente.<br />

Mandado de segurança indeferido.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, por seu Tribunal Pleno, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie<br />

(Vice-Presidente no exercício da Presidência), na conformidade da ata do julgamento e<br />

das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, denegar a segurança, nos termos do<br />

voto do Relator.<br />

Brasília, 9 de fevereiro de 2006 — Carlos Ayres Britto, Relator.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de mandado de segurança, com pedido<br />

de liminar, contra decisão do Tribunal de Contas da União. Decisum, esse, que,<br />

inadmitindo a contagem de tempo ficto quanto a período trabalhado em atividade<br />

insalubre, deu pela ilegalidade da concessão da aposentadoria do impetrante.<br />

2. De início, o requerente sustenta haver-se aposentado no exercício da magistratura<br />

classista de 1º grau, junto ao Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Isso em 11 de<br />

dezembro de <strong>199</strong>5 e com base na Lei n. 6.903/81, que dispõe sobre a aposentadoria dos<br />

juízes temporários da União, versada na Lei Orgânica da Magistratura Nacional. A seguir,<br />

afirma que a vedação legal à contagem de tempo de serviço em dobro ou em outras<br />

condições especiais admite ressalva de previsão constitucional. Daí alegar que o inciso II<br />

do artigo 202 da Constituição da República de 1988 alberga a sua pretensão, ao admitir<br />

aposentadoria em tempo inferior a trinta e cinco anos de trabalho, para o homem, e trinta<br />

anos para a mulher, se o trabalho é daqueles submetidos a condições especiais de prejuízo<br />

à saúde ou à integridade física, definidas em lei.<br />

3. De outra parte, argumenta o demandante que é de admitir-se o mapa de<br />

contagem elaborado pelo Instituto Nacional do Seguro Social, que indica o tempo de


R.T.J. — <strong>199</strong> 673<br />

serviço prestado por ele em vinte e cinco anos, sete meses e quatro dias. Por fim, aduz que<br />

a decisão denegatória do registro de sua aposentadoria vulnerou o direito adquirido e a<br />

coisa julgada, visto que fundada na Súmula n. 245 do Tribunal de Contas da União, cuja<br />

publicação se deu em 25 de fevereiro de <strong>199</strong>8, quase três anos após a concessão do<br />

benefício.<br />

4. Diante disso, o peticionário requer a concessão de medida liminar, com vistas<br />

ao restabelecimento dos proventos e, no mérito, seja o writ julgado procedente,<br />

determinando-se o registro do benefício pelo Tribunal de Contas da União.<br />

5. Anoto, agora, que o pedido de justiça gratuita foi deferido à fl. 33.<br />

6. Na seqüência, indeferi o pedido de medida liminar (fl. 37) e solicitei informações<br />

à autoridade apontada como coatora, a qual respondeu nos seguintes termos:<br />

a) até 13 de outubro de <strong>199</strong>6 a aposentadoria dos juízes classistas era regulada pela Lei<br />

n. 6.903/81, que proibia expressamente, em seu artigo 5º, a contagem de tempo de<br />

serviço em dobro ou em outras condições especiais; b) sendo a aposentadoria em causa<br />

espécie do gênero estatutário, o inciso V do art. 103 da Lei n. 8.112/<strong>199</strong>0 refere-se a<br />

tempo de serviço efetivamente prestado, e não meramente presumido; c) o inciso II do<br />

art. 202 da Constituição Federal, invocado pelo impetrante, trata da concessão de<br />

aposentadoria no Regime Geral de Previdência Social, não se aplicando às aposentadorias<br />

de natureza estatutária, que são regidas por normas específicas; e d) não é<br />

invocável, no caso, a garantia constitucional do inciso XXXVI do art. 5º, pois a<br />

Súmula da jurisprudência do Tribunal de Contas consubstancia teses, soluções, precedentes<br />

e entendimentos adotados reiteradamente pela Corte, não se tratando, pois, de<br />

lei em sentido formal ou material constitucionalmente impedida de violar o direito<br />

adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada.<br />

7. Encaminhados os autos à Procuradoria-Geral da República, o parecer do então<br />

Procurador-Geral da República, Professor Cláudio Fonteles, foi pelo indeferimento do<br />

mandamus (fls. 71-73).<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Conforme visto, o Tribunal Regional<br />

do Trabalho da 2ª Região concedeu, em dezembro de <strong>199</strong>5, aposentadoria voluntária ao<br />

impetrante, no cargo de Juiz Classista de 1º Grau. Tal benefício foi deferido com<br />

proventos proporcionais, a partir do mapa do tempo de serviço fornecido pelo Instituto<br />

Nacional do Seguro Social, no qual se percebe a contagem ficta do período em que se<br />

deu o exercício de atividade insalubre.<br />

10. De fato, conforme noticia o Acórdão-TCU (fl. 22), os períodos de 2-1-79 a 2-7-<br />

79 e 17-7-79 a 7-11-90 foram calculados com acréscimo de 40%, ou seja, foi utilizado o<br />

índice de 1,40 para conversão de serviço insalubre em atividade comum. Assim, caso a<br />

contagem do tempo se fizesse sem a aplicação do índice de conversão, o demandante<br />

contaria apenas com 25 anos e 8 dias de serviços prestados. Insuficientes, portanto, para<br />

a inativação, nos termos da Lei n. 6.903, de 30 de abril de 1981.


674<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

11. Cabe, neste lanço, abrir um parêntese para anotar que, apesar de a Lei n. 6.903/81<br />

ser anterior à Constituição de 1988, entende este <strong>STF</strong> que ela foi recebida pela Ordem<br />

Constitucional vigente (ADI 1.878, Rel. Min. Ilmar Galvão). Desse modo, nota-se que o<br />

diploma legal atende ao disposto no § 2º do artigo 40 da Magna Carta, com a redação<br />

anterior à Emenda Constitucional n. 20/98 (“A lei disporá sobre a aposentadoria em<br />

cargos ou empregos temporários”).<br />

12. Presente esse esclarecimento, entendo que referido instrumento normativo se<br />

aplica integralmente ao presente caso, nos termos do Verbete n. 359 da Súmula do<br />

Supremo Tribunal Federal, in verbis:<br />

“Ressalvada a revisão prevista em lei, os proventos da inatividade regulamse<br />

pela lei vigente ao tempo em que o militar, ou o servidor civil, reuniu os<br />

requisitos necessários, inclusive a apresentação do requerimento, quando a<br />

inatividade for voluntária.”<br />

13. É que a aposentadoria do demandante se deu em <strong>199</strong>5, antes, portanto, da<br />

entrada em vigor da Medida Provisória n. 1.523/96 (posteriormente convertida na Lei n.<br />

9.258, de 10-12-<strong>199</strong>7), a qual determinou a filiação obrigatória dos juízes classistas ao<br />

Regime Geral de Previdência Social.<br />

14. Pois bem, quanto ao pré-falado diploma legislativo, observo que ele<br />

estabeleceu regime especialmente destinado a reger a aposentadoria dos magistrados<br />

classistas. Regime, esse, impeditivo da contagem em dobro ou em outras condições<br />

especiais do tempo de serviço para concessão da aposentadoria voluntária aos<br />

servidores temporários.<br />

15. Bem vistas as coisas, percebe-se que a lógica da mencionada interdição decorre<br />

da necessidade de tratamento diferenciado, em razão da existência de um direito à<br />

aposentadoria sob o regime estatutário, para servidores cujo vínculo com a Administração<br />

Pública é temporário. Tanto é assim, que foi editada a Medida Provisória n. 1.523/96,<br />

dando conta desse direito, excluindo os servidores classistas (temporários) do regime<br />

estatutário e determinando sua filiação obrigatória ao Regime Geral de Previdência Social.<br />

16. Vê-se, portanto, que, nos termos do regime legal aplicável, o impetrante<br />

somente teria direito à aposentadoria estatutária se implementasse os requisitos<br />

exigidos, ou seja, caso houvesse completado os necessários trinta anos de serviço,<br />

contados de maneira singela ou ordinária.<br />

17. De outra parte, devo dizer que falta base jurídica à tese de que seria admissível<br />

a contagem de tempo em dobro, à luz do inciso II do artigo 202 da Carta Federal. É que<br />

o dispositivo invocado se refere às aposentadorias concedidas sob o Regime Geral de<br />

Previdência Social, inserido no Título VIII - Da Ordem Social, Capítulo II - Da<br />

Seguridade Social, Seção III - Da Previdência Social da Constituição da República de<br />

1988. Já no que toca ao regime das aposentadorias estatutárias, este figura no Título III<br />

- Da Organização do Estado, Capítulo VII - Da Administração Pública, Seção II - Dos<br />

Servidores Públicos.<br />

18. Finalmente, no tocante ao argumento da violação a direito adquirido em face<br />

da aplicação do Verbete n. 245 da Súmula do Tribunal de Contas da União, também não<br />

assiste razão ao demandante. Como sabido, a súmula é a consolidação da jurisprudência


R.T.J. — <strong>199</strong> 675<br />

dos tribunais, cumprindo função meramente orientadora ou informativa para julgados<br />

futuros, mas sem força vinculante. Não é de ser considerada diploma legislativo, então,<br />

nos termos invocados pelo autor. Pelo que não é de se admitir que a aplicação das teses<br />

nelas consubstanciadas se torne um imperativo tutelar dessa ou daquela situação<br />

jurídica do tipo ativo.<br />

19. Com efeito, dispõe a Constituição de 1988 (art. 5º, XXXVI) que “a lei não<br />

prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Restando<br />

claro, penso, que a palavra “lei”, é significativa de “Direito-lei” ou espécie normativa<br />

que se elabora segundo o processo legislativo que se lê no art. 59 da Constituição<br />

Federal. Nada tem a ver com decisões ou súmulas dos órgãos do Poder Judiciário, nem<br />

dos Tribunais de Contas, as quais, além de não serem leis em sentido formal, não<br />

obrigam nem mesmo os próprios tribunais de que provenham.<br />

20. Sem destoar desse entendimento, o parecer ministerial público sobreveio nos<br />

seguintes termos:<br />

“(...)<br />

O pleito não merece prosperar, consoante será demonstrado.<br />

Nesse diapasão, a interpretação da norma de regência, qual seja, a Lei n.<br />

6.903, de 30.04,1981, é suficiente. Confira-se os seus artigos 2º, 4º e 5º:<br />

“Art. 2º. O juiz temporário será aposentado:<br />

(...)<br />

III - voluntariamente, após 30 anos de serviço, computado o tempo de<br />

atividade remunerada abrangida pela Previdência Social Urbana (Lei n. 3.8<strong>07</strong>, de<br />

26 de agosto de 1960, e legislação subseqüente), observado o disposto no artigo 4º<br />

desta Lei.<br />

(...)<br />

Art. 4º Nas hipóteses previstas no artigo 2º itens II e III, a aposentadoria<br />

somente será concedida se o juiz temporário, ao implementar a condição, estiver<br />

no exercício da magistratura e contar, pelo menos 5 (cinco) anos contínuos ou não,<br />

de efetivo exercício no cargo, ou, não estando, o houver exercido por mais de 10<br />

(dez) anos contínuos.<br />

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, o tempo de serviço ou de atividade será<br />

computado, conforme o caso, de acordo com a legislação relativa aos servidores<br />

públicos civis da União ou com a dos segurados pela Previdência Social Urbana,<br />

observadas as seguintes normas:<br />

I - não será admitida a contagem de serviço em dobro ou em outras<br />

condições especiais, ressalvados os casos previstos na Constituição;<br />

(...)” (Grifamos)<br />

Tal situação somente foi alterada pela Medida Provisória n. 1.523, de 11-10-<br />

<strong>199</strong>6 — posteriormente convertida na Lei n. 9.528, de 10-12-<strong>199</strong>7 —, que determinou<br />

aos juízes classistas a filiação obrigatória ao Regime Geral de Previdência<br />

Social – RGPS.


676<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Os juízes classistas, portanto, tinham direito, no sistema anterior, à aposentadoria<br />

estatutária, caso houvessem preenchido os seus requisitos, de acordo com o<br />

verbete n. 359, da Súmula da jurisprudência dessa Colenda Corte.<br />

Não é o caso do impetrante, porém. A vedação expressa contida no inciso I do<br />

artigo 5º da Lei n. 6.903/81 impede seja acolhida a pretensão do impetrante.<br />

Deveras, com a exclusão do período de tempo acrescido de modo ficto, o<br />

impetrante não completaria os necessários trinta anos de serviço (art. 2º, III, da Lei<br />

n. 6.903/81) para aposentar-se voluntariamente.<br />

Assim, os pleitos do impetrante não estão a merecer acolhida, devendo ser<br />

mantidos os termos do acórdão n. 1.488/2003-TCU-2ª Câmara.”<br />

21. Nessa contextura, denego a segurança, mantendo os termos do Acórdão n.<br />

1.488/2003-TCU-2ª Câmara.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

MS 25.064/DF — Relator: Ministro Carlos Britto. Impetrante: Wilson Resende<br />

ou Wilsom Resende (Advogado: Antonio Carlos Amaral de Amorim). Impetrado:<br />

Relator do Pedido de Reexame no Processo n. 7.042/2001-0 do Tribunal de Contas da<br />

União.<br />

Decisão: O Tribunal, à unanimidade, denegou a segurança, nos termos do voto do<br />

Relator. Ausente, justificadamente, o Ministro Nelson Jobim (Presidente). Presidiu o<br />

julgamento a Ministra Ellen Gracie (Vice-Presidente).<br />

Presidência da Ministra Ellen Gracie (Vice-Presidente). Presentes à sessão os<br />

Ministros Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar<br />

Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr.<br />

Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.<br />

Brasília, 9 de fevereiro de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

MANDADO DE SEGURANÇA 25.440 — DF<br />

Relator: O Sr. Ministro Carlos Velloso<br />

Impetrante: Márcia Aguiar Nogueira Batista — Impetrado: Tribunal de Contas da<br />

União<br />

Constitucional. Administrativo. Pensão. TCU: julgamento da legalidade:<br />

contraditório. Mandado de segurança: fatos controvertidos.<br />

I - O Tribunal de Contas, no julgamento da legalidade de concessão<br />

de aposentadoria ou pensão, exercita o controle externo que lhe atribui a<br />

Constituição Federal, art. 71, III, no qual não está jungido a um processo<br />

contraditório ou contestatório. Precedentes do <strong>STF</strong>.


R.T.J. — <strong>199</strong> 677<br />

II - Inaplicabilidade, no caso, da decadência do art. 54 da Lei<br />

9.784/99.<br />

III - Fatos controvertidos desautorizam o ajuizamento do mandado<br />

de segurança.<br />

IV - MS indeferido.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Nelson Jobim, na<br />

conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria, negar a<br />

ordem, ficando asseguradas à impetrante as vias ordinárias, nos termos do voto do<br />

Relator, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Eros Grau.<br />

Brasília, 15 de dezembro de 2005 — Carlos Velloso, Relator.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Trata-se de mandado de segurança, com pedido de<br />

liminar, fundado nos arts. 5º, LXIX, e 102, I, d, da Constituição Federal, impetrado por<br />

Márcia Aguiar Nogueira Batista, contra ato do Tribunal de Contas da União,<br />

consubstanciado no Acórdão 762/2005-TCU-2ª Câmara (fls. 168-175), que, nos autos<br />

do Processo TC 019.023/<strong>199</strong>3-6, negou provimento a pedido de reexame interposto do<br />

Acórdão 1.727/2003-TCU-2ª Câmara (fls. 163-167), que considerou ilegal a concessão<br />

de aposentadoria à impetrante, em razão de cômputo de tempo de anistia para a<br />

inativação em cargo de professor, sem a comprovação de que ocupava cargo de<br />

magistério anteriormente ao ato de exceção; de atribuição de proventos no regime de<br />

dedicação exclusiva, sem que a servidora tenha voltado a trabalhar na Universidade de<br />

Brasília; e de cômputo, como efetivo exercício, do tempo de licença para tratar de<br />

interesses particulares, dispensando-se o ressarcimento das quantias indevidamente<br />

recebidas de boa-fé.<br />

Sustenta a impetrante, em síntese, o seguinte:<br />

a) contrariedade ao art. 54 da Lei 9.784/99, dado que foi aposentada em 31-5-<strong>199</strong>1<br />

e o TCU negou registro ao benefício e determinou sua suspensão em 23-9-2003,<br />

olvidando que o direito da Administração de anular os atos administrativos decai em<br />

cinco anos;<br />

b) não há falar em aposentadoria precária, uma vez que o benefício discutido é<br />

preexistente e perfeito antes da chancela do TCU que, nos termos do art. 71, III, da<br />

Constituição, é órgão de controle, sendo certo que sua atuação, quando do registro de<br />

aposentadoria, não é condição de validade do ato, “constituindo-se apenas na forma<br />

pela qual o controle feito a posteriori é exercido” (fl. <strong>07</strong>);<br />

c) ofensa ao art. 8º do ADCT, porquanto a impetrante, beneficiária de anistia<br />

política, faz jus às vantagens, independentemente do exercício, após o ato de anistia, da<br />

função na qual foi vítima de perseguição, que teria caso estivesse em serviço ativo.


678<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Ademais, a Lei 10.559/2002 determina que a reparação oriunda de anistia prescinde de<br />

requisitos e condições;<br />

d) violação ao art. 117 da Lei 1.711/52, visto que não foram contados em dobro os<br />

períodos das licenças sabática e especial a que a impetrante teria direito, nos termos do<br />

referido artigo, sendo ainda certo que a autora, docente de ensino superior, teria, a cada<br />

cinco anos, uma licença sabática de três meses, e, a cada sete anos, uma licença especial<br />

de seis meses;<br />

e) contrariedade à Súmula 74-TCU, dado que “o período de inatividade havido<br />

entre <strong>199</strong>1 (ano da aposentadoria) e 2003 deveria ter sido computado para a<br />

concessão de nova aposentadoria nos mesmos valores e condições da aposentadoria<br />

julgada indevidamente por ilegal” (fl. 22).<br />

Ao final, requer a impetrante a concessão da segurança, a fim de que seja<br />

reconhecida a legalidade da sua aposentadoria ou, alternativamente, “que seja<br />

determinada a contagem do período de 31-5-<strong>199</strong>1 a 25-5-2005 para o fim de<br />

concessão de nova aposentadoria, mesmo que não seja especial, bem como que não<br />

haja solução de continuidade entre o pagamento do benefício hodierno e do futuro”<br />

(fl. 24).<br />

Requisitadas informações (fl. 143), o Presidente do Tribunal de Contas da União as<br />

prestou (fls. 149-189), sustentando, em síntese, o seguinte:<br />

a) inexiste prova nos autos de que a impetrante tenha ingressado e ocupado, no<br />

serviço público, o cargo efetivo de professora universitária;<br />

b) o tempo de serviço exercido como instrutora não pode ser contado para fins de<br />

aposentadoria especial de professor, nos termos do art. 81, I, do Decreto 1.872, de 12 de<br />

dezembro de 1962;<br />

c) ser necessária a comprovação do efetivo exercício, por dez anos, na função<br />

de magistério para a aquisição do direito à licença prevista no art. 117 da Lei 1.711/<br />

52;<br />

d) o instituto da anistia não prevê o ingresso em cargo público diferente do<br />

ocupado antes do ato de exceção;<br />

e) inexistência de ofensa a ato juridicamente perfeito, bem como inocorrência da<br />

retroatividade da Lei 10.559/2002 em prejuízo da impetrante, dado que o art. 19 “não<br />

convalida proventos derivados de atos ilegais” (fl. 149);<br />

f) não-incidência da decadência administrativa, ante a inaplicabilidade do art. 54<br />

da Lei 9.784/99 aos processos em que o Tribunal de Contas da União exerce a sua<br />

competência constitucional de controle externo.<br />

Em 3-8-2005, indeferi a medida liminar (fls. 196-198).<br />

A Procuradoria-Geral da República, em parecer lavrado pelo eminente Procurador-<br />

Geral da República, Dr. Antonio Fernando de Souza, opina pela denegação da segurança<br />

(fls. 200-205).<br />

É o relatório.


R.T.J. — <strong>199</strong> 679<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): A preliminar argüida pela impetrante<br />

não tem procedência. É que o ato administrativo da aposentadoria, já reconheceu o<br />

Supremo Tribunal Federal, no julgamento do MS 23.665/DF, Relator o Ministro<br />

Maurício Corrêa, é ato complexo, que somente se completa com a manifestação do<br />

Tribunal de Contas (CF, art. 71, III). Assim, não há falar que teria ocorrido, no caso,<br />

a decadência do direito da Administração de anular o ato, na forma do disposto no<br />

art. 54 da Lei 9.784, de <strong>199</strong>9. Na verdade, bem registra o Ministério Público Federal,<br />

no parecer de fls. 200-205, “considera-se iniciado o prazo para a Administração<br />

anular o ato administrativo, como é o ato de aposentação, a data do registro<br />

perante o Tribunal de Contas da União”. No RE 195.861/ES, Relator o Ministro<br />

Marco Aurélio, decidiu o Supremo Tribunal Federal que “o ato de aposentadoria<br />

exsurge complexo, somente se aperfeiçoando com o registro perante a Corte de<br />

Contas” (DJ de 17-10-97).<br />

No julgamento do MS 24.859/DF, por mim relatado, o Supremo Tribunal Federal<br />

decidiu pela inaplicabilidade, em casos como este, da decadência do art. 54 da Lei<br />

9.784, de <strong>199</strong>9, portando o acórdão a seguinte ementa:<br />

“Constitucional. Administrativo. Pensão. TCU: julgamento da legalidade:<br />

contraditório. Pensão: dependência econômica.<br />

I - O Tribunal de Contas, no julgamento da legalidade de concessão de<br />

aposentadoria ou pensão, exercita o controle externo que lhe atribui a Constituição<br />

Federal, art. 71, III, no qual não está jungindo a um processo contraditório ou<br />

contestatório. Precedentes do <strong>STF</strong>.<br />

II - Inaplicabilidade, no caso, da decadência do art. 54 da Lei 9.784/99.<br />

III - Concessão da pensão julgada ilegal pelo TCU, por isso que, à data do<br />

óbito do instituidor, a impetrante não era sua dependente econômica.<br />

IV - MS indeferido.”<br />

Disse eu no voto:<br />

“O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do MS 24.784/PB, por mim<br />

relatado, decidiu que ‘O Tribunal de Contas, no julgamento da legalidade de<br />

concessão de aposentadoria, exercita o controle externo que lhe atribui a Constituição,<br />

no qual não está jungido a um processo contraditório ou contestatório’<br />

(Plenário, 19-5-2004). O mesmo deve ser dito, evidentemente, quanto às reformas<br />

e pensões (CF, art. 71, III).<br />

No voto que proferi quando do julgamento do citado MS 24.784/PB,<br />

disse eu:<br />

‘(...)<br />

Não há falar, ademais, em definitividade do ato de concessão da<br />

aposentadoria ainda não apreciado quanto a sua legalidade, pelo Tribunal de<br />

Contas. No RE 163.301/AM, o eminente Relator, Ministro Sepúlveda<br />

Pertence, dissertou a respeito, presente, também, o ato do Tribunal de Contas


680<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

que revisa seus próprios julgamentos afirmativos da legalidade da concessão<br />

de aposentadoria. S. Exa. anotou que ‘essa possibilidade de revisão pelo<br />

Tribunal de Contas de suas decisões relativas a aposentadorias e pensões está<br />

subjacente à doutrina da Súmula 6, como está claro no primoroso voto do<br />

saudoso Ministro Victor Nunes, no principal dos leading cases que a<br />

suportam (RMS 8.657, de 6-9-61, Victor Nunes, <strong>RTJ</strong> 20/69).’<br />

No primeiro caso — julgamento do ato de aposentadoria quanto a sua<br />

legalidade — constitui decisão de controle externo, certo que, na SS 514-<br />

AgR/AM, anotou o eminente Relator, Ministro Octavio Gallotti:<br />

‘(...)<br />

Considerar que o Tribunal de Contas, quer no exercício da<br />

atividade administrativa de rever os atos de seu Presidente, quer no<br />

desempenho da competência constitucional para o julgamento da<br />

legalidade da concessão de aposentadorias (ou ainda na aferição da<br />

regularidade de outras despesas), esteja jungido a um processo<br />

contraditório ou contencioso é submeter o controle externo, a cargo<br />

daquela Corte, a um enfraquecimento absolutamente incompatível<br />

com o papel que vem sendo historicamente desempenhado pela<br />

Instituição, desde os albores da República.<br />

Mais grave, ainda, é supor que, para reprimir ilegalidades de<br />

ordem das que resolveu coibir, esteja o Tribunal de Contas limitado à<br />

possibilidade de provocar o Poder Judiciário, ao invés de reservar-se<br />

este ao controle judicial do ato, quando instado pelo prejudicado (não<br />

antecipadamente pela Corte de Contas).<br />

É, portanto, de manifesta plausibilidade a sustentação de grave<br />

lesão à ordem administrativa, que se apresenta como virtualmente<br />

subvertida, na espécie em julgamento.<br />

Entendo que essa ameaça justifica, por si só, a subsistência da<br />

suspensão de segurança, independente de reavaliação dos efeitos<br />

financeiros, ao sabor dos incidentes da execução, e das cautelas nele<br />

adotadas pelo Tribunal Estadual.<br />

(...).’ (<strong>RTJ</strong> 150/402)<br />

É dizer, em casos como este — julgamento da legalidade de aposentadorias<br />

— não há falar em contraditório.<br />

(...).’<br />

No caso, o julgamento da legalidade da concessão da pensão ocorreu<br />

com certa demora. Não se trata, entretanto, de revisão de decisão anterior.<br />

Também não há falar, no caso, na decadência do direito de a<br />

Administração anular os atos administrativos de que decorram efeitos<br />

favoráveis para os destinatários — Lei 9.784, de 29-1-99, art. 54.<br />

Corretas as informações, no ponto:


R.T.J. — <strong>199</strong> 681<br />

‘(...)<br />

16. Acerca da discussão da incidência da Lei n. 9.784/<strong>199</strong>9 sobre os<br />

atos de controle externo a cargo do Tribunal de Contas da União,<br />

demonstrou-se que a natureza do ato de registro não é administrativa<br />

típica, mas inerente à jurisdição constitucional de controle externo,<br />

compondo o ato de concessão apenas substantivamente, porquanto lhe<br />

irradia efeitos necessários à vitalidade plena.<br />

17. Por meio da Decisão n. 1.020/2000 — TCU — Plenário, firmou-se<br />

o entendimento de que a Lei n. 9.784/<strong>199</strong>9, que regula o processo<br />

administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, não tem<br />

aplicação obrigatória sobre os processos da competência deste Tribunal de<br />

Contas, definida pelo artigo 71 da Constituição Federal.<br />

18. De acordo com a tese discorrida na mencionada decisão, a<br />

processualística própria de controle externo, que abrange instrumentos<br />

como exame de contas, denúncia, representação, auditoria e outras<br />

formas de defesa do interesse público, culmina em decisões de controle<br />

externo passíveis de recursos especiais, consoante dispõe a Lei n.<br />

8.443/<strong>199</strong>2, no caso deste Tribunal, de modo que, tão-somente por<br />

argumentação, ainda que esse processo de natureza especial fosse considerado<br />

administrativo — embora não o seja — contaria com a excepcionalidade<br />

decretada pelo artigo 69 da Lei n. 9.784/<strong>199</strong>9, segundo o<br />

qual ‘Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se<br />

por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos<br />

desta Lei’.<br />

(...).’ (Fls. 222-223)<br />

(...).”<br />

Vamos ao mérito.<br />

Destaco do parecer da Procuradoria-Geral da República, lavrado pelo ilustre<br />

Procurador-Geral, Dr. Antonio Fernando de Souza:<br />

“(...)<br />

11. Quanto ao mérito, é necessária, antes de qualquer conclusão, uma sobre o<br />

histórico laboral da impetrante, no âmbito da Universidade de Brasília.<br />

12. Segundo informações do próprio punho da impetrante (fls. 57), ingressou<br />

na UnB, em 8 de março de 1963, na qualidade de Instrutora. Tanto nestes autos,<br />

como naqueles que correram perante o TCU, não há comprovação do exercício do<br />

cargo de professora anteriormente à indigitada perseguição política, embora se<br />

tenha requisitado tal prova em mais de uma oportunidade.<br />

13. Ocorrera, então, o ato de desligamento por motivo político-ideológico,<br />

do qual também não se tem notícia. Posteriormente, sendo beneficiária da anistia<br />

política, foi reintegrada à Universidade de Brasília, no cargo de Professor Adjunto<br />

C4, em regime de trabalho de dedicação exclusiva, firmando contrato de<br />

trabalho, de vigência indeterminada, com início em 1.º.<strong>07</strong>.1988.


682<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

14. Contudo, a partir da data da reintegração, a impetrante pediu, administrativamente,<br />

licença, sem ônus para a fundação pública, por prazo indeterminado,<br />

sendo o requerimento deferido (fls. 90). Esta licença persistiu até 4.06.<strong>199</strong>1,<br />

quando foi concedida a aposentadoria especial, por tempo de serviço à impetrante<br />

(fls. 50).<br />

15.Cumpre salientar, que para fins de contagem de prazo para aposentadoria,<br />

foram registrados em dobro, pela UnB, os períodos de licença especial não<br />

gozados pela impetrante (fls. 45). Ao fim, somaram-se 25 anos, quatro meses e dois<br />

dias de efetivo serviço.<br />

16. A aposentadoria especial, aplicável aos professores à teor do artigo 40,<br />

III, b, da Constituição, era prevista pelo texto magno original, nos seguintes<br />

termos:<br />

‘Art. 40. O servidor será aposentado:<br />

(...)<br />

III - voluntariamente:<br />

(...)<br />

b) aos trinta anos de efetivo exercício em funções de magistério, se<br />

professor, e vinte e cinco, se professora, com proventos integrais;<br />

(...)’ (Grifo nosso)<br />

17. Destarte, apenas pelo efetivo exercício de funções de magistério,<br />

excluídas, portanto, as funções análogas à de magistério, durante 25 anos, poderá<br />

uma professora se aposentar.<br />

18. Todavia, como supracitado, a impetrante desempenhou a função de<br />

instrutora, a qual, consoante o artigo 81, I, Decreto n.º 1.872/62, era preenchida por<br />

estagiários, verbis:<br />

‘Art. 81. Além do pessoal docente da Carreira de Magistério, a<br />

Universidade de Brasília poderá admitir, por proposta dos Departamentos:<br />

I - Estagiários para exercer funções docentes como instrutores,<br />

por um período máximo de 2 (dois) anos, durante o qual deverão obter o<br />

grau de Mestre, nas condições previstas no Regulamento do Curso de<br />

mestrado;<br />

(...)<br />

19. Observa-se da certidão de tempo de serviço, fls. 40, que, em que pese não<br />

ter se esclarecido por quanto tempo se exerceu as funções de instrutora, foram<br />

considerados como de efetiva função de magistério todos os dias trabalhados pela<br />

impetrante, o que não se verificou.<br />

20. Ademais, há que se reconhecer a ilegalidade da licença para resolução de<br />

questões particulares, por período próximo a três anos, ponderando-se que o artigo<br />

37 do Decreto n.º 94.664/87 cingia tal modalidade de licença a um máximo de dois<br />

anos.


R.T.J. — <strong>199</strong> 683<br />

21. Prova mais eloqüente da referida ilegalidade, era o exercício, pela<br />

impetrante, da profissão de arquiteta, conforme declaração de renda de fls. 64,<br />

datada de 28.04.89, quando o cargo de professor adjunto da UnB exigia dedicação<br />

exclusiva. Logo, reputa-se burlada a finalidade da concessão da licença.<br />

22. Acrescenta-se que não se aplica ao caso o Enunciado da Súmula n.º 74 do<br />

Tribunal de Contas da União, ‘Para efeito apenas de aposentadoria — e não para o<br />

de acréscimo por tempo de serviço ou qualquer outra vantagem — admite-se a<br />

contagem de período de inatividade, com o objeto de suprir lacuna deixada pela<br />

exclusão de tempo de serviço não computável em face da lei e o de evitar a<br />

reversão à atividade de antigos servidores, cujas concessões foram tardiamente<br />

submetidas a exame e julgamento do Tribunal de Contas da União’, visto que a<br />

própria jurisprudência daquele Tribunal, conforme ilustrado a fls. 157, determina<br />

que o referido enunciado não se aplica às aposentadorias especiais, como são as<br />

concedidas aos professores.<br />

23. Outrossim, são verberadas todas essas considerações independentemente<br />

do exame do direito da impetrante a se enquadrar nos quadros da Universidade de<br />

Brasília, no cargo de professor adjunto, cujo início e subseqüente desempenho da<br />

atividade, antes do indigitado ato de exceção, não foram objeto de prova neste<br />

writ. Com efeito, somente a não obtenção do prazo necessário para alcançar a<br />

aposentadoria especial já é subsídio suficiente para não se albergar o pedido.<br />

(...).” (Fls. 202-204)<br />

Correto o parecer.<br />

Nas informações do órgão apontado coator, ficou expresso que não há prova no<br />

sentido de que a impetrante exercera o cargo de professora anteriormente ao alegado ato<br />

punitivo objeto da anistia.<br />

É ler:<br />

“(...)<br />

9. Ao contrário, ainda que por duas vezes diligenciada a Universidade de<br />

Brasília para encaminhar a ‘este Tribunal a cópia do ato que desligou a inativa em<br />

razão da motivação político-ideológica, bem como o documento comprobatório de<br />

que, na época do seu desligamento, ocupava o cargo de Professor Adjunto em regime<br />

de Dedicação Exclusiva, (...)’ (fls. 49 e 64 do processo administrativo de registro,<br />

juntado à contra-fé), na primeira oportunidade simplesmente ignorou a requisição e<br />

na segunda limitou-se a informar que os documentos estranhamente não estavam em<br />

seu poder, porquanto encaminhados preteritamente à comissão responsável pela<br />

anistia no Ministério da Educação (fl. 65 do processo administrativo — recorde-se<br />

que a impetrante foi anistiada em 28/6/1988, mas até 21/10/2002 a documentação<br />

não havia retornado à Universidade de Brasília).<br />

10. Como se não bastasse, além de não haver documento com comprovação de<br />

que a impetrante tenha ingressado no serviço público e ocupado o cargo efetivo de<br />

professora universitária, observa-se, ainda, que o ingresso na FUB deu-se em 8/3/63,<br />

como instrutora, e não como professora, conforme declaração da própria Impetrante<br />

à folha 23 do processo administrativo de registro, juntado pela Autora à contra-fé.


684<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

11. A função denominada ‘instrutor’, consoante Decreto n. 1.872, de 12/12/<br />

1962, vigente à época, era exercida por estagiários por período máximo de 2 anos,<br />

conforme inciso I do art. 81, in verbis:<br />

‘Art. 81. Além do pessoal docente da Carreira de Magistério, a Universidade<br />

de Brasília poderá admitir, por proposta dos Departamentos:<br />

I - Estagiários para exercer funções docentes como instrutores, por<br />

um período máximo de 2 (dois) anos, durante o qual deverão obter o grau<br />

de Mestre, nas condições previstas no Regulamento do Curso de<br />

Mestrado;’<br />

12. No entanto, caso a interessada tenha passado a ocupar cargo de professora<br />

após o exercício como instrutora, e tenha se afastado da Universidade nessa<br />

condição, não há que questionar sua reintegração. Porém, repise-se: não existe<br />

nenhum documento relativo à situação funcional da Impetrante como professora.<br />

Ou seja, não há provas de que a impetrante tenha ingressado e ocupado cargo<br />

no serviço público, muito menos o de professora universitária.<br />

13. Ressalte-se que a Emenda Constitucional n. 26/1985, em seu art. 4º,<br />

caput e § 3º, deixava claro que a anistia era concedida a todos os servidores<br />

públicos civis punidos por atos de exceção. Ora, como visto, nos autos apenas<br />

existe a prova de que a Impetrante era estagiária-instrutora, bolsista, com prazo<br />

peremptório de extinção do vínculo temporário previsto na própria norma de<br />

regência (art. 81, inciso I, do r. Decreto 1.872/62).<br />

14. Ademais, a nova Carta de 1988 não alterou os limites da realidade<br />

normativa quando no art. 8º da ADCT deferiu anistia aos servidores ocupantes de<br />

cargos públicos (caput e § 5º).<br />

15. Apenas para deixar registro, não se poderia pretender que a anistia<br />

tivesse o condão de investir em cargo público um estagiário-instrutor. Esta não<br />

seria uma interpretação que preservasse intactos outros dispositivos constitucionais<br />

(art. 37, II, da CF/88, e art. 95, § 1º, da Constituição decaída). A prova material<br />

de condição de servidora ocupante de cargo público não foi produzida nem no<br />

processo que tramita no TCU, nem na presente ação mandamental; a anistia visa<br />

tão-somente a assegurar direitos aos anistiados como se estivessem em serviço<br />

ativo, ou seja, como se nunca tivessem sido afastados arbitrariamente de seus<br />

cargos/empregos públicos.<br />

(...).” (Fls. 152-153)<br />

Ademais, logo após a sua reintegração na UnB, obteve a impetrante “licença sem<br />

remuneração, para tratar de interesses particulares e permaneceu nesta situação até a<br />

data da aposentadoria (de 1-7-88 a 4-6-<strong>199</strong>1)” (fl. 156).<br />

Acrescentam as informações que o tempo em que permaneceu em licença para o<br />

trato de interesses particulares “desborda o limite legal de 2 anos (Decreto 96.664/87,<br />

art. 37)” (fl. 156).<br />

No que toca à contagem, em dobro dos períodos de licença especial não gozada,<br />

esclarecem as informações:


R.T.J. — <strong>199</strong> 685<br />

“(...)<br />

28. Noutra direção, a Impetrante também alega haver ofensa ao art. 117 da<br />

Lei n. 1.711/52, porquanto esta Casa desconsiderou a contagem em dobro dos<br />

períodos de licença especial não gozada.<br />

29. A r. Lei n. 1.711/52 recebe denominação de Antigo Estatuto do<br />

Funcionário Público, e seu art. 117 dispunha, in verbis:<br />

Art. 117 - Para efeito de aposentadoria será contado em dobro o tempo<br />

de licença especial que o funcionário não houver gozado.<br />

30. Por sua vez, a licença especial foi assim definida no art. 116 daquela Lei:<br />

‘Art 116. Após cada decênio de efetivo exercício, ao funcionário que<br />

a requerer, conceder-se-à licença especial de seis meses com todos os direitos<br />

e vantagens do seu cargo efetivo’.<br />

31. Desse modo, para a aquisição do direito àquela licença havia a<br />

necessidade da comprovação do efetivo exercício, por dez anos, de função de<br />

magistério. Contudo, conforme já exposto, não consta dos autos documentação<br />

comprobatória do exercício do cargo de professor — e não de mero instrutor —<br />

sequer por parcela dos dez anos exigidos na lei; assim, não resta comprovado o<br />

direito ao gozo daquela licença, não merecendo acolhida o argumento.<br />

(...).” (Fls. 156-157)<br />

A aposentadoria especial do professor CF, art. 40, III, b — com vencimentos<br />

integrais, aos trinta anos de serviço, e da professora, aos vinte e cinco anos, limita-se ao<br />

efetivo exercício das funções de magistério. Tendo em vista o seu caráter excepcional,<br />

tem interpretação estrita. Assim decidiu o Supremo Tribunal no julgamento do RE<br />

217.808/DF, por mim relatado. Assim a ementa do acórdão:<br />

“Constitucional. Administrativo. Servidor público. Professor: aposentadoria<br />

especial. CF, art. 40, III, b.<br />

I - A aposentadoria especial de professor, com vencimentos integrais, aos trinta<br />

anos de serviço, e da professora, aos vinte e cinco anos, limita-se ao efetivo exercício<br />

das funções de magistério (CF, art. 40, III, b). Tendo em vista o seu caráter excepcional,<br />

tem interpretação estrita. Precedentes do <strong>STF</strong>: ADIn 122/SC, Brossard, 18-3-92,<br />

<strong>RTJ</strong> 142/3; ADIn 152/MG, Galvão, 18-3-92, <strong>RTJ</strong> 141/355; RE 131.736/SP, Pertence,<br />

24-8-93, <strong>RTJ</strong> 152/228; RE 182.015/DF, Velloso, DJ de 6-9-96.<br />

II - RE conhecido e provido.”<br />

Conforme vimos, a impetrante, que fora admitida como instrutora, não comprovou<br />

o exercício do cargo de professor. Essa comprovação somente ocorreu após a<br />

reintegração, certo, entretanto, que, reintegrada no cargo, requereu licença para o trato<br />

de interesses pessoais, permanecendo em licença por tempo superior ao inscrito na<br />

norma legal. É o que ficou esclarecido linhas atrás.<br />

Os fatos, no caso, são controvertidos, pelo que desautorizam o ajuizamento do<br />

mandado de segurança, cujo processo não admite dilação probatória.<br />

Do exposto, indefiro o mandado de segurança.


686<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, há certas peculiaridades, e as<br />

pinço do parecer da Procuradoria-Geral da República, que me conduzem a concluir de<br />

forma diversa da enunciada pelo Relator. Houve, no caso, uma contratação inicial da<br />

impetrante pela Universidade de Brasília, à luz do disposto no artigo 81, inciso I, do<br />

Decreto n. 1.872, que preceitua:<br />

“Art. 81. Além do pessoal docente da Carreira de Magistério, a Universidade<br />

de Brasília poderá admitir, por proposta dos Departamentos:<br />

I - Estagiários” — aqui, o vocábulo foi mal utilizado, e vamos ver que, na<br />

verdade, não teríamos estagiários propriamente ditos — “para exercer funções<br />

docentes como instrutores, por um período máximo de 2 (dois) anos, durante o<br />

qual deverão obter o grau de Mestre, nas condições previstas no Regulamento do<br />

Curso de Mestrado;”<br />

Estariam habilitados, portanto, considerada a área de atividade, não para o<br />

magistério, por falta do grau de Mestre. Há mais: com a anistia, em que situação a<br />

impetrante foi reaproveitada, reintegrada? Como Professor Adjunto C-4, a revelar que<br />

exercera antes, muito embora sob a nomenclatura de estagiária ou instrutora, o próprio<br />

magistério. A reintegração, em face da anistia, fez-se, repito, mediante reintegração à<br />

Universidade, no cargo de Professor Adjunto C-4. Esse óbice ao deferimento da<br />

aposentadoria, no que se mostra especial, a envolver a ficção jurídica, não existe. Tenho<br />

que o tempo anterior só pode ser enquadrado, dada a referência a funções docentes, até<br />

a obtenção do grau de Mestre, como de magistério. Surge a problemática da licença que<br />

teria ultrapassado o período máximo de dois anos, aproximando-se de três. Concluiu-se<br />

que não poderia o período de extravasamento, não sei quantos meses, ser computado.<br />

Muito embora haja a previsão do limite no Decreto n. 94.664/87, o certo é que, no<br />

caso, a Universidade de Brasília deferiu o período de licença e viabilizou o afastamento.<br />

Ante essas premissas, peço vênia ao Relator — reafirmo que a impetrante foi<br />

reintegrada como professora, e reintegração pressupõe o exercício anterior como tal, no<br />

cargo de Professor Adjunto C-4 — para conceder a ordem.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Sr. Presidente, acompanho o voto do Ministro<br />

Relator, mas deixo claro, a meu sentir, que não há direito líquido e certo por falta de<br />

comprovação do próprio tempo em que se assenta o pedido da impetrante. Está claro no<br />

voto do Ministro Relator.<br />

Sou Relator do Mandado de Segurança n. 25.116, e pretendo discutir com o Pleno<br />

a questão do tempo médio de cinco anos para ver se o Tribunal de Contas tem mesmo a<br />

obrigação de...<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: É para tornar estreme de dúvidas a via ordinária.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Reservo-me para discutir essa questão do tempo<br />

médio oportunamente.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Realmente a prova é absolutamente precária.


R.T.J. — <strong>199</strong> 687<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Precaríssima. Não há prova.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Até por razões biográficas, eu teria muito a<br />

dizer com relação à qualidade de “instrutor”. Lembro-me muito bem de que, à época,<br />

foram dezenas de decisões de reclamações trabalhistas, sempre entendendo que esse<br />

estágio tinha rigorosamente a mesma qualidade que detinha o auxiliar de ensino, de<br />

intensa atividade docente. Digo, na verdade, os instrutores, sustentamos os primeiros<br />

anos da universidade. Agora, parece-me que não há prova do tempo.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, a questão é de prova.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Acho que é caso de remessa às vias ordinárias.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Deixei claro, no final do meu voto, que os<br />

fatos são controvertidos. Admito, pois, a via ordinária.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Quero fazer esta ressalva: se se trata ou não de uma<br />

relação endoadministrativa, deixo para fazer a análise quando da relatoria do Mandado<br />

de Segurança n. 25.116, de que sou Relator, pautado para hoje.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

MS 25.440/DF — Relator: Ministro Carlos Velloso. Impetrante: Márcia Aguiar<br />

Nogueira Batista (Advogado: Victor Mendonça Neiva). Impetrado: Tribunal de Contas<br />

da União.<br />

Decisão: O Tribunal, por maioria, negou a ordem, ficando asseguradas à<br />

impetrante as vias ordinárias, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros<br />

Marco Aurélio e Eros Grau. Presidiu o julgamento o Ministro Nelson Jobim.<br />

Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes,<br />

Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da<br />

República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.<br />

Brasília, 15 de dezembro de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

MANDADO DE SEGURANÇA 25.461 — DF<br />

Relator: O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence<br />

Impetrante: Albérico de França Ferreira Filho — Impetrada: Mesa da Câmara dos<br />

Deputados — Litisconsorte passivo: Paulo Celso Fonseca Marinho<br />

1. Extinção de mandato parlamentar em decorrência de sentença<br />

proferida em ação de improbidade administrativa, que suspendeu, por<br />

seis anos, os direitos políticos do titular do mandato. Ato da Mesa da<br />

Câmara dos Deputados que sobrestou o procedimento de declaração de<br />

perda do mandato, sob alegação de inocorrência do trânsito em julgado<br />

da decisão judicial.<br />

.


688<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

2. Em hipótese de extinção de mandado parlamentar, a sua<br />

declaração pela Mesa é ato vinculado à existência do fato objetivo que a<br />

determina, cuja realidade ou não o interessado pode induvidosamente<br />

submeter ao controle jurisdicional.<br />

3. No caso, comunicada a suspensão dos direitos políticos do<br />

litisconsorte passivo por decisão judicial e solicitada a adoção de<br />

providências para a execução do julgado, de acordo com determinação<br />

do Superior Tribunal de Justiça, não cabia outra conduta à autoridade<br />

coatora senão declarar a perda do mandato do parlamentar.<br />

4. Mandado de segurança: deferimento.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie, na<br />

conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos,<br />

deferir a segurança, nos termos do voto do Relator.<br />

Brasília, 29 de junho de 2006 — Sepúlveda Pertence, Relator.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: No dia 3 de agosto do ano passado (2005),<br />

assim resumi a impetração e decidi o pedido de liminar (fls. 321/328):<br />

“Decisão: Albérico de França Ferreira Filho impetra mandado de segurança<br />

contra ato da Mesa da Câmara dos Deputados que sobrestou o procedimento<br />

da declaração de perda de mandato parlamentar do litisconsorte passivo, Deputado<br />

Paulo Celso Fonseca Marinho — de cuja bancada o impetrante é o 1º suplente —,<br />

tendo em vista a inocorrência do trânsito em julgado da decisão judicial, proferida<br />

em ação de improbidade administrativa, que suspendeu por seis anos os direitos<br />

políticos do titular.<br />

Alega o impetrante desrespeito ao artigo 55, IV e § 3º, da Constituição<br />

Federal 1 , uma vez que, fora das ‘hipóteses de competência do Plenário não é dado<br />

à Casa do Parlamento negar, por suas Mesas, imediata eficácia à decisão judicial<br />

que determina a suspensão dos direitos políticos, declarando-se a perda de mandato<br />

do litisconsorte passivo’ (fl. 18).<br />

1 “Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:<br />

(...)<br />

IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;<br />

(...)<br />

§ 3º Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa REspectiva, de<br />

ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no<br />

Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.”


R.T.J. — <strong>199</strong> 689<br />

.<br />

Requer, então, a concessão de medida liminar, ‘tendo em vista a manifesta<br />

ilegalidade cometida contra o impetrante, que está impedido de iniciar o exercício<br />

do mandato parlamentar a que tem direito’, e, ainda, o fato de ser ‘indiscutível a<br />

possibilidade de dano irreparável, uma vez que os mandatos têm prazo certo para<br />

terminar’ (fls. 21/22).<br />

Solicitadas informações (fl. 303), aduziu o il. Presidente da Câmara dos<br />

Deputados que, tendo em vista ‘sinalizações aparentemente contraditórias em<br />

torno do trânsito em julgado da sentença que suspendeu os direitos políticos do Sr.<br />

Deputado Paulo Marinho’, decidiu-se pela suspensão do referido procedimento<br />

até decisão de agravo de instrumento submetido ao Supremo Tribunal Federal.<br />

II<br />

O desenvolvimento processual da questão é complexo, e foi assim resumido<br />

pelo impetrante, com fidelidade à documentação que instrui o pedido:<br />

‘Em face da sentença que em 04 de janeiro de <strong>199</strong>9 o condenou por ato<br />

de improbidade administrativa (doc. <strong>07</strong>) e tendo em vista que transcorreu in<br />

albis o prazo recursal, o referido Deputado Paulo Marinho impetrou<br />

mandado de segurança junto ao colendo Tribunal de Justiça do Maranhão,<br />

visando a declaração da nulidade do ato judicial, pretextando vício na<br />

citação.<br />

No mandado de segurança, foi concedida, em 27 de janeiro de <strong>199</strong>9,<br />

pela egrégia Corte de Justiça Estadual, medida liminar com o fim de sustar a<br />

decretação de seus direitos políticos até o julgamento do mérito. O<br />

conspícuo Superior Tribunal de Justiça, contudo, em autos de Suspensão de<br />

Segurança n. 722, suspendeu os efeitos da Liminar referida, consoante<br />

decisão de 1º de fevereiro de <strong>199</strong>9 (doc. 08).<br />

Verificando que pela via eleita não obteria os efeitos almejados, o<br />

Deputado Paulo Marinho desistiu do mandado de segurança, optando,<br />

mesmo a destempo, interpor recurso de apelação, que, evidentemente, não<br />

foi recebido pelo Magistrado de primeiro grau, por se voltar contra decisão<br />

transitada em julgado.<br />

Foi, então, interposto o Agravo de Instrumento n. 2069/<strong>199</strong>9 (12268/<br />

<strong>199</strong>9) — Caxias, pelo qual se pretendeu a reforma da decisão de não<br />

recebimento da apelação, inclusive com a concessão de efeito suspensivo<br />

(doc. 09). Também foi ajuizada Medida Cautelar Inominada junto ao<br />

Tribunal de Justiça do Maranhão para suspender os efeitos da sentença de<br />

improbidade (doc. 10).<br />

A liminar na ação cautelar foi deferida pela Corte Estadual (doc. 11),<br />

assim como foi provido o agravo de instrumento, em 31 de agosto de <strong>199</strong>9<br />

(doc. 12). Contra essa última decisão, o Município de Caxias interpôs<br />

recurso especial.<br />

Entrementes, foi ajuizada junto ao Superior Tribunal de Justiça a<br />

Reclamação n. 630, sob o fundamento de que as decisões proferidas na Ação<br />

Cautelar e no Agravo de Instrumento antes mencionados estariam a violar a


690<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

autoridade da decisão proferida por aquele mesmo conspícuo Tribunal na<br />

citada Suspensão de Segurança n. 722. O pleito foi deferido pelo eminente<br />

Presidente de então, Ministro Pádua Ribeiro, com r. decisão lavrada, na sua<br />

parte dispositiva, nos seguintes termos (fl. 13):<br />

‘Assim, com fundamento no art. 4º da Lei n. 8.437/92 e, também,<br />

adotando, como razão de decidir o douto parecer do Ministério Público<br />

Federal, defiro o pedido formulado para cassar os efeitos das decisões<br />

prolatadas nos autos do Agravo de Instrumento n. 01.002.12268/99 e da<br />

Ação Cautelar Inominada n. 02.17.12179/99, relatadas pelo eminente<br />

Desembargador Antonio Guerreiro Júnior, do Tribunal de Justiça do<br />

Estado do Maranhão, restabelecendo-se, na espécie, a autoridade da<br />

coisa julgada hostilizada e ensejando, desse modo, a possibilidade de<br />

execução de sentença.’<br />

Tal decisão foi atacada por meio de agravo regimental, que não foi<br />

conhecido. Em razão desse fato, o eminente Presidente da Corte Estadual<br />

declarou que o recurso especial aforado contra o v. acórdão que deu<br />

provimento ao referido Agravo de Instrumento n. 2069/<strong>199</strong>9 (12268/<strong>199</strong>9) —<br />

Caxias (identificado na decisão do STJ como n. 01.002.12268/<strong>199</strong>9) ficou<br />

sem objeto, tendo em vista que ‘no trâmite do processo sobreveio decisão<br />

proferida pelo Ministro Antonio Pádua Ribeiro, Presidente do Superior<br />

Tribunal de Justiça, nos autos da Reclamação n. 630/MA (99/00990493-5),<br />

que cassou os efeitos das decisões ora atacadas, do que resultou na falta de<br />

interesse recursal para o recorrente’(doc. 14).<br />

Adotando a mesma linha de entendimento, o litisconsorte passivo<br />

Paulo Marinho ajuizou, então, perante o colendo Tribunal de Justiça do<br />

Maranhão a Ação Rescisória n. 4.411/2000, em 03 de abril de 2000 (doc. 15),<br />

tendo o eminente Desembargador Antônio Guerreiro Júnior, Relator por<br />

prevenção, deferido pedido de tutela antecipada (doc. 16). (...)<br />

(...)<br />

Ou seja, ao ajuizar a ação rescisória, o Deputado Paulo Marinho foi<br />

expresso em reconhecer que a decisão proferida pelo Superior Tribunal de<br />

Justiça na Reclamação n. 630 acabou por cassar as decisões proferidas nos<br />

autos do Agravo de Instrumento n. 01.01.12268/99 (ou 2069/99).<br />

Concedida a tutela antecipada, a ação rescisória mereceu acolhimento<br />

por parte da colenda Corte do Estado do Maranhão (doc. 17). Ocorre,<br />

contudo, que o egrégio Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o Recurso<br />

Especial n. 471.732, por sua Primeira Turma, houve por bem conhecer e dar<br />

provimento ao apelo derradeiro, reformando a decisão que dera pela<br />

procedência da rescisória (doc. 18). A mesma Corte Superior determinou a<br />

imediata comunicação da decisão ao MM. Juiz de Primeiro Grau, para<br />

imediato cumprimento da sentença transitada em julgado (doc. 19).<br />

Daí o Ofício n. 242, de 13 de setembro de 2004, proveniente do MM.<br />

Juiz da 1ª Vara de Caxias mencionado logo no início da presente exposição.


R.T.J. — <strong>199</strong> 691<br />

Houve, é certo, a interposição de recurso extraordinário pelo Deputado<br />

Paulo Marinho, que, como cediço, é destituído de efeito suspensivo. De<br />

qualquer sorte, não foi ele admitido por despacho do eminente Vice-<br />

Presidente do STJ, estando pendente de apreciação o Agravo de Instrumento<br />

n. 543.548, distribuído à ilustre Ministra Ellen Gracie (doc. 20).<br />

Com a finalidade de obstar essa douta Mesa de dar curso ao<br />

procedimento de declaração de perda de mandato, o Deputado Paulo<br />

Marinho ajuizou junto ao Supremo Tribunal Federal o Mandado de<br />

Segurança n. 25.004, no qual obteve medida liminar concedida pelo insigne<br />

Ministro Nelson Jobim, sob o argumento de que a decisão do STJ, relativa ao<br />

recurso especial da ação rescisória, não teria transitado em julgado (doc. 21).<br />

Nada obstante, o mencionado Deputado terminou por desistir dessa<br />

primeira impetração (doc. 22), para logo em seguida ajuizar o Mandado de<br />

Segurança n. 25.131, distribuído ao eminente Ministro Eros Grau, em que<br />

pela vez primeira passou a sustentar a esdrúxula tese aqui discutida, qual seja,<br />

a de inexistência de trânsito em julgado da sentença condenatória em face do<br />

provimento do agravo de instrumento que determinou o processamento da<br />

apelação. Pede-se vênia para se destacar a parte final da decisão proferida pelo<br />

eminente Ministro Eros Grau, pela qual indeferiu de plano o processamento<br />

do writ (doc. 23).<br />

Ou seja, por voz abalizada e insuspeita, proclamou-se a litigância de<br />

má fé por parte do Deputado Paulo Marinho. Mas este não se fez de rogado,<br />

desistindo do referido mandamus.<br />

Entrementes, o Presidente da Mesa da Câmara, à época o Deputado<br />

João Paulo Cunha, acolhendo o pronunciamento do eminente Corregedor<br />

da Casa, resolveu submeter a questão à colenda Comissão de Constituição e<br />

Justiça e de Cidadania.<br />

Contra tal decisão, o ora peticionante ajuizou também junto ao Supremo<br />

Tribunal Federal o Mandado de Segurança n. 25.163, distribuído ao nobre<br />

Ministro Joaquim Barbosa (doc. 24). S. Exa. indeferiu o pedido de medida<br />

liminar (doc. 25), entendendo que os fatos se apresentavam duvidosos,<br />

especialmente a questão dos efeitos da decisão proferida nos autos do agravo<br />

de instrumento. O ora peticionante, entendendo que, de fato, havia falta de<br />

elementos no processo, preferiu de plano pedir desistência (doc. 26).<br />

Por seu turno, a douta Comissão de Constituição e Justiça e de<br />

Cidadania acolheu, por maioria de votos, o parecer apresentado pelo insigne<br />

Deputado Paulo Magalhães, que concluiu que não havia trânsito em<br />

julgado, fazendo menção especialmente ao Agravo de Instrumento n.<br />

543.548-<strong>STF</strong>.<br />

O processo administrativo, então, foi encaminhado de volta à Mesa<br />

requerida, que, assim, praticou o ato objeto de impugnação.<br />

Caracterizada a violação de direito líquido e certo do impetrante por<br />

parte da impetrada, impetra-se a presente segurança.’


692<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Além do relatado pelo impetrante, a novidade é a decisão de negativa de<br />

seguimento do agravo submetido à Ministra Ellen Gracie, proferida em 2-8-2005<br />

e pendente de publicação.<br />

III<br />

Certo, ao apreciar caso similar, onde se pretendeu a concessão de efeito<br />

suspensivo a RE interposto de decisão do TST que julgou procedente ação<br />

rescisória e, com isso, sustar o processo de execução da decisão rescindenda,<br />

afirmei (PET 2343, DJ de 24-8-01):<br />

‘A doutrina — alguns de cujos melhores expoentes o requerente<br />

evoca (v.g., Galeno Lacerda, Comentários ao Código de Processo Civil,<br />

Forense, III. I/65; Manoel Teixeira Filho, As Ações Cautelares no<br />

Processo do Trabalho, 3ª, LTr, 174; Sérgio Bermudes, Direito Processo<br />

Civil — Estudos e Pareceres, 2ª série, Saraiva, p. 268) — tende a admitir<br />

que o art. 489 do Código de Processo Civil — a teor do qual a ação rescisória<br />

não suspende a execução da sentença rescindenda’ — não exclui o<br />

exercício, quando necessário, do poder cautelar, a fim de obviar que a<br />

execução da decisão rescindenda frustre a eficácia da sua rescisão<br />

provável.<br />

O Supremo Tribunal — posto não admita que a lei determine a<br />

suspensão da eficácia da decisão rescindenda como efeito ipso jure da<br />

propositura da ação rescisória (ADIn 1.459, Sanches, <strong>RTJ</strong> 169/154) —<br />

também considera válida a suspensão, caso a caso, se e quando demonstrados<br />

os pressupostos da medida cautelar adequada (AgSS 510, Brossard, 21-10-<br />

93, Lex 184/242; Pet 1.347, Jobim, 17-9-97, 24-9-97; ADInMC 1.718,<br />

Gallotti, 15-12-97, Inf. <strong>STF</strong> 97).<br />

Se assim é quando evidenciada a plausibilidade da pretensão veiculada<br />

pela ação rescisória apenas proposta, a fortiori há de admitir-se o pedido<br />

cautelar suspensivo da execução da decisão rescindenda, quando, julgada<br />

procedente a ação rescisória, a decisão dela penda de recurso extraordinário do<br />

vencido, despido, por lei, de efeito suspensivo.’<br />

No caso sob exame, a hipótese é inversa. Busca-se a execução da sentença<br />

rescindenda, obstada pelo ato coator da Mesa da Câmara dos Deputados, fundado<br />

na ausência do trânsito em julgado do agravo de instrumento oriundo da ação<br />

rescisória, julgada procedente na origem, mas reformada pelo Superior Tribunal de<br />

Justiça no julgamento do recurso especial interposto, quando se afirmou que “a<br />

sentença não teve por base referida prova falsa, o que inibe a causa petendi<br />

consistente na aplicação do art. 485, VI, do CPC” (fl. 203).<br />

Assim, a medida excepcional de suspensão da decisão rescindenda não<br />

produz mais efeitos, voltando a prevalecer a regra do art. 489 do Código de<br />

Processo Civil.<br />

Não há falar, portanto, nesse estranho efeito inibitório da autoridade da coisa<br />

julgada, que garante o exercício do mandato político àquele cidadão cujos direitos<br />

políticos foram suspensos, por força de simples ato de sua própria vontade, o de


R.T.J. — <strong>199</strong> 693<br />

propor uma ação rescisória, julgada improcedente com base na legislação processual<br />

judiciária, e insistiu em recurso extraordinário, que padece de manifesta<br />

inviabilidade.<br />

Bem por isso, para improver o agravo de instrumento, assentou a em. Ministra<br />

Ellen Gracie:<br />

‘1. A questão relativa ao reexame dos julgamentos proferidos em grau<br />

de embargos de declaração, para fins de nulidade, por negativa de prestação<br />

jurisdicional, é de índole processual ordinária. Inviável, portanto, o trânsito<br />

do apelo extremo, interposto a pretexto de ofensa aos arts. 5º, LIV e LV, e 93,<br />

IX, da Constituição Federal.<br />

2. O Superior Tribunal de Justiça examinou, no âmbito de sua competência,<br />

matéria de índole estritamente processual, referente a pressupostos de<br />

cabimento do recurso especial. Assim, eventual contrariedade ao art. 105, III,<br />

a, da Lei Maior somente poderia ocorrer de forma indireta, o que impede o<br />

acesso à via extraordinária.<br />

3. A aplicação da multa prevista no parágrafo único do art. 538 do<br />

Código de Processo Civil não oferece implicação constitucional.<br />

4. Nego seguimento ao agravo.’<br />

Esse o quadro, deixar subsistir a situação atual é sacralizar a chicana, reduzir<br />

a nada a eficácia da coisa julgada e o direito do impetrante ao exercício do<br />

mandato, que, há anos, vem sendo obstado pela litigância de má-fé.<br />

De tudo, defiro a liminar para que a Mesa da Câmara dos Deputados dê curso<br />

imediato ao procedimento de declaração de perda de mandato parlamentar do<br />

Deputado Paulo Celso Fonseca Marinho, e conseqüente investidura do impetrante<br />

no mandato.”<br />

2. No dia 10 do mesmo mês, o litisconsorte passivo — Paulo Celso Fonseca<br />

Marinho — protocolou petição requerendo sua inclusão no feito e, ainda, reconsideração<br />

da decisão pela qual deferi a liminar pleiteada.<br />

3. Aduziu, para tanto, não haver ocorrido o trânsito em julgado da sentença que<br />

suspendeu seus direitos políticos, já que o acórdão proferido no Agravo de Instrumento<br />

julgado pelo TJMA — onde se afastou a intempestividade da apelação interposta — não<br />

teria sido abarcado pela decisão na Reclamação 630/STJ, adstrita à cassação da liminar<br />

que atribuiu efeito suspensivo ao agravo de instrumento.<br />

4. Mantive a decisão objeto do pedido de reconsideração pelos seus próprios<br />

fundamentos, em 10-8-05 (fl. 354).<br />

5. Daí o agravo regimental de fls. 375/4<strong>07</strong>, onde o litisconsorte reafirmou a sua tese<br />

(fl. 391):<br />

“Certo é que jamais houve trânsito em julgado da sentença, como prova o<br />

teor da decisão na ‘Reclamação n. 630/MA’, cuja procedência serviu apenas a<br />

cassar a liminar proferida nos autos do agravo de instrumento, mas nunca o<br />

acórdão que lhe deu provimento, o qual produz seus regulares efeitos.”


694<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

6. Não conheci do recurso tendo em vista a Súmula 622 do <strong>STF</strong>. Disse, ainda (fl.<br />

410):<br />

“E, mesmo que considerado o pedido como de reconsideração, sua interposição<br />

viola o princípio da singularidade recursal, pois já realizado (fl. 373) e<br />

indeferido (fl. 354) quando do exame da contestação apresentada.<br />

Ressalte-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão julgou prejudicado<br />

o recurso especial interposto do acórdão do agravo de instrumento que deu<br />

pela tempestividade da apelação mencionada, tendo em vista a ‘decisão proferida<br />

pelo Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, Presidente do Superior Tribunal de<br />

Justiça, nos autos da Reclamação n. 630/MA (99/0090493-5), que cassou os<br />

efeitos das decisões ora atacadas, do que resultou na falta de interesse recursal para<br />

o recorrente’ (fl. 144).<br />

Daí foi proposta ação rescisória pelo agravante, que exige o trânsito em<br />

julgado da sentença de mérito (Código de Processo Civil, art. 485), o que contradiz<br />

a tese agora sustentada.”<br />

7. Foi juntado, então, ofício da Câmara dos Deputados (Of. SGM/P n. 15<strong>07</strong>/05),<br />

dando notícia da declaração da perda do mandato de Deputado Federal do litisconsorte<br />

passivo, ocorrida em 11-8-05 (fls. 414/417).<br />

8. O Ministério Público Federal, em seu parecer, opina pela concessão do mandado<br />

de segurança (fls. 421/424).<br />

9. É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Relator):<br />

I<br />

1. Recebida a solicitação de instauração do procedimento de declaração de perda<br />

do mandato parlamentar do litisconsorte pela Casa parlamentar, iniciou-se, a partir de<br />

então, longa discussão sobre a ocorrência, ou não, do trânsito em julgado da sentença<br />

que suspendeu os seus direitos políticos.<br />

2. No decorrer dos debates na Câmara dos Deputados, foram impetrados os<br />

seguintes mandados de segurança:<br />

— MS 25.004, distribuído ao Ministro Joaquim Barbosa e arquivado, devido à<br />

homologação do pedido de desistência manifestado pelo impetrante — Paulo Marinho<br />

(DJ de 26-11-2004);<br />

— MS 25.131 — também impetrado por Paulo Marinho — distribuído ao<br />

Ministro Eros Grau, que lhe negou seguimento em decisão de 30-11-2004, nestes<br />

termos:<br />

“18. Como se vê à fl. 235, o Superior Tribunal de Justiça, nos autos da<br />

Reclamação n. 630 foi extremamente claro ao confirmar a intempestividade do<br />

recurso de apelação interposto:


R.T.J. — <strong>199</strong> 695<br />

.<br />

‘Ora, conforme reconhecem as petições e as decisões atacadas (fls. 82,<br />

60/61 e 311/312 dos autos), bem como certifica o escrivão do Cartório do 4º<br />

Ofício da Comarca de Caxias/MA, a sentença foi registrada e publicada em<br />

cartório no dia 04.01.<strong>199</strong>9 (fls. 160 e 168). Assim, o prazo para interposição do<br />

recurso encerrou-se em 19.01.<strong>199</strong>9, sendo a apelação protocolizada em<br />

02.02.<strong>199</strong>9, encontrando o feito já encoberto pelo manto da preclusão<br />

máxima.<br />

A meu sentir e ante os elementos contidos nos autos, transparece o<br />

propósito do Sr. Paulo C. F. Marinho de desprezar a decisão emanada da SS 722/<br />

MA, buscando, por vias transversais, aquilo que lhe foi negado de modo direto.<br />

Entendo que decisões como as noticiadas nos autos voltam-se contra o<br />

interesse da coletividade, especialmente aquele — hoje configurado em<br />

exigência da sociedade brasileira — que concerne ao respeito à coisa pública.<br />

De fato, liminares dessa natureza, ao tempo em que afrontam o<br />

princípio da segurança jurídica — consubstanciada na autoridade da coisa<br />

julgada — conspiram no sentido de criar grave lesão à ordem (pela<br />

repercussão social negativa que produzem, gerando desconfiança e<br />

descrédito no Poder Judiciário) e à economia públicas (pelos vultosos<br />

recursos desviados e com remotas possibilidades de recuperação, se<br />

mantidas as decisões).’<br />

19. Ademais, sob o argumento de não ver seu direito de apelar reconhecido<br />

por meio do agravo de instrumento interposto, o próprio impetrante acaba por<br />

reconhecer o trânsito em julgado da sentença de primeiro grau ao propor a competente<br />

ação rescisória perante o Tribunal maranhense.<br />

20. Bem assim, a respeito do acórdão proferido pelo STJ julgando os últimos<br />

embargos de declaração contra o provimento do recurso especial para restabelecer<br />

a sentença rescindida, afirma o impetrante [fl. 10]: ‘Tal decisão, além de haver<br />

declarado o trânsito em julgado do acórdão, determinou o imediato cumprimento<br />

da decisão que decretou a suspensão de seus direitos políticos.’<br />

21. Registre-se, por oportuno, que o Superior Tribunal de Justiça não excedeu<br />

sua função jurisdicional ao decretar o trânsito em julgado do acórdão que deu<br />

provimento ao recurso especial, eis que a utilização dos embargos de declaração<br />

com intuito meramente protelatório não obstam o trânsito em julgado da decisão<br />

embargada. Neste sentido a jurisprudência desta Corte:<br />

(...)<br />

22. Em verdade, busca o impetrante com o presente mandado de segurança<br />

suspender a execução da coisa julgada, o que, no caso, é inadmissível.<br />

23. Ademais, dos fatos noticiados na impetração, bem como do teor das<br />

decisões acostadas aos autos, vê-se que o impetrante procura, a todo o custo,<br />

mediante a interposição de todos os recursos e incidentes processuais que entende<br />

cabíveis, obstar a execução da sentença de primeiro grau, que determinou a<br />

suspensão de seus direitos políticos, o que caracteriza as condutas descritas nos<br />

incisos II e III do art. 17 do CPC.”


696<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Interposto agravo regimental dessa decisão, sobreveio outro pedido de desistência<br />

do impetrante, homologado pelo Relator em 9-3-2005 (DJ de 16-3-2005);<br />

- MS 25.163, impetrado por Albérico Ferreira Filho contra o encaminhamento do<br />

processo à Comissão de Constituição e Justiça para consulta, distribuído ao Ministro<br />

Joaquim Barbosa, que, após o indeferimento da liminar pleiteada (DJ de 13-3-05),<br />

homologou o pedido de desistência do impetrante (DJ de 28-3-05).<br />

3. Em seu parecer, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, em sessão<br />

de 4-5-05, opinou, por maioria de votos, que não houvera trânsito em julgado.<br />

4. O argumento central do voto está na decisão proferida no mencionado MS<br />

25.163: o fato de o agravo de instrumento da decisão que deu pela intempestividade da<br />

apelação interposta contra a sentença condenatória ter sido provido.<br />

5. Ocorre que, conforme documentos constantes dos autos (apenso 13), o relatório<br />

e o voto apresentados pelo Relator designado na CCJ, Deputado Paulo Magalhães<br />

(PFL/BA), foram retificados para acrescentar trechos resultantes de complementação<br />

oral ocorrida durante a leitura desses: o fato se deu ante a informação prestada pelo<br />

Deputado Paulo Marinho de que o Sr. Albérico Filho (suplente) teria desistido do MS<br />

25.163.<br />

6. Esta a justificativa apresentada 2 :<br />

“As transcrições das notas taquigráficas e da gravação da Reunião da Comissão<br />

são a expressão da verdade e dos fatos ocorridos, nesse sentido e atendendo a<br />

necessidade de autenticar eletronicamente nosso voto é que formulamos esta<br />

complementação de voto.<br />

Dois textos que não constavam do documento autenticado e publicado,<br />

resultantes de complementação oral, durante a apresentação do parecer e do voto,<br />

necessariamente são incluídos para expressar a realidade exposta:<br />

‘Ora, Sr. Presidente, tivemos notícia por uma informação do<br />

Deputado Paulo Marinho, que o Sr. Albérico Filho desistiu da impetração<br />

do Mandado de Segurança n. 25.163, tendo sido a homologação do pedido<br />

publicada em 28 próximo passado. (nosso grifo)<br />

Também, Sr. Presidente, tivemos conhecimento de que existe,<br />

tramitando no <strong>STF</strong>, um recurso que levou o número 471.732, do Superior<br />

Tribunal de Justiça como origem, onde aparecem o Sr. Paulo Celso<br />

Fonseca Marinho e o Ministério Público do Estado do Maranhão. (nosso<br />

grifo)’<br />

A decisão do voto está na conclusão que formulei oralmente conforme o<br />

texto, transcrito da gravação e das notas taquigráficas a seguir:<br />

‘Sr. Presidente, diante dos fatos e dos documentos que me chegaram,<br />

concluo que não há trânsito em julgado. Quero enviá-los à Mesa para que<br />

ela tome as decisões que julgar cabíveis.’ (grifo nosso)”<br />

2 Folhas 1048 e 1049 do apenso 13.


R.T.J. — <strong>199</strong> 697<br />

7. Ora, com isso o fundamento principal do voto foi substancialmente modificado,<br />

já que a determinação inicial para que se aguardasse o julgamento de mérito do MS<br />

25.163 não mais subsistia ante a desistência deste.<br />

8. Entender de forma diversa significa impossibilitar o cumprimento da determinação<br />

constitucional atribuída à Mesa da Câmara de declarar a perda do mandato do Deputado<br />

que teve suspensos os seus direitos políticos (§ 3º, IV, art. 55, Constituição Federal).<br />

9. Nesse contexto, foi impetrado o presente mandado de segurança contra a<br />

determinação de sobrestamento do feito até manifestação definitiva do Poder Judiciário<br />

a respeito do trânsito em julgado da sentença que suspendeu os direitos políticos do<br />

litisconsorte.<br />

II<br />

10. Como visto, são basicamente dois os argumentos utilizados pelo litisconsorte<br />

com o intuito de afastar o trânsito em julgado da decisão que suspendeu seus<br />

direitos políticos: 1) a inocorrência de desfecho da ação rescisória apresentada, ante<br />

os sucessivos recursos interpostos, agora na fase de embargos de declaração à decisão<br />

do agravo regimental da decisão da em. Ministra Ellen Gracie, que negara provimento<br />

ao AI 543.548 (DJ de 12-12-05); 2) existir decisão do Tribunal de Justiça do<br />

Estado do Maranhão no sentido da tempestividade da apelação interposta da sentença<br />

condenatória, não abrangida pela Reclamação 630 do Superior Tribunal de Justiça.<br />

11. Ora, conforme acentuei quando da apreciação da liminar requerida, com a<br />

improcedência da ação rescisória declarada pelo Superior Tribunal de Justiça, a medida<br />

excepcional de suspensão da decisão rescindenda não produz mais efeitos, voltando a<br />

prevalecer a regra do art. 489 do Código de Processo Civil, mormente ante a inexistência<br />

de plausibilidade da pretensão veiculada na ação rescisória e a ausência de atribuição de<br />

efeito suspensivo ao recurso extraordinário inadmitido na origem, sendo esta decisão<br />

confirmada posteriormente neste Tribunal.<br />

12. Assim, não há falar, no caso, no exercício do poder cautelar obstativo da<br />

execução da decisão rescindenda, certo que, como ressaltado na decisão liminar, a<br />

simples proposição de ação rescisória não possui o condão de sustar os seus efeitos.<br />

13. Quanto à inocorrência do trânsito em julgado do agravo de instrumento que<br />

deu pela tempestividade da apelação do litisconsorte, qualquer dúvida advinda da<br />

extensão do que decidido pelo STJ na Reclamação 630 foi afastada com a simples<br />

proposição da ação rescisória, que importa, por si só, o reconhecimento do trânsito em<br />

julgado da ação de conhecimento pelo próprio litisconsorte.<br />

14. Aliás, o Tribunal de Justiça estadual também considerou cassada pelo STJ a<br />

decisão que o litisconsorte pretende restabelecer. Transcrevo a decisão do Presidente do<br />

TJMA que inadmitiu o REsp interposto pelo Município de Caxias contra o acórdão que<br />

deu pela tempestividade da apelação do litisconsorte (fl. 144):<br />

“Trata-se de Recurso Especial interposto pelo Município de Caxias, com<br />

fundamento no artigo 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal, contra os<br />

acórdãos n.º 28.922/99 e 28.624/99, que negaram provimento respectivamente aos<br />

Embargos de Declaração e ao Agravo de Instrumento n.º 2069/99 (01.002.12268/<br />

99) — Caxias.<br />

.


698<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Ocorre que, no trâmite do processo sobreveio decisão proferida pelo<br />

Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, Presidente do Superior Tribunal de Justiça,<br />

nos autos da Reclamação n.º 630/MA (99/0090493-5), que cassou os efeitos das<br />

decisões ora atacadas, do que resultou na falta de interesse recursal para o<br />

recorrente.<br />

Ante o exposto, ausente um pressuposto intrínseco de admissibilidade,<br />

Inadmito o presente recurso especial.”<br />

15. E, ainda, a decisão pela qual foi concedida a antecipação da tutela na ação<br />

rescisória do litisconsorte, verbis (fls. 315/316 do apenso n. 6):<br />

“Na apelação que interpôs, assim como em medida cautelar ajuizada<br />

incidentalmente e em agravo de instrumento interposto contra a decisão que<br />

negara seguimento à apelação, o autor vinha sustentando, em face dessa mesma<br />

ação de ressarcimento cuja sentença é objeto desta rescisória, que não fora<br />

regularmente citado, sendo falsa ideologicamente a certidão nesse sentido do<br />

meirinho, e que, assim, não transitara em julgado a sentença, até porque, conforme<br />

certidão exarada pela escrivã e acostada a esses feitos, não se dera a publicação da<br />

sentença, nem mesmo por edital afixado no cartório, sendo ela tão-somente<br />

registrada no livro próprio e comunicada pessoalmente à representante do<br />

Ministério Público e ao advogado do Município de Caxias, que exararam cotas<br />

nos autos dando-se por cientes.<br />

Foi com base neste último aspecto que concedi liminarmente a cautelar<br />

acima mencionada, assim como liminar no agravo de instrumento, o que foi<br />

referendado pela Segunda Câmara Cível, que, ao depois, acolheu o agravo de<br />

instrumento, para determinar a subida da apelação. Sucede, porém, que o<br />

eminente Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, Presidente do Colendo Superior<br />

Tribunal de Justiça, assim não entendeu e, em face da Reclamação n. 630-MA,<br />

como consta da sua decisão acostada a estes autos, afirmou a regularidade da<br />

conduta observada na Comarca de Caxias, e em conseqüência cassou tanto a<br />

decisão da medida cautelar como a do agravo de instrumento, ‘restabelecendo-se,<br />

na espécie, a autoridade da coisa julgada hostilizada’, nada obstante a cautelar<br />

tivesse sido apreciada e considerada prejudicada através de decisão colegiada<br />

do Tribunal Estadual, e o agravo de instrumento, também deliberado pela Corte,<br />

sujeito a recurso especial.<br />

Desse modo, embora o recurso de apelação ainda permaneça no juízo de<br />

base, está este Tribunal virtualmente impedido de sobre ele deliberar, pelo menos<br />

enquanto prevalecer o entendimento da Presidência do STJ, cuja Corte Especial<br />

não conheceu do agravo regimental interposto pelo autor. E, diante do quadro<br />

presente, embora com ressalva do meu ponto de vista pessoal em contrário, não<br />

tenho como deixar de reconhecer o trânsito em julgado da decisão atacada,<br />

pressuposto necessário à admissibilidade desta rescisória.”<br />

16. Indiferente, no caso, qual a classe em que foi autuado o pedido realizado<br />

perante o STJ; se o efeito da decisão proferida foi mal interpretado pelos órgãos<br />

jurisdicionais, deveria a parte interessada impugnar oportunamente tal entendimento.<br />

Entretanto, o litisconsorte manifestou tacitamente sua concordância com a decisão que<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 699<br />

inadmitiu o REsp do Município de Caxias sob o fundamento de cassação do acórdão<br />

que lhe era favorável, já que, transcorrido o prazo recursal, apresentou ação rescisória em<br />

que discutia questão completamente diversa dos efeitos da decisão do Tribunal<br />

Superior.<br />

17. Difícil crer, ademais, que o ora litisconsorte pugnaria pela nulidade dessa<br />

decisão — sob o mesmo argumento de subsistência da apelação — não tivesse o<br />

impetrante se irresignado contra a decisão do TJMA na ação rescisória e o seu recurso<br />

especial sido provido pelo STJ.<br />

18. Observo, ainda, que o litisconsorte interpôs agravo regimental e embargos de<br />

declaração da decisão da em. Ministra Ellen Gracie, pela qual negou seguimento ao AI<br />

543.546: pretender o processamento simultâneo da ação original e da ação rescisória<br />

evidencia a chicana apontada na decisão liminar.<br />

III<br />

19. De tudo e, ainda, do Ofício n. 242/2004, encaminhado ao Presidente da Câmara<br />

dos Deputados pelo Juiz de Direito da 1ª Vara da Comarca de Caxias, Estado do<br />

Maranhão, no qual comunica a suspensão dos direitos políticos do litisconsorte passivo<br />

e solicita a adoção das providências para a execução do julgado, de acordo com<br />

determinação do Ministro Presidente da Primeira Turma do STJ (fls. 28/31), não cabia<br />

outra conduta à autoridade coatora senão declarar a perda do mandato do Deputado<br />

Paulo Marinho.<br />

20. É que se cuida de hipótese de extinção de mandato parlamentar. Ressaltei, no<br />

julgamento do MS 25.579 (sessão de 19-10-05 — “caso José Dirceu”), a distinção desta<br />

espécie de perda de mandato com a cassação. Rememoro o voto então expendido, no<br />

que interessa:<br />

“10. Parto da distinção, presente na obra de José Afonso 3 entre a cassação e<br />

a simples extinção do mandato: ‘cassação’ dilucida o mestre, com definição de<br />

Hely Lopes Meirelles —, ‘é a decretação da perda de mandato, por ter o seu titular<br />

incorrido em falta funcional, definida em lei e, punida com esta sanção’; já a<br />

‘extinção do mandato’, define, ‘é o perecimento do mandato pela ocorrência do<br />

fato ou ato que torna automaticamente inexistente a investidura eletiva, tais como<br />

a morte, a renúncia, o não comparecimento a certo número de sessões expressamente<br />

fixado (desinteresse que a Constituição eleva à condição de renúncia),<br />

perda ou suspensão dos direitos políticos’.<br />

11. ‘A utilidade e a razão da distinção’ — colho de precioso estudo inédito<br />

de Eduardo Fortunato Bim 4 ,que o autor teve a fineza de enviar-me — ‘reside na<br />

necessidade ou não de votação da Câmara ou do Senado para a perda do mandato<br />

do parlamentar e, ipso facto, na existência (cassação) ou inexistência (extinção) de<br />

juízo político do parlamento’.<br />

3 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. Malheiros, 2005, p. 539.<br />

4 BIM, Eduardo Fortunato. A cassação do mandato por quebra de decoro parlamentar: Sindicabilidade<br />

jurisdicional e tipicidade. Inédito, recebido por correio eletrônico.


700<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

12. ‘Para os casos de cassação (incisos I, II e VI do art. 55 da CF), há necessidade<br />

de votação secreta pela maioria absoluta dos membros da casa, mediante a provocação<br />

da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso<br />

Nacional, assegurada a ampla defesa. Nos de extinção do mandato (CF, art. 55,<br />

incs. III, IV e V) haverá apenas a declaração da Mesa, não votação secreta por<br />

maioria absoluta’.<br />

13. ‘Na cassação’, — infere daí o autor —, ‘a decisão tem natureza<br />

constitutiva; na extinção, meramente declaratória’.<br />

14. Dos casos de extinção, não é preciso cuidar-se aqui: sua declaração pela<br />

Mesa é ato vinculado à existência do fato objetivo que a determina, cuja realidade,<br />

ou não, o interessado pode induvidosamente submeter ao controle jurisdicional.<br />

21. No caso sob exame, o fato objetivo está consubstanciado na provocação do<br />

Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB, que requereu da Mesa da Câmara<br />

dos Deputados a instauração do procedimento de declaração de perda do mandato parlamentar<br />

de Paulo Marinho e a conseqüente convocação do impetrante — Albérico de<br />

França Ferreira Filho — para assumir o cargo de Deputado Federal pelo Estado do<br />

Maranhão, tendo em vista a suspensão dos direitos políticos do litisconsorte passivo por<br />

sentença transitada em julgado e confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça.<br />

IV<br />

22. De tudo, defiro o mandado de segurança, confirmada a liminar concedida: é o<br />

meu voto.<br />

PEDIDO DE VISTA<br />

O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Senhora Presidente, em que pese o brilhante<br />

voto do eminente Relator, em homenagem à douta defesa do litisconsorte que,<br />

momentos antes da sessão me apresentou um denso memorial, peço vista.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

MS 25.461/DF — Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. Impetrante: Albérico de<br />

França Ferreira Filho (Advogados: José Eduardo Rangel de Alckmin e outro). Impetrada:<br />

Mesa da Câmara dos Deputados. Litisconsorte passsivo: Paulo Celso Fonseca Marinho<br />

(Advogados: Marcelo Luiz Ávila de Bessa e outros).<br />

Decisão: Após o voto do Ministro Sepúlveda Pertence (Relator), deferindo o<br />

mandado de segurança, pediu vista dos autos o Ministro Ricardo Lewandowski. Ausente,<br />

justificadamente, o Ministro Eros Grau. Falaram, pelo impetrante, o Dr. José Eduardo<br />

Rangel de Alckmin e, pelo litisconsorte passivo, o Dr. Marcelo Luiz Ávila de Bessa.<br />

Presidência da Ministra Ellen Gracie (Vice-Presidente no exercício da Presidência).<br />

Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto,<br />

Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio<br />

Fernando Barros e Silva de Souza.<br />

Brasília, 6 de abril de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 701<br />

VOTO (Vista)<br />

O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de mandado de segurança impetrado<br />

por Albérico de França Ferreira Filho contra ato da Mesa da Câmara Federal por<br />

meio do qual se determinou o sobrestamento da declaração de perda de mandato<br />

parlamentar do litisconsorte passivo, Deputado Paulo Celso Fonseca Marinho.<br />

A discussão em causa gira, essencialmente, em torno do reconhecimento da ocorrência,<br />

ou não, do trânsito em julgado da decisão que suspendeu os direitos políticos do<br />

congressista litisconsorte passivo.<br />

A complexa questão processual trazida à apreciação deste Plenário desenvolveuse,<br />

em síntese, de acordo com a seguinte cronologia:<br />

“1. O Deputado Paulo Marinho foi condenado por ato de improbidade<br />

administrativa em 4-1-<strong>199</strong>9. Transcorreu in albis o concernente prazo recursal.<br />

2. Em momento posterior, impetrou mandado de segurança junto ao Tribunal<br />

de Justiça do Estado do Maranhão sob alegação de vício de citação e conseqüente<br />

nulidade do ato.<br />

3. Concedida medida liminar, veio a ser ajuizado pedido de Suspensão de<br />

Segurança n. 722 perante o Superior Tribunal de Justiça, que foi concedido por<br />

aquela Corte em 1º-2-<strong>199</strong>9.<br />

4. Sobreveio, então, pedido de desistência do mencionado mandado de<br />

segurança.<br />

5. De todo modo, no entanto, interpôs-se recurso de apelação intempestivo,<br />

que não foi conhecido por voltar-se contra decisão transitada em julgado.<br />

6. Dessa decisão que não recebeu a apelação foi interposto agravo de instrumento.<br />

7. Ao mesmo tempo, ajuizou-se pedido de medida cautelar inominada perante<br />

o TJ/MA, que veio a ser deferida. De igual modo, foi provido o agravo de<br />

instrumento acima mencionado e interposto recurso especial dessa decisão.<br />

8. Também foi ajuizada no STJ a Rcl 630, sob fundamento de que as<br />

decisões proferidas na ação cautelar e no agravo de instrumento estariam a violar<br />

a autoridade da decisão prolatada por aquele Tribunal Superior nos autos da SS<br />

n. 722.<br />

9. Deferido o pedido na SS n. 722, pelo então Presidente, Min. Pádua Ribeiro,<br />

foi interposto agravo regimental contra decisão, que não foi conhecido.<br />

10. De outro lado, o Presidente do TJ/MA declarou que, em face da decisão<br />

proferida pelo STJ na Rcl n. 630 (para preservar a autoridade de sua decisão na SS<br />

n. 722), ficou sem objeto o recurso especial interposto da decisão que deu provimento<br />

ao agravo de instrumento que, por sua vez, foi interposto da decisão de nãorecebimento<br />

do recurso de apelação, em razão do trânsito em julgado da decisão<br />

que homologou pedido de desistência do mandado de segurança impetrado inicialmente<br />

perante o TJ/MA.


702<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

11. O Deputado Paulo Marinho, na seqüência, ajuizou a ação rescisória n.<br />

4.411, em 3 de abril de 2000, perante o TJ/MA, que concedeu a antecipação de<br />

tutela.<br />

12. Foi, então, interposto recurso especial ao STJ (REsp n. 471.732), que foi<br />

conhecido e provido para reformar a decisão que deu provimento à ação rescisória.<br />

Sobreveio interposição de recurso extraordinário, que não foi admitido.<br />

13. Dessa decisão foi deduzido agravo de instrumento ao <strong>STF</strong>, a que foi<br />

negado seguimento pela Ministra Ellen Gracie, com aplicação de multa.<br />

14. Impetrado perante esta Corte o MS n. 25.004, o Min. Nelson Jobim<br />

concedeu medida liminar, sendo a ação distribuída ao Ministro Joaquim Barbosa,<br />

posteriormente arquivada devido à homologação de pedido de desistência.<br />

15. Mais uma vez foi impetrado mandado de segurança, junto ao <strong>STF</strong> (MS<br />

25.131), sendo este distribuído ao Ministro Eros Grau, que lhe negou seguimento,<br />

de plano. Sustentou-se, ali, pela primeira vez, ao que consta, a tese da inexistência<br />

do trânsito em julgado da sentença condenatória na ação de improbidade administrativa.<br />

16. Em paralelo, o Presidente da Câmara dos Deputados, ao acolher pronunciamento<br />

do Corregedor da Casa, submeteu a questão à apreciação da Comissão de<br />

Constituição e Justiça.<br />

17. Finalmente, por Ato da Mesa da Câmara Federal determinou-se o<br />

sobrestamento da declaração de perda de mandato parlamentar do litisconsorte<br />

passivo Deputado Paulo Marinho, razão pela qual foi impetrado o presente MS<br />

25.461, pelo Deputado Suplente Albérico de França Ferreira Filho.”<br />

Como se vê da exposição, prolonga-se no tempo, em um emaranhado de<br />

sucessivos pronunciamentos judiciais, a causa que ora se analisa.<br />

O eminente Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva<br />

de Souza, pelo parecer de fls. 421-424, manifestou-se no sentido da concessão da ordem,<br />

por entender que se pode verificar “das informações e documentos trazidos aos autos<br />

que os efeitos da coisa julgada já se operaram desde que se extinguiu o prazo para<br />

interposição da apelação da decisão que suspendeu os direitos políticos do segundo<br />

impetrado” (fl. 423).<br />

Iniciado o julgamento desta ação mandamental na Sessão Plenária de 6 de abril de<br />

2006, o Ministro Sepúlveda Pertence, Relator, atentou para o fato de que são dois, em<br />

suma, os argumentos utilizados com o intuito de ver afastado o trânsito em julgado em<br />

questão.<br />

O primeiro, “a inocorrência de desfecho da ação rescisória apresentada, ante os<br />

sucessivos recursos interpostos, agora na fase de embargos de declaração à decisão do<br />

agravo regimental da decisão da em. Ministra Ellen Gracie, que negara provimento ao AI<br />

543.548 (DJ de 12-12-05)”. E o segundo, o fato de “existir decisão do Tribunal de<br />

Justiça do Estado do Maranhão no sentido da tempestividade da apelação interposta da<br />

sentença condenatória, não abrangida pela Reclamação 630 do Superior Tribunal de<br />

Justiça”.


R.T.J. — <strong>199</strong> 703<br />

Sua Excelência proferiu voto no sentido do deferimento da segurança pleiteada<br />

pelo Deputado suplente Albérico de França Ferreira Filho, com confirmação da medida<br />

liminar anteriormente concedida, “tendo em vista a suspensão dos direitos políticos do<br />

litisconsorte passivo por sentença transitada em julgado e confirmada pelo Superior<br />

Tribunal de Justiça”.<br />

Pedi, então, vista dos autos, para melhor apreciação da causa.<br />

É o relatório.<br />

Passo a votar.<br />

Em primeiro lugar, reconheço a gravidade da situação em análise, visto que, a<br />

perda de mandato parlamentar consubstancia, em uma democracia representativa como<br />

a nossa, a expressão concreta de uma das mais sérias restrições a que se pode ver<br />

submetido um congressista em sua nobilíssima função de representante do povo.<br />

Não desconheço esse aspecto de profunda repercussão na vida e no funcionamento<br />

das instituições da República.<br />

Cumpre registrar, contudo — no que se refere à ocorrência, ou não, do trânsito em<br />

julgado da sentença condenatória, e em que pese a complexidade da questão processual<br />

sob apreciação —, que o ajuizamento de ação rescisória, evidentemente, não tem o<br />

condão de sustar os efeitos da decisão que se busca rescindir, como bem ressaltado pelo<br />

eminente Ministro Relator.<br />

É certo, ainda, que a utilização da ação rescisória, sem sombra de dúvida,<br />

demonstra o claro reconhecimento, por parte de seu autor, do efetivo trânsito em julgado<br />

da decisão ali impugnada, haja vista que se trata de pressuposto essencial à sua<br />

propositura.<br />

Assim, pois, compartilho do entendimento do eminente Relator, que ora<br />

transcrevo:<br />

“Quanto à inocorrência do trânsito em julgado do agravo de instrumento que<br />

deu pela tempestividade da apelação do litisconsorte, qualquer dúvida advinda da<br />

extensão do que decidido pelo STJ na Reclamação 630 foi afastada com a simples<br />

proposição da ação rescisória, que importa, por si só, o reconhecimento do trânsito<br />

em julgado da ação de conhecimento pelo próprio litisconsorte.”<br />

Sendo esta a questão essencial trazida ao conhecimento e apreciação deste<br />

Egrégio Plenário, também eu, Senhora Presidente, voto no sentido do reconhecimento<br />

da ocorrência do trânsito em julgado da decisão que determinou a suspensão dos<br />

direitos políticos de Paulo Celso Fonseca Marinho, para o fim de conceder a segurança<br />

ora pleiteada, com a conseqüente investidura do impetrante no mandato parlamentar.<br />

É o meu voto.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Senhora Presidente, em mandado de segurança anterior<br />

eu já reconhecia a existência do trânsito em julgado.<br />

De modo que, até por uma questão de coerência, acompanho o Relator.


704<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Senhora Presidente, também vou acompanhar o<br />

eminente Relator.<br />

Todos os incidentes anteriores à ação rescisória perderam relevância. Se o<br />

interessado promoveu a ação rescisória, é porque reconheceu formalmente haver<br />

transitado em julgado a decisão.<br />

A eficácia dessa coisa julgada só poderia ser suspensa por alguma medida de<br />

caráter judicial. A meu ver, a ação rescisória admite a antecipação de tutela; no caso,<br />

entretanto, a antecipação foi concedida, mas cassada no recurso especial. O recurso<br />

extraordinário contra a decisão que cassou a eficácia da antecipação de tutela não foi<br />

admitido. O agravo de instrumento contra essa decisão não teve seguimento; ao<br />

contrário, além de lhe ser negado seguimento, ainda foi aplicada multa ao agravante. Aí,<br />

impetrou o mandado de segurança pela primeira vez, obtendo liminar, mas desistiu do<br />

mandado de segurança. Em seguida, promoveu outro mandado de segurança, o MS n.<br />

25.131, do qual foi Relator o Ministro Eros Grau, que o indeferiu liminarmente,<br />

reconhecendo a coisa julgada. Ora, diante disso tem-se de cumprir a decisão que<br />

transitou em julgado, pois não há nada que suspenda a eficácia dessa coisa julgada.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Relator): Informo a Vossa Excelência que,<br />

depois do voto que proferi e, também, do agravo regimental não provido pela Segunda<br />

Turma, julgaram-se os embargos de declaração, que foram rejeitados. E o acórdão<br />

transitou em julgado. Então, é que a afirmação “trânsito em julgado da sentença”<br />

transitou em julgado.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Acompanho inteiramente o Relator.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhora Presidente, o caso demonstra que, às vezes,<br />

defesa em excesso confunde. O que ocorreu na origem? O Município de Caxias — não o<br />

do Rio de Janeiro, mas o do Estado do Maranhão — ajuizou ação de ressarcimento<br />

contra o litisconsorte passivo, e essa ação teve o pedido acolhido. Então foi imposta a<br />

obrigação de ressarcir e se decretou a suspensão dos direitos políticos do litisconsorte<br />

por seis anos. Para suspender os efeitos da sentença — e esse pleito poderia ter sido<br />

veiculado na apelação ou mediante ação cautelar —, seguiu-se impetração de mandado<br />

de segurança. O litisconsorte passivo logrou a liminar. Posteriormente, foi deferido o<br />

pedido do Município de Caxias, pelo Superior Tribunal de Justiça, de suspensão dessa<br />

liminar. Deu-se a protocolação da apelação contra a sentença do Juízo, e surgiu<br />

discussão quanto à oportunidade desse recurso, que restou trancado. Em razão da<br />

declaração de intempestividade, houve a protocolação de agravo de instrumento e neste<br />

foi deferida uma liminar, colando a eficácia suspensiva ativa, já que a eficácia<br />

suspensiva tão-somente não resultaria em utilidade, porque não restabeleceria ato<br />

anterior, pois o único seria o do Juízo contrário aos interesses em jogo. Posteriormente,<br />

essa liminar, no agravo, foi cassada pelo Superior Tribunal de Justiça: Reclamação n.<br />

630. Mas o agravo, subindo ao Tribunal de Justiça, veio a ser provido, sendo<br />

determinado o processamento da apelação. Foi interposto recurso especial contra essa<br />

decisão e, não admitido na origem, deu-se a preclusão.


R.T.J. — <strong>199</strong> 705<br />

Então, até aqui, qual é o quadro? Está pendente de julgamento pelo Tribunal de<br />

Justiça do Maranhão, em crivo ordinário — no bom sentido —, a apelação interposta<br />

pelo litisconsorte passivo. Daí haver dito: às vezes, o excesso de defesa complica. O que<br />

fez o litisconsorte passivo? Precipitou-se. Ajuizou uma rescisória, colocando em segundo<br />

plano o fato de não haver transitado em julgado o título primeiro, decorrente da atuação<br />

da primeira instância. Ora, há, no Código de Processo Civil, como regra, normas dispositivas?<br />

Será que o simples ajuizamento de ação rescisória firma, leva à certeza sobre o<br />

trânsito em julgado da decisão proferida? A resposta, para mim, é desenganadamente<br />

negativa, tanto que exige o Código, como peça indispensável ao ajuizamento, a certidão<br />

referente ao trânsito em julgado do pronunciamento rescindendo. Iniludivelmente,<br />

a Justiça local não expediria essa certidão, porque pendente, no Tribunal de Justiça, a<br />

apelação processada por força da acolhida do pedido formulado no agravo de instrumento.<br />

Seguiram-se os incidentes. O Ministério Público estadual apresentou recurso<br />

perante o Superior Tribunal de Justiça contra tutela antecipada, implementada pelo<br />

Tribunal de Justiça no bojo da rescisória, até certo ponto no campo da coerência, porque<br />

havia mandado processar o recurso de apelação.<br />

O Ministério Público — repito — recorreu ao Superior Tribunal de Justiça e o<br />

Presidente da Corte declarou prejudicado o pedido pela perda de objeto, ante o<br />

julgamento da ação rescisória. Em síntese, a fase da tutela estaria suplantada.<br />

Olvidando-se a existência de apelação pendente contra o título rescindendo, a Segunda<br />

Câmara Cível do Tribunal de Justiça acolheu o pleito formulado na rescisória,<br />

desfazendo, portanto, a sentença quanto à suspensão dos direitos políticos do<br />

litisconsorte passivo. O Ministério Público protocolou — contra essa decisão, na<br />

rescisória — recurso especial e a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça<br />

conheceu parcialmente desse recurso e, nessa parte, deu-lhe provimento, reformando o<br />

ato prolatado na rescisória. Ora, diante desse emaranhado de medidas, como fica a<br />

conclusão do processo em que formalizada a sentença suspendendo os direitos<br />

políticos? Essa decisão, na rescisória, teria o efeito — e a decisão se mostrou negativa,<br />

restabelecendo o pronunciamento do Juízo — de afastar do mundo jurídico a sentença,<br />

substituindo-a, e também, no caso, o de fulminar a apelação ainda pendente de<br />

julgamento? Para mim, não, e estou diante de situação concreta em que não vislumbro<br />

direito líquido e certo do impetrante. Não posso deixar de admitir a neutralidade da<br />

decisão proferida por força da rescisória, no que — friso — fora julgada procedente,<br />

beneficiando o litisconsorte passivo, mas veio o Superior Tribunal de Justiça, julgando<br />

improcedente o pedido, a restabelecer o quadro pendente de exame via a apelação que se<br />

encontra no Tribunal de Justiça.<br />

Peço vênia, Senhora Presidente, para indeferir a segurança.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

MS 25.461/DF — Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. Impetrante: Albérico de<br />

França Ferreira Filho (Advogados: José Eduardo Rangel de Alckmin e outro). Impetrada:<br />

Mesa da Câmara dos Deputados. Litisconsorte passsivo: Paulo Celso Fonseca Marinho<br />

(Advogados: Marcelo Luiz Ávila de Bessa e outros).


706<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Decisão: O Tribunal, por maioria, nos termos do voto do Relator, deferiu a segurança,<br />

vencido o Ministro Marco Aurélio, que a indeferia. Votou a Presidente, Ministra Ellen<br />

Gracie. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello.<br />

Presidência da Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa,<br />

Eros Grau, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. Procurador-Geral da República, Dr.<br />

Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.<br />

Brasília, 29 de junho de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

HABEAS CORPUS 86.329 — PA<br />

Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto<br />

Pacientes: Juvenal Oliveira da Rocha e Marcio Antonio Sartor ou Márcio Antônio<br />

Sartor — Impetrante: Jorge Luiz Anjos Tangerino — Coator: Superior Tribunal de Justiça<br />

Habeas corpus. Alegação de excesso de prazo no encerramento da<br />

instrução criminal. Complexidade da causa. Difícil acesso à localidade.<br />

Processo na fase da oitiva de testemunhas da defesa. Inexistência de excesso.<br />

Está justificado o excesso de prazo na instrução criminal em face da<br />

comprovada dificuldade de acesso à localidade onde devem ser realizadas<br />

as diligências. Ademais, as escusas sucessivas de promotores designados<br />

e o histórico das ocorrências no trâmite do procedimento instrutório<br />

demonstram as razões pelas quais ele não pôde ser finalizado. Excesso<br />

justificado.<br />

Por outro giro, também não se caracteriza o excesso de prazo<br />

quando o processo está na fase da oitiva das testemunhas da defesa.<br />

Habeas corpus indeferido.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma<br />

do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence, na<br />

conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos,<br />

indeferir o pedido de habeas corpus; vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence,<br />

Presidente, e Marco Aurélio, que o deferiam.<br />

Brasília, 8 de novembro de 2005 — Carlos Ayres Britto, Relator.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de habeas corpus, contra acórdão do<br />

Superior Tribunal de Justiça, cuja ementa é a seguinte:


R.T.J. — <strong>199</strong> 7<strong>07</strong><br />

“Processual Penal e Penal. Habeas corpus. Homicído qualificado. Morte<br />

de sindicalista. Excesso de prazo da instrução. Princípio da razoabilidade.<br />

Complexidade da causa. Suspeição de promotores. Testemunhas residentes em<br />

local longínquo e de difícil acesso. Motivos justificadores. Cúmulo prazal<br />

compatível com as dificuldades da persecutio criminis. Ordem denegada.<br />

Esta Corte tem construído entendimento favorável à continuidade da ordem<br />

detentiva sempre que estiverem gravitando em torno da causa circunstâncias pelas<br />

quais se supõem contribuir para a justificativa do excesso de prazo, tais como,<br />

natureza do delito, complexidade da persecutio criminis, dificuldades de<br />

diligências, processo com múltiplos sujeitos etc.<br />

In casu, determina e justifica a condução anormal da instrução a complexidade<br />

e a amplitude da causa, que gerou duas suspeições do órgão acusatório e difícil<br />

cumprimento de oitiva das testemunhas, já que residem, todas, em local distante e de<br />

acesso restrito.<br />

Ordem denegada.”<br />

2. Pois bem, o impetrante sustenta que os pacientes estão a sofrer constrangimento<br />

ilegal, decorrente do injustificado excesso de prazo para a conclusão da instrução<br />

criminal.<br />

3. Da leitura dos autos, observo que a custódia ora impugnada foi decretada ainda<br />

na fase inquisitória e mantida após a instauração da ação penal em que os pacientes, na<br />

companhia de outro réu, foram denunciados pelo homicídio qualificado do líder<br />

ruralista Bartolomeu Morais da Silva, vulgo “Brasília”, ocorrido no distrito de Castelo<br />

dos Sonhos, comarca de Altamira/PA. Homicídio que, segundo a peça acusatória, tem<br />

por autor intelectual o fazendeiro “Maneco”, responsável pela contratação dos<br />

pistoleiros “Márcio Cascavel” e “Parazinho”, autores materiais do delito. Os fatos foram<br />

assim narrados na denúncia:<br />

“(...) a vítima, Bartolomeu Moraes da Silva — ‘Brasília’, era líder sindical<br />

e estava em constante participação em conflitos de terra, principalmente no<br />

Distrito de Castelo dos Sonhos, neste município. O denunciado Juvenal Oliveira<br />

da Rocha — ‘Parazinho’ e outras pessoas da área de Castelo dos Sonhos e Novo<br />

Progresso, incentivavam e forneciam os meios e armas necessárias para o<br />

cometimento de esbulho, pois são pessoas interessadas na área para a exploração<br />

de madeira, principalmente. Essa atividade ilegal do denunciado Juvenal da<br />

Rocha e de outros, pode ter dividido de repente, o próprio Sindicato dos<br />

Trabalhadores Rurais de Castelo dos Sonhos, e isso pode ter gerado a trama da<br />

morte da vítima, vez que esta como era envolvida (trabalhava) no meio dos<br />

‘poderosos’ e trabalhadores, pode ter contrariado algumas pessoas, daí sua<br />

morte, encomendada, pelo denunciado Alexandre Manoel Trevisan ‘Maneco’,<br />

e que segundo ‘Zé Brabo’, empregado que trabalhou para Trevisan, afirmou que<br />

‘pedira bastante para Maneco não fazer isto, que iria estragar sua vida, pois já<br />

estava estabilizado, porém terminou fazendo’. Palavras da testemunha Raimundo<br />

Dionísio dos Santos, que conversou com Zé Brabo, quando voltou do cemitério<br />

logo após o enterro da vítima dia 23/<strong>07</strong>/02.<br />

(...)


708<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Depreende-se pelos autos, fl. 180, que a vítima pode ter morrido também porque<br />

encabeçou o abaixo assinado juntamente com Douglas Araújo para a permanência do<br />

Ten-PM Mácio Abud, gerando revolta em duas classes, reiteramos, pois o mesmo<br />

estava combatendo as invasões (esbulhos) desagradando o denunciado Juvenal da<br />

Rocha e outras pessoas interessadas na continuação desses crimes.<br />

Com o combate ao esbulho, pelo Ten-PM Marcio Abud, alguns trabalhadores<br />

rurais podem ter perdido a oportunidade de ficar com algumas terras para cultivarem<br />

alguma coisa para a própria sobrevivência, com o incentivo do denunciado Juvenal<br />

da Rocha e outros.<br />

(...)<br />

A testemunha Arlindo de Souza (Gaúcho) fl. 185 esclarece que o denunciado<br />

Maneco, juntamente com a vítima Bartolomeu, desceram de um veículo tipo<br />

Toyota Bandeirante de cor esverdeada, por volta de 21 horas, do dia 21/<strong>07</strong>/02,<br />

num ramal em direção à Rod. BR 163, e que de repente, surgiram do meio do mato,<br />

os denunciados Márcio Cascavel e Parazinho, e passaram todos os denunciados<br />

a conversar com a vítima Bartolomeu, com o farol do carro ligado, aparentando<br />

calma. Porém, em dado momento, o denunciado Márcio Cascavel sacou de uma<br />

arma de fogo, que parecia ser uma pistola, bem como o denunciado PARAZINHO<br />

sacou de uma arma de fogo, tipo revólver, e dispararam cada um, aproximadamente<br />

4 tiros (total de 8) na vítima.<br />

De imediato, os dois denunciados (Márcio e Parazinho) carregaram o corpo<br />

da vítima na carroceria do veículo, enquanto o denunciado Maneco ficou apenas<br />

observando os fatos, retirando-se todos do local no veículo Toyota”.<br />

4. Diante desse quadro, o Ministério Público, a partir do depoimento de várias<br />

testemunhas, finalizou a acusação dizendo (fls. 28/34):<br />

“Ao agirem dessa maneira os denunciados infringiram as sanções punitivas a<br />

seguir enumeradas:<br />

1 - Márcio Cascavel (paciente neste writ), o Art. 121, § 2º, I e IV, c/c Art. 29<br />

do CP, vez que matou a vítima Bartolomeu, mediante paga do denunciado<br />

Alexandre Manoel Trevisan, que teve seus interesses contrariados pela vítima, que<br />

era líder Sindical na região do Distrito de Castelo dos Sonhos, e vinha sendo<br />

ameaçada por Maneco, por problemas de terra, (...);<br />

2 - Juvenal Oliveira Rocha ‘Parazinho’(paciente neste writ), infringiu o Art.<br />

121, § 2º, I e IV, c/c Art. 29 do CP, da mesma forma que o 1º denunciado, mediante<br />

paga e dissimulação (...) porque também a vítima Bartolomeu contrariava seus<br />

interesses por questões de terra, conforme já exposto acima.<br />

3 - Alexandre Manoel Trevisan ‘Maneco’(paciente no HC 84680),<br />

infringiu o Art. 121, § 2º, I e IV, c/c Art. 29 do CP, vez que da mesma forma que os<br />

outros dois denunciados, agiu mediante paga e dissimulação, tendo em vista que<br />

atraíram a vítima com a desculpa de ver uma antena parabólica, foram para a<br />

estrada (BR 163 — Santarém/Cuiabá), e Bartolomeu, como líder sindical,<br />

contrariava seus interesses por questões de terra, conforme já exposto.”


R.T.J. — <strong>199</strong> 709<br />

5. De lembrar-se que o fatídico episódio teve repercussão nacional, dada a notoriedade<br />

da vítima como representante dos trabalhadores rurais da região, notoriamente<br />

conhecida por haver-se tornado palco de graves conflitos fundiários. Daí que, em<br />

11-11-2003, por efeito do agravamento das tensões, foi realizada audiência pública na<br />

Cidade, com a participação do Exmo. Ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos, e do<br />

Procurador-Geral da República, Cláudio Lemos Fonteles. E foi nesse contexto que se<br />

deu a propositura da ação penal, marcada pela ocorrência de contratempos curiosos,<br />

tais como os sucessivos pedidos de afastamento, subscritos por dois promotores,<br />

ambos indicados pelo Procurador-Geral de Justiça do Estado para acompanharem o<br />

caso.<br />

6. Muito bem. Prossigo neste relato para dizer que a presente impetração renova o<br />

pedido já formulado nas instâncias ordinárias, no sentido de excesso de prazo para a<br />

conclusão da instrução criminal. Daí sustentar o impetrante que as custódias cautelares<br />

foram decretadas nos dias 22-7-2002 e 24-8-2002 (fl. 03), “sem que se tenha chegado,<br />

pelo menos, ao final da instrução do sumário de culpa, e isto por causas conhecidas e<br />

motivadas por práticas que não podem ser atribuídas à defesa dos acusados”. Donde<br />

pedir a revogação da prisão preventiva.<br />

7. A seu turno, a douta Procuradoria-Geral da República, em parecer do ilustrado<br />

Subprocuradora-Geral Dr. Haroldo Ferraz da Nóbrega, opinou pelo indeferimento da<br />

ordem. Ao fazê-lo, reportou-se ao acórdão impugnado e ao voto do Ministro Sepúlveda<br />

Pertence, proferido por ocasião do julgamento do HC 84.680, impetrado em favor de<br />

Alexandre Manoel Trevisan. Confira-se (fl. 162):<br />

“Tenho constantemente recusado, nesta Casa, em matéria de prisão preventiva,<br />

os apelos retóricos à ordem pública, que estaria comprometida pela repercussão<br />

social do fato, sobretudo, pelo noticiário acerca do fato. Mas é claro que não podemos<br />

aplicar esses mesmos critérios a uma região notória e internacionalmente conhecida<br />

como de difundida violência, onde os indícios de intranqüilidade do meio social,<br />

com o crime atribuído a pistoleiros é, sim, uma hipótese verdadeira em que se pode<br />

invocar a ordem pública para fundar a prisão preventiva”.<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Consoante relatado, trata-se de<br />

habeas corpus em favor dos supostos autores materiais do homicídio do sindicalista<br />

Bartolomeu Moraes da Silva no Distrito de Castelo dos Sonhos/PA. De início, cumpre<br />

anotar que o writ impetrado pelo autor intelectual do fato foi denegado, conforme se<br />

verifica do trecho da manifestação do Min. Sepúlveda Pertence. Naquela ocasião, o que<br />

se argüia era a falta de fundamentação para a prisão preventiva.<br />

10. Consoante anotei em linhas passadas, as prisões dos pacientes foram decretadas<br />

ainda na fase inquisitorial, após representação de autoria do delegado de polícia, na qual<br />

se faz menção ao depoimento de testemunhas ameaçadas e à repercussão do crime. Daí a<br />

determinação das custódias, de cuja decisão se extrai, in verbis (fls. 37/38):


710<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

“(...)<br />

A ordem pública restou abalada em razão da gravidade do delito com sua<br />

forma de execução sumária, sem qualquer possibilidade de resistência da vítima,<br />

ao passo que o crime causou enorme repercussão na comunidade.<br />

A custódia preventiva mostra-se conveniente para a instrução criminal, pois a<br />

localidade de Castelo dos Sonhos dista um mil quilômetros da sede do Município,<br />

sendo local de dificílimo acesso, o que dificultaria a citação dos indiciados para<br />

serem interrogados por este juízo, além do que um deles declarou que reside há<br />

apenas três meses na referida localidade, não demonstrando, portanto, nenhum<br />

vínculo com a cidade, na qual inclusive, não existe a presença física dos<br />

representantes dos Poderes constituídos.<br />

(...)”.<br />

11. Pois bem, a controvérsia a ser equacionada no presente mandamus está em<br />

saber se existe excesso de prazo na conclusão da instrução criminal e se há justificativa<br />

para tal.<br />

12. Prossigo nesse voto para dizer que a complexidade da causa e as características<br />

regionais do difícil acesso ao local onde devem ser realizadas as diligências justificam,<br />

sim, a demora impugnada. Isso porque o histórico das ocorrências bem demonstra as<br />

razões pelas quais ainda não se pôde finalizar o procedimento instrutório. Confira-se das<br />

informações do juiz da causa (fls. 90-94):<br />

“Com relação à instrução processual, relato que o procedimento policial<br />

iniciou no dia seguinte ao fato — 22.<strong>07</strong>.2002 —tendo sido encaminhado a este<br />

Juízo no dia 29 subseqüente, com pedido de prorrogação de prazo para conclusão<br />

das diligências, o que foi deferido pela magistrada anterior, após a anuência do<br />

parquet.<br />

Retornando os autos ao Juízo em outubro de 2002, o representante do<br />

Ministério Público requereu novas diligências à autoridade policial, o que foi<br />

deferido pela magistrada, fixando o prazo de 15 dias para a conclusão. Sem,<br />

todavia, a realização dos atos requeridos pelo órgão acusador, os autos retornaram<br />

ao Juízo em fevereiro de 2003, tendo então sido ofertada a denúncia contra os<br />

acusados Márcio Antônio Sartor, Juvenal Oliveira da Rocha e Alexandre Manoel<br />

Trevisan.<br />

A peça acusatória foi recebida em fevereiro deste ano, tendo sido designado<br />

o dia <strong>07</strong>.04.2003, às 09:00 h para qualificação e interrogatório dos réus, o que não<br />

chegou a se concretizar, haja vista que em 11.03.2003 o Promotor que oficiava nos<br />

autos, Dr. Antônio Lopes Maurício, jurou suspeição por motivo de foro íntimo.<br />

Os autos foram remetidos ao Procurador-Geral de Justiça e, na seqüência, no dia<br />

08.04.2003, outro representante do parquet, Dr. Edmilson Barbosa Leray, suscitou<br />

a mesma escusa, tendo sido remetidos os autos novamente à cúpula daquele órgão,<br />

já em junho de 2003, por despacho exarado pelo MM. Juiz André Luiz Santos<br />

Britto, que me antecedeu na condução do feito.<br />

Em passo seguinte, sem que se tivesse procedido ao interrogatório dos<br />

acusados, o Promotor de Justiça que passou a atuar no feito, Dr. Mauro José


R.T.J. — <strong>199</strong> 711<br />

Mendes de Almeida, requereu a oitiva da testemunha protegida pelo Provita<br />

mediante precatória dirigida à Comarca da Capital, o que foi deferido e<br />

cumprido. (...)<br />

Da narrativa dos autos bem se vê, douto Desembargador, salvo melhor<br />

juízo de V. Exa., que os pressupostos da prisão preventiva dos réus perduram, à<br />

vista das vigorosas provas que militam em seu desfavor, além de ser patente o<br />

risco que sofreria a instrução processual penal acaso fossem postos em liberdade,<br />

eis que é factual que aliciariam e intimidariam testemunhas fundamentais para a<br />

apuração do delito, sobre pesar ponderável ameaça à ordem pública, não só pelo<br />

perfil criminógeno dos réus — em especial Márcio Sartor, que a todos atemoriza<br />

em Castelo dos Sonhos, trazendo-lhes infindáveis pesadelos e impondo<br />

verdadeira lei do silêncio, em local onde o Estado pouco consegue impor sua<br />

própria ordem. Soltos, certamente encontrariam estímulo para perseverar nas<br />

sendas delituosas, animados pelo espírito de virtual impunidade. Demais, de se<br />

destacar a própria necessidade de garantir a credibilidade da Justiça e seus<br />

desígnios, em episódio que gerou grande repercussão e intenso clamor público,<br />

dada a qualidade de líder sindical ostentada pela vítima e as circunstâncias em<br />

que se deu o condenável evento, pela vítima e as circunstâncias em que se deu o<br />

condenável evento, havendo pressões das lideranças populares e da sociedade<br />

civil para a rápida e efetiva elucidação do caso e punição dos responsáveis.<br />

Pelo já exposto, transparece venia concessa, não se poder elevar a questão do<br />

lapso temporal, critério objetivo e desprovido de qualquer nuance axiológica, em<br />

determinante para se deliberar a propósito de cautelas adotadas em prol de<br />

garantias maiores do Estado de Direito, da Lei, da Justiça e dos Homens, frente aos<br />

quais, irrefutavelmente, as garantias individuais devem ceder passo.<br />

Isso não obstante, obtempero que o sumário da tramitação processual<br />

relatado acima aponta para a adoção da lógica do razoável em ordem a demonstrar<br />

ser plenamente justificado o inquinado elastério do prazo para a formação da<br />

culpa. Com efeito, primeiro que se cuida de crime ocorrido na distante localidade<br />

de Castelo dos Sonhos, situado a cerca de 1.000 Km da sede deste município,<br />

apenas acessível por via aérea ou por penosa e extremamente longa via terrestre,<br />

através de Santarém, o que já denota a dificuldade na colheita de provas. Assim<br />

é que, muito embora o primeiro relatório da autoridade policial date de<br />

29.<strong>07</strong>.2002 — oito dias após o evento — o feito retornou àquela esfera em<br />

atenção a requerimento do próprio Delegado, com a anuência do Ministério<br />

Público, novamente vindo ter a este Juízo em outubro do mesmo ano. Neste foro,<br />

remetidos novamente ao Ministério Público, os autos regressaram com um novo<br />

pedido de diligências, quais sejam acareação de testemunha e acusados,<br />

reinquirição de testemunhas, reconstituição do crime e reiteração de expediente<br />

à Telemar, a fim de que fosse encaminhada a relação de ligações efetuadas por<br />

determinados terminais de uso dos envolvidos. Sem a disponibilização de recursos<br />

pela polícia para o deslocamento da equipe policial para o local do crime, os<br />

autos tornaram ao Ministério Público, o qual ofereceu denúncia em fevereiro<br />

deste ano, sem aqueles elementos de prova.


712<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Em seguida, as sucessivas escusas dos Promotores de Justiça que oficiam<br />

nesta Comarca não permitiram que fossem interrogados os acusados, situação que<br />

perdura até esta data, muito embora já tenha sido inquirida a testemunha protegida<br />

pelo Provita.<br />

Dessa forma, Sr. Desembargador, entendo justificável a combatida dilatação<br />

temporal, seja pela complexidade do caso — que confina com os constantes e<br />

graves conflitos fundiários que grassam no interior paraense —, recomendado o<br />

maior zelo e cautela na condução da apuração, seja pelos incidentes ocorridos<br />

durante a ainda incipiente instrução processual penal.<br />

Destaco que este magistrado subscritor apenas passou a ter exercício nesta<br />

Comarca a partir do dia 15-9-2003, de acordo com designação contida em Portaria<br />

da douta Presidência, encontrando quadro não muito animador ou favorável no<br />

foro criminal, contudo, não tenho poupado esforços, labutando dia, tarde e noite<br />

para ultimar a instrução dos feitos criminais desta Comarca, sobretudo daqueles<br />

relativos a réus presos, tais como o presente caso. Tanto é assim que, possibilitado<br />

o primeiro contado com a lide, nesta data designei a audiência de qualificação e<br />

interrogatório dos réus, inclusive deliberando a propósito das demais pendências<br />

vislumbradas na lide, conforme despacho que segue em anexo.<br />

Desde aquela ocasião, a única mudança fática no estado da causa no interrogatório<br />

dos acusados, realizado por mim em 31.10.2003, tendo recebido as defesas prévias em<br />

5.11.2003.<br />

A próxima fase seria a de oitivas de testemunhas, iniciando com as arroladas<br />

pela acusação. Contudo, observei que as 14 testemunhas arroladas pelo parquet<br />

(08 numerárias, 03 informantes e 03 requeridas com fulcro no art. 209 do CPP),<br />

residem, sem exceção, no distrito de Castelo dos Sonhos, local que, embora<br />

pertencente a esta Comarca, dista cerca de 1.000 km de sua sede, sendo o acesso<br />

dificílimo por via terrestre, sendo este um dos motivos pelos quais, em<br />

02.12.2003, encaminhei ofício (cópia anexa) à douta Presidência dessa Corte<br />

solicitando autorização e custeio para uma diligência por mim integrada com<br />

o fim de tomar por termo as declarações das referidas testemunhas, porém, até<br />

esta data, não houve resposta à minha solicitação. Ressalto que a diligência se<br />

revela mais necessária e proveitosa na medida em que 08 das testemunhas<br />

arroladas pela defesa (04 por Márcio Sartor e 04 por Juvenal Oliveira) também<br />

são domiciliadas em Castelo dos Sonhos, bem denotando a economia<br />

processual e a celeridade que seria imprimida à instrução processual acaso implementada<br />

a medida que solicitei, estando no aguardo de deliberação desse Tribunal.”<br />

(Grifei)<br />

13. Devo assinalar que as informações acima transcritas foram prestadas em janeiro<br />

de 2004, sendo que em 20 de abril, ao denegar o habeas corpus, o Superior Tribunal de<br />

Justiça recomendou que a Corte local viabilizasse imediatamente a diligência requestada<br />

pelo Juiz da causa.<br />

14. Sob este visual das coisas, solicitei novas informações ao referido magistrado.<br />

A resposta obtida relata a recente liberação dos recursos para que a equipe do<br />

Juízo se deslocasse até o Distrito de Castelo dos Sonhos, a fim de realizar a oitiva das


R.T.J. — <strong>199</strong> 713<br />

testemunhas arroladas pela defesa. A par disso, informou o Juiz que encerrou a cotação<br />

dos valores de fretamento das aeronaves em 18 de outubro passado, cujo procedimento<br />

já foi encaminhado à Presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (fls. 185-<br />

186).<br />

15. Presente este esclarecimento, observo que é de se adotar o parecer do ilustre<br />

presentante do Parquet federal. Isso porque tanto o acórdão impugnado quanto o<br />

Tribunal de Justiça local se louvaram nas justificativas do juiz da causa para a dilação<br />

temporal posta em xeque. Daí a conclusão do decisum nos seguintes termos (fls.119-<br />

122):<br />

“(...)<br />

Como se vê, o contexto da ação penal denota não uma simples operação<br />

persecutória, mas uma extremada condução delituosa com intricado desenvolvimento<br />

institucional. Em virtude disso, o excesso nas fases procedimentais encontrase<br />

modelada aos parâmetros de permissão construídos por esta Corte.<br />

Segundo entendimento aqui professado e favorável à continuidade da ordem<br />

detentiva, circunstâncias pelas quais se revelam totalmente possível a aplicação do<br />

princípio da razoabilidade, tais como, natureza do delito, dificuldades de diligências,<br />

processo com múltiplos sujeitos, greve de servidores, indicação de desaforamento etc,<br />

justificam o retardo do feito e a demora no término da instrução.<br />

(...)”.<br />

16. Com efeito, ao contrário do que alega o impetrante, acha-se plenamente<br />

justificado o excesso de prazo na instrução criminal, não só em face da comprovada<br />

dificuldade de acesso à localidade em questão, como pelo fato de que as testemunhas a<br />

serem ouvidas são, nos termos da recentíssima informação do Juiz, as arroladas pela<br />

própria defesa.<br />

17. Acresce que esta Suprema Corte já se manifestou sobre a razoabilidade da<br />

preservação da custódia, mesmo em face de possível excesso de prazo, quando este<br />

decorrer da complexidade e outras peculiaridades do feito. Ademais, não há falar mesmo<br />

em excesso de prazo quando o processo está na fase da oitiva de testemunhas da defesa.<br />

Transcrevo, no ponto, as seguintes ementas:<br />

“Penal. Processual Penal. Habeas corpus. Excesso de prazo na instrução<br />

criminal: inocorrência.<br />

I - Não caracterizado o excesso de prazo na instrução criminal, à vista da<br />

complexidade do caso e do grande número de réus e testemunhas a serem ouvidos.<br />

II - HC indeferido. (HC 85.447, Rel. Min. Carlos Velloso)<br />

“Habeas corpus. Prisão preventiva. Falta de fundamentação. Prazo.<br />

1. Tratando-se de crime hediondo, praticado por quadrilha organizada, cujos<br />

membros denotam alta periculosidade, havendo inclusive um co-réu foragido, a<br />

prisão preventiva se impõe como garantia da aplicação da lei penal. Decreto de<br />

custódia cautelar que não padece de falta de fundamentação, inexistindo ofensa ao<br />

art. 93, IX, da Constituição Federal.


714<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

2. Não há constrangimento ilegal quando o excesso de prazo para a conclusão<br />

da instrução criminal deriva das circunstâncias e da complexidade do processo,<br />

não sendo eventual retardamento fruto de inércia e desídia do Poder Judiciário<br />

(HC n. 71.610/DF, Rel. o Min. Sepúlveda Pertence e RHC n. 71.498/RJ, Rel. o<br />

Min. Paulo Brossard). Habeas corpus indeferido”. (HC 81.905, Rel. Min. Ellen<br />

Gracie)<br />

“Habeas corpus. Decreto de prisão preventiva que está fundamentado. Estando<br />

o processo em fase da oitiva das testemunhas da defesa, está superada a alegação<br />

de excesso de prazo para o encerramento da instrução criminal. Habeas corpus<br />

indeferido”. (HC 80.984, Rel. Min. Moreira Alves)<br />

“Habeas corpus. 2. Prisão preventiva. 3. Alegação de ausência de fundamentação<br />

e de configuração de excesso de prazo. 4. Fundamentação suficiente. 5. Não há<br />

que se falar em excesso de prazo, se já se encerrou a fase de oitiva das testemunhas de<br />

acusação. Precedentes. 6. Habeas corpus indeferido.” (HC 82.418, Rel. Min. Gilmar<br />

Mendes)<br />

18. É o quanto me basta para indeferir o habeas corpus.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, temos aqui uma situação, a meu<br />

ver, sui generis, em que concorre excesso de prazo potencializado.<br />

Não consigo, de forma alguma, agasalhar uma preventiva, que é sempre excepcional,<br />

considerado o princípio da não-culpabilidade, que se projeta no tempo por mais de três<br />

anos. O paciente encontra-se sob a custódia, sem culpa formada, sem instrução encerrada,<br />

pouco importando o local em que tenha ocorrido o crime, desde 22 de julho de 2002.<br />

Daqui a pouco ele terá cumprido uma possível pena.<br />

Ora, podemos placitar esse excesso, entendendo-o razoável? Pouco importa a distância.<br />

Incumbe ao Estado aparelhar-se, objetivando concluir os processos em tempo socialmente<br />

aceitável. E vejam a situação concreta: há dificuldade de se ouvir testemunhas. Está<br />

o juiz, ainda, a aguardar que o Tribunal de Justiça autorize o deslocamento até a localidade,<br />

para ouvir as testemunhas.<br />

A situação mostra-se extravagante. Não vejo como o Supremo possa fechar os olhos<br />

a esse excesso, que — repito — está revelado pelo tempo de três anos sob a custódia<br />

preventiva. Pouco importa o pano de fundo — o habeas corpus, quase sempre, envolve<br />

pano de fundo horroroso. As franquias são acionadas — disse Vossa Excelência, em certa<br />

ocasião — por aqueles que claudicaram na vida gregária. Elas existem, porém, para<br />

observância, principalmente pelo Estado-juiz.<br />

Diante desse período tão longo e do impasse criado, que não deveria existir quanto<br />

à viabilidade de se ouvir as testemunhas — deslocamento do Juízo para a localidade<br />

situada a mais de mil quilômetros da comarca —, não posso fechar os olhos e<br />

simplesmente proclamar que o excesso seja aceitável.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Confesso que me deixei impressionar,<br />

realmente, pela complexidade do caso e pelas circunstâncias.


R.T.J. — <strong>199</strong> 715<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ministro Carlos Britto, se é tão complexo assim, será<br />

que concorreram as premissas para a preventiva?<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Ministro, atentemos para as circunstâncias<br />

do caso: dois membros do Ministério Público se consideraram suspeitos, e transparece o<br />

receio de permanecerem à frente do processo, numa região inóspita tão distanciada e<br />

internacionalmente reconhecida como verdadeira área de conflagração, pelos conflitos<br />

fundiários que ali espocam de longa data.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: É a falência do Estado, Excelência: não há lei, não<br />

há balizas legais, nem balizas constitucionais na região.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Não, existe. Há testemunha sob a proteção<br />

do Provita. O Juiz tem tido extrema dificuldade em conduzir a instrução, até para ouvir<br />

oito testemunhas arroladas pelos réus. O transporte da equipe judicial deu-se por via<br />

aérea.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ele está a aguardar ainda — segundo consignado,<br />

não sei se nas informações — a autorização do Tribunal, para se ter essa<br />

despesa.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Agora já houve; a aeronave foi, finalmente,<br />

contratada.<br />

Então, acho que aquela região do Pará é sui generis, e sempre que os processos de<br />

homicídio encomendado vêm aqui, noto que esta Turma considera a ...<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Homicídio que se diz.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Claro, sob a acusação de cometimento de<br />

homicídio.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não vamos inverter o habeas corpus e lançar,<br />

praticamente, a condenação do paciente.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): O Juiz, desde a fundamentação do decreto<br />

de prisão preventiva, insiste na necessidade da instrução criminal e na garantia da<br />

ordem pública, citando dados, relatando fatos. Por isso, deixei-me convencer e<br />

postulei, data venia da contradita do eminente Ministro Marco Aurélio; insisto no<br />

meu voto.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: A meu ver, o critério a prevalecer, quanto ao<br />

excesso, é o objetivo. Caminhemos, entretanto, para a flexibilização, vindo a entender<br />

que, em determinados casos, é possível o extravasamento dos prazos assinados em lei.<br />

Agora, passar-se cerca de uma centena de dias para três anos, vamos para o quarto ano, é<br />

muita coisa. Penso que o deslocamento do Ministro de Estado da Justiça e do<br />

Procurador-Geral foi logo depois do crime. Então o crime teria ocorrido em 18 de julho<br />

e a prisão, em 22 de julho.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): O enterro da vítima em 23 de julho.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Uma prisão em 22 de julho e a outra em 24 de agosto<br />

de 2002.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: É data da decretação, não é?


716<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ouvi como datas das prisões.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: No habeas corpus anterior, o réu tinha-se evadido, a<br />

despeito da decretação da prisão preventiva. Não foi preso nessa data, não.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: O autor intelectual, não o paciente.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Vejo aqui no voto do eminente Ministro Carlos<br />

Britto: ele foi preso depois, embora a prisão tenha sido decretada nessa data.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: O habeas visa a beneficiar os autores materiais.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): É, isso é verdade.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Vou pedir vênia ao Relator para conceder o habeas<br />

corpus.<br />

O excesso está escancarado. Por isso, creio que deve ser relaxada a prisão.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Senhor Presidente, acompanho o voto do Ministro-<br />

Relator; apenas, não quero me comprometer com o argumento do princípio da<br />

razoabilidade, que, para mim, não é princípio.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Também entendo que é um postulado<br />

aplicativo, na melhor linha do pensamento do livro, que Vossa Excelência tão bem<br />

prefaciou, do notável jurista, embora muito novo, Humberto Ávila, do Rio Grande do<br />

Sul.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Peço vênia para acompanhar o voto do<br />

eminente Ministro Marco Aurélio.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

HC 86.329/PA — Relator: Ministro Carlos Britto. Pacientes: Juvenal Oliveira da<br />

Rocha e Marcio Antonio Sartor ou Márcio Antônio Sartor. Impetrante: Jorge Luiz Anjos<br />

Tangerino. Coator: Superior Tribunal de Justiça.<br />

Decisão: Por maioria de votos, a Turma indeferiu o pedido de habeas corpus;<br />

vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, Presidente, e Marco Aurélio, que o deferiam.<br />

Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence. Presentes à sessão os Ministros<br />

Marco Aurélio, Cezar Peluso, Carlos Britto e Eros Grau. Subprocurador-Geral da<br />

República, Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas.<br />

Brasília, 8 de novembro de 2005 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.


R.T.J. — <strong>199</strong> 717<br />

RECURSO EM HABEAS CORPUS 86.680 — SP<br />

Relator: O Sr. Ministro Joaquim Barbosa<br />

Recorrente: Humberto Silva de Sousa — Recorrido: Ministério Público Federal<br />

Recurso ordinário em habeas corpus. Tráfico de entorpecentes. Rito<br />

do art. 38 da lei 10.409/2002. Inobservância. Existência de prejuízo para a<br />

defesa. Conhecimento e provimento do recurso.<br />

A inobservância do rito do art. 38 da Lei 10.409/2002, que assegura o<br />

contraditório prévio ao denunciado pelo crime de tráfico de entorpecentes,<br />

resulta na nulidade do processo penal, desde o recebimento da denúncia.<br />

Recurso ordinário em habeas corpus conhecido e provido.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a presidência do Ministro Celso de Mello, na<br />

conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos,<br />

conhecer e dar provimento ao recurso ordinário, para invalidar o procedimento penal,<br />

desde o recebimento da denúncia, inclusive, por inobservância do art. 38 da Lei 10.409/<br />

2002, e determinar a expedição de alvará de soltura em favor do paciente, ora recorrente,<br />

se por outra razão não estiver preso. Vencida a Ministra Ellen Gracie, que negava<br />

provimento ao recurso ordinário.<br />

Brasília, 13 de dezembro de 2005 — Joaquim Barbosa, Relator.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus<br />

impetrado em favor de Humberto Silva de Sousa, em face de acórdão prolatado pela<br />

Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça nos autos do HC 41.300, cuja ementa tem<br />

o seguinte teor:<br />

“Criminal. HC. Tráfico de entorpecentes. Nulidades. Interrogatório. Ausência<br />

de intimação do patrono constituído. Vícios na citação do réu. Cerceamento<br />

de defesa. Inocorrência. Inobservância do procedimento da Lei n.<br />

10.409/02. Defesa preliminar não apresentada. Prejuízo concreto não comprovado.<br />

Pleito de soltura do réu. Excesso de prazo. Análise prejudicada. Ordem<br />

denegada.<br />

I. A não aplicação da Lei 10.409/2002 à ação penal instaurada contra o<br />

paciente, por si só, não enseja nulidade, pois depende da comprovação de<br />

prejuízo. Precedentes.<br />

II. Evidenciado que o paciente, quando citado para comparecer em juízo, não<br />

declarou possuir patrono constituído, tampouco o tendo feito na audiência de<br />

interrogatório, tendo sido-lhe nomeado defensor dativo, além da procuração<br />

outorgada ao causídico somente ter sido juntada aos autos após a realização do


718<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

interrogatório judicial, torna-se descabida a alegação de nulidade do feito pela<br />

falta de intimação do advogado para comparecer ao interrogatório de seu cliente.<br />

III. Não restam demonstrados prejuízos à defesa, pois, além de o acusado ter<br />

sido assistido por defensor dativo, negou a prática do ato fraudulento durante toda<br />

sua oitiva judicial.<br />

IV. A requisição do réu, tendo em vista encontrar-se preso, bem como seu<br />

comparecimento em juízo na data e hora marcados, sanam qualquer nulidade na<br />

citação, em especial quando não comprovado prejuízo a macular o ato, hipótese<br />

dos autos. Precedentes.<br />

V. Se a defesa prévia foi apresentada em Juízo dentro do prazo determinado,<br />

tendo sido a peça devidamente produzida pela defesa, com todos os requisitos<br />

legalmente estabelecidos, não resta comprovado danos à defesa.<br />

VI. Tratando-se de nulidades no processo penal, não se declara nulidade de<br />

ato, se dele não resultar prejuízo comprovado para o réu. Incidência do art. 563 do<br />

Código de Processo Penal e da Súmula n.º 523 da Suprema Corte.<br />

VII. Não tendo sido decretada a nulidade do feito, resta prejudicada a análise<br />

do pleito de soltura do paciente, pela ocorrência de excesso de prazo para a<br />

formação da culpa.<br />

VIII. Ordem denegada.” (Fl. 209)<br />

O paciente foi preso em flagrante e, em seguida, denunciado e condenado pela<br />

prática do crime previsto no art. 12, caput, da Lei 6.368/1976 a três anos de reclusão em<br />

regime integralmente fechado (sentença a fls. 78-88).<br />

Alegando excesso de prazo na instrução criminal e nulidade do interrogatório,<br />

ainda em momento anterior à prolação da sentença condenatória, o patrono do paciente<br />

impetrou habeas corpus ao extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, onde o<br />

pedido foi denegado.<br />

Contra essa decisão, foi impetrado novo habeas corpus, substitutivo de recurso<br />

ordinário constitucional, com pedido de liminar ao Superior Tribunal de Justiça. Lá, o<br />

pedido também foi denegado. Em conseqüência, foi interposto o presente recurso<br />

ordinário.<br />

Em suas razões, afirma o recorrente que a defesa sofreu demonstrados prejuízos no<br />

curso do processo judicial que culminou com a condenação do paciente, em decorrência<br />

da inobservância do rito da Lei 10.409/2002.<br />

Sustenta, ainda, que o advogado por ele constituído no momento da prisão em<br />

flagrante não foi intimado e, conseqüentemente, não estava presente no interrogatório<br />

do paciente, tendo sido nomeado defensor dativo para aquele ato. Ressalta que, com o<br />

advento da Lei 10.792/2003, vigente à época do referido interrogatório, a participação,<br />

nesse ato, do advogado do acusado tornou-se obrigatória, a fim de que fosse garantido o<br />

contraditório.<br />

Alega cerceamento de defesa e afirma que a citação do paciente para o<br />

interrogatório se deu no mesmo dia em que este foi realizado, nas dependências do<br />

fórum, o que é incompatível com o princípio do devido processo legal.


R.T.J. — <strong>199</strong> 719<br />

Pleiteia seja o presente recurso conhecido e provido, para que se anule o<br />

mencionado processo criminal desde a citação e, em conseqüência, se decrete o<br />

relaxamento da prisão do paciente.<br />

Nas contra-razões (fls. 240-246), o Ministério Público Federal pugna pelo nãoconhecimento<br />

do recurso e, no mérito, por seu improvimento. No parecer, da lavra do<br />

Subprocurador-Geral da República, Dr. Francisco Xavier Pinheiro Filho, opina pelo<br />

conhecimento e improvimento do recurso (fls. 255-262).<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Senhor Presidente, o recorrente aponta<br />

nulidades no processo penal que culminou na condenação do paciente a três anos de<br />

reclusão pelo crime de tráfico de drogas.<br />

Afirma, em síntese, que houve inobservância do rito estabelecido na Lei 10.409/<br />

2002, uma vez que, antes do recebimento da denúncia, não foi determinada a citação do<br />

paciente para apresentação da defesa prévia, por escrito, no prazo de dez dias, conforme<br />

determina o art. 38 da Lei 10.409/2002. Noutras palavras, não teria sido dada ao<br />

paciente oportunidade de apresentar defesa escrita prévia antes do recebimento da<br />

denúncia.<br />

Alega, ainda, nulidade da citação do paciente para o interrogatório, porquanto<br />

realizada no mesmo dia em que se efetivou o ato. Também relata que não houve<br />

intimação, para o interrogatório, do advogado indicado no auto de prisão em flagrante.<br />

Por fim, alega cerceamento de defesa, em especial pelo exíguo prazo para apresentação<br />

da defesa prévia, na qual o impetrante deixou de pedir a reclassificação do crime.<br />

Assiste razão ao recorrente.<br />

Em primeiro lugar, é evidente, no presente caso, a inobservância do rito estabelecido<br />

na Lei 10.409/2002, cujo art. 38 transcrevo:<br />

“Art. 38. Oferecida a denúncia, o juiz, em 24 (vinte e quatro) horas, ordenará<br />

a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez)<br />

dias, contado da data da juntada do mandato aos autos ou da primeira publicação<br />

do edital de citação, e designará dia e hora para o interrogatório, que se realizará<br />

dentro dos 30 (trinta) dias seguintes, se o réu estiver solto, ou em 5 (cinco) dias, se<br />

preso.<br />

§ 1º Na resposta, consistente de defesa prévia e exceções, o acusado poderá<br />

argüir preliminares e invocar todas as razões de defesa, oferecer documentos e<br />

justificações, especificar as provas que pretende produzir e arrolar testemunhas.<br />

§ 2º As exceções serão processadas em apartado, nos termos dos arts. 95 a 113<br />

do Código de Processo Penal.<br />

§ 3º Se a resposta não for apresentada no prazo, o juiz nomeará defensor<br />

para oferecê-la em 10 (dez) dias, concedendo-lhe vista dos autos no ato de<br />

nomeação.


720<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

§ 4º Apresentada a defesa, o juiz concederá prazo de 5 (cinco) dias para<br />

manifestar-se o representante do Ministério Público e em igual prazo proferirá<br />

decisão.<br />

§ 5º Se entender imprescindível, o juiz determinará a realização de diligências,<br />

com prazo máximo de 10 (dez) dias.<br />

§ 6º Aplica-se o disposto na Lei nº 9.271, de 17 de abril de <strong>199</strong>6, ao processo<br />

em que o acusado, citado pessoalmente ou por edital, ou intimado para qualquer<br />

ato processual, deixar de comparecer sem motivo justificado.”<br />

Conforme se extrai dos autos, os fatos ocorreram em 15-11-2003 (fls. 18-20 — auto<br />

de prisão em flagrante), portanto quando já estava em vigor a Lei 10.409/2002. A<br />

denúncia foi oferecida em 28-11-2003 (fls. 35-36) e recebida em 1º-12-2003 (fls. 37-38),<br />

com a imediata designação “para audiência de interrogatório”, a ser realizada em 15-<br />

12-2003, às 14h45.<br />

Ora, a nulidade é evidente. Não foi determinada a citação do paciente para que<br />

apresentasse, por escrito, a defesa prévia, no prazo de dez dias, antes do recebimento da<br />

denúncia, tal como determina o art. 38, caput, da Lei 10.409/2002.<br />

Como agravante da situação, o paciente foi citado para o interrogatório momentos<br />

antes de sua realização, nas próprias dependências do fórum (fl. 40 v.), o que<br />

inviabilizou qualquer tentativa de contato com seu patrono a tempo de que este pudesse<br />

participar efetivamente do ato processual.<br />

Entendo, portanto, que a defesa foi seriamente prejudicada pela inobservância do<br />

rito da Lei 10.409/2002, pois, se o paciente tivesse sido citado para apresentar defesa<br />

prévia por escrito, em dez dias, antes do recebimento da denúncia, teria tido tempo de<br />

nomear formalmente, perante o juízo, seu defensor, o qual participaria com eficácia de<br />

todas as demais fases do processo.<br />

Em decorrência do desrespeito à Lei 10.409/2002, o patrono do paciente não foi<br />

intimado e não esteve presente no interrogatório, muito embora, por ter conhecimento<br />

de todos os fatos a este imputados — uma vez que estava presente na delegacia após o<br />

flagrante —, sem dúvida estivesse mais bem habilitado para efetuar a defesa.<br />

Ressalto que o advogado do paciente havia impetrado habeas corpus em favor<br />

deste em 20-11-2003, portanto antes do oferecimento da denúncia. O pedido foi<br />

distribuído por dependência à mesma juíza que proferira a decisão de recebimento da<br />

denúncia.<br />

Observo ainda que, com o advento da Lei 10.792, de 1º-12-2003 (em vigor a partir<br />

de 2-12-2003), que alterou o art. 185 do Código de Processo Penal, o interrogatório<br />

tornou-se meio de defesa. Por essa razão, a presença do advogado nesse ato processual é<br />

imprescindível e sua ausência passou a ser causa de nulidade absoluta.<br />

A mera presença formal de advogado no interrogatório, a meu sentir, não atende ao<br />

comando legislativo do art. 185 do Código de Processo Penal, que visa a garantir uma<br />

defesa efetiva, real, concreta, e não fictícia. No caso, houve nomeação de defensor dativo<br />

para o interrogatório (fl. 42), mas este não fez nenhuma pergunta ao paciente (fl. 44), o<br />

que demonstra o preenchimento meramente formal do requisito da lei.


R.T.J. — <strong>199</strong> 721<br />

Concluo, Sr. Presidente, que a inobservância ao rito da Lei 10.409/2002 resultou<br />

em prejuízo à defesa do paciente, contaminando de nulidade todos os atos do processo,<br />

a partir do recebimento da denúncia, inclusive.<br />

Destaco que o paciente está preso desde 15-11-2003, tendo sido condenado a três<br />

anos de reclusão, em sentença datada de 1º-7-2004.<br />

Do exposto, conheço do recurso, para dar-lhe provimento, determinando a<br />

anulação de todos os atos decisórios do processo criminal em que foi condenado o<br />

paciente, até a decisão de recebimento da denúncia, inclusive, a fim de que seja<br />

observado o rito da Lei 10.409/2002.<br />

Determino, também, a expedição do alvará de soltura em favor do paciente, se por<br />

outro motivo não estiver ele preso.<br />

EXPLICAÇÃO<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): Senhor Ministro, Vossa Excelência<br />

observou que teria havido a desclassificação, pretendida pelo réu, da conduta tipificada<br />

no art. 12 da Lei n. 6.368/76, para aquela prevista no art. 16 desse mesmo diploma<br />

legislativo.<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Houve o pedido, mas a juíza não o<br />

acolheu.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): Sobreveio, então, o recurso interposto<br />

pelo ora paciente.<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Ele alega nulidade, porque não teve a<br />

oportunidade de fazer esse pedido naquela fase.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): Inquestionável, portanto, Senhor<br />

Relator, que não se observou, no caso, a fase indispensável do contraditório prévio<br />

instituída pela Lei n. 10.409/2002.<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Essa fase realmente não foi observada.<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Ele indicou um advogado, o qual foi constituído<br />

mais tarde, não é?<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Esse é outro argumento. O primeiro<br />

argumento é o de que não foi observada essa nova fase, disciplina — e realmente não foi.<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Mas isso por ausência de advogado, não havia o<br />

dativo? O que houve?<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): O juiz simplesmente não observou.<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Eu estou sustentando que não houve<br />

prejuízo, porque a alegação que ele pretendia fazer nessa fase ele a fez mais tarde e foi<br />

considerada na sentença.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): Há, ainda, nesta impetração, um outro<br />

fundamento que me parece muito relevante. O art. 185, § 2º, do CPP, na redação que lhe<br />

deu a Lei n. 10.792, de 2003, assegurou, ao réu, na linha do que já dispõe a Convenção<br />

Americana de Direitos Humanos, o direito de, antes da realização do interrogatório


722<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

judicial, manter entrevista reservada com o seu defensor, para ser por este orientado<br />

tecnicamente quanto ao comportamento processual a ser adotado perante o magistrado<br />

processante.<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): No caso, ele estava preso e não<br />

declinou o nome do seu defensor porque não o tinha, sendo designado um defensor<br />

dativo. Só posteriormente ao interrogatório, esse defensor ingressou nos autos com<br />

uma procuração.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): Quer dizer, então, que o juiz, no<br />

próprio termo do interrogatório, considerada a ausência de defensor técnico, designou<br />

um defensor para o réu, mas não lhe garantiu o direito de manter prévia entrevista com<br />

o Advogado que lhe havia sido designado (CPP, art. 185, § 2º). Adiou, ao menos, o<br />

interrogatório?<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Não adiou. Simplesmente perguntou se<br />

ele tinha um defensor constituído.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): E esse interrogatório foi posterior a<br />

dezembro de 2003, quando já em vigor a norma inscrita no art. 185, § 2º, do CPP, na<br />

redação dada pela Lei n. 10.792/2003?<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Sim. A lei já estava em vigor.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): O paciente ainda está preso?<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Está preso e condenado desde agosto de<br />

2004.<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Há três anos.<br />

Confesso que hesitei entre as duas soluções. Conceder simplesmente em razão da<br />

não-observância do procedimento, mas examinando bem os dados, percebi que não<br />

houve prejuízo à defesa. O advogado, por sua vez, que o defendeu no habeas corpus,<br />

realmente só compareceu aos autos depois.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): Entendo, com a devida vênia, que se<br />

impõe, na espécie, a concessão da ordem de habeas corpus, com a conseqüente<br />

invalidação do procedimento penal, desde o recebimento da denúncia, inclusive, por<br />

inobservância, pelo magistrado, do art. 38 da Lei n. 10.409/2002, que instituiu, em<br />

favor do denunciado, o direito ao contraditório prévio, quando se tratar — como<br />

sucede no caso — de imputação penal deduzida por suposta prática do delito previsto<br />

no art. 12 da Lei n. 6.368/76.<br />

Tenho para mim que a inobservância do rito procedimental previsto na Lei n.<br />

10.409/2002 configura típica hipótese de nulidade processual absoluta, sendo-lhe ínsita<br />

a própria idéia de prejuízo, eis que o não-cumprimento do que determina o art. 38 do<br />

diploma legislativo em causa compromete o concreto exercício, pelo denunciado, da<br />

garantia constitucional da plenitude de defesa.


R.T.J. — <strong>199</strong> 723<br />

É importante assinalar, considerada a nova disciplina ritual fundada na Lei n.<br />

10.409/2002, notadamente aquela constante de seu art. 38, que a resposta escrita do<br />

denunciado à acusação penal formulada pelo Ministério Público, a ser exercida antes<br />

do recebimento da denúncia, objetiva ensejar, àquele que sofre a imputação penal por<br />

suposta prática do delito de tráfico de entorpecentes (ou dos demais ilícitos tipificados<br />

nos arts. 12 a 14 da Lei n. 6.368/76), a possibilidade de contestar, mesmo na fase<br />

introdutória do processo penal, os fatos expostos pelo Parquet, em ordem a demonstrar<br />

a sua inexatidão, incorreção ou improcedência, evitando-se, desse modo, que se<br />

instaurem, contra a pessoa acusada, lides penais temerárias, injustas ou abusivas.<br />

Vê-se, portanto, que, agora, em face de sensível inovação introduzida no plano do<br />

direito positivo — considerada a derrogação do art. 22 da Lei n. 6.368/76 pelos arts. 37<br />

a 40 da Lei n. 10.409/2002 (Damásio E. de Jesus, “Lei Antitóxicos Anotada”, p. 152,<br />

8ª ed., 2005, Saraiva; Renato Marcão, “Tóxicos — Leis ns. 6.368/1976 e 10.409/2002<br />

Anotadas e Interpretadas”, p. 615/616, 2ª ed., 2005, Saraiva, v.g.) —, oferecida a<br />

denúncia nos casos tipificados nos arts. 12 a 14 da Lei n. 6.368/76, caberá, ao<br />

magistrado, antes de recebê-la, ordenar a citação (“rectius”, notificação) do acusado,<br />

“para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data da<br />

juntada do mandado aos autos ou da primeira publicação do edital de citação (...)”<br />

(Lei n. 10.409/2002, art. 38 — grifei).<br />

Isso significa, presente esse novo contexto normativo, que não se revelará lícito,<br />

ao juiz, receber, desde logo, a denúncia, sem antes proporcionar, ao denunciado, o<br />

exercício do direito de “responder à acusação”.<br />

Não foi por outra razão que o Supremo Tribunal Federal, apreciando essa mesma<br />

questão, deferiu ordem de “habeas corpus” em caso rigorosamente idêntico ao que se<br />

examina na presente sede recursal, e no qual proferiu decisão consubstanciada em<br />

acórdão assim ementado:<br />

“(...) II - Defesa — Entorpecentes — Nulidade por falta de oportunidade<br />

para a defesa preliminar prevista no art. 38 da Lei 10.409/02: demonstração de<br />

prejuízo: prova impossível (HC 69.142, 1ª T., 11-2-92, Pertence, <strong>RTJ</strong> 140/926;<br />

HC 85.443, 1ª T., 19-4-05, Pertence, DJ de 13-5-05).<br />

Não bastassem o recebimento da denúncia e a superveniente condenação<br />

do paciente, não cabe reclamar, a título de demonstração de prejuízo, a prova<br />

impossível de que, se utilizada a oportunidade legal para a defesa preliminar, a<br />

denúncia não teria sido recebida.” (HC 84.835/SP, Rel. Min. Sepúlveda<br />

Pertence, Primeira Turma — grifei)<br />

Não constitui demasia enfatizar, neste ponto, Senhores Ministros, que a<br />

previsão desse contraditório prévio a que se refere o art. 38 da Lei n. 10.409/2002,<br />

mais do que simples exigência legal, traduz indisponível garantia de índole<br />

jurídico-constitucional assegurada aos denunciados por suposta prática dos delitos<br />

tipificados nos arts. 12, 13 e 14 da Lei n. 6.368/76, de tal modo que, em relação a tais<br />

acusados, a observância desse rito procedimental configura instrumento de clara<br />

limitação ao poder persecutório do Estado, ainda mais se se considerar que, nessa<br />

resposta prévia — que compõe fase processual insuprimível —, torna-se lícita a<br />

formulação, nela, de todas as razões, de fato ou de direito, inclusive aquelas<br />

pertinentes ao mérito da causa, reputadas essenciais ao pleno exercício da defesa


724<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

pelo acusado, como assinala, com absoluta correção, o magistério da doutrina (Jorge<br />

Vicente Silva, “Tóxicos”, pp. 101/102, item n. 4.2.2.3, 2002, Juruá; Alexandre<br />

Bizzotto e Andreia de Brito Rodrigues, “Tóxicos: Aspectos Processuais (Lei<br />

10.409/11.01.2002)”, pp. 86/88, item n. 6, 2. ed., 2002, AB Editora; Damásio E. de<br />

Jesus, “Lei Antitóxicos Anotada”, p. 155, 8. ed., 2005, Saraiva; Renato Flávio<br />

Marcão, “Anotações Pontuais sobre a Lei 10.409/2002 (Nova Lei Antitóxicos) —<br />

Procedimento e Instrução Criminal”, “in” RT 797/492-505, 498, v.g.).<br />

É sempre importante rememorar, presente o contexto ora em análise, que a<br />

exigência de fiel observância das formas processuais, notadamente quando instituídas<br />

em favor do acusado, representa, no âmbito das persecuções penais, uma inestimável<br />

garantia de liberdade, pois não se pode desconhecer, considerada a própria jurisprudência<br />

desta Suprema Corte, que o processo penal configura um expressivo instrumento<br />

constitucional de salvaguarda das liberdades individuais do réu, contra quem não se<br />

presume provada qualquer acusação penal:<br />

“A submissão de uma pessoa à jurisdição penal do Estado coloca em<br />

evidência a relação de polaridade conflitante que se estabelece entre a pretensão<br />

punitiva do Poder Público e o resguardo à intangibilidade do jus libertatis<br />

titularizado pelo réu.<br />

A persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente<br />

vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas<br />

leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o<br />

processo penal só pode ser concebido — e assim deve ser visto — como instrumento<br />

de salvaguarda da liberdade do réu.<br />

O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do<br />

Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação<br />

dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Ao<br />

delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu — que jamais se<br />

presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença condenatória —, o<br />

processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão judicial e que, condicionado<br />

por parâmetros ético-jurídicos, impõe, ao órgão acusador, o ônus integral<br />

da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado, que jamais necessita<br />

demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente,<br />

sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo<br />

Ministério Público.<br />

A própria exigência de processo judicial representa poderoso fator de<br />

inibição do arbítrio estatal e de restrição ao poder de coerção do Estado. A<br />

cláusula nulla poena sine judicio exprime, no plano do processo penal<br />

condenatório, a fórmula de salvaguarda da liberdade individual.”<br />

(<strong>RTJ</strong> 161/264-266, Rel. Min. Celso de Mello)<br />

Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, peço vênia para dar<br />

provimento ao presente recurso ordinário, em ordem a invalidar, desde o recebimento<br />

da denúncia, inclusive, o procedimento penal instaurado contra o ora paciente, por<br />

inobservância do art. 38 da Lei n. 10.409/2002, determinando, em conseqüência, a<br />

expedição de alvará de soltura, se por al o réu não estiver preso.


R.T.J. — <strong>199</strong> 725<br />

Devo aduzir, ainda, por necessário, uma observação final. É que esta minha<br />

convicção, quanto à invalidade formal da persecutio criminis em questão, é também<br />

reforçada pelo fato de não haver sido assegurado, ao ora paciente, o direito de<br />

entrevistar-se, reservadamente, com o seu defensor, antes do interrogatório judicial,<br />

pois se trata, aí, de uma garantia expressamente reconhecida a qualquer acusado pela<br />

legislação processual penal, como resulta claro do art. 185, § 2º, do CPP, na redação<br />

que lhe deu a Lei n. 10.792/2003, editada para dar, no ponto, plena concreção à<br />

cláusula constitucional do due process of law.<br />

Por todas essas razões, Senhores Ministros, mas notadamente pela inobservância<br />

do que dispõe o art. 38 da Lei n. 10.409/2002, é que dou integral provimento a este<br />

recurso ordinário.<br />

É o meu voto.<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Sr. Presidente, mas esse não é nem o fundamento<br />

invocado.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): Parece-me que o eminente Relator fez<br />

referência a essa questão, embora o fundamento que dá suporte à postulação recursal<br />

apóie-se na alegação de nulidade decorrente da inobservância, no caso, da nova<br />

disciplina ritual estabelecida pelo art. 38 da Lei n. 10.409/2002.<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Sr. Presidente, releio os fundamentos da<br />

impetração:<br />

“Sustenta, em síntese, a inobservância do rito estabelecido na lei 10.409/2002”.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): Como já longamente ressaltado em meu<br />

voto, acolho esse específico fundamento do pleito recursal deduzido pelo ora paciente.<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Continuo:<br />

“(a) nulidade da citação para o interrogatório do paciente, eis que realizada<br />

no mesmo dia em que ocorreu o ato;”<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Terceiro fundamento:<br />

“(b) não intimação do advogado indicado no auto de prisão em flagrante<br />

para o interrogatório;”<br />

Essa é a questão do advogado.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): Durante o interrogatório, o paciente<br />

não foi assistido, tecnicamente, por qualquer defensor dativo?<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Foi.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): Mas não se lhe assegurou o direito de<br />

entrevistar-se, reservadamente, com o seu defensor?<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Esse não é um dos fundamentos.<br />

Por fim, o último fundamento:<br />

“(c) é cerceamento de defesa, em especial, pelo exíguo prazo para apresentação<br />

da defesa prévia, na qual o impetrante deixou de pedir a reclassificação o crime” —<br />

igual ao argumento anterior.


726<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): A minha divergência, no caso, cinge-se,<br />

basicamente, ao fundamento pertinente à inobservância, pelo magistrado processante, da<br />

fase preliminar instituída pelo art. 38 da Lei n. 10.409/2002, muito embora também<br />

entenda indiscutível o direito que o ordenamento positivo assegura, a qualquer acusado,<br />

antes de seu interrogatório judicial, de entrevistar-se, reservadamente, com o seu defensor<br />

(CPP, art. 185, § 2º).<br />

Daí o provimento que dou ao presente recurso ordinário, reafirmando, portanto,<br />

o voto que venho de proferir.<br />

VOTO (Retificação)<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Senhor Presidente, em face das<br />

considerações feitas por Vossa Excelência, reformulo meu voto, para acompanhá-lo,<br />

sem prejuízo de reflexões futuras sobre a matéria, porque, como eu disse, ao analisá-la,<br />

hesitei muito.<br />

VOTO<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Senhor Presidente, entendo que não houve prejuízo<br />

à defesa. É uma legislação tumultuária essa, de modo que levo em consideração aspectos<br />

de administração judiciária. Como podem esses fóruns judiciais funcionar com esse<br />

requinte bizantino de procedimento? Vossa Excelência conhece a situação, por exemplo,<br />

do fórum de São Paulo e de todas as grandes cidades. Numa pequena cidade de interior,<br />

pode ser que o juiz realmente tivesse oportunidade de estender tudo isso.<br />

Voto no sentido originário do voto do Ministro Relator, negando provimento ao<br />

recurso.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

RHC 86.680/SP — Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Recorrente: Humberto<br />

Silva de Sousa (Advogado: Edvard Bagdonas). Recorrido: Ministério Público Federal.<br />

Decisão: A Turma, por votação majoritária, conheceu e deu provimento ao recurso<br />

ordinário, para invalidar o procedimento penal, desde o recebimento da denúncia,<br />

inclusive, por inobservância do art. 38 da Lei n. 10.409/2002, e determinou a expedição<br />

de alvará de soltura, em favor do paciente, ora recorrente, se por al não estiver preso,<br />

vencida a Ministra Ellen Gracie que negava provimento ao recurso ordinário. Ausentes,<br />

justificadamente, neste julgamento, os Ministros Carlos Velloso e Gilmar Mendes.<br />

Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros Carlos<br />

Velloso, Ellen Gracie, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. Subprocuradora-Geral da<br />

República, Dra. Sandra Verônica Cureau.<br />

Brasília, 13 de dezembro de 2005 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador.


R.T.J. — <strong>199</strong> 727<br />

HABEAS CORPUS 87.654 — PR<br />

Relatora: A Sra. Ministra Ellen Gracie<br />

Paciente: Ademar Reis Picironi — Impetrante: Jaime Pego Siqueira — Coator:<br />

Superior Tribunal de Justiça<br />

Crime contra a ordem econômica (Lei 8.176/91). Inquérito policial<br />

instaurado com base em apreensão ilícita de documentos. Trancamento<br />

pretendido.<br />

1. Eventual vício na primeira apreensão, que foi desconstituída<br />

judicialmente, não contamina a segunda apreensão, que foi precedida<br />

de prévia autorização judicial. Discutível, ademais, cogitar-se de<br />

apreensão ilícita, uma vez que a comunicação de possível crime ao<br />

Ministério Público não configura afronta ao sigilo fiscal (CTN, art. 198,<br />

§ 3º, I).<br />

2. Habeas corpus indeferido.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a Presidência do Ministro Celso de Mello, na<br />

conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos,<br />

indeferir o pedido de habeas corpus, nos termos do voto da Relatora.<br />

Brasília, 7 de março de 2006 — Ellen Gracie, Relatora.<br />

RELATÓRIO<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: 1. Trata-se de habeas corpus substitutivo. Impugna o<br />

impetrante acórdão do Superior Tribunal de Justiça que indeferiu medida idêntica e que<br />

ficou assim ementado:<br />

“Habeas corpus. Crime contra a ordem econômica. Trancamento do<br />

inquérito policial. Ilicitude da prova reconhecida. Inquérito trancado. Obtenção<br />

de nova prova do fato em posterior investigação realizada legalmente. Vício<br />

anterior que não contamina as novas provas obtidas.<br />

1. Se as provas que instruem o novo inquérito policial instaurado foram<br />

obtidas com a quebra judicialmente autorizada dos sigilos bancário, fiscal e<br />

telefônico dos indiciados, não há como tachá-los de ilícitos, porquanto desvinculados<br />

da prova anteriormente colhida com vício.<br />

2. Writ denegado.<br />

2. Resumo os fatos relatados na inicial. Documentos fiscais foram apreendidos<br />

pelo Fisco, no interior de uma empresa imobiliária — Mapp Empreendimentos<br />

Imobiliários Ltda. —, sem prévia autorização judicial. Com base nessa documentação,<br />

foi instaurado, a pedido do Ministério Público, um inquérito policial para apuração de<br />

eventual crime contra a ordem econômica (Lei 8.176/91, art. 1º, I).


728<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Inconformada com a apreensão, a empresa impetrou mandado de segurança que<br />

logrou êxito, mas com a ressalva de que “nova investigação poderia ser iniciada, caso<br />

concedida a necessária autorização do Poder Judiciário para o acesso aos dados<br />

sigilosos.”<br />

O Ministério Público postulou, então, a quebra do sigilo fiscal, que foi concedida,<br />

e requisitou a instauração de novo inquérito.<br />

Sustenta, então, o impetrante que esse novo inquérito estaria contaminado pelo<br />

vício do anterior — ofensa ao sigilo fiscal. É que a documentação que ensejou o<br />

segundo inquérito é a mesma que fora obtida irregularmente no primeiro. Essa é a tese da<br />

impetração. Daí a pretensão de trancamento desse segundo inquérito. Não teve êxito o<br />

impetrante, quer perante o Tribunal de Justiça do Paraná, quer perante o Superior<br />

Tribunal de Justiça.<br />

3. Indeferida a liminar (fls. 45/46), o ilustre Subprocurador-Geral da República,<br />

Wagner Gonçalves, opinou pelo indeferimento (fls. 48/55).<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. A pretensão do impetrante de trancar o<br />

segundo inquérito policial instaurado para investigação de eventual crime contra a<br />

ordem econômica não pode ser atendida. A alegação de que ele estaria contaminado<br />

pelo mesmo vício — afronta ao sigilo fiscal —, que justificou o trancamento do<br />

primeiro, não procede. É que o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná,<br />

embora tenha vislumbrado hipótese de quebra do sigilo fiscal, sem prévia autorização<br />

judicial, ressalvou, expressamente, “... que os referidos documentos se obtidos por<br />

ordem judicial poderão lastrear a abertura de novo procedimento investigatório” (fl.<br />

6). Ora, o impetrante já obteve, num primeiro habeas corpus, o trancamento do primeiro<br />

inquérito porque, segundo se afirma, teria havido afronta ao sigilo fiscal. E conseguiu,<br />

também, a devolução dos documentos apreendidos. Mas essa decisão não poderia<br />

impedir uma nova apreensão, desde que precedida de prévia autorização. Obtida a<br />

prévia autorização, seguiu-se nova apreensão, já agora legitimada pela ressalva do<br />

acórdão do Tribunal de Justiça local. O parecer da ilustrada Subprocuradoria-Geral da<br />

República bem identificou as conseqüências que a tese da impetração provocaria, se<br />

admitida: “A aceitar a tese da impetração, haveria com a decisão do Tribunal, com o<br />

primeiro habeas corpus, um bill of indemnity,ou seja, uma decisão judicial definitiva a<br />

isentá-lo (o contribuinte) de quaisquer responsabilidades penais sobre possíveis<br />

crimes contra a ordem econômica (Lei 8.176, de 8-2-91).” (fl. 54).<br />

2. Ademais, é questionável até mesmo a alegada ilicitude da primeira apreensão, a<br />

despeito do entendimento das instâncias ordinárias. Nos termos do art. 195 do Código<br />

Tributário Nacional, o fisco não estava impedido de ingressar na sede da empresa<br />

contribuinte no exercício de sua função de fiscalização. Principalmente quando, como<br />

no caso, os agentes fiscais receberam Ordem de Serviço devidamente documentada (fl.<br />

22 do apenso). E nem de apreender ou reter livros e documentos para exame, e, se for o<br />

caso, posterior deflagração de medidas de seu interesse (procedimentos administrativos,


R.T.J. — <strong>199</strong> 729<br />

representações fiscais, constituição de créditos tributários). Essa atuação dos agentes<br />

fiscais tem respaldo na legislação tributária complementar estadual (Lei 11.580/96,<br />

art. 56).<br />

A despeito do entendimento contrário sufragado pelo tribunal paranaense, o<br />

Código Tributário Nacional não veda a divulgação de informações relativas a<br />

representações fiscais para fins penais (art. 198, § 3º, inciso I). No caso, com base na<br />

documentação apreendida, constatou a fiscalização que a empresa imobiliária<br />

dedicava-se, na verdade, a finalidades estranhas à sua razão social: à distribuição de<br />

combustíveis. E de forma ilícita. Sem nenhuma autorização ou formalização (fl. 39 do<br />

apenso).<br />

O chamado sigilo fiscal nada mais é que um desdobramento do direito à<br />

intimidade e à vida privada. Aqui se cuida de pessoa jurídica que exerce atividade<br />

tributável. Contribuinte, portanto. Os documentos foram apreendidos no interior da<br />

sede da empresa e não no domicílio do seu responsável legal. A atividade da pessoa<br />

jurídica está prevista como crime contra a ordem econômica. Legítima, assim, a atuação<br />

do Fisco, com respaldo na legislação pertinente. Legítima, também, a atuação do<br />

Ministério Público instando a autoridade policial à instauração do inquérito policial,<br />

com vista a apurar a ocorrência de um fato típico — adquirir, distribuir e revender<br />

derivados de petróleo, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei —<br />

previsto no art. 1º, inciso I, da Lei 8.176/91, que disciplina os crimes contra a ordem<br />

econômica.<br />

3. Diante do exposto, mantenho a decisão do Superior Tribunal de Justiça e<br />

indefiro o habeas corpus.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Presidente): Entendo que não são absolutos os<br />

poderes de que se acham investidos os órgãos da administração tributária, cabendo<br />

assinalar, por relevante, Senhores Ministros, presente o contexto ora veiculado nesta<br />

impetração, que o Estado, notadamente em tema de tributação, está sujeito à<br />

observância do “estatuto constitucional dos contribuintes”, impondo-se-lhe, por isso<br />

mesmo, o respeito aos direitos individuais daqueles que sofrem a ação do Poder<br />

Público.<br />

Daí a necessidade de rememorar, sempre, a função tutelar do Poder Judiciário,<br />

investido de competência institucional para neutralizar eventuais abusos das<br />

entidades governamentais, que, muitas vezes deslembradas da existência, em nosso<br />

sistema jurídico, de um verdadeiro “estatuto constitucional do contribuinte” —<br />

consubstanciador de direitos e limitações oponíveis ao poder impositivo do Estado<br />

(Pet 1.466/PB, Rel. Min. Celso de Mello, in Informativo/<strong>STF</strong> n. 125) — culminam por<br />

asfixiar, arbitrariamente, o sujeito passivo da obrigação tributária, inviabilizando-lhe,<br />

injustamente, trate-se de obrigação tributária principal, cuide-se de obrigação tributária<br />

acessória ou instrumental, a prática de garantias legais e constitucionais de que é<br />

legitimo titular, fazendo instaurar, assim, situação que só faz conferir permanente<br />

atualidade ao “dictum” do Justice Oliver Wendell Holmes, Jr. (“The power to tax is not


730<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

the power to destroy while this Court sits”), em palavras segundo as quais, em livre<br />

tradução, “o poder de tributar não significa nem envolve o poder de destruir, pelo<br />

menos enquanto existir esta Corte Suprema”, proferidas, ainda que como “dissenting<br />

opinion”, no julgamento, em 1928, do caso “Panhandle Oil Co. v. State of Mississippi<br />

Ex Rel. Knox” (277 U.S. 218).<br />

Isso significa, portanto, que a administração tributária, embora podendo muito,<br />

não pode tudo, eis que lhe é somente lícito atuar, “respeitados os direitos individuais e<br />

nos termos da lei” (CF, art. 145, § 1º), consideradas, sob tal perspectiva, as limitações<br />

decorrentes do próprio sistema constitucional, cuja eficácia restringe, como natural<br />

conseqüência da supremacia de que se acham impregnadas as garantias instituídas<br />

pela Lei Fundamental, o alcance do poder estatal, especialmente quando exercido em<br />

face do contribuinte.<br />

Cumpre ter presente, neste ponto, Senhores Ministros, a propósito do tema<br />

ora em exame, a advertência do Supremo Tribunal Federal, cujo magistério jurisprudencial<br />

— apoiando-se em autorizado entendimento doutrinário (Hugo de Brito<br />

Machado Segundo, “Processo Tributário”, pp. 76/86, item n. 2.5.2, 2004, Atlas;<br />

Sacha Calmon Navarro Coêlho, “Curso de Direito Tributário Brasileiro”, pp. 893/<br />

9<strong>07</strong>, itens ns. 17.12 a 17.20, 8ª ed., 2005, Forense; Hugo de Brito Machado, “Curso<br />

de Direito Tributário”, pp. 214/223, itens ns. 1 a 1.6, 21ª ed., 2002, Malheiros;<br />

Roque Antonio Carrazza, “Curso de Direito Constitucional Tributário”, pp. 404/<br />

411, item n. 3, 21ª ed., 2005, Malheiros, v.g.) — orienta-se no sentido de preservar<br />

o contribuinte contra medidas arbitrárias adotadas pelos agentes da administração<br />

tributária, muitas das quais configuram atos eivados de ilicitude, quando não de<br />

transgressão à ordem jurídica fundada na própria Constituição da República (<strong>RTJ</strong><br />

162/3-6, 4, Rel. Min. Ilmar Galvão — <strong>RTJ</strong> 185/237-238, Rel. Min. Sepúlveda<br />

Pertence — HC 82.788/RJ, Rel. Min. Celso de Mello — RE 331.303-AgR/PR, Rel.<br />

Min. Sepúlveda Pertence, v.g.).<br />

Na realidade, a circunstância de a administração estatal achar-se investida de<br />

poderes excepcionais que lhe permitem exercer a fiscalização em sede tributária não<br />

a exonera do dever de observar, para efeito do correto desempenho de tais<br />

prerrogativas, os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República, sob<br />

pena de os órgãos governamentais incidirem em frontal desrespeito às garantias<br />

constitucionalmente asseguradas aos cidadãos em geral e aos contribuintes, em<br />

particular.<br />

É que a atividade administrativa do Estado, mesmo naquelas hipóteses em que<br />

o ato emanado do Poder Público reveste-se de auto-executoriedade, traduz comportamento<br />

necessariamente subordinado aos princípios impostos pelo ordenamento<br />

constitucional.<br />

O procedimento estatal da administração tributária que contrarie os postulados<br />

consagrados pela Constituição da República revela-se inaceitável, Senhores Ministros,<br />

e não pode ser corroborado por decisão desta Suprema Corte, sob pena de inadmissível<br />

subversão dos postulados constitucionais que definem, de modo estrito, os limites —<br />

inultrapassáveis — que restringem os poderes do Estado em suas relações com os<br />

contribuintes e com terceiros.


R.T.J. — <strong>199</strong> 731<br />

A eminente Relatora, ao resumir os fatos expostos na presente impetração,<br />

salientou que certos documentos fiscais foram apreendidos pelo Fisco, no interior de<br />

uma empresa imobiliária, sem prévia autorização judicial, dando origem à instauração<br />

de inquérito policial, a pedido do Ministério Público, para efeito de apuração de<br />

possível crime contra a ordem tributária.<br />

Em conseqüência de tal apreensão manu militari, sem ordem judicial, a empresa<br />

em questão veio a impetrar mandado de segurança, que lhe foi concedido, em<br />

decorrência da ilegalidade do comportamento em que incidiram os agentes fiscais.<br />

Não obstante o deferimento desse writ mandamental, que invalidou, por ilícitas, as<br />

medidas anteriormente adotadas, o Ministério Público — certamente com base nos<br />

elementos de informação propiciados pela ilegítima apreensão administrativa da<br />

referida documentação — veio a postular, então, em juízo, a quebra do sigilo fiscal da<br />

empresa, requisitando, ainda, contra seus administradores, e com apoio nessa (supostamente)<br />

nova prova, a instauração de outro inquérito policial.<br />

Daí a presente impetração, em que se sustenta que a documentação que motivou a<br />

instauração do segundo inquérito policial nada mais é do que a mesma documentação<br />

que fora obtida, ilicitamente, em momento anterior, pelos agentes fiscais, de tal modo que<br />

a situação ora apontada — por traduzir hipótese de ilicitude por derivação — não pode<br />

legitimar a persecutio criminis ora questionada nesta sede processual.<br />

Por isso mesmo, e com a devida vênia, entendo assistir razão ao ora impetrante,<br />

pois o Estado não pode apoiar a sua atividade persecutória em prova ilícita, ainda que<br />

se cuide, como sucede na espécie, de ilicitude por derivação.<br />

Impõe-se relembrar, Senhores Ministros, até mesmo como fator de expressiva<br />

conquista (e preservação) dos direitos instituídos em favor daqueles que sofrem a ação<br />

persecutória do Estado, a inquestionável hostilidade do ordenamento constitucional<br />

brasileiro às provas ilegítimas e às provas ilícitas. A Constituição da República tornou<br />

inadmissíveis, no processo, as provas inquinadas de ilegitimidade ou de ilicitude.<br />

A norma inscrita no art. 5º, LVI, da vigente Lei Fundamental consagrou, entre<br />

nós, o postulado de que a prova obtida por meios ilícitos deve ser repudiada — e<br />

repudiada sempre (Mauro Cappelletti, “Efficacia di prove illegittimamente<br />

ammesse e comportamento della parte”, “in” Rivista di Diritto Civile, p. 112, 1961;<br />

Vicenzo Vigoriti, “Prove illecite e Costituzione”, “in” Rivista di Diritto Processuale,<br />

pp. 64 e 70, 1968) — pelos juízes e Tribunais, “por mais relevantes que sejam os fatos<br />

por ela apurados, uma vez que se subsume ela ao conceito de inconstitucionalidade...”<br />

(Ada Pellegrini Grinover, “Novas Tendências do Direito Processual” p. 62, <strong>199</strong>0,<br />

Forense Universitária).<br />

A cláusula constitucional do “due process of law” — que se destina a garantir a<br />

pessoa do acusado contra ações eventualmente abusivas do Poder Público — tem, no<br />

dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas projeções concretizadoras<br />

mais expressivas, na medida em que o réu tem o impostergável direito de não ser<br />

denunciado, de não ser julgado e de não ser condenado com apoio em elementos<br />

instrutórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites impostos, pelo<br />

ordenamento jurídico, ao poder persecutório e ao poder investigatório do Estado.


732<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

A absoluta invalidade da prova ilícita infirma-lhe, de modo radical, a eficácia<br />

demonstrativa dos fatos e eventos cuja realidade material ela pretende evidenciar.<br />

Trata-se de conseqüência que deriva, necessariamente, da garantia constitucional que<br />

tutela a situação jurídica dos acusados em juízo penal e que exclui, de modo<br />

peremptório, a possibilidade de uso, em sede processual, da prova — de qualquer<br />

prova — cuja ilicitude venha a ser reconhecida pelo Poder Judiciário.<br />

A prova ilícita é prova inidônea. Mais do que isso, prova ilícita é prova<br />

imprestável. Não se reveste, por essa explícita razão, de qualquer aptidão jurídicomaterial.<br />

A prova ilícita, qualificando-se como providência instrutória repelida pelo<br />

ordenamento constitucional, apresenta-se destituída de qualquer grau, por mínimo<br />

que seja, de eficácia jurídica.<br />

Tenho tido a oportunidade de enfatizar, neste Tribunal, que a exclusionary rule —<br />

considerada essencial, pela jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos<br />

da América, na definição dos limites da atividade probatória desenvolvida pelo<br />

Estado — destina-se a proteger os réus, em sede processual penal, contra a ilegítima<br />

produção ou a ilegal colheita de prova incriminadora (Garrity v. New Jersey, 385<br />

U.S. 493, 1967 — Mapp v. Ohio, 367 U.S. 643, 1961 — Wong Sun v. United States,<br />

371 U.S. 471, 1962, v.g.), impondo, em atenção ao princípio do “due process of law”,<br />

o banimento processual de quaisquer evidências que tenham sido ilicitamente<br />

coligidas pelo Poder Público.<br />

No contexto do sistema constitucional brasileiro, no qual prevalece a inadmissibilidade<br />

processual das provas ilícitas, a jurisprudência do Supremo Tribunal<br />

Federal, ao interpretar o sentido e o alcance do art. 5º, LVI, da Carta Política, tem<br />

repudiado quaisquer elementos de informação, desautorizando-lhes o valor probante,<br />

sempre que a obtenção dos dados probatórios resultar de transgressão, pelo Poder<br />

Público, do ordenamento positivo (<strong>RTJ</strong> 163/682 — <strong>RTJ</strong> 163/709), ainda que se<br />

cuide, como sucede na espécie, de hipótese configuradora de ilicitude por derivação<br />

(<strong>RTJ</strong> 155/508).<br />

Foi por tal razão que esta Corte Suprema, quando do julgamento da Ação Penal<br />

3<strong>07</strong>/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, desqualificou, por ilícita, prova cuja obtenção<br />

decorrera do desrespeito, por parte de autoridades públicas, da garantia constitucional<br />

da inviolabilidade domiciliar (<strong>RTJ</strong> 162/4, item n. 1.1).<br />

Cabe referir, neste ponto, o magistério de Ada Pellegrini Grinover (“Liberdades<br />

Públicas e Processo Penal”, p. 151, itens ns. 7 e 8, 2ª ed., 1982, RT), para quem —<br />

tratando-se de prova ilícita, especialmente daquela cuja produção derivar de ofensa a<br />

cláusulas de ordem constitucional — não se revelará aceitável, para efeito de sua<br />

admissibilidade, a invocação do critério de razoabilidade do direito norte-americano,<br />

que corresponde ao princípio da proporcionalidade do direito germânico, mostrandose<br />

indiferente a indagação sobre quem praticou o ato ilícito de que se originou o dado<br />

probatório questionado:<br />

“A inadmissibilidade processual da prova ilícita torna-se absoluta,<br />

sempre que a ilicitude consista na violação de uma norma constitucional, em<br />

prejuízo das partes ou de terceiros.


R.T.J. — <strong>199</strong> 733<br />

Nesses casos, é irrelevante indagar se o ilícito foi cometido por agente<br />

público ou por particulares, porque, em ambos os casos, a prova terá sido obtida<br />

com infringência aos princípios constitucionais que garantem os direitos da<br />

personalidade. Será também irrelevante indagar-se a respeito do momento em que<br />

a ilicitude se caracterizou (antes e fora do processo ou no curso do mesmo); será<br />

irrelevante indagar-se se o ato ilícito foi cumprido contra a parte ou contra terceiro,<br />

desde que tenha importado em violação a direitos fundamentais; e será, por fim,<br />

irrelevante indagar-se se o processo no qual se utilizaria prova ilícita deste jaez é<br />

de natureza penal ou civil.<br />

(...)<br />

Nesta colocação, não parece aceitável (embora sugestivo) o critério de<br />

‘razoabilidade’ do direito norte-americano, correspondente ao princípio de<br />

‘proporcionalidade’ do direito alemão, por tratar-se de critérios subjetivos, que<br />

podem induzir a interpretações perigosas, fugindo dos parâmetros de proteção da<br />

inviolabilidade da pessoa humana.<br />

A mitigação do rigor da admissibilidade das provas ilícitas deve ser feita<br />

através da análise da própria norma material violada: (...) sempre que a violação se<br />

der com relação aos direitos fundamentais e a suas garantias, não haverá como<br />

invocar-se o princípio da proporcionalidade.” (Grifei)<br />

Essa mesma orientação é registrada por Vânia Siciliano Aieta (“A Garantia da<br />

Intimidade como Direito Fundamental”, p. 191, item n. 4.4.6.4, <strong>199</strong>9, Lumen Juris), cujo<br />

lúcido magistério também reconhece que, “Atualmente, a teoria majoritariamente<br />

aceita é a da inadmissibilidade processual das provas ilícitas (colhidas com lesões a<br />

princípios constitucionais), sendo irrelevante a averiguação, se o ilícito foi cometido por<br />

agente público, ou por agente particular, porque, em ambos os casos, lesa princípios<br />

constitucionais” (Grifei).<br />

Por isso mesmo, Senhores Ministros, assume inegável relevo, na repulsa à<br />

“crescente predisposição para flexibilização dos comandos constitucionais aplicáveis<br />

na matéria”, a advertência de Luis Roberto Barroso, que, em texto escrito com a<br />

colaboração de Ana Paula de Barcellos (“A Viagem Redonda: Habeas Data, Direitos<br />

Constitucionais e as Provas Ilícitas” “in” RDA 213/149-163), rejeita, com absoluta<br />

correção, qualquer tipo de prova obtida por meio ilícito, demonstrando, ainda, o<br />

gravíssimo risco de se admitir essa espécie de evidência com apoio no princípio da<br />

proporcionalidade:<br />

“O entendimento flexibilizador dos dispositivos constitucionais citados,<br />

além de violar a dicção claríssima da Carta Constitucional, é de todo inconveniente<br />

em se considerando a realidade político-institucional do País.<br />

(...)<br />

Embora a idéia da proporcionalidade possa parecer atraente, deve-se ter<br />

em linha de conta os antecedentes de País, onde as exceções viram regra desde sua<br />

criação (vejam-se, por exemplo, as medidas provisórias). À vista da trajetória<br />

inconsistente do respeito aos direitos individuais e da ausência de um sentimento<br />

constitucional consolidado, não é nem conveniente nem oportuno, sequer de lege<br />

ferenda, enveredar por flexibilizações arriscadas.” (Grifei)


734<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Também corretamente sustentando a tese de que o Estado não pode, especialmente<br />

em sede processual penal, valer-se de provas ilícitas contra o acusado, mesmo<br />

que sob invocação do princípio da proporcionalidade, impõe-se relembrar o entendimento<br />

de Edgard Silveira Bueno Filho (“O Direito à Defesa na Constituição”, pp. 54/<br />

56, item n. 5.9, <strong>199</strong>4, Saraiva) e de Guilherme Silva Barbosa Fregapani (“Prova<br />

Ilícita no Direito Pátrio e no Direito Comparado”, “in” Revista da Fundação Escola<br />

Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios n. 6/231-235).<br />

Cabe ter presente, também, por necessário, que o princípio da proporcionalidade,<br />

em sendo alegado pelo Poder Público, não pode converter-se em instrumento de<br />

frustração da norma constitucional que repudia a utilização, no processo, de provas<br />

obtidas por meios ilícitos.<br />

Esse postulado, portanto, não deve ser invocado nem aplicado indiscriminadamente<br />

pelos órgãos do Estado, ainda mais quando se acharem expostos, a clara situação<br />

de risco, direitos fundamentais assegurados pela Constituição.<br />

Sob tal perspectiva, portanto, Senhores Ministros, tenho como incensurável a<br />

advertência feita por Antonio Magalhães Gomes Filho (“Proibição das Provas<br />

Ilícitas na Constituição de 1988”, pp. 249/266, “in” “Os 10 Anos da Constituição<br />

Federal”, coordenação de Alexandre de Moraes, <strong>199</strong>9, Atlas):<br />

“Após dez anos de vigência do texto constitucional, persistem as resistências<br />

doutrinárias e dos tribunais à proibição categórica e absoluta do ingresso, no<br />

processo, das provas obtidas com violação do direito material.<br />

Isso decorre, a nosso ver, em primeiro lugar, de uma equivocada compreensão<br />

do princípio do livre convencimento do juiz, que não pode significar liberdade<br />

absoluta na condução do procedimento probatório nem julgamento desvinculado<br />

de regras legais. Tal princípio tem seu âmbito de operatividade restrito ao momento<br />

da valoração das provas, que deve incidir sobre material constituído por elementos<br />

admissíveis e regularmente incorporados ao processo.<br />

De outro lado, a preocupação em fornecer respostas prontas e eficazes às<br />

formas mais graves de criminalidade tem igualmente levado à admissão de<br />

provas maculadas pela ilicitude, sob a justificativa da proporcionalidade ou<br />

razoabilidade. Conquanto não se possa descartar a necessidade de ponderação<br />

de interesses nos casos concretos, tal critério não pode ser erigido à condição<br />

de regra capaz de tornar letra morta a disposição constitucional. Ademais,<br />

certamente não será com o incentivo às práticas ilegais que se poderá alcançar<br />

resultado positivo na repressão da criminalidade.” (Grifei)<br />

É tempo de concluir este voto, Senhores Ministros. E, ao fazê-lo, apoiando-me<br />

nas considerações que venho de expor, peço vênia para deferir o pedido de habeas<br />

corpus, em ordem a extinguir o procedimento penal iniciado contra o ora paciente,<br />

desde o oferecimento da denúncia, inclusive, sem prejuízo — uma vez afastada a<br />

prova contaminada pelo vício originário da ilicitude — de o Poder Público valer-se de<br />

outros meios legítimos para fazer instaurar, se for o caso, a persecução penal contra<br />

Ademar Reis Picironi.<br />

É o meu voto.


R.T.J. — <strong>199</strong> 735<br />

EXTRATO DA ATA<br />

HC 87.654/PR — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Paciente: Ademar Reis Picironi.<br />

Impetrante: Jaime Pego Siqueira. Coator: Superior Tribunal de Justiça.<br />

Decisão: A Turma, por votação majoritária, indeferiu o pedido de habeas corpus,<br />

nos termos do voto da Relatora, vencido o Presidente, que o deferia. Ausente, justificadamente,<br />

neste julgamento, o Ministro Gilmar Mendes.<br />

Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão a Ministra Ellen Gracie<br />

e o Ministro Joaquim Barbosa. Ausente, justificadamente, o Ministro Gilmar Mendes.<br />

Subprocurador-Geral da República, Dr. Wagner Gonçalves.<br />

Brasília, 7 de março de 2006 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador.<br />

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 181.966 — SP<br />

Relator: O Sr. Ministro Marco Aurélio<br />

Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Nelson Jobim<br />

Recorrente: Banco Itaú S.A. — Recorrido: José Politi<br />

Tablita. Plano Collor II. Regra de deflação da MP 294/91 (Lei 8.177/<br />

91). Princípios do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa<br />

julgada. Alteração de padrão monetário.<br />

1. No julgamento do RE 141.190, o Plenário do <strong>STF</strong> entendeu que o<br />

fator de deflação veio a preservar o equilíbrio econômico-financeiro<br />

inicial dos contratos, diante da súbita interrupção do processo inflacionário.<br />

A manutenção dos contratos então vigentes — que traziam<br />

embutida a tendência inflacionária — importaria em ganhos irreais,<br />

desiguais e incompatíveis com o pacto firmado entre as partes antes da<br />

alteração radical do ambiente monetário e econômico.<br />

2. Também por isso se confirmou a tese de que normas de ordem<br />

pública que instituem novo padrão monetário têm aplicação imediata em<br />

relação aos contratos em curso como forma de reequilibrar a relação<br />

jurídica antes estabelecida.<br />

3. O Plano Collor II também representou mudança de padrão<br />

monetário e alteração profunda dos rumos econômicos do país e, por isso,<br />

a esse plano econômico também se aplica a jurisprudência assentada no<br />

julgamento do RE 141.190.<br />

Recurso provido.


736<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Nelson Jobim, na<br />

conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, dar<br />

provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator.<br />

Brasília, 15 de março de 2006 — Nelson Jobim, Presidente.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: O Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de<br />

São Paulo negou acolhida a pedido formulado em apelação, mantendo a condenação do<br />

ora Recorrente ao pagamento do valor aplicado em Recibo de Depósito Bancário – RDB<br />

sem a deflação prevista na Medida Provisória n. 294/91. Consignou o Colegiado:<br />

Tem sido reiteradamente reconhecida, perante este Tribunal, em incontável<br />

número de julgados, a inconstitucionalidade de medidas governamentais dessa<br />

mesma ordem.<br />

Veja-se, por exemplo, que caso idêntico ocorreu com o art. 13 do Dec.Lei<br />

2335/87, cuja discussão gerou a edição da Súmula n.30 desta Corte, pela reiterada<br />

jurisprudência dominante que já se havia até pacificado.<br />

E não há qualquer motivo para que agora, em situação absolutamente<br />

equivalente, se venha a abandonar essa construção pretoriana e esses princípios já<br />

amplamente sedimentados.<br />

Não há sequer necessidade de se ingressar em qualquer tipo de indagação a<br />

propósito da natureza jurídica do RDB (recibo de depósito bancário).<br />

A inconstitucionalidade mencionada, versou especificamente sobre a<br />

intangibilidade do ato jurídico perfeito e acabado.<br />

O caso dos autos mostra situação idêntica.<br />

Haviam as partes contratado aplicação financeira através dos chamados<br />

RDBs, com vencimento futuro, a prazo certo e também com rendimento certo,<br />

previsto no próprio texto da aplicação.<br />

Não pode, portanto, restar qualquer dúvida, que a superveniência de lei nova,<br />

seja qual for a sua origem, seja qual for a sua destinação, não pode, sob pena de grave<br />

violação a preceito constitucional, que protege o ato jurídico perfeito, o direito<br />

adquirido e a coisa julgada, retroagir, alterando o que havia sido contratado.<br />

São fracos os argumentos no sentido de que o investimento, como no caso<br />

dos autos, são resgate futuro, sujeitando-se, portanto, este último ato, o resgate, à<br />

lei que estiver em vigor à data.<br />

O preceito constitucional que protege o ato jurídico acabado da irretroatividade<br />

da lei, não faz qualquer menção a esse tipo de ocorrência.<br />

Também o argumento utilizado no sentido de que a inflação estaria<br />

contornada, ou pelo menos minimizada com a eficácia da lei é de clara e expressiva<br />

contradição com a realidade (folhas 84 e 85).


R.T.J. — <strong>199</strong> 737<br />

No extraordinário de folhas 143 a 150, interposto com alegada base na alínea a do<br />

permissivo constitucional, o Banco Itaú articula com o malferimento do artigo 5º, inciso<br />

XXXVI, da Carta Política da República. Em síntese, defende a ausência de violação ao<br />

direito adquirido ou ao ato jurídico perfeito, uma vez que as leis econômico-financeiras,<br />

de cunho monetário, têm aplicação imediata, alcançando as situações em curso. Aduz,<br />

por outro lado, que a condenação por perdas e danos implica bis in idem.<br />

O Recorrido apresentou as contra-razões de folhas 159 a 163, apontando a<br />

ausência de demonstração de ofensa ao dispositivo citado e o acerto da conclusão<br />

adotada pela Corte de origem.<br />

O Juízo primeiro de admissibilidade obstou o trânsito do recurso, processado em<br />

razão do provimento dado ao agravo em apenso.<br />

O especial simultaneamente interposto teve a mesma sorte do extraordinário,<br />

seguindo-se a protocolação de agravo, desprovido no âmbito do Superior Tribunal de<br />

Justiça.<br />

A Procuradoria-Geral da República exarou parecer de folhas 223 e 224, preconizando<br />

o provimento do recurso.<br />

Em 7 de novembro de <strong>199</strong>6, sobrestei o exame do recurso a fim de aguardar o<br />

julgamento do Recurso Extraordinário n. 136.901-9. A passagem do tempo sem o<br />

desfecho referido levou-me a afastar o procedimento.<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Valho-me dos fundamentos do voto que<br />

proferi no Recurso Extraordinário n. 136.901-9/SP, pendente de julgamento ante<br />

pedido de vista, por envolver, também, deflação:<br />

Os Decretos-Leis n. 2.283/86 e 2.284/86 implicaram a modificação do<br />

padrão monetário. Além do corte de três zeros, deu-se a substituição da nomenclatura<br />

da moeda nacional, que, ao invés de ser o cruzeiro, passou a ser chamada<br />

de cruzado. Tal modificação atingiu o próprio padrão monetário e, por via de<br />

conseqüência, ficou afastada a possibilidade de haver, após a edição dos Decretos,<br />

situações regidas pelo sistema anterior, ainda que reveladas por atos jurídicos<br />

perfeitos e acabados. Até aqui, constata-se a uniformidade de entendimento<br />

sobre a aplicação imediata da lei nova, a alcançar, na data da edição, contratos<br />

condicionados a acontecimentos pendentes, porque sujeitos a termo, ficando<br />

preservados, por isso mesmo, apenas os fatos pretéritos já consumados. Vale<br />

dizer: quanto ao padrão monetário em si, as prestações que ainda estavam por<br />

vencer na data da edição dos citados Decretos foram alvo de alteração em face à<br />

nova moeda — o cruzado — com base nos parâmetros de conversão, estabelecidos<br />

de forma geral e abstrata, e que consubstanciaram a própria passagem para outro<br />

padrão monetário. Assim, feito o corte dos três zeros, um cruzeiro passou a valer<br />

um cruzado — artigos 1º e 2º.


738<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Não obstante, o Decreto-Lei n. 2.284/86 trouxe à balha disciplina aplicável<br />

às obrigações contraídas e sobre ela esta Corte dirá se ficou compreendida na<br />

modificação do padrão monetário ou simplesmente se espelha intromissão<br />

indevida do Estado nos domínios econômicos, com repercussão, inconstitucional,<br />

no patrimônio de particulares. Eis o teor do artigo:<br />

“Art. 8º As obrigações de pagamento, expressas em cruzeiros, sem<br />

cláusula de correção monetária ou com cláusula de correção monetária<br />

prefixada, constituídas antes de 28 de fevereiro de 1986, deverão ser convertidas<br />

em cruzados na data dos seus vencimentos dividindo-se o montante em<br />

cruzeiros pelo fator de conversão fixado no § 1º.<br />

§ 1º o fator de conversão será diário e calculado pela multiplicação da<br />

paridade inicial (1000 cruzeiros/ 1 cruzado), cumulativamente por 1,0045<br />

para cada dia decorrido a partir de 3 de março de 1986.”<br />

Senhor Presidente, a cumulatividade encerrada no § 1º do artigo 8º do<br />

Decreto-Lei n. 2.284/86 forma um grande conjunto composto de elementos que,<br />

ao menos sob o ângulo jurídico e senão também econômico, são totalmente<br />

diversos. Quanto às obrigações estampadas em atos jurídicos perfeitos e acabados,<br />

fez-se o acasalamento da conversão reveladora da modificação do padrão<br />

monetário, de inegável cunho porque a viger indistintamente em todo o território<br />

nacional, com o método substitutivo do próprio conteúdo econômico e<br />

financeiro das obrigações pactuadas. A um só tempo, explicitou-se que o cruzado,<br />

tal como definido, passava a expressar os valores e dispôs-se sobre a diminuição<br />

deste, a ocorrer dia-a-dia.<br />

A motivação da norma não foi, em si, a mudança do padrão monetário, mas a<br />

premissa de que os valores das obrigações já pactuadas continham embutida a<br />

correção monetária referente ao interregno entre a data do negócio jurídico e a do<br />

vencimento de cada qual das prestações, somou-se a isto a previsão otimista de que<br />

a razão de ser daquela — a inflação — acabaria, o que afinal mostrou-se um ledo<br />

engano.<br />

À espécie não tem pertinência a doutrina sobre a aplicação imediata, a ponto<br />

de alcançar contratos firmados, das normas instituidoras do novo padrão monetário.<br />

A uma, porque estas últimas dispõem de forma abrangente, o que equivale a<br />

dizer que a disciplina nelas contida rege igualmente obrigações já formalizadas e<br />

as que venham a ser pactuadas. No caso, isto ocorre, automaticamente, ao substituir-se<br />

o cruzado pelo cruzeiro, mediante a perda de três zeros, ou seja, ao revelarem-se<br />

as balizas norteadoras — mil cruzeiros passaram a valer e a estar expressos<br />

em um cruzado. A duas, porquanto é incompatível com a segurança sempre<br />

presente na observância de qualquer padrão monetário a instabilidade gerada por<br />

modificações diárias. O Decreto-Lei n. 2.284/86, no que introduziu o novo padrão,<br />

surtiu efeitos imediatos, com o aparecimento de uma nova moeda — o cruzado,<br />

que, imediatamente substituiu, na paridade fixada, todos os valores expressos em<br />

instrumentos a serem observados no período que se seguiu à respectiva edição. A<br />

três, tendo em vista que o preceito inquinado de inconstitucional acabou por<br />

estabelecer presunção iure et de iure não só em relação ao que pactuado pelas


R.T.J. — <strong>199</strong> 739<br />

partes — entendendo-o como a englobar a correção monetária — como também no<br />

tocante à visão prognóstica que elas tiveram ao ajustar os valores devidos, isto<br />

quanto à inflação futura. Para o caso concreto e em relação a tantos outros<br />

existentes com base em contratos firmados nas mais diversas datas, o § 1º do artigo<br />

8º do Decreto-Lei n. 2.284/86 estabeleceu, em definitivo, índice diário de<br />

1,0045%. A cabeça do aludido artigo revela o preceito regedor da deflação como<br />

aplicável a todas às obrigações, pouco importando a existência, ou não, de cláusula<br />

de correção monetária prefixada. Imagine-se um contrato, no qual previsto o<br />

pagamento de prestações sucessivas, em que as partes, soberanas ao pactuarem,<br />

tenham deixado de lado a consideração à perda do poder aquisitivo da moeda.<br />

Neste caso, a inafastabilidade da observância da extravagante norma legal acabaria<br />

por implicar flagrante esvaziamento da obrigação, com enriquecimento socialmente<br />

injustificável por parte do devedor. A quatro, porque o combate, em si, à<br />

inflação não está compreendido, necessariamente, no âmbito de uma modificação<br />

do padrão, muito menos a ponto de atingir situação constituída de acordo com a<br />

legislação em vigor e que, como tal, passou a integrar os patrimônios do credor e<br />

do devedor. A cinco, diante da circunstância de se haver considerado fator<br />

deflacionário fixo, enquanto a inflação continuou a estar sujeita a álea, com<br />

variação mensal. Ao que tudo indica, teve-se presente o afastamento da perda do<br />

poder aquisitivo da moeda e, a partir daí, estabeleceu-se o percentual relativo à<br />

presumida inflação embutida nas prestações. Contudo, a história mostra que o<br />

almejado intento não foi alcançado, o que mais qualifica o ferimento ao direito<br />

adquirido do Recorrente de receber as prestações de acordo com os valores nominais<br />

nela inseridos, exceção aberta à substituição do cruzeiro pelo cruzado, no que<br />

exsurgiu como ligada à modificação do padrão monetário.<br />

Em síntese, tenho a cumulatividade prevista no § 1º do artigo 8º do Decreto-<br />

Lei n. 2.284/86 como a extravasar o campo relativo à mudança do padrão<br />

monetário. Quanto às obrigações envolvidas na controvérsia destes autos, a citada<br />

mudança teve os efeitos exauridos com a transformação, imediata e na data da<br />

entrada em vigor do Decreto-Lei, dos cruzeiros em cruzados, quando o Recorrente<br />

ficou compelido a ver os valores transformados em cruzados, com a perda de três<br />

zeros. O que ultrapassou esta alteração, única passível de ser tida como decorrente<br />

do novo padrão monetário, surgiu do fato de ter-se considerado, por simples<br />

presunção, que as circunstâncias reinantes na data do ajuste sofreriam, a favor do<br />

credor e a partir da edição do Decreto-Lei n. 2.284/86, ponderável modificação<br />

diária, a ponto de desequilibrar, sobremaneira, a equação contratual primitiva.<br />

Entretanto, Senhor Presidente, Senhores Ministros, esta matéria é estranha àquelas<br />

próprias ao enquadramento como alusivas ao padrão monetário. Ao Estado não<br />

está assegurado, ainda que verificado o desequilíbrio no que contratado pelas<br />

partes, o poder de intervir, a menos que atue, caso a caso, mediante o ofício de<br />

Órgão integrado ao Judiciário. Aí sim, é que se pode cogitar de correção de rumos<br />

para recolocar direitos e obrigações nos patamares que resultaram da gama de<br />

fatores sopesados quando do ajuste.<br />

Não coabitam o mesmo teto a noção referente ao ato jurídico perfeito e<br />

acabado e a intervenção do Estado-legislador que resulte em alteração, em doses<br />

homeopáticas, do que ajustado pelas partes.


740<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Por tudo, sem desconhecer as repercussões que este enfoque tem no mundo<br />

econômico-financeiro, mas em reiteração à crença de que a segurança na vida<br />

gregária não prescinde da homenagem constante aos princípios constitucionais,<br />

concluo que a regra da parte final do § 1º do artigo 8º do Decreto-Lei n. 2.284/86<br />

discrepa dos preceitos inseridos e que dizem respeito à modificação do padrão<br />

monetário, passando a constituir-se em indevida intromissão legislativa do Estado<br />

ao que contratado pelas partes.<br />

Devedores que se sintam espoliados ante a circunstância de haverem contratado<br />

a correção monetária em índices elevados e não haver ocorrido a imaginada<br />

inflação — e a recíproca é verdadeira quanto aos credores, uma vez invertido o<br />

quadro — têm a via do Judiciário para discutir e provar a alteração substancial dos<br />

fatos ponderados quando do ajuste.<br />

A necessidade de viabilizar-se o curso da nova moeda ficou atendida quer em<br />

relação às obrigações à época já formalizadas, quer no tocante às futuras, pela regra<br />

de conversão — um mil cruzeiros transformados em um cruzado. A incidência<br />

diária de percentual a título de deflação, correu à conta do esquecimento de<br />

cláusula pétrea, que é a da intangibilidade do ato jurídico perfeito e acabado.<br />

Conheço deste recurso por violência ao artigo 153, § 3º, da Constituição<br />

Federal pretérita e declaro a inconstitucionalidade do Decreto-Lei n. 2.284/86.<br />

Especialmente em direito, o meio justifica o fim e não este aquele. Com isto, fulmino<br />

o parágrafo e a parte final do citado artigo 8º, mais precisamente a expressão “(...) na<br />

data dos seus vencimentos, dividindo-se o montante em cruzeiros pelo fator de<br />

conversão fixado no § 1º”. Destarte, acolho o pedido formulado pelo Recorrente<br />

para, reformado o acórdão impugnado, julgar procedente o pedido inicial, invertidos<br />

os ônus da sucumbência, inclusive quanto aos honorários advocatícios no que foram<br />

arbitrados pelo Juízo e pela Corte revisora em dez por cento do valor da causa.<br />

Sendo o recurso do Banco, dele não conheço.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

RE 181.966/SP — Relator: Ministro Marco Aurélio. Relator para o acórdão: Ministro<br />

Nelson Jobim. Recorrente: Banco Itaú S.A. (Advogados: Carlos Augusto Henriques de<br />

Barros e outros). Recorrido: Jose Politi (Advogados: Manoel Carlos da Costa Leite Filho e<br />

outros).<br />

Decisão: Após o voto do Ministro Marco Aurélio (Relator), não conhecendo do<br />

recurso, pediu vista o Ministro Nelson Jobim. Ausente, justificadamente, neste<br />

julgamento, o Ministro Carlos Velloso (Presidente). Presidiu o julgamento o Ministro<br />

Marco Aurélio (Vice-Presidente).<br />

Presidência do Ministro Carlos Velloso. Presentes à sessão os Ministros Moreira<br />

Alves, Néri da Silveira, Sydney Sanches, Octavio Galloti, Sepúlveda Pertence, Celso de<br />

Mello, Marco Aurélio, Ilmar Galvão, Maurício Corrêa e Nelson Jobim. Procurador-Geral<br />

da República, Dr. Geraldo Brindeiro.<br />

Brasília, 1º de agosto de 2000 — Luiz Tomimatsu, Coordenador.


R.T.J. — <strong>199</strong> 741<br />

VOTO (Vista)<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim:<br />

I - A jurisprudência do <strong>STF</strong><br />

O Plenário iniciou o julgamento do RE 141.190 (Ilmar Galvão — 9-6-<strong>199</strong>2 —<br />

Tablita do Plano Bresser).<br />

Ilmar Galvão não conheceu do recurso.<br />

Celso de Mello pediu vista.<br />

Em 23-2-<strong>199</strong>5, Marco Aurélio trouxe para julgamento o RE 136.901 (Tablita do<br />

Plano Funaro).<br />

Votou no sentido de conhecer e dar provimento ao recurso.<br />

Ilmar Galvão pediu vista.<br />

Em 25-5-<strong>199</strong>5, os dois casos retornaram para julgamento, sendo que, no RE 141.190,<br />

Celso de Mello conheceu e deu provimento ao recurso e, no RE 136.901, Ilmar Galvão não<br />

conheceu do recurso.<br />

Maurício Corrêa pediu vista de ambos os recursos.<br />

Em 26-6-<strong>199</strong>7, Maurício Corrêa votou para conhecer em parte do recurso e lhe dar<br />

provimento nessa parte.<br />

Pedi vista nessa data.<br />

O RE 141.190 tratava da tablita do plano Bresser e o RE 136.901, da tablita do plano<br />

Funaro.<br />

Durante o período em que permaneci com a vista, Marco Aurélio ainda trouxe ao<br />

Plenário os recursos:<br />

RE 181.966 (Tablita do plano Collor II);<br />

RE 164.836 (Tablita do plano Collor II);<br />

RE 167.987 (Tablita do plano Collor II);<br />

RE 170.484 (Tablita do plano Collor II);<br />

RE 191.088 (Tablita do plano Collor II).<br />

Em todos os casos, Marco Aurélio votou com os mesmos fundamentos do RE<br />

136.901:<br />

ao ato jurídico perfeito;<br />

ao direito adquirido e<br />

à coisa julgada.<br />

Na integralidade dos casos, muito embora tratem de planos diferentes, a discussão é a<br />

mesma:<br />

— se o fator deflacionário se aplica de imediato a contratos assinados em<br />

período anterior ao plano nos contextos de alterações substanciais do padrão<br />

monetário nacional.


742<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Tanto são iguais que Marco Aurélio proferiu idêntico voto em todos eles.<br />

Por isso também pedi vista de todos os processos.<br />

Para simplificar o julgamento da questão comum a todos os RE, escolhi trazer ao<br />

Plenário o RE 141.190 (Rel. Ilmar).<br />

Votei acompanhando Ilmar Galvão (14-3-2001).<br />

Neguei provimento ao RE.<br />

Ellen pediu vista.<br />

Também ela negou provimento (15-3-2001).<br />

Na mesma sessão Maurício reformulou o seu voto para acompanhar Ilmar (negar<br />

provimento).<br />

Marco Aurélio pediu vista.<br />

Voltou a reafirmar sua posição nos demais REs e deu provimento (12-9-2001).<br />

Carlos Velloso votou e acompanhou Ilmar — negou provimento.<br />

Pertence pediu vista.<br />

Retornou em 14-9-2005 e acompanhou Ilmar.<br />

Nessa mesma sessão (14-9-2005) votaram, também, Joaquim Barbosa, Cezar<br />

Peluso e Gilmar Mendes.<br />

Acompanharam Ilmar — negaram provimento.<br />

Não votaram Carlos Britto e Eros Grau que sucederam Ilmar e Maurício.<br />

Assim, a maioria negou provimento do RE com os votos de Ilmar Galvão, Ellen<br />

Gracie, Nelson Jobim, Maurício Corrêa, Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence,<br />

Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes e Cezar Peluso.<br />

Marco Aurélio e Celso de Mello ficaram vencidos.<br />

Concluiu-se que a aplicação da tablita aos contratos com valor prefixado<br />

(Certificado de Depósito Bancário – CDB) celebrados em data anterior ao plano não<br />

violava os princípios de proteção do ato jurídico perfeito e o direito adquirido (art. 5º,<br />

XXXVI, da CF).<br />

Entendeu-se que o fator de deflação preservou o equilíbrio inicial dos contratos<br />

diante da súbita interrupção do processo inflacionário no bojo de legislação de alteração<br />

contexto financeiro e monetário do país.<br />

Trago agora os casos remanescentes de tablita para a confirmação da jurisprudência<br />

fixada no RE 141.190 pelo Plenário.<br />

II. O processo<br />

1. O caso<br />

José Politi, recorrido-autor, aplicou capital em RDB no Banco Itaú.<br />

No resgate, o Banco, recorrente-réu, pagou quantia inferior ao rendimento ajustado.


R.T.J. — <strong>199</strong> 743<br />

Alegou a superveniência de normas que determinam a deflação (MP 294, 31-1-<br />

<strong>199</strong>1, transformada na Lei 8.177, 1º-3-<strong>199</strong>1).<br />

2. A inicial da ação<br />

O recorrido-autor ajuizou ação de cobrança.<br />

Sustentou que<br />

“a aplicação de qualquer legislação posterior ao contrato especialmente<br />

decorrente da Medida Provisória 294, de 31.01.91, contraria flagrantemente<br />

elementar princípio de direito, ferindo direito adquirido...” (fl. 3).<br />

Alegou a inconstitucionalidade da MP. 294/91.<br />

Fundamentou o pedido na ofensa aos princípios do ato jurídico perfeito, do direito<br />

adquirido e da irretroatividade das leis.<br />

3. A sentença<br />

A ação foi julgada procedente, em parte.<br />

Leio na sentença:<br />

“(...)<br />

(...) Ao contrário do que sustenta o réu, houve ofensa a direito liquido e certo.<br />

Ora, nós temos do documento de fls. 08, o réu se obrigou a pagar ao autor a<br />

importância de Cr$ 566.964,00 e não poderia na data do resgate pagar-lhe somente<br />

a importância de Cr$ 471.409,32, fundada em lei posterior ao negócio jurídico<br />

firmado entre as partes. À evidência, aplica-se aqui o entendimento jurisprudencial<br />

esposado pelo Eminente Desembargador Alvares Cruz, no julgamento da<br />

apelação cível n. 112.024-2, como bem demonstrou o autor na sua inicial. Por<br />

outro lado, o entendimento trazido pelo réu do Eminente Relator, Sr. Ministro<br />

Salvio de Figueiredo, em que pese relevante, não merece guarida, pois o fato da<br />

norma ser de ordem pública, é mais um adendo para que seja observada a sua<br />

constitucionalidade preservando-se o direito adquirido. Não pode, como quer o<br />

ilustre relator, sob o manto de que a matéria é norma de direito econômico incidir<br />

de imediato, pois ao direito adquirido, não pode haver exceção que não o previsto<br />

na própria Constituição.<br />

(...)” (fls. 23-verso/24).<br />

4. A apelação<br />

O recorrente-réu apelou (fls. 40/47).<br />

O TAC/SP negou provimento ao recurso.<br />

Leio no voto:<br />

“(...)<br />

Tem sido reiteradamente reconhecida, perante este Tribunal, em incontável<br />

número de julgados, a inconstitucionalidade de medidas governamentais dessa<br />

mesma ordem.<br />

Veja-se, por exemplo, que caso idêntico ocorreu com o art. 13 do Dec. Lei<br />

2335/87, cuja discussão gerou a edição da Súmula n. 30 desta Corte, pela reiterada<br />

jurisprudência dominante que já se havia até pacificado.


744<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

E não há qualquer motivo para que agora em situação absolutamente<br />

equivalente, se venha a abandonar essa construção pretoriana e esses princípios já<br />

amplamente sedimentados.<br />

Não há sequer necessidade de se ingressar em qualquer tipo de indagação a<br />

propósito da natureza jurídica do RDB (recibo de depósito bancário).<br />

A inconstitucionalidade mencionada versou especificamente sobre a intangibilidade<br />

do ato jurídico perfeito e acabado.<br />

O caso dos autos mostra situação idêntica.<br />

Haviam as partes contratado aplicação financeira através dos chamados<br />

RDBs, com vencimento futuro, a prazo certo e também com rendimento certo,<br />

previsto no próprio texto da aplicação.<br />

Não pode, portanto, restar qualquer dúvida, que a superveniência de lei nova,<br />

seja qual for a sua origem, seja qual for a sua destinação, não pode, sob pena de grave<br />

violação e preceito constitucional, que protege o ato jurídico perfeito, o direito<br />

adquirido e a coisa julgada, retroagir, alterando o que havia sido contratado.<br />

São fracos os argumentos no sentido de que o investimento, como no caso<br />

dos autos, são de resgate futuro, sujeitando-se, portanto, este último ato, o resgate,<br />

à lei que estiver em vigor à data.<br />

O preceito constitucional que protege o ato jurídico acabado da irretroatividade<br />

da lei, não faz qualquer menção a esse tipo de ocorrência.<br />

Também o argumento utilizado no sentido de que a inflação estaria<br />

contornada, ou pelo menos minimizada com a eficácia da lei é de clara e expressiva<br />

contradição com a realidade.<br />

(...)”(fls. 84/85).<br />

5. O RE<br />

O recorrente-réu interpôs RE não admitido (fls. 143/150 e 165/166).<br />

Interpôs agravo de instrumento (AI 159.122, apenso).<br />

Marco Aurélio deu provimento ao agravo.<br />

Subiu o RE.<br />

O recorrente-réu fundamenta o RE na alínea a (CF, art. 102, III).<br />

Sustenta ofensa ao art. 5º, XXXVI, CF.<br />

6. O voto do Relator (sessão de 1º-8-2000)<br />

Marco Aurélio nega provimento ao recurso.<br />

Declara a inconstitucionalidade do art. 27 da Lei 8.177/91.<br />

Integra seu voto o inteiro teor do voto que proferiu no RE 136.901.<br />

7. Conclusão<br />

Divirjo do Relator.<br />

Adoto os mesmos fundamentos do meu voto no RE 141.190 que discutiu a<br />

constitucionalidade da tablita adotada no “Plano Bresser”.


R.T.J. — <strong>199</strong> 745<br />

Naquele julgamento o Supremo entendeu constitucional a referida medida<br />

econômica imposta pelo Governo.<br />

Ficaram vencidos, Marco Aurélio e Celso de Mello.<br />

Assim, dou provimento ao recurso.<br />

Ajusto o acórdão recorrido à orientação do Supremo.<br />

Inverto os ônus da sucumbência.<br />

VOTO (Retificação)<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Senhor Presidente, neste extraordinário,<br />

devo, adotando a nova nomenclatura do Tribunal, retificar a conclusão, porque, no voto<br />

originário, eu ainda estava na óptica anterior, não conhecendo do recurso. Mas há, no<br />

meu voto, adoção de entendimento à luz da Constituição Federal.<br />

Conheço e desprovejo, porque o recurso é do Banco.<br />

No último caso, Recurso Extraordinário n. 191.088-7/SP, do Banco Itaú, apenas<br />

para constar das notas taquigráficas, retifico parte do voto também para empregar a<br />

nomenclatura da Corte quanto à interposição do extraordinário pela alínea a do inciso<br />

III do artigo 102 da Carta da República, porquanto, na versão primitiva do voto, eu não<br />

estava conhecendo pela alínea a, porém, pela b, para, a seguir, desprover.<br />

Então, conheço pelas alíneas a e b e desprovejo o recurso do Banco.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

RE 181.966/SP — Relator: Ministro Marco Aurélio. Relator para o acórdão:<br />

Ministro Nelson Jobim. Recorrente: Banco Itaú S.A. (Advogados: Carlos Augusto<br />

Henriques de Barros e outros). Recorrido: Jose Politi (Advogados: Manoel Carlos da<br />

Costa Leite Filho e outros).<br />

Decisão: Renovado o pedido de vista do Ministro Nelson Jobim, justificadamente,<br />

nos termos do § 1º do artigo 1º da Resolução n. 278, de 15 de dezembro de 2003.<br />

Presidência do Ministro Maurício Corrêa. Plenário, 28-4-2004.<br />

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, conheceu do recurso e, por maioria, deulhe<br />

provimento, vencidos os Ministros Marco Aurélio (Relator) e Celso de Mello.<br />

Retificou parcialmente o voto o Relator. Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim,<br />

Relator para o acórdão.<br />

Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,<br />

Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr.<br />

Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.<br />

Brasília, 15 de março de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário.


746<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 282.172 — RS<br />

Relator: O Sr. Ministro Celso de Mello<br />

Agravante: União — Agravado: Allenge Refrigeração Industrial Ltda.<br />

Recurso extraordinário — acórdão que confirma deferimento de<br />

medida cautelar — ato decisório que não se reveste de definitividade —<br />

mera análise dos pressupostos do fumus boni juris e do periculum in mora<br />

— inviabilidade do apelo extremo — recurso improvido.<br />

— Não cabe recurso extraordinário contra decisões que concedem<br />

ou que denegam medidas cautelares ou provimentos liminares, pelo fato<br />

de que tais atos decisórios — precisamente porque fundados em mera<br />

verificação não conclusiva da ocorrência do periculum in mora e da<br />

relevância jurídica da pretensão deduzida pela parte interessada — não<br />

veiculam qualquer juízo definitivo de constitucionalidade, deixando de<br />

ajustar-se, em conseqüência, às hipóteses consubstanciadas no art. 102,<br />

III, da Constituição da República. Precedentes.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata do julgamento e das notas<br />

taquigráficas, por unanimidade de votos, negar provimento ao recurso de agravo, nos<br />

termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Ministros<br />

Carlos Velloso e Gilmar Mendes.<br />

Brasília, 25 de outubro de 2005 — Celso de Mello, Presidente e Relator.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello: Trata-se de recurso de agravo, tempestivamente<br />

interposto, contra decisão que não conheceu do recurso extraordinário deduzido pela<br />

parte ora agravante (fls. 68/70).<br />

Inconformada com esse ato decisório, a parte ora agravante interpõe o presente<br />

recurso, postulando o conhecimento e o provimento do apelo extremo que deduziu (fls.<br />

73/74).<br />

Por não me convencer das razões expostas, submeto, à apreciação desta Colenda<br />

Turma, o presente recurso de agravo.<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Relator): Não assiste razão à parte ora recorrente, eis<br />

que em situações assemelhadas à destes autos, a jurisprudência do Supremo Tribunal<br />

Federal tem enfatizado não caber recurso extraordinário contra decisões que concedem<br />

ou denegam medidas cautelares ou provimentos liminares, pelo fato de que tais atos


R.T.J. — <strong>199</strong> 747<br />

decisórios — precisamente porque apenas fundados na verossimilhança das alegações<br />

ou na mera plausibilidade jurídica da pretensão deduzida — não veiculam qualquer juízo<br />

conclusivo de constitucionalidade, deixando de ajustar-se, em conseqüência, à hipótese<br />

consubstanciada no art. 102, III, a, da Constituição, que, uma vez caracterizada,<br />

legitimaria a interposição de recurso extraordinário.<br />

Com efeito, ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal já firmaram<br />

entendimento no sentido de que o ato decisório — que apenas verifica a ocorrência do<br />

periculum in mora e a relevância jurídica da pretensão deduzida pelo autor — não<br />

traduz manifestação jurisdicional conclusiva em torno da procedência, ou não, dos<br />

fundamentos jurídicos alegados pela parte interessada, inviabilizando, desse modo, a<br />

utilização do recurso extraordinário, ante a ausência de contrariedade a qualquer<br />

dispositivo constitucional (AI 269.395/SP, Rel. Min. Celso de Mello — RE 226.471/<br />

RO, Rel. Min. Ilmar Galvão — RE 234.153/PE, Rel. Min. Moreira Alves — RE<br />

272.194/AL, Rel. Min. Sydney Sanches — RE 239.874-AgR/SP, Rel. Min. Maurício<br />

Corrêa, v.g.):<br />

“RE — Demanda Cautelar — Liminar. A liminar concedida em demanda<br />

cautelar, objeto de confirmação no julgamento de agravo de instrumento, não é<br />

impugnável mediante recurso extraordinário.”<br />

(AI 245.703-AgR/SP, Rel. Min. Marco Aurélio — grifei)<br />

“Agravo regimental. Não cabimento de recurso extraordinário contra<br />

acórdão que defere liminar por entender que ocorrem os requisitos do fumus boni<br />

iuris e do periculum in mora.<br />

- Em se tratando de acórdão que deu provimento a agravo para deferir a<br />

liminar pleiteada por entender que havia o fumus boni iuris e o periculum in mora,<br />

o que o aresto afirmou, com referência ao primeiro desses requisitos, foi que os<br />

fundamentos jurídicos (no caso, constitucionais) do mandado de segurança eram<br />

relevantes, o que, evidentemente, não é manifestação conclusiva da procedência<br />

deles para ocorrer a hipótese de cabimento do recurso extraordinário pela letra<br />

a do inciso III do artigo 102 da Constituição (que é a dos autos) que exige,<br />

necessariamente, decisão que haja desrespeitado dispositivo constitucional, por<br />

negar-lhe vigência ou por tê-lo interpretado erroneamente ao aplicá-lo ou ao<br />

deixar de aplicá-lo.<br />

Agravo a que se nega provimento.”<br />

(AI 252.382-AgR/PE, Rel. Min. Moreira Alves — grifei)<br />

“RE: cabimento: decisão cautelar, desde que definitiva: conseqüente<br />

inadmissibilidade contra acórdão que, em agravo, confirma liminar, a qual, podendo<br />

ser revogada a qualquer tempo pela instância a quo, é insuscetível de<br />

ensejar o cabimento do recurso extraordinário, não por ser interlocutória, mas sim<br />

por não ser definitiva.”<br />

(RE 263.038/PE, Rel. Min. Sepúlveda Pertence — grifei)<br />

Impende ressaltar, neste ponto, que o entendimento jurisprudencial ora referido<br />

sempre prevaleceu no Supremo Tribunal Federal, cuja orientação, na matéria, ao


748<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

admitir a possibilidade de interposição de recurso extraordinário contra decisão<br />

interlocutória, tem enfatizado a necessidade de tal ato decisório revelar-se definitivo<br />

(<strong>RTJ</strong> 17-18/114, Rel. Min. Victor Nunes — <strong>RTJ</strong> 31/322, Rel. Min. Evandro Lins):<br />

“(...) O recurso extraordinário é admissível de decisão de caráter interlocutório,<br />

quando ela configura uma questão federal, encerrada definitivamente<br />

nas instâncias locais.”<br />

(<strong>RTJ</strong> 41/153, Rel. Min. Hermes Lima — grifei)<br />

Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas, nego provimento ao<br />

presente recurso de agravo, mantendo, em conseqüência, por seus próprios fundamentos,<br />

a decisão ora agravada.<br />

É o meu voto.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

RE 282.172-AgR/RS — Relator: Ministro Celso de Mello. Agravante: União<br />

(Advogado: PFN – Paulo Rodrigues da Silva). Agravado: Allenge Refrigeração<br />

Industrial Ltda. (Advogados: Gilberto André de Vasconcellos Cardoso e outros).<br />

Decisão: A Turma, por votação unânime, negou provimento ao recurso de agravo,<br />

nos termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os<br />

Ministros Carlos Velloso e Gilmar Mendes.<br />

Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros Carlos<br />

Velloso, Ellen Gracie, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. Subprocuradora-Geral da<br />

República, Dra. Maria Caetana Cintra Santos.<br />

Brasília, 25 de outubro de 2005 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador.<br />

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 357.950 — RS<br />

Relator: O Sr. Ministro Marco Aurélio<br />

Recorrente: Companhia Riograndense de Participações – CRP — Recorrida:<br />

União<br />

Constitucionalidade superveniente — Artigo 3º, § 1º, da Lei n. 9.718,<br />

de 27 de novembro de <strong>199</strong>8 — Emenda Constitucional n. 20, de 15 de<br />

dezembro de <strong>199</strong>8. O sistema jurídico brasileiro não contempla a figura<br />

da constitucionalidade superveniente.<br />

Tributário — Institutos — Expressões e vocábulos — Sentido. A<br />

norma pedagógica do artigo 110 do Código Tributário Nacional ressalta<br />

a impossibilidade de a lei tributária alterar a definição, o conteúdo e o<br />

alcance de consagrados institutos, conceitos e formas de direito privado


R.T.J. — <strong>199</strong> 749<br />

utilizados expressa ou implicitamente. Sobrepõe-se ao aspecto formal o<br />

princípio da realidade, considerados os elementos tributários.<br />

Contribuição social — PIS — Receita bruta — Noção — Inconstitucionalidade<br />

do § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98. A jurisprudência do<br />

Supremo, ante a redação do artigo 195 da Carta Federal anterior à<br />

Emenda Constitucional n. 20/98, consolidou-se no sentido de tomar as<br />

expressões receita bruta e faturamento como sinônimas, jungindo-as à<br />

venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços. É inconstitucional<br />

o § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98, no que ampliou o<br />

conceito de receita bruta para envolver a totalidade das receitas auferidas<br />

por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvida<br />

e da classificação contábil adotada.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Nelson Jobim, na<br />

conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade,<br />

conhecer do recurso extraordinário e, por maioria, dar-lhe provimento, em parte, para<br />

declarar a inconstitucionalidade do § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718, de 27 de novembro<br />

de <strong>199</strong>8. Vencidos, parcialmente, os Ministros Cezar Peluso e Celso de Mello, que<br />

declaravam também a inconstitucionalidade do artigo 8º, e, ainda, os Ministros Eros<br />

Grau, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes e Nelson Jobim, Presidente, que negavam<br />

provimento ao recurso. Ausente, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie.<br />

Brasília, 9 de novembro de 2005 — Marco Aurélio, Relator.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: O Tribunal Regional Federal da 4ª Região proveu a<br />

apelação da União e a remessa oficial, ante fundamentos assim sintetizados às folhas 163<br />

e 164:<br />

Cofins. Alíquota. Base de cálculo. Compensação da Cofins com a<br />

contribuição social sobre o lucro. Anterioridade mitigada. Lei n. 9.718.<br />

A nova redação dada às leis complementares <strong>07</strong>/70 e 70/91 pela Lei n. 9.718,<br />

de <strong>199</strong>8, ampliou a base de cálculo do PIS e da Cofins e elevou a alíquota desta<br />

última.<br />

O Supremo Tribunal Federal já assentou que é necessário lei complementar<br />

somente para a criação de outras fontes para a seguridade social, nos termos do<br />

parágrafo 4º do art. 195 da Constituição Federal, para as já previstas no texto<br />

constitucional basta lei ordinária. Neste diapasão, as disposições das Leis Complementares<br />

<strong>07</strong>, de 1970 e 70, de <strong>199</strong>1, devem ser tidas como de leis ordinárias,<br />

e, portanto, passíveis de modificação por norma da mesma hierarquia.


750<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

A Lei n. 9.718, de <strong>199</strong>8, ao limitar o direito à compensação de 1/3 do valor<br />

pago a título de Cofins, com a contribuição social sobre o lucro, não ofendeu os<br />

princípios da capacidade contributiva e da isonomia tributária.<br />

No que diz respeito à anterioridade mitigada, a mesma se conta a partir da<br />

edição da primeira medida provisória que trata da matéria. Nessas condições,<br />

tendo em conta que a Lei 9.718, de 27.11.<strong>199</strong>8, está isenta de vício no processo de<br />

conversão e que, no que aqui atine, é reprodução fiel da Medida Provisória n.<br />

1.724, de 29.10.<strong>199</strong>8, tenho que o prazo nonagesimal de que trata o artigo 195,<br />

parágrafo 6º, da Constituição da República, deve ser contado da edição deste<br />

último veículo legislativo, ou seja, de 30 de outubro de <strong>199</strong>8, data de sua<br />

publicação, perfectibilizando-se, portanto, em 1º de fevereiro de <strong>199</strong>9, tal qual<br />

ficou assentado no inciso I do artigo 17 da lei.<br />

A Emenda Constitucional n. 20, de <strong>199</strong>8, convalidou a Lei n. 9.718,<br />

porquanto “a única exigência para que o direito ordinário anterior sobreviva<br />

debaixo da nova Constituição é que não mantenha com ela nenhuma contrariedade<br />

não importando que a mantivesse com a anterior, quer do ponto de vista<br />

material, quer formal. Não que a nova constituição esteja a convalidar vícios<br />

anteriores. Ela simplesmente dispõe ex novo (Celso Ribeiro Bastos, in Curso de<br />

Direito Constitucional).<br />

Os embargos de declaração que se seguiram foram parcialmente providos (folhas<br />

172 a 174).<br />

No extraordinário de folhas 191 a 212, interposto com alegada base na alínea a<br />

do permissivo constitucional, articula-se com o malferimento dos artigos 146, inciso<br />

III, alínea a; 195, § 4º; 154, inciso I; 59; 69; 145, § 1º; e 150, inciso II; da Carta<br />

Política da República. Afirma-se a inconstitucionalidade da Lei n. 9.718/98, que<br />

introduziu o aumento da alíquota e o alargamento da base de cálculo da Cofins,<br />

“uma vez que a própria Constituição Federal estabeleceu que apenas lei complementar<br />

poderá disciplinar matéria de legislação tributária” (folha 197). Entendem-se<br />

contrariados os princípios da hierarquia das normas e da segurança jurídica. Transcrevem-se<br />

lições de Hugo de Brito Machado e Edvaldo Brito. Ressalta-se que,<br />

“considerando que a norma disciplinada no artigo 195 da Constituição Federal foi<br />

garantida e se tornou executável por uma legislação complementar, isto é, através<br />

(sic) da Lei Complementar n. 70/91, que instituiu a Cofins, somente poderão ser os<br />

elementos modificados por norma de igual hierarquia” (folha 202). Consigna-se a<br />

impossibilidade de convalidação da Lei 9.718/98 pela Emenda Constitucional n.<br />

20/98, que lhe foi posterior. Entende-se como “inaceitável que uma lei ordinária<br />

discipline matéria tributária, alterando e acrescentando conteúdo a artigos da Constituição”<br />

(folha 204). Cita-se o ensinamento dos mestres José Afonso da Silva, Ives<br />

Gandra Martins e Celso Antônio Bandeira de Mello. Asseveram-se violados, também,<br />

os princípios da capacidade contributiva e da isonomia tributária, porquanto o<br />

§ 1º do artigo 8º da Lei 9.718/98, ao dispor sobre a compensação, implicaria o<br />

tratamento desigual de contribuintes que, segundo o sustentado, encontrar-se-iam<br />

em situação equivalente.<br />

As contra-razões estão às folhas 229 a 239.


R.T.J. — <strong>199</strong> 751<br />

Ao recurso especial simultaneamente interposto foi negado seguimento na origem<br />

(folha 241), decisão esta não impugnada (certidão de folha 246).<br />

O procedimento atinente ao juízo primeiro de admissibilidade está à folha 242.<br />

À folha 248, despachou o Ministro Maurício Corrêa, a quem sucedi na relatoria<br />

deste processo, determinando a remessa dos autos à Procuradoria-Geral da República.<br />

Daí a peça de folhas 250 a 254, na qual o Subprocurador-Geral Dr. Roberto Monteiro<br />

Gurgel Santos preconiza o não-conhecimento do recurso, adotando as razões contidas<br />

no parecer proferido pelo Dr. João Batista de Almeida no Recurso Extraordinário n.<br />

294.328-2/RS.<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Na interposição deste recurso, foram<br />

observados os pressupostos gerais de recorribilidade. A peça foi subscrita por<br />

profissional da advocacia credenciado pela procuração de folha 35. Quanto à<br />

oportunidade, a decisão atacada restou veiculada no Diário de 6 de junho de 2001, que<br />

circulou em 12 de junho de 2001, terça-feira (folha 175), ocorrendo a manifestação do<br />

inconformismo em 20 imediato, quarta-feira (folha 191), no prazo assinado em lei. O<br />

preparo está comprovado à folha 213.<br />

Procedo ao exame da problemática referente à Lei n. 9.718/98. Aqui há de se<br />

perceber o empréstimo de sentido todo próprio ao conceito de faturamento. Eis o teor da<br />

lei envolvida na espécie:<br />

Art. 2º As contribuições para o PIS/Pasep e a Cofins, devidas pelas pessoas<br />

jurídicas de direito privado, serão calculadas com base no seu faturamento,<br />

observadas a legislação vigente e as alterações introduzidas por esta Lei.<br />

Tivesse o legislador parado nessa disciplina, aludindo a faturamento sem dar-lhe,<br />

no campo da ficção jurídica, conotação discrepante da consagrada por doutrina e<br />

jurisprudência, tomar-se-ia o faturamento tal como veio a ser explicitado na Ação<br />

Declaratória de Constitucionalidade n. 1-1/DF, ou seja, a envolver o conceito de receita<br />

bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviços. Respeitado<br />

estaria o Diploma Maior ao estabelecer, no inciso I do artigo 195, o cálculo da<br />

contribuição para o financiamento da seguridade social devida pelo empregador,<br />

considerado o faturamento. Em última análise, ter-se-ia a observância da ordem natural<br />

das coisas, do conceito do instituto que é o faturamento, caminhando-se para o<br />

atendimento da jurisprudência desta Corte.<br />

Eis um panorama de precedentes do Tribunal, considerados conceitos relativos a<br />

tributos.<br />

Ao julgar o Recurso Extraordinário n. 116.121-3/SP, o Plenário, sendo Relator o<br />

Ministro Octavio Gallotti, vencido no entendimento, teve oportunidade de proclamar<br />

que o imposto sobre serviços não incide sobre locação de bens porque locação de bens<br />

móveis não é simplesmente serviço. Fiquei com a redação do acórdão, conforme<br />

publicado na Revista Trimestral de Jurisprudência n. 178/1265. Também na apreciação


752<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

do Recurso Extraordinário n. 166.772-9/RS, o Plenário, em 12 de maio de <strong>199</strong>4,<br />

reafirmou a necessidade de se atentar para o conceito consagrado dos institutos.<br />

Glosou a tentativa de se tomar, como abrangidos pela expressão “folha de salário”,<br />

os pagamentos efetuados a administradores e autônomos — Revista Trimestral de<br />

Jurisprudência 156/666-692. E, ao examinar o Recurso Extraordinário n. 172.058-1/SC, o<br />

Plenário, em 30 de junho de <strong>199</strong>5 e conforme acórdão publicado na Revista Trimestral<br />

de Jurisprudência n. 161/1043-1057, veio, mais uma vez, a dar eficácia aos figurinos<br />

constitucional e legal ao concluir que não se pode falar em imposto sobre renda sem<br />

que haja ocorrido acréscimo patrimonial representado pela aquisição de disponibilidade<br />

sobre a renda. No caso, teve-se presente não só a Lei Fundamental como também o<br />

artigo 110 do Código Tributário Nacional, consoante o qual a lei tributária não pode<br />

alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e forma de direito<br />

privado, utilizados expressa ou implicitamente pela Constituição Federal. Então,<br />

após mencionar a jurisprudência da Corte sobre a valia dos institutos, dos vocábulos<br />

e expressões constantes dos textos constitucionais e legais e considerada a visão<br />

técnico-vernarcular, volto à Lei n. 9.718/98, salientando, como retratado acima,<br />

constar do artigo 2º a referência a faturamento. No artigo 3º, deu-se enfoque todo<br />

próprio, definição singular ao instituto faturamento, olvidando-se a dualidade<br />

faturamento e receita bruta de qualquer natureza, pouco importando a origem, em si,<br />

não estar revelada pela venda de mercadorias, de mercadorias e serviços ou de<br />

serviços:<br />

Art. 3º O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à receita<br />

bruta da pessoa jurídica.<br />

Não fosse o § 1º que se seguiu, ter-se-ia a observância da jurisprudência desta Corte,<br />

no que ficara explicitado, na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 1-1/DF, a<br />

sinonímia dos vocábulos “faturamento” e “receita bruta”. Todavia, o § 1º veio a definir<br />

esta última de forma toda própria:<br />

§ 1º Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela<br />

pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a<br />

classificação contábil adotada para as receitas.<br />

O passo mostrou-se demasiadamente largo, olvidando-se, por completo, não só a<br />

Lei Fundamental como também a interpretação desta já proclamada pelo Supremo<br />

Tribunal Federal. Fez-se incluir no conceito de receita bruta todo e qualquer aporte<br />

contabilizado pela empresa, pouco importando a origem, em si, e a classificação que<br />

deva ser levada em conta sob o ângulo contábil.<br />

Em síntese, o legislador ordinário (logicamente não no sentido vulgar, mas<br />

técnico-legislativo) acabou por criar uma fonte de custeio da seguridade à margem do<br />

disposto no artigo 195, com a redação vigente à época, e sem ter presente a regra do<br />

§ 4º nele contido, isto é, a necessidade de novas fontes destinadas a garantir a<br />

manutenção ou a expansão da seguridade social pautar-se pela regra do artigo 154,<br />

inciso I, da Constituição Federal, que é explícito quanto à exigência de lei<br />

complementar. Antecipou-se à própria Emenda Constitucional n. 20, no que, dando<br />

nova redação ao artigo 195 da Constituição Federal, versou a incidência da<br />

contribuição sobre a receita ou o faturamento. A disjuntiva “ou” bem revela que não se


R.T.J. — <strong>199</strong> 753<br />

tem a confusão entre o gênero “receita” e a espécie “faturamento”. Repita-se, antes da<br />

Emenda Constitucional n. 20/98, posterior à Lei ora em exame, a Lei n. 9.718/98,<br />

tinha-se apenas a previsão de incidência da contribuição sobre a folha de salários, o<br />

faturamento e os lucros. Com a citada emenda, passou-se não só a se ter a abrangência<br />

quanto à primeira base de incidência, folha de salários, apanhando-se de forma linear<br />

os rendimentos do trabalho pagos ou creditados a qualquer título, mesmo sem vínculo<br />

empregatício, observando-se o precedente desta Corte, como também a inserção,<br />

considerado o que surgiu como alínea b do inciso I do artigo 195, da base de incidência,<br />

que é a receita.<br />

Como, então, dizer-se, a esta altura, que houve simples explicitação do que já<br />

previsto na Carta? É admitir-se a vinda à balha de emenda constitucional sem<br />

conteúdo normativo. É admitir-se que o legislador ordinário possa, até mesmo,<br />

modificar enfoque pacificado mediante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,<br />

no que haja atuado, à luz das balizas constitucionais, como guardião da Lei Fundamental.<br />

Descabe, também, partir para o que seria a repristinação, a constitucionalização<br />

de diploma que, ao nascer, mostrou-se em conflito com a Constituição<br />

Federal. Admita-se a inconstitucionalidade progressiva. No entanto, a constitucionalidade<br />

posterior contraria a ordem natural das coisas. A hierarquia das fontes<br />

legais, a rigidez da Carta, a revelá-la documento supremo, conduz à necessidade de<br />

as leis hierarquicamente inferiores observarem-na, sob pena de transmudá-la, com<br />

nefasta inversão de valores. Ou bem a lei surge no cenário jurídico em harmonia com<br />

a Constituição Federal, ou com ela conflita, e aí afigura-se írrita, não sendo possível<br />

o aproveitamento, considerado texto constitucional posterior e que, portanto, à<br />

época não existia. Está consagrado que o vício da constitucionalidade há de ser<br />

assinalado em face dos parâmetros maiores, dos parâmetros da Lei Fundamental<br />

existentes no momento em que aperfeiçoado o ato normativo. A constitucionalidade<br />

de certo diploma legal deve se fazer presente de acordo com a ordem jurídica em<br />

vigor, da jurisprudência, não cabendo reverter a ordem natural das coisas. Daí a<br />

inconstitucionalidade do § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98. Nessa parte, provejo o<br />

recurso extraordinário e com isso acolho o pedido formulado na inicial, referente à<br />

base de cálculo da contribuição, ou seja, para que se entenda, como receita bruta ou<br />

faturamento, o que decorra quer da venda de mercadorias, quer da venda de mercadorias<br />

e serviços, quer da venda de serviços, não se considerando receita bruta de<br />

natureza diversa.<br />

Quanto ao pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 8º, cabeça, da<br />

Lei n. 9.718/98 — que dispõe sobre a majoração da alíquota da Cofins —, improcede o<br />

que sustentado no extraordinário. Com efeito, assentado que a contribuição em exame<br />

tem como base de incidência o faturamento — e afastado o disposto no § 1º do artigo 3º<br />

da Lei 9.718/98 —, está a contribuição alcançada pelo preceito inserto no inciso I do<br />

artigo 195 da Constituição Federal. Assim, observa-se, no ponto, o que já decidido por<br />

esta Corte, no sentido da desnecessidade de lei complementar para a majoração de<br />

contribuição cuja instituição se dera com base no citado dispositivo constitucional,<br />

vale dizer, no artigo 195, inciso I, da Carta da República. Descabe cogitar, portanto, de<br />

instrumental próprio, ou seja, o da lei complementar, para a majoração da alíquota da<br />

Cofins.


754<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Por fim, cabe o simples registro, em relação ao pleito de compensação de valores,<br />

considerados Cofins e CSLL, que o Regional se pronunciou em harmonia com<br />

precedente desta Corte — Recurso Extraordinário n. 336.134-1/RS.<br />

Ante o quadro, conheço do recurso e o provejo para conceder, parcialmente, a<br />

segurança, afastando a base de incidência definida no § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98,<br />

declarando-o inconstitucional.<br />

VOTO (Explicitação e resumo)<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Apenas para efeito de documentação, digo<br />

que a conclusão neste extraordinário é pelo conhecimento e provimento do recurso, para<br />

conceder parcialmente a segurança, afastando a base de incidência definida no § 1º do<br />

artigo 3º da Lei n. 9.718/98 — conforme voto —, declarando-o inconstitucional.<br />

Nesse caso, nota-se uma particularidade, que é o pedido de declaração de<br />

inconstitucionalidade do artigo 8º, cabeça, da Lei n. 9.718/98, que dispõe sobre a<br />

majoração da alíquota da Cofins. E digo que aqui improcede o que sustentado no<br />

extraordinário.<br />

Com efeito, assentado que a contribuição em exame tem como base de<br />

incidência o faturamento, e afastado o disposto no § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98,<br />

está a contribuição alcançada pelo preceito inserto no inciso I do artigo 195 da<br />

Constituição Federal. Assim, observa-se o que já decidido por esta Corte, no sentido<br />

da desnecessidade de lei complementar para majoração de contribuição cuja<br />

instituição se dê com base no citado dispositivo constitucional. Descabe cogitar,<br />

portanto, de instrumental próprio, ou seja, a lei complementar, para aumento da<br />

alíquota da Cofins.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: 1. O presente julgamento tem por objeto a questão da<br />

constitucionalidade da majoração da base de cálculo da Cofins, nos termos dos arts. 2º e<br />

3º da Lei Federal n. 9.718/98.<br />

A recorrente alega que tal majoração alargaria indevidamente a noção do<br />

substantivo faturamento, suposta à redação original do art. 195, I, da Constituição da<br />

República, instituindo, com isso, nova fonte de custeio da seguridade social ao arrepio<br />

do prescrito no art. 195, § 4º, que exige lei complementar, bem como hipótese de<br />

incidência e base de cálculo diversas das previstas na Constituição e que sejam nãocumulativas<br />

as contribuições (art. 154, I).<br />

Tal majoração não teria, ademais, sido convalidada pela edição da Emenda<br />

Constitucional n. 20, publicada em 16 de dezembro de <strong>199</strong>8, após a Lei n. 9.718/98<br />

(publicada em 28 de novembro de <strong>199</strong>8, lei de conversão da Medida Provisória n.<br />

1.721/98).<br />

Admitido o recurso, o Relator, Min. Ilmar Galvão, deu-lhe parcial provimento,<br />

para julgar inconstitucional a majoração da base de cálculo da Cofins, na forma do art. 3º<br />

da Lei n. 9.718/98, até a edição da EC n. 20/98, que “veio emprestar-lhe o embasamento


R.T.J. — <strong>199</strong> 755<br />

constitucional de que carecia, ao dar nova redação ao art. 195 da Carta de 88, para<br />

dispor que a Cofins passaria a incidir sobre ‘b) a receita ou o faturamento’”.<br />

O Min. Gilmar Mendes, em voto vista, entendeu constitucional a majoração,<br />

pelos seguintes fundamentos:<br />

1) “(...) já sob o império da Lei Complementar n. 70 se verificara o abandono<br />

do conceito tradicional de faturamento, especialmente naquela acepção<br />

comercialista que se refere, grosso modo, a operações de venda de mercadorias já<br />

concluídas e registradas em fatura. Esse conceito técnico-comercial é invocado<br />

expressamente pelos recorrentes.”<br />

2) “No RE 150.755, da relatoria do Ministro Carlos Velloso (Redator do<br />

acórdão o Min. Sepúlveda Pertence), em que se discutia a constitucionalidade da<br />

contribuição do Finsocial, tal como fixada no art. 28 da Lei n. 7.738, de 1989,<br />

admitiu-se como legítima a assimilação do conceito de receita bruta ao de<br />

faturamento.”<br />

3) O conceito de faturamento assume foros institucionais, cabendo ao<br />

legislador infraconstitucional fixar-lhe os contornos: “Afasto, portanto, qualquer<br />

leitura da expressão faturamento que implique negar ao legislador ordinário<br />

o poder de conformação do vocábulo “faturamento”, contido no inciso I do<br />

art. 195. Não estou a dizer, obviamente, que tal poder legislativo é ilimitado,<br />

pois é certo que deverá respeitar todas as demais normas da Constituição, assim<br />

como não poderá ultrapassar os limites do marco fixado no referido art. 195.”<br />

4) a Emenda Constitucional n. 20/98 neste contexto seria meramente<br />

“expletiva”: “Não é incomum, no âmbito das normas tributárias, a tipificação de<br />

condutas de modo detalhado e, às vezes, redundante. O propósito é claro: evitar<br />

as controvérsias quanto à subsunção ou não de determinadas condutas à norma.”<br />

Esse entendimento foi acompanhado pelo Min. Maurício Corrêa, que, antecipando<br />

voto, julgou constitucional a majoração.<br />

Para melhor análise do objeto, pedi vista dos autos.<br />

2. A resposta à questão entrelaça-se com os contornos e os limites do papel do<br />

legislador infraconstitucional no exercício da competência tributária, que não pode<br />

alargada pela lei subalterna, porque o de que se trata é de saber se a Lei n. 9.718/98 os<br />

ultrapassou, ou não, ao definir a compreensão e a extensão lógico-jurídicas da palavra<br />

faturamento, para efeitos de incidência da Cofins.<br />

Dependendo da postura que se adote, a edição da Emenda Constitucional será, ou<br />

não, relevante à resposta. Para os eminentes Min. Gilmar Mendes e Maurício Corrêa,<br />

tal exercício foi legítimo, e a EC terá sido meramente expletiva. Já para o Min. Ilmar<br />

Galvão, o exercício da competência transpôs os limites conceituais inerentes à palavra<br />

faturamento na redação original da CF, mas teria sido convalidada pela EC n. 20/98.<br />

Mas há terceira possibilidade: reconhecer-se a inconstitucionalidade da Lei n. 9.718/98<br />

ab initio e a impossibilidade de sua convalidação (repristinação) pela EC n. 20/98.<br />

3. A Lei n. 9.718/98, no art. 3º, dispôs sobre a base de cálculo da Cofins, nos<br />

seguintes termos:


756<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

“Art. 3º O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à receita<br />

bruta da pessoa jurídica.<br />

§ 1º Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela<br />

pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a<br />

classificação contábil adotada para tais receitas.”<br />

Na ADI n. 2.777/SP, de que fui Relator, tive oportunidade de me manifestar sobre<br />

base de cálculo e sua importância na conformação do tributo, salientando a necessária<br />

correlação lógica e material que deve mediar entre o fato gerador (hipótese de<br />

incidência) e o montante sobre o qual será calculado o débito, sob pena de desvio<br />

insuportável da competência outorgada pela Constituição da República. Disse então:<br />

“A base de cálculo, sabe-se, “é a grandeza instituída na conseqüência da<br />

regra-matriz tributária, e que se destina, primordialmente, a dimensionar a intensidade<br />

do comportamento inserto no núcleo do fato jurídico, para que, combinando-se<br />

à alíquota, seja determinado o valor da prestação pecuniária. Paralelamente<br />

tem a virtude de confirmar, infirmar ou afirmar o critério material<br />

expresso na composição do suposto normativo. A versatilidade categorial desse<br />

instrumento jurídico se apresenta em três funções distintas: a) medir as proporções<br />

reais do fato; b) compor a específica determinação da dívida; e c) confirmar,<br />

infirmar ou afirmar o verdadeiro critério material da descrição contida no<br />

antecedente da norma.” (Paulo de Barros Carvalho, Curso de Direito Tributário,<br />

SP, Ed. Saraiva, 15. ed., 2003, pp. 327/328).<br />

Sobre servir de parâmetro para o cálculo do tributo exigível (b), a base de<br />

cálculo deve medir, necessariamente, as proporções reais do fato (a) e confirmar,<br />

infirmar ou afirmar o verdadeiro critério material da regra matriz de incidência<br />

tributária (hipótese de incidência, fato gerador, fattispecie abstrata, etc.) (c).<br />

Este binômio, base de cálculo e critério material (fato gerador), é imprescindível<br />

à determinação da espécie e natureza do tributo, devendo guardar, entre<br />

ambos os elementos ou dimensões do fato gerador, estreita correlação lógica, de tal<br />

arte que, em caso de conflito, a base de cálculo prevalece como critério de<br />

identidade da natureza do tributo. É o que, de modo empírico, mas acertado, se<br />

nota ao imposto sobre a renda, cuja natureza é dada pela natureza de rendimentos<br />

tributáveis, não doutros valores aleatórios, como indenização, por exemplo. Daí<br />

dizer-se da base de cálculo que “tem o condão de infirmar o critério material<br />

oferecido no texto, que será substituído por aqueloutro que percebemos medido.”<br />

(Paulo de Barros Carvalho, op. cit., p. 331).<br />

Na verdade, o fato gerador, como realidade própria da ciência e do mundo<br />

jurídicos, não é figura que se esgote na mera consistência material do fato<br />

histórico que lhe corresponde, do qual é recortado pela fattispecie normativa<br />

abstrata, ou seja, como evento ou fenômeno que se soma aos demais fatos<br />

componentes da totalidade do mundo físico. Ele é também, e sobretudo, o<br />

mesmo fato visto na sua dimensão qualitativa de acontecimento dotado de certo<br />

valor monetário, o qual é o suporte do conceito normativo da base de cálculo do<br />

tributo incidente. Trata-se, portanto, de uma unidade jurídico-normativa, que,<br />

no caso, não pode dissociada nem dissolvida para efeito de interpretação da<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 757<br />

referência constitucional a “fato gerador presumido”, como se este se exaurisse<br />

no fato histórico bruto, com abstração de seu aspecto qualitativo, o qual está na<br />

expressão monetária do seu imanente valor como fato econômico. Um fato com<br />

determinado valor não é o mesmo que outro fato com valor diferente presumido<br />

e preestimado: se o fato real subseqüente tem valor inferior à base de cálculo do<br />

fato presumido, então, porque é outro fato verificado, não se realizou o fato<br />

gerador presumido.”<br />

A base de cálculo é tão importante na identificação do tributo, que prevalece em<br />

relação ao fato gerador em caso de conflito.<br />

Essas são as razões por que a competência tributária prevista na Constituição<br />

indica desde logo o fato gerador (hipótese de incidência) e a base de cálculo possíveis<br />

para instituição dos tributos, chegando a Constituição a dispor de forma expressa, no art.<br />

145, § 2º, que “as taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos”.<br />

4. Na outorga de competência à União para instituir contribuições sociais, o art.<br />

195, na redação original, vigente à época da edição da Lei n. 9.718/98, estatuía:<br />

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma<br />

direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos<br />

da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes<br />

contribuições sociais:<br />

I - dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e<br />

o lucro;<br />

II - dos trabalhadores;<br />

III - sobre a receita de concursos de prognósticos” (grifei).<br />

As contribuições sociais, criadas com suporte nesse texto, têm por hipóteses de<br />

incidência (fattispecie) os fatos jurídicos que lhe dão origem, como “folha de salário”,<br />

“faturamento” e “lucro”, e, conseqüentemente, por respectivas bases de cálculo<br />

possíveis a folha de salários, o faturamento e o lucro.<br />

Consoante observação de Geraldo Ataliba e Cleber Giardino, o constituinte<br />

originário apontou para a base de cálculo da contribuição e fixou-lhe, indiretamente, o<br />

aspecto material da hipótese de incidência, de tal modo que o montante sobre o qual<br />

incidirá o tributo será o valor do faturamento, e o fato gerador serão as operações que o<br />

produzam:<br />

“Sempre, pois, que a linguagem da lei — freqüentemente imprecisa,<br />

inadequada, superficial, reduzida — aludir a uma suposta incidência sobre essa<br />

medida econômica do fato gravado, não se iludirá nem se confundirá o interprete:<br />

entenderá — isto sem dificuldade — que, aí, o que se tributa é o próprio fato, por<br />

cuja realização se manifesta essa grandeza numérica.” 1<br />

Daí, a Cofins (contribuição para financiamento da seguridade social), instituída<br />

pela Lei n. 9.718/98, com fundamento de validade no art. 195, I, da CF/88, ter por<br />

1 PIS — Exclusão do ICM de sua base de cálculo. Revista de Direito Tributário, n. 35, p. 155.


758<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

hipótese constitucional de incidência as operações que geram faturamento e, por base<br />

de cálculo, a sua expressão monetária. Vê-se logo a importância do significado e do<br />

alcance do termo faturamento, adotado pelo constituinte originário.<br />

5. A Constituição Federal não explicita o sentido nem o alcance da palavra<br />

faturamento, como tampouco o faz em relação a “tributo”, “propriedade”, “família”,<br />

“liberdade”, “vida”, “crime”, “cidadão”, “sufrágio”, etc. Ou seja, não há, no texto<br />

constitucional, predefinição ou conceituação formal dos termos aí usados, nem seria<br />

conveniente que o houvesse em todos os casos, pois o texto deve adaptar-se às<br />

necessidades históricas da evolução socioeconômica, segundo sua vocação de abertura<br />

permanente. Dessa flexibilidade constitucional perante as mutações culturais, é célebre<br />

o exemplo dos conceitos jurídicos de “cidadão” e “propriedade”, nos Estados Unidos da<br />

América. No famoso caso Dred Scott v. Sandford (1857), a Suprema Corte americana<br />

decidiu que o autor não era “cidadão” por ser escravo 2 . Como escravo, era objeto de<br />

propriedade 3 e, pois, não era titular de nenhum dos direitos reconhecidos aos cidadãos<br />

americanos, entre os quais o de acesso ao Judiciário. Apesar da subsistência léxica do<br />

texto constitucional americano, tal decisão seria hoje inadmissível, se não inconcebível<br />

segundo o espírito do tempo.<br />

Mostrou Saussure que ninguém pode duvidar de que o termo (signo lingüístico)<br />

não decorre da natureza do objeto (significado), mas é estipulado arbitrariamente pelos<br />

usuários da linguagem, mediante consenso construído ao longo da história, em torno de<br />

um código implícito de uso. 4<br />

As palavras (signos), assim na linguagem natural, como na técnica, de ambas as<br />

quais se vale o direito positivo para a construção do tecido normativo, são potencialmente<br />

vagas, “esto es, tienem un campo de referencia indefinido consistente em um foco<br />

2 “The words ‘people of the United States’ and ‘citizens’ are synonymous terms, and mean the same<br />

thing. They both describe the political body who, according to our republican institutions, form the<br />

sovereignty, and who hold the power and conduct the Government through their representatives.<br />

They are what we familiarly call the ‘sovereign people’, and every citizen is one of this people, and<br />

a constituent member of this sovereignty. The question before us is, whether the class of persons<br />

described in the plea in abatement compose a portion of this people, and are constituent members of<br />

this sovereignty? We think they are not, and that they are not included, and were not intended to be<br />

included, under the word ‘citizens’ in the Constitution, and can therefore claim none of the rights and<br />

privileges which that instrument provides for and secures to citizens of the United States. On the<br />

contrary, they were at that time considered as a subordinate and inferior class of beings, who had<br />

been subjugated by the dominant race, and, whether emancipated or not, yet remained subject to<br />

their authority, and had no rights or privileges but such as those who held the power the Government<br />

might choose to grant them.” (Civil rights: Leading cases. Edited by Derrick A. Bell, Jr. Boston:<br />

Little, Brown and Company, 1980, p. 3)<br />

3 “The only two provisions which point to them and include them, treat them as property, and make<br />

it the duty of the Government to protect it... The Governmet of the United States had no right to<br />

interfere for any other purpose but that of protecting the rights of the owner…” (Civil rights: Leading<br />

cases. cit., p. 23)<br />

4 SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de lingustique générale. Paris: Payot, 1974, p. 100, § 2. A<br />

arbitrariedade do nexo entre significado e significante não quer dizer que este dependa de livre<br />

escolha do sujeito que fala, se não que é apenas imotivado, “c’est-à-dire arbitraire par rapport au<br />

signifié, avec lequel il n’a aucune attache naturelle dans la réalité” (p. 101).


R.T.J. — <strong>199</strong> 759<br />

o zona central y uma nebulosa de incertidumbre”. 5 Mas isso também significa que, por<br />

maiores que sejam tais imprecisões, há sempre um limite de resistência, um conteúdo<br />

semântico mínimo recognoscível a cada vocábulo, para além do qual, parafraseando<br />

Eco, o intérprete não está “autorizado a dizer que a mensagem pode significar<br />

qualquer coisa. Pode significar muitas coisas, mas há sentidos que seria despropositado<br />

sugerir”. 6<br />

Para afastar ambigüidades ou construir significados no discurso normativo, pode o<br />

legislador atribuir sentidos específicos a certos termos, como o faz, p. ex., no art. 3º do<br />

Código Tributário Nacional, que impõe a definição de tributo.<br />

Na grande maioria dos casos, porém, os termos são tomados no significado<br />

vernacular corrente, segundo o que traduzem dentro do campo de uso onde são colhidos,<br />

seja na área do próprio ordenamento jurídico, seja no âmbito das demais ciências, como<br />

economia (juros), biologia (morte, vida, etc.), e, até, em outros estratos lingüísticos,<br />

como o inglês (software, internet, franchising, leasing), sem necessidade de processo<br />

autônomo de elucidação.<br />

Quando o legislador, para responder a estratégias normativas, pretende adjudicar a<br />

algum velho termo, novo significado, diverso dos usuais, explicita-o mediante<br />

construção formal do seu conceito jurídico-normativo, sem prejuízo de fixar, em<br />

determinada província jurídica, conceito diferente do que usa noutra, o que pode bem<br />

ver-se ao art. 327 do Código Penal, que define “funcionário público” para efeitos<br />

criminais 7 , e ao art. 2º da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/92), que<br />

atribui, para seus fins, análogo conceito à expressão “agente público”. 8<br />

Quando não haja conceito jurídico expresso, tem o intérprete de se socorrer, para a<br />

re-construção semântica, dos instrumentos disponíveis no próprio sistema do direito<br />

positivo, ou nos diferentes corpos de linguagem.<br />

6. Como já exposto, não há, na Constituição Federal, prescrição de significado do<br />

termo faturamento. Se se escusou a Constituição de o definir, tem o intérprete de<br />

verificar, primeiro, se, no próprio ordenamento, havia então algum valor semântico a<br />

5 ROSS, Alf. apud CAPELLA, Juan-Ramon. El derecho como lenguaje. Barcelona: Ariel, 1968. p.<br />

248.<br />

6 ECO, Humberto. Interpretação e superinterpretação. Trad.: MF. São Paulo: Martins Fontes, <strong>199</strong>3.<br />

p. 50. Grifos do original.<br />

7 “Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente<br />

ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.<br />

§ 1º equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade<br />

paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a<br />

execução de atividade típica da Administração Pública.<br />

§ 2º A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo<br />

forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da<br />

administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo<br />

poder público.”<br />

8 “Art. 2º Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que<br />

transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer<br />

outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas<br />

no artigo anterior.”


760<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

que pudesse filiar-se o uso constitucional do vocábulo, sem explicitação de sentido<br />

particular, nem necessidade de futura regulamentação por lei inferior. É que, se há<br />

correspondente semântico na ordem jurídica, a presunção é de que a ele se refere o uso<br />

constitucional. Quando u’a mesma palavra, usada pela Constituição sem definição<br />

expressa nem contextual, guarde dois ou mais sentidos, um dos quais já incorporado ao<br />

ordenamento jurídico, será esse, não outro, seu conteúdo semântico, porque seria<br />

despropositado supor que o texto normativo esteja aludindo a objeto extrajurídico.<br />

Ora, o fato de o art. 195, § 4º, da Constituição da República, ao dar competência<br />

suplementar à União para instituir contribuições sociais inespecíficas, dependentes de<br />

“outras fontes destinadas à manutenção ou expansão da seguridade”, já prova que, ao<br />

aludir a “faturamento”, além de “folha de salário” e “lucro”, empregou essa palavra em<br />

sentido predeterminado, pois de outro modo a previsão daquela competência residual<br />

perderia todo o senso, ao admitir-se fossem vagos e imprecisos os conceitos de<br />

faturamento, de folha de salário e de lucro!<br />

Mas convém relembrar que o Código Comercial, de 1850, usava a palavra fatura<br />

em diversos textos, sempre na acepção de documento representativo da venda<br />

mercantil 9 , de modo que aí o substantivo faturamento significava o ato de faturar, ou o<br />

conjunto de faturas.<br />

O mesmo sentido de fatura entrou na Lei n. 5.474/1968 (Lei das Duplicatas), cujo<br />

art. 1º prescreve:<br />

“Art. 1º Em todo o contrato de compra e venda mercantil entre partes<br />

domiciliadas no território brasileiro, com prazo não inferior a 30 (trinta) dias,<br />

contado da data da entrega ou do despacho das mercadorias, o vendedor extrairá a<br />

respectiva fatura para apresentação ao comprador.<br />

§ 1º A fatura discriminará as mercadorias vendidas ou, quando convier ao<br />

vendedor, indicará somente os números e valores das notas parciais expedidas por<br />

ocasião das vendas, despachos ou entregas das mercadorias.”<br />

A fatura, emitida pelo vendedor, sempre representou a compra e venda mercantil,<br />

que, no contexto da legislação comercial então vigente, era a expressão genérica das<br />

vendas inerentes ao exercício da atividade do comerciante.<br />

Com a deslocação histórica do foco sobre a importância econômica e a tipificação<br />

dogmática da atividade negocial, do conceito de comerciante para o de empresa,<br />

justificava-se rever a noção de faturamento para que passasse a denotar agora as vendas<br />

realizadas pela empresa e relacionadas à sua “atividade econômica organizada para a<br />

produção ou a circulação de bens ou de serviços”, como consta hoje do art. 966 do<br />

Código Civil.<br />

9 “Art. 219. Nas vendas em grosso ou por atacado entre comerciantes, o vendedor é obrigado a<br />

apresentar ao comprador por duplicado, no ato da entrega das mercadorias, a fatura ou conta dos<br />

gêneros vendidos, as quais serão por ambos assinadas, uma para ficar na mão do vendedor e outra na<br />

do comprador. Não se declarando na fatura o prazo do pagamento, presume-se que a compra foi à<br />

vista (artigo n. 137). As faturas sobreditas, não sendo reclamadas pelo vendedor ou comprador,<br />

dentro de 10 (dez) dias subseqüentes à entrega e recebimento (artigo n. 135), presumem-se contas<br />

líquidas.”


R.T.J. — <strong>199</strong> 761<br />

Essa interpretação já era preconizada por Geraldo Ataliba e Cleber Giardino, em<br />

artigo publicado em 1986:<br />

“Em primeiro lugar, esse fato — consistente em ‘emitir faturas’ — não tem,<br />

em si mesmo, nenhuma relevância econômica. É mera decorrência de outro<br />

acontecimento — este, sim, economicamente importante — correspondente à<br />

realização de ‘operações’ ou atividades da qual esse faturamento decorre. Em<br />

segundo lugar, fosse o fato de ‘emitir faturas’ a hipótese de incidência desse tributo<br />

destinado ao PIS e o tributo — ao contrário do que é cediço e corrente — seria<br />

enquadrável na classe dos subordinados ao ‘princípio documental’ que, assim,<br />

com clareza meridiana, é exposto por Amílcar de Araújo Falcão: ‘Pode, para tal<br />

fim, o legislador, efetivamente, consagrar um de dois princípios, critérios ou<br />

técnicas: a) o princípio negocial (Geschaftsprinzip), por força do qual o fato<br />

gerador é considerado qualquer que seja a forma de as exteriorização: b) o<br />

princípio documental (Urkunden ou Beurkundengsprinzip), que consiste no<br />

acréscimo de um plus à configuração do fato gerador, com a exigência de que, além<br />

da essencial consistência do fato, ato ou negócio que nele se contém (gestum) id<br />

quod interest — tal fato tenha por forma de exteriorização uma versão documental,<br />

um scriptum, um instrumento específico’ (Fato gerador da Obrigação Tributária,<br />

4ª ed., Ed. RT., p. 79)”.<br />

“Vale dizer: fosse essa a hipótese, e, v.g., o contribuinte que vendesse a vista,<br />

sem emitir faturas, não pagaria PIS. O tributo só recairia sobre as vendas<br />

‘exteriorizadas em faturas’, ou seja, sobre a documentação referente à operação a<br />

prazo, o que, sabidamente, nunca foi pretendido ou sustentado pela doutrina<br />

formada sobre esse tributo, nem decorre, mediata ou imediatamente, da lei. Parece,<br />

pois, visível que o fato pressuposto na expressão ‘faturamento’ não é o ‘emitir<br />

faturas’, ‘realizar faturamento’, ou conceito equivalente, porém, outro, de distinta<br />

consistência, como se verá.” 10<br />

Faturamento nesse sentido, isto é, entendido como resultado econômico das<br />

operações empresariais típicas, constitui a base de cálculo da contribuição, enquanto<br />

representação quantitativa do fato econômico tributado. Noutras palavras, o fato<br />

gerador constitucional da Cofins são as operações econômicas que se exteriorizam no<br />

faturamento (sua base de cálculo), porque não poderia nunca corresponder ao ato de<br />

emitir faturas, coisa que, como alternativa semântica possível, seria de todo absurda,<br />

pois bastaria à empresa não emitir faturas para se furtar à tributação.<br />

7. Ainda no universo semântico normativo, faturamento não pode soar o mesmo<br />

que receita, nem confundidas ou identificadas as operações (fatos) “por cujas<br />

realizações se manifestam essas grandezas numéricas”. 11<br />

A Lei das Sociedades por Ações (Lei n. 6.404/1976) prescreve que a escrituração<br />

da companhia “será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos<br />

da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade geralmente<br />

10 “PIS — Exclusão do ICM de sua base de cálculo”. Revista de Direito Tributário, n. 35, pp. 153-154.<br />

11 Geraldo Ataliba e Cleber Giardino. Ob cit., p. 155.


762<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

aceitos” (art. 177), e, na disposição anterior, toma de empréstimo à ciência contábil os<br />

termos com que regula a elaboração das demonstrações financeiras, verbis:<br />

“Art. 176. Ao fim de cada exercício social, a diretoria fará elaborar com base<br />

na escrituração mercantil da companhia, as seguintes demonstrações financeiras,<br />

que deverão exprimir com clareza a situação do patrimônio da companhia e as<br />

mutações ocorridas no exercício:<br />

I - balanço patrimonial;<br />

II - demonstração dos lucros ou prejuízos acumulados;<br />

III - demonstração do resultado do exercício; e<br />

IV - demonstração das origens e aplicações de recursos.”<br />

Nesse quadro normativo, releva apreender os conteúdos semânticos ou usos<br />

lingüísticos que, subjacentes ao vocábulo receita, aparecem na seção relativa às<br />

“demonstrações do resultado do exercício”. Diz, a respeito, o art. 187 daquela Lei:<br />

“Art. 187. A demonstração do resultado do exercício discriminará:<br />

I - a receita bruta das vendas e serviços, as deduções das vendas, os<br />

abatimentos e os impostos;<br />

II - a receita líquida das vendas e serviços, o custo das mercadorias e serviços<br />

vendidos e o lucro bruto;<br />

III - as despesas com vendas, as despesas financeiras, deduzidas das receitas<br />

as despesas gerais e administrativas, e outras despesas operacionais;<br />

IV - o lucro ou prejuízo operacional, as receitas e despesas não operacionais;<br />

V - o resultado do exercício antes do Imposto de Renda e a provisão para o<br />

imposto;<br />

VI - as participações de debêntures, empregados, administradores e partes<br />

beneficiárias, e as contribuições para instituições ou fundos de assistência ou<br />

previdência de empregados;<br />

VII - o lucro ou prejuízo líquido do exercício e o seu montante por ação do<br />

capital social.<br />

§ 1º Na determinação do resultado do exercício serão computados:<br />

a) as receitas e os rendimentos ganhos no período, independentemente da sua<br />

realização em moeda; e<br />

(...)”<br />

Como se vê sem grande esforço, o substantivo receita designa aí o gênero,<br />

compreensivo das características ou propriedades de certa classe, abrangente de todos os<br />

valores que, recebidos da pessoa jurídica, se lhe incorporam à esfera patrimonial. Todo<br />

valor percebido pela pessoa jurídica, a qualquer título, será, nos termos da norma,<br />

receita (gênero). Mas nem toda receita será operacional, porque pode havê-la não<br />

operacional. Segundo o disposto no art. 187 da Lei n. 6.404/76, distinguem-se, pelo<br />

menos, as seguintes modalidades de receita:<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 763<br />

i - receita bruta das vendas e serviços;<br />

ii - receita líquida das vendas e serviços;<br />

iii - receitas gerais e administrativas (operacionais);<br />

iv - receitas não operacionais.<br />

Não precisa recorrer às noções elementares da Lógica Formal sobre as distinções<br />

entre gênero e espécie, para reavivar que, nesta, sempre há um excesso de conotação e<br />

um deficit de denotação em relação àquele. Nem para atinar logo em que, como já visto,<br />

faturamento também significa percepção de valores e, como tal, pertence ao gênero ou<br />

classe receita, mas com a diferença específica de que compreende apenas os valores<br />

oriundos do exercício da “atividade econômica organizada para a produção ou a<br />

circulação de bens ou serviços” (venda de mercadorias e de serviços). De modo que o<br />

conceito legal de faturamento coincide com a modalidade de receita discriminada no<br />

inc. I do art. 187 da Lei das Sociedades por Ações, ou seja, é “receita bruta de vendas e<br />

de serviços”. Donde a conclusão imediata de que, no juízo da lei contemporânea ao<br />

início de vigência da atual Constituição da República, embora todo faturamento seja<br />

receita, nem toda receita é faturamento.<br />

Esta distinção não é nova na Corte.<br />

8. A acomodação prática do conceito legal do termo faturamento, estampado na<br />

Constituição, às exigências históricas da evolução da atividade empresarial, para,<br />

dentro dos limites da resistência semântica do vocábulo, denotar o produto das vendas<br />

de mercadorias e de serviços, já foi reconhecida desta Corte, no julgamento do RE n.<br />

150.764. Nele observou o Min. Ilmar Galvão:<br />

“(...) a contribuição do art. 239 satisfaz a previsão do art. 195, I, no que toca<br />

à contribuição calculada sobre o faturamento. De outra parte, o DL 2.397/87, que<br />

alterou o DL 1.940/82, em seu art. 22, já havia conceituado a receita bruta do<br />

art. 1º, § 1º, do mencionado diploma legal como a ‘receita bruta das vendas de<br />

mercadorias e de mercadorias e serviços’, conceito esse que coincide com o de<br />

faturamento, que, para efeitos fiscais, sempre entendido como o produto de<br />

todas as vendas, e não apenas das vendas acompanhadas de fatura, formalidade<br />

exigida tão-somente nas vendas mercantis a prazo (art. 1º da Lei n. 187/<br />

36). A Lei n. 7.689/88, pois, ao converter em contribuição social, para os fins do<br />

art. 195, I, da Constituição, o Finsocial, até então calculado sobre a receita bruta<br />

das vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços, nada mais fez do que<br />

instituir contribuição social sobre o faturamento.” (Grifei)<br />

Este mesmo preciso conceito do significante faturamento, como receita bruta<br />

proveniente de venda de mercadorias e de serviços, foi, aliás, fixado e adotado no<br />

julgamento da ADC n. 1/DF. Veja-se:<br />

“Note-se que a Lei Complementar n. 70/91, ao considerar o faturamento<br />

como “a receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de<br />

serviços de qualquer natureza”, nada mais fez do que lhe dar a conceituação de<br />

faturamento para efeitos fiscais, como bem assinalou o eminente Ministro Ilmar<br />

Galvão, no voto que proferiu no RE 150.764, ao acentuar que o conceito de<br />

receita bruta de vendas de mercadorias e de mercadorias e de serviços ‘coincide


764<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

com o de faturamento, que, para efeitos fiscais, foi sempre entendido como o<br />

produto de todas as vendas, e não apenas das vendas acompanhadas de fatura,<br />

formalidade exigida tão-somente nas vendas mercantis a prazo (art. 1º da Lei 187/<br />

36)” (trecho do voto do Rel. Min. Moreira Alves)<br />

“Por fim, assinale-se a ausência de incongruência do excogitado art. 2º da LC<br />

70/91, com o disposto no art. 195, I, da CF/88, ao definir “faturamento” como “a<br />

receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviços de<br />

qualquer natureza.”<br />

De efeito, o conceito de “receita bruta” não discrepa do “faturamento”, na<br />

acepção que este termo é utilizado para efeitos fiscais, seja o que corresponde ao<br />

produto de todas as vendas, não havendo qualquer razão para que lhe seja<br />

restringida a compreensão, estreitando-o nos limites do significado que o termo<br />

possui em direito comercial, seja aquele que abrange tão-somente as vendas a<br />

prazo (art. 1º da Lei n. 187/68), em que a emissão de uma “fatura” constitui<br />

formalidade indispensável ao saque da correspondente duplicata.” (trecho do voto<br />

do Min. Ilmar Galvão)<br />

Em diversas outras passagens do julgamento, fez-se remissão ao decidido pelo<br />

Plenário no RE n. 170.555/PE sobre o Finsocial (Rel. p/ o ac. Min. Sepúlveda Pertence,<br />

<strong>RTJ</strong> 149/259-293), a respeito da relação lógico-jurídica entre o conceito de faturamento<br />

pressuposto pela Constituição e o de receita bruta previsto na lei de instituição daquele<br />

tributo. Ficou aí decidido expressamente que: i) faturamento não se confunde com<br />

receita (esta é mais ampla que aquele); ii) o conceito de receita bruta, entendida como<br />

produto da venda de mercadorias e de serviços, é o que se ajusta ao de faturamento<br />

pressuposto na Constituição (interpretação conforme).<br />

9. No RE n. 170.555/PE, atacava-se, dentre outras normas, a constitucionalidade<br />

do art. 28 da Lei n. 7.738/89, que dispunha:<br />

“Art. 28. Observado o disposto no art. 195, § 6º, da Constituição, as<br />

empresas públicas ou privadas, que realizam exclusivamente venda de serviços,<br />

calcularão a contribuição para o Finsocial à alíquota de meio por cento sobre a<br />

receita bruta.”<br />

Tal preceito, segundo a recorrida, teria ampliado o conceito de faturamento<br />

adotado pela Constituição na redação original do art. 195, I, que é o que agora se torna<br />

a argüir e discutir.<br />

O Plenário entendeu que o Finsocial fora recebido como contribuição social e que<br />

a expressão receita bruta deveria interpretar-se em conformidade ou correspondência<br />

com a noção de faturamento acolhida pela Constituição, no seguinte valor semântico:<br />

“(...)<br />

8. A contribuição social questionada se insere entre as previstas no art. 195,<br />

I, CF, e sua instituição, portanto, dispensa lei complementar: no art. 28 da Lei n.<br />

7.738/89, a alusão a “receita bruta”, como base de cálculo do tributo, para<br />

conformar-se ao art. 195, I, da Constituição, há de ser entendida segundo a<br />

definição do Decreto-Lei n. 2.397/87, que é equiparável à noção corrente de<br />

“faturamento” das empresas de serviço.” (Grifei)


R.T.J. — <strong>199</strong> 765<br />

Prevaleceu a interpretação professada pelo Min. Sepúlveda Pertence, designado<br />

Relator do acórdão, nos seguintes termos:<br />

“42. Resta, nesse ponto, o argumento de maior peso, extraído do teor do art.<br />

28 analisado: não se cuidaria nele de contribuição incidente sobre o faturamento —<br />

hipótese em que, por força do art. 195, I, se entendeu bastante a instituí-la a lei<br />

ordinária —, mas, literalmente, de contribuição sobre a receita bruta, coisa diversa,<br />

que, por isso, só poderia legitimar-se com base no art. 195, § 4º, CF, o qual, para<br />

a criação de outras fontes de financiamento da segurança social, determinou a<br />

observância do art. 154, I, e, portanto, da exigência de lei complementar no último<br />

contida. Nessa linha, impressionou-me fundamente a cerrada argumentação desenvolvida<br />

em seus estudos por Ataliba e Giardino (RDTrib., 35/151), Mizabel Derzi<br />

(RDTrib., 55/194, 217), Gustavo Miguez de Mello (Parecer no Instituto dos Advogados<br />

Brasileiros) e Hamilton Dias de Souza (memorial).<br />

43. Convenci-me, porém, de que a substancial distinção pretendida entre<br />

receita bruta e faturamento — cuja procedência teórica não questiono —, não<br />

encontra respaldo atual no quadro do direito positivo pertinente à espécie, ao menos,<br />

em termos tão inequívocos que induzisse, sem alternativa, à inconstitucionalidade<br />

da lei.<br />

44. Baixada para adaptar a legislação do imposto sobre a renda à Lei das<br />

Sociedades por ações, dispusera o Decreto-Lei 1.598, 26-12-77:<br />

“Art. 12. A receita bruta das vendas e serviços compreende o produto<br />

da venda de bens nas operações de conta própria e o preço dos serviços<br />

prestados.<br />

§ 1º A receita líquida de vendas e serviços será a receita bruta diminuída<br />

das vendas canceladas, dos descontos concedidos incondicionalmente e dos<br />

impostos incidentes sobre vendas”<br />

45. Sucede que, antes da Constituição, precisamente para a determinação da<br />

base de cálculo do Finsocial, o Decreto-Lei 2.397, de 21-12-87, já restringira, para<br />

esse efeito, o conceito de receita bruta a parâmetros mais limitados que o de<br />

receita líquida de vendas e serviços, do Decreto-Lei 1.598/77, de modo, na<br />

verdade, a fazer artificioso, desde então, distingui-lo da noção corrente de<br />

faturamento.<br />

46. Recordem-se, na conformidade do referido Decreto-Lei 2.397/87, a nova<br />

redação do § 1º e o § 4º — esse então acrescentado ao art. 1º do Decreto-Lei 1.940/<br />

82, regente do Finsocial sobre a receita bruta das empresas:<br />

“Art. 22 (...)<br />

§ 1º A contribuição social de que trata este artigo será de 0,5% (meio<br />

por cento) e incidirá mensalmente sobre:<br />

a) a receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços<br />

de qualquer natureza, das empresas públicas ou privadas definidas como<br />

pessoa jurídica ou a elas equiparadas pela legislação do Imposto sobre a<br />

Renda;


766<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

b) as rendas e receitas operacionais das instituições financeiras e<br />

entidades a elas equiparadas, permitidas as seguintes exclusões: encargos<br />

com obrigações por refinanciamentos e repasse de recursos de órgãos oficiais<br />

e do exterior despesas de captação de títulos de renda fixa no mercado aberto,<br />

em valor limitado aos das rendas obtidas nessas operações; juros e correção<br />

monetária passiva decorrentes de empréstimos efetuados ao Sistema<br />

Financeiro de Habitação; variação monetária passiva dos recursos captados<br />

do público; despesas com recursos, em moeda estrangeira, de debêntures e de<br />

arrendamento; e despesas com cessão de créditos com coobrigação, em valor<br />

limitado ao das rendas obtidas nessas operações, somente no caso das<br />

instituições cedentes;<br />

c) as receitas operacionais e patrimoniais das sociedades seguradoras e<br />

entidades a elas equiparadas.<br />

(...)<br />

4º Não integra as rendas e receitas de que trata o § 1º deste artigo, para<br />

efeito de determinação da base de cálculo da contribuição, conforme o caso,<br />

o valor:<br />

a) do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), do Imposto sobre<br />

Transportes (IST), do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis<br />

Líquidos e Gasosos (IULCLG), do Imposto Único sobre Minerais (IUM), e do<br />

Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE), quando destacados em<br />

separado no documento fiscal pelos respectivos contribuintes;<br />

b) dos empréstimos compulsórios:<br />

c) das vendas canceladas, das devolvidas e dos descontos a qualquer<br />

título concedidos incondicionalmente;<br />

d) das receitas de Certificados de Depósitos Interfinanceiros.”<br />

47. Parece curial, data venia, que a partir da explícita vinculação genética da<br />

contribuição social de que cuida o art. 28 da Lei 7.738/89 ao Finsocial, é na<br />

legislação desta, e não alhures, que se há de buscar a definição específica da<br />

respectiva base de cálculo, na qual receita bruta e faturamento se identificam: mas<br />

ainda que no tópico anterior, essa é a solução imposta, no ponto, pelo postulado da<br />

interpretação conforme a Constituição.<br />

48. E se se cuida, portanto, no art. 28, de contribuição social sobre o<br />

faturamento — repita-se —, tudo o que agora se reagita na sustentação da<br />

exigência da lei complementar ficou superado, na jurisprudência consensual da<br />

Corte, quando repeliu a mesma e suposta exigência formal relativamente à contribuição<br />

social sobre o lucro.<br />

(...)<br />

54. Por tudo isso, não vejo inconstitucionalidade no art. 28 da Lei 7.738/89,<br />

a cuja validade entendo restringir-se o tema deste recurso extraordinário, desde<br />

que nele a “receita bruta”, base de cálculo da contribuição, se entenda referida aos<br />

parâmetros de sua definição no Decreto-Lei 2.397/87, de modo a conformá-la à<br />

noção de faturamento das empresas prestadoras de serviços.”


R.T.J. — <strong>199</strong> 767<br />

Em relação a esse último dispositivo (art. 28), que, integrado pelo Decreto-Lei n.<br />

2.397/87, considerava como faturamento a receita bruta de venda de mercadorias e de<br />

serviços, os Min. Marco Aurélio e Carlos Velloso descartaram o expediente técnico da<br />

interpretação conforme, dada a impossibilidade teórica de alargamento de conceito<br />

usado pela Constituição Federal na outorga de competência tributária. É o que se tira ao<br />

voto do Min. Marco Aurélio, verbis:<br />

“Senhor Presidente, se assim o é, peço vênia àqueles que dissentiram do<br />

nobre Ministro Relator para entender que o artigo 28 da Lei n. 7.738/89 não se<br />

coaduna, de modo algum, com o contido no inciso I do artigo 195. Por que concluo<br />

desta maneira? Porque não posso atribuir ao legislador a inserção de expressões, a<br />

inserção de vocábulos em preceitos de lei sem o sentido vernacular, e, aqui, mais<br />

do que o sentido vernacular, temos o sentido técnico. Refiro-me à alusão à base de<br />

incidência da parcela. O preceito está assim redigido:<br />

‘Observado o disposto no art. 195, § 6º da Constituição, as empresas<br />

públicas ou privadas — como se as primeiras não fossem pessoas jurídicas de<br />

direito privado — que realizam exclusivamente venda de serviços calcularão<br />

a contribuição para o Finsocial à alíquota de 0,5%’<br />

E aí vem o trecho que conflita com o inciso I do artigo 195 da Lei Máxima —<br />

‘sobre receita bruta’.<br />

Senhor Presidente, não posso dizer que receita bruta consubstancia sinônimo<br />

de faturamento.<br />

(...)<br />

Não posso, onde está escrito ‘receita bruta’, entender que houve referência ao<br />

que contemplado na Carta, a faturamento, a receita líquida. Não posso! Se o fizer,<br />

Sr. Presidente, estarei partindo para um campo de absoluto subjetivismo. Tenho<br />

que enfrentar a lei tal como ela se contém. Tenho que proceder ao cotejo sem<br />

substituir-me como que ao legislador, sem alterar o próprio texto legal. Reafirmo:<br />

o que nós temos no artigo 28 em comento, e creio que todos ou quase todos<br />

concordam com essa assertiva, é a disciplina da contribuição, pelo menos assim se<br />

pretendeu, prevista no inciso I do artigo 195. Só que se abandonou, por completo,<br />

o vocábulo ‘faturamento’. Abandonou-se a base de incidência constitucional para<br />

cogitar-se, em substituição indevida, da receita bruta. A menos que se demonstre<br />

que receita bruta tem significado idêntico ao significado de faturamento, teremos<br />

que caminhar para a conclusão sobre a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei n.<br />

7.738”. (Grifei)<br />

O Min. Carlos Velloso acenou para distinção conceitual, que lhe pareceu sutil,<br />

entre faturamento e receita bruta, da seguinte forma:<br />

“O Decreto-Lei n. 2.397 se refere a receitas, e o Finsocial está de pé em razão<br />

do artigo 56, ADCT, até que a lei institua regularmente contribuição na forma da<br />

Constituição. Instituiu sobre faturamento? Não! Sobre renda bruta. Os conceitos<br />

diferem, não há uma grande diferença, mas diferem. V. Exa. sabe que, em termos<br />

de Direito Tributário, como em Direito Penal, para instituir tributo não cabem<br />

interpretações analógicas.”


768<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Apesar dessas divergências dos Min. Marco Aurélio e Carlos Velloso no que<br />

respeita à constitucionalidade da norma, foi unânime o julgamento quanto a uma<br />

perceptível distinção entre as idéias normativas de faturamento e de receita bruta,<br />

tomada esta em acepção genérica: “Há um consenso: faturamento é menos que receita<br />

bruta.” (Min. Sepúlveda Pertence, <strong>RTJ</strong> v. 149, p. 287). O art. 28 da Lei n. 7.738/89 foi<br />

havido por constitucional em interpretação conforme à Constituição, para que se<br />

entendesse a expressão receita bruta, nele veiculada, como “receita bruta da venda de<br />

mercadorias e da prestação de serviços”, cujo significado restrito e específico afirmouse<br />

equivalente ao conceito constitucional de faturamento.<br />

Está claro, portanto, que, na larga discussão acerca da noção constitucional do<br />

termo faturamento, ficaram expressamente reconhecidas e decididas duas coisas<br />

irrefutáveis: a) o sentido normativo da expressão receita bruta da venda de<br />

mercadorias e da prestação de serviços correspondia ao conceito constitucional de<br />

faturamento; b) mas, porque mais amplo e extenso como denotação própria do gênero,<br />

o significado da locução legal receita bruta ultrapassava os limites semânticos desse<br />

mesmo conceito. É o que, em primoroso memorial, sublinhou e sintetizou Humberto<br />

Ávila:<br />

“A leitura deste longo precedente pode levar à interpretação de que o<br />

Supremo Tribunal Federal igualou o conceito de ‘faturamento’ ao conceito de<br />

‘receita bruta’. Não o fez, porém. O que ocorreu foi algo diverso: para manter a<br />

constitucionalidade da norma, o Tribunal resolveu empreender uma interpretação<br />

conforme a Constituição para o efeito de entender que a expressão legal ‘receita<br />

bruta’ só seria constitucional se se enquadrasse no conceito de faturamento e, para<br />

isso, deveria ser entendida como receita da venda de mercadorias e da prestação de<br />

serviços, pois esse seria, precisamente, o conceito de faturamento incorporado da<br />

legislação infraconstitucional pela Constituição”.<br />

10. Por rematar a pesquisa, além desses julgados, em que a Corte estabeleceu que a<br />

noção constitucional do termo faturamento coincidia com o conceito infraconstitucional<br />

específico de receita bruta, enquanto produto da venda de mercadorias e da prestação de<br />

serviços, igual interpretação foi proclamada no julgamento do RE n. 150.164/PR.<br />

Ali notou o Min. Ilmar Galvão:<br />

“(...) a contribuição do art. 239 satisfaz a previsão do art. 195, I, no que toca<br />

à contribuição calculada sobre o faturamento. De outra parte, o DL 2.397/87, que<br />

alterou o DL 1.940/82, em seu art. 22, já havia conceituado a receita bruta do<br />

art. 1º, § 1º, do mencionado diploma legal como a ‘receita bruta das vendas de<br />

mercadorias e de mercadorias e serviços’, conceito esse que coincide com o de<br />

faturamento, que, para efeitos fiscais, sempre entendido como o produto de<br />

todas as vendas, e não apenas das vendas acompanhadas de fatura, formalidade<br />

exigida tão-somente nas vendas mercantis a prazo (art. 1º da Lei n. 187/36).<br />

A Lei n. 7.689/88, pois, ao converter em contribuição social, para os fins do art.<br />

195, I, da Constituição, o Finsocial, até então calculado sobre a receita bruta das<br />

vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços, nada mais fez do que instituir<br />

contribuição social sobre o faturamento.” (Grifei)


R.T.J. — <strong>199</strong> 769<br />

11. A questão posta neste caso é, em tudo, muito semelhante à que se analisou e<br />

decidiu nos precedentes representados dos RE n. 150.164/PR e RE n. 150.755/PE, mas<br />

é ainda mais grave nas conseqüências.<br />

O art. 3º da Lei n. 9.718/98 também considerou como base de cálculo da Cofins,<br />

incidente sobre as operações cuja prática se traduz na expressão econômica do<br />

faturamento (art. 195, I, da CF/88), a receita bruta, nos moldes do que o fez a Lei n.<br />

7.738/89, mas, no § 1º, definiu-a como a totalidade das receitas, ou seja, tomou o gênero<br />

pela espécie:<br />

“§ 1º Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela<br />

pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a<br />

classificação contábil adotada para tais receitas.”<br />

Tal atribuição legal de denotação ou significado mais extenso, que compreende<br />

todos os elementos do gênero ou classe de receitas, seria válida, se não afrontasse o<br />

alcance do texto constitucional que usa o termo faturamento, para outorga de<br />

competência tributária, com conteúdo semântico mínimo, sem o qual seria impossível<br />

observar e controlar os limites dessa mesma competência constitucional, assim como<br />

seria impossível preservar todo o grave alcance da proibição constitucional de prisão<br />

civil por dívida (art. 5º, LXVII), se não fosse compreensível e restrita a condição jurídica<br />

de depositário infiel.<br />

Apesar de parecer expletivo, ante a própria inteligência do sistema, o qual já não<br />

permite alteração da competência tributária pelo ente federado que a recebe, dada a<br />

rigidez constitucional, é, a respeito, peremptório o art. 110 do Código Tributário:<br />

“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance<br />

de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou<br />

implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou<br />

pelas leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar<br />

competências tributárias.”<br />

É claro que o preceito não serve a interpretar a Constituição, mas tem eficácia<br />

enquanto predica sanção de invalidez às normas tributárias que a contrariem nos<br />

aspectos enunciados. E não deixa de confirmar que a Constituição da República usa,<br />

implicitamente, conceitos de direito privado para definir ou limitar competências<br />

tributárias.<br />

Ao outorgar à União competência para instituir contribuição social sobre o<br />

faturamento, o constituinte originário indicou-lhe desde logo, de modo expresso,<br />

o fato gerador (hipótese de incidência) e a base de cálculo possíveis, interditando<br />

ipso facto à lei subalterna alargar ou burlar tais limites mediante subterfúgios<br />

lingüísticos ou conceituais, como, p. ex., alteração dos significados normativos<br />

incorporados pela Constituição. É, nisso, velha, mas oportuna, a observação do Min.<br />

Luiz Gallotti:<br />

“Sr. Presidente, é certo que podemos interpretar a lei, de modo a arredar a<br />

inconstitucionalidade. Mas interpretar interpretando, e não mudando-lhe o texto,<br />

e menos ainda criando um imposto novo, que a lei não criou.


770<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Como sustentei muitas vezes, ainda no Rio, se a lei pudesse chamar de<br />

compra o que não é compra, de importação o que não é importação, de exportação<br />

o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema<br />

constitucional tributário inscrito na Constituição.” (voto no RE n. 71.758/GB,<br />

<strong>RTJ</strong> v. 66, p. 165)<br />

E, tão oportuna, posto que menos velha, a que fez o Min. Joaquim Barbosa,<br />

quando ainda atuava na Procuradoria Regional da República da 2ª Região, no Mandado<br />

de Segurança n. 2000.02.01.055959-7, no TRF-2ª Região:<br />

“Ademais, tal conceito é de direito privado, devendo ser observado pelo<br />

legislador tributário, sob pena de ilegalidade da medida adotada, por estar<br />

contrariando a norma geral de Direito Tributário prevista no art. 110 do Código<br />

Tributário Nacional.<br />

(...)<br />

A propósito, vale destacar que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em<br />

decisão proferida nos autos do Recurso Extraordinário n. 203.<strong>07</strong>5-9, sendo<br />

Relator o Ministro Maurício Correa, in DJ 15/09/98, firmou entendimento de que<br />

o desrespeito a um conceito de Direito Privado, pelo legislador tributário, acarreta<br />

a invalidade do dispositivo legal posto desta forma no sistema jurídico: “desse<br />

modo, é de fundamental importância que se busque interpretar os princípios gerais<br />

de direito privado, para pesquisar a definição, o conteúdo e o alcance dos<br />

conceitos utilizados pela Constituição Federal que, por estarem prescritos na<br />

legislação comum, não podem ser alterados pela legislação tributária (CTN, art.<br />

109 e 110).<br />

Diante de todo exposto, resulta claro que outras receitas, além daquelas<br />

resultantes das próprias operações de venda de mercadorias ou prestação de<br />

serviços das pessoas jurídicas, não se enquadram na definição de faturamento<br />

contida no texto constitucional, em sua redação original.” (Parecer acostado por<br />

memorial)<br />

12. Quanto à corrupção legal dos termos e conceitos usados ou supostos pela<br />

Constituição da República ao outorgar competências tributárias, também é útil<br />

recorrer a precedentes da Corte, para raciocinar por analogia neste caso, que é algo<br />

parecido, no plano teórico, com a causa do RE n. 166.772/RS, cujo objeto era o<br />

alcance lógico-jurídico da expressão folha de salários, constante do art. 195, I, da<br />

Constituição da República, que atribui à União competência para criar contribuição<br />

sobre a correspondente materialidade econômica.<br />

A Lei Federal n. 7.787, de 30 de junho de 1989, no art. 3º, I, dispôs que a<br />

contribuição social sobre a folha de salários incidiria também sobre os valores pagos a<br />

“autônomos e administradores”. Toda a questão, ali, estava em saber se o legislador<br />

federal, no exercício da competência que lhe deu o art. 195, I, para instituir contribuição<br />

sobre a “folha de salários”, poderia considerar, para esse efeito, as importâncias pagas a<br />

“autônomos e administradores”. A Corte, posto que por maioria de votos, entendeu que<br />

não:


R.T.J. — <strong>199</strong> 771<br />

“Interpretação — Carga construtiva — Extensão. Se é certo que toda<br />

interpretação traz em si carga construtiva, não menos correta exsurge a vinculação<br />

à ordem jurídico-constitucional. O fenômeno ocorre a partir das normas em vigor,<br />

variando de acordo com a formação profissional e humanística do intérprete. No<br />

exercício gratificante da arte de interpretar, descabe “inserir na regra de direito o<br />

próprio juízo — por mais sensato que seja — sobre a finalidade que ‘conviria’<br />

fosse por ela perseguida” — Celso Antônio Bandeira de Mello — em parecer<br />

inédito. Sendo o Direito uma ciência, o meio justifica o fim, mas não este àquele.<br />

Constituição — Alcance político — Sentido dos vocábulos — Interpretação.<br />

O conteúdo político de uma Constituição não é conducente ao desprezo do<br />

sentido vernacular das palavras, muito menos ao do técnico, considerados institutos<br />

consagrados pelo Direito. Toda ciência pressupõe a adoção de escorreita<br />

linguagem, possuindo os institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam<br />

conceito estabelecido com a passagem do tempo, quer por força de estudos<br />

acadêmicos, no caso do direito, pela atuação dos Pretórios.<br />

Seguridade social — Disciplina — Espécies — Constituições Federais —<br />

Distinção. Sob a égide das Constituições Federais de 1934, 1946 e 1967, bem<br />

como da Emenda Constitucional n. 1/69, teve-se a previsão geral do tríplice<br />

custeio, ficando aberto campo propício a que, por norma ordinária, ocorresse a<br />

regência das contribuições. A Carta da República de 1988 inovou. Em preceitos<br />

exaustivos — incisos I, II e III do artigo 195 — impôs contribuições, dispondo que<br />

a lei poderia criar novas fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da<br />

seguridade social, obedecida a regra do artigo 154, inciso I, nela inserta (4 do<br />

artigo 195 em comento).<br />

Contribuição social — Tomador do serviço — Pagamentos a administradores<br />

e autônomos — Regência. A relação jurídica mantida com administradores<br />

e autônomos não resulta de contrato de trabalho e, portanto, de ajuste formalizado<br />

à luz da Consolidação das Leis do Trabalho. Daí a impossibilidade de se dizer que<br />

o tomador dos serviços qualifica-se como empregador e que a satisfação do que<br />

devido ocorra via folha de salários. Afastado o enquadramento no inciso I do<br />

artigo 195 da Constituição Federal, exsurge a desvalia constitucional da norma<br />

ordinária disciplinadora da matéria. A referência contida no § 4º do artigo 195 da<br />

Constituição Federal ao inciso I do artigo 154 nela insculpido, impõe a observância<br />

de veículo próprio — a lei complementar. Inconstitucionalidade do inciso I do<br />

artigo 3º da Lei n. 7.787/89, no que abrangido o que pago a administradores e<br />

autônomos. Declaração de inconstitucionalidade limitada pela controvérsia dos<br />

autos, no que não envolvidos pagamentos a avulsos.”<br />

A inversão, se não subversão, da relação lógica entre gênero e espécie na<br />

denotação dos mesmos termos, pela lei inferior, em hostilidade com a Constituição da<br />

República, mediante alargamento dos limites da competência tributária, foi bem<br />

percebida pela Corte, como se infere ao voto do Min. Celso de Mello:<br />

“Entendo, Sr. Presidente — tal como o demonstrou o em. Relator em densa<br />

análise do tema — que inexiste qualquer vínculo empregatício entre as empresas<br />

tomadoras de serviços, de um lado, e os administradores não-empregados e os<br />

profissionais autônomos, de outro.


772<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

(...)<br />

Firmada esta premissa básica — (...) —, e tendo ainda presente, ainda, que<br />

o salário constitui noção legal revestida de significado próprio, qualificável<br />

como expressão econômico-financeira da contraprestação do serviço realizado<br />

sob regime de execução subordinada, torna-se evidente que a locução<br />

constitucional ‘folha de salários’, inscrita no art. 195, I, da Carta Política, há de<br />

ser definida em função de critérios estritamente técnicos, a serem considerados na<br />

exata e usual dimensão que lhes confere o Direito do Trabalho.<br />

Isso significa, portanto, que a expressão ‘folha de salários’ refere-se ao<br />

conjunto de valores remuneratórios pagos pela empresa às pessoas que lhe<br />

prestam serviços com vínculo de subordinação jurídica.<br />

Desse modo, não se pode entender como subsumida à noção de ‘folha de<br />

salários’ qualquer remuneração paga por serviços que não se originem da<br />

execução de um contrato individual de trabalho. A expressão constitucional<br />

‘folha de salários’ reveste-se de sentido técnico e possui significado conceitual<br />

que não autoriza a sua utilização em desconformidade com a definição, o<br />

conteúdo e o alcance adotados pelo Direito do Trabalho.<br />

Disso decorre que os valores pecuniários pagos aos profissionais que não<br />

executam trabalho subordinado não se ajustam à definição técnico-legal de<br />

salário, de tal modo que a locução constitucional ‘folha de salários’ não<br />

abrange, na especificidade de sua noção conceitual, a remuneração paga pelas<br />

empresas por serviços que lhes são prestados sem qualquer vínculo de<br />

subordinação jurídica.<br />

(...)<br />

As expressões empregador, salários e empregado, Sr. Presidente, refletem<br />

noções conceituais largamente consolidadas no plano de nossa experiência jurídica.<br />

Desse modo, e não obstante o sentido comum que se lhes possa atribuir, esses<br />

conceitos encerram carga semiolótica que encontra, no discurso normativo utilizado<br />

pelo legislador constituinte, plena correspondência com o seu exato, técnico e<br />

jurídico significado, do qual não pode o legislador ordinário divorciar-se ao veicular<br />

a disciplina de qualquer espécie tributária, sob pena de transgredir o comando<br />

inscrito no art. 110 do Código Tributário Nacional, que faz prevalecer, consoante<br />

adverte Aliomar Baleeiro (‘Direito Tributário Brasileiro’, p. 444, 10. ed., <strong>199</strong>3,<br />

Forense), ‘o império do Direito Privado (...) quanto à definição, conteúdo e ao<br />

alcance dos institutos, conceitos e formas daquele direito (...)’” (grifos originais)<br />

Noutras palavras, o que se assentou aí foi que a extensão lógico-jurídica da<br />

locução constitucional “folha de salários” se atrela ao conceito normativo da classe<br />

empregados, representando a soma dos valores que lhes são pagos por conta da relação<br />

de trabalho. De modo que, como espécie do gênero “valores pagos pela pessoa jurídica<br />

por prestação de serviços”, não poderia o legislador federal tomá-la pelo gênero, pois a<br />

competência do art. 195, I, se restringe àquela. E, como a competência para instituir<br />

contribuição sobre os demais rendimentos pagos seria também da União, a ofensa foi<br />

tida por formal, exatamente como aparece no presente caso, porque desrespeitado o<br />

disposto no art. 195, § 4º, da Constituição da República:


R.T.J. — <strong>199</strong> 773<br />

.<br />

“De outro lado, impõe-se observar que a União Federal, para instituir<br />

validamente nova contribuição social, tendo presente a situação dos referidos<br />

profissionais não-empregados, deveria valer-se, não de simples lei ordinária, mas,<br />

necessariamente, de espécie normativa juridicamente mais qualificada: a lei<br />

complementar.<br />

A exigibilidade de lei complementar revela-se inquestionável no caso,<br />

eis que a imposição dessa espécie legislativa decorre de expressa previsão<br />

constitucional. A norma inscrita no art. 195, § 4º, da Carta Política, ao autorizar<br />

o legislador a instituir outras fontes de custeio destinadas a garantir a manutenção<br />

ou a expansão da seguridade social, tornou imprescindível, para esse<br />

específico efeito, a utilização de lei complementar pelo Poder Público.<br />

(...)<br />

Se é exato que o Poder Legislativo não dispõe da atribuição discricionária de<br />

definir quais as matérias a serem disciplinadas mediante lei complementar, não é<br />

menos correto reconhecer que, em havendo — tal como ocorre na hipótese a que se<br />

refere o art. 195, § 4º, da Carta Federal — prescrição constitucional expressa no<br />

sentido de submeter o trato de determinado tema ao domínio normativo da lei<br />

complementar, a inobservância dessa determinação, pelo legislador, gera um<br />

irremissível vício de inconstitucionalidade (Geraldo Ataliba, Lei complementar<br />

na Constituição, p. 30, 1971, RT; José Souto Maior Borges, Lei Complementar<br />

tributária, pp. 34/35, 1975, RT/EDUC e Celso Bastos, Lei Complementar, pp. 16/<br />

17, 1985, Saraiva).” (do voto do Min. Celso de Mello no cit. RE n. 166.772/RS.<br />

Grifos originais)<br />

No mesmo sentido foi o voto do Relator, Min. Marco Aurélio:<br />

“Realmente, a flexibilidade de conceitos, o câmbio do sentido destes, conforme<br />

os interesses em jogo, implicam insegurança incompatível com o objetivo<br />

da própria Carta que, realmente, é um corpo político, mas o é ante os parâmetros<br />

que encerra e estes não são imunes ao real sentido dos vocábulos, especialmente os<br />

de contornos jurídicos. Logo, não merece agasalho o ato de dizer-se da colocação,<br />

em plano secundário, de conceitos consagrados, buscando-se homenagear, sem<br />

limites técnicos, o sentido político das normas constitucionais. O artigo 195, não<br />

há a menor dúvida, atribui a toda a sociedade o financiamento, de forma direta e<br />

indireta, da seguridade social, fazendo-o, no entanto, em termos que têm como<br />

escopo maior a segurança na vida gregária. Ora, além das contribuições nele<br />

enumeradas, outras somente podem vir à balha via lei complementar, consoante<br />

previsto no § 4º do citado artigo e já sedimentado por força dos precedentes desta<br />

Corte anteriormente referidos.<br />

(...)<br />

Assim enquadrado o direito, o meio justifica o fim, mas não este àquele.<br />

Compreendo as grandes dificuldades de caixa que decorrem do sistema de<br />

seguridade social pátrio. Contudo, estas não podem ser potencializadas, a ponto<br />

de colocar-se em plano secundário a segurança, que é o objetivo maior de uma Lei<br />

Básica, especialmente no embate cidadão-Estado, quando as forças em jogo


774<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

exsurgem em descompasso. Atente-se para a advertência de Carlos Maximiliano,<br />

isto ao dosar-se a carga construtiva, cuja existência, em toda interpretação, não<br />

pode ser negada:<br />

‘Cumpre evitar não só o demasiado apego à letra dos dispositivos,<br />

como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo<br />

encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais<br />

se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto idéias apenas existentes no<br />

próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores,<br />

entusiasmos e preconceitos’ (Hermenêutica e aplicação do direito — Ed.<br />

Globo, Porto Alegre — 2. edição, 1933 — p. 118)”<br />

E, ainda sobre os limites do papel do legislador ordinário na aplicação de conceito<br />

constitucional no exercício da competência tributária, não será despropositado invocar<br />

outro precedente, o do RE n. 116.121-3/SP, em que a Corte julgou inconstitucional a<br />

exigência de imposto sobre serviços na “locação de bens móveis”, por delirar do<br />

conceito de serviços pressuposto pela Constituição na outorga de competência aos<br />

municípios. Da ementa consta:<br />

“Tributo — Figurino constitucional. A supremacia da Carta Federal é<br />

conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos.<br />

Imposto sobre serviços — Contrato de locação. A terminologia constitucional<br />

do Imposto Sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei<br />

Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem<br />

móvel. Em direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio,<br />

descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas<br />

regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável — art.<br />

110 do Código Tributário Nacional.”<br />

13. A regra contida no art. 195, I, da Constituição da República dá à União<br />

competência para instituição de tributo específico (contribuição social), como forma de<br />

custeio de sua atuação na seguridade social (art. 149), que compreende um “conjunto<br />

integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a<br />

assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (art. 194,<br />

caput).<br />

É típica regra de competência, pela qual deve:<br />

“(...) entender-se-á o poder de ação e de atuação atribuído aos vários órgãos e<br />

agentes constitucionais com o fim de prosseguirem as tarefas de que são constitucional<br />

ou legalmente incumbidos.<br />

A competência envolve, por conseguinte, a atribuição de determinadas<br />

tarefas bem como os meios de ação (“poderes”) necessários para a sua prossecução.<br />

Além disso, a competência delimita o quadro jurídico de atuação de uma unidade<br />

organizatória relativamente a outra.” 12<br />

12 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra:<br />

Almedina. p. 488.


R.T.J. — <strong>199</strong> 775<br />

Tal competência tributária é administrativa e executiva, mas é também e sobremodo<br />

legislativa, visto que, em nosso sistema constitucional, por força do princípio da<br />

estrita legalidade tributária (art. 150, I), os tributos somente podem instituídos ou<br />

majorados mediante lei. E a regra que a estabelece é classificada entre as normas<br />

referentes às “estruturas organizatório-funcionais” do Estado, das quais se diz:<br />

“Um dos mais importantes princípios constitucionais a assinalar nesta<br />

matéria é o princípio da indisponibilidade de competências ao qual está<br />

associado o princípio da tipicidade de competências. Daí que: (1) de acordo com<br />

este último, as competências dos órgãos constitucionais sejam, em regra, apenas as<br />

expressamente enumeradas na Constituição; (2) de acordo com o primeiro, as<br />

competências constitucionalmente fixadas não possam ser transferidas para<br />

órgãos diferentes daqueles a quem a Constituição as atribuiu. Estes princípios<br />

justificam a proibição da alteração das regras constitucionais de competência dos<br />

órgãos de soberania, mesmo no caso de exceção constitucional”. 13<br />

Em nossa ordem constitucional, estas características soam ainda mais agudas ante<br />

a coexistência de quatro esferas federativas dotadas de competências tributárias diversas<br />

(União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e a necessária conformação de seu<br />

exercício às expressas “limitações constitucionais ao poder de tributar” e aos direitos e<br />

garantias individuais.<br />

A competência tributária, entendida como aptidão para criar tributos em abstrato 14 ,<br />

é vista, na doutrina, como “reclamo impostergável dos princípios federativo e da autonomia<br />

municipal e distrital, que nosso ordenamento jurídico consagrou” 15 :<br />

“Ora, na infinidade de aspectos concretos que pode atingir a Federação, na<br />

infinidade de orientações que pode assumir o federalismo, dependentes das circunstâncias<br />

peculiares a cada povo, há certos fatores básicos, certos elementos permanentes<br />

que poderemos definir como sendo o estabelecimento da coordenação dentro da<br />

subordinação; a distribuição de competências autônomas, sob o controle de um<br />

poder superior que é o da Constituição; a repartição, enfim (de poderes) de natureza<br />

diversa, ajustados, mas não atritados, harmônicos, mas não reciprocamente invasores,<br />

integrados no impulsionamento de um mecanismo composto, mas não atravessados<br />

como forças contraditórias que se paralisam ou entorpecem estupidamente.<br />

Nos casos de países de Constituição rígida, como se dá entre nós, o problema<br />

ainda mais se simplifica. Os limites das competências se encontram claramente<br />

estabelecidos; os meios de coordenação das atividades expressamente configurados;<br />

os remédios para os distúrbios e invasões de autoridade plenamente<br />

preceituados.” 16<br />

13 CANOTILHO. Op. cit. p. 491.<br />

14 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 19. ed. São Paulo:<br />

Malheiros, 2003. p. 437.<br />

15 CARRAZZA. Op. cit. p. 433.<br />

16 MELO FRANCO, Afonso Arinos de. Apud CARRAZZA, Roque. Op. cit., p. 434. Estudos de<br />

Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1957. p. 148.


776<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Na espécie, o excesso operado pela Lei n. 9.718/98, equiparando faturamento a<br />

qualquer receita, não obstante transponha a esfera de competência fixada pelo conceito<br />

de faturamento e atribuída pelo art. 195, I, da CF/88, não implica usurpação de<br />

competência, porque podia a União, como ainda pode, instituir novas fontes de custeio<br />

da seguridade social com base noutros eventos econômicos, salvos aqueles expressos na<br />

discriminação de competências em matéria de impostos, com fundamento no art. 195, §<br />

4º, da CF/88, e, dentre essas novas fontes, as demais espécies de receita. Não se<br />

caracteriza, pois, vício material de incompetência.<br />

Do ângulo formal, no entanto, para o fazer de modo lícito, seria mister houvesse<br />

obedecido ao disposto no art. 154, I, da Constituição da República, ou seja: i) fosse a<br />

contribuição criada por intermédio de lei complementar; ii) fosse não cumulativa; e iii)<br />

não tivesse o mesmo fato gerador, nem base de cálculo dos impostos. Ou seja, a<br />

instituição de contribuição social sobre as demais modalidades de receita só extrairia<br />

fundamento de validade à norma de competência descrita no art. 195, § 4º, da<br />

Constituição da República, cuja observância haveria, pois, de ser rigorosa.<br />

Ora, ainda quando, só por argumentar, se estimasse que a previsão, pela Lei n.<br />

9.718/98, da Cofins sobre as demais espécies de receita, figuraria instituição de nova<br />

fonte de custeio, o expediente normativo permaneceria inconstitucional por não ter<br />

observado a forma prescrita no art. 195, § 4º, da Constituição da República.<br />

Tenho, portanto, por incompatível com a ordem constitucional o disposto no § 1º<br />

do art. 3º da Lei n. 9.718/98, seja por distender o conceito de faturamento assumido na<br />

redação original do art. 195, I, da Constituição, seja por não instituir nova fonte de<br />

custeio nos termos exigidos pelo art. 195, § 4º.<br />

14. Em 16 de dezembro de <strong>199</strong>8, foi publicado o texto da Emenda Constitucional<br />

n. 20, que alterou a redação do art. 195, I, b, da Constituição da República, adicionandolhe<br />

a palavra “receita”:<br />

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma<br />

direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos<br />

da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes<br />

contribuições sociais:<br />

I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei,<br />

incidentes sobre:<br />

a) folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a<br />

qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo<br />

empregatício;<br />

b) a receita ou o faturamento;<br />

c) o lucro;” (grifos nossos)<br />

A partir do início de vigência da Emenda, a competência para instituição de<br />

contribuição, mediante lei ordinária, com fundamento no art. 195, I, teria sido alargada<br />

para abranger a classe genérica da receita como base de cálculo.<br />

Deve observado ao propósito que não houve alteração material de competência,<br />

pois a União poderia, como ainda pode, instituir nova fonte de custeio, sobre as demais<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 777<br />

receitas por exemplo, desde que o fizesse nos termos do art. 195, § 4º, da Constituição da<br />

República. A mudança, essa deu-se na forma da instituição.<br />

Sob o pálio da nova redação do art. 195, I, b, a Cofins poderia instituída sobre a<br />

receita por meio de lei ordinária, sem necessidade de observância dos arts. 154, I, e 195,<br />

§ 4º. Daqui, os dois reflexos possíveis sobre a Lei n. 9.718/98: i) a edição da Emenda n.<br />

20/98 teria dado novo fundamento de validez à Lei n. 9.718/98, que seria constitucional<br />

a partir de então, pois publicada antes de 1º de fevereiro de <strong>199</strong>9, data de início de<br />

produção de seus efeitos (posicionamento do Min. Ilmar Galvão); ii) a Emenda não<br />

teria sanado a inconstitucionalidade da Lei n. 9.718/98, por ser a esta posterior e por<br />

tratar-se de nulidade irremediável.<br />

15. A Lei n. 9.718/98 foi publicada em 27 de novembro de <strong>199</strong>8, sob a égide da<br />

redação original da Constituição da República, 20 (vinte) dias antes da EC n. 20/98, e<br />

entrou em vigor na data da publicação 17 .<br />

À data do início de sua vigência, a instituição da Cofins sobre os fatos que<br />

produzem receitas, não apenas sobre os que geram faturamento, concebido como<br />

receita de venda de produtos e de serviços, só seria válida, se se atendesse às prescrições<br />

do art. 195, § 4º, da Constituição da República. Mas isso não ocorreu.<br />

Ademais, a Lei n. 9.718/98 feriu o art. 195, I, da Constituição, ao dilatar-lhe o<br />

conceito de faturamento, dilatando a base de cálculo e o fato gerador do tributo. E nisso<br />

encheu-se de nulidade:<br />

“Essa conseqüência resulta evidente da própria essência do sistema. Onde se<br />

estabelece uma Constituição, com delimitação da autoridade para cada um dos<br />

grandes poderes do Estado, claro é que estes não podem ultrapassar essa<br />

autoridade, sem incorrer em incompetência, o que em direito equivale a cair em<br />

nulidade. Nullus est major defectus quam defectus potestatis.” 18<br />

Ao desenvolver o argumento, Rui Barbosa chama por testemunha a Marshall:<br />

“Definiram-se e demarcaram-se os poderes da legislatura; e, para que sobre<br />

tais limites não ocorresse erro, ou deslembrança, fez-se escrita a Constituição. Com<br />

que fim se estipulariam esses poderes, e com que fim se reduziria essa estipulação<br />

a escrito, se os limites prescritos pudessem ser ultrapassados exatamente por<br />

aqueles, que ela se propunha a coibir? Acabou-se a distinção entre os governos de<br />

poderes limitados e os de poderes indefinidos, se os confins, que se estabelecem,<br />

não circunscreverem as pessoas, a que se impõem, e ficarem igualmente obrigativos<br />

os atos permitidos e os atos defesos. Ou havemos de admitir que a Constituição<br />

anula qualquer medida legislativa, que a contrarie, ou anuir em que a legislatura<br />

possa alterar por medidas ordinárias a Constituição. Não há contestar o dilema.<br />

Entre as duas alternativas não se descobre meio termo. Ou a Constituição é uma lei<br />

17 “Art. 17. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos:<br />

I - em relação aos arts. 2º a 8º, para os fatos geradores ocorridos a partir de 1º de fevereiro de <strong>199</strong>9;”<br />

1 8 BARBOSA, Rui. Atos inconstitucionais. At. por Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell, 2003. p. 40.


778<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

superior, soberana, irreformável por meios comuns; ou se nivela com os atos de<br />

legislação usual, e, como estes, é reformável ao sabor da legislatura. Se a primeira<br />

proposição é verdadeira, então o ato legislativo, contrário à Constituição, não será<br />

lei; se é verdadeira a segunda, então as Constituições escritas são absurdos esforços<br />

do povo, por limitar um poder de sua natureza ilimitável. Ora, com certeza,<br />

todos os que têm formulado Constituições escritas, sempre o fizeram com o intuito<br />

de assentar a lei fundamental e suprema da nação; e, conseguintemente, a teoria de<br />

tais governos deve ser que qualquer ato da legislatura, ofensivo da Constituição, é<br />

nulo. Esta doutrina está essencialmente ligada às Constituições escritas, e, portanto,<br />

deve-se observar como um dos princípios fundamentais de nossa sociedade.”<br />

19<br />

A Lei n. 9.718/98 transpôs, sob o ângulo do art. 195, § 4º, os limites formais e, sob<br />

o ângulo do art. 195, I, os limites materiais, impostos ambos à União pela Constituição<br />

da República para exercício da competência tributária, e a nulidade conseqüente não se<br />

convalida pela alteração posterior de seu fundamento de validez, como mostra<br />

Humberto Ávila com apoio em Guastini:<br />

“A invalidade é um fenômeno que não se altera no tempo: a alteração da<br />

norma superior não tem o condão de tornar válida uma norma originalmente<br />

inválida. A doutrina é clara nesse sentido, como demonstra, por exemplo, o<br />

prestigiado Professor italiano de Teoria Geral do Direito, Guastini:<br />

‘Ora, à primeira vista, a validade é uma propriedade totalmente a-<br />

temporal. Ela depende de fato, exclusivamente da relação (a-temporal,<br />

portanto: lógica, não-cronológica) de uma norma — e do ato normativo que a<br />

tenha produzido — com outras normas: uma norma é válida se, e somente se,<br />

foi produzida conforme às outras normas (estruturalmente supraordenadas)<br />

que lhe regulam a produção e é compatível com as normas (materialmente<br />

supra-ordenadas) que lhe limitam o possível conteúdo.<br />

Na constância das normas e em relação a essas estruturalmente e<br />

materialmente supra-ordenadas, cada norma é ou válida ou inválida. Não se<br />

pode adquirir validade, nem perdê-la.<br />

Todavia, ainda que seja a-temporal a relação de que depende a<br />

validade, podem modificar-se no tempo as normas de referência: as normas,<br />

isto é, estruturalmente e materialmente supra-ordenadas à norma de que se<br />

trata.<br />

Isto, se não pode fazer adquirir a validade a uma norma originariamente<br />

inválida, pode porém, fazer perder a validade de uma norma originalmente<br />

válida’.” 20<br />

19 The writings of John Marshall, late chief justice of the United States, upon the Federal Constitution.<br />

Boston, 1839, p. 24, apud Rui Barbosa. Op. e loc. cits.<br />

20 ÁVILA, Humberto Bergmann. Cofins e PIS: inconstitucionalidade da modificação da base de<br />

cálculo e violação ao princípio da igualdade. In: Repertório IOB de Jurisprudência, 2ª quinzena de<br />

julho de <strong>199</strong>9, n. 14/99, caderno 1, p. 438.


R.T.J. — <strong>199</strong> 779<br />

Desde Kelsen 21 , sabe-se que a legislação, como ato de produção normativa, é, a um<br />

só tempo, criador e aplicador do direito. Cria direito por introduzir norma no sistema,<br />

mas tem de fazê-lo nos estritos termos da competência que lhe foi atribuída, aplicando a<br />

norma superior, no caso a Constituição da República, onde residem o fundamento de<br />

validade e os limites formais e materiais de seus poderes.<br />

Ora, o parâmetro de controle de legitimidade da lei é a redação do texto<br />

constitucional vigente à época da edição da norma subalterna, não, é óbvio, a redação<br />

posterior, suposto agora atual, pois era aquela que, regulando a norma de competência<br />

legislativa, lhe fixava os limites materiais e formais de exercício. Se a norma produzida<br />

antes da Constituição é com esta compatível, é recebida pelo novo ordenamento; se lhe<br />

é hostil, está revogada, ou, o que dá na mesma, perde seu fundamento de validez. A Corte<br />

tem-na por revogada:<br />

“Constituição. Lei anterior que a contrarie. Revogação. Inconstitucionalidade<br />

superveniente. Impossibilidade. A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei<br />

inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel à<br />

Constituição; inconstitucional, na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o<br />

que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser<br />

apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior<br />

não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o<br />

legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não<br />

torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de<br />

ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria<br />

ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada,<br />

leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. Reafirmação de antiga<br />

jurisprudência do <strong>STF</strong>, mais que cinqüentenária. Ação direta que não se conhece<br />

por impossibilidade jurídica do pedido.” (ADI n. 2-1/DF, Rel. Min. Paulo Brossard,<br />

DJ de 21-11-97)<br />

No caso, a norma constante do texto atual do art. 195, I, b, da Constituição da<br />

República, na redação da EC n. 20/98, embora conciliável com o disposto no art. 3º, § 1º,<br />

da Lei 9.718/98, não o poderia convalidar nem receber, porque mareado de nulidade<br />

21 “O suporte fático [Tatbestand] que deve ser subsumido à norma constitucional quando da<br />

decisão sobre a constitucionalidade de uma lei, não é uma norma — fato e norma são conceitos<br />

distintos — mas sim a produção de uma norma, um verdadeiro suporte fático material, aquele<br />

suporte fático que é regulado pela norma constitucional e que, porque e na medida em que é<br />

regulado pela Constituição como qualquer outro suporte fático sob qualquer outra norma. Pois um<br />

suporte fático só pode ser subsumido a uma norma se esta regular esse suporte fático, ou seja,<br />

estabelecê-lo como condição ou conseqüência. Tanto se um tribunal civil decide sobre a validade de<br />

um testamento ou contrato ou declara inconstitucional um decreto para não aplicá-lo no caso<br />

concreto, ou se um tribunal constitucional qualifica uma lei como inconstitucional, em todos esses<br />

casos é o suporte fático da produção de uma norma que é subsumido à norma que o regula e que é<br />

reconhecido como conforme ou contrário a ela. O tribunal constitucional, por outro lado, reage ao<br />

julgamento de inconstitucionalidade de uma lei com o ato que corREsponde, como actus contrarius,<br />

ao suporte fático inconstitucional da produção da norma, isto é, com a anulação da norma<br />

inconstitucional, seja apenas — de modo pontual — para o caso concreto, seja — de modo geral —<br />

para todos os casos.” (Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 256-257).


780<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

original insanável, oriunda de contraste com regra constitucional vigente ao tempo de sua<br />

edição, como, aliás, também advertiu, no parecer já citado, o Min. Joaquim Barbosa:<br />

“Contudo, não é excesso reiterar que essa modificação constitucional não<br />

teve o condão de validar a lei originariamente inconstitucional, tendo em vista<br />

que o artigo 3º, § 1º, da Lei Ordinária n. 9.718/98, quando de sua edição, encontrava-se<br />

em desacordo com o permissivo constitucional, considerando-se a redação<br />

então vigente.”<br />

Escusa notar quão absurdas seriam a convalidação da afronta constitucional e a<br />

repristinação normativa, cuja admissibilidade aniquilaria todo o sistema de controle de<br />

constitucionalidade como “meio de defesa e garantia da força normativa da Constituição”<br />

22 , pois qualquer Emenda ulterior bastaria por ressuscitar regra produzida à<br />

revelia das prescrições constitucionais.<br />

16. Parece-me, ao depois, evidentíssimo que a edição da EC n. 20/98 constitui em<br />

si mesma o reconhecimento formal e a prova decisiva da inconstitucionalidade da Lei n.<br />

9.718/98 e das diferenças técnico-jurídicas e semânticas entre as noções de faturamento<br />

e receita:<br />

“Saliente-se, desde início, que a própria necessidade de modificação, via<br />

Emenda Constitucional, da base de cálculo permitida pela Constituição<br />

evidencia, de modo cabal, a frontal incompatibilidade da Lei n. 9.718/98 com o<br />

texto constitucional vigente no momento da sua edição. Do contrário, seria<br />

admitir que o poder legislativo teria modificado a Constituição para que ela<br />

continuasse a mesma. Ora, ela foi modificada justamente — e não há outro modo<br />

de interpretar — porque a Lei n. 9.718/98 era — e continuou sendo —<br />

absolutamente incompatível com o seu suposto fundamento de validade (art.<br />

195, I), na medida em que instituiu contribuições sociais sobre bases de cálculo<br />

não previstas pela Constituição então vigente.” 23<br />

17. Nem se alegue tampouco que a norma atual, como fundamento ulterior de<br />

validez, poderia receber a regra produzida em desconformidade com a ordem<br />

constitucional antecedente, porque teria operado alteração na forma de exercício da<br />

competência, e não, no conteúdo desta.<br />

Porque se concebesse tal recepção, como sucedeu, por exemplo, com as normas<br />

gerais dispostas na Lei Federal n. 5.172/66 (Código Tributário Nacional) e no Decreto-<br />

Lei n. 406/68, ambos recebidos com status de lei complementar, seria de todo<br />

imprescindível que: i) não se configurasse incompatibilidade material; e ii) o<br />

dispositivo por receber tivesse sido produzido de forma válida (em relação ao<br />

fundamento de validade normativa anterior).<br />

Estaria, no caso, satisfeito o primeiro requisito (i), não, porém, o segundo (ii). O art.<br />

3º, § 1º, da Lei n. 9.718/98 foi produzido em descompasso com o regime constitucional<br />

cuja observância lhe daria fundamento de validade normativa. E, como já salientou a<br />

22 CANOTILHO. Op. cit., p. 834.<br />

23 ÁVILA. Cofins e PIS: Inconstitucionalidade da modificação da base de cálculo e violação ao<br />

princípio da igualdade. Cit., p. 438.


R.T.J. — <strong>199</strong> 781<br />

Corte, enunciando doutrina comum, “afere-se a higidez da lei, em confronto com a<br />

norma constitucional vigente na época em que foi sancionada (...) A lei que invada<br />

matéria própria de lei complementar agride diretamente a Constituição” (RP n. 1.556,<br />

Rel. Min. Carlos Madeira, DJ de 29-9-1988).<br />

18. Não é melhor a segunda interpretação proposta pela recorrida, no sentido de<br />

que a publicação da EC n. 20/98 em data anterior à do início da produção dos efeitos da<br />

Lei n. 9.718/98, o qual se deu a 1º de fevereiro de <strong>199</strong>9 em razão da anterioridade<br />

nonagesimal, poderia conceder-lhe fundamento de validade.<br />

Como consta de seu art. 15, a Lei n. 9.718/98 entrou em vigor na data da<br />

publicação, ou seja, em 26 de novembro de <strong>199</strong>8, contando-se-lhe daí a vigência.<br />

Apenas sua eficácia é que foi protraída para o dia 1º de fevereiro de <strong>199</strong>9. Pela<br />

irretocável clareza a respeito, recorro a outra observação de Humberto Ávila:<br />

“Motivo bastante para afastar a aceitação da idéia de convalidação é a<br />

consagrada distinção dos planos normativos da existência, validade e eficácia.<br />

Existente é uma norma que foi criada por uma autoridade aparentemente<br />

competente para criar este tipo de norma. Uma norma é vigente, se existente e não<br />

ab-rogada. Uma norma é válida, se produzida em conformidade às normas que<br />

disciplinam o procedimento de sua criação e se não está em contraste com alguma<br />

norma que regula o seu possível conteúdo. Uma norma é eficaz, se é capaz de<br />

produzir efeitos ou de ser aplicada. (Ricardo Guastini, Teoria e dogmática delle<br />

fonti. Milano: Giuffrè, <strong>199</strong>8, pág. 132 e 170; Pontes de Miranda, Tratado de<br />

Direito Privado, t. 4, Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 3-7; Hans Kelsen, Reine<br />

Rechtslehre. 2. Ed. Wien: Franz Deuticke, 1960, pág. 276. Idem, Allgemeine<br />

Theorie der Normen. Wien: Manz, 1979, pág. 211).<br />

Importante é, pois, distinguir a validade da eficácia: a primeira traduz uma<br />

relação de conformidade entre lei e constituição; a segunda, a sua aptidão para<br />

produzir efeitos e ser aplicada. A norma que regula a aplicabilidade de outra,<br />

porque delimita seus destinatários, seu espaço ou tempo de aplicação, não deve<br />

ser, sequer, objeto de análise, quando a norma, cuja aplicação visa regular, é<br />

originariamente incompatível com a Constituição. Seria como preocupar-se com a<br />

inclusão, em agenda, de um compromisso futuro para um defunto. Ainda que se<br />

pretenda, e que se tente, não haverá ressurreição.<br />

O importante é que a questão da eficácia (aptidão para produzir efeitos) só se<br />

põe quando vencidas as questões ligadas aos planos da existência (a norma tem<br />

que ter sido posta) e da validade (a norma deve ter sido criada de acordo com as<br />

normas que regulam procedimento de sua criação e delimitam o seu conteúdo). É<br />

dizer: não vencidas essas questões, impertinente é a análise do plano da eficácia.<br />

Tanto faz se a norma prevê que produzirá efeitos no futuro, se, no momento em que<br />

foi criada, não se adequava aos mandamentos constitucionais que regulavam a sua<br />

produção e o seu conteúdo. Entendimento contrário seria equivalente — em<br />

pensamento metafórico imperfeito, mas ilustrativo — à situação do estudante que,<br />

tendo ido muito mal nalguma prova, tenta, após a correção, convencer seu<br />

professor de que sua nota deve ser modificada, pelo simples fato de que, depois da<br />

entrega da avaliação, sabia quais as respostas certas.<br />

.


782<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Ora, o fato de a norma constante da Lei n. 9.718/98 ter postergada a sua eficácia<br />

para momento em que passou a existir fundamento material para sua validade, não<br />

elimina a sua original incompatibilidade com a norma constitucional que<br />

delimitava o seu possível conteúdo no momento da sua edição. Se ela não se<br />

adequava à Constituição nesse momento, ela é inválida, pouco importando se,<br />

depois disso e quando passaria a produzir efeitos, o fundamento constitucional foi<br />

modificado. A validade é, enfim, um conceito de relação: norma inferior versus<br />

superior no momento de sua edição. Não depois.” 24<br />

19. Por todo o exposto, julgo inconstitucional o § 1º do art. 3º da Lei n. 9.718/98, por<br />

ampliar o conceito de receita bruta para “toda e qualquer receita”, cujo sentido afronta a<br />

noção de faturamento pressuposta no art. 195, I, da Constituição da República, e, ainda, o<br />

art. 195, § 4º, se considerado para efeito de nova fonte de custeio da seguridade social.<br />

Quanto ao caput do art. 3º, julgo-o constitucional, para lhe dar interpretação<br />

conforme à Constituição, nos termos do julgamento proferido no RE n. 150.755/PE,<br />

que tomou a locução receita bruta como sinônimo de faturamento, ou seja, no<br />

significado de “receita bruta de venda de mercadoria e de prestação de serviços”,<br />

adotado pela legislação anterior, e que, a meu juízo, se traduz na soma das receitas<br />

oriundas do exercício das atividades empresariais.<br />

ESCLARECIMENTO<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sr. Presidente, gostaria de enfatizar meu ponto de<br />

vista, para que não fique nenhuma dúvida ao propósito. Quando me referi ao conceito<br />

construído sobretudo no RE 150.755, sob a expressão “receita bruta de venda de<br />

mercadorias e prestação de serviço”, quis significar que tal conceito está ligado à idéia<br />

de produto do exercício de atividades empresariais típicas, ou seja, que nessa expressão<br />

se inclui todo incremento patrimonial resultante do exercício de atividades empresariais<br />

típicas.<br />

Se determinadas instituições prestam tipo de serviço cuja remuneração entra na<br />

classe das receitas chamadas financeiras, isso não desnatura a remuneração de atividade<br />

própria do campo empresarial, de modo que tal produto entra no conceito de “receita<br />

bruta igual a faturamento”.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Mas, Ministro, seria interessante, em<br />

primeiro lugar, esperar a chegada de um conflito de interesses, envolvendo uma dúvida<br />

quanto ao conceito que, por ora, não passa pela nossa cabeça.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Mas passa pela cabeça de outros. Já não temos poucas<br />

causas, Sr. Ministro, para julgar. Quanto mais claro seja o pensamento da Corte, melhor<br />

para a Corte e para a sociedade.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Não pretendo, neste julgamento, resolver<br />

todos os problemas que possam surgir, mesmo porque a atividade do homem é muito<br />

grande sobre a base de incidência desses tributos.<br />

24 Cofins e Pis... Cit., p. 436.


R.T.J. — <strong>199</strong> 783<br />

E, de qualquer forma, estamos julgando um processo subjetivo e não objetivo e a<br />

única controvérsia é esta: o alcance do vocábulo “faturamento”. E, a respeito desse<br />

alcance, temos já, na Corte, reiterados pronunciamentos.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: É o que estou fazendo: esclarecendo meu pensamento<br />

sobre o alcance desse conceito.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Senão, em vez de julgarmos as demandas<br />

que estão em Mesa, provocaremos até o surgimento de outras demandas, cogitando de<br />

situações diversas.<br />

ESCLARECIMENTO<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sra. Presidente, não vou rediscutir nem rememorar<br />

o meu voto. Sei que estamos num campo extremante rico, especialmente esse da<br />

discussão, da chamada interpretação da Constituição, segundo a lei.<br />

Isto mereceu um estudo notável de um autor alemão, chamado Walter Leisner, que<br />

exatamente discute essas categorias que nós incorporamos. É fácil de rememorar:<br />

faturamento, o que é Direito Civil, Direito Comercial? Temos de nos valer de conceitos<br />

pré-existentes, mas, ao mesmo tempo, também sabemos que esses conceitos evoluem no<br />

tempo e o próprio Tribunal já teve oportunidade de sinalizar. Tanto que, no meu voto, eu<br />

havia apontado a dificuldade de constitucionalizar essas pré-compreensões e me<br />

provocou um certo incômodo a proposta de interpretação conforme do Ministro Cezar<br />

Peluso, porque, na verdade, trata-se de uma interpretação conforme de um conceito que<br />

o Tribunal fixou à luz da lei. Parece-me isso problemático.<br />

Penso que o Tribunal não disse que havia um conceito específico de faturamento.<br />

Esse foi um tema que, naquela assentada, apontei. Por outro lado, se aceitarmos como<br />

limite um conceito fixado numa dada legislação, num dado momento, vamos ter de<br />

atribuir a uma dada legislatura o poder de ter interpretado melhor ou de maneira mais<br />

adequada o Texto Constitucional. Entre nós será a legislatura de <strong>199</strong>1, que fixou o<br />

conceito aceito na Lei Complementar n. 71.<br />

Gostaria apenas de pontuar, certamente essa discussão ainda vai se alargar, esses<br />

desconfortos e remarcando que tenho dificuldade de aceitar qualquer tentativa de incorporar<br />

ao Texto Constitucional, de modo definitivo ou exclusivo, aquela definição de<br />

faturamento. Estamos diante, isso é uma verdade sabida, de um conceito de caráter<br />

fortemente institucional e, por isso, comporta modelagens e criação, como de resto foi<br />

ressaltado nos vários precedentes citados nos votos do Ministro Ilmar Galvão e Sepúlveda<br />

Pertence. Se fôssemos seguir a ortodoxia, a rigor, esse dispositivo estaria de todo esvaziado,<br />

uma vez que o faturamento estaria restrito àquele conceito do Direito Comercial.<br />

Quero apenas pontuar essas angústias, pedindo desculpas ao Ministro Eros Grau<br />

que tem precedência.<br />

Em suma, pedindo vênia àqueles que me antecedem, apenas para deixar remarcado<br />

esse desconforto. Claro que depois podemos alargar essa discussão, porque a aceitação<br />

das premissas estabelecidas pelo Ministro Cezar Peluso vai demandar, num futuro,<br />

qualquer reinterpretação, porque teremos feito um tipo de acasalamento, uma simbiose<br />

entre a norma legal e a jurisprudência, que se desenvolveu, e o Texto Constitucional.<br />

.


784<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Ministro Gilmar Mendes, a nossa tarefa<br />

ficou muito facilitada com a Emenda Constitucional n. 20.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Esse é o problema.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Esse seria o último ponto que eu roçaria. Todos<br />

sabem que sou um observador dessa cena político-judiciária há algum tempo e, se não<br />

tenho antiguidade, pelo menos tenho perseverança. São horas de estudo.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): E muita bagagem!<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Então, em matéria de emenda constitucional,<br />

acompanhei de perto. Penso que há uma passagem equivocada no voto de Ministro<br />

Cezar Peluso, quando diz que a Emenda n. 20 veio para resolver o problema de lei ou<br />

emprestar-lhe validade. A rigor, a Emenda n. 20 já tramitava há muito tempo.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não fui eu quem disse. Quem disse isso foi a recorrida;<br />

o equívoco é dela.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sim, mas não há sequer essa possibilidade em<br />

termos temporais, porque essa emenda, na verdade, teve uma tramitação bastante<br />

tumultuada e, certamente, nem com toda a boa vontade se conseguiria aprová-la em<br />

prazo tão célere que viesse a acobertar a lei que foi conversão de uma medida provisória.<br />

Aqui, só queria fazer uma observação: em relação a esse tumulto que se arma em torno da<br />

cena da emenda constitucional — há exemplos especialmente na área tributária —, em<br />

que muitas vezes temos aquilo que os americanos chamam de “a correção legislativa das<br />

decisões judiciais”, no sentido impróprio, no sentido de tentar fazer as alterações. A<br />

coisa mais banal é, naquilo onde se exigia uma lei complementar...<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Ministro Gilmar Mendes, se V. Exa. me permite,<br />

lembro que, nos Estados Unidos, a introdução do imposto de renda foi fruto de uma<br />

emenda constitucional que veio corrigir uma decisão errada da Corte suprema.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sim. Errada ou certa no sentido do quadro político.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Provavelmente estava certa.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Mas essa interlocução entre a atividade judicante e<br />

a legislativa é muito fértil e temos, certamente, muitos exemplos. Também aqui vou<br />

replicar: não acho que se teve a prova dos nove, no sentido de que a emenda prova que<br />

a nossa interpretação está correta. Não. Na verdade, esse é um processo dinâmico, a toda<br />

hora assistimos propostas. Agora mesmo eu lia no “Jornal Valor” uma discussão e uma<br />

certa irritação do STJ, porque, em matéria tributária, a Câmara se apressara e fizera uma<br />

dada interpretação ou uma “corrigenda” de uma interpretação do STJ. Esse processo é<br />

dinâmico e entre nós ocorre, também, no plano das emendas constitucionais. Não vou<br />

repudiar, mas observo que isso não é a prova decisiva para dirimir a controvérsia.<br />

Continuo a entender que aqui, de fato, esta emenda, e na linha mesmo da jurisprudência,<br />

tem forte conteúdo expletivo ou retórico de pacificação. E vamos encontrar, já sob a<br />

Constituição passada, e agora também, inúmeros exemplos. Também faço apenas esse<br />

reparo. Concordo com S. Exa. que a liberdade do legislador não vai a ponto de, daqui a<br />

pouco, fazer de homem, mulher em matéria de garantia institucional. Claro que temos um<br />

núcleo essencial. Sabemos muito bem, no campo da propriedade, como se dá essa<br />

evolução, a ponto de, por exemplo, hoje, também na jurisprudência do direito comparado,


R.T.J. — <strong>199</strong> 785<br />

entender que o conceito de propriedade é abrangente das poupanças, das pensões. Por<br />

quê? Porque a própria sociedade evolui e se vê que as pessoas, hoje, já não estão mais<br />

afetas à propriedade imobiliária, mas precisam desta garantia para suas relações normais<br />

de vida. Há essa dinâmica do próprio sistema. Concordo com S. Exa. de que, de fato, isto<br />

não dá um cheque em branco para que o legislador, daqui a pouco, reconceitue, de forma<br />

arbitrária, o que é renda. Mas isso se pode fazer dentro de um acompanhamento e de um<br />

conceito de razoabilidade. Eram somente esses reparos, Sr. Presidente, pedindo vênia ao<br />

Ministro Cezar Peluso.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Louvo e não posso deixar de reconhecer o brilho das<br />

posições teóricas de V. Exa., com as quais estou de acordo, e gostaria de explicitar que<br />

não sustento que se devam tomar os termos referenciais usados pela Constituição em<br />

sentido permanente, invariável, perpétuo. Não. Neste caso concreto, pareceu-me, à luz<br />

de uma série de circunstâncias e de razões, que não seria o caso de adotar-se conceito<br />

mais amplo do que aquele pré-constitucional que a Corte definiu como incorporado<br />

pela Constituição. E, dentro da dialética Parlamento-Corte, não tenho dúvida de que<br />

certas posturas do legislador, e até do Constituinte, representam exatamente sua<br />

irresignação e discordância legítimas diante de certas posições da Corte. Isso faz parte da<br />

vivência da dialética democrática: o Legislativo pode modificar norma que o Supremo<br />

Tribunal Federal interprete de determinada maneira. Neste caso, todavia, não me<br />

pareceu possível tomar nesse sentido o advento da Emenda Constitucional n. 20, e não<br />

vejo nas observações de V. Exa. nenhuma crítica senão em plano elevado.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Sra. Presidente, a Lei Complementar n. 70/91, artigo<br />

2º, estabeleceu, quanto à Cofins:<br />

“Art. 2º A contribuição de que trata o artigo anterior será de dois por cento e<br />

incidirá sobre o faturamento mensal, assim considerado a receita bruta das vendas<br />

de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviço de qualquer natureza”.<br />

Esclareça-se que a Constituição de 88, então vigente, no artigo 195, I, previu a<br />

incidência da contribuição sobre o faturamento, conceituado, no artigo 2º da Lei<br />

Complementar n. 70/91, como sendo “a receita bruta das vendas de mercadorias, de<br />

mercadorias e serviços e de serviço de qualquer natureza”.<br />

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC n. 1, Relator o Sr. Ministro<br />

Moreira Alves, considerou constitucional o citado dispositivo — art. 2º da Lei<br />

Complementar n. 70.<br />

Sobreveio, então, a Lei 9.718, de 27 de novembro de <strong>199</strong>8, que, no artigo 3º, § 1º,<br />

ampliou o conceito de faturamento do artigo 2º da Lei Complementar n. 70, para<br />

abranger:<br />

“Art. 2º (...)<br />

§ 1º Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela<br />

pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a<br />

classificação contábil adotada para as receitas”.


786<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Com efeito. Faturamento, segundo o artigo 2º da Lei Complementar n. 70, tinha<br />

este conceito: “receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de<br />

serviço de qualquer natureza”.<br />

A Lei n. 9.718, no art. 3º, § 1º, mandou incluir nesse conceito “a totalidade das<br />

receitas auferidas pela pessoa jurídica”. Quer dizer, não somente aquilo que estava<br />

expresso na Lei Complementar n. 70, mas “a totalidade das receitas auferidas pela<br />

pessoa jurídica”.<br />

Esclareça-se que a Lei n. 9.718, de 27 de novembro de <strong>199</strong>8, é lei de conversão<br />

da Medida Provisória n. 1.724, de 29 de outubro de <strong>199</strong>8. O art. 195, inciso I, CF,<br />

redação original, estabelecia que a contribuição incidiria sobre o faturamento, já<br />

falamos.<br />

A Emenda Constitucional n. 20, de 16-12-98, deu nova redação ao citado inciso I<br />

do art. 195, ampliando a incidência para a receita ou o faturamento.<br />

É dizer, Sra. Presidente: a Lei n. 9.718, de 27-11-98, art. 3º, § 1º, criou nova fonte de<br />

contribuição. Fê-lo, entretanto, com ofensa ao disposto no § 4º do art. 195 da<br />

Constituição. A instituição dessa nova fonte deveria observar a técnica da competência<br />

residual da União — Constituição Federal, art. 154, inciso I, ex vi do disposto no § 4º, art.<br />

195, da referida Carta.<br />

Este foi, aliás, o entendimento do eminente Relator do RE 346.084/PR, o Ministro<br />

Ilmar Galvão:<br />

“(...) fora de dúvida que a novel definição de ‘faturamento’, dada pela lei sob<br />

enfoque não se afeiçoava à que restou assentada pela LC n. 70/91, à luz do inciso<br />

I do art. 195 da Constituição, em sua redação original.<br />

(...)<br />

(...) diante de diploma normativo cujo § 1º do art. 3º veio à luz sob o signo<br />

da inconstitucionalidade parcial, ao fazer compreender no conceito de receita<br />

bruta do contribuinte entradas outras diversas do produto da venda de mercadorias<br />

e serviços, instituindo, por conseqüência, nova fonte destinada a garantir<br />

a manutenção da seguridade social, o que somente por lei complementar<br />

poderia ser feito validamente, como previsto no § 4º do referido art. 195 da<br />

Carta.”<br />

Sua Excelência, entretanto, entendeu que a Lei n. 9.718/98, resultante da<br />

conversão da Medida Provisória n. 1.724/98, somente entrou em vigor a partir de 1º de<br />

fevereiro de <strong>199</strong>9, data antes da qual verificou-se a promulgação da Emenda n. 20, de<br />

16 de dezembro de <strong>199</strong>8, que (palavras de Sua Excelência) veio emprestar-lhe o<br />

embasamento constitucional de que carecia, ao dar nova redação ao art. 195 da Carta<br />

de 88, a dispor que a Cofins passaria a incidir sobre a receita ou faturamento.<br />

Elidida teria ficado, então, segundo o eminente Relator do RE 346.084/PR, a<br />

inconstitucionalidade congênita de que padecia o diploma legal sob enfoque.<br />

Mas o que acontece, Sra. Presidente, é que a citada Lei n. 9.718, de 27-11-98,<br />

simplesmente dispôs no seu art. 17:


R.T.J. — <strong>199</strong> 787<br />

“Art. 17. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, produzindo<br />

efeitos:<br />

I - em relação aos art. 2º a 8º, para os fatos geradores ocorridos a partir de 1º de<br />

fevereiro de <strong>199</strong>9;”<br />

É dizer, simplesmente ocorreu espécie de vacatio legis do dispositivo objeto desta<br />

ação em obséquio ao princípio da anterioridade nonagesimal das contribuições sociais,<br />

art. 195, § 6º.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não é propriamente vacatio, porque ela surtiu<br />

efeitos para se ter o termo inicial dos noventa dias.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Que pressupõe a vigência.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Perfeito, se se entender que a vacatio inclui a<br />

vigência. Estou me referindo apenas à vigência.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Agora, a lei para incidir na cobrança e autorizála,<br />

tem de estar vigendo há noventa dias.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Tem de estar vigente em noventa dias, perfeito,<br />

observando-se, repito, o princípo da anterioridade nonagesimal das contribuições<br />

sociais.<br />

O dispositivo legal, § 1º do art. 3º da Lei n. 9.718, nasceu morto, porque inconstitucional.<br />

Os atos inconstitucionais nascem mortos, são nulos e írritos, segundo velha e<br />

batida doutrina, a partir do famoso Marbury vs. Madson, de 1803, sob a inspiração de<br />

Marshall. Os efeitos do ato inconstitucional, entretanto, podem, em certos casos, ser<br />

mantidos.<br />

Acrescente-se que, no caso, a Lei n. 9.718 — e isso ficou claro — teve vigência a<br />

partir de sua publicação. Os efeitos do dispositivo legal, objeto da causa, é que foram<br />

diferidos para noventa dias depois da vigência, em obséquio, repito, ao princípio da<br />

anterioridade nonagesimal.<br />

Concluo o meu voto. Com a vênia dos eminentes Ministros que divergem,<br />

acompanho o voto do eminente Ministro Relator, Ministro Marco Aurélio.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello: Tenho salientado, em diversas decisões que<br />

proferi no Supremo Tribunal Federal (<strong>RTJ</strong> 144/435-436, Rel. Min. Celso de Mello —<br />

RE 428.354/RS, Rel. Min. Celso de Mello, v.g.), que os desvios inconstitucionais do<br />

Estado, no exercício do seu poder de tributar, geram, na ilegitimidade desse<br />

comportamento do aparelho governamental, efeitos perversos, que, projetando-se nas<br />

relações jurídico-fiscais mantidas com os contribuintes, deformam os princípios que<br />

estruturam a ordem jurídica, subvertem as finalidades do sistema normativo e<br />

comprometem a integridade e a supremacia da própria Constituição da República.<br />

Cumpre assinalar, por isso mesmo, que o caso ora em exame justifica, plenamente,<br />

que se reiterem tais asserções, pois é necessário advertir que a prática das competências<br />

impositivas por parte das entidades políticas investidas da prerrogativa de tributar não


788<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

pode caracterizar-se como instrumento, que, arbitrariamente manipulado pelas<br />

pessoas estatais, venha a conduzir à destruição ou ao comprometimento da própria ordem<br />

constitucional.<br />

A necessidade de preservação da incolumidade do sistema consagrado pela<br />

Constituição Federal não se revela compatível com pretensões fiscais contestáveis do<br />

Poder Público, que, divorciando-se dos parâmetros estabelecidos pela Lei Magna,<br />

busca impor ao contribuinte um estado de submissão tributária absolutamente<br />

inconvivente com os princípios que informam e condicionam, no âmbito do Estado<br />

Democrático de Direito, a ação das instâncias governamentais.<br />

Bem por isso, tenho enfatizado a importância de que o exercício do poder<br />

tributário, pelo Estado, deve submeter-se, por inteiro, aos modelos jurídicos<br />

positivados no texto constitucional, que institui, em favor dos contribuintes,<br />

decisivas limitações à competência estatal para impor e exigir, coativamente, as<br />

diversas espécies tributárias existentes.<br />

O fundamento do poder de tributar — tal como tem sido reiteradamente<br />

enfatizado pela jurisprudência desta Suprema Corte (<strong>RTJ</strong> 167/661, 675-676) — reside,<br />

em essência, no dever jurídico de estrita fidelidade dos entes tributantes ao que<br />

imperativamente dispõe a Constituição da República.<br />

O respeito incondicional aos princípios constitucionais evidencia-se como<br />

dever inderrogável do Poder Público. A ofensa do Estado a esses valores — que<br />

desempenham, enquanto categorias fundamentais que são, um papel subordinante<br />

na própria configuração dos direitos individuais ou coletivos — introduz, de um lado,<br />

um perigoso fator de desequilíbrio sistêmico e rompe, de outro, por completo, a<br />

harmonia que deve presidir as relações, sempre tão estruturalmente desiguais, entre os<br />

indivíduos e o Poder.<br />

Cabe relembrar, neste ponto, consideradas as observações que venho de fazer, a<br />

clássica advertência de Orosimbo Nonato, consubstanciada em decisão proferida<br />

pelo Supremo Tribunal Federal (RE 18.331/SP), em acórdão no qual aquele eminente<br />

e saudoso Magistrado acentuou, de forma particularmente expressiva, à maneira do<br />

que já o fizera o Chief Justice John Marshall, quando do julgamento, em 1819, do<br />

célebre caso “McCulloch v. Maryland”, que “o poder de tributar não pode chegar à<br />

desmedida do poder de destruir” (RF 145/164 — RDA 34/132), eis que — como<br />

relembra Bilac Pinto, em conhecida conferência sobre “Os Limites do Poder Fiscal do<br />

Estado” (RF 82/547-562, 552) — essa extraordinária prerrogativa estatal traduz, em<br />

essência, “um poder que somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem<br />

compatível com a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria e com o direito de<br />

propriedade” (grifei).<br />

Daí a necessidade de rememorar, sempre, a função tutelar do Poder Judiciário,<br />

investido de competência institucional para neutralizar eventuais abusos das entidades<br />

governamentais, que, muitas vezes deslembradas da existência, em nosso sistema<br />

jurídico, de um verdadeiro “estatuto constitucional do contribuinte”, consubstanciador<br />

de direitos e garantias oponíveis ao poder impositivo do Estado (Pet 1.466/PB, Rel. Min.<br />

Celso de Mello, in Informativo/<strong>STF</strong> n. 125), culminam por asfixiar, arbitrariamente, o<br />

sujeito passivo da obrigação tributária, inviabilizando-lhe, injustamente, o exercício de


R.T.J. — <strong>199</strong> 789<br />

atividades legítimas, o que só faz conferir permanente atualidade às palavras do Justice<br />

Oliver Wendell Holmes, Jr. (“The power to tax is not the power to destroy while this Court<br />

sits”), em dictum segundo o qual, em livre tradução, “o poder de tributar não significa<br />

nem envolve o poder de destruir, pelo menos enquanto existir esta Corte Suprema”,<br />

proferidas, ainda que como “dissenting opinion”, no julgamento, em 1928, do caso<br />

“Panhandle Oil Co. v. State of Mississippi Ex Rel. Knox” (277 U.S. 218).<br />

É por isso que não constitui demasia reiterar a advertência de que a<br />

prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao<br />

Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter<br />

fundamental, constitucionalmente assegurados ao contribuinte, pois este dispõe, nos<br />

termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo<br />

contra eventuais excessos (ou ilicitudes) cometidos pelo poder tributante ou, ainda,<br />

contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos editados pelas<br />

instâncias governamentais.<br />

Assentadas tais premissas, que reputo necessárias ao julgamento deste recurso<br />

extraordinário, passo a apreciar o litígio constitucional ora em exame.<br />

Como resulta claro dos votos já proferidos, a controvérsia instaurada na presente<br />

causa concerne à discussão em torno da alegada inconstitucionalidade do art. 3º, § 1º,<br />

da Lei n. 9.718/98, que ampliou o conceito de faturamento, para, com base nesse<br />

mesmo conceito, veiculado em sede de legislação meramente ordinária (não obstante<br />

a regra inscrita no art. 110 do Código Tributário Nacional), abranger e compreender a<br />

totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente do tipo de<br />

atividade por ela exercida e, também, da classificação contábil adotada para as receitas<br />

em geral.<br />

Não se desconhece, Senhora Presidente, considerados os termos da discussão<br />

em torno da noção conceitual de faturamento, que a legislação tributária, emanada de<br />

qualquer das pessoas políticas, não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance<br />

de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou<br />

implicitamente, pela Constituição Federal, para definir ou limitar competências<br />

tributárias.<br />

Veja-se, pois, que, para efeito de definição e identificação do conteúdo e alcance<br />

de institutos, conceitos e formas de direito privado, o Código Tributário Nacional, em<br />

seu art. 110, “faz prevalecer o império do Direito Privado — Civil ou Comercial (...)”<br />

(Aliomar Baleeiro, “Direito Tributário Brasileiro”, p. 687, item n. 2, atualizada pela<br />

Professora Misabel Abreu Machado Derzi, 11. ed., <strong>199</strong>9, Forense — grifei), razão pela<br />

qual esta Suprema Corte, para fins jurídico-tributários, não pode recusar a definição<br />

que, aos institutos, é dada pelo direito privado, sob pena de prestigiar, no tema, a<br />

interpretação econômica do direito tributário, em detrimento do postulado da<br />

tipicidade, que representa, no contexto de nosso sistema normativo, projeção natural<br />

e necessária do princípio constitucional da reserva absoluta de lei em sentido formal,<br />

consoante adverte o magistério da doutrina (Gilberto de Ulhôa Canto, in Caderno de<br />

Pesquisas Tributárias n. 13/493, 1989, Resenha Tributária; Gabriel Lacerda<br />

Troianelli, “O ISS sobre a Locação de Bens Móveis”, in Revista Dialética de Direito<br />

Tributário, vol. 28/7-11, 8-9).


790<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Cumpre destacar, neste ponto, a precisa e correta advertência que, sobre o<br />

tema, faz, com absoluta exatidão, o eminente Professor Ives Gandra Martins, em<br />

memorial apresentado a esta Suprema Corte:<br />

“O Supremo Tribunal Federal reconhece a distinção entre faturamento e<br />

receitas. Tanto assim o é que, quando da análise do art. 28 da Lei 7.738/89, que<br />

previa a incidência do Finsocial sobre a receita bruta das empresas, a constitucionalidade<br />

desse dispositivo foi declarada, desde que o termo ‘receita bruta’ fosse<br />

equiparado a ‘faturamento’.<br />

Alterando conceitos e institutos de direito privado utilizados pela Constituição<br />

Federal para definir competências tributárias, o Legislativo pretendeu,<br />

por meio da Lei 9718/98, consagrar a interpretação da Constituição a partir<br />

da lei, e não da lei a partir da Constituição, violando o princípio da hierarquia<br />

das normas e a supremacia do estatuto supremo.<br />

Muito embora a Constituição brasileira seja, como todas as demais constituições,<br />

um sistema aberto, nem todas as normas constitucionais podem ser tidas<br />

como normas abertas; há, também, as chamadas normas constitucionais densas.<br />

O constituinte previu, no art. 195, I, CF — na redação original — a<br />

possibilidade de o legislador federal instituir contribuição social sobre o<br />

faturamento. Essa previsão não outorga ao legislador ordinário qualquer<br />

margem de liberdade para alcançar outras receitas por meio dessa exação, que<br />

não aquelas que se revestem da natureza de faturamento. Trata-se de uma<br />

norma densa e não, de uma norma aberta, cuja concretização caberia ao legislador<br />

infraconstitucional.<br />

(...)<br />

Ainda que se pudesse classificar o art. 195, I, CF como norma constitucional<br />

aberta, não seria deferido ao legislador ordinário, a pretexto de densificar esse<br />

dispositivo constitucional, pretender alcançar, a título de tributar o faturamento,<br />

receitas que não se inserem nessa realidade contábil/financeira, sob pena de<br />

restarem feridos os princípios da segurança jurídica, supremacia e rigidez<br />

constitucional.<br />

De fato, o cidadão brasileiro tem, na Constituição Federal, a previsão<br />

exaustiva de quais as imposições tributárias que podem lhe ser exigidas. Ao ler a<br />

Constituição Federal, o contribuinte sabe que o seu faturamento pode ser<br />

alcançado pela Cofins (art. 195, I) e pelo PIS (art. 239), do que deflui a certeza de<br />

que as receitas financeiras e outras receitas, que são totalmente estranhas ao<br />

conceito de fatura, estarão a salvo dessa exigência e poderão ser realocadas com<br />

liberdade.<br />

A conclusão de que o termo ‘faturamento’ adotado pelo constituinte pode<br />

ser interpretado de maneira extensiva para nele inserir a totalidade das receitas<br />

auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua classificação contábil —<br />

como o fez a Lei 9.718/98 — acarreta inversão da hierarquia normativa, em<br />

detrimento da rigidez constitucional e lesão irreparável ao princípio da segurança<br />

jurídica, corolário do Estado de Direito.


R.T.J. — <strong>199</strong> 791<br />

A interpretação de termos constitucionais, quando se refiram a noções<br />

técnicas, não pode se distanciar do sentido próprio que essas expressões detêm<br />

intrinsecamente, pois, do contrário, restaria violentada a consciência jurídica<br />

nacional.<br />

(...)<br />

Note-se, ademais, que, se fosse possível, por processos hermenêuticos,<br />

inserir no termo faturamento as demais receitas da pessoa jurídica, não haveria<br />

razão de ser para a edição da EC 20/98 que, alterando o art. 195, CF, conferiu<br />

nova competência tributária à União para, a partir de então, autorizá-la a instituir<br />

contribuição social sobre o faturamento ou as receitas.<br />

Fere a razoabilidade entender que o legislador constituinte derivado se<br />

deu ao trabalho de fazer aprovar e editar referida emenda para prever algo que já<br />

fosse decorrente da redação do art. 195, I, CF.<br />

A edição da EC 20/98 tem o significado inequívoco de que faturamento e<br />

receitas não se confundem, e de que, até então, não era permitida a instituição<br />

de contribuição social tendo como fato gerador as receitas.” (Grifei)<br />

Vislumbro, portanto, Senhora Presidente, uma clara eiva de inconstitucionalidade, a<br />

afetar, no plano material, o preceito normativo em questão, pois, tal como irrepreensivelmente<br />

exposto pelo eminente Professor Ives Gandra Martins no fragmento que venho de<br />

referir, não se revelava lícito, à União Federal, antes do advento da EC 20/98, modificar,<br />

mediante atividade de caráter meramente legislativo (Lei n. 9.718/98), a base de cálculo<br />

que, até então, achava-se constitucionalmente restrita ao faturamento (CF, art. 195, I, em<br />

sua redação original), vale dizer, à receita derivada da venda de bens e/ou da prestação de<br />

serviços, afastada, em conseqüência, a possibilidade jurídica de ampliação, em sede<br />

legal, da base imponível, para, nesta, incluir-se, como indevidamente o fez o legislador<br />

ordinário, a totalidade das receitas da pessoa jurídica.<br />

Cabe mencionar, ainda, ante a extrema pertinência de sua invocação, a correta<br />

advertência formulada pelo eminente Professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, em<br />

douto memorial que apresentou à consideração desta Suprema Corte:<br />

“(...) Ou seja, quando o próprio constituinte, no art. 195, optou por ‘faturamento’<br />

e, por força de emenda constitucional, fez incluir, além do faturamento,<br />

também a receita bruta, certamente não produziu nenhuma sinonímia estipulativa.<br />

Afinal, é regra interpretativa tradicional que a lei não é redundante, isto é, não<br />

contém termos supérfluos.<br />

Assim, ainda que a intenção do constituinte derivado tivesse sido expletiva,<br />

objetivamente, a nova redação constitucional não equiparou os conceitos. Apenas<br />

estendeu a possibilidade da base de cálculo, antes restrita ao faturamento,<br />

também para a receita. Ou seja, na nova redação, o ‘ou’ tem função disjuntiva e não<br />

conjuntiva, como se observa pelo uso dos demonstrativos (‘a receita ou o<br />

faturamento’). Destarte, o novo dispositivo, trazido pela Emenda Constitucional,<br />

ao contrário do que se possa pensar, reforça a tese de que, na Constituição Federal,<br />

mormente para efeitos fiscais, faturamento e receita são conceitos distintos, ainda<br />

que ou um ou outro possam configurar base de cálculo de contribuição social.”<br />

(Grifei)


792<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Mesmo que se reputasse lícita a possibilidade de a União Federal, mediante<br />

atividade legislativa, proceder à referida ampliação da base de cálculo — o que se alega<br />

apenas em caráter argumentativo —, ainda assim o diploma legislativo em questão<br />

incidiria no vício de inconstitucionalidade.<br />

É que a União Federal não poderia dispor, em sede de legislação meramente<br />

ordinária, considerado o que prescreve o art. 110 do Código Tributário Nacional, sobre<br />

conceito já definido no plano do direito privado.<br />

Não custa assinalar, neste ponto, que traduz situação de inconstitucionalidade a<br />

edição, pelo Estado, de lei ordinária, quando esta é editada para regular matéria posta<br />

sob reserva constitucional de lei complementar, como sucede com o Código Tributário<br />

Nacional, cujo art. 110 — ao veicular norma de caráter geral — conforma-se ao que<br />

dispõe o art. 146, III, da Constituição da República.<br />

Cabe referir, neste ponto, por oportuno, que a lei ordinária — que incursiona em<br />

domínio normativo constitucionalmente reservado à lei complementar — incide, por<br />

efeito de direta transgressão ao que prescreve a própria Constituição da República, em<br />

situação de evidente inconstitucionalidade, como o reconhece o magistério da doutrina<br />

(Geraldo Ataliba, “Lei Complementar na Constituição”, p. 30, 1971, RT; José Souto<br />

Maior Borges, “Lei Complementar Tributária”, pp. 34/35, 1975, RT/EDUC; Celso<br />

Bastos, “Lei Complementar”, pp. 16/17, 1985, Saraiva, v.g.).<br />

Esse entendimento reflete-se, por igual, na jurisprudência do Supremo Tribunal<br />

Federal, cuja orientação, no tema, adverte que infringe a Constituição, ofendendo-a de<br />

modo frontal, a lei ordinária — ou qualquer outro ato de menor hierarquia normativa —<br />

que disponha sobre matéria própria de lei complementar (<strong>RTJ</strong> 105/909 — <strong>RTJ</strong> 154/<br />

810-811 — <strong>RTJ</strong> 163/543-544 — <strong>RTJ</strong> 163/942-943 — <strong>RTJ</strong> 166/917-918 — <strong>RTJ</strong> 171/<br />

753-754 — <strong>RTJ</strong> 179/114-115).<br />

Veja-se, portanto, qualquer que seja o ângulo sob o qual se analise a controvérsia,<br />

que o diploma legislativo em causa reveste-se de inconstitucionalidade, especialmente<br />

se examinado o texto da Lei n. 9.718/98 à luz da redação primitiva do art. 195, I, da<br />

Constituição da República (anterior, portanto, ao advento da EC 20/98), tal como por<br />

mim precedentemente assinalado neste voto, e igualmente enfatizado, com absoluta<br />

correção, nos doutos votos proferidos pelos eminentes Ministros Cezar Peluso, Marco<br />

Aurélio e Carlos Velloso.<br />

Cabe registrar, de outro lado, Senhora Presidente, considerada a modificação<br />

introduzida no conteúdo primitivo do art. 195, I, da Constituição, que não se revela<br />

aceitável nem acolhível, para os fins postulados pela União Federal, o reconhecimento<br />

de que a EC 20/98 poderia revestir-se de eficácia convalidante, pois — como ninguém<br />

ignora — as normas legais que se mostram originariamente inconciliáveis com a Lei<br />

Fundamental não se convalidam pelo fato de emenda à Constituição, promulgada em<br />

momento posterior, havê-las tornado compatíveis com o texto da Carta Política.<br />

Se o Poder Público quiser proceder de acordo com o teor de superveniente emenda<br />

à Constituição, deverá produzir nova legislação compatível com o conteúdo resultante<br />

do processo de reforma constitucional, não se viabilizando, em conseqüência, a<br />

convalidação de diploma legislativo originariamente inconstitucional.


R.T.J. — <strong>199</strong> 793<br />

Cumpre advertir, por isso mesmo, que a superveniência de emenda à Constituição,<br />

derivada do exercício, pelo Congresso Nacional, do poder de reforma, não tem o condão<br />

de validar legislação comum anterior, até então incompatível com o modelo positivado<br />

no texto da Carta Política.<br />

Definitivo, sob tal aspecto, o magistério do eminente Professor Celso Antonio<br />

Bandeira de Mello, cuja análise do tema jurídico em questão — veiculada em<br />

trabalho doutrinário (“Leis Ordinariamente Inconstitucionais Compatíveis com<br />

Emenda Constitucional Superveniente”, in RDA 215/85-98) — assim por ele foi<br />

exposta, em seus aspectos essenciais:<br />

“23. É induvidoso que Emendas Constitucionais, editadas nos limites que<br />

lhes são cabíveis, aportam modificações ao quadro constitucional anterior. E<br />

óbvio, de conseguinte, que servirão, dali por diante, como bom fundamento de<br />

validade para as normas produzidas em sua consonância. Nada mais natural,<br />

então, que, por isto mesmo, sejam, em sucessão a ela, editadas leis conformes a<br />

estes novos termos, por muito gravosas que possam ser aos administrados, se<br />

comparadas com os termos Dante possíveis. Isto, todavia, não postula, nem<br />

lógica, nem jurídica, nem eticamente — e muito menos concorre para sustentação<br />

e prestígio do ordenamento — que deva recolher o que dantes era inconstitucional<br />

para abrigá-lo com um manto de resguardo, ainda que para infundirlhe<br />

tal atributo tão-só para o futuro.<br />

Propender para exegese deste feitio implicaria incorrer no contra-senso de<br />

reputar lógico que o ordenamento milite em desfavor da própria higidez e, demais<br />

disso, em considerar que o Direito prestigia ou é indiferente à fraude, à burla e não<br />

apenas a si próprio como aos integrantes da Sociedade. Não é de bom feitio<br />

hermenêutico enveredar por interpretações que sufraguem, em maior ou menor<br />

grau, a indulgência com elas, ou que lhes propicie a prática, o que ocorrerá,<br />

entretanto, se a incursão em tais condutas for inconseqüente e se o beneficiário<br />

delas puder absorver os frutos de expedientes desta ordem.<br />

(...)<br />

26. Assim, na conformidade das considerações feitas, não há senão concluir<br />

que, dentre as alternativas exegéticas em tese suscitáveis perante o tema de<br />

leis originariamente desconformes com a Constituição, mas comportadas por<br />

Emenda Constitucional superveniente, a única merecedora de endosso é a que<br />

apresentamos como a quarta delas, ou seja: aquela segundo a qual a sobrevinda<br />

de Emenda não constitucionaliza a norma inicialmente inválida. Dessarte,<br />

seus efeitos poderão ser impugnados e desaplicada tal regra. Para que venham<br />

a irromper validamente no universo jurídico efeitos correspondentes aos<br />

supostos na lei originariamente inválida, será necessário que, após a Emenda,<br />

seja editada nova lei, se o legislador entender de fazê-lo e de atribuir-lhe teor<br />

igual, pois, só então, será compatível com o enquadramento constitucional<br />

vigente.<br />

(...)


794<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

27. Em síntese conclusiva, pois, não há senão dizer que Emenda Constitucional<br />

— diferentemente de uma nova Constituição — não é ruptura com o<br />

ordenamento jurídico anterior, mas, pelo contrário, funda-se nele, nele se integra<br />

e representa sua continuidade, donde seria inadmissível entender que tem o<br />

efeito de ‘constitucionalizar’, ainda que daí para o futuro, leis originariamente<br />

inconstitucionais (...).<br />

Logo, não é de admitir que Emenda Constitucional superveniente a lei<br />

inconstitucional, mas com ela compatível, receba validação dali para o futuro.<br />

Antes, ter-se-á de entender que se o legislador desejar produzir nova lei e com o<br />

mesmo teor, que o faça, então, editando-a novamente, já agora — e só agora —<br />

dentro de possibilidades efetivamente comportadas pelo sistema normativo (...).”<br />

(Grifei)<br />

Igual censura é também feita, Senhora Presidente, com absoluta correção, pelo<br />

eminente Professor Humberto Bergmann Ávila (“Cofins e PIS: Inconstitucionalidade<br />

da Modificação da Base de Cálculo e Violação ao Princípio da Igualdade” in<br />

Repertório IOB de Jurisprudência n. 14/99 (2ª quinzena de julho/99), Caderno 1, pp.<br />

442-435), cuja advertência, no ponto, vale transcrever:<br />

“3. A Emenda Constitucional n. 20 não desfaz a inconstitucionalidade da<br />

Lei n. 9.718/98.<br />

3.1. A edição da Emenda Constitucional n. 20/98, posteriormente à promulgação<br />

da Lei n. 9.718/98, pode levar ao grave equívoco de considerar-se superada<br />

a inconstitucionalidade desta Lei, em virtude de a citada Emenda ter modificado<br />

exatamente o artigo da Constituição então infringido.<br />

3.2. Salienta-se, desde início, que a própria necessidade de modificação,<br />

via Emenda Constitucional, da base de cálculo permitida pela Constituição<br />

evidencia, de modo cabal, a frontal incompatibilidade da Lei n. 9.718/98 com o<br />

texto constitucional vigente no momento da sua edição. Do contrário, seria<br />

admitir que o poder legislativo teria modificado a Constituição para que ela<br />

continuasse a mesma. Ora, ela foi modificada justamente — e não há outro modo<br />

de interpretar — porque a Lei n. 9.718/98 era — e continuou sendo —<br />

absolutamente incompatível com o seu suposto fundamento de validade (art. 195,<br />

I), na medida em que instituiu contribuições sociais sobre bases de cálculos não<br />

previstas pela Constituição então vigente.<br />

3.3. Exatamente por isso, a Emenda Constitucional n. 20 passou a prever a<br />

possibilidade de instituição de contribuições sociais sobre ‘a receita ou o faturamento’<br />

(art. 195, I, b, com redação dada pela EC n. 20/98).<br />

3.4. Essa modificação constitucional não tem, porém, o efeito de convalidar<br />

lei originariamente inconstitucional, ainda que ela tenha período de vigência<br />

postergado. Senão, vejamos.<br />

3.5. Se a Constituição é modificada, todas as normas anteriormente<br />

editadas e que, em virtude da modificação, passam a ser com ela incompatíveis,<br />

tornam-se inconstitucionais. Esse fenômeno chama-se de inconstitucionalidade<br />

superveniente.


R.T.J. — <strong>199</strong> 795<br />

3.6. Resta, porém, saber o que acontece se uma norma infraconstitucional<br />

é editada em desacordo com a Constituição, e, após a sua edição, a<br />

própria Constituição é alterada, de modo a fazer desaparecer a incompatibilidade.<br />

3.7. No momento em que foi editada, a Lei n. 9.718/98 era incompatível<br />

com a Constituição, já que ela só permitia a edição de contribuições sociais<br />

com as bases de cálculo nela especificadas (sobre faturamento e, não, sobre a<br />

totalidade das receitas). Havendo incompatibilidade entre a norma hierarquicamente<br />

inferior (constante da Lei) e a superior (constante da Constituição), a<br />

primeira é inválida. A invalidade é justamente a incompatibilidade entre a norma<br />

inferior e a superior, que faz com que a norma viciada não possa produzir qualquer<br />

efeito.<br />

(...)<br />

3.11. Pois bem. A edição da Lei n. 9.718/98 é inválida por vício de competência.<br />

Senão, vejamos.<br />

A norma inferior constante da Lei n. 9.718/98 é inválida porque incompatível<br />

com a norma (materialmente supra-ordenada) que limita o seu possível conteúdo<br />

(CF, art. 195, I): a Constituição permite a instituição de Contribuição Social por<br />

lei ordinária apenas sobre o faturamento. Tendo a referida Lei instituído<br />

Contribuição Social sobre a totalidade das receitas — parcela que excede a de<br />

faturamento —, ela não obedeceu à norma superior que delimitou o seu possível<br />

conteúdo. Trata-se, como se vê, de um vício substancial, na medida em que a<br />

parcela sobre a qual a Contribuição foi instituída não se identifica com o<br />

faturamento e, por isso, só poderia ser tributada mediante edição de Lei<br />

Complementar, meio apto a criar outras contribuições não previstas no artigo<br />

195 (CF, art. 195, § 4º).<br />

3.12. E a sua invalidade não se altera com a modificação da norma<br />

constitucional com a qual mantém referência. Isso porque a modificação das<br />

normas de referência, que até pode tornar inválidas as normas originariamente<br />

válidas (inconstitucionalidade superveniente), não pode tornar válidas as<br />

normas que não o são desde a origem.<br />

3.13. Não há, no ordenamento jurídico brasileiro, o fenômeno da constitucionalidade<br />

superveniente. Isso importaria atribuir, às normas futuras, o poder de<br />

convalidar as normas hoje inválidas. Além do mais, todas as leis uma vez incompatíveis<br />

com a Constituição voltariam a ser constitucionais pela modificação futura da<br />

Constituição. Mais do que isso, todas as inconstitucionalidades seriam sempre<br />

compreendidas com a seguinte cláusula de reserva: ‘salvo modificação posterior da<br />

Constituição.’ Isso, entretanto, não é permitido no nosso ordenamento jurídico.<br />

Significaria, além de tudo, uma grave afronta à segurança jurídica.” (Grifei)<br />

Irrepreensível, sob todos os aspectos, esse douto pronunciamento, pois a<br />

pretendida convalidação da Lei n. 9.718/98, se admitida fosse, importaria em<br />

inaceitável subversão de um postulado básico que não pode ser ignorado pelo Poder<br />

Público, notadamente quando atua em sede tributária.


796<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

É preciso enfatizar, Senhora Presidente, tal como assinalei em passagem<br />

precedente de meu voto, que a superveniência de emenda à Constituição não tem, nem<br />

pode ter, o condão de convalidar legislação comum anterior, até então incompatível<br />

com o modelo positivado no texto da Carta Política.<br />

Sabemos que a supremacia da ordem constitucional traduz princípio essencial<br />

que deriva, em nosso sistema de direito positivo, do caráter eminentemente rígido de<br />

que se revestem as normas inscritas no estatuto fundamental.<br />

Nesse contexto, em que a autoridade normativa da Constituição assume<br />

decisivo poder de ordenação e de conformação da atividade estatal — que nela passa a<br />

ter o fundamento de sua própria existência, validade e eficácia —, nenhum ato de<br />

Governo (Legislativo, Executivo e Judiciário) poderá contrariar-lhe os princípios ou<br />

transgredir-lhe os preceitos, sob pena de o comportamento dos órgãos do Estado<br />

incidir em absoluta desvalia jurídica.<br />

Essa posição de eminência da Lei Fundamental — que tem o condão de desqualificar,<br />

no plano jurídico, o ato em situação de conflito hierárquico com o texto da<br />

Constituição — estimula reflexões teóricas em torno da natureza do ato inconstitucional,<br />

daí decorrendo a possibilidade de reconhecimento, ou da inexistência, ou da<br />

nulidade, ou da anulabilidade (com eficácia ex nunc ou com eficácia ex tunc), ou,<br />

ainda, da ineficácia do comportamento estatal incompatível com a Constituição.<br />

Tal diversidade de opiniões nada mais reflete senão visões doutrinárias que<br />

identificam, no desvalor essencial do ato inconstitucional, “vários graus de invalidade”<br />

(Marcelo Rebelo de Sousa, “O Valor Jurídico do Acto Inconstitucional”, vol. I/77,<br />

1988, Lisboa), como ressaltado, por esta Corte, em decisão proferida na ADI 2.215-MC/<br />

PE, Rel. Min. Celso de Mello (Informativo/<strong>STF</strong> n. 224/2001).<br />

As várias concepções teóricas existentes sobre o tema — como destaca autorizado<br />

magistério doutrinário (Carlos Roberto de Siqueira Castro, “Da Declaração de<br />

Inconstitucionalidade e seus Efeitos”, in Revista Forense, vol. 335/17-44; Marcelo<br />

Neves, “Teoria da Inconstitucionalidade das Leis”, pp. 68/85, 1988, Saraiva; José<br />

Afonso da Silva, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, pp. 54/58, item n. 15, 15.<br />

ed., <strong>199</strong>8, Malheiros) — permitem a formulação de teses que buscam definir a real<br />

natureza dos atos incompatíveis com o texto da Constituição, qualificando-os, em<br />

função de abordagens diferenciadas, como manifestações estatais tipificadas pela nota<br />

da inexistência (Francisco Campos, “Direito Constitucional”, vol. I/430, 1956, Freitas<br />

Bastos), ou pelo vício da nulidade (Alexandre de Moraes, “Direito Constitucional”, pp.<br />

599/602, 9. ed., 2001, Atlas; Oswaldo Luiz Palú, “Controle de Constitucionalidade”, pp.<br />

75/76, <strong>199</strong>9, RT), ou, ainda, pelo defeito da anulabilidade (Regina Maria Macedo Nery<br />

Ferrari, “Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade”, pp. 181/183, 2. ed., <strong>199</strong>0,<br />

RT; João Leitão de Abreu, “A Validade da Ordem Jurídica”, pp. 156/165, item n. 11,<br />

1964, Globo).<br />

Cumpre enfatizar, no entanto, por necessário, que, a despeito dessa pluralidade de<br />

visões teóricas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal — apoiando-se na doutrina<br />

clássica (Alfredo Buzaid, “Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no<br />

Direito Brasileiro”, p. 132, item n. 60, 1958, Saraiva; Ruy Barbosa, “Comentários à


R.T.J. — <strong>199</strong> 797<br />

Constituição Federal Brasileira”, vol. IV/135 e 159, coligidos por Homero Pires, 1933,<br />

Saraiva; Alexandre de Moraes, “Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais”,<br />

p. 270, item n. 6.2.1, 2000, Atlas; Elival da Silva Ramos, “A Inconstitucionalidade das<br />

Leis”, p. 119 e 245, itens ns. 28 e 56, <strong>199</strong>4, Saraiva; Oswaldo Aranha Bandeira de Mello,<br />

“A Teoria das Constituições Rígidas”, pp. 204/205, 2. ed., 1980, Bushatsky) — ainda<br />

considera revestir-se de nulidade a manifestação do Poder Público em situação de conflito<br />

com a Carta Política (<strong>RTJ</strong> 87/758 — <strong>RTJ</strong> 89/367 — <strong>RTJ</strong> 164/506, 509):<br />

“O repúdio ao ato inconstitucional decorre, em essência, do princípio que,<br />

fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem jurídica nacional, consagra<br />

a supremacia da Constituição. Esse postulado fundamental de nosso<br />

ordenamento normativo impõe que preceitos revestidos de menor grau de<br />

positividade jurídica guardem, necessariamente, relação de conformidade vertical<br />

com as regras inscritas na Carta Política, sob pena de ineficácia e de conseqüente<br />

inaplicabilidade.<br />

Atos inconstitucionais são, por isso mesmo, nulos e destituídos, em conseqüência,<br />

de qualquer carga de eficácia jurídica.<br />

A declaração de inconstitucionalidade de uma lei alcança, inclusive, os<br />

atos pretéritos com base nela praticados, eis que o reconhecimento desse supremo<br />

vício jurídico, que inquina de total nulidade os atos emanados do Poder Público,<br />

desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe — ante a sua inaptidão<br />

para produzir efeitos jurídicos válidos — a possibilidade de invocação de qualquer<br />

direito.<br />

A declaração de inconstitucionalidade em tese encerra um juízo de exclusão,<br />

que, fundado numa competência de rejeição deferida ao Supremo Tribunal<br />

Federal, consiste em remover, do ordenamento positivo, a manifestação estatal<br />

inválida e desconforme ao modelo plasmado na Carta Política, com todas as<br />

conseqüências daí decorrentes, inclusive a plena restauração de eficácia das leis e<br />

das normas afetadas pelo ato declarado inconstitucional. Esse poder excepcional —<br />

que extrai a sua autoridade da própria Carta Política — converte o Supremo<br />

Tribunal Federal em verdadeiro legislador negativo.”<br />

(<strong>RTJ</strong> 146/461-462, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno)<br />

O exame da controvérsia ora em julgamento, Senhora Presidente, põe em<br />

evidência uma realidade que não pode deixar de ser considerada pelo Supremo Tribunal<br />

Federal, e que já mereceu, por parte desta Corte Suprema (<strong>RTJ</strong> 181/73-79, Rel. Min.<br />

Celso de Mello, Pleno), advertência que cumpre ser rememorada.<br />

Refiro-me ao fato, sumamente relevante, de que nada compensa a ruptura da<br />

ordem constitucional. Nada recompõe os gravíssimos efeitos que derivam do gesto de<br />

infidelidade ao texto da Lei Fundamental.<br />

A defesa da Constituição não se expõe, nem deve submeter-se, a qualquer juízo<br />

de oportunidade ou de conveniência, muito menos a avaliações discricionárias<br />

fundadas em razões de pragmatismo governamental. A relação do Poder e de seus<br />

agentes, com a Constituição, há de ser, necessariamente, Senhora Presidente, uma<br />

relação de respeito.


798<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Se, em determinado momento histórico, circunstâncias de fato ou de direito<br />

reclamarem a alteração da Constituição, em ordem a conferir-lhe um sentido de maior<br />

contemporaneidade, para ajustá-la, desse modo, às novas exigências ditadas por<br />

necessidades políticas, sociais ou econômicas, impor-se-á a prévia modificação do<br />

texto da Lei Fundamental, com estrita observância das limitações e do processo de<br />

reforma estabelecidos na própria Carta Política.<br />

Revela-se fundamental, Senhora Presidente, que se proclame, uma vez mais, com<br />

especial ênfase, que o Supremo Tribunal Federal — que é o guardião da Constituição,<br />

por expressa delegação do Poder Constituinte — não pode renunciar ao exercício<br />

desse encargo, pois, se a Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima<br />

atribuição que lhe foi outorgada, a integridade do sistema político, a proteção das<br />

liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança<br />

das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República restarão<br />

profundamente comprometidas.<br />

Em suma, Senhora Presidente: o inaceitável desprezo pela Constituição não<br />

pode converter-se em prática governamental consentida. Ao menos, enquanto houver<br />

um Poder Judiciário independente e consciente de sua alta responsabilidade política,<br />

social e jurídico-institucional.<br />

Concluo o meu voto, Senhora Presidente. E, ao fazê-lo, peço vênia para conhecer<br />

e dar integral provimento ao presente recurso extraordinário.<br />

É o meu voto.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Sr. Presidente, muitas são as angústias que me<br />

fizeram, com as vênias do Ministro Eros Grau, pedir para antecipar o meu voto.<br />

Tenho convicção formada desde o início da discussão dessa causa. Hoje, é<br />

reforçada pelos votos que nessa sessão me precederam, especialmente o voto magistral<br />

do Ministro Cezar Peluso.<br />

De logo, entendo irrelevante, para o deslinde do caso, a Emenda Constitucional<br />

20, de <strong>199</strong>8.<br />

Na ADIn 2, defendi exaustivamente, neste Tribunal, o conceito de inconstitucionalidade<br />

superveniente, fundado, sobretudo, na novação que uma Constituição superveniente<br />

traz ao fundamento de validade das leis pré-constitucionais. Mas a recíproca não é<br />

verdadeira: norma constitucional superveniente não pode constitucionalizar lei anterior,<br />

inconstitucional ao tempo de sua edição, ao menos enquanto vigorar o nosso conceito<br />

arraigado de inconstitucionalidade — nulidade.<br />

Na bela sustentação da Procuradoria da Fazenda Nacional, surgiu a tentativa de<br />

fugir ao problema da irrelevância da Emenda Constitucional 20, de <strong>199</strong>8. É que ela, a<br />

emenda constitucional, teria tido vigência anterior à vigência da Lei n. 9.718/98, dado<br />

que esta, a vigência da lei, estaria postergada para noventa dias seguintes à sua<br />

publicação por força do artigo 195, § 6º, da Constituição Federal — a regra da chamada<br />

“anterioridade mitigada das contribuições sociais”.


R.T.J. — <strong>199</strong> 799<br />

O argumento é inteligente, mas, a meu ver, não procede. O artigo 195, § 6º, da<br />

Constituição, não adia a vigência da lei, mas, ao contrário, a incidência dele é que<br />

pressupõe que a lei já esteja em vigor.<br />

Na ADIn 1.414, o tema foi tratado no voto condutor do eminente Ministro Octavio<br />

Gallotti. Pretendia-se, com base no artigo 195, § 6º, a inconstitucionalidade da norma<br />

temporal de uma medida provisória, na qual se estipulava que ela teria vigência a partir<br />

da sua publicação.<br />

Respondeu, com a precisão de sempre, o Ministro Octavio Gallotti:<br />

“A vigência antecipada da norma instituidora da contribuição é o pressuposto<br />

necessário do termo inicial do prazo de noventa dias, indispensável à sua exigência,<br />

jamais podendo ser, por isso mesmo, com esta incompatível”.<br />

Assim, a lei vigia, sim, quando sobreveio a Emenda Constitucional 20, de <strong>199</strong>8.<br />

Reduz-se, então, a questão à compatibilidade do artigo 3º, § 1º, da Lei n. 9.718/98<br />

com a redação primitiva do artigo 195, I, da Constituição Federal.<br />

E, aqui, tenho sido chamado à lide em função do meu voto, afinal prevalecente, no<br />

RE n. 150.755. O voto do Ministro Cezar Peluso dispensa-me a respeito de maiores<br />

considerações. Para documentar, apenas recordo o que, então, aduzi — <strong>RTJ</strong> 149/259:<br />

“Convenci-me, porém, de que a substancial distinção pretendida entre receita<br />

bruta e faturamento — cuja procedência teórica não questiono — não encontra<br />

respaldo atual no quadro do direito positivo pertinente à espécie” — cuidava-se<br />

do Finsosial —, “ao menos, em termos tão inequívocos que induzissem, sem<br />

alternativa, à inconstitucionalidade da lei”.<br />

Baixada para adaptar a legislação do imposto sobre a renda à Lei das<br />

Sociedades por Ações, dispusera o DL 1.598 de 26-12-77:<br />

‘Art. 12. A receita bruta das vendas e serviços compreende o produto da<br />

venda de bens nas operações de conta própria e o preço dos serviços<br />

prestados.<br />

§ 1º A receita líquida de vendas e serviços será a receita bruta diminuída<br />

das vendas canceladas, dos descontos concedidos incondicionalmente e dos<br />

impostos incidentes sobre vendas’.<br />

Sucede que, antes da Constituição, precisamente para a determinação da<br />

base de cálculo do Finsocial, o DL 2.397, 21-12-87, já restringira, para esse efeito,<br />

o conceito de receita bruta a parâmetros mais limitados que o de receita líquida de<br />

vendas e serviços, do DL 1.598/77, de modo, na verdade, a fazer artificioso, desde<br />

então, distingui-lo da noção corrente de faturamento.<br />

Recordem-se, na conformidade do referido DL 2.397/87, a nova redação do §<br />

1º e o § 4º — esse, então acrescentado ao art. 1º do DL 1.940/82, regente do<br />

Finsocial sobre a receita bruta das empresas:<br />

‘Art. 22 (...)<br />

§ 1º A contribuição social de que trata este artigo será de 0,5% (meio<br />

por cento) e incidirá mensalmente sobre:


800<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

a) a receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços<br />

de qualquer natureza, das empresas públicas ou privadas definidas como<br />

pessoa jurídica ou a elas equiparadas pela legislação do Imposto de Renda;<br />

b) as rendas e receitas operacionais das instituições financeiras e entidades<br />

a elas equiparadas, permitidas as seguintes exclusões: encargos com<br />

obrigações por refinanciamentos e repasse de recursos de órgãos oficiais e do<br />

exterior; despesas de captação de títulos de renda fixa no mercado aberto, em<br />

valor limitado aos das rendas obtidas nessas operações; juros e correção<br />

monetária passiva decorrentes de empréstimos efetuados ao Sistema Financeiro<br />

de Habitação; variação monetária passiva dos recursos captados do<br />

público; despesas com recursos, em moeda estrangeira, de debêntures e de<br />

arrendamento; e despesas com cessão de créditos com coobrigação, em valor<br />

limitado ao das rendas obtidas nessas operações, somente no caso das instituições<br />

cedentes;<br />

c) as receitas operacionais e patrimoniais das sociedades seguradoras e<br />

entidades a elas equiparadas.<br />

(...)<br />

§ 4º Não integra as rendas e receitas de que trata o § 1º deste artigo, para<br />

efeito de determinação da base de cálculo da contribuição, conforme o caso,<br />

o valor:<br />

a) do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), do Imposto sobre<br />

Transportes (IST), do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis<br />

Líquidos e Gasosos (IULCLG), do Imposto Único sobre Minerais (IUM), e do<br />

Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE), quando destacados em separado<br />

no documento fiscal pelos respectivos contribuintes:<br />

b) dos empréstimos compulsórios;<br />

c) das vendas canceladas, das devolvidas e dos descontos a qualquer<br />

título concedidos incondicionalmente;<br />

d) das receitas de Certificados de Depósitos Interfinanceiros’.<br />

Parece curial, data venia, que a partir da explícita vinculação genética da<br />

contribuição social de que cuida o art. 28 da Lei 7.738/89 ao Finsocial, é na legislação<br />

desta, e não alhures, que se há de buscar a definição específica da respectiva base de<br />

cálculo, na qual receita bruta e faturamento se identificam: mais ainda que no tópico<br />

anterior, essa é a solução imposta, no ponto, pelo postulado da interpretação conforme a<br />

Constituição.<br />

No prosseguimento da discussão, respondendo às objeções do Ministro Marco<br />

Aurélio, acentuei — <strong>RTJ</strong> 149/287:<br />

“O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Não quero transferir a nossa discussão<br />

para o voto do Sr. Ministro Marco Aurélio. Serei extremamente breve. A hipótese<br />

é exatamente o contrário. Incidiria essa regra — que não precisaria estar no CTN,<br />

porque é elementar à própria aplicação da Constituição (era o artigo 110, hoje tão<br />

chamado aqui) — se a lei dissesse: faturamento é igual a receita bruta. O que


R.T.J. — <strong>199</strong> 801<br />

tentei mostrar no meu voto, a partir do Decreto-Lei n. 2.397, é que lei tributária,<br />

ao contrário, para o efeito de Finsocial, chamou receita bruta o que é faturamento.<br />

E, aí, ela se ajusta à Constituição.”<br />

Essa interpretação conforme veio a ser a base da definição de receita como base de<br />

cálculo do Cofins, na Lei Complementar 70, cuja constitucionalidade se declarou na<br />

ADC n. 1, Moreira Alves.<br />

Por isso, Senhora Presidente, lamentando não poder nada mais acrescentar a tudo<br />

que aqui foi dito hoje, acompanho o voto do Ministro Cezar Peluso e, nos outros casos,<br />

o do Ministro Marco Aurélio.<br />

Apenas com relação ao voto do Ministro Cezar Peluso, adoto, como já antecipara,<br />

a fórmula proposta pelo eminente Ministro Carlos Velloso: entendo, aqui, mais<br />

ortodoxo — para não separar o caput, que continha um conceito, e um parágrafo, que<br />

definia esse conceito, o que tenho dúvidas que possamos fazer no controle de<br />

constitucionalidade — declarar inconstitucional o caput e todo o § 1º da Lei n. 9.718, de<br />

modo a que permaneça em vigor, enquanto não alterado pelo Emenda Constitucional 20<br />

e leis que a seguiram, a base de cálculo do Cofins.<br />

É o meu voto.<br />

ESCLARECIMENTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidenta, apenas para esclarecer que, nos três<br />

casos por mim relatados, estou provendo parcialmente os recursos.<br />

No processo de que foi Relator o Ministro Ilmar Galvão, no qual houve pedido de<br />

vista do Ministro Cezar Peluso, o provimento é total, porque a inicial abrangia pedidos<br />

sucessivos, ou seja, formulou-se o pedido para se contar os noventa dias a partir da<br />

vigência da lei propriamente dita, sem se considerar a medida provisória que a<br />

antecedeu, tendo em vista a Emenda Constitucional n. 20, de dezembro de <strong>199</strong>8. Há essa<br />

distinção.<br />

Pelos meus votos, nos processos em que sou Relator, o provimento é parcial.<br />

No relatado pelo Ministro Ilmar Galvão, é parcial porque, diante dos pedidos<br />

sucessivos, ele acolheu o segundo.<br />

ESCLARECIMENTO<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Presidente, só uma ponderação. Como o artigo 3º não<br />

tem um único parágrafo, mas vários, se for declarada a inconstitucionalidade do caput,<br />

os outros parágrafos ficarão soltos, perderão o seu objeto de referência.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Ministro, eles ficam soltos e vêm soltos porque se<br />

referem ao parágrafo 1º:<br />

“§ 2º Para fins de determinação da base de cálculo das contribuições a que se<br />

refere o art. 2º, excluem-se da receita bruta:”<br />

Que receita bruta? A que está no § 1º.


802<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: O meu receio é de que haja algum parágrafo que,<br />

depois, ganhe certa autonomia e gere dificuldade. É isso que me preocupa.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Todos eles são dependentes do § 1º.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Todos eles regulam a base de cálculo da<br />

Cofins. Se estamos entendendo que o conceito básico e a disciplina do Cofins já estão<br />

declarados constitucionais pelo Tribunal...<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Estou apenas ponderando quanto ao risco de<br />

eventuais incertezas futuras.<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie (Presidente): Ainda teremos uma sessão de julgamento<br />

em que o Ministro Eros Grau trará o seu voto e poderemos eventualmente reajustar.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

RE 357.950/RS — Relator: Ministro Marco Aurélio. Recorrente: Companhia<br />

Riograndense de Participações – CRP (Advogados: Larissa Diefenbach Leuck de Nardi<br />

e Rodrigo Leporace Farret e outro). Recorrida: União (Advogado: PFN – Ricardo Py<br />

Gomes da Silveira).<br />

Decisão: Após o voto do Ministro Marco Aurélio (Relator), conhecendo do recurso<br />

e provendo-o, em parte, e dos votos dos Ministros Cezar Peluso, Carlos Velloso, Celso de<br />

Mello e Sepúlveda Pertence, provendo-o, integralmente, pediu vista dos autos o Ministro<br />

Eros Grau. Falaram, pela recorrente, o Dr. André Martins de Andrade e, pela recorrida, o Dr.<br />

Fabrício da Soller, Procurador da Fazenda Nacional. Ausente, justificadamente, neste<br />

julgamento, o Ministro Nelson Jobim (Presidente). Presidência da Ministra Ellen Gracie<br />

(Vice-Presidente).<br />

Presidência da Ministra Ellen Gracie, Vice-Presidente. Presentes à sessão os<br />

Ministros Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Gilmar<br />

Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Vice-Procurador-<br />

Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.<br />

Brasília, 18 de maio de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

ESCLARECIMENTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Gostaria, Presidente, de explicitar algo<br />

que se contém no meu voto.<br />

Neste caso, além daquela problemática da constitucionalização de norma, constitucionalização,<br />

portanto, posterior, também se discute a majoração da alíquota da<br />

Cofins de dois para três por cento. Tendo em conta, inclusive, pareceres que foram<br />

distribuídos, devo situar a matéria. O tema versado nesse recurso é único: a exigibilidade,<br />

ou não, de lei complementar para ter-se a majoração.<br />

No meu voto, parti da premissa de que a base de incidência já está definida na Carta<br />

da República, ou seja, o faturamento. E, se já está definida na Constituição Federal, não<br />

há a exigibilidade do instrumental específico, que é a lei complementar. Esclareço esse<br />

aspecto apenas para não se imaginar que estamos a implementar “bill” de indenidade,


R.T.J. — <strong>199</strong> 803<br />

placitando, sob qualquer ângulo, a majoração de dois para três por cento. A única<br />

matéria discutida, e estamos no campo do processo subjetivo, é esta: a exigibilidade, ou<br />

não, de lei complementar para ter-se como válida a majoração.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Não é objeto de discussão de dois para<br />

três. Neste recurso não tem esse problema?<br />

Está claro então? A matéria discutida, de acordo com o Relator, é exclusivamente<br />

a questão relativa à lei complementar e o conceito de faturamento. Nada a ver com dois<br />

ou três por cento, que é outro assunto.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): O problema da alíquota está envolvido no<br />

que se sustenta que, para ocorrer essa majoração, depende-se de lei complementar. A<br />

prevalecer a premissa de que a incidência não se faz considerada receita de qualquer<br />

ordem, mas faturamento, cai por terra essa sustentação.<br />

Apenas estou ressaltando esse dado para não bater posteriormente carimbo, ante o<br />

leading case, tendo em conta essa majoração, porque há enfoques, quanto a ela, que não<br />

estão tratados neste processo.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): V. Exa., por favor, faça a conclusão do<br />

seu voto.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): No meu voto, na assentada em que teve<br />

início o julgamento, concluí:<br />

“Ante o quadro, conheço do recurso e o provejo para conceder parcialmente a<br />

segurança, afastada a base de incidência definida no § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98,<br />

e o declaro inconstitucional”. Portanto, esse dispositivo, já que, à época em que veio à<br />

balha, não havia a previsão constitucional sobre a incidência considerada a receita de<br />

qualquer natureza, não subsiste.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Então não adentra na questão seguinte da lei<br />

complementar.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Não, porque parto da premissa de que a<br />

base de incidência é o faturamento e a única defesa veiculada foi a de que se teria de<br />

contar com a lei complementar. Discutimos somente sob o ângulo de a majoração de<br />

dois para três por cento ser tratada mediante lei ordinária.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Ministro Marco Aurélio, então vou<br />

tomar a liberdade de ler a última parte dos assentados em relação ao seu voto:<br />

“Quanto ao pedido de declaração de inconstitucionalidade do art. 8º, cabeça,<br />

da Lei 9.718 — que dispõe sobre a majoração da alíquota do Cofins —, improcede<br />

o que sustentado no extraordinário. Com efeito, assentado que a contribuição em<br />

exame tem como base de incidência o faturamento — e afastado o disposto no § 1º<br />

do art. 3º da Lei 9.718 —, está a contribuição alcançada pelo preceito inserto no<br />

inciso I do art. 196 da Constituição Federal. Assim, observa-se, no ponto, o que já<br />

decidido por esta Corte, no sentido da desnecessidade de lei complementar para a<br />

majoração de contribuição cuja instituição se dera com base no citado dispositivo<br />

constitucional, vale dizer, no art. 195, inciso I, da Carta da República. Descabe<br />

.


804<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

cogitar, portanto, de instrumental próprio, ou seja, o da lei complementar para a<br />

majoração da alíquota do Cofins.<br />

Por fim, cabe o simples registro, em relação ao pleito de compensação de<br />

valores, considerados Cofins e CSLL, que o regional se pronunciou a harmonia<br />

com o precedentes desta Corte, etc.<br />

Ante o quadro, conheço do recurso e o provejo, para conceder parcialmente<br />

a segurança, afastando a base de incidência definida no § 1º do art. 3º da Lei n.<br />

9.718, declarando-o inconstitucional”.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Voltaremos a discutir essa matéria se o<br />

Tribunal placitar esse instituto, para mim novo, que é a constitucionalização superveniente,<br />

após a edição da lei.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: De qualquer forma, Sr. Presidente, em relação a isso,<br />

acho que o próprio Cofins, depois, acho que em 2002 ou 2003, já houve leis novas<br />

disciplinando a matéria. Portanto, é esse argumento da constitucionalização — que<br />

também não levei em conta, aqui a discussão quando se travou foi simplesmente de uma<br />

redefinição a partir do conceito de faturamento —, já está passé em relação à lei<br />

superveniente, 2002/2003, que deram nova conformação ao tema e, suponho, já em<br />

consonância com a regra da Emenda...<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): É que o período discutido no processo é<br />

anterior a essa legislação, já editada quando em vigor a emenda que modificou a base de<br />

incidência.<br />

VOTO (Vista)<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: O eminente Ministro Maurício Corrêa tendo anteriormente<br />

votado nos autos do RE n. 346.084, supusera eu não viesse a me manifestar a<br />

respeito da matéria, ao menos de imediato, na Sessão Plenária do dia 18 de maio passado.<br />

Daí por que, vindo a julgamento outros recursos, pedi vista dos autos. Exercício de<br />

prudência, apenas. Estivesse eu tão bem preparado como os colegas que anteciparam<br />

seus votos após o meu pedido de vista — mero exercício de prudência, repito —, teria<br />

prontamente votado.<br />

2. O tratamento do tema reclama alguns esclarecimentos a respeito dos conceitos<br />

jurídicos. Não se os pode tratar como se incluídos em uma só categoria, qual também não<br />

convém admitirmos — e isso foi dito na tribuna — que nesta ou naquela Faculdade de<br />

Direito se ensine ou se tenha ensinado que qualquer significado possa ser atribuído a<br />

qualquer vocábulo. Se há quem entenda assim, é porque não compreendeu nada,<br />

absolutamente nada.<br />

3. Distinguimos, a partir de Ascarelli 1 , cumprindo diferentes funções na linguagem<br />

jurídica, [i] os conceitos jurídicos meramente formais, [ii] as regulae juris e [iii] os<br />

conceitos tipológicos [fattispecie].<br />

1 Vide meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros,<br />

2005. pp. 226 e ss.


R.T.J. — <strong>199</strong> 805<br />

Os conceitos meramente formais [v.g., ônus, sujeito jurídico, direito, obrigação]<br />

estão ancorados no terreno formal; o estudo de suas características específicas permite o<br />

desenvolvimento de uma quase topologia, indicativa de uma série de posições lógicas.<br />

Os conceitos meramente formais não possuem realidade histórica própria.<br />

As regulae juris consubstanciam expressões que sintetizam o conteúdo de um<br />

conjunto de normas jurídicas, sem que lhes corresponda um significado próprio.<br />

Exprimem, condensadamente, um sistema normativo, a modo — diz Fábio Konder<br />

Comparato — de autêntica estenografia legal. Tome-se como exemplo dessa espécie de<br />

conceito o de propriedade, que apenas assume alguma significação na medida em que<br />

tenhamos sob consideração a função que ele cumpre no discurso do direito, de resumir<br />

toda disciplina normativa atinente ao modo de aquisição e aos poderes, faculdades e<br />

deveres decorrentes da aquisição de uma posição jurídica subjetiva em relação a um<br />

bem. A utilidade do conceito de propriedade — e isso o torna na prática insubstituível —<br />

está na enorme economia de tempo e de energia que o seu uso permite a quem pretenda<br />

expor o conteúdo do subsistema normativo aplicável à propriedade. Às regulae juris é<br />

que se refere Alf Ross em seu conhecido opúsculo.<br />

Os conceitos jurídicos tipológicos [fattispecie] são expressões da história e indicam<br />

os ideais dos indivíduos e grupos, povos e países; ligam-se a esquemas e elaborações de<br />

caráter, bem como a preocupações e hábitos econômicos e a fés religiosas; à história do<br />

Estado e à estrutura econômica; a orientações filosóficas e a concepções do mundo.<br />

Referem-se a fatos típicos da realidade. Aí encontramos conceitos cujos termos são, v.g.,<br />

boa-fé, bom pai de família, coisa, bem, causa, dolo, culpa, erro. Atribuir significado a esses<br />

termos equivale à identificação das espécies de fato alcançadas por um texto normativo.<br />

Os conceitos jurídicos tipológicos [fattispecie], também ditos indeterminados, em<br />

verdade não são conceitos, mas noções.<br />

4. Faturamento é termo de um desses conceitos jurídicos tipológicos [fattispecie].<br />

Vale dizer, termo de uma noção. Não desejo cansar a Corte, mas me permito lembrar que<br />

elas — as fattispecie ou “conceitos tipológicos” — não são conceitos [não podem ser<br />

entendidos como conceitos] porque os conceitos são atemporais e ahistóricos e elas —<br />

as fattispecie ou “conceitos tipológicos” — são notável e peculiarmente homogêneos<br />

ao desenvolvimento das coisas, isto é, caracterizadamente históricos e temporais 2 .<br />

5. Prossigo em meu raciocínio. A cada conceito corresponde um termo. Este — o<br />

termo — é o signo lingüístico do conceito. Assim, o conceito, expressado no seu termo,<br />

é coisa (signo) que representa outra coisa (seu objeto). Faturamento é o termo do<br />

conceito [= noção, em rigor] de faturamento.<br />

Aqui corremos o risco de cair em uma cilada. É que as linguagens consubstanciam<br />

sistemas ou conjuntos de símbolos convencionais 3 . Isso significa, como observa<br />

Carrió, que não há nenhuma relação necessária entre as palavras (de um lado) e os<br />

objetos, circunstâncias, fatos ou acontecimentos (de outro) em relação aos quais as<br />

palavras cumprem suas múltiplas funções.<br />

2 Meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. Cit., p. 236.<br />

3 Idem, pp. 215 e ss.


806<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

As palavras — diz Hospers — são como rótulos que colocamos nas coisas, para<br />

que possamos falar sobre elas: “Qualquer rótulo é conveniente na medida em que nos<br />

ponhamos de acordo com ele e o usemos de maneira conseqüente. A garrafa conterá<br />

exatamente a mesma substância, ainda que coloquemos nela um rótulo distinto, assim<br />

como a coisa seria a mesma ainda que usássemos uma palavra diferente para designá-la”.<br />

De outra forma dissera-o já Shakespeare, na voz poética de Julieta What’s in a name?<br />

That wich we call a rose / by any other name would smell as sweet.<br />

Podemos, com Hospers, apor rótulos convencionais sobre determinadas garrafas<br />

ou fazê-lo de modo arbitrário. Optando pela segunda alternativa, da sua adoção não<br />

resultará nenhuma alteração no conteúdo do continente arbitrariamente rotulado.<br />

Apenas, se o nosso propósito não for o de instalar, no mínimo, a confusão, cumpre-nos<br />

deixar bem esclarecido aos seus potenciais usuários quais conteúdos encontrarão em<br />

cada uma delas. Assim com as palavras. Se não as tomarmos com a significação usual,<br />

cumpre nos informar aos nossos ouvintes ou leitores os sentidos que lhes atribuímos.<br />

Ainda segundo Hospers, “qualquer um pode usar o ruído que quiser para se referir a<br />

qualquer coisa, contanto que esclareça o que designa o ruído em questão”.<br />

6. No caso, faturamento terá sido tomado como termo de uma das várias noções<br />

que existem — as noções de faturamento — na e com uma de suas significações usuais<br />

atualmente. Sabemos de antemão que já não se a toma como atinente ao fato de “emitir<br />

faturas”. Nós a tomamos, hoje, em regra, como o resultado econômico das operações<br />

empresarias do agente econômico, como “receita bruta das vendas de mercadorias e<br />

mercadorias e serviços, de qualquer natureza” [art. 22 do Decreto-Lei n. 2.397/87]. Esse<br />

entendimento foi consagrado no RE 150.764, Relator o Ministro Ilmar Galvão, e na<br />

ADC n. 1, Relator o Ministro Moreira Alves.<br />

7. Daí por que tudo parece bem claro: em um primeiro momento diremos que<br />

faturamento é outro nome dado à receita bruta das vendas e serviços do agente<br />

econômico. Essa é uma das significações usuais do vocábulo [i.é., a noção da qual o<br />

vocábulo é termo é precisamente esta — faturamento é receita bruta das vendas e<br />

serviços do agente econômico]. A análise dos precedentes aponta, no entanto — e isso é<br />

proficientemente indicado em parecer de Humberto Ávila —, no sentido de inversão<br />

dos termos: a lei tributária chamou de receita bruta, para efeitos do Finsocial, o que é<br />

faturamento; o conceito de receita bruta [= receita da venda de mercadorias e da<br />

prestação de serviços], na lei, é que coincide com a noção de faturamento, na<br />

Constituição.<br />

8. Ora, o artigo 3º da Lei n. 9.718/98 não diz mais do que isso. Seu § 1º é que vai<br />

além, para afirmar que ali — e ali não se cogita de faturamento, mas de receita bruta —<br />

se trata da totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo<br />

de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para tais receitas.<br />

Voltando a Hospers: a lei esclareceu o sentido que atribuiu ao termo “receita bruta” —<br />

“qualquer um pode usar o ruído que quiser para se referir a qualquer coisa, contanto que<br />

esclareça o que designa o ruído em questão”.<br />

9. Esse § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98 veicula uma definição jurídica. Os<br />

conceitos jurídicos, vimos, são expressados através de termos: o termo é o signo do<br />

conceito. Ora, porque esses termos são colhidos na linguagem natural, que é virtualmente<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 8<strong>07</strong><br />

ambígua e imprecisa, inúmeras vezes textos normativos operam a enunciação estipulativa<br />

de conceitos, ou seja, definem os seus respectivos termos. O que se tem referido por<br />

“conceito estipulativo ou legal” corresponde, em regra, a uma definição, que o texto<br />

normativo contempla visando superar a ambigüidade ou imprecisão do termo de certo<br />

conceito. A definição jurídica, pois — “Para os efeitos desta lei entende se por...” —, é a<br />

explicitação do termo do conceito e não deve ser confundida com o conceito jurídico. Este<br />

é o signo de uma significação, expressado pela mediação do termo. A definição jurídica<br />

está referida ao termo e não diretamente ao conceito; consubstancia — repita se — uma<br />

explicitação do termo do conceito.<br />

10. Não fora virtualmente ambígua e imprecisa a linguagem jurídica, bastar-nos-iam<br />

os conceitos jurídicos, sendo prescindíveis as definições ou “conceitos estipulativos ou<br />

legais” 4 . Mas não é bem e apenas assim, contudo. Muitas vezes o ordenamento jurídico<br />

alberga conceitos que, embora diversos, são designados por um mesmo termo. Nesta<br />

hipótese, sob o mesmo termo conceitual — o que torna ainda mais complexo e desafiador,<br />

para o intérprete, o problema da ambigüidade dos termos e expressões jurídicas —, sob o<br />

mesmo termo conceitual, dizia eu, repousam, plasmados pelo ordenamento, distintos<br />

conceitos jurídicos. A distinção entre tais conceitos é evidente, visto que, embora<br />

destacados de um núcleo conceitual comum, as coisas, estados ou situações a que são<br />

aplicados sujeitam-se a diversos regimes jurídicos ou a diversas normas jurídicas (v.g.,<br />

servidor público, sociedade de economia mista). Refiro-me especialmente às definições<br />

legislativas do tipo que Natalino Irti menciona como “definizione-descrizione degli<br />

elementi della fattispecie”, que descreve, com palavras da língua comum ou do léxico<br />

jurídico, modalidade e elementos da fattispecie, ou seja, da hipótese da norma.<br />

Eis o que aí se tem, nesse § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98, uma definição<br />

jurídica de receita bruta: a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo<br />

irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para<br />

tais receitas.<br />

11. Cumpre então indagarmos se a lei poderia ter afirmado essa definição de receita<br />

bruta.<br />

A Constituição dizia, anteriormente à EC 20/98, que a seguridade social seria<br />

financiada, entre outros, mediante recursos provenientes de contribuição social “dos<br />

empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e os lucros” (art. 195, I).<br />

A EC 20/98 alterou o preceito, para afirmar que essa mesma contribuição incidirá<br />

sobre a folha de salários e outros rendimentos do trabalho, sobre “a receita ou o<br />

faturamento” e sobre o lucro.<br />

A lei é anterior à EC 20/98, ao tempo em que o artigo 195, I, da Constituição afirmava<br />

que a contribuição incidiria “sobre a folha de salários, o faturamento e os lucros”.<br />

12. A alteração no texto da Constituição aparentemente, mas não necessariamente,<br />

indica alteração do campo de incidência da contribuição. A emenda, ao referir “a receita<br />

ou o faturamento”, poderia estar a tomar receita como sinônimo de faturamento e<br />

faturamento como sinônimo de receita...<br />

4 Idem, pp. 230-231.


808<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Anteriormente à EC 20/98 ela incidia sobre receita da venda de mercadorias e da<br />

prestação de serviços [= receita bruta], o que coincidia, qual afirmou esta Corte, com a<br />

noção de faturamento. Após a EC 20/98 ela incide sobre “a receita ou o faturamento”.<br />

Ora, se receita bruta [= receita da venda de mercadorias e da prestação de serviços]<br />

coincide, qual afirmou esta Corte, com a noção de faturamento, a inserção do termo de<br />

um outro conceito — “receita” — no texto constitucional há de estar referindo outro<br />

conceito, que não o que coincide com a noção de faturamento. Para exemplificar, sem<br />

qualquer comprometimento com a conclusão: receita como totalidade das receitas<br />

auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevante para a determinação dessa totalidade o<br />

tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para tais receitas.<br />

Temos aí receita bruta, termo de um conceito, e receita bruta, termo de outro<br />

conceito. No primeiro caso, receita bruta que é enquadrada na noção de faturamento,<br />

receita bruta das vendas e serviços do agente econômico, isto é, proveniente das<br />

operações do seu objeto social. No segundo, receita bruta que envolve, além da receita<br />

bruta das vendas e serviços do agente econômico — isto é, das operações do seu objeto<br />

social —, aquela decorrente de operações estranhas a esse objeto.<br />

Impõe-se então distinguirmos: de um lado teremos receita bruta/faturamento; de<br />

outro, a receita bruta que excede a noção de faturamento, introduzida pela EC 20/98,<br />

para a determinação de cuja totalidade são irrelevantes o tipo de atividade que dá lugar<br />

a sua percepção e a classificação contábil adotada.<br />

13. Dir-se-á que a Constituição, ao não definir faturamento, incorporou noção que<br />

dele se tinha à época. Na verdade incorporou uma das noções que dele à época se tinha.<br />

A Constituição poderia, mais do que incorporar, ter contemplado uma definição<br />

jurídica de faturamento. Não o tendo feito, prevaleceu um dos entendimentos possíveis,<br />

aquele nos termos do qual receita bruta coincide com a noção de faturamento enquanto<br />

receita da venda de mercadorias e da prestação de serviços. Poderia ter prevalecido<br />

outro.<br />

O momento é propício para a afirmação de que, em verdade, a Constituição nada<br />

diz; ela diz o que esta Corte, seu último intérprete, diz que ela diz. E assim é porque as<br />

normas resultam da interpretação e o ordenamento, no seu valor histórico-concreto 5 , é<br />

um conjunto de interpretações, isto é, conjunto de normas; o conjunto das disposições<br />

(textos, enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades<br />

de interpretação, um conjunto de normas potenciais. Por isso Michel Troper sustenta —<br />

e nisso estamos de acordo — que a norma constitucional é criada pela autoridade que a<br />

aplica, no momento em que a aplica mediante a prática da interpretação. As palavras<br />

escritas no texto normativo nada dizem; somente passam a dizer algo quando<br />

efetivamente convertidos em normas (isto é, quando — através e mediante a<br />

interpretação — são transformados em normas). Por isso as normas resultam da<br />

interpretação e podemos dizer que elas, enquanto disposições, não dizem nada — elas,<br />

como observam Alícia Ruiz e Carlos Cárcova, elas dizem o que os intérpretes dizem<br />

que elas dizem.<br />

5 Idem, pp. 80-82.


R.T.J. — <strong>199</strong> 809<br />

Insisto em que o sentido de suas normas é construído por esta Corte. Poderíamos ter<br />

incorporado outro entendimento, qual, por exemplo, o desdobrado do ato de “emitir<br />

faturas”. A Corte, no entanto, decidiu de outro modo, de sorte que desde essa decisão<br />

aquele, e não outro, ficou sendo o sentido atribuído a faturamento.<br />

14. Daí se extraem algumas conclusões, a primeira das quais indica que o § 1º do<br />

artigo 3º da Lei n. 9.718/98 excedeu a noção de faturamento adotada por esta Corte ao<br />

tempo em que o artigo 195, I, da Constituição do Brasil afirmava que a contribuição<br />

incidiria “sobre a folha de salários, o faturamento e os lucros”.<br />

Sucede que a EC 20/98, como vimos, alterou a redação do inciso I do artigo 195 da<br />

Constituição, para afirmar que a contribuição incidirá sobre a folha de salários e outros<br />

rendimentos do trabalho, sobre “a receita ou o faturamento” e sobre o lucro. E — vimos —<br />

nisso e com isso admitiu sua incidência sobre receita bruta que excede a noção de<br />

faturamento, para a determinação de cuja totalidade são irrelevantes o tipo de atividade<br />

que dá lugar a sua percepção e a classificação contábil adotada.<br />

15. Uma segunda conclusão é construída a partir da verificação de que a regulação<br />

jurídica é sempre provisória e está sujeita a ser atropelada pela violência dos fatos. Não<br />

me refiro, neste ponto, à violência de todos os delitos. Nem à circunstância de o direito<br />

afirmar-se precisamente quando violado, quando suas regras e princípios sejam<br />

desacatados — o Poder Judiciário se ocupa exclusivamente das leis que tenham sido<br />

violadas. Desejo fazer alusão à circunstância de a realidade não parar quieta, ela sim<br />

derrubando bibliotecas e preceitos que já não sejam com ela coerentes. Por isso mesmo<br />

afirmo que o direito é um organismo vivo que não envelhece, nem permanece jovem, na<br />

medida em que, em virtude da sua interpretação/aplicação, é [= deve ser] contemporâneo<br />

à realidade. Tenho reiteradamente insistido em que a interpretação do direito é<br />

compreensão não apenas dos textos, mas também — repito-me — da realidade. Alterada<br />

a realidade social, a norma que se extrai de um mesmo texto será diversa daquela que<br />

dele seria extraída anteriormente à mudança da realidade.<br />

Daí a distinção entre inconstitucionalidade originária e inconstitucionalidade<br />

superveniente. No primeiro caso, o texto porta em si, desde o seu momento inicial, a<br />

marca da inconstitucionalidade. No segundo, nasce são, mas no correr do tempo, outra<br />

sendo a realidade, torna-se supervenientemente inconstitucional. Alguns, entre nós,<br />

afirmam, ao eventualmente alterar posição diante de um determinado texto normativo,<br />

que “evoluíram”. Mudanças nas pessoas certamente ocorrem, mas o que se dá de modo<br />

mais freqüente é a mudança na própria realidade, determinando a convolação do que era<br />

constitucional em inconstitucional; e mesmo o contrário — convolação do que era<br />

inconstitucional em constitucional — poderá, em tese, vir a ocorrer.<br />

16. Precisamente isso se dá no caso. O § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98, cuja<br />

inconstitucionalidade não foi declarada antes da vigência da EC 20/98 — logo gozava,<br />

até então, da presunção de constitucionalidade — foi recebido por essa emenda<br />

constitucional. A inconstitucionalidade pretérita não declarada resultou superada pelo<br />

recebimento do preceito pela EC 20/98.<br />

17. Lembro precedente antológico da Corte, a ADI n. 2, oportunidade em que o<br />

Ministro Paulo Brossard, Relator, sustentou que:<br />

.


810<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

“A teoria da inconstitucionalidade supõe, sempre e necessariamente, que a<br />

legislação, sobre cuja constitucionalidade se questiona, seja posterior à Constituição.<br />

Porque tudo estará em saber se o legislador ordinário agiu dentro de sua<br />

esfera de competência ou fora dela, se era competente ou incompetente para editar<br />

a lei que tenha editado.<br />

Quando se trata de antagonismo existente entre Constituição e lei a ela<br />

anterior, a questão é de distinta natureza; obviamente não é de hierarquia de leis;<br />

não é, nem pode ser exatamente porque a lei maior é posterior à lei menor e, por<br />

conseguinte, não poderia limitar a competência do Poder Legislativo, que a<br />

editou. Num caso o problema será de direito constitucional, noutro, de direito<br />

intertemporal. Se a lei anterior é contrariada pela lei posterior, tratar-se-á de<br />

revogação, pouco importando que a lei posterior seja ordinária, complementar ou<br />

constitucional.<br />

Em síntese, a lei posterior à Constituição, se a contrariar, será inconstitucional;<br />

a lei anterior à Constituição se a contrariar será por ela revogada, como aconteceria<br />

com qualquer lei que a sucedesse. Como ficou dito e vale ser repetido, num caso, o<br />

problema é de direito constitucional, noutro é de direito intertemporal”.<br />

O acórdão oriundo desse célebre julgamento está assim ementado:<br />

“Constituição. Lei anterior que a contrarie. Revogação. Inconstitucionalidade<br />

superveniente. Impossibilidade.<br />

1. A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição<br />

em si. A lei é constitucional quando fiel à Constituição; inconstitucional na<br />

medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da<br />

inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição<br />

vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional<br />

em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição<br />

futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores<br />

com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não<br />

deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser<br />

suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria<br />

menos que a lei ordinária.<br />

2. Reafirmação da antiga jurisprudência do <strong>STF</strong>, mais que cinqüentenária.<br />

3. Ação direta de que se não conhece por impossibilidade jurídica do<br />

pedido.”<br />

Ficou então assentado não caber a ação direta quando o texto normativo for<br />

anterior à Constituição, já que, se for com ela incompatível, é tido como revogado, e,<br />

caso contrário, como recebido.<br />

18. O mesmo raciocínio há de ser aplicado em relação às emendas constitucionais,<br />

que passam a integrar a ordem jurídica com o mesmo status dos preceitos originários.<br />

Vale dizer, todo ato legislativo que contenha disposição incompatível com a ordem<br />

instaurada pela emenda à Constituição deve ser considerado revogado. Nesse sentido, a<br />

observação do Ministro Celso de Mello:<br />

.


R.T.J. — <strong>199</strong> 811<br />

“Torna-se necessário enfatizar, no entanto, que a jurisprudência firmada<br />

pelo Supremo Tribunal Federal — tratando-se de fiscalização abstrata de<br />

constitucionalidade — apenas admite como objeto idôneo de controle concentrado<br />

as leis e os atos normativos, que, emanados da União, dos Estados-Membros<br />

e do Distrito Federal, tenham sido editados sob a égide de texto constitucional<br />

ainda vigente” [ADI n. 2.971, Relator o Ministro Celso de Mello; DJ de 18-5-<br />

2004]<br />

Por isso mesmo esta Corte tem decidido que, nos casos em que o texto da<br />

Constituição do Brasil foi substancialmente modificado em decorrência de emenda<br />

superveniente, a ação direta de inconstitucionalidade fica prejudicada, visto que o<br />

controle concentrado de constitucionalidade é feito com base no texto constitucional<br />

em vigor e não do que vigorava anteriormente (ADI n. 1.717-MC, Relator o Ministro<br />

Sydney Sanches, DJ de 25-2-00; ADI n. 2.197, Relator o Ministro Maurício Corrêa, DJ<br />

de 2-4-2004; ADI n. 2.531-AgR, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ de 12-9-2003;<br />

ADI n. 1.691, Relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 4-4-2003; ADI n. 1.143, Relator<br />

o Ministro Ilmar Galvão, DJ de 6-9-2001, e ADI n. 799, Relator o Ministro Gilmar<br />

Mendes, DJ de 17-9-2002).<br />

Aliás, em situação análoga — e justamente se tratando da lei imediatamente anterior<br />

à de número 9.718/98 —, decidiu-se que “tendo a Lei n. 9.717, de 27 de novembro de<br />

<strong>199</strong>8, sido publicada anteriormente à entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 20/<br />

98, e tendo esta também de ser levada em consideração no exame da constitucionalidade<br />

da referida Lei, dada a causa de pedir em ação direta de inconstitucionalidade ser aberta,<br />

não é de ser conhecida a presente ação porque se estará no âmbito da revogação, o que não<br />

dá margem ao cabimento da ação direta de inconstitucionalidade” (ADI n. 2.055, Relator<br />

o Ministro Moreira Alves, DJ de 9-5-2003).<br />

19. Ora, a Lei n. 9.718 foi publicada no dia 28 de novembro de <strong>199</strong>8, vinte dias<br />

antes da vigência da EC 20/98. Sua eficácia foi protraída para o dia 1º de fevereiro de<br />

<strong>199</strong>9, mercê da anterioridade nonagesimal. Não produziu nenhum efeito anteriormente<br />

à vigência da nova emenda constitucional, até então gozando de presunção de<br />

constitucionalidade, tendo sido por ela recebida. A inconstitucionalidade pretérita não<br />

declarada resultou superada pelo recebimento do preceito veiculado no § 1º do artigo 3º<br />

da Lei n. 9.718/98 pela EC 20/98.<br />

20. São por certo ponderáveis as razões do voto do eminente Ministro Cezar<br />

Peluso, sempre brilhantes e fundamentadas. Concebido porém o ordenamento como<br />

expressão de uma ordem concreta, histórica e cultural e admitido que a força<br />

normativa da Constituição que cumpre privilegiar é a afirmada pelo texto mais atual —<br />

e aqui é necessário pensarmos essa ordem como uma continuidade que se reproduz no<br />

tempo, permanecendo diuturnamente contemporânea à realidade — teremos, ao nos<br />

afastarmos do puro normativismo, que o recebimento do preceito de que se cuida pela<br />

EC 20/98 supera qualquer vício cuja consistência dependeria do confronto com a<br />

redação anterior do texto constitucional, que já não produz nenhuma conseqüência<br />

jurídica. Esta Corte já se manifestou nesse sentido ao apreciar o AI n. 113.353-AgR/<br />

SP, Relator o Ministro Sidney Sanches, e o AI n. 114.375-AgR/RJ, Relator o Ministro<br />

Octavio Gallotti. Digo-o com todas as vênias: o pensamento que conduz à declaração,<br />

agora, de inconstitucionalidade do § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98, de modo<br />

.


812<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

a negar o seu recebimento pela Constituição emendada, é expressivo de puro<br />

normativismo formal: tanto é que, para ele, a simples republicação da lei vinte dias<br />

após seria suficiente para torná-la constitucional...<br />

É certo que o vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado<br />

em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Mas não é disso que aqui<br />

se trata, senão do recebimento, pela emenda constitucional, de lei publicada<br />

anteriormente a sua vigência, que não fora ou ainda não fora declarada inconstitucional.<br />

De fato — e aqui lanço mão de trechos do voto do Ministro Paulo Brossard na ADI n. 2<br />

(Revista Trimestral de Jurisprudência n. 169/774) —, a lei em questão não poderia ter<br />

sido feita pelo Congresso, “não estava em sua competência, porque escapava de suas<br />

atribuições, competência fixada pela Constituição, atribuições por ela demarcadas. E<br />

porque fez a lei que não podia fazer, agiu ultra vires, além dos seus poderes, fora de suas<br />

atribuições, ao arrepio de sua competência”.<br />

Tudo isso é verdadeiro. O fenômeno da recepção, no entanto, conduz à superação<br />

de tudo isso. Pois o § 1º do artigo 3º da Lei n. 9.718/98 não tendo sido ainda, no advento<br />

da emenda constitucional, retirado do ordenamento jurídico e sendo adequado a ela,<br />

continua a ter existência de modo [re]novado, visto que novo é o seu fundamento<br />

derradeiro de validade: a EC 20/98. É o fenômeno da recepção 6 , que consubstancia um<br />

procedimento abreviado de criação do direito 7 . Em breve artigo publicado logo após a<br />

promulgação da Constituição de 1988, Geraldo Ataliba compôs uma das mais belas<br />

páginas já desenvolvidas sobre o assunto 8 :<br />

“No dia da promulgação da nova Constituição nasceu o estado brasileiro<br />

atual. Surgiu assim, por obra da nova Constituição, um novo Estado. O antigo —<br />

baseado na Carta de 67/69 — desapareceu. Juridicamente, tudo é novo: a ordem<br />

jurídica inteira instaura-se; as instituições inauguram-se, no momento da<br />

promulgação da Constituição. A ordem jurídica nova é rigorosamente virgem,<br />

intocada, inovadora e novidadeira. Toda a ordenação jurídica, que emana do<br />

Estado, surge nesse momento. O novo Estado, do ponto de vista jurídico, nasce do<br />

ato constituinte, com a promulgação da Constituição. É verdade que esta entidade<br />

jurídica apóia-se, superpõe-se a uma sociedade política já existente; comunidade<br />

complexa que, sob perspectiva sociológica, continua; tem a sua continuidade. Daí<br />

dizer-se que a Nação continua e o estado morre, para dar lugar a outro estado.<br />

Entretanto, juridicamente, tudo passa a ser inovador. As leis antigas ficam no<br />

passado. A legislação velha toda, a ordem jurídica antiga, integral, desaparece,<br />

sucumbe com a emergência da nova Constituição. Fica perempta. As normas<br />

jurídicas antigas ficam na história. Por isso, igualam-se, num só plano histórico,<br />

todas as leis, todas as normas, toda a ordenação passada; seja a da semana passada,<br />

seja a dos séculos passados. Tudo fica igualmente histórico. Todas ficam no<br />

6 Vide CERQUEIRA, Marcelo. A Constituição e o direito anterior — o fenômeno da recepção. Brasília:<br />

Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados, <strong>199</strong>5. pp. 63-83.<br />

7 Cf. KELSEN. Teoria generale del Diritto e dello Stato, trad. italiana. Milano: Comunità, 1952. p.<br />

119.<br />

8 “Efeitos da nova Constituição”, in Boletim AASP n. 1562, Suplemento, 23-11-88, p. 3.


R.T.J. — <strong>199</strong> 813<br />

mesmo plano, como páginas viradas, igualmente, identicamente. Lado a lado,<br />

ficam as Ordenações Manuelinas, as Filipinas, a Constituição de 1824 e a Carta<br />

Constitucional de 1967/69.<br />

O novo Estado, evidentemente, emerge com novos órgãos, novo Poder<br />

Legislativo, novo Poder Executivo, novo Poder Judiciário; todas as instituições que<br />

a Constituição de 1988 cria e plasma são novas. A ordem jurídica é igualmente nova.<br />

Alguns afirmam que são revogadas as leis existentes, no que colidem com a<br />

letra ou o espírito da nova Constituição. Acreditamos que o fenômeno da revogação<br />

não é explicação cabal. O que se dá é mais, muito mais radical: o desaparecimento, a<br />

total, a absoluta e irremissível perempção da legislação ainda vigente no dia<br />

anterior, exatamente porque o seu fundamento jurídico estava numa Constituição<br />

que desapareceu [esta sim, revogada categoricamente]. Na verdade, o que se observa<br />

é que todas as normas infraconstitucionais que não sejam incompatíveis com a nova<br />

Constituição são — na medida do estabelecido pela própria Constituição —<br />

‘recebidas’, para integrar a nova ordenação, e assim, nascem, por ela acolhidas. As<br />

incompatíveis desaparecem, caducam com a velha Constituição; e desaparecem<br />

porque seu fundamento, sua base é banida do universo jurídico.<br />

A nova ordem jurídica recepciona as normas infraconstitucionais não<br />

incompatíveis com a Constituição. Ninguém poderá dizer que esta nova lei tem<br />

por fundamento a Constituição anterior. Não, estas leis — que são novas por força<br />

de terem sido recebidas — têm o espírito e tomam por base a nova Constituição. Há<br />

aí novação. Imediatamente, automaticamente a ela submetem-se”.<br />

O fato é que o advento de uma Constituição ou de uma emenda constitucional<br />

nova não paralisa o movimento da ordem jurídica infraconstitucional, pois o direito,<br />

instância da realidade social, é movimento, e não linguagem congelada. A exposição do<br />

saudoso Ataliba é cristalina: todos os enunciados normativos que guardem compatibilidade<br />

com o novo texto constitucional são por ele recebidos, nele se nutrindo de vigor.<br />

Aqui tudo se passa como se a porção da legislação infraconstitucional que mantenha<br />

adequação à nova Constituição ou à nova emenda fosse em um átimo [re]feita; é<br />

desnecessário o cumprimento de todos os passos do processo legislativo para que se dê<br />

a inovação, por meio dessa porção legislativa, da nova ordem jurídica.<br />

A admissão da existência de um hiato no ordenamento, que teria sido preenchido<br />

apenas entre 2002 e 2003, respectivamente, com o advento da Medida Provisória n. 135/<br />

03, convertida na Lei n. 10.833/03 para a Cofins, e da Medida Provisória n. 66/02,<br />

convertida na Lei n. 10.637, de 31 de dezembro, para o PIS, a admissão da existência<br />

desse hiato é incompatível com a concepção do ordenamento como expressão de uma<br />

ordem concreta, projetada de modo contínuo no tempo. A Constituição é a ordem<br />

jurídica fundamental de uma sociedade em um determinado momento histórico e, como<br />

ela é um dinamismo 9 , é contemporânea à realidade 10 — repito: o direito, instância da<br />

9 Vide meu A ordem econômica na Constituição de 1988, 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 152.<br />

10 Vide meu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, 3. ed. São Paulo:<br />

Malheiros, 2005. pp. 54-55.


814<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

realidade social, é movimento, e não linguagem congelada. Quem escreveu o texto da<br />

Constituição não é o mesmo que o interpreta/aplica, que o concretiza 11 . Por isso<br />

podemos dizer que, em verdade, não existe a Constituição do Brasil de 1988, pois o que<br />

realmente hoje existe, aqui e agora, é a Constituição do Brasil, tal como hoje, aqui e<br />

agora, está sendo interpretada/aplicada.<br />

Nego provimento aos recursos extraordinários.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Vossa Excelência admite a recepção de uma lei<br />

nula.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: A tese é essa.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: A tese é exatamente essa, só que ela não foi declarada nula.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Quer dizer, admite-se a recepção de uma lei<br />

inconstitucional?<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Ela não foi declarada nula.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: E precisa ser declarada?<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: É evidente que precisa. A jurisdição constitucional<br />

não opera sob hipóteses.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Quero deixar bem claro, para não parecer que meu voto<br />

é precipitado e sem fundamento, que jamais afirmaria isso se tivesse havido a declaração<br />

de inconstitucionalidade antes. É meramente um jogo formal. A lei foi publicada, não<br />

produziu efeito — ela só iria produzir efeito depois — e, em vinte dias, houve a<br />

publicação da emenda.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Para produzir esse efeito, ela teria de ser válida<br />

e vigente.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: O problema aí é o seguinte: ou prestamos homenagem à<br />

teoria normativista e à hierarquia kelseniana — e aí vamos, efetivamente, entender que<br />

não tem absolutamente sentido meu voto —, ou admitimos que a Constituição é uma<br />

ordem concreta, histórica e cultural, com continuidade no tempo e vocacionada a prover<br />

a própria estruturação do Estado.<br />

Nessa segunda hipótese — uma alternativa fundada —, a conclusão a que se pode<br />

e a que se deve chegar é no sentido formulado por mim.<br />

11 Diz Pontes de Miranda (Sistema de ciência positiva do direito, tomo II, Bookseller, Campinas,<br />

2000, pp. 151-152): “A regra jurídica não é dada pela maioria, nem tampouco pela totalidade. Pode ser<br />

obra de muitos ou de alguns, de minorias ínfimas, ou de um só. Mas já vimos que não há que separar<br />

a aplicação e a iniciação da lei, a realização e a proposta. A expressão efetiva pode não ser a do<br />

indivíduo, nem a de alguns, nem a de muitos, nem a da maioria, nem a da totalidade; porque a<br />

totalidade que desse não seria a que aplicasse, e sim outra, porque entre elas há a mesma diferença que<br />

entre dois momentos: o momento a de elaboração e o momento b de aplicação concreta. No costume<br />

é que teríamos a simultaneidade, a confusão, a coincidência ou como quer que a isso se chame; mas no<br />

próprio costume a regra é traçada, não por um ato, e sim por muitos, de modo que resulta de membros<br />

de totalidades distintas”.


R.T.J. — <strong>199</strong> 815<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Presidente, na condição de Relator, permitamme<br />

os Colegas escancarar a questão versada neste processo.<br />

Houve a edição da Lei n. 9.718/98, sob a égide da Carta na redação anterior à<br />

Emenda Constitucional n. 20. O artigo 3º, cabeça, dessa lei preceituou algo que se<br />

mostrou consentâneo com o Diploma Maior:<br />

Art. 3º O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à receita<br />

bruta da pessoa jurídica.<br />

O Tribunal estabeleceu a sinonímia “faturamento/receita bruta”, conforme decisão<br />

proferida na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 1-1/DF — receita bruta<br />

evidentemente apanhando a atividade precípua da empresa.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Receita operacional.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Operacional. Com o § 1º do mesmo artigo<br />

foi dado conceito todo próprio à receita bruta:<br />

Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoa<br />

jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação<br />

contábil adotada para as receitas.<br />

O que significa esse dispositivo? Que haverá incidência em qualquer receita, ainda<br />

que em decorrência de locação, de investimentos etc.<br />

Então, Presidente, o legislador percebeu que fora muito adiante do que autorizado<br />

pela Carta da República e editou a Emenda Constitucional n. 20, para, com isso, placitar<br />

o deslize já verificado.<br />

Não posso também apontar que essa Emenda tenha-se mostrado inócua, porque<br />

passou — e disso não cogitava o texto primitivo da Lei Fundamental — a tratar da<br />

incidência, considerada a receita, não mais apenas sobre a folha de salário — com<br />

explicitação, inclusive, quanto à folha de salário, e não diria apenas explicitação, mas<br />

abrangência, alargamento do conceito — e sobre a receita.<br />

Houve a alteração — isso está muito claro — no que, na redação primitiva da<br />

Constituição de 1988, previa-se como base de incidência:<br />

Art. 195. [...]<br />

I - dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e os<br />

lucros.<br />

[...]<br />

Com a emenda, a disposição passou a ser:<br />

“Art. 195. [...]<br />

I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei,<br />

incidentes sobre:<br />

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados,<br />

a qualquer título,” — estamos lembrados aqui dos autônomos, e fui Relator,<br />

inclusive, do recurso extraordinário respectivo — “à pessoa física que lhe preste<br />

serviço, mesmo sem vínculo empregatício;<br />

b) a receita” — cogitou-se pela primeira vez da receita — “ou o faturamento.”<br />

.


816<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Sustenta o Ministro Eros Grau que ocorreu a legitimação da lei tendo em conta o<br />

novo texto constitucional. Para mim, ela nasceu e permaneceu inconstitucional. É certo<br />

que a exigibilidade dos tributos se fez quando já em vigor a Emenda n. 20, em vista da<br />

anterioridade mitigada de noventa dias. Mas, para que essa anterioridade mitigada tenha<br />

efeito jurídico, é indispensável que a lei, de início, mostre-se constitucional; se assim<br />

não era, cai por terra a passagem até mesmo dos noventa dias.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Noventa dias se contam da vigência da lei: o<br />

que se protrai por 90 dias é a sua eficácia.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Claro, da vigência. E se pressupõe que seja<br />

uma lei legítima sob o ângulo constitucional. Creio que o julgamento é de importância<br />

maior, porque, prevalecendo o voto de Sua Excelência, o legislador ordinário poderá<br />

claudicar, desde que, posteriormente, venha uma emenda constitucional que placite o<br />

desvio de conduta, o desrespeito anterior à Carta da República.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Veja, Ministro Marco Aurélio, a que ponto<br />

chegamos: todas as leis anteriores à Constituição de 88, inconstitucionais frente à<br />

Constituição de 1967, se condizentes com a nova Constituição, seriam recebidas; cai<br />

por terra o controle difuso.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): E a segurança jurídica.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Claro. No controle difuso, examinamos a constitucionalidade<br />

da lei, segundo a Constituição da época. Isso é doutrina velha, batida e<br />

rebatida.<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Mas essa não é a hipótese, Ministro Velloso. A<br />

Constituição da época é a atual.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: A lei estava vigente, sob o pálio de uma<br />

Constituição que não a permitia. Ela nasceu, portanto, morta. Agora, veio a emenda<br />

justamente para convalidar?<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: V. Exa. me permite uma observação, Ministro Carlos<br />

Velloso? Não conheço nenhum processo legislativo no Brasil, pelo menos, que tenha<br />

tornado possível que uma PEC, em quinze ou vinte dias, fosse transformada em emenda.<br />

Houve nitidamente, aí, um erro de cálculo da Administração que fez correr paralelamente<br />

o projeto de lei.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Um erro de cálculo no campo cronológico.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: É verdade, houve esse erro de cálculo. Quiseram<br />

corrigi-lo, mas não veio a tempo e modo.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Não se processa uma emenda constitucional em quinze<br />

dias, em vinte dias. Não posso ficar no reino da teoria, tenho que levar em consideração<br />

a realidade. E tem mais um aspecto, para que não pareça uma estontice o meu voto: estou<br />

considerando a situação muito peculiar de uma lei que não produziu efeito.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Não é isso, Ministro, data venia.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Estou diante dessa circunstância. O exemplo de V. Exa.,<br />

Ministro Carlos Velloso, não se aplica a essa situação. Todas as leis anteriores a que V.<br />

Exa. se referiu já produziram efeito.


R.T.J. — <strong>199</strong> 817<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Sr. Ministro, produziu efeito, sim, porque<br />

correram 90 dias da publicação delas.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Detonado o prazo nonagesimal.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: O primeiro efeito jurídico de uma lei<br />

instituidora ou de aumento de contribuição previdenciária é dar início ao prazo de<br />

noventa dias. Antes que ela seja vigente, o que se pressupõe válida, não têm início os<br />

noventa dias.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Estou de pleno acordo com V. Exa., mas estou apenas<br />

apresentando um raciocínio, que não é estulto e não pode ser contrastado, como propôs<br />

o Ministro Velloso, com situações inteiramente distintas, de leis anteriores que tiveram<br />

eficácia e tudo mais. Aqui não, é uma situação muito peculiar.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Veja, Ministro, com a medida provisória teve<br />

vigência a norma que ficou sem aplicação, tendo em vista o princípio da anterioridade<br />

nonagesimal.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): A eficácia de estabelecer o termo inicial<br />

dos noventa dias.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Pois bem. Vigente a lei, sobreveio a Emenda<br />

Constitucional 20.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Não para corrigir, porque não dava tempo, é óbvio.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Claro, mas emenda constitucional que veio...<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Apenas por lealdade histórica, devemos saber que<br />

esse conteúdo da Emenda 20 já constava dela desde <strong>199</strong>5, <strong>199</strong>6. Imaginar que se fez a<br />

medida provisória...<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Bem, se basta a tramitação de uma emenda<br />

para alterar a Constituição Federal retroativamente, cessa tudo.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: É sucessão de nomes.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Não. Só para que eu tenha premissas diferentes. Já<br />

expus isto no Plenário, só para que não imaginemos que foi editada uma medida<br />

provisória, e, vinte dias depois, tinha-se aprovado uma emenda constitucional. Essa<br />

emenda tramitou desde <strong>199</strong>5, como a Emenda 19, aquela que cuidou da reforma<br />

administrativa.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Deveria ter sido promulgada em data<br />

anterior à da lei, mas não o foi.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sim. Poderia ter ocorrido. Tanto é que para essa<br />

discussão, e já eu disse até com base nas discussões trazidas no RE 150.755, esse<br />

conceito de faturamento, o Tribunal já havia feito a equiparação com a receita bruta,<br />

para dizer que, na verdade, aqui, diferentemente da linha adotada pelo Ministro Eros,<br />

sustentei que a emenda tinha caráter meramente expletivo.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Vossa Excelência nos tranqüiliza.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: No caso específico, esse conceito está no art. 2º da<br />

Lei Complementar 70.


818<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

“Art. 2º A contribuição de que trata o artigo anterior será de dois por cento e<br />

incidirá sobre o faturamento mensal, assim considerado a receita bruta das vendas<br />

de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviço de qualquer natureza”.<br />

E veio a lei, o § 1º do art. 2º, que diz:<br />

“§ 1º Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela<br />

pessoa jurídica, sendo irrelevante o tipo de atividade por ela exercida e a<br />

classificação contábil adotada pelas receitas”.<br />

Então, veja: faturamento segundo o art. 2º da Lei Complementar n. 70 tinha esse<br />

conceito: “(...) receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de<br />

serviços e de serviço de qualquer natureza”.<br />

A Lei n. 9.718, art. 3º, § 1º, mandou incluir nesse conceito a “totalidade das<br />

receitas auferidas pela pessoa jurídica”.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): O acessório foi além do principal.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Mas essa é outra discussão.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Não somente aquilo que estava expresso na Lei<br />

Complementar 70, mas “a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica”. Quer<br />

dizer, houve realmente a ampliação, que representa instituição de fonte nova, nova fonte,<br />

que, pela Constituição, exigência do § 4º do art. 195, só pode ocorrer mediante a técnica da<br />

competência residual da União. Essa técnica, art. 154, I, exige lei complementar.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Remete à lei complementar.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Ministro Velloso, aqui estaria correta essa colocação,<br />

de acordo com as premissas que embasam o seu voto; mas não é a posição.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: O seu voto é inteiramente diverso. V. Exa.<br />

elimina o problema da sucessão de normas.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: É a sua posição, também, Ministro Pertence, no RE<br />

150.755.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Sim, Ministro. Faturamento e receita bruta, tal<br />

qual definido na legislação pré-constitucional.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Não é só a minha posição, mas a sua também.<br />

Desculpe, mas V. Exa. também não adotava esse conceito congelado de faturamento que<br />

restou fixado na ADC n. 1. É disso que estamos a falar.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Na Ação Declaratória de Constitucionalidade<br />

n. 1-1/DF, o Tribunal estabeleceu a sinonímia. Sim, faturamento/receita bruta, mas<br />

receita bruta tal como definida.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Receita operacional.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: O que se está a dizer: essa definição tem um<br />

conceito institucional e o legislador pode eventualmente alterar esse conceito, dentro<br />

das possibilidades existentes, dentro do poder de conformação legislativa.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Concordo, desde que não exista uma norma estabelecendo<br />

o que é faturamento.


R.T.J. — <strong>199</strong> 819<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Na Constituição.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Na lei complementar que instituiu a contribuição.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: A perspectiva do Ministro Gilmar é inteiramente<br />

diversa. A discussão é outra. A rigor são duas discussões. V. Exa. elimina o problema da<br />

sucessão de normas na medida em que diz: não, a lei era constitucional. O Ministro Eros,<br />

não. Ele disse que a lei era inconstitucional.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: A Constituição separou faturamento e receita bruta, a<br />

lei veio e uniu o que a Constituição separou.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: E foi vitalizada pela norma constitucional<br />

posterior.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Sob o ângulo do fundamento, há três<br />

correntes no Plenário.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Vamos ordenar um pouco. O próprio Supremo<br />

Tribunal Federal, quando colocou a controvérsia na ADC n. 1, já admitiu a equivalência<br />

desses conceitos, e esse é um conceito de caráter institucional. Podemos até dizer que<br />

houve excesso legislativo na disposição constante da Lei n. 9.718/98, ao integrar de<br />

maneira indevida esse conceito de faturamento.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Ou seja, o § 1º é um conceito.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Podemos até dizer isso, mas não tomar como<br />

parâmetro de controle, fazendo uma interpretação da Constituição segundo a lei<br />

complementar, que sabemos nem tem força de lei complementar neste caso — segundo<br />

a jurisprudência que então se assentou. Então, parece-me que há riscos enormes nesse<br />

julgamento independentemente da questão concreta, porque estaremos a canonizar<br />

como constitucional uma fórmula legislativa constante da lei complementar. Não me<br />

parece que isso esteja correto.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Estaremos estabelecendo o real alcance do<br />

vocábulo “faturamento”, tal como constante da Carta da República.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Como exatamente inscrito na Lei Complementar<br />

70, que instituiu a contribuição.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): A remeter a operação da imprensa.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Como sabemos que é assim, se sabemos que houve<br />

uma evolução em relação a isso. Como sabemos, por exemplo, que não havia o conceito<br />

de faturamento aplicado às empresas de serviço e tivemos que fazer esse tipo.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): O que está em jogo aqui são as receitas<br />

financeiras. A produção está sendo tributada com o Cofins. Estamos dizendo é que não<br />

podem ser tributadas pelo Cofins as receitas dos investimentos financeiros das empresas,<br />

o setor bancário financeiro. Esse é o núcleo da discussão.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Porque isso não constitui faturamento.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Esse é um conceito que evolui.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Evolui tanto que a Emenda Constitucional 20 veio<br />

admitir essa evolução, só que, antes dela, uma lei ordinária quis fazer o mesmo.


820<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Mas, Ministro, a Emenda Constitucional<br />

n. 20 teria sido inócua?<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Antes dela, a Lei n. 7.738/98, no julgamento do<br />

RE 150.755, no qual — parece-me — V. Exa. restou vencido, já tinha avançado no<br />

conceito.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Ministro Velloso, se a Emenda n. 20 pudesse<br />

convalidar uma lei, precisamente a 9.718, geneticamente inconstitucional, essa Emenda<br />

n. 20 estaria a conferir a uma lei eficácia retroativa em matéria de imposição fiscal.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Também isso. V. Exa. atentou para um novo tema.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Permitam-me um esclarecimento. Não é possível atribuir<br />

eficácia retroativa a um preceito que ainda não entrou em atividade.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Mas entrou.<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Não teve incidência concreta...<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Ministro, tornou-se vigente. O princípio da anterioridade<br />

aplica-se sobre lei vigente.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: V. Exa. diz isso porque só entraria em atividade depois.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Mas, para entrar em atividade, tem que estar<br />

vigente há 90 dias.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Como contar os noventa dias em relação a<br />

uma lei conflitante com a Constituição?<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Creio que as diferenças já ficaram claras.<br />

O Ministro Eros Grau insiste em seu ponto de vista, os Ministros Velloso e Pertence<br />

sustentam o problema de uma lógica formal. Eu gostaria, então, de colher o voto do<br />

Ministro Joaquim Barbosa, prosseguindo na votação.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Sr. Presidente, até a edição da Emenda Constitucional<br />

20/<strong>199</strong>8 (DOU de16-12-<strong>199</strong>8), o art. 195, I, da Constituição determinava que<br />

uma das fontes de custeio da seguridade social seria a contribuição, a cargo do empregador,<br />

calculada com base no faturamento.<br />

Em 31-12-<strong>199</strong>1, foi publicada a Lei Complementar 70/<strong>199</strong>1, que instituiu a<br />

Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS, a qual, por ter<br />

como base de cálculo o faturamento (art. 2º), também extraía fundamento de validade do<br />

art. 195, I, da Constituição.<br />

A base de cálculo do tributo foi modificada pela Medida Provisória 1.724, de 29-<br />

10-<strong>199</strong>8, posteriormente convertida na Lei 9.718/<strong>199</strong>8 (DOU de 28-11-<strong>199</strong>8), para<br />

corresponder à “totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo<br />

irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada<br />

para as receitas”.


R.T.J. — <strong>199</strong> 821<br />

Menos de um mês depois, a Constituição foi emendada, e o art. 195, I, b, na nova<br />

redação, passou a permitir que o cálculo da contribuição à seguridade social se fizesse<br />

com base no faturamento ou na receita.<br />

É inquestionável que o tributo não poderia ser cobrado, com base na receita bruta, no<br />

período entre a publicação da Lei 9.718/<strong>199</strong>8 e a publicação da Emenda Constitucional<br />

20/<strong>199</strong>8, uma vez que esse lapso temporal coincidia com a exigência de observância da<br />

anterioridade especial ou nonagesimal (art. 195, § 6º).<br />

Com a promulgação da Emenda Constitucional 20/<strong>199</strong>8, tanto a Lei Complementar<br />

70/<strong>199</strong>1 como a Lei 9.718/<strong>199</strong>8 passaram a ter novos fundamentos constitucionais<br />

de validade. A circunstância de a ruptura ser pontual e específica não prejudica a<br />

constatação de que a modificação do parâmetro de controle constitucional para o<br />

tributo projeta um quadro que fixa, em razão do tempo, diferentes condições de<br />

validade.<br />

Ainda que se concedesse que, durante a vigência da antiga redação constitucional, a<br />

modificação da base de cálculo da Cofins contrariava o art. 195, I, da Constituição, a<br />

disposição é compatível com a ordem constitucional inaugurada com a publicação da<br />

Emenda Constitucional 20/<strong>199</strong>8, a partir da qual a Cofins passou a ter como fundamento<br />

o art. 195, I, b.<br />

Ou seja, o art. 3º, § 1º, da Lei 9.718/<strong>199</strong>8 existia, com presunção de constitucionalidade<br />

a seu favor, na época da promulgação da Emenda Constitucional 20/<strong>199</strong>8. Essa<br />

presunção não foi desconstituída de forma objetiva durante a existência da antiga<br />

redação do art. 195, I, da Constituição.<br />

Portanto, a aplicabilidade da Lei 9.718/<strong>199</strong>8 para os fatos geradores contemporâneos<br />

à atual redação do art. 195, I, b, da Constituição deve ser aferida em relação de<br />

compatibilidade perante o novo texto constitucional, e não perante o antigo.<br />

Com efeito, não me parece adequado afirmar que a compatibilidade de uma norma<br />

perante a Constituição possa ser aferida mediante o confronto entre norma infraconstitucional<br />

contemporânea e dispositivo constitucional que já foi retirado do mundo<br />

jurídico.<br />

Em suma, essa abordagem em que se sustenta a postulação dos recorrentes levaria<br />

a que se deixasse de aplicar um dispositivo constitucional vigente, contemporâneo à<br />

constituição do crédito tributário.<br />

E mais: tratar-se-ia de negar eficácia a uma norma cuja compatibilidade com o<br />

texto constitucional, neste momento, não se discute; ou seja, tenta-se afastar a<br />

eficácia de uma norma em prol da qual prevaleceu o princípio da presunção de<br />

constitucionalidade, no período compreendido entre a edição da medida provisória<br />

e a modificação do texto constitucional, mas que hoje dispensa até mesmo essa<br />

presunção de constitucionalidade, tal é a clareza da sua compatibilidade com a nova<br />

norma constitucional.<br />

É de se evocar, aqui, a famosa passagem de Lucio Bittencourt, calcado na doutrina<br />

e na jurisprudência norte-americanas:<br />

.


822<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

“E os tribunais não julgarão inválido o ato, a menos que a violação das<br />

normas constitucionais seja, em seu julgamento, clara, completa e inequívoca —<br />

clear, complete and unmistakable.” 1<br />

No que se refere à recepção, deve-se garantir a supremacia da Constituição atual,<br />

pois esse é o sistema de referência que passa a coordenar a aplicabilidade da norma.<br />

Nesse sentido, afirma Celso Bastos:<br />

“Mais delicado problema se coloca quando a norma subconstitucional<br />

apresenta algum vício diante da norma constitucional então em vigor.<br />

Com a substituição desta, desaparece a relação de antinomia. Alguns<br />

autores preferem achar que continua a haver o vício de inconstitucionalidade,<br />

mesmo debaixo da situação gerada pela emenda. Pensamos contrariamente. A<br />

inconstitucionalidade há de ser aferida a partir de uma relação atual de<br />

incompatibilidade entre a lei e a Constituição.<br />

A única exigência para que o direito ordinário anterior sobreviva debaixo da<br />

nova Constituição é que não mantenha com ela nenhuma contrariedade, não<br />

importante que a mantivesse com a anterior, quer do ponto de vista material, quer<br />

formal.” 2<br />

Entendo que, nos casos em que não há declaração de inconstitucionalidade com<br />

eficácia erga omnes, uma norma eventualmente desconforme ao texto constitucional<br />

anterior pode ser recebida pela nova ordem constitucional, ainda que parcialmente, se<br />

com esta não houver contradição.<br />

Do exposto, conheço do recurso, mas nego-lhe provimento.<br />

É como voto.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Sr. Presidente, tenho aqui rápidas anotações.<br />

A Constituição de 88, pelo seu art. 195, I, redação originária, usou do substantivo<br />

“faturamento”, sem a dijuntiva “ou receita”.<br />

Em que sentido separou as coisas? No sentido de que faturamento é receita<br />

operacional, e não receita total, nem receita abrangente de qualquer ingresso na<br />

empresa.<br />

Receita operacional consiste naquilo que já estava definido pelo Decreto-Lei<br />

2.397, de 1987, art. 22, § 1º, a, assim redigido — parece que o Ministro Velloso acabou<br />

de fazer também essa remissão à lei:<br />

1 O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Brasília: Ministério da Justiça, <strong>199</strong>7. p. 92.<br />

2 Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Saraiva, <strong>199</strong>7. p. 78.


R.T.J. — <strong>199</strong> 823<br />

“Art. 22. (...)<br />

§ 1º (...)<br />

a) a receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços, de<br />

qualquer natureza, das empresas públicas ou privadas definidas como pessoa<br />

jurídica ou a elas equiparadas pela legislação do Imposto de Renda;”<br />

Por isso, estou insistindo na sinonímia “faturamento” e “receita operacional”,<br />

exclusivamente, correspondente àqueles ingressos que decorrem da razão social da<br />

empresa, da sua finalidade institucional.<br />

Logo, receita operacional é receita bruta de tais vendas, mas não incorpora outras<br />

modalidades de ingresso financeiro: royalties, aluguéis, rendimentos de aplicações<br />

financeiras, indenizações etc.<br />

Esse tratamento normativo do faturamento como receita operacional foi reproduzido<br />

pela Lei Complementar 70/91, cujo art. 2º assim dispõe:<br />

“Art. 2º A contribuição de que trata o artigo anterior será de dois por cento e<br />

incidirá sobre o faturamento mensal, assim considerado a receita bruta das vendas<br />

de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviço de qualquer natureza.”<br />

Ou seja, mais claro, impossível.<br />

Tudo estaria pacificado não fosse o advento da Lei ordinária 9.718, de 1988, fruto<br />

da conversão da Medida Provisória 1.724, de <strong>199</strong>8, que equiparou os termos<br />

“faturamento” e “receita bruta”, não exclusivamente operacional — não vou ler porque<br />

todos já fizeram essa leitura. Poderia fazê-lo? Unir o que a Constituição não uniu? Este,<br />

o cerne jurídico da questão. Minha resposta é, parodiando o Ministro Marco Aurélio,<br />

“desenganadamente não”.<br />

Nesse interregno, entretanto, sobreveio a Emenda Constitucional 20/98 e separou<br />

o que a Constituição originária não fez. Criou a conjunção dijuntiva “ou a receita ou o<br />

faturamento”.<br />

Neste momento, não estamos discutindo a constitucionalidade dessa emenda. O<br />

que se coloca é a possibilidade de sanação ou convalidação da Lei 9.718/<strong>199</strong>8, gestada<br />

por forma inconstitucional.<br />

E, aqui, Sr. Presidente, vou-me permitir dizer que insistir na separação entre<br />

Constituição originária e emenda constitucional não é simplesmente incidir num reles,<br />

num crasso, num mecânico normativismo dogmático.<br />

Não se pode, jamais, esquecer que a Constituição originária porta uma dignidade<br />

que não pode ser equiparada à da emenda a ela — Constituição originária —, porque<br />

esta tem um fundamento suprapositivo, supra-estatal, metajurídico, ao passo que as<br />

emendas à Constituição são produzidas, gestadas juridicamente, vale dizer, segundo<br />

moldes já concebidos pela Constituição originária para elas, as emendas.<br />

Ora, as emendas existem — e me parece que isso é importante — não para<br />

dialogar com o Direito em geral, mas para conversar com a Constituição em particular.<br />

A emenda não existe para refundir o ordenamento jurídico, atualizar o ordenamento<br />

jurídico. Não faz parte de sua funcionalidade. Isso é a lei que faz. A emenda existe para


824<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

atualizar a Constituição, exclusivamente; refundir a norma-princípio, a normacomeço<br />

do ordenamento. As emendas não se põem como fundamento de validade das<br />

leis. Não se pode conceber as emendas como mecanismos de convalidação de leis,<br />

pois elas não dialogam com as leis. Elas existem para manter uma conversa, em<br />

particular, com a Constituição, porque é uma emenda exclusivamente à Constituição.<br />

Então, a tese da convalidação das leis por emenda à Constituição, data venia do<br />

entendimento contrário, parece-me contrariar toda a teoria, a teoria mais consolidada<br />

da Constituição — repito —, cujo fundamento de validade é outro: é suprapositivo ou<br />

supra-estatal.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): A Emenda n. 26, que deu validade a essa<br />

originária sua, não é?<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Porque, aí, essa emenda, essa convocação do<br />

legislador constituinte também está no mundo das coisas metajurídicas.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Então, afasta a discussão sobre se é<br />

originária ou não.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Não.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: A Emenda Constitucional n. 26 é claramente<br />

inconstitucional. O golpe foi ali, a ruptura foi ali.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Exatamente.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Essa é a construção que V. Exa. faz para<br />

manter a coerência do sistema, mas não foi isso o que aconteceu. Quem fez a<br />

Constituição foram os eleitos. Então, não há o mínimo sentido.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Ou seja, a emenda de convocação da constituinte<br />

necessariamente está no mundo dos fatos. Não pode estar no mundo do Direito.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): O problema é engessar a política<br />

brasileira na história européia. Essa é a dificuldade.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Não é bem isso, porque, se uma constituição<br />

dispusesse de norma para convocar o legislador constituinte, estaria cavando a sua<br />

própria sepultura. E nenhuma constituição tem vocação para o suicídio. De modo que<br />

toda norma de convocação de uma constituinte é, por definição, um mecanismo<br />

inconstitucional, porque se situa exclusivamente no mundo dos fatos.<br />

Para concluir, Sr. Presidente, eu diria o seguinte: uma lei ordinária que ofenda a<br />

Constituição não é perdoada jamais por essa Constituição. E o perdão não pode ser<br />

concedido por uma emenda. A Constituição não gosta tanto de suas emendas a ponto de<br />

dar sua vida por elas. A Constituição preserva, antes de tudo, a si mesma, e as próprias<br />

emendas não podem alterar o esquema que a Constituição traçou para a produção e o<br />

conteúdo das leis ordinárias.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Se ela for rígida, não se for flexível.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Não. A nossa é até super-rígida.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Não é a Constituição. É o tipo específico<br />

de Constituição.


R.T.J. — <strong>199</strong> 825<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: É um tipo de Constituição. A nossa Constituição é<br />

formalmente rígida e parcialmente pétrea, por isso estou falando até de super-rigidez.<br />

Em suma, peço vênia para renegar a tese da convalidação das leis, por efeito de<br />

emenda, e sigo integralmente o voto do eminente Ministro Relator, Marco Aurélio.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sr. Presidente, de início, tal como já destaquei no<br />

debate, eu também pediria vênia aos Ministros Eros Grau e Joaquim Barbosa, para pelo<br />

menos opor reservas em relação à tese que já havia sido esposada inicialmente pelo<br />

Ministro Ilmar Galvão, que também fazia até a contagem da noventena a partir da<br />

promulgação da Emenda Constitucional n. 20, também com base nas lições de Jorge<br />

Miranda.<br />

Quando proferi o voto no Recurso Extraordinário n. 346.084, chamei a atenção,<br />

dizendo que, a meu ver, não era necessário ir tão longe para que se vislumbrasse a<br />

legitimidade da fórmula constante da lei agora questionada, da Lei n. 9.718. E eu sei,<br />

quando da reação do Plenário, que essa discussão sobre a convalidação de alguma forma<br />

traz à mente de muitos, certamente de todos, algum temor com relação a eventuais<br />

abusos que se possam perpetrar dentro do sistema de reforma constitucional. Não vamos<br />

nos esquecer, claro, da nossa experiência histórica, da malfadada Constituição de 1937<br />

e do celebérrimo artigo 96 da Constituição, que autorizava o parlamento nacional, por<br />

maioria qualificada, a confirmar a validade da lei e a cassar decisão judicial questionada.<br />

E, sabemos todos, não foi uma experiência apenas lítero-poético-recreativa; na verdade,<br />

o Presidente da República, valendo-se das fórmulas enquanto, utilizou decreto-lei para<br />

os fins de confirmar a constitucionalidade de lei declarada inconstitucional pelo<br />

Supremo Tribunal Federal. Trata-se do Decreto-Lei n. 1.564, de 5 de setembro de 1939,<br />

do Presidente Getúlio Vargas.<br />

Portanto, Sr. Presidente, tenho a impressão de que este debate, tal como colocado<br />

sobre a constitucionalização, despertou exatamente esses fantasmas, a ameaça de que<br />

leis eventualmente inconstitucionais venham agora a ser confirmadas, ou tenham a sua<br />

inconstitucionalidade confirmada por uma eventual maioria qualificada, por um tipo de<br />

rolo compressor que se engendre eventualmente no âmbito do Congresso Nacional. O<br />

nosso sistema constitucional — isso também já foi observado — tem essa simbiose, já<br />

destacada também nas manifestações dos Ministros Sepúlveda Pertence e Carlos<br />

Velloso, que, de fato, produz efeitos sob todo o sistema. Recentemente, ainda tivemos,<br />

aqui, um caso de lei tributária, declarada inconstitucional com base na Constituição de<br />

1967/69. Logo, este sistema fraudaria ou impediria a possibilidade dessa recepção ou<br />

dessa convalidação a não ser que tivéssemos uma norma de concretude tal, como já<br />

tivemos no ADCT, que dissesse que tais decretos-leis ou tais normais ficavam<br />

totalmente recebidas no âmbito da Constituição. Mesmo nessa seara do Cofins, tivemos<br />

esse tipo de disposição. Desse modo, não iria a tanto.<br />

Na ocasião do meu voto proferido no RE n. 346.084, eu já manifestava a minha<br />

divergência em relação à posição sustentada pelo Ministro Ilmar Galvão, dizendo que<br />

era possível, sim, extrair do Texto Constitucional, de uma compreensão institucional do<br />

conceito de faturamento, uma visão que legitimava o disposto na Lei n. 9.718.


826<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Tive a oportunidade, então, de acentuar (lê voto no RE n. 346.084):<br />

“(...)<br />

Previa a Constituição, na redação original do inciso I do art. 195, que a<br />

contribuição para a seguridade social devida pelo empregador incidiria sobre a<br />

folha de salários, o faturamento e os lucros.<br />

Na visão dos recorrentes, a expressão “faturamento”, contida no art. 195, I,<br />

não admitiria o sentido adotado pela Lei impugnada. Tampouco seria admissível<br />

a interpretação no sentido de que a EC 20 teria legitimado a norma impugnada,<br />

haja vista o vício inicial de inconstitucionalidade.<br />

Sob a redação original da Constituição, antes da edição da Lei n. 9.718, a<br />

mediação legislativa necessária para a concretização do art. 195 restou efetivada<br />

pela Lei Complementar n. 70, de <strong>199</strong>1. Esta Lei Complementar incorporou um<br />

específico sentido de faturamento. De fato, previa o art. 2º desta Lei:<br />

‘Art. 2º A contribuição de que trata o artigo anterior será de dois por<br />

cento e incidirá sobre o faturamento mensal, assim considerado a receita<br />

bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviço de<br />

qualquer natureza.’<br />

(...)<br />

Cabe registrar que tal dispositivo foi declarado constitucional por esta Corte<br />

na ADC n. 1, da Relatoria do Ministro Moreira Alves. Assentou-se, ainda, que, em<br />

relação aos dispositivos concernentes à Cofins, a Lei Complementar n. 70 seria<br />

materialmente lei ordinária.<br />

Assim, em 29 de outubro de <strong>199</strong>8, é editada a Medida Provisória n. 1.724,<br />

que, em 27 de novembro daquele mesmo ano, é convertida na lei ordinária ora<br />

impugnada (Lei n. 9.718). Determinou-se, com tal inovação legislativa, a incidência<br />

da Cofins sobre a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica. (...)”<br />

O teor da disposição nós já conhecemos.<br />

Continuo:<br />

“Nessa breve história legislativa da Cofins, percebe-se, desde logo, que, já<br />

sob o regime da Lei Complementar de <strong>199</strong>1 a acepção de faturamento adotada<br />

pelo legislador não correspondia àquela usualmente adotada nas relações comerciais.”<br />

Esse é um tópico importante, e aqui já nem estou tão preocupado com a<br />

interpretação que venhamos a adotar para essa matéria tributária específica. Porém,<br />

como o Texto Constitucional, inevitavelmente, adota esses conceitos de uso comum,<br />

precisamos, de fato, ter abertura para uma compreensão mais ampla desses institutos, sob<br />

pena de, em algum momento, incidirmos naquilo que muito se censura, de fazer-se a<br />

interpretação da Constituição de forma clara, segundo determinada lei ou determinada<br />

concepção dominante num dado momento histórico.


R.T.J. — <strong>199</strong> 827<br />

Retorno ao voto no RE n. 346.084:<br />

“A discussão quanto à legitimidade dessa perspectiva adotada pelo legislador,<br />

de abandono de eventuais pré-concepções da expressão ‘faturamento’, não é<br />

estranha para este Tribunal.<br />

No RE 150.755, da Relatoria do Ministro Carlos Velloso (Redator do<br />

acórdão o Min. Sepúlveda Pertence), em que se discutia a constitucionalidade da<br />

contribuição do Finsocial, tal como fixada no art. 28 da Lei n. 7.738, de 1989” —<br />

e esse é um ponto importante, a meu ver, para a discussão —, “admitiu-se como<br />

legítima a assimilação do conceito de receita bruta ao de faturamento”.<br />

Portanto, fez-se essa integração no plano interpretativo e legislativo.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Interpretativo da Constituição?<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sim, mas a partir da perspectiva da Lei n. 7.738.<br />

E continuo:<br />

“Nesse precedente, registra a parte final da ementa:<br />

‘8. A contribuição social questionada se insere entre as previstas no art. 195,<br />

I, CF, e sua instituição, portanto, dispensa a lei complementar: no art. 28 da Lei<br />

7.738/89, a alusão a ‘receita bruta’, como base de cálculo do tributo, para conformar-se<br />

ao art. 195, I, da Constituição, há de ser entendida segundo a definição do<br />

Decreto-Lei 2.397/87, que é equiparável à noção corrente de ‘faturamento’ das<br />

empresas de serviço.’”<br />

Apenas para rememorar, nesse caso, o Ministro Carlos Velloso declarava a<br />

inconstitucionalidade do art. 28, pelos fundamentos que já conhecemos.<br />

O art. 28 da Lei n. 7.738 preceituava:<br />

“Art. 28. Observado o disposto no art. 195, § 6º, da Constituição, as empresas<br />

públicas ou privadas, que realizam exclusivamente venda de serviços,” — essa era<br />

a controvérsia então agitada — “calcularão a contribuição para o Finsocial à<br />

alíquota de meio por cento sobre a receita bruta.”<br />

Esse dispositivo foi considerado constitucional.<br />

Prossigo:<br />

“Especificamente sobre a alegação de que o tributo previsto no art. 28 da Lei<br />

n. 7.738 não se enquadraria na definição constitucional de faturamento, assentou<br />

o Ministro Sepúlveda Pertence:<br />

‘(...) 43. Convenci-me, porém, de que a substancial distinção pretendida<br />

entre receita bruta e faturamento — cuja procedência teórica não questiono’ —<br />

(a questão é apenas da interpretação no âmbito da Constituição. Sobre a<br />

relevância da distinção, no plano acadêmico, no plano da dogmática jurídica,<br />

podemos ter um outro debate) —, ‘não encontra respaldo atual no quadro do<br />

direito positivo pertinente à espécie, ao menos em termos tão inequívocos que<br />

induzisse, sem alternativa, à inconstitucionalidade da lei.<br />

44. Baixada para adaptar a legislação do imposto sobre a renda à Lei<br />

das Sociedades por Ações, dispusera o Decreto-Lei 1.598, de 26-12-77:


828<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

‘Art. 12. A receita bruta das vendas e serviços compreende o<br />

produto da venda de bens nas operações de conta própria e o preço dos<br />

serviços prestados.<br />

§ 1º A receita líquida de vendas e serviços será a receita bruta<br />

diminuída das vendas canceladas, dos descontos concedidos incondicionalmente<br />

e dos impostos incidente sobre vendas’.<br />

45. Sucede que, antes da Constituição, precisamente para a determinação<br />

da base de cálculo do Finsocial, o Decreto-Lei 2.397, 21-12-87, já<br />

restringira, para esse efeito, o conceito de receita bruta a parâmetros mais<br />

limitados que o de receita líquida de vendas e serviços, do Decreto-Lei<br />

1.598/77, de modo, na verdade, a fazer artificioso, desde então, distingui-lo<br />

da noção corrente de faturamento.’<br />

(...)”<br />

Vejam os Senhores: tudo isso revela que esses conceitos têm-se prestado, ao longo<br />

de todo esse debate, para uma conformação, dado o seu perfil institucional.<br />

Continuo o voto:<br />

“Em outro precedente, firmado no RE 150.764, também da Relatoria do<br />

Ministro Sepúlveda Pertence, após o voto do Relator, que reiterava os fundamentos<br />

adotados no RE 150.755, assentou o Ministro Ilmar Galvão, verbis:<br />

‘(...) o Decreto-Lei 2.397/87, que alterou o Decreto-Lei 1.940/82, em seu<br />

art. 22, já havia conceituado a receita bruta do art. 1º, § 1º, do mencionado<br />

diploma legal como a ‘receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias<br />

e serviços’, conceito esse que coincide com o de faturamento (...)’”<br />

Portanto, diferentemente do que sustentado aqui pelo Ministro Carlos Britto, a<br />

jurisprudência tradicional do Tribunal não vislumbrava essa antinomia entre os<br />

conceitos.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Fiel, Ministro Gilmar Mendes, ao art. 2º da Lei<br />

Complementar 70.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sim, mas estou a dizer que é dentro da evolução que<br />

se fez.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Não, veja Vossa Excelência: o art. 2º da Lei<br />

Complementar 70 é expresso: “incidirá sobre o faturamento mensal”.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Sempre presente o faturamento.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Continua o artigo: “assim considerado”. Como?<br />

Qual o conceito da Lei Complementar 70?<br />

Ela dispõe:<br />

“Art. 2º Assim considerado a receita bruta das vendas de mercadorias, de<br />

mercadorias e serviços e de serviço de qualquer natureza.”<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Desde a legislação pré-constitucional do<br />

Finsocial, não foi arbitrária essa assimilação.


R.T.J. — <strong>199</strong> 829<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Sim, perfeito. Toda essa argumentação me parece<br />

perfeita, porque conforme o conceito de faturamento inscrito no art. 2º da Lei<br />

Complementar 70.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Até antes, Ministro Carlos Velloso, porque o<br />

Ministro Sepúlveda Pertence remete aos decretos-leis pré-constitucionais.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Se o Ministro Gilmar Mendes me permite: esse<br />

apartamento que faço entre faturamento e receita bruta, eu enxergo em vários dispositivos<br />

da Constituição Federal até hoje, com a redação atual. Vou-me permitir ler um.<br />

O art. 149, § 2º, inciso III, estabelece:<br />

“Art. 149. (...)<br />

§ 2º (...)<br />

III - poderão ter alíquotas:<br />

a) ad valorem, tendo por base o faturamento, a receita bruta ou o valor da<br />

operação (...)”<br />

Então, entendo que a Constituição brasileira separou radicalmente os dois<br />

institutos, da receita bruta e do faturamento, até hoje.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: A redação da Emenda Constitucional n. 20?<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Atual.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sim, mas não há necessidade da definição.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Não, é para mostrar que, desde a origem, havia essa<br />

preocupação de separar as coisas. Por isso, digo que o que a Constituição separou, a lei<br />

não podia unir.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Na verdade, a lei já havia unido, e o conceito não<br />

era separado, desde sempre. Aqui, na verdade, o que se está a pinçar são alternativas para<br />

a possibilidade de tributação. O que se quer é evitar esse embate permanente da<br />

discussão sobre a constitucionalidade, ou não, das leis que venham porventura a ser<br />

editadas.<br />

Mas transcrevi, então, o voto do Ministro Ilmar Galvão neste precedente, RE<br />

150.764, em que ele dizia:<br />

“(...) conceito esse que coincide com o de faturamento, que, para os efeitos<br />

fiscais, foi sempre entendido como o produto de todas as vendas, e não apenas das<br />

vendas acompanhadas de fatura (...)”.<br />

Foi preciso, portanto, superar, do contrário, chegaríamos ao absurdo de identificar<br />

atividades que não teriam faturamento, portanto estariam isentas ou imunes a essa<br />

contribuição, embora pujantes do ponto de vista financeiro. E, vejam, faltando com o<br />

dever de solidariedade social no contexto da seguridade.<br />

Dizia o Ministro Ilmar Galvão:<br />

“(...) formalidade exigida tão-somente nas vendas mercantis a prazo (art. 1º<br />

da Lei n. 187/36). A Lei n. 7.689/88, pois, ao converter em contribuição social,<br />

para os fins do art. 195, I, da Constituição, o Finsocial até então calculado sobre a


830<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

receita bruta das vendas de mercadorias e serviços, nada mais fez do que instituir<br />

contribuição social sobre o faturamento. (...)”<br />

E segue o voto:<br />

“Resta evidente, pois, em tais precedentes, o entendimento de que o<br />

legislador, ao disciplinar o art. 195, I, não está adstrito àquele conceito de<br />

faturamento adotado nas relações comerciais”.<br />

Pode-se dizer que esses precedentes não são aplicáveis à espécie, haja vista que o<br />

Supremo Tribunal Federal teria estabelecido sinonímia entre faturamento e receita bruta<br />

quando tais expressões designavam receitas oriundas de vendas de bens e/ou serviços.<br />

“Tal leitura — a meu ver — não é correta. A Corte, ao admitir tal equiparação,<br />

em verdade assentou a legitimidade constitucional da atuação do legislador<br />

ordinário para densificar uma norma constitucional aberta, não estabelecendo a<br />

vinculação pretendida pelo recorrente em relação às operações de venda.<br />

Ao contrário do que pretende o recorrente, a Corte rejeitou qualquer tentativa<br />

de constitucionalizar eventuais pré-concepções doutrinárias não incorporadas<br />

expressamente no texto constitucional”.<br />

E esse é o risco que se tem, o de introduzir, ou passar a interpretar o texto<br />

constitucional secundum legem ou secundum determinada lei. Não me parece que isso<br />

seja correto, e o risco, aqui, não é apenas para este caso — volto a ressaltar —, mas para<br />

outros casos importantes diante de um texto constitucional tão analítico como o nosso.<br />

Segue, ainda, o voto:<br />

“O <strong>STF</strong> jamais disse que havia um específico conceito constitucional de<br />

faturamento. Ao contrário, reconheceu que ao legislador caberia fixar tal<br />

conceito. E também não disse que eventuais conceitos vinculados a operações de<br />

venda seriam os únicos possíveis.<br />

“Não fosse assim” — e me parece que esse é o paradoxo em que estamos<br />

envolvidos —, “teríamos que admitir que a composição legislativa de <strong>199</strong>1<br />

possuía um poder extraordinário” — aquela que fez a Lei Complementar n. 70.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Ministro Gilmar Mendes, permita-me? Eu não<br />

empresto tal relevância a essa lei complementar.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Neste ponto, nem lei complementar é.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Exatamente. Sob o ponto de vista material, não.<br />

É lei complementar sob o ponto de vista formal. O certo é que esse art. 2º institui<br />

as fontes que poderiam ser utilizadas como hipótese de incidência dessa contribuição.<br />

Sobreveio outra lei e instituiu outras fontes; extravasou do art. 2º da Lei Complementar<br />

70.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Mas, então, Vossa Excelência está<br />

entendendo que o conceito de faturamento é restrito?<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Não, Ministro Nelson Jobim; fonte. Refiro-me às<br />

bases de cálculo do art. 2º da LC 70.


R.T.J. — <strong>199</strong> 831<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Mas, se se trata de um conceito tão aberto<br />

assim, um conceito usado para definir um tributo, que, ao contrário de novas fontes,<br />

pode ser instituído por lei ordinária, a Constituição de nada vale.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Não. Aí vamos declarar a inconstitucionalidade<br />

não por conta da referência à Lei Complementar n. 70, mas por eventual excesso legislativo.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: A lei institui as hipóteses de incidência, as fontes.<br />

Lei posterior criou novas fontes ao estabelecer a totalidade das receitas auferidas pela<br />

pessoa jurídica.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Alargou a base de cálculo, as hipóteses de incidência.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Sim, além de qualquer conceito concebível de<br />

faturamento.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Alargou as hipóteses de incidência. Isso poderia ser<br />

feito? Claro que poderia, mediante lei complementar, porque, aí, teria de ser observada<br />

a técnica da competência residual da União, art. 154, inciso I, da Constituição Federal,<br />

ex vi do que estabelece o § 4º do art. 195 da mesma Carta. É só isso.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Ministro Carlos Velloso, no caso em que Vossa<br />

Excelência restou vencido, no precedente já multicitado, o RE 150.755, de Pernambuco,<br />

Vossa Excelência sustentava a inconstitucionalidade daquele art. 28, já aqui citado —<br />

e que, de fato, ampliava esse conceito.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Ampliava, não, mantinha o conceito da<br />

legislação infraconstitucional. Eu não fui buscar, imaginar um conceito de faturamento<br />

que tornasse constitucional a lei. Eu apenas mostrei que o conceito de faturamento<br />

da legislação pré-constitucional do Finsocial já assimilava receita bruta a<br />

faturamento.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sim, mas o que isso significa? Que não é um<br />

conceito constitucional tão absoluto assim, que não comporte a atualização.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Não estou dizendo que seja tão absoluto: mas<br />

há um mínimo a respeitar ou de nada valerá a regra constitucional.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Não, Ministro Gilmar Mendes, comporta sim. Mas,<br />

no caso, mediante lei complementar.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence disse “não aberto<br />

assim”.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Agora, incluir nele receitas de qualquer ordem<br />

agride qualquer noção de faturamento.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Vamos chegar lá.<br />

Interessa, portanto, ressaltar, Sr. Presidente — e esse é um paradoxo em que estamos<br />

metidos —, que, a adotar-se a tese dessa interpretação, nós chegaríamos, de fato, à idéia de<br />

que essa legislatura que aprovou a Lei Complementar n. 70, de <strong>199</strong>1, seria uma de toda<br />

diferente, porque esse conceito, na verdade, integraria o conceito constitucional —<br />

parece-me que isso é inadmissível.


832<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

“Na tarefa de concretizar normas constitucionais abertas, a vinculação de<br />

determinados conteúdos ao texto constitucional é legítima. Todavia, pretender<br />

eternizar um específico conteúdo em detrimento de todos os outros sentidos<br />

compatíveis com uma norma aberta constitui, isto sim, uma violação à Constituição.<br />

Representaria, ainda, significativo prejuízo à força normativa da Constituição,<br />

haja vista as necessidades de atualização e adaptação da Carta Política à<br />

realidade”, tal como já foi destacado, aqui, pelo Ministro Eros Grau.<br />

Tal perspectiva é sobretudo antidemocrática, uma vez que impõe às gerações<br />

futuras uma decisão majoritária adotada em uma circunstância específica, que<br />

pode não representar a melhor via de concretização do texto constitucional.”<br />

Gostaria de remarcar essa posição aqui.<br />

“Rejeito, portanto, qualquer tentativa de incorporar ao Texto Constitucional,<br />

de modo definitivo ou exclusivo, aquela definição de faturamento adotada em<br />

<strong>199</strong>1, ou de qualquer conceito doutrinário ou legislativo de faturamento.<br />

Cumpre, tão-somente, verificar se o conceito de faturamento contido na lei<br />

ordinária impugnada é compatível com o texto do art. 195, I, da Constituição, seja<br />

em sua redação original, seja na redação fixada pela Emenda n. 20.”<br />

Esse só é o ponto crucial do debate.<br />

“De fato, imediatamente após afirmar que o conceito de faturamento ‘há de<br />

ser extraído do próprio Texto Constitucional’ (g.n. — fl. 139) — na linha afirmada<br />

pelo recorrente —, invoca texto do saudoso professor Geraldo Ataliba acerca do<br />

termo faturamento, com o evidente intuito de tentar fazer crer que aquele conceito<br />

doutrinário estaria definitiva e exclusivamente incorporado na Carta.<br />

Ora, é evidente que não há uma definição constitucional de faturamento que<br />

explicite todo o alcance desse vocábulo.”<br />

Já vimos pela própria controvérsia que se lavrou especialmente no RE n. 150.755.<br />

“E tampouco se pode afirmar que o único conceito legítimo de faturamento<br />

seria aquele adotado por Geraldo Ataliba, por mais brilhante que seja no âmbito<br />

doutrinário.<br />

Em verdade, tal como o próprio complexo normativo constitucional relativo<br />

à seguridade social, observa-se que o critério para tributação denominado<br />

faturamento, contido no art. 195, assume — esse é um ponto importante, veja, Sr.<br />

Presidente, e insisto quase que já ameaçando tornar inconveniente, mas já não<br />

estou mais a discutir essa questão específica, mas um critério de interpretação<br />

que envolva esses conceitos de caráter institucional — feição nitidamente<br />

institucional. E isso não é novidade no Direito Constitucional, havendo uma<br />

pletora de normas constitucionais garantidoras de realidades institucionais que<br />

não encontram uma definição de seus limites no texto da Constituição (e.g.<br />

propriedade, liberdade, família, consumidor, renda, etc.). Tal fenômeno também<br />

ocorre no âmbito das normas constitucionais tributárias, bastando lembrar dos<br />

conceitos de renda, confisco, grande fortuna, etc.


R.T.J. — <strong>199</strong> 833<br />

Observo, ainda, que a própria seguridade social, em que se insere o parâmetro<br />

constitucional de controle do caso em exame, possui feição eminentemente<br />

institucional. E configura-se como tal antes e após a EC n. 20/98.<br />

Afigura-se pertinente, nesse ponto, algumas palavras acerca dessas instituições<br />

que encontram uma previsão no texto constitucional. Conforme lição de J. J.<br />

Gomes Canotilho:<br />

“As chamadas garantias institucionais (Einrichtungsgarantien) compreendiam<br />

as garantias jurídico-públicas (institutionnelle Garantien) e as<br />

garantias jurídico-privadas (Institutsgarantie). Embora muitas vezes estejam<br />

consagradas e protegidas pelas leis constitucionais, elas não seriam verdadeiros<br />

direitos atribuídos directamente a uma pessoa; as instituições, como<br />

tais, têm um sujeito e um objecto diferente dos direitos dos cidadãos. Assim,<br />

a maternidade, a família, a administração autônoma, a imprensa livre, o<br />

funcionalismo público, a autonomia acadêmica, são instituições protegidas<br />

directamente como realidades sociais objectivas e só, indirectamente, se<br />

expandem para a proteção dos direitos individuais.” (Direito Constitucional<br />

e teoria da Constituição, 5. ed., Coimbra, Portugal, Ed. Livraria Almedina,<br />

p. 395).<br />

Ainda, sobre o tema, diz Canotilho:<br />

“As garantias institucionais, constitucionalmente protegidas, visam não<br />

tanto ‘firmar’ ‘manter’ ou ‘conservar’ certas ‘instituições naturais’, mas impedir<br />

a sua submissão à completa discricionariedade dos órgãos estaduais, proteger<br />

a instituição e defender o cidadão contra ingerências desproporcionadas ou<br />

coactivas.<br />

Todavia, a partir do pensamento institucionalístico, inverte-se, por<br />

vezes, o sentido destas garantias. As instituições são consideradas com<br />

uma existência autônoma a se, pré-existente à constituição, o que leva<br />

pressuposta uma idéia conservadora da instituição, conducente, em último<br />

termo, ao sacrifício dos próprios direitos individuais perante as exigências<br />

da instituição como tal. (...) Aqui apenas se volta a acentuar que as garantias<br />

institucionais contribuem, em primeiro lugar, para a efectividade óptima<br />

dos direitos fundamentais (garantias institucionais como meio) e, só depois,<br />

se deve transitar para a fixação e estabilização de entes institucionais.<br />

Cfr. Häberle, Die Wesensgehaltgarantie des art. 19 Abs. 2º Grundgesetz, 2ª<br />

ed., Karlshure, 1972, p. 70. Como informa P. Saladin, Grundrechte im<br />

Wandel, Bern, 1970, p. 296, o movimento institucionalístico actual encontra<br />

paralelo na teologia protestante que considera a ‘instituição’ como um<br />

medium entre o direito natural e o direito positivo. Sobre a noção (noções)<br />

de instituição cfr., por último, Baptista Machado, Introdução ao Direito,<br />

pp. 14 e ss; J.M. Bano Leon, ‘La distinctión entre derecho fundamental y<br />

garantia institucional em la Constitución española’, REDC, 24 (1988), pp.<br />

155 e ss.; Márcio Aranha, Interpretação Constitucional e as Garantias<br />

Institucionais dos Direitos Fundamentais, São Paulo, <strong>199</strong>9, pp. 131 e ss.”<br />

(Op. cit., p. 1155).


834<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

E concluo, Sr. Presidente:<br />

“A seguridade social, autêntica realidade institucional disciplinada constitucionalmente<br />

entre nós, obriga o legislador a promulgar um complexo<br />

normativo que assegure sua existência, funcionalidade e utilidade pública e<br />

privada.<br />

A fonte de custeio da seguridade social, prevista no art. 195, I, da Constituição,<br />

que serve de parâmetro à alegação de inconstitucionalidade ora em exame,<br />

por certo não encontra no texto da Carta disciplina suficiente ou exaustiva. Ao<br />

contrário, assume feição típica das instituições. Não há, ali, um conceito estático<br />

de folha de salários, de rendimentos, de receita, de faturamento ou de lucro.”<br />

Já vimos esse debate com relação à folha de salários.<br />

“Como realidade institucional, aquela fonte de custeio assume feição<br />

dinâmica, em que a definição de seu conteúdo está aberta a múltiplas concretizações.”<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Ministro Gilmar Mendes, Vossa Excelência me<br />

permite? Se isso fosse aberto, essa enumeração seria absolutamente desnecessária.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Não. O próprio conceito de propriedade.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não precisa que o constituinte diga qual seja; pode<br />

ser qualquer um, uma competência tributária ilimitada.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Vou dar-lhe um exemplo banal, no Direito<br />

Constitucional, nas garantias individuais: direito de propriedade. Hoje se entende que<br />

esse conceito abrange não só a tradicional propriedade imobiliária — isso é comum,<br />

hoje, no Direito Comparado, doutrina assente na Corte Constitucional Alemã — mas<br />

também os seguros, os pecúlios, todas essas questões que nós diríamos não ter nada a ver<br />

com a propriedade.<br />

O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Os intangíveis.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sim, as pessoas, por conta do modus vivendi<br />

diferente, hoje, não investem mais em imóveis, mas cuidam de ter um seguro de vida, um<br />

modelo de pecúlio. Isso está envolvido hoje na proteção do art. 14. Veja a evolução, e<br />

nós também teríamos que evoluir nesse sentido.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Com um sentido de proteção, até admito esse<br />

alargamento, mas no sentido de restrição?<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Pode haver uma mudança tal, dependendo do<br />

conceito fixo que se adote, que se esvazie e que se imponha a necessidade da tributação<br />

e do alargamento.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Por isso é que veio a emenda.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Não, a emenda veio apenas tornar expletivo isso, e<br />

vou concluir.<br />

“As disposições legais a ela relativas têm, portanto, inconfundível caráter<br />

concretizador e interpretativo. E isso obviamente não significa a admissão de um


R.T.J. — <strong>199</strong> 835<br />

poder legislativo ilimitado. Nesse processo de concretização ou realização, por<br />

certo serão admitidas tão-somente normas que não desbordem os múltiplos significados<br />

admitidos pelas normas constitucionais concretizadas. Na perspectiva de<br />

proteção a direitos individuais, tais como as prerrogativas constitucionais dos<br />

contribuintes, deverá ser observado especialmente o princípio da proporcionalidade,<br />

que exige que as restrições ou ampliações legais sejam adequadas, necessárias<br />

e proporcionais.<br />

Enfim, a faculdade confiada ao legislador de regular o complexo institucional<br />

da seguridade, assim como suas fontes de custeio, obriga-o a compatibilizar o dever<br />

de contribuir do indivíduo com o interesse da comunidade. Essa necessidade de<br />

ponderação entre o interesse individual e o interesse da comunidade é, todavia,<br />

comum a todos os direitos fundamentais, não sendo uma especificidade da<br />

seguridade social.<br />

Neste passo, reconhece-se que a seguridade social, instituição que entre nós<br />

encontra disciplina constitucional, está submetida a um permanente e intenso<br />

processo de concretização.<br />

O fenômeno é o mesmo quando se discute especificamente a fonte de custeio<br />

da seguridade prevista no art. 195, I, da Constituição, ora concretizada por meio da<br />

Lei n. 9.718, de <strong>199</strong>8.<br />

Fixados tais pressupostos, não se afigura admissível qualquer leitura que<br />

pretenda incorporar ao vocábulo faturamento — com as vênias de estilo —,<br />

contido no inciso I do art. 195 da Constituição, sentido único e imutável. Tal<br />

perspectiva implicaria negar a realidade institucional do parâmetro definidor<br />

daquela fonte de custeio da seguridade social.<br />

Afasto, portanto, qualquer leitura da expressão faturamento que implique<br />

negar ao legislador ordinário o poder de conformação do vocábulo ‘faturamento’,<br />

contido no inciso I do art. 195. Não estou a dizer, obviamente, que tal poder<br />

legislativo é ilimitado, pois é certo que deverá respeitar todas as demais normas da<br />

Constituição, assim como não poderá ultrapassar os limites do marco fixado no<br />

referido art. 195.<br />

Feitas essas considerações, cumpre asseverar que, ao contrário do que se<br />

sustenta, a Emenda Constitucional n. 20 não restaurou a constitucionalidade do §<br />

1º do art. 3º da Lei n. 9.718, de 27 de novembro de <strong>199</strong>8.”<br />

Portanto, não considero que essa tese seja decisiva para solver a controvérsia aqui<br />

encetada.<br />

“A lei já era constitucional sob o regime do texto original do art. 195. A<br />

referência a faturamento, contida no texto original da Constituição, já admitia<br />

acepções diferentes daquela pretendida pelo recorrente, tal como a adotada pela<br />

Lei n. 9.718, de <strong>199</strong>8.<br />

Repita-se: sob a redação original da Constituição, e ainda no regime da Lei<br />

Complementar n. 70 — declarada constitucional por esta Corte —, o conceito<br />

comercialista de faturamento já havia sido abandonado.


836<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

A Emenda n. 20, nesse ponto, assumiu tão-somente um caráter expletivo. No<br />

texto original da Constituição, previa-se que a contribuição incidiria sobre o<br />

faturamento. Não havia referência à incidência sobre a receita (‘art. 195, I: dos<br />

empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e os lucros’).<br />

No texto atual, na nova alínea b do inciso I do art. 195, passa a ser prevista a<br />

incidência sobre ‘a receita ou o faturamento’.<br />

A nova referência à receita tem embasado argumento no sentido de que, na<br />

redação original, não se admitia incluir, sob o manto da expressão faturamento, os<br />

ingressos equiparáveis ao conceito de receita.<br />

Fosse correto o argumento, de plano deveria se concluir que a interpretação<br />

adotada pelo Tribunal quanto à Lei Complementar n. 70, na ADC n. 1, teria sido<br />

equivocada, cabendo lembrar que aquela Lei estabeleceu a incidência da contribuição<br />

sobre ‘o faturamento mensal, assim considerado a receita bruta das vendas<br />

de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviço de qualquer natureza’ (art.<br />

2º da LC 70 — g.n.).<br />

Mas o argumento não impressiona. Não é incomum, no âmbito das normas<br />

tributárias, a tipificação de condutas de modo detalhado e, às vezes, redundante. O<br />

propósito é claro: evitar as controvérsias quanto à subsunção ou não de determinadas<br />

condutas à norma.”<br />

E o exemplo é essa discussão que estamos a travar. Desde <strong>199</strong>8, arrastam-se essas<br />

controvérsias a propósito da constitucionalidade ou não da norma.<br />

“Remanesce, sim, no texto do art. 195, I, da Constituição, uma definição<br />

ampla de fonte de custeio, a permitir, como originalmente permitia, a disciplina<br />

ora impugnada.<br />

Conclusões<br />

Em conclusão, rejeito a tese formulada neste recurso extraordinário que, em<br />

síntese, pretende incorporar ao texto constitucional definições meramente legais<br />

ou doutrinárias de faturamento. Tal tese importaria em interpretação da Constituição<br />

conforme a lei, o que é um equívoco.<br />

Não há uma única definição ou uma única delimitação possível da expressão<br />

‘faturamento’ que possua status constitucional. Ao contrário, tal como<br />

ocorre com outras realidades institucionais, nesse ponto a Constituição conferiu<br />

ao legislador amplo poder de conformação. E a conformação positivada no § 1º<br />

do art. 3º da Lei n. 9.718, de 27 de novembro de <strong>199</strong>8, por certo não ofende o art.<br />

195, I, da Constituição, seja em sua redação original, seja na redação fixada pela<br />

EC 20.<br />

Lembre-se, mais uma vez, que esse entendimento segue e reforça a linha já<br />

traçada por esta Corte nos precedentes citados, no sentido de que, sob o manto do<br />

art. 195, I, da Constituição, são admissíveis definições de faturamento que não<br />

correspondam de modo ortodoxo àquele conceito adotado no âmbito do direito<br />

comercial.<br />

Voto, portanto, pelo não-provimento do recurso.”


R.T.J. — <strong>199</strong> 837<br />

EXTRATO DA ATA<br />

RE 357.950/RS — Relator: Ministro Marco Aurélio. Recorrente: Companhia<br />

Riograndense de Participações – CRP (Advogados: Larissa Diefenbach Leuck de Nardi<br />

e Rodrigo Leporace Farrete e outro). Recorrida: União (Advogado: PFN – Ricardo Py<br />

Gomes da Silveira).<br />

Decisão: Renovado o pedido de vista do Ministro Eros Grau, justificadamente, nos<br />

termos do § 1º do artigo 1º da Resolução n. 278, de 15 de dezembro de 2003. Presidência<br />

do Ministro Nelson Jobim. Plenário, 15-6-2005.<br />

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, conheceu do recurso extraordinário e, por<br />

maioria, deu-lhe provimento, em parte, para declarar a inconstitucionalidade do § 1º do<br />

artigo 3º da Lei n. 9.718, de 27 de novembro de <strong>199</strong>8, vencidos, parcialmente, os Ministros<br />

Cezar Peluso e Celso de Mello, que declaravam também a inconstitucionalidade do artigo<br />

8º e, ainda, os Ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes e Presidente,<br />

Ministro Nelson Jobim, que negavam provimento ao recurso. Ausente, justificadamente, a<br />

Ministra Ellen Gracie.<br />

Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,<br />

Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr.<br />

Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.<br />

Brasília, 9 de novembro de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 415.932 — PR<br />

Relator: O Sr. Ministro Marco Aurélio<br />

Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence<br />

Recorrente: Instituto Nacional do Seguro Social – INSS — Recorridos: Azoel dos<br />

Santos e outro<br />

I - Recurso extraordinário: alínea b: devolução de toda a questão de<br />

constitucionalidade da lei, sem limitação aos pontos aventados na decisão<br />

recorrida. Precedente (RE 298.694, Pleno, 6-8-2003, Pertence, DJ de 23-<br />

4-2004).<br />

II - Controle incidente de inconstitucionalidade e o papel do<br />

Supremo Tribunal Federal.<br />

Ainda que não seja essencial à solução do caso concreto, não pode o<br />

Tribunal — dado o seu papel de “guarda da Constituição” — furtar-se a<br />

enfrentar o problema de constitucionalidade suscitado incidentemente<br />

(v.g. SE 5.206-AgR; MS 20.505).


838<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

III - Medida provisória: requisitos de relevância e urgência:<br />

questão relativa à execução mediante precatório, disciplinada pelo<br />

artigo 100 e parágrafos da Constituição: caracterização de situação<br />

relevante de urgência legislativa.<br />

IV - Fazenda Pública: execução não embargada: honorários de<br />

advogado: constitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal, com<br />

interpretação conforme ao art. 1º-D da Lei 9.494/97, na redação que lhe foi<br />

dada pela MP 2.180-35/2001, de modo a reduzir-lhe a aplicação à hipótese<br />

de execução por quantia certa contra a Fazenda Pública (Código de<br />

Processo Civil, art. 730), excluídos os casos de pagamento de obrigações<br />

definidos em lei como de pequeno valor (CF/88, art. 100, § 3º).<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence,<br />

na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos,<br />

conhecer do recurso e declarar, incidentemente, a constitucionalidade da Medida<br />

Provisória n. 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, com interpretação conforme de modo a<br />

reduzir-lhe a aplicação à hipótese de execução, por quantia certa, contra a Fazenda<br />

Pública (Código de Processo Civil, art. 730), excluídos os casos de pagamentos de<br />

obrigações definidos em lei como de pequeno valor, objeto do § 3º do artigo 100 da<br />

Constituição. Em conseqüência, nega-se provimento ao recurso.<br />

Brasília, 29 de setembro de 2004 — Sepúlveda Pertence, Relator para o acórdão.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: O Tribunal Regional Federal da 4ª Região acolheu<br />

parcialmente pedido formulado em agravo, ante fundamentos assim sintetizados<br />

(folha 35):<br />

Agravo de instrumento. Execução não embargada. Honorários<br />

advocatícios. Cabimento. MP 2.180-35/01, art. 1º-D. Invalidade declarada<br />

pela corte especial deste E. Tribunal.<br />

1. A questão acerca da fixação de verba honorária em execução não<br />

embargada encontra-se superada no âmbito deste Tribunal, porquanto, em sessão<br />

de 22-5-2003, sobreveio pronunciamento da Corte Especial declarando a<br />

invalidade do art. 1º-D da Lei 9.494/97, na redação que lhe deu a Medida<br />

Provisória 2.180-35/01 (IAIAI 2002.04.01.018302-1/RS).<br />

2. Agravo de instrumento parcialmente provido.<br />

O Instituto Nacional do Seguro Social, no recurso extraordinário de folhas 37 a<br />

44, interposto com alegada base na alínea b do permissivo constitucional, defende a<br />

harmonia do artigo 1º-D da Lei n. 9.494/97, acrescentado pela Medida Provisória n.<br />

2.180-35, com a Carta da República. Ressalta que essa Medida Provisória, após a<br />

edição da Emenda Constitucional n. 32, permanece em vigor, tendo sido aceita a


R.T.J. — <strong>199</strong> 839<br />

redação do diploma, porque anterior a 11 de setembro de 2001, circunstância que<br />

acarretara a integral constitucionalização do ato normativo. Assim, o exame de eventual<br />

inconstitucionalidade da medida provisória estaria a depender do reconhecimento<br />

do mesmo vício em relação à citada Emenda. Afirma que a verba honorária, apesar de<br />

disciplinada no Código de Processo Civil, tem natureza material, por envolver o<br />

direito subjetivo do advogado à percepção da contrapartida pelos serviços prestados,<br />

não havendo óbice a que seja tratada por meio de medida provisória. A violência ao<br />

artigo 62, § 1º, inciso I, alínea b, da Constituição Federal não se configurara, mostrandose<br />

válido o referido artigo 1º-D. Quanto à relevância e à urgência da matéria, argumenta<br />

fugirem tais requisitos da alçada do controle jurisdicional, diante do fato de que “os<br />

pressupostos para a edição de qualquer medida provisória decorrem, em princípio, do<br />

juízo discricionário de oportunidade e de valor do Presidente da República”. Salienta<br />

que o preceito questionado “veio afastar uma condenação injusta da Fazenda Pública,<br />

uma vez que está sujeita ao regime dos precatórios, salvo nos casos de pequeno valor,<br />

consoante mandamento previsto no art. 100 da Carta Magna”, não sendo “razoável<br />

impor à Fazenda Pública o pagamento dos honorários advocatícios, rubrica esta<br />

baseada nos princípios da sucumbência e causalidade, quando não há no caderno<br />

processual qualquer resquício de contrariedade à pretensão inserta na exordial executória”<br />

(folhas 42 e 43). Registra que a norma também visa à proteção do patrimônio<br />

público contra condenações injustificáveis. Aduz que, tendo a Lei n. 10.099/2000<br />

definido as obrigações de pequeno valor e considerando que as condenações em<br />

honorários, na grande maioria, não ultrapassam o patamar estabelecido, “salta aos<br />

olhos a urgência em fazer introduzir no ordenamento jurídico brasileiro a vedação de<br />

condenar a Fazenda Pública ao pagamento dos honorários advocatícios nos casos em<br />

que a execução promovida, com fundamento em título judicial, não é embargada”<br />

(folha 43).<br />

Os recorridos não apresentaram contra-razões (certidão de folha 65-verso).<br />

O procedimento atinente ao juízo primeiro de admissibilidade encontra-se à<br />

folha 66.<br />

A Procuradoria-Geral da República, na peça de folha 75, reporta-se ao parecer<br />

lançado no Recurso Extraordinário n. 401.575/PR, no qual em discussão fazia-se a<br />

observância, no tempo, da Emenda Constitucional n. 32/2001, havendo o Ministério<br />

Público Federal consignado a impossibilidade de agasalhar tese no sentido de admitir a<br />

inconstitucionalidade formal superveniente. Nestes autos, preconiza o provimento do<br />

recurso.<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Na apresentação deste recurso, foram<br />

observados os pressupostos gerais de recorribilidade. A peça, subscrita por procuradora<br />

federal, restou protocolada no prazo dobrado a que tem jus o recorrente. A publicação do<br />

acórdão deu-se no Diário de 1º de outubro de 2003, quarta-feira (folha 36), ocorrendo a<br />

manifestação do inconformismo em 20 imediato, segunda-feira (folha 37).


840<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

No caso deste processo, tem-se a interposição do recurso pela alínea b do inciso III<br />

do artigo 102 da Constituição Federal, sendo certo que o Instituto providenciou a<br />

juntada, ao recurso extraordinário, do acórdão mediante o qual o Tribunal Regional<br />

Federal da 4ª Região declarou a inconstitucionalidade do artigo 1º-D da Lei n. 9.494/97,<br />

com a redação imprimida pela Medida Provisória n. 2.180-35/2001, por violar o artigo<br />

62 da Carta da República, isso no tocante aos requisitos da urgência e da relevância.<br />

Esclareço que não se faz em jogo o óbice, em si, do artigo 62, § 1º, inciso I, alínea b, do<br />

Diploma Maior. Em primeiro lugar, porquanto a Medida Provisória n. 2.180-35, nessa<br />

versão, data de 24 de agosto de 2001 e a Emenda Constitucional n. 32 é do mês imediato.<br />

Aliás, o Instituto, diante do que decidido pela Corte de origem, não procedeu à argüição<br />

do tema sob o ângulo da inconstitucionalidade formal superveniente. Cumpre, então,<br />

apreciar a matéria de fundo e definir o acerto ou desacerto do acórdão da Corte de<br />

origem, no que rechaçado o concurso dos requisitos de relevância e urgência para<br />

normatização da matéria pelo Presidente da República.<br />

O Tribunal ultimamente tem admitido adentrar o campo do exame dos citados<br />

requisitos, não os tendo, assim, no campo estritamente político, da discrição do Presidente<br />

da República. Confira-se com o que decidido nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade<br />

n. 1.647-4, 1.753-5, 2.150-8 e 2.213-0.<br />

O texto constitucional revela a legitimidade da edição de medidas provisórias “em<br />

caso de relevância e urgência”. O Supremo Tribunal Federal é guarda da Carta da<br />

República como um grande todo, razão pela qual descabe assentar a impossibilidade de<br />

proceder à análise dos citados requisitos. Pois bem, o Código de Processo Civil data de<br />

1973 e disciplina a execução contra a Fazenda Pública — artigos 730 e seguintes.<br />

Sempre esteve presente a responsabilidade do executado, nessa verdadeira ação que é a<br />

de execução forçada, pelos honorários advocatícios. É o quanto se mostra suficiente<br />

para dizer-se que não se configurava excepcionalidade maior a contrapor-se ao princípio<br />

da separação dos Poderes. A Medida Provisória n. 2.180-35, ao acrescentar dispositivo<br />

à Lei n. 9.494/97, prevendo o não-cabimento de atribuir os ônus concernentes aos<br />

honorários advocatícios à Fazenda Pública nas execuções não embargadas, fez-se ao<br />

mundo jurídico em conflito com a premissa do artigo 62 da Lei Máxima, conforme<br />

salientado no parecer do Ministério Público Federal transcrito no acórdão relativo ao<br />

incidente de argüição de inconstitucionalidade julgado pela Corte de origem. O próprio<br />

Executivo, mediante decreto, veio a balizar a apreciação, pela Presidência da República,<br />

de projetos de medidas provisórias e aí cogitou, em harmonia com o texto constitucional,<br />

de estado de necessidade legislativo decorrente de circunstância fática ou situação<br />

jurídica de difícil previsão — Decreto n. 2.954, de 29 de janeiro de <strong>199</strong>9, publicado no<br />

Diário de 24 de fevereiro de <strong>199</strong>9, artigo 32. A seguir, em 30 de maio de 2000, foi<br />

editado o Decreto n. 3.495, elucidando-se a “exigência ou indispensabilidade de tomada<br />

de providência de índole legislativa com efeito imediato, sob pena de se verificarem<br />

prejuízos de ordem administrativa, econômica, social ou de segurança pública”, consignando-se,<br />

pedagogicamente, que não seriam disciplinadas por medidas provisórias<br />

matérias que pudessem ser aprovadas dentro dos prazos estabelecidos relativamente ao<br />

procedimento legislativo de urgência fixado na Carta da República. O Decreto n. 4.176,<br />

de 28 de março de 2002, não discrepou dessa normatização, estando, portanto, em<br />

consonância com o artigo 62. Então, há de se concluir pelo conhecimento do recurso e


R.T.J. — <strong>199</strong> 841<br />

pelo desprovimento, declarando-se a inconstitucionalidade do artigo 1º-D da Lei n.<br />

9.494/97, considerada a redação dada pela Medida Provisória n. 2.180-35/2001, ante o<br />

conflito desta última com o artigo 62 da Constituição Federal. É como voto na espécie.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sr. Presidente, estou em frontal discordância com<br />

o voto de Sua Excelência por fundamentos claros.<br />

A rigor, entendo que o Tribunal pode declarar e avaliar os casos de inconstitucionalidade<br />

por descumprimento, especialmente do critério da urgência, porque, em princípio,<br />

o critério da relevância está presente na legislação por razões óbvias.<br />

Neste caso específico, a matéria carece de fundamentação. E qual é a fundamentação?<br />

Foi dito da tribuna, na bela sustentação feita pela Procuradora do INSS, mas ela<br />

esqueceu de dar alguns detalhes: quantas mil execuções se fazem contra o INSS? Creio,<br />

em tramitação, hoje, na relação com a previdência social, algo em torno de 2,5 milhões<br />

de processos. É disso que estamos a falar.<br />

Ora, nesse contexto, e diante de uma nova política judicial, em que não mais se<br />

recorre, nem se apela para o ato protelatório, editou-se a medida provisória, tendo em<br />

vista defender o erário público, evitar o ganho pelo ganho; tão-somente isso. Dizer que<br />

isso não é urgente. Isso poderia ser quantificado.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Ministro, é urgente obrigar o advogado a trabalhar<br />

de graça?<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Não. Essa é outra questão, tanto que se está cumprindo<br />

essa decisão — e vou registrar esse outro aspecto — até mesmo quando se edita a<br />

súmula e não mais se recorre, porque a matéria está pacificada, graças a uma orientação<br />

que tem evitado, talvez, uma maior enxurrada de processos.<br />

Neste caso específico, a lógica a que levaria, numa teoria dos jogos, é a seguinte:<br />

vamos, então, protelar, uma vez que temos que despender com despesas de honorários, e<br />

vamos, então, evitar a satisfação do direito da parte, do cliente, aquele que, de fato, bate<br />

às portas da Justiça e a quem é devida a justiça. Estamos, aqui, a priorizar o direito do<br />

advogado.<br />

Lembro que este é o segundo caso em que o Tribunal declara a inconstitucionalidade<br />

em matéria de honorários de advogado. De três casos citados por Sua Excelência, dois<br />

deles dizem respeito a honorários de advogado. No caso, certamente é possível mostrar<br />

quanto isso custa, a cada ano, para a previdência social, quando é uma medida de<br />

aceleração, de respeito aos direitos dessas pessoas que sofrem. O fato é este: estamos a<br />

priorizar o interesse do advogado.<br />

Estou absolutamente convencido, neste caso — e nem iria a tanto —, de que o Tribunal<br />

não precisa se envolver nesse tipo, porque não estamos na linha a nem b. Convencido, ainda<br />

gostaria de pensar naquela hipótese da ação rescisória, mas daí dizer-se que ela não se<br />

aplicava aos casos já em julgamento? Poderia aplicar-se a outros casos, como o do Ministro<br />

Sepúlveda Pertence, mas, neste, em que tem aplicação imediata aos casos que se sucedem,<br />

como dizer que não tem urgência? Acho que, aqui, haveria um ônus de fundamentação<br />

significativo para o Tribunal ao dizer que, de fato, a matéria não é urgente.


842<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Estou absolutamente convencido, também — já esgrimi esses argumentos em<br />

outros casos —, de que a matéria da urgência está submetida a um critério de urgência<br />

política. E estamos a ver isso agora. Quem fez, ontem, demagogia com medida<br />

provisória, hoje, não tem mais condições de fazê-lo; quem fez populismo, ontem, com<br />

medida provisória, hoje, está desqualificado de fazê-lo, porque estamos a ver que, aqui,<br />

há uma crise de decisão. É o processo decisório político que está comprometido. Por<br />

isso, não se faz. Tanto é que não se passam as leis processuais — sabemos disso — e,<br />

nesses casos de emergência, é que se fazia.<br />

Peço vênia aos Ministros que, certamente, teriam antecedência — eu queria, na<br />

verdade, debater, mas acabei-me precipitando — para externar o meu voto no sentido do<br />

provimento do recurso e da afirmação da plena constitucionalidade da medida<br />

provisória.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Sr. Presidente, peço vênia ao meu sempre mestre<br />

Ministro Carlos Velloso para acompanhar a divergência.<br />

Não houvesse o Ministro Gilmar Mendes aberto a divergência, eu o teria feito, pois<br />

entendo haver, aí, efetivamente, uma situação de urgência e, quanto à relevância,<br />

também sigo as observações de Sua Excelência.<br />

Quero deixar registrado que estou de pleno acordo quanto à sindicabilidade desses<br />

requisitos; apenas não entendo discricionária a opção pela urgência, ou não. Para mim,<br />

não estamos diante dos tais inexistentes conceitos indeterminados. Não se trata de ato<br />

discricionário. Estamos diante de uma noção histórica e temporal, que deve ser<br />

examinada pelo Poder Judiciário. Fica muito claro que, exata e precisamente por ser a<br />

urgência uma noção e não um conceito, porque o conceito é a-histórico e atemporal, e a<br />

noção é temporal e histórica, é essa característica do momento da edição da medida<br />

provisória que marca a urgência.<br />

Com a vênia já solicitada, acompanho o voto do Ministro Gilmar Mendes.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Sr. Presidente, o Ministro Relator foi muito feliz e<br />

preciso na questão da sindicabilidade das medidas provisórias pelo Poder Judiciário.<br />

Nos termos colocados por ele quando o Executivo, no uso de sua competência<br />

constitucional, transborda, excede-se, ou, simplesmente, deixa de considerar que<br />

urgência pressupõe a irrupção de um quadro inusitado, insólito, inusual na vida<br />

nacional. A Constituição é tão rigorosa quanto a isso, que exige mais do que urgência,<br />

exige, concomitantemente, urgência e relevância. Diria que, no caso, a urgência me<br />

parece inexistir porque não é insólito, inusual, não é invulgar o INSS responder a<br />

milhares e milhares de processos na Justiça, isso é o comum, cotidiano do INSS.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Vossa Excelência me permite? O Ministro Gilmar<br />

Mendes fez referência que me deixou em dúvida se a medida provisória diz respeito a<br />

execuções fiscais ou a ações contra o INSS.


R.T.J. — <strong>199</strong> 843<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Ações contra a Fazenda.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Agora, no caso, contra o INSS.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Execuções contra a Fazenda, ela deixa de embargar.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Acho até que há uma relevância ao avesso, ao<br />

contrário. A relevância está em cumprir o Código de Processo Civil, confirmar o<br />

cabimento de honorários em execução contra a Fazenda Pública como fator de inibição,<br />

de desrespeito à legislação.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Acho que está faltando, talvez —<br />

impressionou-me muito a sustentação da ilustre Procuradora do INSS —, um ponto. Há<br />

certas execuções contra a Fazenda, para pagamento em dinheiro, que são compulsórias.<br />

Agora, há outros tipos de execuções, que não as de pagamento em dinheiro, em que não<br />

existe esse dado. Isso é que eu gostaria de ver refletido.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Essa massa de casos é exatamente isso.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Quanto a esses, não tenha dúvida.<br />

Mas não estamos discutindo só o INSS. Não, é toda a Fazenda Pública: execução de<br />

obrigações de fazer, de emitir um ato administrativo retardado pela Fazenda.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Relativos às prestações de pagamento, só isso.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Mas isso não está dito.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Mas é disso que se cuida.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Eu sei, mas não está dito na<br />

medida provisória. Creio que, pelo menos, teríamos de cogitar de interpretação<br />

conforme.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Mas é disso que se cuida, propriamente.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Não vejo porque, em termos do<br />

princípio da isonomia, numa execução que se fundamentasse na mora do Poder Público,<br />

se pudesse liberá-lo do pagamento de honorários.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: É apenas de pagamento.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Mas isso não está dito na medida<br />

provisória, salvo engano, relativa a quaisquer execuções não embargadas contra a<br />

Fazenda Pública. Ora, isso também existe quando, condenado o Estado a emitir um ato<br />

administrativo, por exemplo, a reintegrar um funcionário público, não o faz e impõe à<br />

parte, com a sua mora, ir ao processo de execução.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Aliás, nenhuma parte recorre à execução para lhe<br />

sofrer as delongas, senão quando não vê seu direito satisfeito espontaneamente.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Não nos pagamentos em dinheiro,<br />

porque aí é o sistema de precatório. A brava sustentação, a paternal sustentação do<br />

Ministro Gilmar, em paixão quase de mãe, é impressionante no que diz respeito à<br />

execução, necessariamente sujeita ao regime de precatório e, portanto, inevitavelmente<br />

condicionada ao processo de execução.


844<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: É a responsabilidade pelos cofres públicos.<br />

Quando falamos de dois milhões, acho que só em execuções temos mais de quinhentos<br />

milhões, disso que se cuida. A única segurança, até para evitar, e o INSS é o campo onde<br />

operaram as “Georginas de Freitas”, vamos lembrar disso. Onde se fizeram os acordos e<br />

foram feitos os grandes estelionatos pela via judicial.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator do RE 420.816): Isso aconteceu com a<br />

concessão de benefícios mediante fraude, coisa diversa.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Não é esse o grande número dos<br />

dois milhões e quinhentos, pois este, sabemos todos, tem um grande percentual de<br />

denegação de benefícios tranqüilizados na jurisprudência, que o INSS não cumpre, e<br />

fica inerte até a demanda de execução.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Tem de tudo: planos econômicos, etc.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: O “Caso de Georgina” leva-me a lembrar que, se não<br />

fosse a capacidade investigatória do Ministério Público por conta própria, não chegaríamos<br />

ao deslinde da questão. Mas voltando ao voto do eminente Ministro Relator...<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Quanto a esse caso, diria que foi a<br />

capacidade investigatória da Corregedoria da Justiça. Mas isso não está em julgamento.<br />

É um caso que nasce por uma brava ação corregedora do Tribunal de Justiça do Rio de<br />

Janeiro.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: De parelha, com atuação destemida, competente do<br />

Ministério Público.<br />

Sr. Presidente, sem delongas, voto com o Ministro Relator e peço vênia aos<br />

eminentes Ministros que discordaram do voto de Sua Excelência.<br />

VOTO (Confirmação)<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Sr. Presidente, gostaria de um esclarecimento, aliás, até<br />

com certa legitimidade, pelo fato de ser novo nesta Corte. Estamos julgando um caso,<br />

não é uma ADIn?<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Não, é um caso. Não é ADIn. Mas<br />

a lei foi declarada constitucional. Então, a nossa decisão, por exemplo, confirmando-a,<br />

será comunicada ao Senado Federal para dar-lhe eficácia erga omnes.<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: De qualquer forma, vou manter o meu voto.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sr. Presidente, sensibilizou-me a argumentação do<br />

eminente Ministro Gilmar Mendes, mas tenho a impressão de que a situação que Sua<br />

Excelência toma por pressuposto — e que atrai sua justa preocupação — é caracterizada<br />

sobretudo nos casos de condenação, em quantia certa, da Fazenda Pública, nos quais o<br />

regime de pagamento é de precatório e, portanto, trata-se de execução singular e<br />

necessária, como certas ações constitutivas, em que o risco desse dano à Fazenda Pública<br />

não existe, pois, se esta não embarga, não se lhe caracteriza a sucumbência.


R.T.J. — <strong>199</strong> 845<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Vossa Excelência teria que dizer a todos os juízos<br />

que não condenassem o Poder Público em honorários nesses casos.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Se foi expedido precatório...<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Isso foi muito discutido, até no<br />

processo civil comum.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Nos outros casos de execução, não, porque aí depende<br />

de satisfação espontânea ou de inadimplemento do devedor. Mas, nos da Fazenda<br />

Pública, em que ela e o credor não têm alternativas...<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Do contrário, o Tribunal não teria declarado a<br />

inconstitucionalidade da norma neste caso específico que está sendo objeto de<br />

discussão. Aquela norma seria inútil. Estamos falando disso porque houve condenação<br />

em honorários.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Sim. Habitualmente, parece-me<br />

que se incluiriam os honorários.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Acho que é o caso de o Tribunal, na hipótese de<br />

recurso, dar a interpretação correta da norma correspondente à sucumbência.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: A melhor forma é dizer que é constitucional a<br />

norma.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Ou seja, vamos acabar reconhecendo urgência num<br />

caso...<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: ...que notoriamente tinha. O que acontecia? Havia<br />

despesas claras com honorários, por isso é que se editou a Medida Provisória.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Em que casos?<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Nesses casos em que há execução por quantia certa<br />

e não houve embargos. Ainda assim, havia condenação em honorários.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: São casos que não encontrei.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: O caso concreto que está sendo objeto de<br />

discussão. Tanto é que o resultado é na condenação dos honorários. É o que o Ministro<br />

Carlos Velloso acabou de ler.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Consideramos um caso, por<br />

exemplo, em que o INSS resistiu, até o desespero, ao piso do salário mínimo para<br />

qualquer benefício previdenciário. Obviamente, isso deu alguns milhões; pode ter dado,<br />

quiçá, milhões de execuções e tantas outras séries do INSS, de que somos vítimas.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: A lei trata de honorários de sucumbência. O que não<br />

há aqui é sucumbência.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Vossa Excelência está querendo discutir um<br />

pressuposto — a correção da decisão do juiz — que não está em jogo. Vossa Excelência<br />

está afirmando que o juiz não deveria condenar em honorários, mas condena. É disso que<br />

estamos a falar.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): No caso concreto, deve ter havido.


846<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Se condena, erra.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator do RE 420.816): O que acontece? É<br />

proposta a execução contra a Fazenda Pública. E esta vem e diz que vai pagar. Não deve<br />

o juiz fixar os honorários do advogado que foi contratado para requerer a execução?<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Vossa Excelência está entendendo por que a<br />

medida provisória?<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator do RE 420.816): Aí é que está: vai o<br />

advogado trabalhar de graça? Por isso é que fiz a intervenção.<br />

Repito o meu raciocínio: é requerida uma execução contra a Fazenda Pública. Esta<br />

vem e diz que não vai embargar, que vai pagar. Não haveria honorários?<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Vossa Excelência deveria, talvez, avançar para o<br />

mérito.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator do RE 420.816): Acho até que essas<br />

questões não devem influir no nosso julgamento. Estamos examinando apenas se há<br />

urgência ou não em o Presidente da República baixar uma medida provisória para dizer<br />

que não há honorários advocatícios em execuções não embargadas. Penso que não há<br />

urgência nem relevância.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Porque não será por um argumento da urgência.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator do RE 420.816): Invoquei o mérito, aqui,<br />

nestes termos: seria lícito obrigar o advogado a trabalhar de graça?<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Os honorários em execução?<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Embargadas ou não, estatui o § 4º do art. 20 do CPC.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Foi um afastamento para isso.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator do RE 420.816): Estamos examinando é o<br />

art. 1º-D:<br />

“Não serão devidos honorários advocatícios pela Fazenda Pública nas<br />

execuções não embargadas.”<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: É uma exceção por quê? Por razões singelas que já<br />

conhecemos e tentei explicar.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): A Lei 8.952/<strong>199</strong>4 incluiu, no art.<br />

20, § 4º, do Código de Processo Civil, aquelas hipóteses em que, nas execuções,<br />

embargadas ou não, os honorários serão fixados consoante apreciação eqüitativa do<br />

juiz.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator do RE 420.816): É porque se obriga alguém<br />

a ir a juízo. Ninguém pode ir a juízo sem advogado. Advogado não propõe ação sem<br />

remuneração. Ele vive disso. Foi o que disse, se bem que isso não influencia o meu<br />

julgamento, que se limita a verificar se há urgência e relevância.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Ministro, temos de reconhecer<br />

que, nas execuções contra particular, só se vai ao processo de execução se há mora. Mas,<br />

ao contrário, a Fazenda não pode pagar sem precatório.


R.T.J. — <strong>199</strong> 847<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sim, claro, por isso mesmo acho que não há sucumbência<br />

e não são devidos honorários advocatícios.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Mas não é o entendimento que está dominando.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator do RE 420.816): Depende.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Estou raciocinando em termos de<br />

execução por quantia certa e vou propor que a tanto se reduza o dispositivo de nossa<br />

decisão.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sujeitos a precatório.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Sim, sujeitos ao precatório, pois<br />

que aí não há mora.<br />

O processo de execução por quantia certa contra a Fazenda é um desdobramento<br />

necessário para a satisfação do débito reconhecido por sentença, ao contrário do que<br />

ocorre na execução por quantia certa contra o devedor particular.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Mas na origem de tudo está o descumprimento da lei<br />

pelo Poder Público.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não. No caso de precatório, não.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Não é isso, Ministro. Quem<br />

examina as pautas de nossas Turmas há de compreender a irritação. Reconheço até o<br />

trabalho notável que Vossa Excelência fez na Advocacia-Geral da União para minimizar<br />

isso. Mas a temeridade da resistência da Fazenda a certos tipos de reivindicações, e do<br />

INSS, particularmente, é notória. É um dado da realidade.<br />

Estou sustentando que, quando o processo de execução é necessário, a sucumbência<br />

é uma só e há de ser fixada no processo de conhecimento, até considerando que o<br />

advogado vai ter necessariamente esse trabalho na execução por precatório, que é fatal.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Já é suficiente.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Se estivesse em lei, mas em medida provisória o que<br />

se discute é isto: os requisitos de urgência e de relevância integram o regime jurídico da<br />

medida provisória.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator do RE 420.816): Eu fico nos requisitos,<br />

urgência e relevância.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Foi uma avaliação sobre a situação existente, que<br />

se quis explicitar.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Cheguei a sustentar, com certa<br />

audácia, que a matéria processual, em função de suas conseqüências muitas vezes<br />

irreversíveis, até por força de eventuais coisas julgadas, era incompatível com a medida<br />

provisória. Mas fui amplamente derrotado na Casa.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Também sempre afirmei isso.<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello: A EC n. 32/2001, ao dar nova redação ao art. 62 da<br />

Constituição, pré-excluiu, do âmbito de incidência da medida provisória, a disciplinação<br />

de matéria processual (CF, art. 62, § 1º, I, b), tornando clara essa vedação de caráter<br />

material.


848<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: É, a nova redação deixa claro.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Tranqüiliza-me e conforta-me que,<br />

na Emenda Constitucional 32, se tenha excluído expressamente a medida provisória em<br />

matéria processual. Porque, efetivamente, é uma desigualdade de armas brutal, dada a<br />

aplicação imediata da lei processual — que me perdoem os ex-Advogados-Gerais da<br />

União —, a mudança das regras do jogo no segundo tempo da partida.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Não é disso que se trata. Muitas vezes — todos<br />

sabemos —, a legislação tem essa função tópica. Se aplicamos o pensamento tópico, é no<br />

âmbito da legislação; e, se houve uma área em que operou o corporativismo com toda a<br />

força em matéria legislativa, sabemos que foi exatamente em matéria processual.<br />

Por outro lado, em resposta àquela primeira objeção de Vossa Excelência, Min.<br />

Sepúlveda Pertence, sobre a temeridade da resistência do INSS, devo dizer que é<br />

exatamente neste campo que se fez o maior avanço em matéria de justiça e de justiça<br />

social, que são os Juizados Especiais Federais da Lei n. 10.259. O grande laboratório<br />

ocorre justamente no âmbito do INSS, com o limite até sessenta salários mínimos. E não<br />

estamos a falar de bagatela, mas de noventa por cento das causas da Previdência Social,<br />

que estão sendo resolvidas agora sem o processo retardando de precatório. Portanto, sem<br />

esse modelo de execução.<br />

É nesse laboratório que estamos a operar.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator do RE 420.816): Nos Juizados Especiais.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sr. Presidente, vou, agora, deixar um pouco mais claro<br />

meu pensamento. Nos debates, fiquei ainda mais convencido do seu acerto.<br />

A idéia de sucumbência está ligada a uma situação jurídico-material que,<br />

resultante de certa decisão ou provimento jurisdicional, é suscetível de ser melhorada<br />

por efeito de algum recurso. Então, diz-se sucumbente a parte que foi posta, por uma<br />

decisão ou por outra espécie de provimento, em situação tal que pode ser melhorada<br />

mediante recurso.<br />

Nos casos de execução por quantia certa contra a Fazenda Pública, a execução,<br />

tanto no sentido de ação processual quanto no sentido material de pagamento, não pode<br />

dar-se da maneira ordinária ou geral. É que o credor só pode exigir o crédito em<br />

procedimento análogo ao processo de execução, e a devedora não o pode pagar senão<br />

mediante esse mesmo procedimento específico.<br />

Nesse caso, se não há embargos no sentido técnico da palavra, não há sucumbência<br />

alguma, porque não existe nenhuma situação passível de ser modificada em benefício<br />

do recorrente mediante recurso. Isso significa que não se poderia aplicar o § 4º, com a<br />

redação dada pela Lei de 94, em termos de honorários sucumbenciais, porque,<br />

simplesmente, sucumbência não há. O que sucede é que a jurisprudência acabou<br />

convalidando condenação em honorários que não são justificados nos termos da lei<br />

processual. E se isso realmente estava causando, em termos de prática judiciária, dano<br />

grave, acho que o caso era de urgência.<br />

Nesses termos e com tal restrição, isto é, de a norma ser interpretada apenas para os<br />

casos de execução por quantia certa contra a Fazenda Pública, acolho, em parte, o recurso.


R.T.J. — <strong>199</strong> 849<br />

PROPOSTA<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): O provimento é total. Trata-se de<br />

execução por quantia certa. O problema é a declaração de inconstitucionalidade da<br />

medida provisória. A minha proposta, antecipo, para apreciação dos Colegas é a de<br />

interpretação conforme, para reduzir o alcance da medida provisória às execuções de<br />

quantia certa contra a Fazenda Pública. Para as outras, não vejo justificativa — e deixo<br />

à parte a discussão, sempre inçada de dificuldade, sobre o cabimento ou não de medida<br />

provisória — para fundar-me no princípio da isonomia.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: É porque, em outros casos em que a Fazenda Pública<br />

não está jungida a nenhuma medida legal para satisfazer desde logo sua obrigação, se ela<br />

é executada e não embarga, então é sucumbente, pois está causando atraso ao credor.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Dei o exemplo. A Fazenda é<br />

condenada à reintegração de um funcionário público.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Claro, estou de acordo.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): E não o faz. Qual é o meio? Processo<br />

de execução.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: A execução de que se cuida aqui é essa execução do<br />

art. 730. É disso que estamos a falar.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Sim, é o que se chama de execução<br />

contra a Fazenda Pública, mas a medida provisória disse evidentemente mais do que<br />

quis dizer. Pensando nisso, falou em execução contra a Fazenda Pública, e este art. 730<br />

é apenas a execução por quantia certa.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Tanto é que a hipótese que o Ministro Carlos<br />

Velloso traz é exatamente um caso desses, e a sustentação está toda centrada nisso.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Sim, Ministro Gilmar Mendes, não<br />

tenho dúvida — e o problema foi posto por uma procuradora do INSS — de que o drama<br />

do INSS é a execução por quantia certa. Não tenho dúvida. Agora, quando não o seja,<br />

não vejo nenhuma razão para distinguir conforme o executado seja ou não a Fazenda<br />

Pública.<br />

A minha proposta é esta: dar provimento ao recurso, mas reduzir a declaração de<br />

inconstitucionalidade a outras execuções que não aquela por quantia certa.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: A própria medida provisória, obviamente, não teve<br />

por pressuposto a questão da qualidade da Fazenda Pública, mas o fato de não haver,<br />

como o Ministro Cezar Peluso já havia esclarecido, qualquer esforço. Tanto é que não se<br />

pretendeu retirar os honorários da condenação do processo de conhecimento, simplesmente,<br />

ou na execução embargada, porque não se discutia isso, mas tão-somente na<br />

hipótese em que de fato era uma ficta execução.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Sim. Hoje, é o cálculo feito pelo<br />

exeqüente, e se a autarquia está de acordo...<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Não tenho dificuldade de aderir à proposta de<br />

Vossa Excelência.


850<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

EXPLICAÇÃO<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Sr. Presidente, o pano de fundo é único: a<br />

modificação do Código de Processo Civil quanto à fixação dos honorários advocatícios.<br />

Veio a ser editada uma medida provisória que se distancia de um princípio a ser<br />

observado — pouco importando que se trate do cidadão comum, de uma pessoa jurídica<br />

de direito privado, de uma pessoa jurídica de direito público —, o tratamento igualitário<br />

das partes.<br />

A medida provisória, já convertida em lei, dispõe que, no caso de ajuizamento de<br />

execução contra a Fazenda Pública, propositura, portanto, de ação, se a Fazenda Pública<br />

não ajuizar embargos à execução, incidente do processo de execução forçada, ela estará<br />

eximida de satisfazer honorários.<br />

Seria interessante colocar a questão sob o ângulo do aposentado, do beneficiário<br />

da Previdência e, também, dos contribuintes. Então, já me defronto com algo<br />

que, a meu ver, discrepa da ordem jurídica, que é o tratamento diferenciado. Dir-se-á:<br />

não se tem execução, nos moldes comuns, contra a Fazenda Pública porque há de se<br />

partir para a requisição do numerário, visando a satisfazer o título executivo judicial.<br />

Em termos, essa afirmação deve ser acolhida. Em termos, por quê? Porque o § 3º<br />

do artigo 100 da Carta dispensa, em certas situações, a requisição, a execução<br />

mediante essa via-crúcis, que é o precatório, ao dispor que o contido na cabeça do<br />

artigo:<br />

[...] não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em lei como de<br />

pequeno valor que a Fazenda Federal, Estadual, Distrital ou Municipal deva fazer<br />

em virtude de sentença judicial transitada em julgado.<br />

O que deve ocorrer normalmente, Sr. Presidente, quando o Judiciário bate o<br />

martelo e impõe uma condenação, tendo em conta obrigação de dar? A observância<br />

espontânea do título por parte da Fazenda Pública quando, principalmente, não se trate<br />

de débito enquadrável na modalidade de execução, que é execução via precatório. Mas<br />

há resistência. Defrontando-se a Fazenda Pública com deficiências de caixa, ela como<br />

que aposta na morosidade da Justiça e não cumpre, em hipótese em que a execução<br />

escapa ao sistema de precatório, voluntariamente a decisão proferida.<br />

Senhor Presidente, há um princípio que entendo implícito na Carta da República,<br />

considerada a garantia do acesso ao Judiciário: aquele que recorrer ao Judiciário por se<br />

sentir prejudicado quanto à observância de certo direito não deve, caso vencedor, sofrer<br />

diminuição patrimonial. No caso concreto do Instituto, a grande maioria dessas<br />

execuções escapa ao sistema de precatório.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Ministro Marco Aurélio, apenas<br />

lembro que o § 3º do artigo 100 foi introduzido pela Emenda Constitucional n. 20.<br />

Aí não estou em dúvida, quer dizer, também nessa hipótese eu concederia, sim. Há<br />

inadimplência do que a autarquia poderia adimplir.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Não alcancei a observação de Vossa<br />

Excelência. Sou Relator de um recurso extraordinário — o Presidente até me tinha<br />

comunicado que chamaria para votar a seguir — que versa justamente essa matéria.


R.T.J. — <strong>199</strong> 851<br />

Prossigo, Sr. Presidente, não posso conceber o tratamento diferenciado. Dir-se-á:<br />

bem, mas temos o interesse público. O interesse público para mim, no caso, é o secundário.<br />

O Estado, quando comparece em juízo, é como parte, despojado de idéias concernentes<br />

à soberania e, fora as exceções fixadas na própria Carta da República, há de ser<br />

tratado como é a parte comum, a parte contrária.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: A parte contrária que não é igual ao Estado, nesse<br />

caso, como já ficou demonstrado pelo Ministro Marco Aurélio.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): É mais frágil do que o Estado.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Não, o privado é diferente, por isso se mostrou. Não<br />

há como equiparar uma situação com a outra.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Para mim, Sr. Presidente, parte é parte, e a<br />

individualização no processo ocorre visando a responsabilidade.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Queiramos ou não, é uma parte<br />

“mais igual do que as outras”, porque tem o benefício do pagamento mediante<br />

precatório.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Porque a sociedade é que deve, não é o Estado.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Sim, Ministro Gilmar Mendes, por<br />

isso disse “queiramos ou não” para não contrariar ninguém. Sei que Vossa Excelência<br />

tem um caso de amor com a Fazenda Pública, e o Ministro Marco Aurélio tem um caso de<br />

desamor.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Não, Excelência. Há pouco, mesmo,<br />

votei na questão da alíquota zero e da não-tributação quanto ao Imposto sobre<br />

Produtos Industrializados – IPI, a favor da Fazenda. Amo as partes sem distinção. Se<br />

não estivesse com a toga, tenderia a ir numa caminhada franciscana a proteger,<br />

realmente, os menos afortunados. Recordo que dizia muito, na Justiça da qual sou<br />

originário, a do Trabalho, que protecionista é a lei quanto ao hipossuficiente, ao<br />

prestador dos serviços. O juiz não deve ser protecionista. No Supremo, mudei a óptica<br />

no campo penal... Rigorosa é a lei no campo penal. O juiz deve perceber que a lei é<br />

feita para os homens e humanizá-la na medida do possível, sem partir para o direito<br />

alternativo.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Ministro Marco Aurélio, queria endossar o ponto<br />

de vista de Vossa Excelência sobre essa necessidade jurídica de se tratar igualmente as<br />

partes em juízo. Pouco importa que uma das partes seja o Poder Público. E digo mais:<br />

a Constituição, quando criou os mecanismos processuais de defesa do indivíduo, o fez<br />

no capítulo devotado aos direitos e garantias individuais, ou seja, todo o artigo 5º,<br />

de que fazem parte o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa etc., foi<br />

redigido numa pressuposição, o indivíduo é hipossuficiente, o Poder Público é<br />

hipersuficiente.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Vossa Excelência também,<br />

com todas as vênias, está fazendo abstração do dispositivo constitucional que interessa<br />

à causa, é o art. 100. Ali, queiramos ou não, repito, a Fazenda é tratada como hipossuficiente.


852<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Veja, Vossa Excelência, o propósito do art. 100.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Acho que torna impossível a<br />

Fazenda adimplir voluntariamente um débito judicial por quantia certa, Ministro, a<br />

única que interessa ao caso.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Sim, mas eu quero dizer que não há outra.<br />

O que o Ministro Marco Aurélio está falando — parece-me correto —, a partir da<br />

premissa que ele colocou, em juízo as partes são iguais.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): São iguais, mas não na execução,<br />

porque existe o art. 100, gostemos nós ou não dele.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: E, mais, na falta do art. 100, quem seria prejudicado<br />

seria o particular, porque não haveria critério de justiça na ordem dos pagamentos.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: Mas o art. 100 não impede o advogado de continuar<br />

trabalhando na execução, até para saber se houve embargos ou não à execução.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Presidente, no caso concreto que tenho em<br />

mesa, houve a prolação de uma sentença.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Que deve ser ponderado na<br />

consideração dos honorários do processo de conhecimento. É algo que vai ter custo, vai<br />

ter necessariamente uma fase de execução.<br />

Perdoe-me, Ministro Marco Aurélio, nós o interrompemos.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Não, imagine. Então, Presidente, volto à tecla:<br />

não estou diante de uma normatividade igualitária, linear, que tenha alterado o Código<br />

de Processo Civil para dispor que, na execução não embargada, ficam excluídos,<br />

independentemente de se ter a parte a, b ou c, os honorários advocatícios. Afastou-se, de<br />

forma sintomática, os honorários advocatícios quando a Fazenda surge na ação, que é a<br />

execução forçada — repito com todas as letras, que é uma verdadeira ação —, como parte<br />

passiva, mas não como ativa.<br />

O que ocorre no âmbito da previdência, o que ocorrerá no âmbito da previdência?<br />

O aposentado, com parcos proventos, que tenha que acionar o Instituto para alcançar a<br />

observância de uma sentença trânsita em julgado, buscará a contratação de advogado. E,<br />

aqui, estamos diante de um caso em que houve agravo para o Tribunal — o que revela<br />

que não se atuou em juizado especial, quando na primeira fase é dispensável o profissional<br />

da advocacia, tendo o titular de direito questionado capacidade postulatória —, sendo<br />

necessária a busca do advogado, e ele, como ressaltado pelo Relator, não atua gratuitamente.<br />

Os honorários serão contratados, compelindo o beneficiário da previdência a<br />

uma diminuição no próprio patrimônio. Será que a garantia de acesso ao Judiciário<br />

deságua nesse resultado? Por isso disse que implicitamente se tem em jogo o princípio<br />

nessa garantia de acesso.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: A diminuição do patrimônio, porque, no sistema do<br />

Código de Processo civil, os honorários pertencem ao advogado e não à parte. Não é a<br />

parte que está sofrendo esse decesso, para ficarmos na argumentação.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Quem pagará os honorários?


R.T.J. — <strong>199</strong> 853<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Se vamos discutir problemas da<br />

realidade, Vossa Excelência vai ter que procurar muito na clientela dos pacientes do<br />

INSS para encontrar uma parte que pagou pro labore ao advogado. Estamos tratando de<br />

uma execução de seis mil, duzentos e quarenta e dois reais e quarenta e dois centavos.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): De qualquer forma, Sr. Presidente, presumo<br />

o que normalmente ocorre e não o excepcional. O excepcional está na gratuidade da<br />

atuação do profissional da advocacia, tendo em conta até mesmo que até hoje, passados<br />

quinze anos, o Estado — a União está incluída — não estruturou, como deveria ter feito, as<br />

Defensorias Públicas.<br />

Senhor Presidente, vou ao voto que preparei neste recurso extraordinário:<br />

“No caso deste processo, tem-se a interposição” — como já salientado pelo<br />

Relator — “do recurso pela alínea b do inciso III do artigo 102 da Constituição<br />

Federal, sendo certo que o Instituto providenciou a juntada, ao recurso extraordinário,<br />

do acórdão mediante” — também presumo que tenha juntado no processo<br />

relatado pelo Ministro Carlos Velloso — “o qual o Tribunal Regional Federal da 4ª<br />

Região declarou a inconstitucionalidade do artigo 1º-D da Lei n. 9.494/97, com a<br />

redação imprimida pela Medida Provisória n. 2.180-35/2001, por violar o artigo 62<br />

da Carta da República, isso no tocante aos requisitos da urgência e da relevância.<br />

Esclareço que não se faz em jogo o óbice, em si, do artigo 62, § 1º, inciso I, alínea b,<br />

do Diploma Maior.” — a disciplina de tema processual, mediante medida provisória.<br />

Penso que nesse dispositivo, hoje, está proibido tratar de processo explicitamente,<br />

porque antes eu já entendia que, sendo processo segurança jurídica, ele não pode ser<br />

regido por ato precário e efêmero, como é a medida provisória — “Em primeiro lugar,<br />

porquanto a Medida Provisória n. 2.180-35, nessa versão, data de 24 de agosto de<br />

2001 e a Emenda Constitucional n. 32” — que deu nova redação ao artigo 62 da<br />

Carta — “é do mês imediato. Aliás, o Instituto, diante do que decidido pela Corte de<br />

origem, não procedeu à argüição do tema sob o ângulo da inconstitucionalidade<br />

formal superveniente.” — porque também não foi declarada — “Cumpre, então,<br />

apreciar a matéria de fundo e definir o acerto ou o desacerto do acórdão da Corte de<br />

origem, no que proclamado o concurso dos requisitos de relevância e urgência para<br />

normatização da matéria pelo Presidente da República.” — no que rechaçada a<br />

relevância e a urgência.<br />

“O Tribunal ultimamente” — disse o Ministro e citou Vossa Excelência, Sr.<br />

Presidente — “tem admitido adentrar o campo do exame dos citados requisitos,” —<br />

pressupostos constitucionais, e ele é guarda da Constituição como um todo —<br />

“não os tendo, assim, no campo estritamente político, da discrição do Presidente<br />

da República. Confira-se com o que decidido nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade<br />

n. 1.647-4, 1.753-5, 2.150-8 e 2.213-0.<br />

O texto constitucional revela a legitimidade da edição de medidas provisórias<br />

‘em caso de relevância e urgência’. O Supremo Tribunal Federal é guarda da Carta<br />

da República como um grande todo, razão pela qual descabe assentar a impossibilidade<br />

de proceder à análise dos citados requisitos. Pois bem, o Código de Processo<br />

Civil data de 1973 e disciplina a execução contra a Fazenda Pública — artigos 730<br />

e seguintes. Sempre esteve presente a responsabilidade do executado — nessa


854<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

verdadeira ação que é a de execução forçada — pelos honorários advocatícios. É o<br />

quanto se mostra suficiente para dizer que não se configurava excepcionalidade<br />

maior a contrapor-se ao princípio da separação dos Poderes. A Medida Provisória<br />

n. 2.180-35, ao acrescentar dispositivo à Lei 9.494/97, prevendo o não-cabimento<br />

de atribuir os ônus concernentes aos honorários advocatícios à Fazenda Pública<br />

nas execuções não embargadas, fez-se ao mundo jurídico em conflito com a<br />

premissa do artigo 62 da Lei Máxima, conforme salientado no parecer do Ministério<br />

Público Federal transcrito no acórdão relativo ao incidente de argüição de<br />

inconstitucionalidade julgado pela Corte de origem. O próprio Executivo, mediante<br />

decreto, veio a balizar a apreciação, pela Presidência da República, de projetos de<br />

medidas provisórias e aí cogitou, em harmonia com o texto constitucional, de<br />

estado de necessidade legislativo decorrente de circunstância fática ou situação<br />

jurídica de difícil previsão — Decreto n. 2.954, de 29 de janeiro de <strong>199</strong>9, publicado<br />

no Diário de 24 de fevereiro de <strong>199</strong>9, artigo 32. A seguir, em 30 de maio de 2000,<br />

foi editado o Decreto n. 3.495, elucidando-se a ‘exigência ou indispensabilidade<br />

de tomada de providência de índole legislativa com efeito imediato, sob pena de<br />

se verificarem prejuízos de ordem administrativa, econômica, social ou de segurança<br />

pública’, consignando-se, pedagogicamente, que não seriam disciplinadas<br />

por medidas provisórias matérias que pudessem ser aprovadas dentro dos prazos<br />

estabelecidos relativamente ao procedimento legislativo de urgência fixado na<br />

Carta da República. O Decreto n. 4.176, de 28 de março de 2002, não discrepou<br />

dessa normatização, estando, portanto, em consonância com o artigo 62. Então, há<br />

de se concluir” — a meu ver, e os honorários sairão de algum bolso — “pelo<br />

conhecimento do recurso e pelo desprovimento, declarando-se a inconstitucionalidade<br />

do artigo 1º-D da Lei n. 9.494/97, considerada a redação dada pela<br />

Medida Provisória n. 2.180-35/2001, ante o conflito desta última com o artigo 62<br />

da Constituição Federal. É como voto na espécie.”<br />

VOTO (Explicação)<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Quero esclarecer que, no meu voto, fiquei somente<br />

no que o acórdão recorrido decidiu. O acórdão decidiu pela inconstitucionalidade da<br />

medida provisória, sustentando a inocorrência dos seus requisitos básicos, e eu<br />

concordei com o acórdão recorrido. Realmente, não vejo urgência nem relevância numa<br />

medida provisória editada para estatuir que, nas execuções não embargadas, não há<br />

honorários advocatícios.<br />

Fiquei somente nisso, porque foi somente isso que decidiu o Tribunal a quo no<br />

caso de Vossa Excelência. Faço até indagações se foi a questão.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Estamos exatamente dizendo que há urgência e<br />

relevância.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): O tema devolvido ao Tribunal pelos dois<br />

extraordinários é único: a edição da medida provisória à margem do artigo 62 da<br />

Constituição Federal. Discorremos sobre o pano de fundo, como podemos fazer em<br />

qualquer processo.


R.T.J. — <strong>199</strong> 855<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Sim, mas estaríamos a aventar a hipótese da<br />

inconstitucionalidade material. Será que poderíamos fazer isso no controle difuso, se o<br />

acórdão recorrido não discutiu tal matéria?<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Estou tranqüilo no ponto.<br />

Entendo que o recurso extraordinário, pela letra b, devolve ao Tribunal a questão da<br />

constitucionalidade da lei, com fundamentação aberta.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Aliás, foi o que decidimos em sessão memorável.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): No caso dos servidores públicos<br />

de São Paulo.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Tratava-se da questão de direito adquirido e<br />

irredutibilidade de vencimentos.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Jamais me comprometeria com essa tese; não me<br />

comprometi. Votei acompanhando Vossa Excelência, Ministro Pertence, sustentando<br />

que a irredutibilidade posta na Constituição constitui direito adquirido qualificado. E o<br />

acórdão recorrido cuidara do direito adquirido. Agora, se me é posto um fundamento<br />

diferente, não o aceito, sob pena de transformarmos o recurso extraordinário em causa<br />

aberta.<br />

De sorte que votei acompanhando Vossa Excelência, Ministro Pertence, mas<br />

considerando a irredutibilidade de vencimentos posta na Constituição como direito<br />

adquirido qualificado.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Perfeito. Nesse ponto divirjo de<br />

Vossa Excelência.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Continuo entendendo que, se o acórdão recorrido não<br />

tem uma palavra sequer sobre a questão de fundo, poderíamos até fazer considerações em<br />

torno dela para verificar se há urgência e relevância. Todavia, pretender decidir a respeito<br />

de matéria não decidida pelo acórdão recorrido, penso não ser possível. É que no RE não<br />

temos causa aberta. Somente as questões prequestionadas é que podem ser apreciadas pelo<br />

Supremo.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio (Relator): Ministro Carlos Velloso, fui ao voto<br />

escrito e nele teci considerações para mostrar o que temos em jogo, como pano de fundo,<br />

considerado o trinômio “lei, direito e justiça”, procurando alcançar o último vocábulo<br />

na plenitude.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Continuo entendendo: baixar o Presidente da<br />

República uma medida provisória, ato excepcional, para dizer que na execução não<br />

embargada não há honorários advocatícios, é ir longe demais. Onde está a urgência e<br />

onde está a relevância?<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto: A Constituição exige os dois requisitos juntos:<br />

urgência e relevância.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Exatamente. Acho que é “baratear” a questão, tal<br />

como dizia o eminente Ministro Francisco Rezek em relação ao recurso extraordinário.


856<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Tenho a impressão de que, no caso específico, estão<br />

demonstradas a relevância e a urgência, dada a dimensão da litigiosidade. Conforme já<br />

mostraram os Ministros Sepúlveda Pertence e Cezar Peluso, a rigor, era fácil chegar ao<br />

entendimento de que, na ausência de causalidade, não haveria que falar em honorários<br />

na hipótese, mas a prática da jurisprudência consolidada levou à necessidade dessa<br />

revisão. Por isso se fez necessária a edição da medida provisória. Dada a dimensão desses<br />

casos — sabemos bem, isso tem sido decantado —, a Fazenda já assume a responsabilidade<br />

pelo pagamento. Se há acordo quanto ao quantum fixado, ela não faz embargos, e<br />

o assunto se encerra. Logo, por isso, era relevante e urgente. Não teria dificuldade de<br />

adiantar o meu voto e concordei integralmente com o voto do Ministro Sepúlveda<br />

Pertence, entendendo que, nesta sede, é de se avançar para um juízo de constitucionalidade.<br />

Acho um progresso tratar isso como processo de índole objetiva, e concordamos<br />

naquela discussão. Claro, os fundamentos foram diversos. Lembro-me de que<br />

Vossa Excelência enfatizou que a irredutibilidade era uma qualificação do direito<br />

adquirido, mas outros — o Ministro Cezar Peluso e eu também — sustentamos a tese de<br />

ser preciso dar também ao controle incidental um perfil objetivo. E havia outros<br />

exemplos; o Ministro Sepúlveda Pertence mencionou vários casos.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Lembro que o nosso regimento,<br />

em dispositivo que vem antes da grande expansão do controle concentrado, já dispunha<br />

que, suscitada a argüição de inconstitucionalidade em qualquer processo, o Tribunal,<br />

obtida a maioria de seis votos, declarará a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade<br />

da lei. Isso, a meu ver, envolve, no recurso extraordinário pela letra b,<br />

sobretudo, um juízo de constitucionalidade sem limites.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Até porque seria pouco conforme com a função do<br />

Tribunal ter a lei por inconstitucional e deixar de declará-lo.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Nesse caso, a rigor, os argumentos são aparentemente<br />

incindíveis. Estamos a reconhecer a relevância e a urgência porque, na matéria,<br />

não haveria causalidade até para os honorários. Esse é o argumento central em matéria<br />

dos embargos por quantia certa.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Materialmente, não vejo nenhuma inconstitucionalidade.<br />

Não há nenhum dispositivo na Constituição proibindo ao legislador legislar<br />

dessa ou de outra forma em tema de processo, em tema de verba honorária. Materialmente,<br />

não vejo nenhuma inconstitucionalidade, e por isso fico restrito aos requisitos da<br />

medida provisória: urgência e relevância. Repito: não vejo a ocorrência de tais requisitos<br />

em o Presidente da República baixar um ato excepcional, a medida provisória, para dizer<br />

que não cabem honorários de advogado em execução não embargada. Meu voto fica<br />

somente nisso.<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Ministro Carlos Velloso, sem prejuízo da reverência<br />

que todos devemos a Vossa Excelência por todos os títulos, os votos dissidentes<br />

afirmam ponto de vista contrário, no sentido de que, no caso específico das execuções<br />

não embargadas, referidas pelo art. 730, há urgência.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: E relevância?<br />

O Sr. Ministro Cezar Peluso: Exatamente.


R.T.J. — <strong>199</strong> 857<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Aí o fato decorre do caráter multitudinário<br />

da execução.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Com todas as vênias, reitero o meu entendimento,<br />

mas, como não poderia ser de outra forma, com absoluto respeito às opiniões aqui<br />

expendidas.<br />

EXPLICAÇÃO<br />

O Sr. Ministro Eros Grau: Sr. Presidente, exatamente no momento em que V. Exa.<br />

suspendeu a sessão, ocorreu-me que a sessão é muito rica, com muita discussão rica.<br />

Quero deixar bem claro que discordo da idéia do Ministro Marco Aurélio, de que o<br />

Estado vem a Juízo na defesa do interesse público secundário. A presunção é a de que o<br />

Estado venha sempre na defesa do interesse público primário.<br />

Também quero deixar bem marcada a minha discordância com a visão do Estado<br />

como um monstro que devora o indivíduo. Continuo a imaginar que o espaço da<br />

liberdade é o espaço do Estado e que o indivíduo só se realiza plenamente, como titular<br />

de suas liberdades, na medida em que está vinculado ao todo; esse todo é a comunidade<br />

presentada no Estado.<br />

Agradeço a V. Exa. a oportunidade de deixar marcada esta minha postura.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Cuida-se de recurso extraordinário<br />

interposto pela letra b: pelas razões expostas no RE 298.694, entendo que essa<br />

modalidade recursal devolve ao Tribunal toda a questão da constitucionalidade da lei,<br />

sem limitação aos pontos aventados na decisão recorrida.<br />

Mas, de qualquer modo, creio que o fundamento do acórdão recorrido, a<br />

inexistência de uma situação de relevância e urgência a justificar a medida provisória, se<br />

embrica com a ponderação que fiz a partir de outro dispositivo constitucional: o do art.<br />

100 e seus parágrafos da Constituição Federal.<br />

Fosse um caso ou se reduzisse este caso a uma simples discriminação a favor da<br />

Fazenda Pública, dispensando-a dos ônus processuais da sucumbência, eu tenderia,<br />

com o eminente Ministro Relator, a reconhecer o abuso da utilização de medida<br />

provisória.<br />

Mas, no caso específico, disciplinado pelo art. 100 da Constituição, soma-se a sua<br />

peculiaridade a um dado de fato: a época presente, de explosão da litigiosidade,<br />

multitudinária, contra certas áreas da Fazenda Pública, as quais me convencem que,<br />

reduzida aos termos do necessário, a medida provisória veio acudir a uma situação<br />

relevante e emergencial de urgência legislativa.<br />

Impressionou-me na defesa oral e está na sentença de primeiro grau a peculiaridade<br />

da chamada “execução contra a Fazenda Pública por quantia certa”.<br />

Leio decisão exarada pelo Juiz Federal Decio José da Silva, objeto da decisão<br />

recorrida do Tribunal Regional Federal do Rio Grande do Sul, à fl. 99:


858<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

“A parte exequente requer o arbitramento de honorários sucumbenciais<br />

sobre a execução.<br />

Todavia entendo que são indevidos honorários sucumbenciais nas execuções<br />

movidas em face de entes públicos. Ocorre que, mesmo que queira, o ente<br />

público não pode efetuar o pagamento se não observada a sistemática prevista<br />

no art. 730 do CPC: o pagamento não prescinde do requerimento e efetivação da<br />

citação.<br />

De igual forma, também não se pode dizer que com este proceder está sendo<br />

o advogado obrigado a trabalhar sem receber, porque a sucumbência tem natureza<br />

processual, vale dizer, decorre do processo e não das tratativas entre constituinte e<br />

constituído.”<br />

Isso não é problema relevante, no caso.<br />

O certo é esse dado: ao contrário do comum dos processos de execução contra a<br />

Fazenda Pública ou contra particulares, em que transitada em julgado a sentença de<br />

conhecimento, o condenado pode adimplir, pode cumprir o que lhe foi imposto pela<br />

sentença exeqüenda nas condenações ao pagamento de quantia certa emitidas contra o<br />

Poder Público, este não pode pagar de outra forma que não seja mediante o sistema de<br />

precatório, salvo a partir da Emenda Constitucional n. 20, na hipótese dos chamados<br />

créditos de pequeno valor.<br />

Por isso, há uma situação peculiar da Fazenda Pública quando executada nessa<br />

hipótese, o que desfaz, o que elide qualquer cogitação de ofensa a um princípio que<br />

esteve muito presente no acórdão que lavrei na ADIn 1.573, em que aludia não só a uma<br />

situação objetiva de falta de urgência — porque às decisões já prolatadas não se<br />

poderiam aplicar a nova hipótese e o novo prazo de ação rescisória — mas também a<br />

quebra desarrazoada da isonomia processual entre a Fazenda e os particulares. Não é o<br />

que se dá na espécie, repito, à vista de se constituir a execução mediante precatório —<br />

nas hipóteses em que exigível — uma necessidade para a satisfação das condenações<br />

emitidas contra a Fazenda Pública.<br />

São essas, em síntese desataviada, as razões que me levam a reafirmar a solução<br />

que, durante o curso da discussão, propusera ao Tribunal: a de, resolvendo a questão da<br />

constitucionalidade, declarar a constitucionalidade da Medida Provisória 2.180, com<br />

interpretação conforme, de modo que incida exclusivamente nas execuções por quantia<br />

certa contra a Fazenda Pública, e ainda, aí, excetuada a hipótese de crédito de pequeno<br />

valor, prevista no art. 100, § 3º, da Constituição Federal.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: A questão será submetida à execução nessa forma<br />

que está sendo prevista?<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Sendo essa a solução, eu, no caso concreto,<br />

nego provimento ao recurso, porque, como já se disse, trata-se de um débito de pouco<br />

mais de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), abrangido, com folga, na definição — que<br />

sobreveio e que temos aplicado aos casos pendentes — de débitos de pequeno valor para<br />

o efeito do art. 100, § 3º, da Constituição Federal.<br />

Esse é o meu voto.


R.T.J. — <strong>199</strong> 859<br />

VOTO (Retificação)<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sr. Presidente, reajusto o meu voto porque essa<br />

questão do valor da execução realmente só se tornou transparente a partir do voto do<br />

Ministro Celso de Mello.<br />

VOTO (Aditamento)<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Trata-se de questão de inconstitucionalidade<br />

de lei e, por isso, o entendimento do Tribunal é que ela há de ser examinada,<br />

ainda quando desnecessária para decidir o recurso.<br />

Foi o que se assentou desde o MS 20.505, de 1985, e mais recentemente se<br />

reafirmou na SE 5.206-AgR, de 8-5-<strong>199</strong>7.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Iniciar a discussão sobre a questão da constitucionalidade<br />

ou não da medida, independentemente da questão do provimento.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Ministro, na verdade, a questão situa-se no campo<br />

do artigo 62 da Constituição.<br />

O tribunal de origem julgou improcedente a ação porque declarou a inconstitucionalidade.<br />

Penso que a conclusão deve ser pelo provimento do recurso do INSS.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Vossa Excelência deu pela constitucionalidade ou<br />

pela inconstitucionalidade?<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Esta é a questão.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Admitida — como vou admitir —<br />

a constitucionalidade, desde que interpretada a lei como restrita às hipóteses de<br />

execução por quantia certa mediante precatório, e salvo a hipótese do parágrafo 3º do<br />

artigo 100, aí examinarei se o caso se ajusta a essa interpretação que entendo<br />

constitucional, ou não; e, concluindo que não, nego provimento ao recurso.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Eminente Ministro Celso de Mello, está se<br />

admitindo, então, que há urgência e relevância e que o Presidente da República pode<br />

editar uma norma processual, estabelecendo não haver honorários advocatícios na<br />

execução. Esta é a questão que realmente me impressiona: urgência e relevância para a<br />

questão da verba honorária decorrente da sucumbência.<br />

V. Exa. está admitindo haver urgência e relevância em o Presidente da República<br />

editar uma medida provisória sobre matéria processual, estabelecendo que não cabe<br />

honorários advocatícios em execução não embargada contra a Fazenda Pública.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: O constituinte da Emenda Constitucional n. 32<br />

expressamente estabelece que não é possível legislar mediante medida provisória em<br />

tema de processo. Qual a razão? Penso que um dos motivos é este: dificilmente existiria<br />

urgência e relevância em matéria processual.<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: V. Exa. está fazendo uma interpretação futurística.


860<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Certas medidas provisórias foram<br />

uma reação dialética a tendências jurisprudenciais.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Talvez até esta esteja nessa linha.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Talvez. Esta tem uma lógica<br />

impecável, se reduzida aos termos que, entendo, deva ser entendida.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: Sob o ponto de vista material, estou de acordo com<br />

ela. O legislador pode legislar sobre matéria processual.<br />

Quando o Presidente da República legisla, ele o faz como legislador e cai na regra<br />

geral, desde que ocorrentes os requisitos de urgência e relevância. O Congresso não<br />

precisa desses requisitos, mas o Presidente, para editar um ato excepcional, que é a<br />

medida provisória, precisa. Só assim o Presidente da República está autorizado a editar<br />

um ato normativo primário, sob condição resolutória, é certo, mas ato normativo<br />

primário. A menos que se reconheça a urgência e a relevância em o Presidente da<br />

República, em matéria processual, legislar, afirmando que não cabem honorários<br />

advocatícios...<br />

O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Mas isso foi reconhecido por todos aqueles que<br />

defenderam na hipótese, porque não se estava a discutir o parâmetro de controle<br />

estabelecido depois da emenda.<br />

O Sr. Ministro Carlos Velloso: O voto do Ministro Celso de Mello, no ponto,<br />

contém lições com relação a esses requisitos.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): E, no caso concreto, S. Exa. entende<br />

que há relevância.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

RE 415.932/PR — Relator: Ministro Marco Aurélio. Relator para o acórdão:<br />

Ministro Sepúlveda Pertence. Recorrente: Instituto Nacional do Seguro Social – INSS<br />

(Advogada: Tatiana Silva de Bona). Recorrido: Azoel dos Santos e outro (Advogados:<br />

Gerson Luiz Wenzel e outro).<br />

Decisão: O Tribunal conheceu do recurso e declarou, incidentemente, a constitucionalidade<br />

da Medida Provisória n. 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, com interpretação<br />

conforme de modo a reduzir-lhe a aplicação à hipótese de execução por quantia certa<br />

contra a Fazenda Pública (Código de Processo Civil, art. 730), excluídos os casos de<br />

pagamentos de obrigações definidos em lei como de pequeno valor, objeto do § 3º do<br />

artigo 100 da Constituição. Em conseqüência, negou-se provimento ao recurso. Vencidos,<br />

na questão prejudicial de constitucionalidade, os Ministros Marco Aurélio, Relator,<br />

Carlos Britto e Carlos Velloso, que declaravam a inconstitucionalidade formal e<br />

integral do artigo 1º-D da Lei n. 9.494, de 10 de setembro de <strong>199</strong>7, introduzido pela<br />

Medida Provisória n. 2.180-35/2001. Votou o Presidente. Redigirá o acórdão o Ministro<br />

Sepúlveda Pertence. Falou pelo recorrente a Dra. Luciana Hoff, Procuradora do Instituto<br />

Nacional do Seguro Social – INSS. Ausentes, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie<br />

e, neste julgamento, o Ministro Nelson Jobim, Presidente. Presidiu o julgamento o<br />

Ministro Sepúlveda Pertence.


R.T.J. — <strong>199</strong> 861<br />

Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,<br />

Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio<br />

Lemos Fonteles.<br />

Brasília, 29 de setembro de 2004 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 428.9<strong>07</strong> — RS<br />

Sul<br />

Relator: O Sr. Ministro Celso de Mello<br />

Agravante: Acelio Constantino Guariente — Agravado: Estado do Rio Grande do<br />

Agravo de instrumento — Recurso extraordinário — Extemporaneidade<br />

— Impugnação recursal prematura, deduzida em data anterior à da<br />

publicação do acórdão recorrido — Recurso improvido.<br />

— A intempestividade dos recursos tanto pode derivar de impugnações<br />

prematuras (que se antecipam à publicação dos acórdãos) quanto<br />

decorrer de oposições tardias (que se registram após o decurso dos prazos<br />

recursais).<br />

Em qualquer das duas situações — impugnação prematura ou<br />

oposição tardia —, a conseqüência de ordem processual é uma só: o nãoconhecimento<br />

do recurso, por efeito de sua extemporânea interposição.<br />

— A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem advertido<br />

que a simples notícia do julgamento, além de não dar início à fluência do<br />

prazo recursal, também não legitima a prematura interposição de<br />

recurso, por absoluta falta de objeto. Precedentes.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata do julgamento e das notas<br />

taquigráficas, por unanimidade de votos, negar provimento ao recurso de agravo, nos<br />

termos do voto do Relator.<br />

Brasília, 17 de junho de 2003 — Celso de Mello, Presidente e Relator.<br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello: Trata-se de recurso de agravo, tempestivamente<br />

interposto, contra decisão que negou provimento ao agravo de instrumento deduzido pela<br />

parte ora recorrente, porque manifestamente extemporâneo o recurso extraordinário a que<br />

ele se refere.


862<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Inconformada com esse ato decisório, a parte ora agravante interpõe o presente<br />

recurso, objetivando o reconhecimento da tempestividade do apelo extremo por ela<br />

deduzido (fls. 196/202).<br />

Por não me convencer das razões expostas pela parte agravante, submeto, à<br />

apreciação desta Colenda Turma, o presente recurso de agravo.<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Celso de Mello (Relator): Não assiste razão à parte ora agravante,<br />

eis que a decisão agravada ajusta-se, com integral fidelidade, à diretriz jurisprudencial<br />

que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria ora em exame.<br />

Com efeito, tal como acentuado no ato decisório ora questionado, o recurso<br />

extraordinário em questão foi deduzido extemporaneamente, eis que interposto em 9-<br />

11-2000 (fl. 149), data anterior àquela em que o Tribunal de Justiça local fez publicar<br />

o acórdão nele impugnado (13-11-2000 — fl. 147).<br />

O cotejo das datas permite constatar que o recurso extraordinário em causa foi<br />

interposto prematuramente, eis que deduzido quando sequer existia, formalmente, o<br />

acórdão que a parte ora recorrente desejava impugnar.<br />

Cabe assinalar, neste ponto, por necessário, que a intempestividade dos recursos<br />

tanto pode derivar de impugnações prematuras (que se antecipam, como na espécie, à<br />

publicação dos acórdãos) quanto resultar de interposições tardias (que se registram<br />

após o decurso dos prazos recursais).<br />

Em qualquer das duas situações, no entanto (impugnação prematura ou tardia), a<br />

conseqüência de ordem processual é uma só: o não-conhecimento do recurso, por efeito<br />

de sua extemporânea interposição.<br />

No caso, como precedentemente referido, o recurso extraordinário em questão foi<br />

deduzido antes da publicação formal (ainda não ocorrida) do acórdão emanado do E.<br />

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.<br />

Impende acentuar, por relevante, que o prazo para interposição de recurso contra<br />

decisões colegiadas só começa a fluir da publicação da súmula do acórdão no órgão<br />

oficial (CPC, art. 506, III). Na pendência dessa publicação, qualquer recurso<br />

eventualmente interposto considerar-se-á intempestivo.<br />

Daí a orientação que tem prevalecido no âmbito desta Suprema Corte, cujas<br />

sucessivas decisões, no tema, proclamam que “o prazo para recorrer só começa a fluir<br />

com a publicação da decisão no órgão oficial, sendo prematuro o recurso que a<br />

antecede” (AI 437.126-AgR/RS, Rel. Min. Carlos Britto — grifei):<br />

“Embargos de declaração — Extemporaneidade — Impugnação recursal<br />

prematura, deduzida em data anterior à da publicação do acórdão recorrido —<br />

Não-conhecimento do recurso.<br />

— A intempestividade dos recursos tanto pode derivar de impugnações<br />

prematuras (que se antecipam à publicação dos acórdãos) quanto decorrer de<br />

oposições tardias (que se registram após o decurso dos prazos recursais).


R.T.J. — <strong>199</strong> 863<br />

Em qualquer das duas situações — impugnação prematura ou oposição<br />

tardia —, a conseqüência de ordem processual é uma só: o não-conhecimento do<br />

recurso, por efeito de sua extemporânea interposição.<br />

— A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem advertido que a<br />

simples notícia do julgamento, além de não dar início à fluência do prazo<br />

recursal, também não legitima a prematura interposição de recurso, por absoluta<br />

falta de objeto. Precedentes.”<br />

(<strong>RTJ</strong> 182/1161-1162, Rel. Min. Celso de Mello)<br />

Com efeito, a simples notícia do julgamento, além de não dar início à fluência do<br />

prazo recursal, também não legitima a interposição de recurso, por absoluta falta de<br />

objeto, conforme tem advertido o magistério jurisprudencial firmado pelo Supremo<br />

Tribunal Federal (<strong>RTJ</strong> 187/498, Rel. Min. Celso de Mello — AI 152.091-AgR/SP, Rel.<br />

Min. Moreira Alves — AI 286.562/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa — RE 194.090-<br />

ED/RS, Rel. Min. Ilmar Galvão — RE 232.115-AgR-ED/CE, Rel. Min. Ilmar Galvão —<br />

RE 320.440-AgR/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, v.g.):<br />

“O termo inicial do prazo para recorrer extraordinariamente pressupõe que o<br />

acórdão tenha sido lavrado, assinado e publicadas as suas conclusões, não bastando<br />

a simples publicação da notícia do julgamento, ainda que em minuciosa súmula<br />

do decidido.”<br />

(<strong>RTJ</strong> 88/1012, Rel. Min. Cordeiro Guerra — grifei)<br />

“Ação direta de inconstitucionalidade — Medida cautelar deferida —<br />

Acórdão não publicado — Embargos de declaração (...).<br />

A interposição de recurso que se antecipe à própria publicação formal do<br />

acórdão revela-se comportamento processual extemporâneo e destituído de objeto. O<br />

prazo para interposição de recurso contra decisão colegiada só começa a fluir,<br />

ordinariamente, da publicação da súmula do acórdão no órgão oficial. Por isso<br />

mesmo, os pressupostos de cabimento dos embargos de declaração — obscuridade<br />

(...), contradição ou omissão — hão de ser aferidos em face do inteiro teor do<br />

acórdão a que se referem. A simples notícia do julgamento efetivado não dá<br />

início ao prazo recursal.”<br />

(<strong>RTJ</strong> 143/718-719, Rel. Min. Celso de Mello)<br />

“Embargos de declaração. Oposição contra acórdão que não conheceu de<br />

idêntico recurso, porquanto interposto antes de publicado o acórdão que se<br />

pretendia impugnar.<br />

O acórdão embargado não conheceu dos embargos de declaração, por haverem<br />

se antecipado à publicação da decisão impugnada.”<br />

(RE 204.378-ED-ED/RS, Rel. Min. Ilmar Galvão — grifei)<br />

“O prazo para interposição de recurso se conta a partir da publicação do<br />

acórdão. Não serve como termo inicial a mera notícia do julgamento.”<br />

(Pet 1.320-AgR-AgR/DF, Rel. Min. Nelson Jobim — grifei)


864<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

Os fundamentos que dão suporte a essa orientação jurisprudencial põem em<br />

evidência a circunstância de que a publicação do acórdão gera efeitos processuais<br />

específicos, pois, além de formalizar a integração dessa peça essencial ao processo,<br />

confere-lhe existência jurídica e fixa-lhe o próprio conteúdo material. É mediante a<br />

efetiva ocorrência dessa publicação formal que se viabiliza, processualmente, a<br />

intimação das partes, inclusive para efeito de interposição, opportuno tempore, dos<br />

recursos pertinentes.<br />

Daí a advertência feita por Moacyr Amaral Santos (“Primeiras Linhas de<br />

Direito Processual Civil”, vol. 3/26, 21ª ed., 2003, Saraiva), cuja lição, na matéria ora<br />

em exame, ressalta que “É da publicação que se conta o prazo para interposição do<br />

recurso” (grifei).<br />

Esse mesmo entendimento é perfilhado por José Frederico Marques (“Manual<br />

de Direito Processual Civil”, vol. 3/29, item n. 528, 9ª ed., 1987, Saraiva), que,<br />

em magistério irrepreensível, acentua ser, a publicação do pronunciamento<br />

jurisdicional do Estado, o fato relevante “que lhe dá qualidade de ato do processo”,<br />

passível, então, a partir dessa formal divulgação no órgão oficial, de todas as<br />

conseqüências autorizadas pelo ordenamento positivo, notadamente aquelas de<br />

natureza recursal.<br />

Igual percepção do tema é revelada por José Carlos Barbosa Moreira<br />

(“Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. V/671, item n. 377, <strong>199</strong>9, 8ª ed.,<br />

Forense), cujo comentário, a respeito da indispensabilidade da publicação do acórdão,<br />

enfatiza, considerado o que dispõe o art. 506, III, do Código de Processo Civil, que é<br />

somente com a publicação do acórdão que “começa a correr o prazo de interposição<br />

de qualquer recurso porventura cabível”.<br />

Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas, nego provimento ao<br />

presente recurso de agravo, mantendo, por seus próprios fundamentos, a decisão ora<br />

agravada.<br />

É o meu voto.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

AI 428.9<strong>07</strong>-AgR/RS — Relator: Ministro Celso de Mello. Agravante: Acelio Constantino<br />

Guariente (Advogados: Ressoli Luís Baldo Cunha e outro). Agravado: Estado do<br />

Rio Grande do Sul (Advogada: PGE/RS – Karina da Silva Brun).<br />

Decisão: A Turma, por votação unânime, negou provimento ao recurso de agravo,<br />

nos termos do voto do Relator.<br />

Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros Carlos<br />

Velloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie e Gilmar Mendes. Subprocurador-Geral da<br />

República, Dr. João Batista de Almeida.<br />

Brasília, 17 de junho de 2003 — Antonio Neto Brasil, Coordenador.


R.T.J. — <strong>199</strong> 865<br />

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 5<strong>07</strong>.874 — SP<br />

Relator: O Sr. Ministro Carlos Britto<br />

Agravantes: Carlos Alberto Queiroz Filho e outro — Agravado: Estado de São Paulo<br />

Agravo regimental em agravo de instrumento. Recurso extraordinário<br />

interposto pelo sistema de protocolo descentralizado. Admissibilidade.<br />

A Lei n. 10.352, de 26-12-01, ao alterar os artigos 542 e 547 do CPC,<br />

afastou o obstáculo à adoção de protocolos descentralizados. Esta nova<br />

regra processual, de aplicação imediata, orienta-se pelo critério da<br />

redução de custos, pela celeridade de tramitação e pelo mais facilitado<br />

acesso das partes às diversas jurisdições.<br />

Agravo regimental provido para determinar a subida do recurso<br />

extraordinário e assim possibilitar melhor exame do feito.<br />

ACÓRDÃO<br />

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo<br />

Tribunal Federal, por seu Tribunal Pleno, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie, na<br />

conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos,<br />

dar provimento ao agravo, nos termos do voto do Relator.<br />

Brasília, 23 de fevereiro de 2006 — Carlos Ayres Britto, Relator.<br />

DEBATES<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, peço vênia para divergir, porque o<br />

próprio Código de Processo Civil atribui à legislação local a disciplina quanto ao<br />

protocolo descentralizado, a possibilidade de se interpor recurso, por exemplo, no<br />

próprio juízo, para remessa ao tribunal, desburocratizando-se a atuação do profissional<br />

da advocacia. Creio ser esta a situação: há norma prevendo o denominado protocolo<br />

descentralizado. Então, em vez de se dar a entrada do recurso extraordinário no<br />

protocolo da própria Corte, é possível fazê-lo em outro protocolo.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Entendo que a tempestividade do apelo tem<br />

parâmetro legal próprio, que é a entrada da petição no protocolo do tribunal recorrido.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Mas o descentralizado, porque credenciado, é<br />

protocolo também do Tribunal gênero.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Eu me louvei numa decisão que a Ministra<br />

Ellen Gracie proferiu no RE 349.819/SP.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: A norma que prevê o protocolo descentralizado é o<br />

Regimento ou é a Lei de Organização Judiciária?<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): É um provimento.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: É um provimento do Tribunal. Acaba a parte sendo<br />

surpreendida.


866<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): O problema é que eles interpretam<br />

esse provimento como exclusivo dos recursos de competência do Tribunal estadual.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: E o provimento não tem especificidade.<br />

O Sr. Advogado Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas: É o art. 506, parágrafo único, que<br />

foi alterado em 2001, salvo engano, para, no prazo, a interposição do recurso, a petição<br />

será protocolada em cartório ou segundo a norma de organização judiciária, ressalvado<br />

o disposto no art. 524 do CPC. Anteriormente não havia nenhuma norma que autorizasse<br />

os tribunais de justiça, mas há essa questão de direito intertemporal a partir de 2001.<br />

Aqui não está indicando a lei.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): É uma jurisprudência serena.<br />

O Sr. Advogado Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas: Foi alterado realmente, tanto que<br />

tenho observado; nos pareceres mais recentes já tenho feito essa ressalva quanto à data.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: A ressalva é quanto ao agravo de instrumento. Certo<br />

é que o artigo 506 do Código de Processo Civil está na parte alusiva à apelação:<br />

Art. 506. O prazo para a interposição do recurso, aplicável em todos os casos<br />

o disposto no art. 184 e seus parágrafos, contar-se-á da data [...]<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): A tese é de que a petição de extraordinário<br />

deve ser protocolada na secretaria do tribunal.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): A tese para recurso extraordinário<br />

é que isso é interpretação da norma local. O tribunal é que, interpretando o seu<br />

provimento, diz que o sistema de protocolo descentralizado não se aplica aos recursos<br />

para o Supremo Tribunal.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Perfeito. Mas eu cito tantos julgados nessa<br />

mesma linha do meu voto.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Sim. Antigamente, não havia.<br />

Mas hoje temos realmente essa norma, possibilitando à lei local a integração de<br />

protocolos.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): O que é uma iniciativa louvável; reduz<br />

custos, facilita o acesso à justiça, dinamiza a tramitação do processo etc.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: É porque o advogado está na comarca e, então, não<br />

precisa deslocar-se ou mandar o recurso pelo Sedex.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): O art. 541, quanto ao recurso extraordinário,<br />

vamos ver o que ele diz.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Leio o artigo 541:<br />

O recurso extraordinário e o recurso especial, nos casos previstos na<br />

Constituição Federal, serão interpostos perante o presidente ou o vice-presidente<br />

do tribunal recorrido, em petições distintas, que conterão [...]<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Mas não diz com o protocolo; aí é<br />

o endereçamento do recurso. No caso concreto V. Exa. julgou intempestivo o recurso,<br />

porque protocolado em cartório de primeiro grau?


R.T.J. — <strong>199</strong> 867<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Protocolado a destempo. Vamos fazer o<br />

seguinte: retirar, indicar adiamento, e eu reestudo.<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Acho que este é um assunto de<br />

Plenário. Não podemos ficar com uma dúvida, decidindo de formas diferentes. É caso de<br />

decidir em Plenário e transformar a decisão em súmula, porque é preciso dar segurança às<br />

partes.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Admitir a prática, ou não.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Então vamos submeter ao Plenário e resolvese<br />

isso.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: Foi em recurso extraordinário?<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Foi em recurso extraordinário. V.<br />

Exa. julgou intempestivo o recurso extraordinário no agravo de instrumento. Não foi o<br />

presidente do Tribunal que o declarou intempestivo.<br />

O Sr. Ministro Marco Aurélio: O presidente do Tribunal teve como tempestivo e<br />

negou seguimento por outra razão.<br />

O Sr. Advogado Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas: Tem o art. 547 da Lei 10.352/2001,<br />

eu me equivoquei:<br />

“Art. 547. (...)<br />

Parágrafo único. Os serviços do protocolo poderão, a critério do tribunal, ser<br />

descentralizados, mediante delegação a ofícios de justiça de primeiro grau.”<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Mas o 542 prevê: “recebida a petição na<br />

secretaria do tribunal...”<br />

O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Não é obrigatório que a secretaria<br />

do tribunal seja apenas na Praça da Sé, ela pode ser também em Bauru.<br />

É melhor submeter ao Plenário, o importante nisso é ter uma decisão.<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): É melhor. Fixa uma orientação uniforme. Dá<br />

segurança às partes. De pleno acordo.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

AI 5<strong>07</strong>.874-AgR/SP — Relator: Ministro Carlos Britto. Agravantes: Carlos<br />

Alberto Queiroz Filho e outro (Advogados: Arthur Jorge Santos e outro). Agravado:<br />

Estado de São Paulo (Advogado: PGE/SP – Leslie Gorga Nunes).<br />

Decisão: A Primeira Turma decidiu remeter o presente agravo regimental no agravo<br />

de instrumento a julgamento do Tribunal Pleno. Unânime. Não participou deste julgamento<br />

o Ministro Eros Grau. Falou pelo Ministério Público Federal o Subprocurador-Geral da<br />

República, Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas.<br />

Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence. Presentes à sessão os Ministros Marco<br />

Aurélio, Cezar Peluso, Carlos Britto, e Eros Grau. Subprocurador-Geral da República, Dr.<br />

Paulo de Tarso Braz Lucas.<br />

Brasília, 7 de junho de 2005 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.


868<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

RELATÓRIO<br />

O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de agravo regimental contra decisão<br />

que negou seguimento a agravo de instrumento, ao fundamento de que o recurso<br />

extraordinário foi apresentado extemporaneamente.<br />

2. Pois bem, a parte agravante requer seja desconsiderada a referida decisão. Para<br />

tanto, junta aos autos cópia do apelo extremo, protocolado dentro do prazo legal, dia 3<br />

de novembro de 2003.<br />

3. Havendo mantido a decisão agravada, submeto o presente recurso à apreciação<br />

da Turma.<br />

É o relatório.<br />

VOTO<br />

O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Tenho que o inconformismo não<br />

merece acolhida.<br />

6. Com efeito, vê-se dos autos que a petição referente ao apelo extremo foi<br />

protocolada, perante o Tribunal a quo, somente em 10-11-2003, data em que o prazo<br />

recursal (transcorrido entre os dias 20 de outubro e 3 de novembro de 2003) já se havia<br />

expirado.<br />

7. Cumpre observar que o carimbo aposto na fl. 71, referente à data em que a<br />

petição foi protocolada na 1ª instância, não se presta à aferição da tempestividade do<br />

recurso. Isso porque, segundo iterativa jurisprudência desta colenda Corte, as regras dos<br />

sistemas de protocolo integrado não são aplicáveis aos recursos dirigidos às instâncias<br />

extraordinárias. A tempestividade do apelo extremo tem parâmetro legal próprio, que é<br />

a entrada da petição no protocolo do tribunal recorrido (art. 541 do CPC).<br />

8. Cito, a propósito, a ementa do RE 349.819-AgR, Relatora a Ministra Ellen<br />

Gracie:<br />

“O sistema de protocolo integrado, iniciativa louvável, que reduz custos,<br />

facilita o acesso à justiça e dinamiza a tramitação dos processos, quando criado por<br />

provimento da Justiça estadual, só produz os efeitos de interrupção de prazos no<br />

âmbito da respectiva área de jurisdição. Não se pode estender aos recursos que se<br />

desenvolvem na instância extraordinária, porque submetidos a expressa determinação<br />

legal (CPC, art. 541). Assim, a petição do recurso extraordinário deve ser<br />

protocolada na Secretaria do Tribunal que proferiu a decisão recorrida, no prazo<br />

legal, o que não ocorreu na espécie. Precedente.<br />

Agravo regimental improvido.”<br />

9. No mesmo sentido, os seguintes julgados: AI 108.716-AgR, Relator Ministro<br />

Néri da Silveira; AI 373.221-AgR, Relator Ministro Carlos Velloso; AI 400.418-AgR,<br />

Relator Ministro Ilmar Galvão; AI 517.194-AgR, Relator Ministro Gilmar Mendes, e o<br />

RE 408.066-AgR, Relator o Ministro Cezar Peluso.<br />

10. Pelos motivos expendidos, nego provimento ao agravo regimental.<br />

11. É como voto.


R.T.J. — <strong>199</strong> 869<br />

EXTRATO DA ATA<br />

AI 5<strong>07</strong>.874-AgR/SP — Relator: Ministro Carlos Britto. Agravantes: Carlos Alberto<br />

Queiroz Filho e outro (Advogados: Arthur Jorge Santos e outro). Agravado: Estado de São<br />

Paulo (Advogado: PGE/SP – Leslie Gorga Nunes).<br />

Decisão: Após o voto do Ministro Carlos Britto (Relator), negando provimento ao<br />

agravo, pediu vista dos autos a Ministra Ellen Gracie. Ausentes, justificadamente, neste<br />

julgamento, os Ministros Carlos Velloso e Gilmar Mendes. Presidência do Ministro<br />

Nelson Jobim.<br />

Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes,<br />

Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Vice-Procurador-Geral da<br />

República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos.<br />

Brasília, 17 de novembro de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.<br />

VOTO (Vista)<br />

A Sra. Ministra Ellen Gracie: Pedi vista destes autos após o voto do em. Rel. Min.<br />

Carlos Britto, que negava provimento ao agravo com base na jurisprudência da Casa.<br />

O apelo extremo foi afastado por extemporâneo. Entendeu o em. Relator que sua<br />

protocolização se dera em 10-11-03 — data do carimbo da Secretaria do Tribunal, como<br />

se verifica de fl. 71 —, enquanto a publicação do acórdão recorrido fora feita em 17-10-<br />

03. Os recorrentes, no entanto, fizeram prova de que protocolaram no último dia do<br />

prazo, 3-11-03, seu recurso extraordinário. E nem sequer o fizeram em serviço<br />

descentralizado, mas no próprio TJ/SP, Fórum João Mendes, no Depri 1, o que aliás se<br />

confirma na mesma cópia de fl. 71. O carimbo da Secretaria está sobreposto à chancela<br />

que indica o dia 3-11-03. Segundo informação obtida no TJ/SP, toda a protocolização<br />

de recursos é feita neste setor denominado Depri 1.<br />

2. Por isso entendo que o caso é de dar-se provimento ao agravo, para que seja<br />

conhecido o recurso extraordinário.<br />

3. Creio, todavia, que a ocasião serve para que se rediscuta a questão dos<br />

protocolos descentralizados. Em ocasião anterior (RE 349.819-AgR, 1ª Turma, votação<br />

unânime), já me manifestei pela inviabilidade do aproveitamento de recursos raros que<br />

houvessem sido protocolados em serviços descentralizados ou integrados, tudo porque<br />

o provimento da Justiça estadual ou do Tribunal Regional Federal que os houvesse<br />

instituído só poderia produzir efeitos no âmbito da respectiva área de jurisdição, não se<br />

podendo estender aos recursos que se desenvolvem na instância extraordinária, porque<br />

estes eram submetidos à expressa determinação legal (CPC, art. 542).<br />

No entanto, verifico que a Lei n. 10.352, de 26-12-01, veio a afastar o obstáculo<br />

que antes se opunha ao estabelecimento de protocolos descentralizados. Tal iniciativa,<br />

das mais louváveis, por reduzir custos e facilitar o acesso à Justiça, dinamizando a<br />

tramitação processual, antes encontrava obstáculo na regra inscrita no art. 542 do CPC.<br />

Exigia aquela norma que os recursos especial e extraordinário fossem protocolados nas<br />

secretarias dos tribunais contra cujas decisões se voltavam. Tudo porque a deliberação


870<br />

R.T.J. — <strong>199</strong><br />

de cada tribunal em capilarizar seus serviços não se podia opor à determinação expressa<br />

contida em lei federal.<br />

Pois bem, a lei foi alterada com a introdução do parágrafo único ao art. 547: “Os<br />

serviços de protocolo poderão, a critério do Tribunal, ser descentralizados, mediante<br />

delegação a ofícios de justiça de primeiro grau.” Completou-se a reforma com a<br />

supressão no caput do art. 542 da expressão “e aí protocolada”, pelo que nada mais<br />

obriga que os chamados recursos raros sejam aviados exclusivamente na sede dos<br />

tribunais ad quem.<br />

A regra processual tem aplicação imediata e por isso alcança os feitos em tramitação.<br />

Alcança-os no estado em que se encontram. Não retroage para fazer renovar atos<br />

validamente praticados nos termos da legislação anterior. Mas beneficia, coonestando-os,<br />

aqueles atos que antes apresentavam defeito formal relevado pela lei nova.<br />

4. Por essas razões, entendo que deva ser conhecido o recurso interposto em<br />

protocolo descentralizado, mesmo que sua apresentação se tenha dado antes da edição<br />

da Lei n. 10.356, de 26-12-01.<br />

5. No caso presente, em que o protocolo foi procedido no próprio TJ/SP, com mais<br />

razão, dou provimento ao agravo para que seja conhecido o RE.<br />

VOTO (Retificação)<br />

O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Senhora Presidente, ouvi atentamente e<br />

penso que a decisão de Vossa Excelência realmente se orienta pela redução de custos,<br />

pela celeridade processual e pelo mais facilitado acesso às diversas jurisdições.<br />

Adiro com toda a comodidade intelectual.<br />

EXTRATO DA ATA<br />

AI 5<strong>07</strong>.874-AgR/SP — Relator: Ministro Carlos Britto. Agravantes: Carlos Alberto<br />

Queiroz Filho e outro (Advogados: Arthur Jorge Santos e outro). Agravado: Estado de São<br />

Paulo (Advogado: PGE/SP – Leslie Gorga Nunes).<br />

Decisão: Renovado o pedido de vista da Ministra Ellen Gracie, justificadamente,<br />

nos termos do § 1º do artigo 1º da Resolução n. 278, de 15 de dezembro de 2003.<br />

Presidência do Ministro Nelson Jobim. Plenário, 14-12-2005.<br />

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, deu provimento ao agravo, nos termos do<br />

voto do Relator. Reformulou o voto proferido o Relator. Ausente, justificadamente,<br />

neste julgamento, o Ministro Nelson Jobim (Presidente). Presidiu o julgamento a<br />

Ministra Ellen Gracie (Vice-Presidente).<br />

Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda<br />

Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,<br />

Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr.<br />

Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.<br />

Brasília, 23 de fevereiro de 2006 — Luiz Tomimatsu, Secretário.


ÍNDICE ALFABÉTICO


A<br />

Ct<br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Ação de improbidade administrativa: coisa julgada. (...) Mandato parlamentar.<br />

MS 25.461 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/687<br />

Ação declaratória de constitucionalidade. Cabimento. Ato normativo de<br />

caráter geral, impessoal e abstrato. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ação declaratória de constitucionalidade. Legitimidade ativa. Associação<br />

dos Magistrados do Brasil – AMB. Entidade de classe de âmbito nacional.<br />

CF/88, art. 103, IX. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ação declaratória de constitucionalidade. (...) Medida cautelar. ADC 12-MC<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ação declaratória de constitucionalidade. Não-conhecimento. Alteração<br />

superveniente do ato normativo questionado. Resolução n. 7/05-CNJ, art. 3º,<br />

revogação pela Resolução n. 9/05-CNJ, art. 1º. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ação declaratória de constitucionalidade. Petição inicial. Controvérsia<br />

judicial relevante: indicação. Lei n. 9.868/99, art. 14, III. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/427<br />

Ação direta de inconstitucionalidade. Cabimento. Competência legislativa:<br />

repartição. Ofensa indireta: inocorrência. ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633<br />

Ação direta de inconstitucionalidade. Extensão a dispositivo não impugnado<br />

na inicial. Relação de dependência com dispositivo impugnado.<br />

Inconstitucionalidade por arrastamento. Decreto estadual n. 6.253/06/PR:<br />

inconstitucionalidade. ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633


IV<br />

Ali-Cab — ÍNDICE ALFABÉTICO<br />

Ct Alimento transgênico: produção, consumo, proteção e defesa da saúde. (...)<br />

Competência legislativa concorrente. ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633<br />

Trbt<br />

Alíquota: majoração. (...) Contribuição para o Financiamento da<br />

Seguridade Social – COFINS. RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

Pr<strong>STF</strong> Alteração superveniente do ato normativo questionado. (...) Ação declaratória<br />

de constitucionalidade. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Cv Aplicação financeira: RDB. (...) Contrato. RE 181.966 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/735<br />

Adm Aposentadoria. Juiz classista. Ilegalidade decretada pelo TCU. Atividade<br />

insalubre. Tempo ficto: contagem. Regime estatutário. Lei n. 6.903/81:<br />

recepção. CF/88, art. 40, § 2º, redação anterior à EC n. 20/98. Súmula 359.<br />

MS 25.064 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/672<br />

PrCv Aposentadoria especial. (...) Mandado de segurança. MS 25.440 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/676<br />

Adm Aposentadoria especial. Professor. Decadência administrativa:<br />

inocorrência. Lei n. 9.784/99, art. 54: inaplicabilidade. MS 25.440 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/676<br />

Adm Aproveitamento. (...) Servidor público estadual. ADI 3.061 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/622<br />

Pr<strong>STF</strong> Associação dos Magistrados do Brasil – AMB. (...) Ação declaratória de<br />

constitucionalidade. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Adm Atividade insalubre. (...) Aposentadoria. MS 25.064 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/672<br />

Cv Ato jurídico perfeito: ofensa inocorrente. (...) Contrato. RE 181.966 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/735<br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Ct<br />

Ct<br />

Adm<br />

Ato normativo de caráter geral, impessoal e abstrato. (...) Ação declaratória<br />

de constitucionalidade. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ato vinculado da Mesa da Câmara dos Deputados. (...) Mandato parlamentar.<br />

MS 25.461 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/687<br />

Atribuição de chefia: inclusão. (...) Conselho Nacional de Justiça – CNJ.<br />

ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Auditor fiscal do Tesouro Nacional. (...) Servidor público. MS 22.373 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/644<br />

Trbt Base de cálculo. (...) Contribuição social. RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

B<br />

C<br />

Pr<strong>STF</strong> Cabimento. (...) Ação declaratória de constitucionalidade. ADC 12-MC<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Pr<strong>STF</strong> Cabimento. (...) Ação direta de inconstitucionalidade. ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633


ÍNDICE ALFABÉTICO — Car-Com<br />

V<br />

Ct Cargo em comissão e função de confiança. (...) Conselho Nacional de<br />

Justiça – CNJ. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ct CDC/90, art. 3º, § 2º: inteligência. (...) Instituição financeira. ADI 2.591<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/481<br />

Cv Celebração anterior à norma instituidora. (...) Contrato. RE 181.966 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/735<br />

Ct CF/88, arts. 5º, XXXII, e 170, V. (...) Instituição financeira. ADI 2.591 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/481<br />

Ct CF/88, art. 24, V e XII. (...) Competência legislativa concorrente. ADI 3.645<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633<br />

Ct CF/88, art. 37, V. (...) Conselho Nacional de Justiça – CNJ. ADC 12-MC<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Adm CF/88, art. 40, § 2º, redação anterior à EC n. 20/98. (...) Aposentadoria. MS<br />

25.064 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/672<br />

Ct CF/88, art. 55, IV. (...) Mandato parlamentar. MS 25.461 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/687<br />

Ct CF/88, art. 61, § 1º, II, “a” e “c”. (...) Processo legislativo. ADI 3.061 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/622<br />

Ct CF/88, art. 100. (...) Medida provisória. RE 415.932 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/837<br />

Ct CF/88, art. 102, III, “b”. (...) Controle de constitucionalidade. RE 415.932<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/837<br />

Pr<strong>STF</strong> CF/88, art. 103, IX. (...) Ação declaratória de constitucionalidade. ADC 12-MC<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ct CF/88, art. 103-B, § 4º, II. (...) Competência. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Trbt CF/88, art. 195, redação anterior à EC n. 20/98. (...) Contribuição social.<br />

RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

Trbt<br />

Ct<br />

Adm<br />

Ct<br />

Ct<br />

CF/88, art. 195, I, redação anterior à EC n. 20/98. (...) Contribuição para<br />

o Financiamento da Seguridade Social – COFINS. RE 357.950 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/748<br />

Código de Proteção e Defesa do Consumidor: sujeição. (...) Instituição<br />

financeira. ADI 2.591 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/481<br />

Comparecimento do impetrante: vício sanado. (...) Processo administrativo.<br />

MS 22.373 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/644<br />

Competência. Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Resolução: expedição.<br />

Nepotismo: combate. Norma de caráter primário. CF/88, art. 103-B, § 4º, II.<br />

ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Competência legislativa. União Federal. Trânsito. Multa: aplicação. Lei<br />

distrital n. 2.929/02/DF: inconstitucionalidade. ADI 3.186 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/626


VI<br />

Com-Con — ÍNDICE ALFABÉTICO<br />

Ct<br />

Competência legislativa concorrente. União Federal. Alimento<br />

transgênico: produção, consumo, proteção e defesa da saúde. Rotulagem<br />

informativa: norma geral. CF/88, art. 24, V e XII. Lei estadual n. 14.861/05/PR:<br />

inconstitucionalidade. Decreto estadual n. 6.253/06/PR: inconstitucionalidade.<br />

ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633<br />

Pr<strong>STF</strong> Competência legislativa: repartição. (...) Ação direta de inconstitucionalidade.<br />

ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633<br />

PrPn Complexidade da causa. (...) Instrução criminal. HC 86.329 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/706<br />

Adm Concurso público: ausência. (...) Servidor público estadual. ADI 3.061 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/622<br />

Ct Conselho Nacional de Justiça – CNJ. (...) Competência. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/427<br />

Ct<br />

Ct<br />

Ct<br />

Ct<br />

Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Resolução. Nepotismo: combate.<br />

Cargo em comissão e função de confiança. Atribuição de chefia: inclusão.<br />

CF/88, art. 37, V. Resolução n. 7/05-CNJ, art. 2º, II, III, IV e V: interpretação<br />

conforme à Constituição. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Resolução. Nepotismo: combate.<br />

Criação de novo grau de parentesco: impedimento. Matéria de caráter civil.<br />

Resolução n. 7/05-CNJ, art. 2º: interpretação conforme à Constituição. ADC<br />

12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Resolução. Nepotismo: combate.<br />

Liberdade de nomeação e exoneração de cargo em comissão e função de<br />

confiança: ofensa inocorrente. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Resolução. Nepotismo: combate.<br />

Órgão interno do Judiciário. Princípio da independência e harmonia dos<br />

Poderes: ofensa inocorrente. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ct Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Resolução. Nepotismo: combate.<br />

Poder Judiciário: caráter nacional. Princípio federativo: ofensa inocorrente.<br />

ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ct Constitucionalidade superveniente: impossibilidade. (...) Controle de<br />

constitucionalidade. RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

Ct Consumidor: definição. (...) Instituição financeira. ADI 2.591 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/481<br />

Cv<br />

Trbt<br />

Contrato. Aplicação financeira: RDB. Celebração anterior à norma<br />

instituidora. Plano Collor II. Fator de deflação (tablita): aplicação imediata.<br />

Ato jurídico perfeito: ofensa inocorrente. Lei n. 8.177/91. RE 181.966 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/735<br />

Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS.<br />

Alíquota: majoração. Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL:<br />

compensação. Princípio da isonomia: ofensa inocorrente. Lei n. 9.718/98,<br />

art. 8º. RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748


ÍNDICE ALFABÉTICO — Con-Dec<br />

VII<br />

Trbt Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS.<br />

Alíquota: majoração. Lei complementar: desnecessidade. CF/88, art. 195,<br />

I, redação anterior à EC n. 20/98. Lei n. 9.718/98, art. 8º. RE 357.950 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/748<br />

Trbt Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS. (...)<br />

Contribuição social. RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

Trbt Contribuição social. Contribuição para o Financiamento da Seguridade<br />

Social – COFINS. Programa de Integração Social – PIS. Base de cálculo.<br />

Faturamento. Receita bruta: ampliação do conceito. CTN/66, art. 110. CF/88,<br />

art. 195, redação anterior à EC n. 20/98. Lei n. 9.718/98, art. 3º, § 1º: inconstitucionalidade.<br />

RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

Trbt Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL: compensação. (...)<br />

Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS.<br />

RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

Ct<br />

Ct<br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Ct<br />

Controle de constitucionalidade. Dispositivo impugnado inconstitucional.<br />

Emenda constitucional: alteração do parâmetro constitucional.<br />

Constitucionalidade superveniente: impossibilidade. RE 357.950 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/748<br />

Controle de constitucionalidade. “Incidenter tantum”. Efeito devolutivo.<br />

CF/88, art. 102, III, “b”. RE 415.932 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/837<br />

Controvérsia judicial relevante: indicação. (...) Ação declaratória de<br />

constitucionalidade. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

CPC/73, art. 506, III. (...) Recurso extraordinário. AI 428.9<strong>07</strong>-AgR <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/861<br />

CPC/73, arts. 542 e 547, redação da Lei n. 10.352/01. (...) Recurso extraordinário.<br />

AI 5<strong>07</strong>.874-AgR <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/865<br />

Criação de novo grau de parentesco: impedimento. (...) Conselho Nacional<br />

de Justiça – CNJ. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

PrPn Crime contra a ordem econômica. (...) Inquérito policial. HC 87.654 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/727<br />

Trbt CTN/66, art. 110. (...) Contribuição social. RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

PrPn CTN/66, arts. 195 e 198, § 3º, I. (...) Prova criminal. HC 87.654 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/727<br />

D<br />

Adm<br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Decadência administrativa: inocorrência. (...) Aposentadoria especial. MS<br />

25.440 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/676<br />

Decisão que concede ou denega medida liminar. (...) Recurso extraordinário.<br />

RE 282.172-AgR <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/746


VIII<br />

Dec-Ext — ÍNDICE ALFABÉTICO<br />

Pr<strong>STF</strong> Decreto estadual n. 6.253/06/PR: inconstitucionalidade. (...) Ação direta de<br />

inconstitucionalidade. ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633<br />

Ct Decreto estadual n. 6.253/06/PR: inconstitucionalidade. (...) Competência<br />

legislativa concorrente. ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633<br />

PrPn Defesa prévia: inobservância. (...) Processo criminal. RHC 86.680 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/<br />

717<br />

Adm Demissão: julgamento fora do prazo. (...) Servidor público. MS 22.373 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/644<br />

Pr<strong>STF</strong> Descabimento. (...) Recurso extraordinário. RE 282.172-AgR <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/746<br />

Ct Dispositivo impugnado inconstitucional. (...) Controle de constitucionalidade.<br />

RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

E<br />

Ct Efeito devolutivo. (...) Controle de constitucionalidade. RE 415.932 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/837<br />

Pr<strong>STF</strong> Efeito “ex tunc”. (...) Medida cautelar. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Pr<strong>STF</strong> Efeito vinculante. (...) Medida cautelar. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

PrCv Embargos: ausência. (...) Execução. RE 415.932 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/837<br />

Ct Emenda constitucional: alteração do parâmetro constitucional. (...) Controle<br />

de constitucionalidade. RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

Pr<strong>STF</strong> Entidade de classe de âmbito nacional. (...) Ação declaratória de constitucionalidade.<br />

ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ct Estação ecológica: ampliação. (...) Meio ambiente. MS 24.665 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/652<br />

Ct Estudo técnico e consulta pública: necessidade. (...) Meio ambiente. MS<br />

24.665 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/652<br />

PrPn Excesso de prazo justificado. (...) Instrução criminal. HC 86.329 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/<br />

706<br />

PrCv<br />

Ct<br />

Execução. Quantia certa. Fazenda Pública. Embargos: ausência. Honorários<br />

advocatícios: descabimento. Lei n. 9.494/97, art. 1º-D, redação da MP n.<br />

2.180-35/01: interpretação conforme à Constituição. RE 415.932 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/<br />

837<br />

Execução mediante precatório. (...) Medida provisória. RE 415.932 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/837<br />

Pr<strong>STF</strong> Extensão a dispositivo não impugnado na inicial. (...) Ação direta de<br />

inconstitucionalidade. ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633<br />

Ct Extinção. (...) Mandato parlamentar. MS 25.461 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/687


ÍNDICE ALFABÉTICO — Fat-Int<br />

IX<br />

F<br />

Cv Fator de deflação (tablita): aplicação imediata. (...) Contrato. RE 181.966<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/735<br />

Trbt Faturamento. (...) Contribuição social. RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

PrCv Fazenda Pública. (...) Execução. RE 415.932 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/837<br />

PrPn Fisco: função de fiscalização. (...) Prova criminal. HC 87.654 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/727<br />

Adm Flagrante esperado: ocorrência. (...) Processo administrativo. MS 22.373<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/644<br />

Adm Flagrante preparado: inaplicabilidade. (...) Processo administrativo. MS<br />

22.373 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/644<br />

H<br />

PrCv<br />

Honorários advocatícios: descabimento. (...) Execução. RE 415.932 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/837<br />

I<br />

Adm Ilegalidade decretada pelo TCU. (...) Aposentadoria. MS 25.064 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/672<br />

Ct “Incidenter tantum”. (...) Controle de constitucionalidade. RE 415.932 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/837<br />

Pr<strong>STF</strong> Inconstitucionalidade por arrastamento. (...) Ação direta de<br />

inconstitucionalidade. ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633<br />

PrPn Inquérito policial. Trancamento: descabimento. Crime contra a ordem econômica.<br />

Segunda quebra de sigilo fiscal: prévia autorização judicial. Vício<br />

da primeira quebra de sigilo: não-contaminação. HC 87.654 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/727<br />

PrPn Inquirição de testemunha da defesa: difícil acesso. (...) Instrução criminal.<br />

HC 86.329 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/706<br />

Ct Instituição financeira. Código de Proteção e Defesa do Consumidor: sujeição.<br />

Consumidor: definição. CDC/90, art. 3º, § 2º: inteligência. CF/88, arts.<br />

5º, XXXII, e 170, V. ADI 2.591 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/481<br />

PrPn Instrução criminal. Excesso de prazo justificado. Complexidade da causa.<br />

Inquirição de testemunha da defesa: difícil acesso. HC 86.329 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/706<br />

Pr<strong>STF</strong> Intempestividade. (...) Recurso extraordinário. AI 428.9<strong>07</strong>-AgR <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/<br />

861<br />

Pr<strong>STF</strong> Interposição em protocolo descentralizado: possibilidade. (...) Recurso<br />

extraordinário. AI 5<strong>07</strong>.874-AgR <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/865<br />

Pr<strong>STF</strong> Interposição em setor competente do tribunal “a quo”. (...) Recurso extraordinário.<br />

AI 5<strong>07</strong>.874-AgR <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/865


X<br />

Jui-Lib — ÍNDICE ALFABÉTICO<br />

Adm Juiz classista. (...) Aposentadoria. MS 25.064 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/672<br />

Pr<strong>STF</strong><br />

J<br />

L<br />

Legitimidade ativa. (...) Ação declaratória de constitucionalidade. ADC<br />

12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Trbt Lei complementar: desnecessidade. (...) Contribuição para o Financiamento<br />

da Seguridade Social – COFINS. RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

Ct Lei distrital n. 2.929/02/DF: inconstitucionalidade. (...) Competência<br />

legislativa. ADI 3.186 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/626<br />

Ct Lei estadual n. 538/2000/AM: inconstitucionalidade. (...) Processo<br />

legislativo. ADI 3.061 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/622<br />

Adm Lei estadual n. 538/2000/AM: inconstitucionalidade. (...) Servidor público<br />

estadual. ADI 3.061 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/622<br />

Ct Lei estadual n. 14.861/05/PR: inconstitucionalidade. (...) Competência<br />

legislativa concorrente. ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633<br />

Adm Lei n. 6.903/81: recepção. (...) Aposentadoria. MS 25.064 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/672<br />

Adm Lei n. 8.112/90, art. 169, § 1º. (...) Servidor público. MS 22.373 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/<br />

644<br />

Cv Lei n. 8.177/91. (...) Contrato. RE 181.966 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/735<br />

PrCv Lei n. 9.494/97, art. 1º-D, redação da MP n. 2.180-35/01: interpretação<br />

conforme à Constituição. (...) Execução. RE 415.932 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/837<br />

Trbt Lei n. 9.718/98, art. 3º, § 1º: inconstitucionalidade. (...) Contribuição social.<br />

RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

Trbt Lei n. 9.718/98, art. 8º. (...) Contribuição para o Financiamento da<br />

Seguridade Social – COFINS. RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

Adm Lei n. 9.784/99, art. 54: inaplicabilidade. (...) Aposentadoria especial.<br />

MS 25.440 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/676<br />

Pr<strong>STF</strong> Lei n. 9.868/99, art. 14, III. (...) Ação declaratória de constitucionalidade.<br />

ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ct Lei n. 9.985/2000, art. 66, §§ 2º e 6º: inteligência. (...) Meio ambiente.<br />

MS 24.665 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/652<br />

PrPn Lei n. 10.409/02, art. 38. (...) Processo criminal. RHC 86.680 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/717<br />

Ct Liberdade de nomeação e exoneração de cargo em comissão e função de<br />

confiança: ofensa inocorrente. (...) Conselho Nacional de Justiça – CNJ.<br />

ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427


ÍNDICE ALFABÉTICO — Man-Nul<br />

XI<br />

PrCv<br />

PrCv<br />

M<br />

Mandado de segurança. Matéria de prova. Aposentadoria especial. Professor.<br />

MS 25.440 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/676<br />

Mandado de segurança. Matéria de prova. Servidor público: avaliação<br />

psicológica. MS 22.373 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/644<br />

Ct Mandato parlamentar. Extinção. Ato vinculado da Mesa da Câmara dos<br />

Deputados. Ação de improbidade administrativa: coisa julgada. Perda dos<br />

direitos políticos. CF/88, art. 55, IV. MS 25.461 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/687<br />

Ct Matéria de caráter civil. (...) Conselho Nacional de Justiça – CNJ. ADC 12-MC<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

PrCv Matéria de prova. (...) Mandado de segurança. MS 22.373 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/644 -<br />

MS 25.440 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/676<br />

Ct Matéria reservada à iniciativa do Executivo. (...) Processo legislativo. ADI<br />

3.061 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/622<br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Ct<br />

Ct<br />

Medida cautelar. Ação declaratória de constitucionalidade. Efeito<br />

vinculante. Efeito “ex tunc”. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Medida provisória. Urgência e relevância. Execução mediante precatório.<br />

CF/88, art. 100. RE 415.932 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/837<br />

Meio ambiente. Estação ecológica: ampliação. Estudo técnico e consulta<br />

pública: necessidade. Lei n. 9.985/2000, art. 66, §§ 2º e 6º: inteligência.<br />

MS 24.665 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/652<br />

PrPn Ministério Público: comunicação de crime em tese. (...) Prova criminal.<br />

HC 87.654 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/727<br />

Ct Multa: aplicação. (...) Competência legislativa. ADI 3.186 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/<br />

626<br />

N<br />

Pr<strong>STF</strong> Não-conhecimento. (...) Ação declaratória de constitucionalidade. ADC<br />

12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ct Nepotismo: combate. (...) Competência. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ct Nepotismo: combate. (...) Conselho Nacional de Justiça – CNJ. ADC 12-MC<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ct Norma de caráter primário. (...) Competência. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/<br />

427<br />

Adm Notificação do cônjuge. (...) Processo administrativo. MS 22.373 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/<br />

644<br />

PrPn Nulidade. (...) Processo criminal. RHC 86.680 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/717


XII<br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Ct<br />

Ofe-Pro — ÍNDICE ALFABÉTICO<br />

O<br />

Ofensa indireta: inocorrência. (...) Ação direta de inconstitucionalidade.<br />

ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633<br />

Órgão interno do Judiciário. (...) Conselho Nacional de Justiça – CNJ. ADC<br />

12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

P<br />

Ct<br />

Perda dos direitos políticos. (...) Mandato parlamentar. MS 25.461 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/687<br />

Pr<strong>STF</strong> Petição inicial. (...) Ação declaratória de constitucionalidade. ADC 12-MC<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Cv Plano Collor II. (...) Contrato. RE 181.966 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/735<br />

Ct Poder Judiciário: caráter nacional. (...) Conselho Nacional de Justiça – CNJ.<br />

ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Adm Portaria de instauração: descrição suficiente do fato. (...) Processo administrativo.<br />

MS 22.373 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/644<br />

PrPn Prejuízo à defesa. (...) Processo criminal. RHC 86.680 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/717<br />

Adm Princípio da ampla defesa: ofensa inocorrente. (...) Processo administrativo.<br />

MS 22.373 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/644<br />

Ct Princípio da independência e harmonia dos Poderes: ofensa inocorrente. (...)<br />

Conselho Nacional de Justiça – CNJ. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Trbt Princípio da isonomia: ofensa inocorrente. (...) Contribuição para o Financiamento<br />

da Seguridade Social – COFINS. RE 357.950 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

Ct Princípio federativo: ofensa inocorrente. (...) Conselho Nacional de Justiça –<br />

CNJ. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Adm<br />

Adm<br />

Adm<br />

PrPn<br />

Ct<br />

Processo administrativo. Flagrante esperado: ocorrência. Flagrante preparado:<br />

inaplicabilidade. MS 22.373 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/644<br />

Processo administrativo. Portaria de instauração: descrição suficiente do<br />

fato. Notificação do cônjuge. Comparecimento do impetrante: vício sanado.<br />

Princípio da ampla defesa: ofensa inocorrente. MS 22.373 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/644<br />

Processo administrativo: nulidade inocorrente. (...) Servidor público. MS<br />

22.373 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/644<br />

Processo criminal. Nulidade. Tráfico de entorpecente. Defesa prévia:<br />

inobservância. Prejuízo à defesa. Lei n. 10.409/02, art. 38. RHC 86.680 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/717<br />

Processo legislativo. Matéria reservada à iniciativa do Executivo. Quadro de<br />

pessoal: criação. CF/88, art. 61, § 1º, II, “a” e “c”. Lei estadual n. 538/2000/<br />

AM: inconstitucionalidade. ADI 3.061 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/622


ÍNDICE ALFABÉTICO — Pro-Res<br />

XIII<br />

Adm Professor. (...) Aposentadoria especial. MS 25.440 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/676<br />

PrCv Professor. (...) Mandado de segurança. MS 25.440 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/676<br />

Trbt Programa de Integração Social – PIS. (...) Contribuição social. RE 357.950<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

PrPn Prova criminal. Quebra de sigilo fiscal. Fisco: função de fiscalização. Ministério<br />

Público: comunicação de crime em tese. CTN/66, arts. 195 e 198, § 3º, I.<br />

HC 87.654 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/727<br />

Pr<strong>STF</strong> Publicação do acórdão recorrido: necessidade. (...) Recurso extraordinário.<br />

AI 428.9<strong>07</strong>-AgR <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/861<br />

Q<br />

Ct Quadro de pessoal: criação. (...) Processo legislativo. ADI 3.061 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/622<br />

Adm Quadro especial. (...) Servidor público estadual. ADI 3.061 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/622<br />

PrCv Quantia certa. (...) Execução. RE 415.932 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/837<br />

PrPn Quebra de sigilo fiscal. (...) Prova criminal. HC 87.654 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/727<br />

R<br />

Trbt Receita bruta: ampliação do conceito. (...) Contribuição social. RE 357.950<br />

<strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/748<br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Recurso extraordinário. Descabimento. Decisão que concede ou denega<br />

medida liminar. RE 282.172-AgR <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/746<br />

Recurso extraordinário. Intempestividade. Publicação do acórdão recorrido:<br />

necessidade. CPC/73, art. 506, III. AI 428.9<strong>07</strong>-AgR <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/861<br />

Recurso extraordinário. Interposição em protocolo descentralizado: possibilidade.<br />

Redução de custos, acesso à Justiça e celeridade processual. CPC/73,<br />

arts. 542 e 547, redação da Lei n. 10.352/01. AI 5<strong>07</strong>.874-AgR <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/<br />

865<br />

Recurso extraordinário. Tempestividade. Interposição em setor competente<br />

do tribunal “a quo”. AI 5<strong>07</strong>.874-AgR <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/865<br />

Pr<strong>STF</strong> Redução de custos, acesso à Justiça e celeridade processual. (...) Recurso<br />

extraordinário. AI 5<strong>07</strong>.874-AgR <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/865<br />

Adm Regime estatutário. (...) Aposentadoria. MS 25.064 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/672<br />

Pr<strong>STF</strong><br />

Ct<br />

Relação de dependência com dispositivo impugnado. (...) Ação direta de<br />

inconstitucionalidade. ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633<br />

Resolução. (...) Conselho Nacional de Justiça – CNJ. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/427


XIV<br />

Res-Trâ — ÍNDICE ALFABÉTICO<br />

Ct Resolução: expedição. (...) Competência. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ct Resolução n. 7/05-CNJ, art. 2º: interpretação conforme à Constituição. (...)<br />

Conselho Nacional de Justiça – CNJ. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/427<br />

Ct Resolução n. 7/05-CNJ, art. 2º, II, III, IV e V: interpretação conforme à<br />

Constituição. (...) Conselho Nacional de Justiça – CNJ. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/427<br />

Pr<strong>STF</strong> Resolução n. 7/05-CNJ, art. 3º, revogação pela Resolução n. 9/05-CNJ,<br />

art. 1º. (...) Ação declaratória de constitucionalidade. ADC 12-MC <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/427<br />

Ct Rotulagem informativa: norma geral. (...) Competência legislativa concorrente.<br />

ADI 3.645 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/633<br />

PrPn<br />

Adm<br />

PrCv<br />

S<br />

Segunda quebra de sigilo fiscal: prévia autorização judicial. (...) Inquérito<br />

policial. HC 87.654 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/727<br />

Servidor público. Auditor fiscal do Tesouro Nacional. Demissão: julgamento<br />

fora do prazo. Processo administrativo: nulidade inocorrente. Lei n. 8.112/<br />

90, art. 169, § 1º. MS 22.373 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/644<br />

Servidor público: avaliação psicológica. (...) Mandado de segurança. MS<br />

22.373 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/644<br />

Adm Servidor público estadual. Aproveitamento. Quadro especial. Concurso<br />

público: ausência. Súmula 685: ofensa. Lei estadual n. 538/2000/AM:<br />

inconstitucionalidade. ADI 3.061 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/622<br />

Adm Súmula 359. (...) Aposentadoria. MS 25.064 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/672<br />

Adm Súmula 685: ofensa. (...) Servidor público estadual. ADI 3.061 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/<br />

622<br />

T<br />

Pr<strong>STF</strong> Tempestividade. (...) Recurso extraordinário. AI 5<strong>07</strong>.874-AgR <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/<br />

865<br />

Adm Tempo ficto: contagem. (...) Aposentadoria. MS 25.064 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/672<br />

PrPn Tráfico de entorpecente. (...) Processo criminal. RHC 86.680 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/<br />

717<br />

PrPn Trancamento: descabimento. (...) Inquérito policial. HC 87.654 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/727<br />

Ct Trânsito. (...) Competência legislativa. ADI 3.186 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/626


ÍNDICE ALFABÉTICO — Uni-Víc<br />

XV<br />

U<br />

Ct União Federal. (...) Competência legislativa. ADI 3.186 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/626<br />

Ct União Federal. (...) Competência legislativa concorrente. ADI 3.645 <strong>RTJ</strong><br />

<strong>199</strong>/633<br />

Ct Urgência e relevância. (...) Medida provisória. RE 415.932 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/837<br />

V<br />

PrPn<br />

Vício da primeira quebra de sigilo: não-contaminação. (...) Inquérito policial.<br />

HC 87.654 <strong>RTJ</strong> <strong>199</strong>/727


ÍNDICE NUMÉRICO


ACÓRDÃOS<br />

12 (ADC-MC) Rel.: Min. Carlos Britto.......................... <strong>199</strong>/427<br />

2.591 (ADI) Rel. p/ o ac.: Min. Eros Grau .................. <strong>199</strong>/481<br />

3.061 (ADI) Rel.: Min. Carlos Britto.......................... <strong>199</strong>/622<br />

3.186 (ADI) Rel.: Min. Gilmar Mendes ...................... <strong>199</strong>/626<br />

3.645 (ADI) Rel.: Min. Ellen Gracie .......................... <strong>199</strong>/633<br />

22.373 (MS) Rel.: Min. Ellen Gracie .......................... <strong>199</strong>/644<br />

24.665 (MS) Rel. p/ o ac.: Min. Cezar Peluso ............. <strong>199</strong>/652<br />

25.064 (MS) Rel.: Min. Carlos Britto.......................... <strong>199</strong>/672<br />

25.440 (MS) Rel.: Min. Carlos Velloso ....................... <strong>199</strong>/676<br />

25.461 (MS) Rel.: Min. Sepúlveda Pertence ............... <strong>199</strong>/687<br />

86.329 (HC) Rel.: Min. Carlos Britto.......................... <strong>199</strong>/706<br />

86.680 (RHC) Rel.: Min. Joaquim Barbosa ................... <strong>199</strong>/717<br />

87.654 (HC) Rel.: Min. Ellen Gracie .......................... <strong>199</strong>/727<br />

181.966 (RE) Rel. p/ o ac.: Min. Nelson Jobim ............ <strong>199</strong>/735<br />

282.172 (RE-AgR) Rel.: Min. Celso de Mello ...................... <strong>199</strong>/746<br />

357.950 (RE) Rel.: Min. Marco Aurélio ....................... <strong>199</strong>/748<br />

415.932 (RE) Rel. p/ o ac.: Min. Sepúlveda Pertence .. <strong>199</strong>/837<br />

428.9<strong>07</strong> (AI-AgR) Rel.: Min. Celso de Mello ...................... <strong>199</strong>/861<br />

5<strong>07</strong>.874 (AI-AgR) Rel.: Min. Carlos Britto.......................... <strong>199</strong>/865

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